universidade do estado da bahia uneb prÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira,...

213
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E ENSINO DE PÓS-GRADUAÇÃO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS CAMPUS I PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS ADILMA NUNES ROCHA O TEXTO MACHADIANO NO TRÂNSITO DOS OBJETOS CULTURAIS NA CONTEMPORANEIDADE: ENTRE CONTOS E REQUADROS. Salvador 2012

Upload: hoangdat

Post on 29-Jul-2018

230 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E ENSINO DE PÓS-GRADUAÇÃO

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS I

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS

ADILMA NUNES ROCHA

O TEXTO MACHADIANO

NO TRÂNSITO DOS OBJETOS CULTURAIS NA CONTEMPORANEIDADE:

ENTRE CONTOS E REQUADROS.

Salvador

2012

Page 2: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

2

ADILMA NUNES ROCHA

O TEXTO MACHADIANO

NO TRÂNSITO DOS OBJETOS CULTURAIS NA CONTEMPORANEIDADE:

ENTRE CONTOS E REQUADROS.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Estudo de Linguagens, no âmbito da

Linha de Pesquisa I – Leitura, Literatura e

Identidades, como requisito parcial para a obtenção

do grau de Mestre em Estudo de Linguagens, pela

Universidade do Estado da Bahia.

Orientador: Professor Dr. Carlos Augusto Magalhães

Salvador

2012

Page 3: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

3

FICHA CATALOGRÁFICA

Sistema de Bibliotecas da UNEB

Rocha, Adilma Nunes

O texto machadiano no trânsito dos objetos culturais na contemporaneidade: entre contos e

requadros San/ Adilma Nunes Rocha . - Salvador, 2012.

213f.

Orientador: Prof. Dr. Carlos Augusto Magalhães.

Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências Humanas.

Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens. Campus I. 2012.

Contém referências.

1. Assis, Machado de, 1839-1908. 2. Literatura brasileira - História e crítica. 3. Cultura. 4.

Semiótica. 5. Histórias em quadrinhos. I. Magalhães, Carlos Augusto. II.Universidade do Estado da

Bahia, Departamento de Ciências Humanas .

Page 4: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

4

ADILMA NUNES ROCHA

O TEXTO MACHADIANO

NO TRÂNSITO DOS OBJETOS CULTURAIS NA CONTEMPORANEIDADE:

ENTRE CONTOS E REQUADROS.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Estudo de Linguagens, no âmbito

da Linha de Pesquisa I – Leitura, Literatura e Identidades, como requisito parcial para a

obtenção do grau de Mestre em Estudo de Linguagens, pela Universidade do Estado da Bahia,

perante a banca examinadora composta pelos professores:

_____________________________________________________________________________________

Prof.º Dr. Carlos Augusto Magalhães - Orientador

Universidade do Estado da Bahia

_____________________________________________________________________________________

Prof.ª Dr.ª Márcia Rios da Silva

Universidade do Estado da Bahia

_____________________________________________________________________________________

Prof.ª Dr.ª Nancy Rita Vieira

Universidade Federal da Bahia

Salvador

2012

Page 5: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

5

“Cada um de nós pode ser um e outro, em diferentes momentos de um mesmo dia, num

caso, buscando uma excitação de um tipo altamente especializada, no outro, uma forma

de entretenimento capaz de veicular uma categoria de valores específica.”

(ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. 2008, p.58.)

“E onde esse sensorium se faz social e culturamente visível hoje é no entretempo dos

jovens, cujas enormes dificuldades de conversa com as outras gerações apontam para

tudo o que na mudança geracional há de mutação cultural.”

(MARTÍN-BARBERO, Jesús. Ofício de Cartógrafo: tra-

vessias latino-americanas da comunicação na cultura,

2004, p.37.)

Page 6: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

6

Dedico este trabalho

às minhas filhas

Aieska Rocha Assis, Nikole Rocha Assis e Bianka Rocha Assis;

ao esposo companheiro Otávio de Jesus Assis;

aos sobrinhos Matheus, André, Pietra, Geovane, Gabriel, Amanda e Heitor;

aos meus pais, Tuninho e Irene

e irmãos Karla, Arylene, Tone, Alex, Aldo , Adilson e Adailton –

alteridades que me completam

e me fazem acreditar na luta para que os sonhos e objetivos se realizem.

E a todos os meus alunos de ontem, de hoje e de sempre, partícipes das minhas aprendizagens.

Page 7: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

7

AGRADECIMENTOS

Neste mundo amplo,

ao mesmo tempo, próximo e distante,

no qual lutamos para representar

nossos sentimentos e eventos, sonhos e desejos

pelo frágil instrumento que é o signo,

vale tentar registrar

que nem tudo ele consegue abarcar.

Um exemplo desta indócil situação,

é a palavra AGRADECIMENTO.

Não cabe na palavra agradecimento,

a energia de Deus em nossas ações.

Não cabe na palavra agradecimento

a falta, a tristeza, a paciência vividas por Aieska, Nikole e Bianka.

Não cabe na palavra agradecimento,

o apoio, a cumplicidade de Otávio.

Não cabe na palavra agradecimento

a atenção do meu orientador Carlos Magalhães.

Não cabe na palavra agradecimento

o cuidado e a atenção de Karla para comigo e para com minhas filhas.

Não cabe na palavra agradecimento

a energia positiva dos meus pais e de minha sogra.

Page 8: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

8

Não cabe na palavra agradecimento

o encorajamento de Arylene, o desejo de meu êxito sempre renovado no olhar de Tone,

Alex, Aldo, Adilson e Adailton.

Não cabe na palavra agradecimento

o incentivo de Sayonara, Izabel, Arlete e Jussy, estímulo sempre renovado na pergunta

E como está lá? e na afirmativa Tudo vai dar certo.

Não cabe na palavra agradecimento

os variados momentos de aprendizagem propiciados pela turma de mestrando de 2008.

Não cabe na palavra agradecimento

a dedicação dos professores do PPGEL.

Não cabe na palavra agradecimento

a constante disposição em atender com um sorriso estampado no rosto e o

profissionalismo de Camila e Danilo.

Apesar desta incompletude do signo em relação ao evento,

agradeço de coração:

todo esse encontro e experiências de alteridades propiciadas,

toda alegria vivenciada,

todos as descobertas realizadas,

algumas decepções vividas,

o cansaço acumulado,

a sensação de esvaziamento para buscar mais conhecimento,

e a sempre presentes vontade e prazer de aprender sempre mais.

Page 9: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

9

LISTA DE FIGURAS

Figura 1, 3, 4 5, 6 – ALENCAR, José de. Ubirajara. Adaptação e desenhos André Le

Blanc; capa Monteiro Filho. Rio de Janeiro: Brasil-América, 1976.

Figura 2,7,8 ,9, 10, 11, 12 – MACEDO, Joaquim Manuel de. A moreninha. Desenhos

do texto e capa Gutemberg Monteiro. Rio de Janeiro: Brasil-América, 1976.

Figura 13, 14 – CAMÕES. Os Lusíadas. Adaptação, arte e capa Fido Nesti. São Paulo:

Peirópolis, 2006.

Figura 15, 16 – QUEIROZ, Eça de. A relíquia. Ilustrações Marcatti. São Paulo: Conrad

Editora do Brasil, 2007.

Figura 17, 18 – SIMMONDS, Posy. Gemma Bovery. Tradução Ludimila Hashimoto.

São Paulo: Conrad Editora, 2006.

Figura 19 e 20 – HOSSEINI, Khaled. O caçador de pipas. Adaptação de: The kite

runner; ilustrado por Fábio Celoni e Mirka Andolfo; Tradução de Maria Helena

Rouanet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.

Figura 21 – SOUZA, Marcio. Galvez, o imperador do Acre. Roteiro de Miguel Ipiriba

e imagens de Domingos Demasi. Belém: Secretaria de Cultura do Pará, 2004.

Figura 22 – BARRETO, Lima. O homem que sabia javanês. Roteiro, desenhos

Francisco S. Vilachã; cor Fernando A. Rodrigues e Francisco S. Vilachã. São Paulo:

Escala Educacional, 2006.

Figura 24 – MELO NETO, João Cabral de. Morte e vida Severina em quadrinhos.

Recife: Fundaj. Ed. Massagana, 2005.

Figura 25 – MACEDO, Joaquim Manuel de. A luneta mágica. Roteiro de Patari:

desenhos de Marcio de Castro. 1. Ed. São Paulo: Panda Books, 2009.

Figura 26 – GUIMARÃES, Bernardo. A escrava Isaura. Roteiro de Ivan Jaf; arte de

Guazzelli. São Paulo: Ática, 2010.

Page 10: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

10

Figura 27 – ALENCAR, José de. O guarani. Adaptação e roteiro Ivan Jaf; roteiro e

desenhos Luiz Gê. São Paulo: Ática, 2009.

Figura 28, 29 – ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um Sargento de

milícias Roteiro Ivan Jaf; ilustrações Rodrigo Rosa. São Paulo: Ática, 2010.

Figuras 30, 31 – ALMEIDA, Manuel Antonio de. Memórias de um Sargento de

milícias adaptação, roteiro e desenhos de Lailson de Holanda Cavalcante. São Paulo:

Companhia Editora Nacional, 2008.

Figura 32, 34, 35 – AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. Roteiro Ivan Jaf; ilustrações

Rodrigo Rosa. São Paulo: Ática, 2009.

Figura 33, 36, 37 – AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. Roteiro e adaptação Ronaldo

Antonelli; desenhos Francisco S. Vilachã; cores Fernando A. Rodrigues. São Paulo:

Escala Educacional, 2007.

Figura 38, 39 – LOBATO, Monteiro. O minotauro. Roteiro Stil. São Paulo: Globo,

2009.

Figura 40, 41 – LOBATO, Monteiro. Dom Quixote das crianças. Adaptação,

ilustrações de Cor e Imagem André Simas. 2ed. São Paulo: Globo, 2009.

Figura 42, 43 – LOBATO, Monteiro. As aventuras de Hans Staden. Adaptação e

roteiro Denise Ortega e Stil. Ilustrações Arcon. São Paulo: Globo, 2009.

Figura 44, 45, 46,47, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 68, 69 – ASSIS, Machado de.

Memórias Póstumas de Brás Cubas. Roteiro e ilustrações Sebastião Seabra. São

Paulo: Escala Educacional, 2008.

Figura 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 70, 71, 72, 73,74, 75, 76 – ASSIS,

Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Roteiro de Wellington Srbek e

ilustrações João Batista Melado. Rio de Janeiro: Desiderata, 2010.

Figura 77, 78,79, 80, 81, 82 – ASSIS. Machado de. Dom Casmurro: em quadrinhos.

Ilustrações de Ruy Trindade. Salvador: Bureal Gráfica e editora, 2005.

Page 11: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

11

Figura 83, 84, 85, 86, 87, 88, 89, 90,91, 92, 93, 94, 95, 96, 97 – ASSIS. Machado de.

Dom Casmurro de Machado de Assis. Roteiro de Wellington Srbek e ilustrações José

Aguiar. Belo Horizonte: Editora Nemo, 2011.

Figura 98, 99, 100, 101, 102, 103, 146, 147, 148, 154, 155, 173 – ASSIS. Machado de.

O alienista. Roteiro e ilustrações Francisco S. Vilachã e cores Fernando A. A.

Rodrigues. São Paulo: Escala Educacional, 2006.

Figura 104, 105, 106, 107, 108, 109, 110, 111, 112, 113, 114, 149, 156, 157 –

CAVALCANTI, Lailson de Holanda. O alienista/Machado de Assis; adaptação de

Lailson de Holanda Cavalcanti. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2008.

Figura 115, 116, 117, 118, 119, 120, 121, 122, 123, 124,125, 126, 127, 128, 129, 130,

131, 132, 150, 158, 159, 160 – ASSIS. Machado de. O alienista. Adaptação e arte

Cesar Lobo e roteiro Luiz Antonio Aguiar. 1.ed. São Paulo: Ática, 2008.

Figura 133, 134, 135, 136, 137, 138, 139, 140, 141, 142, 143, 144, 145, 151, 152, 153,

161, 162, 163 – MOON, Fábio. O alienista de Machado de Assis. Adaptação de Fábio

Moon e Gabriel Bá. Rio de Janeiro: agir, 2007.

Figura 164, 165, 166, 167, 168, 169, 170 – ASSIS, Machado de. Contos de escola em

quadrinhos. Adaptado por Silvino. São Paulo: Peirópolis, 2010.

Figura 171 – ASSIS, Machado de. A cartomante. Roteiro, desenhos e arte final Jô

Fevereiro. Cores Jô e Ciça Sperl. São Paulo: Escala Educacional, 2006.

Figura 172, 176, 177, 178, 179,180, 181, 182, 183, 184, 185, 186, 187,188, 189, 190,

191,192, 193, 194, 195, 196, 197, 198, 199, 200, 201, 202, 203, 204, 205, 206, 207,

208, 209, 210, 211, 212, 213, 214, 215, 216, 217, 218, 219, 220, 221, 222, 223, 224,

225, 226, 227, 228, 229, 230 – ASSIS, Machado de. A causa secreta. Roteiro Francisco

S. Vilachã. Cores Fernando A. A. Rodrigues. São Paulo: Escala Educacional, s/d.

Figura 174 – ASSIS, Machado de. O enfermeiro. Roteiro, desenhos Francisco S.

Vilachã. Cor Fernando A. Rodrigues e Francisco S. Vilachã. São Paulo: Escala

Educacional, 2006.

Figura 175 – ASSIS, Machado de. Uns braços. Roteiro e desenhos Francisco S.

Vilachã. São Paulo: Escala Educacional. s/d.

Page 12: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

12

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 15

1. O TRÂNSITO DOS OBJETOS CULTURAIS: A LITERATURA EM

QUADRINHOS

1.1 O TRÂNSITO DOS OBJETOS CULTURAIS ......................................................... 23

1.2 HISTÓRIA EM QUADRINHOS: DA GÊNESE À CONDIÇÃO DE ARTE

SEQUENCIAL E PRODUTO DE MASSA .................................................................. 28

1.3 A LITERATURA EM QUADRINHOS COMO TRADUÇÃO ............................... 41

1.4 EMERGÊNCIA E DIVERSIDADE DA LITERATURA EM QUADRINHOS ...... 45

2. A LITERATURA MACHADIANA ENTRE CONTOS E REQUADROS

2.1 A LITERATURA MACHADIANA ......................................................................... 68

2.1.1 LITERATURA MACHADIANA: ENTRE CONTOS ................................... 81

2.1.2 UM OLHAR SOBRE A CAUSA SECRETA ................................................ 88

2.2 A LITERATURA MACHADIANA: ENTRE REQUADROS ................................. 92

2.2.1 UM OLHAR SOBRE A QUADRINIZAÇÃO DE “A CAUSA SECRETA”142

3. OS CONTOS E REQUADROS MACHADIANOS NA APRECIAÇÃO DO LEITOR

CONTEMPORÂNEO

3.1 O LEITOR CONTEMPORÂNEO ......................................................................... 160

3.2 O CONTEXTO DA ATIVIDADE INVESTIGATIVA ENTRE CONTOS E

REQUADROS: A RECEPÇÃO DO TEXTO MACHADIANO NA

CONTEMPORANEIDADE .......................................................................................... 167

3.3 O LEITOR CONTEMPORÂNEO ENTRE CONTOS E REQUADROS:

RELATOS DE RECEPÇÃO ......................................................................................... 173

CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 202

Page 13: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

13

RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo uma análise de como ocorre na contemporaneidade

o diálogo entre produtos culturais distintos, prática que se concretiza nos textos híbridos

que democratizam o acesso às variadas produções das culturas. Tais diálogos são

motivados por um mercado que passa a investir em novas sensibilidades identificadas

com as tramas comunicativas que rompem fronteiras geográficas, sociais e culturais.

Neste contexto, procuramos estabelecer a relação entre a literatura de Machado de Assis

na versão tradicional e a literatura em quadrinhos machadiana, por intermédio da

tradução intersemiótica observando como os jovens percebem estes textos. As

quadrinizações literárias tornam-se objeto de atenção tanto pela nova linguagem

engendrada no encontro do verbal (clássico) e o icônico, como pela recepção que

provocam, no sentido de que propiciam ao público leitor o conhecimento e apreciação

das experiências de outros tempos-lugares. Em consonância com este intento, realizou-

se pesquisa bibliográfica na qual foram fundamentais as discussão de Jésus Martin-

Barbero, Nestor García Canclini, Umberto Eco, Walter Benjamin, Moacy Cirne, Will

Eisner, Júlio Plaza, Wolfgang Iser, Hans Robert Jauss, entre outros. Outra vertente do

trabalho foi pesquisação, atividade que se centrou na leitura, análise e discussão do

conto A causa secreta na versão tradicional e na quadrinizada. A experiência

desenvolveu-se mediante círculos de leitura, em que se envolveu uma escola da rede

pública de Jequié-Ba.

Palavras-chave:

Cultura; literatura em quadrinhos; tradução intersemiótica; Machado de Assis.

Page 14: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

14

ABSTRACT

This study aims to analyze how one occurs in the contemporary dialogue between

different cultural products, a practice that is realized in hybrid texts that democratize

access to varied crop yields. Such dialogues are driven by a market that is investing in

new sensitivities identified with the communicative frames that break geographical

boundaries, social and cultural. In this context, we establish the relationship between

literature Machado de Assis in the traditional version and literature in comics

Machadiana, intersemiotic translation through observing how young people perceive

these texts. The literary quadrinizações become the object of much attention

engendered by the new language in the meeting of verbal (classic) and iconic, like the

reception that cause, in the sense that the readers provide the knowledge and

appreciation of the experiences of other time-places. In line with this intent, there was

literature in which the discussions were critical of Jesus Martin-Barbero, Nestor

García Canclini, Umberto Eco, Walter Benjamin, Moacy Cirne, Will Eisner, Jules

Plaza, Wolfgang Iser, Hans Robert Jauss, among other. Other work wertwente was

pesquisação, activity which focused on reading, analyzing and discussing the story

The secret cause in the traditional version and quadrinizada. The experience developed

through reading circles, which involved public school of the Jequié –Ba.

keywords:

Culture; literature in comics; intersemiotic translation; Machado de Assis.

Page 15: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

15

INTRODUÇÃO

A segunda metade do século XX e o início do século XXI foram marcados pelo

signo das grandes transformações sócioeconômicas e culturais, as quais se apresentam

impregnadas pela velocidade da tecnologia. À mercê do poder do mercado globalizado,

tais transformações descentralizam paradigmas e aproximam espaços e culturas e

promovem a possibilidade de formação de novas sensibilidades.

A descentralização do modelo eurocêntrico elitista, elemento caracterizador das

produções culturais e identitárias, é resultante da expansão do mercado e das relações de

mundialização. O olhar antes focado na Europa e nas potências mundiais volta-se para a

periferia, espaço onde o diálogo dominador X dominado, elite X povo é ressignificado

nos mais variados produtos, a partir da ideia do entrelugar. As margens sociais e as

massas consumidoras tornam-se também alvos de expectativas, o que possibilita novos

espaços e olhares diferenciados para seus produtos culturais.

Nessas circunstâncias, os frutos da cultura elitista do centro passam a dialogar

com os produtos culturais das margens, os quais se tornam espaços de trânsito por se

apresentarem como adequados para a aproximação e hibridização das linguagens em

constante revisionismo, no que concerne à adoção de propósitos identificados com uma

melhor compreensão do presente.

A literatura, entre tantos produtos da cultura, está exposta a este revisionismo, no

qual se inserem também as novas linguagens como os quadrinhos, o cinema, as

minisséries, as novelas. É neste contexto que surge o nosso questionamento: que causas

remetem a literatura, produto da elite, a estágios de diálogos com os produtos culturais

considerados antes como das margens, como no caso específico da interação da

literatura com os quadrinhos, fruto da cultura de massa? Como se processa o diálogo

entre a literatura e os quadrinhos nas quadrinizações literárias?

A literatura em quadrinhos ou as quadrinizações literárias (como costuma ser

denominado este novo produto cultural) traz em si um caráter híbrido. Refletindo sobre

a hibridização, assim se expressa García Canclini (2008, p.14-15):

Parto de uma definição: entendo por hibridação processos sócio-

culturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de

Page 16: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

16

forma separada, se combinam para formar novas estruturas, objetos e

práticas. [...] Uma forma de descrever esse trânsito do discreto ao

híbrido, e as novas formas discretas, é a fórmula “ciclos de

hibridação” proposta por Brian Stross, segundo a qual, na história,

passamos de formas mais heterogêneas a outras mais homogêneas, e

depois a uma relativamente mais heterogênea, sem que nenhuma seja

pura ou plenamente homogênea.

Ganha relevo nesta discussão a literatura em quadrinhos, como produto híbrido,

formatação resultante da junção de um texto mais ou menos homogêneo – o literário

canônico – e de outro de natureza heterogênea – a história em quadrinhos. O último

assume o formato de um texto que traz, no próprio bojo, marcas e traços de linguagens

outras (fotografia, cinema, teatro, a da própria literatura). Por ostentar, na origem, a

condição híbrida, tal produto desperta olhares curiosos e faz surgir posições

controversas e questionadoras no que se refere à discussão se, efetivamente, ele

apresenta a legitimidade de texto artístico identificado com propósitos específicos. Da

confluência dos dois textos surge um novo objeto cultural, um entrelugar, enfim uma

linguagem outra, na verdade, um produto outro com especificidades e códigos próprios.

A literatura em quadrinhos seria uma espécie de entrelugar, pois é fruto da

confluência da história em quadrinhos com a literatura clássica, ambas apresentando

linguagens próprias, distintas. O encontro dos dois produtos faz nascer o icônico, por

sua vez produto com natureza própria e diversa da história em quadrinhos e da literatura

clássica, isto é, se cada uma delas é olhada isoladamente. O produto cultural híbrido

(texto em quadrinho) carrega o estigma do preconceito por se apresentar como texto

pronto, desprovido de elementos que funcionariam como desafios ao leitor, e também

por não se enquadrar na proposta de erudição, em termos da exibição de aspectos

característicos de uma linguagem tradicionalmente elaborada, valores normalmente

atribuídos à literatura.

Assim, numa proposta de identificação com certos traços dos estudos culturais,

esboça-se a neutralização de determinados aspectos da literatura tradicional. Nesta

direção, criam-se espaços para a adoção de gêneros de natureza heterogênea,

responsáveis pelo desvendamento de olhares novos identificados com a cultura de

massa e, que não raras vezes, se apresentam atrelados à indústria cultural. Tal

redimensionamento também trilha as discussões de Lucia Santaella, pesquisadora que

nomeia esta nova instância como a cultura das mídias.

Page 17: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

17

Trata-se de processo cultural diferente do que se denominava de cultura de

massa, visto que “[...] a cultura das mídias inaugurava uma dinâmica que, tecendo-se e

se alastrando nas relações das mídias entre si, começava a possibilitar aos seus

consumidores a escolha de produtos simbólicos alternativos” (SANTAELLA, 2008,

p.53). Neste trabalho, entendem-se como mídias os variados suportes de leitura que

fazem transitar a informação, e a cultura, as quais passam a circular a partir da

passagem e da adaptação de aspectos de um veículo que assimilam feições de outro

veículo. É o que se observa no caso do livro que se torna disponível na feição do filme,

do quadrinho na feição do filme, do livro no cinema, do livro na minissérie, da

minissérie no livro. Também faz parte desta nova dinâmica cultural a literatura em

quadrinhos – trânsito da obra literária para as revistas em quadrinhos.

Tal objeto cultural identifica-se com novas concepções da comunicação voltadas

para a ressignificação e a apreensão de objetos e práticas em que se interligam aspectos

da esfera culta, popular e de massa. Tradicionalmente, a comunicação é descrita como

uma estrutura polarizada, cristalizada a partir da enunciação da mensagem, cujo emissor

assume a função primordial na estruturação do processo comunicativo. Caberia ao

receptor a função de apenas receber a mensagem, isto é, resta-lhe o papel de receptáculo

do processo, uma vez que apenas decodificaria o conteúdo previamente determinado.

A partir da segunda metade do século XX, diante dos processos de fragmentação

da identidade e das novas concepções e vivências da instância espaço-temporal, as

discussões acerca do processo de comunicação ganham nova dinâmica. O emissor e o

receptor têm seus papéis revistos e, nesta direção, vão participar de um processo

interativo cuja meta é a construção do sentido.

Neste contexto, os objetos e as práticas culturais passam a ser focados

considerando-se as novas sensibilidades, produtos das novas relações espaciais e

temporais, múltiplas e heterogêneas. Tais sensibilidades mostram-se atentas às

condições definidas pela globalização, instância em que se configuram espaços de

encontros, misturas e assimilações culturais e que ressignificam continuamente os

processos de comunicação, agora não apenas interpessoais, mas também intertemporais,

interespacias e interculturais. É no seio deste processo interativo que se situam a

literatura, os quadrinhos e o leitor.

O estudo que aqui se inicia nasceu da curiosidade em compreender como a

literatura machadiana é transportada para os quadrinhos e como o leitor contemporâneo

Page 18: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

18

interage com o conto de Machado de Assis, tanto em sua forma tradicional como na

quadrinizada. Pensar o deslocamento e a aceitação deste texto não se resume a

confirmar e referendar o autor no cânone da literatura. A propósito, a literatura é

compreendida aqui como uma instituição que, a partir da perspectiva da sociologia das

emergências, conforme explicitações de Boaventura Souza Santos (2004) tende a

aglutinar todas as formas de literatura e de linguagens que dialogam e corroboram com

a ecologia dos saberes. Pensa-se, sobretudo, na valorização de todas as experiências de

vida e de leitura, atentando-se para o risco iminente de desperdício de oportunidades,

etapas com que costuma se envolver um elitismo excludente e empobrecedor.

O instigante e desafiador texto machadiano constitui o norte das abordagens que

se pretendem aqui, numa proposta que busca repensar as seriações da historiografia

literária. As análises terão como operadores empíricos dois produtos culturais

específicos – o conto A Causa Secreta (1884) e a quadrinização do referido conto,

construída pela Editora Escala Educacional.

Dentro do universo literário machadiano, a escolha do conto, dentre os variados

gêneros textuais, dá-se pela possibilidade de leitura rápida, tendo em vista a proposta

temporal de investigação. O romance demandaria mais tempo, pensando-se em um

leitor sem muita prática de leitura. Não obstante, é reconhecida a grande importância do

conto, gênero com que se ilustra o caráter de singularidade da obra machadiana, tida

como inigualável.

O conto aqui analisado, A Causa Secreta (1884), é um texto pinçado entre os

mais encontrados nos manuais didáticos, além de ser bastante estudado por teóricos e

críticos acadêmicos. A narrativa em si é denominada, neste trabalho, texto-base, pois

serviu de motivo para filmes, minisséries, animações, novelas e histórias em

quadrinhos, produtos que são considerados traduções intersemióticas.

Produzido na segunda metade do século XIX, o conto machadiano traz em sua

temática discussões atuais. Tal narrativa surge no Brasil num contexto histórico

entremeado pela desgastada monarquia conservadora e oligárquica e pela recém-

chegada República, com foros de modernidade tardia e influenciada pela visão burguesa

eurocêntrica, cujo paradigma tem raízes na França.

Trazer estas experiências de vida deste período histórico, metaforizadas na

literatura clássica, para uma melhor compreensão das instâncias passado-presente-futuro

da trajetória humana, por meio de uma linguagem mais acessível na

Page 19: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

19

contemporaneidade, é o que rege o processo de tradução intersemiótica, base da

literatura em quadrinhos. Adotaremos o termo tradução pelo fato de ele expressar a

transmutação dos textos literários machadianos isto é, a transubstanciação do signo

verbal para o icônico (HQ), técnica chancelada pela ressignificação do leitor

quadrinista. Muito mais que adaptar uma linguagem à outra, num processo estrutural

semiótico, trata-se de constatar que a literatura em quadrinhos é um instrumento de

acesso à leitura da relação passado-presente.

Sendo os quadrinhos um produto de massa, o interesse aqui é compreender como

a quadrinização literária, objeto híbrido, consegue fundir o clássico e o massivo e que

efeitos provocam no leitor. Foram observadas, inicialmente, quadrinizações de textos

literários de diversos autores (José de Alencar, Manuel Antonio de Almeida, Bernardo

Guimarães, Eça de Queirós, Luis Vaz de Camões, Monteiro Lobato...) de variadas editoras

(Agir, Ática, Top Books, Panda Books, Cortez, Desiderata, Companhia Editora Educacional,

Globo, Peirópolis, Companhia das Letras, Pallas, Nemo). Neste levantamento, destacamos as

primeiras quadrinizações e analisamos o boom de publicações nos últimos dez anos.

Por fim, focou-se na literatura machadiana quadrinizada que circula no mercado

editorial, por ter Machado de Assis um texto inquietante. Dentre a vasta produção do

referido autor foi escolhida a quadrinização A causa secreta feita pela Escala

Educacional, editora paulista que tem muitos títulos nesta tendência contemporânea.

Esta é uma das editoras que se debruçam sobre a leitura dos clássicos com o argumento

da facilitação da leitura por meio de uma tradução/adaptação em textos de quadrinhos.

Há o intuito de observar mais atentamente essa ressignificação, visto que não se

trata apenas de mera mudança de linguagem, da literária tida como “superior”, para o

iconográfico, produto da cultura de massa. Os interesses implícitos nesta nova produção

cultural e a identidade do leitor envolvido neste processo merecem atenção especial.

Assentar um pouco nossas reflexões na cultura de massa e nos objetos culturais híbridos

pode nos conceder luz para enxergarmos o que vem a ser este novo produto da cultura.

O texto aqui desenvolvido apresenta, em seu Capítulo 1 – O TRÂNSITO DOS

OBJETOS CULTURAIS: A LITERATURA EM QUADRINHOS – uma exposição

acerca da produção cultural em momento de intersecção mediada pelo mercado

globalizado. São apresentadas as transformações das concepções de cultura que alargam

a percepção, na contemporaneidade, dos objetos culturais, reconfigurados na

hibridização pelo diálogo de culturas antes distanciadas e restritas a grupos

sócioeconômicos determinados.

Page 20: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

20

A crítica cultural, como tendência teórica que abre espaços para a percepção dos

diálogos culturais de produtos da margem, que descentram práticas culturais da elite,

torna-se o embasamento que sustenta nossa discussão. A aplicação de aspectos da

crítica cultural se embasa em princípios explicitados e elaborados em textos de Eneida

Maria de Souza, Eneida Leal Cunha e Heloísa Buarque de Holanda.

Focaliza-se a literatura em quadrinhos, objeto de atenção desta pesquisa, na

perspectiva de objeto artístico cultural híbrido e descentralizador, resultado de uma nova

sensibilidade na cultura e na comunicação, e adotam-se como suporte as discussões de

Umberto Eco sobre o produto cultural das massas, Jesus Martín-Barbero, no

concernente à comunicação cultural no cenário da sociedade tecnológica e globalizada,

Néstor García Canclini, nas considerações sobre o texto híbrido na socialização da arte,

Mario Feijó, no que diz respeito ao histórico dos quadrinhos, Will Eisner, Paulo Ramos

e Moacyr Cirne, olhando-se as considerações acerca da linguagem quadrinística.

A literatura em quadrinhos é destacada como produto cultural resultante da

congruência dos dois olhares. Vale salientar também a leitura do quadrinho sob a ótica

da reprodução técnica da obra de arte, conforme explicitações de Walter Benjamin.

Interessa aqui destacar os poucos estudos existentes encontrados em textos, inclusive os

que circulam na mídia (internet), e apresentar os aspectos característicos de

quadrinizações antigas e atuais que circulam no mercado. Por fim, a literatura em

quadrinhos é discutida na perspectiva do processo de tradução intersemiótica pela

transmutação de códigos, conforme os estudos de Júlio Plaza, e discutida criticamente

nas perspectivas de leituras da História, que se consolidam nas traduções, segundo

Walter Benjamin.

O Capítulo 2 – A LITERATURA MACHADIANA: ENTRE CONTOS E

REQUADROS – apresenta a literatura machadiana em dois objetos culturais distintos:

na literatura e nas quadrinizações.

Na literatura, afunilando para o gênero conto, buscam-se nos posicionamentos

de críticos e especialistas como Afrânio Coutinho, Eugênio Gomes, Valentin Facioli,

Sônia Brayner e Antonio Candido, as diversas percepções sobre o texto machadiano.

Igual busca há também na leitura crítica difundida em algumas revistas produzidas nos

últimos vinte anos, textos que vinculam posicionamentos de críticos renomados e de

estudiosos da atualidade do meio acadêmico e da crítica jornalística. Tais leituras se

aproximam e guardam certa semelhança com o que é conhecido como crítica de rodapé.

Page 21: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

21

A aproximação se concretiza a partir da produção de textos críticos por parte de

intelectuais não especialistas em literatura, dotados de uma linguagem menos rebuscada

e de construções argumentativas mais diretas.

Também são expostos levantamentos e leituras de algumas quadrinizações da

literatura machadiana disponíveis no mercado editorial para discutir alguns elementos

da transmutação semiótica nelas percebidas. Por fim, desembocamos na leitura

intersemiótica da quadrinização A Causa Secreta de Francisco Vilachã, utilizada na

atividade investigativa, por meio de comparação com o conto (texto-base). Foi

observado como se constituem as releituras dos contos primeiros realizadas pelo

quadrinista por meio da materialização do verbal-literário para o não-verbal imagético

da linguagem dos quadrinhos.

No Capítulo 3 – OS CONTOS E REQUADROS MACHADIANOS NA

APRECIAÇÃO DO LEITOR CONTEMPORÂNEO – tem-se por meta a observação

e análise de como o leitor contemporâneo acolhe e constrói a leitura do texto

machadiano em gêneros textuais distintos (o texto literário e o texto quadrinístico). Os

dados colhidos foram analisados sob a ótica da estética da recepção, a partir das

discussões relacionadas com o conceito de “prazer estético”, de Hans Robert Jauss.

Busca-se observar o desmembramento da fruição estética e da reflexão estética; tal

intento se faz presente também no “jogo do texto”, marcado pelas indeterminações e

hiatos a serem complementados pelo leitor conforme Wolfganger Iser.

O presente capítulo está organizado em duas etapas: a primeira situa o leitor do

texto literário na contemporaneidade, na visão da academia e do que os PCNs afirmam

sobre a leitura literária na escola. Na segunda, são apresentadas a descrição da atividade

investigativa e a análise dos resultados.

Tal atividade investigativa denominada Entre contos e requadros: a recepção do

texto machadiano na contemporaneidade concretizou-se por meio de círculos de leitura,

realizados no Colégio Polivalente Edivaldo Boaventura, escola pertencente à rede

estadual de Educação em Jequié, Bahia. O público-alvo foi constituído por alunos de 15

a 18 anos, da 2ª e 3ª séries do Ensino Médio, colaboradores voluntários, que

participaram de três círculos de leituras, nos quais fizeram a leitura do texto literário e

da quadrinização do conto A causa secreta. Eles apresentaram as leituras construídas,

situaram as percepções e as dificuldades acerca do texto machadiano, destacaram

Page 22: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

22

detalhes do texto quadrinístico que favorecem uma melhor construção do sentido da

história e confrontaram o texto-base com a literatura em quadrinhos.

Neste trabalho, as discussões travadas e as análises construídas voltaram-se

para a percepção de como o leitor procede a leitura, em face a dois objetos culturais

distintos, os quais vão ganhando novas dimensões à medida que se vai desmistificando

a visão centralizadora do livro.

Este novo olhar é estimulado por um mercado editorial que torna o antigo livro

um dentre vários veículos de leitura e, neste sentido, torna-se necessário que se acerque

de aspectos outros, como observa Fischer (2006, p.288) ao comentar sobre circulação e

a pequena lucratividade editorial:

[...] Além disso, uma vez que o livro, como fonte principal de

informações gerais, foi obrigado a dividir espaço com o rádio, a

televisão, e, agora com o computador pessoal, é necessário que ele se

atenha em outros ingredientes para que consiga assegurar sua função

na sociedade: a evasão proporcionada por romances de amor e de

aventuras; o apoio aos recursos educacionais, referências e estudos; ou

a inspiração dos clássicos.

A literatura em quadrinhos talvez seja um novo ingrediente que possivelmente

venha atender às demandas do leitor na era imagética, tecnológica e intercultural. Fica

evidente que na quadrinização literária há o surgimento de um novo texto hibrido e

difundido em livros e revistas que talvez venha a facilitar a acessibilidade dos leitores,

independente da condição social e da erudição de que sejam eles dotados. Tem-se como

acréscimo uma leitura de maior poder de atração que socializa com grupos populares

produtos antes restritos à elite letrada. Este objeto cultural reflete condições de

entendimento de mundo e de vida, além de desfazer os guetos que a diferença social, de

certa forma, promove.

Tentar compreender os trâmites do processo de tradução intersemiótica do texto

machadiano, produto da cultura de elite, para os quadrinhos, elemento da cultura de

massa, e descrever como os leitores contemporâneos reagem a esta nova opção de

interação cultural são metas que norteiam esta pesquisa. As reflexões aqui construídas

não se pretendem únicas, mas buscam fomentar novos diálogos e futuros

questionamentos. Afinal o homem é este constante ir e vir dentro da História.

Page 23: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

23

1- O TRÂNSITO DOS OBJETOS CULTURAIS: A LITERATURA EM

QUADRINHOS

1.1 O trânsito dos objetos culturais

No mundo globalizado, ganham cada vez mais espaço as redes informacionais

cujas ações interferem profundamente nas percepções e vivências do presente, passado e

futuro e influenciam também nas elaborações inusitadas do imaginário. É lógico que

todas estas transformações vão repercutir socialmente e possibilitarão o surgimento de

novos objetos culturais.

Como se sabe, o conceito de cultura abrange desde as produções básicas para a

sobrevivência humana, como as formas de interferência no mundo natural e biológico,

até as densas elaborações do mundo simbólico. Neste sentido, situam-se como

manifestações culturais, entre outras, a arte, a língua, a ciência, a religião. As próprias

discussões sobre tal conceito tornam-se produto de investigações e da própria trajetória

da cultura no mundo ocidental.

Segundo Eneida Leal Cunha (2009), entre os diversos debates sobre cultura se

destacam, nos dois últimos séculos, três concepções: a iluminista do século XVIII,

segundo a qual cultura equivale à noção de progresso, sobretudo o intelectual e o

material, responsáveis, de certa maneira, pelo bem-estar social. Neste sentido, ganha

vulto a questão urbana, uma vez que viver na cidade representa a interação com a

excelência e com a elegância das boas maneiras, qualidades que se contrapõem à vida

anterior nas pequenas comunidades, cujo acesso às benesses e aos padrões do mundo

moderno era limitado ou inexistente. Opondo-se aos valores metropolitanos, desenha-se

a barbárie, condição em que se encontram aqueles não integrados neste universo de

civilização e que, por isso mesmo, careciam, urgentemente, de um trabalho de

convencimento voltado para o propósito de adesão aos paradigmas europeus – o mundo

moderno e progressista. A força desses princípios com os quais o conceito de cultura foi

lido chega à contemporaneidade, momento em que não raramente o indivíduo, não

incluso neste universo de crenças, valores e modelos, costuma ser rotulado como

inculto.

Outro sentido de cultura se articula de maneira muito próxima com a noção de

Estado Nacional, proposta tão característica do século XIX e que se apresenta como

Page 24: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

24

uma das grandes conquistas da modernidade. O Estado Nacional, prerrogativa de

evolução com que sonham os povos colonizados, se empenha com a construção ou com

o resgate da própria singularização em termos do engrandecimento dos costumes,

produções populares, crenças, passado mítico e histórico e, em especial, da língua –

elementos integrantes da identidade nacional e cultural de um povo e de um país,

segundo os modernos princípios nacionalistas do século XIX.

A terceira significação de cultura se apresenta, conforme Eneida Cunha, como a

mais restritiva. Interligada intimamente com as questões estéticas e da arte, esta acepção

contempla um número reduzido de indivíduos que detêm e dominam as produções

artísticas, condição que atribuiria àquele grupo uma suposta superioridade (século XIX).

Eneida Cunha conclui afirmando que, a despeito da diversidade e da mobilidade

conceitual, essas três concepções ainda ressoam na virada do século XX para o XXI e

não poucas vezes se constata o emprego da noção de cultura com este sentido tão

delimitador.

A partir do olhar que vê as concepções excludentes e conservadoras como

inadequadas, emerge a crítica cultural indiciadora de novos caminhos. A discussão desta

crítica se volta para uma tentativa de leitura que não priorize apenas um aspecto, isto é,

busca-se, sobretudo, o afastamento de dicotomias e polarizações, como a crença na

existência da superioridade de um povo ou classe social ou, ao contrário, a

desvalorização do homem tido como não letrado – o homem inculto.

É nas rasuras da discriminação e marginalização que ocorrem os

encaminhamentos das duas vertentes da crítica cultural, conforme explicitação de

Eneida Cunha (2009): a primeira, na legitimação das vozes das minorias silenciadas (o

negro, o índio, a mulher, o homossexual) e suas representações culturais; e a segunda,

na desconstrução do confinamento do valor cultural atribuído apenas à esfera letrada ou

erudita e na valorização das produções artísticas populares e das massas.

Conforme Heloísa Buarque de Holanda (2004), historicamente, os estudos

culturais credenciaram-se como uma área do conhecimento pensada em função do

contexto histórico, social e cultural. Neste campo, a produção de saber migra de uma

disciplina para outra, alterando prioridades e determinando discursos e práticas

estruturalmente diversificadas. É necessário subentender-se a ideia de deslocamento –

migração na trajetória das ideias e teorias para além do geográfico. Valendo-se do

pensamento de Bakhtin, assim se expressa a pesquisadora:

Page 25: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

25

Bakhtin chama ainda a atenção para a flutuação histórica das

fronteiras das áreas de produção cultural e observa que sua vida mais

intensa e produtiva sempre ocorre nas fronteiras de suas áreas

individuais e não nos espaços onde estas áreas tornam-se encerradas

em sua própria especificidade. (HOLANDA, 2004, p.33).

Assim, poderia afirmar-se que a motivação dos estudos culturais residiria

também na ideia de deslocamento das fronteiras do saber, proposta esta relacionada com

certa neutralização do conceito de centro (elite), ideia tida, reconhecida e credenciada

socialmente como superior. O afastamento seguiria em direção ao universo das

produções e representações construídas pelas e para as margens [grifos nossos] -

grupos subalternos.

Heloísa Buarque de Holanda observa que a própria gênese dos estudos culturais

nos encaminhava para a abertura, para a busca de novas experiências e sensibilidades

antes ocultadas. Na Inglaterra1, as transformações da classe operária do pós-guerra

reclamaram novos sujeitos políticos construídos fora do modelo sociológico tradicional

de classe, pautados na historicidade e experiências próprias.

Nos Estados Unidos, o campo das Letras (especialmente a Literatura) foi o

espaço no qual as discussões e as disputas em torno dos direitos das minorias (mulher e

negro) e dos imigrantes ganharam foco. Desfraldando a bandeira do multiculturalismo,

as discussões encontraram afluência na preocupação com a análise das diversas

expressões culturais, inclusive as que não se balizavam pelas estratificações e

canonizações.

Na América Latina, a reinserção democrática dos países sufocados cultural e

economicamente pela condição histórica da colonização e a dicção dos regimes

ditatoriais tornaram o momento propício para a chegada dos estudos culturais. Abrem-

se espaços para as pesquisas emergenciais na área da sociologia e antropologia, com

foco na construção de novas políticas culturais, socialmente mais justas, realizadas por

teóricos2 que primaram pela análise dos objetos culturais da esfera da comunicação de

1 As obras inglesas inaugurais dos Estudos Culturais foram Usos da Leitura, de Hoggart, com as reflexões

sobre a vida de um cidadão antes e depois da alfabetização; Cultura e Sociedade, de Raymond Willians,

texto que traz o debate sobre a cultura dentro da estrutura social tradicional. Ambas pautam-se na

construção de um novo sujeito social. 2 Destacam-se os trabalhos de Néstor García Canclini, nas discussões das culturas híbridas e da

socialização da arte; de Jesús Martín-Barbero, com foco nos debates entre cultura e comunicação; e

Beatriz Sarlo, com as pesquisas acerca da recepção dos produtos culturais televisivos.

Page 26: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

26

massa e mídia, em especial a televisão, como observa Heloísa Buarque de Holanda

(2004.).

É nesta condição de revisão do que se entende por cultura e das representações e

produtos culturais antes contestados pela elite social e econômica, que se constata o

crescimento da percepção e experimentação de novas sensibilidades. Nesse contexto,

abre-se espaço para o desenvolvimento das pesquisas relacionadas com objetos culturais

híbridos, produtos de uma sociedade que se estrutura para além das noções de nacional

e internacional, intentando chegar sempre ao transnacional, o que representa o

alargamento das próprias fronteiras. É o que constata Jesús Martín-Barbero (2004, p.

258):

Há nas transformações da sensibilidade que emergem na experiência

comunicacional um fermento de mudanças no próprio saber, o

reconhecimento de que por aí passam questões que atravessam por

inteiro o desordenamento da vida urbana, o desajuste entre

comportamento e crenças, a confusão entre realidade e simulacro. As

ciências sociais não podem ignorar então que os novos modos de

simbolização e ritualização do laço social se acham a cada dia mais

entrelaçados às redes comunicacionais e aos fluxos informacionais. O

despedaçar-se das fronteiras espaciais e temporais que eles introduzem

no campo cultural deslocaliza os saberes e deslegitima suas fronteiras

entre razão e imaginação, saber e informação, ciência e arte. Isso

modifica tanto o estatuto epistemológico como o institucional das

condições de saber e das figuras de razão, que constituem os traços de

mudança de época, em sua conexão com as novas formas de sentir e

as novas figuras da sociedade.

Amplia-se a visibilidade de objetos culturais, antes legada apenas aos produtos

da elite, como a música clássica, escultura, a pintura, a literatura, para os produtos não

seletos e não canônicos, como música popular, artesanato, grafite, quadrinhos. Com

essa transformação, fomenta-se, em nome da comunicabilidade e da acessibilidade, a

construção de diálogos entre objetos culturais tidos como de elite com os considerados

de massa (cinema, quadrinhos, música popular), o que fará surgir novas possibilidades

de comunicação, como a literatura em quadrinhos.

Martín-Barbero (2004) enfatiza a importância de se estar cauteloso para não se

permitir que a função do componente tecnológico restrinja-se à questão mercadológica,

o que faria com que a esfera cultural fosse reduzida a interesses econômicos. Torna-se

necessária a percepção de que a cultura está além deste patamar. Neste sentido, a

própria concepção de cultura seria ressignificada; ela se tornaria mais sólida, mais

Page 27: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

27

espessa, cabendo-lhe o papel de expressar as novas sensibilidades e práticas do mundo

tecnológico que (devem evidenciar) evidenciam não apenas a excelência das máquinas.

Em observância a tais princípios, o sentido de cultura passaria a englobar novas

acepções, novas configurações. É o próprio Martín-Barbero (2004) quem afirma:

[é preciso contemplar-se] o novo lugar da cultura na sociedade

quando a mediação tecnológica deixa de ser puramente instrumental

para espessar-se, densificar-se e se converter em estrutural, pois a

tecnologia remete hoje não a novas máquinas ou aparelhos, mas a

novos modelos de percepção e de linguagem, a novas sensibilidades e

escritas.

Em especial, chama-nos a atenção o modo como se renova a experiência do

leitor diante da literatura. A arte da palavra escrita, tradicionalmente expressa no suporte

livro, passa a circular em outros instrumentos. Neste sentido, o texto literário se integra

com outros meios de difusão e, com a utilização da imagem, ampliam-se as

possibilidades da linguagem, que agora dispõe de recursos de comunicação e de

expressão, além do livro e da palavra. O acesso ao texto de Machado de Assis, Luiz de

Camões, Eça de Queiroz, José de Alencar, Clarice Lispector, entre outros, torna-se

variado por intermédio da atuação de outros mecanismos e suportes técnicos, como o

livro digital, a televisão, o cinema, os quadrinhos. Ganham espaço novos elementos

culturais, produto das transformações socioeconômicas e culturais do último século,

reconhecido como tempo-espaço da modernidade e da globalização.

Nosso interesse repousa na abordagem destas tendências contemporâneas,

identificadas com a revisão dos objetos culturais resultantes da desterritorialização do

texto escrito culto. Nesta direção, a atenção se volta para as metamorfoses dos textos

literários em diálogo com produtos da cultura de massa, em seus variados suportes,

priorizando-se aqui as histórias em quadrinhos. Ganha terreno, o resgate da função da

imagem na comunicação, elemento presente e determinante desde a era das cavernas. A

imagem deixa de merecer certa credibilidade a partir da instauração do texto escrito,

potencializado e valorizado na era de Gutemberg entre as elites cultas. A partir da

segunda metade do século XX, com o crescimento da cultura de massa, o texto

imagético quadrinístico passa a ser observado com menos restrições pelo olhar elitista.

A literatura em quadrinhos configura-se, desta maneira, como objeto cultural

híbrido, uma vez que carrega em si a Literatura, arte sacralizada da palavra em sua

Page 28: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

28

articulação polissêmica, e os quadrinhos, tidos como produto da cultura de massa que

busca sedimentação como objeto cultural artístico.

1.2- História em quadrinhos: da gênese à condição de arte sequencial e produto da

cultura de massa

Afinal, como surgiram no século XIX os quadrinhos, produto

predominantemente imagético, para uns, arte sequencial, para outros, produto da cultura

de massa? Como esse objeto cultural se configura?

A dinâmica de vida acelerada e condicionada pela produção em série, instaurada

a partir da Revolução Industrial e sedimentada pelo progresso tecnológico, faz com que

o homem moderno se depare com a circulação de uma grande diversidade de produtos

culturais. São objetos da cultura que não se restringem aos elaborados por e para [

grifos nossos] a elite socioeconômica, como acontecia antes do século XX, e que

ecoaram com exclusividade e relevância por muitos anos deste século. Refletindo sobre

cultura, aristocracia e burguesia, Feijó (2007, p.10) observa:

Lembre-se de que, até o século passado [séc. XIX], a ideia de cultura

era quase sempre associada a aristocratas e burgueses ricos e bem

educados. Normalmente, os artistas e intelectuais eram patrocinados

por parentes e amigos. Com sorte, arranjavam algum rei ou nobre para

ser seu mecenas.

É a partir do período de consolidação do capitalismo que as massas surgem

como protagonistas na vida associada3. Os elementos culturais passam a ser pensados

em nome dessa coletividade. Estas produções deveriam atender os trabalhadores

alijados das experiências de fruição dos objetos culturais, até então elaborados sob

medida para as aspirações e desejos das elites.

Eco (2008, p.24), por sua vez, aponta um descompasso na concepção dos objetos

culturais elaboradas por e para as massas visto que, “[...] paradoxalmente, o seu modo

de divertir-se, de pensar, de imaginar, não nasce de baixo: através das comunicações de

massa, ele [o produto de consumo] lhes [às classes populares] é proposto sob a forma de

mensagens formuladas segundo a classe hegemônica”. Temos, então, um proletariado

3 Conforme Feijó, a vida associada refere-se ao surgimento do proletariado em suas manifestações de vida

social: o trabalho, o lazer e a família na dinâmica da vida urbana.

Page 29: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

29

que passa a consumir modelos culturais burgueses, mantendo-os em uma forma de

expressão autônoma. É neste contexto que aparecem novos produtos da cultura que, a

princípio, não herdam o status de arte devido à procedência não elitista. É o que ocorre

de início com a fotografia, a música popular, o cinema e os quadrinhos. Os quadrinhos,

objeto de atenção aqui, despontam com todo vigor neste ambiente social. Sobre esse

momento, afirma Feijó (2007, p.10):

[...] surgia uma nova sociedade, altamente urbana e industrial, com

muitos milhões de seres humanos anônimos circulando, trabalhando,

consumindo. Esta sociedade tão grande, formada por tantas pessoas,

tão heterogênea e complexa acabou gerando códigos e regras próprias.

Dentre essas regras, uma nova para os produtos de cultura chamada

mercado: muitos artistas e profissionais passariam a criar para vender

entretenimento para o grande público.

Os quadrinhos assemelham-se aos folhetins romanescos do século XIX, por

terem o jornal e a revista como veículos de disseminação. Os enredos folhetinescos

influenciaram, ou melhor, constituíram as matrizes das radionovelas e telenovelas do

século XX, tão apreciadas e de tão elevados índices de audiência. As narrativas de

folhetim eram produzidas em capítulos e publicadas em fragmentos nos jornais e

revistas da época. Posteriormente, tais obras eram editadas em livros, atentando-se para

o fato de que o sucesso dos romances era a garantia da comercialização em grande

escala dos jornais e revistas. Como já foi dito, era nesses veículos que os capítulos eram

publicados, semanal ou mensalmente, e aguardados com indisfarçável sofreguidão pelos

ansiosos leitores.

Os Três Mosqueteiros e O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas, no

continente europeu; A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, alguns romances de

Machado de Assis e O Ateneu, de Raul Pompéia são exemplos de narrativas de folhetim

que, no Brasil, passaram por aquele processo de divulgação. Ocorre que os efeitos são

díspares: na Europa, tais procedimentos de circulação eram rechaçados pelos críticos

que priorizavam a editoração em livros, no Brasil, a ausência de editoras determinava a

profícua circulação do romance através dos jornais, único instrumento por meio do qual

as obras se tornavam acessíveis para o pequeno grupo de alfabetizados.

Mesmo os quadrinhos não sendo considerados como um produto cultural nobre

como a literatura clássica, sua origem e a dos romances guardam semelhanças:

Page 30: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

30

os quadrinhos aparecem em forma de tiras humorísticas ou de aventuras nos jornais que

circulavam no referido período. Tiveram como pioneiro o suíço Rodolph Topffer, que

produziu, ainda na primeira metade do século XIX, a literatura de estampas, numa

referência aos desenhos caricaturados. Na Alemanha, destacou-se Wilhelm Busch em

1865, com seus personagens Max e Moritz. No Brasil, o italiano naturalizado Ângelo

Agostini notabilizou-se, em 1859, com As aventuras de Nhô Quim. Na França, o

destaque é Georges Colomb, que em 1889, lança A Família Fernouillard.

Semelhantemente ao romance de folhetim, que, como já foi dito, se valia do

jornal e da revista como instrumentos de circulação, em 5 de maio de 1895, a história

em quadrinhos é publicada num jornal. Nasce também como gênero narrativo próprio

da cultura de massa, com a publicação de Yellow Kid, do americano Richard Outcaut. E

o sucesso tornou-se fato. É ainda Feijó (2007, p.19) quem relata:

Em páginas coloridas dominicais e depois em tiras diárias, as histórias

em quadrinhos se transformavam em fenômeno. Os grandes jornais

travavam uma disputa feroz para publicar as tiras mais populares, pois

elas ajudavam, e muito, a vender mais. Aos poucos o tema básico [...]

foi se ampliando. Das travessuras de crianças [...] evoluiu para

situações cômicas de famílias quase comuns. [...] A fórmula para fazer

sucesso foi inventar coisas absurdas e engraçadas, a partir de situações

típicas do cotidiano das famílias. A história começava e terminava na

mesma tira (ou página dominical). Prevalecia o desenho caricatural,

não havendo nenhum realismo estético [...].

Os quadrinhos não gozaram da aprovação da elite cultural por ser uma arte

sequencial, associada sempre à ideia de comunicação para um público inculto e, como

tal, privilegiava a linguagem iconográfica. A adoção do imagético acarreta, ainda hoje,

preconceitos nos leitores tradicionalistas que acreditam na superioridade da escrita em

detrimento de outros códigos de linguagem. Este pensamento elitista permeou os meios

intelectuais até o final do século XX, passando a ser rechaçado de modo mais veemente,

com o advento das tendências e ideias dos chamados Estudos Culturais.

Atualmente, além de serem defendidos como arte, os quadrinhos conquistam

espaço na escola, uma das instituições que tradicionalmente oficializam o saber, a arte e

a cultura. A princípio utilizados como material de ilustração das análises lingüísticas e

gramaticais nos manuais de língua portuguesa foram tratados, posteriormente, como

objeto de arte nas práticas reprodutoras da educação artística até serem estudados como

gênero textual em livros didáticos de redação.

Page 31: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

31

No âmbito da academia, surgem alguns esforços para colocar os quadrinhos no

patamar de objeto de estudo, num trânsito entre a interação com a comunicação de

massa e as reflexões que timidamente buscam colocá-los no universo da cultura e da

linguagem. Ao se observar essa tentativa, torna-se importante elencar as marcas e

aspectos da linguagem com a qual os quadrinhos passariam a se qualificar como objeto

de cultura.

Paulo Ramos (2009) observa que, em sua constituição, os quadrinhos

apresentam-se como produto da cultura que dialoga com recursos inerentes a outros

resultados culturais. Valem-se da caricatura para a acentuação das formas; do desenho,

retira alguns predicados, que ajudam na caracterização da personagem; da fotografia,

observam como se realiza a retratação e a aproximação com o real; da pintura, exploram

o jogo com as cores, já que o cromatismo também pode ser utilizado na composição de

aspectos informacionais; do texto dramático, comungam com a base dialogal, elemento

importante na construção do enredo, sem se perder de vista que, assim como no texto

dramático, também aqui o narrador praticamente inexiste; do cinema tomam emprestada

a habilidade com o trabalho de angulações e perspectiva de cenas. Para o teórico, os

quadrinhos constituem uma forma de linguagem que há mais de um século ostenta

marcas próprias:

O ambiente quadrinístico já teria se “emancipado” e constituído [...]

possibilidades próprias de linguagem. [...] O espaço da ação é contido

no interior do quadrinho. O tempo da narrativa avança por meio da

comparação entre o quadrinho anterior e o seguinte ou condensado em

uma única cena. O personagem pode ser visualizado e o que ele fala é

lido em balões, que simulam o discurso direto. (RAMOS, 2009, p.18).

Moacy Cirne (2000, p.174) conceitua os quadrinhos destacando-lhes o corte –

espaço em branco entre cada quadro –, um dos elementos próprios da gramática desta

linguagem. Segundo esse teórico,

[...] as historietas em quadrinhos, com mais de um século de

existência, sempre se marcaram por uma textualidade gráfico-visual,

determinada por mecanismos narrativos impulsionados pelos cortes

que, como já vimos, são igualmente gráficos: cortes que, em última

instância, em sendo espaciais e/ou temporais, preenchem e alimentam

o imaginário da própria narrativa, aqui, nesta precisa articulação entre

o dito (as imagens) e o não-dito (as elipses provocadas pelos cortes),

se dá o lugar semiótico das “historietas seqüenciadas”.

Page 32: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

32

Ramos destaca a riqueza de possibilidades das variantes dessa linguagem, o que

leva os estudiosos a considerar os quadrinhos um hipergênero que agrega outros, cada

um com suas peculiaridades. Em suma, trata-se de um rótulo abrangente com que se

nomeiam os diversos subgêneros, resguardando-se, é lógico, as especificidades com que

cada um se apresenta, como a charge, o cartum, a tira cômica, a tira seriada, a tira

seriada cômica e as histórias em quadrinhos.

Existem, conforme Ramos, tendências de abordagens que preferem sistematizar

as histórias em quadrinhos por temáticas, tais como super-heróis, terror, infantil,

faroeste, ficção científica, humor, mangá, erótica, as extintas fotonovelas, o jornalismo

em quadrinhos e a literatura em quadrinhos (esta última, foco desta pesquisa).

Nota-se a complexidade tipológica e a diversidade que não está fixada. Podem

surgir novas possibilidades, por se tratar de um produto cultural. Também é fato a

identificação dos quadrinhos como gênero que recebe dos estudiosos pelo menos três

tratamentos teóricos. Há os que consideram os quadrinhos como um grande rótulo que

congrega diferentes possibilidades de gêneros; há os que englobam as produções de

gênero cômico como um rótulo maior denominado de humor gráfico ou caricatura

(charge, cartum caricatura e tiras); e os que aproximam parte dos gêneros às charges e

tiras da linguagem jornalística.

Ramos (2009, p.24), de forma bem didática, assim explica esta incidência

tipológica dos quadrinhos e aponta para a complexidade deste assunto, que carece de

estudos mais aprofundados:

A diversidade de gêneros, neste caso, está atrelada a uma série de

fatores, como a intenção do autor, a forma como a história é rotulada

pela editora que a publica, a maneira como a trama será recebida pelo

leitor, o nome com o qual o gênero foi popularizado e que o tornou

mais conhecido junto ao público.

A discussão aqui travada se alinha aos estudos que percebem os quadrinhos

como uma grande denominação, à qual se aglutinam diferentes possibilidades de texto,

entre eles a história em quadrinhos. Em última análise, são elaborações, ora defendidas

como arte, ora como mero produto de massa. Independentemente do tratamento teórico,

trata-se de um objeto cultural cuja recepção apresenta patamares históricos dignos de

nota também na academia.

Page 33: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

33

Como arte, os quadrinhos são uma forma de linguagem cuja textualidade se

materializa na associação entre imagem e palavra para o desvelamento de uma narrativa

e primam pela centralização no iconográfico. Ou seja, apesar da importância da palavra

e do discurso, a função tida como fundamental reside na manipulação da imagem, o que

permite ser o quadrinho rotulado também como arte.

Um dos defensores das histórias em quadrinhos como arte sequencial é Will

Eisner, quadrinista respeitado por construir peças em que se privilegiam a riqueza da

trama narrativa e as inovações gráficas dos trabalhos. Ele é o criador do personagem

mítico Espírito, da obra The Spirit, série de revistas cuja publicação inicial ocorreu em

março de 1947. O quadrinista elaborou um compêndio conhecido como Quadrinhos e

Arte Sequencial (1989). Neste trabalho, discorre sobre os postulados do produto

artístico, reflexões estas oriundas de cursos ministrados ao longo de vários anos na

School of Visual Arts de New York.

Eisner defende os quadrinhos como arte sequencial que requer um tratamento

mais sério e acadêmico. Tal comportamento deve advir tanto por parte dos profissionais

como da crítica, uma vez que “[...] desde a primeira aparição dos quadrinhos na

imprensa diária, na virada do século, essa forma popular de leitura encontrou um

público amplo e, em particular, passou a fazer parte da dieta literária inicial da maioria

dos jovens” (EISNER, 1999, p.7).

A arte sequencial é apresentada pelo pesquisador em questão como uma antiga

forma artística ou método de expressão com origem na pintura rupestre dos homens da

caverna na Pré-História. Esta arte está presente nos vasos egípcios e greco-romanos da

Antiguidade e nos afrescos das igrejas da Idade Média. Desenvolveu-se até chegar à

forma das tiras e histórias em quadrinhos nos jornais e revistas, a partir da disseminação

dos produtos da imprensa. É indubitável a conquista de uma posição de aceitabilidade

desta forma de arte na cultura popular do século XX.

Na academia, por motivo de preconceito em relação ao público-leitor,

circulação, uso e temática, tal arte tem sido ignorada como objeto de discussão. Apesar

de cada elemento constituinte desta forma artística (design, desenho, criação artística)

ter merecido consideração de forma isolada no campo da arte, esta combinação única

tem recebido um espaço ainda reduzido no meio artístico e literário.

Para serem considerados dignos de um exame intelectual sério, Eisner destaca

que os quadrinhos devem se ocupar de temas de maior importância, não se restringindo

Page 34: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

34

apenas a trabalhos artísticos de boa qualidade. Há de se observar, também, a

necessidade de atenção da crítica e do profissional dos quadrinhos para o novo

momento da história do homem. Trata-se de uma época na qual o rápido avanço da

tecnologia gráfica e o grande enfoque na comunicação visual apontam para a

emergência de se reconsiderar a arte sequencial como objeto de cultura em franco

crescimento, no que concerne a sua receptividade entre o leitor moderno.

Eisner ressalta que a história em quadrinhos não é uma arte de comunicação

visual simples. Segundo ele, este objeto

[...] lida com dois importantes dispositivos de comunicação, palavra e

imagens. Decerto trata-se de uma separação arbitrária. Mas parece

válida, já que no mundo moderno da comunicação esses dispositivos

são tratados separadamente. Na verdade, eles derivam de uma mesma

origem, e no emprego habilidoso de palavras e imagens encontra-se o

potencial expressivo do veículo. (p. 13)

O referido pesquisador também observa que a tradicional produção instintiva,

liderada pelos profissionais da arte sequencial, possibilita uma leitura depreciativa dos

quadrinhos por parte dos apreciadores da arte clássica. Estes artistas contentam-se

apenas em concentrar esforços para desenvolver a técnica artística e perceber o público

e as exigências do mercado. Por se tratar, porém, de uma arte de comunicação visual e

não de uma simples aplicação de arte, torna-se necessário o desvendamento dos

componentes complexos dos elementos até então considerados instantâneos, com que se

procederá à explicação dos parâmetros desta forma artística.

Na constituição das histórias em quadrinhos, Eisner destaca os elementos

complexos, Ramos focaliza a linguagem específica e Eco (2008) fixa a semântica

própria desta arte. Trata-se de elementos constituintes do texto quadrinístico, nos quais

o leitor deve centralizar sua atenção com vistas à melhor leitura e compreensão da

história.

Entre os diversos elementos, o quadrinho ou requadro, é o elemento

caracterizador desta arte sequencial. Cada quadrinho reúne o fragmento da história em

que estão presentes o local, o momento e as personagens envolvidas. É como se o

instante fosse congelado e ocorresse, então, a encapsulação do fragmento da ação do

quadrinho, possuidor de diversas formas de contorno. Estas molduras trazem

informações semânticas específicas de acordo com o contexto. A sucessão de requadros

Page 35: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

35

compõe uma forma de continuidade ideal, por meio de uma fatual descontinuidade.

Cabe ao leitor, com sua imaginação, soldar esses elementos, aparentemente disjungidos.

Assim, a leitura como continnum possibilitará a resolução de uma série de elementos

estáticos e tornará a história uma cadeia dinâmica.

Outro elemento importante é a expressão do tempo, decisiva para o sucesso da

narrativa visual. Para que a impressão de realidade se confirme, o tempo (ordenamento

e sequências de imagens) e o timming (cadência visualizada de uma ação em curto

espaço de tempo) tornam-se elementos ativos da criação.

Destaca-se também a primeira página da história em quadrinhos, que se

comporta como a introdução da história. Ela é o trampolim para a narrativa,

estabelecendo um quadro de referências do que transcorrerá no enredo.

Acresçam-se a postura do corpo e os gestos das personagens como elementos

desta linguagem que assumem papel preponderante, visto que a maneira como são

utilizados pode modificar e definir o significado que se pretende dar às palavras. Neste

sentido, Eisner (1999, p.100) observa:

Não se sabe muito sobre o local ou o modo de armazenamento no

cérebro dos incontáveis fragmentos de lembrança que se tornam

compreensíveis quando dispostos em certa combinação. Mas é óbvio

que, quando uma imagem é habilidosamente retratada ao ser

apresentada, ela consegue deflagrar uma lembrança que evoca o

reconhecimento e os efeitos colaterais sobre a emoção. Trata-se aqui,

obviamente, da memória comum da experiência.

De igual importância, a perspectiva funciona como mecanismo artístico com que,

de certa forma, se instaura a questão do ponto de vista, assumindo função primordial na

leitura. Neste sentido, torna-se possível encaminhar o leitor a propósitos que estejam de

acordo com o plano narrativo do autor.

O discurso nos quadrinhos é o elemento que instaura a enunciação do narrador e

em maior grau das personagens, tornando-se fio condutor da narrativa. Está relacionado

com a disposição do balão e da legenda. O balão é um recurso gráfico de representação

da fala ou pensamento, apresentado geralmente por um signo de contorno, que busca

recriar um solilóquio, um monólogo ou uma situação de diálogo. A legenda, por sua

vez, representa a voz do narrador onisciente ou narrador-personagem. Aparece

envolvida por um contorno, geralmente no canto superior do quadrinho, por anteceder a

voz da personagem. Pode acontecer a legenda-zero, ou seja, a que se apresenta

Page 36: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

36

desprovida da linha de contorno e também o recordatário, forma semelhante à legenda

usada nas tiras, a princípio utilizada como recurso de síntese da ação anterior, e que,

posteriormente, passou a indicar a simultaneidade de eventos.

O tipo de letra utilizado na composição das palavras assume uma expressividade

diferente. O formato da letra pode indicar a nacionalidade ou características da

personagem. Como afirma Eisner (1999, p.10), “[...] o letreiramento, tratado

“graficamente” e a serviço da história, funciona como a extensão da imagem. Neste

contexto, ele pode fornecer o clima emocional, uma ponte narrativa, ou a sugestão do

som”.

As estratégias de oralidade, por sua vez, são elementos que objetivam a simulação

da estrutura de uma conversação natural nas histórias em quadrinhos. Elas são efetivas

com o uso dos turnos conversacionais, dos assaltos de turno, dos recursos gráficos, da

presença de marcadores conversacionais, da representação da fala sem o uso de palavras

aceitas na ortografia da língua, das onomatopeias e de caracteres desconhecidos ou

signos icônicos como pregos, caveiras, estrelas para expressar termos de baixo calão,

por exemplo.

A cor nos quadrinhos, conforme propõe Ramos (2009, p.87), apresenta-se como

“[...] signos plásticos que contêm informação ora mais, ora menos relevante para

compreensão do texto narrativo, mas sempre com conteúdo informacional”.

Destacam-se também as metáforas visuais que são convenções gráficas – imagens

metafóricas – com que se expressa o estado psíquico dos personagens. Para Santos

(2009, p.112), elas ocorrem quando a imagem estabelece associação com um conceito

cuja explicitação se apresenta de modo diferente daquele apresentado pelo significado

previsível da expressão de base denotativa. Eco (2008, p.144) defende o ponto de vista

de que as metáforas visuais são instrumentos próprios do gênero, que se torna estatuto

iconológico, já canonizado.

Mesmo apresentando as formas de composição próprias acima pontuadas que as

qualificam como arte, as histórias em quadrinhos são, costumeiramente, colocadas em

circulação não como um fato estético de prestígio e de estrutura cada vez mais

elaborada. O texto quadrinístico é considerado muito mais como um modificador de

hábito, isto é, o quadrinho normalmente costuma ser visto, pejorativamente, apenas

Page 37: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

37

como produto da cultura de massa, produto menor, de menos valia, que não merece

crédito e atenção, especialmente no ambiente escolar.

Como todo produto da cultura de massa, o quadrinho também interfere nos

padrões relacionados com o seleto universo dos objetos que apresentam uma linguagem

cuja fruição e recepção seriam privilégio apenas de um grupo igualmente privilegiado.

Como produto de massa dirigido a um público heterogêneo, a história em quadrinhos,

na verdade, circula como cultura homogênea no sentido de que, feita para consumo,

mostra-se como produto atento à média de gosto do público-alvo. A adequação do

objeto cultural ao gosto do consumidor é vista pelos apreciadores puristas e

identificados com os critérios do cânone como arte de mau gosto. De forma intolerante,

é entendida como de mau gosto aquela arte produzida em obediência às predileções do

grande público e que desconsidera os paradigmas ditados pela cultura erudita.

Assim, os quadrinhos, como todo produto da cultura de massa, também são

rotulados como arte menor, comprometida principalmente com o mercado e resultante

dos propósitos da indústria cultural4 da qual emergem frutos que

[...] tendem a provocar emoções intensas e não mediatas: [...] ao invés

de simbolizarem uma emoção, de representá-la, provocam-na: ao

invés de a sugerirem, entregam-na já confeccionada [...] colocados

dentro de um circuito comercial, estão sujeitos à “lei da oferta e da

procura” [...] seguindo as leis de uma economia baseada no consumo e

sustentada pela ação persuasiva da publicidade, sugerem ao público o

que devem desejar. (ECO, 2008, p.70).

Para os apreciadores e consumidores dos quadrinhos, há nas histórias um objeto

cultural de massa que traz um acervo de informações e dados diversos acerca do mundo,

sem sugerir índices de discriminação próprios dos produtos dirigidos à elite. Além de

sensibilizar o homem contemporâneo, o texto quadrinístico torna o indivíduo mais

participante da vida social, visto que sua recepção, a princípio, não contempla apenas

um público restrito. Ao contrário, aquele texto assumiria aspectos democráticos, uma

4 Mecanismo criado pela sociedade capitalista que fabrica produtos adaptados ao consumo das “massas”,

os quais, geralmente, surgem como resultado do gosto destas massas que os consumem. Visa-se, antes de

tudo, ao mercado. Dentro dessa perspectiva, tudo o que é produzido pela indústria cultural é considerado

“mercadoria”, conceito aqui trazido tal como Marx o cunhou – unidade dotada de valor de uso e valor de

troca, destacando-se este último como mola-mestra do consumo (valor simbólico). (MACHADO, Rose

Marques, 2009. p.87).

Page 38: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

38

vez que a abrangência de sua recepção atenuaria ou neutralizaria o sentido de diferença

de classes.

As histórias em quadrinhos – objeto originalmente elaborado para a cultura de

massa – não aspiram ao lugar de uma suposta cultura superior identificada com a das

elites. Tal classe social seria a princípio o público-alvo ao qual se destinaria o texto

literário. Tradicionalmente tida como produto da cultura letrada, a literatura primaria

pela ostentação de uma linguagem verbal específica e dotada de certa singularidade,

cuja riqueza inesgotável se renovaria por meio do contato com cada leitor.

Convém observar que a linguagem literária não seria um código acessível e

disponível a qualquer leitor, pois seus componentes e significados nem sempre são

decifrados e interpretados com facilidade. Em oposição a esses aspectos, os quadrinhos

dispõem de melhores possibilidades de inserção no universo maior de leitores. Em

refutação a tal argumento, os críticos defensores da arte sacralizada ou canônica

afirmam que o largo consumo promovido por tal acesso gera certo embotamento das

capacidades receptivas do consumidor, em razão de ser a cultura de massa portadora de

uma linguagem extremamente simplificada.

Não se perca de vista que, desde o final do século XIX, algumas posições vão-se

fazendo notar no que concerne à abertura e à democratização da obra de arte, isto é,

desenvolvem-se, agora, mecanismos identificados com propostas de disponibilização

das representações artísticas também ao grande público. Assim as novas relações

econômicas instauram sentidos, propostas, objetivos, abrangências inusitados e

revolucionários também no campo da arte.

Neste sentido, Walter Benjamin (1994, p.166) aponta para as tendências

evolutivas da arte já assinaladas nas condições produtivas do capitalismo. Ele

desenvolve discussões acerca da reprodutividade técnica, atividade intensificada pela

indústria cultural – mecanismo próprio deste sistema econômico – e assinala que “[...]

em sua essência, a obra de arte sempre foi reprodutível. O que os homens faziam

sempre podia ser imitado por outros homens”.

O referido filósofo situa a reprodutividade técnica como um acontecimento

natural e que gera exposições não costumeiras da arte, colocando em cheque o que,

habitual e tradicionalmente, chama-se de autenticidade e aura. A reprodução artística

rompe e desfaz sentidos identificados com “[...] o aqui e o agora do original [que]

constitui o conteúdo da autenticidade [da obra, da qual brotaria] [...] uma tradição que

Page 39: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

39

identifica [o produto artístico] [...] até os nossos dias, como sendo aquele objeto, sempre

igual e idêntico a si mesmo”, destaca o teórico (1994, p.167). Assim, o objeto

reproduzido torna-se outro objeto, normalmente visto de modo pejorativo e como de

menos valia artística.

É com base nessa perspectiva depreciativa que sempre se defendeu a aura do

objeto de arte como um elemento próprio de sua essência, inerente a sua estrutura e que

o sacraliza ante outras produções. A aura é defendida de modo abstrato como “[...] uma

figura singular, composta por elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma

coisa distante, por mais perto que esteja” (BENJAMIN, 1994, p.167). Conforme Walter

Benjamin (1994, p.168), a reprodutividade técnica passa a gerar a quebra da aura do

objeto de arte por aproximá-lo das massas, como ele explicita:

[...] o que se atrofia na era da reprodutibilidade técnica da obra de arte

é a sua aura. Esse processo é sintomático, e sua significação vai muito

além da esfera da arte. Generalizando, podemos dizer que a técnica da

reprodução destaca do domínio da tradição o objeto reproduzido

[grifos do autor]. Na medida em que ela multiplica a reprodução,

substitui a existência única da obra por uma existência serial. E, na

medida em que essa técnica permite à reprodução vir ao encontro do

espectador, em todas as situações, ela atualiza o objeto reproduzido.

Atualmente, no rastro das discussões de Benjamim, difunde-se uma nova visão

da cultura de massa e da indústria cultural: na sociedade globalizada, o grande alcance

dos produtos centrados na imagem e no audiovisual provoca uma ressignificação do

consumo e da própria sociedade que o promove. Este processo não se centra na visão da

produção desenfreada, que disponibiliza bens culturais desencadeadores da alienação da

massa. Cada consumidor-receptor, em sua subjetividade, ressignifica com a própria

experiência os bens disponíveis ao consumo. Neste sentido, desponta uma nova visão de

indústria cultural que possibilita ao receptor o status de sujeito e não de mero objeto

passivo na engrenagem do sistema capitalista. Desenha-se, desse modo, a ideia de

economia criativa.

Há na economia criativa o desvelamento de um novo olhar sobre os produtos da

indústria cultural, a qual redireciona a atenção do consumidor para detalhes que captam

a dinâmica da vida social. Numa leitura distanciada da condição de alienado, o

indivíduo é visto antes de tudo como ser que, além de pensar e agir, experimenta

Page 40: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

40

sentimentos, ressignifica e transforma os bens culturais. Neste sentido, há o afastamento

da condição de consumidor passivo e acrítico que age impensada e aleatoriamente.

Sobre essa nova postura, assim se expressa Rosi Marques Machado (2009, p. 91):

[...] pode-se perceber o significado, ou re-significado, do próprio

consumo dos bens culturais que esse tipo de abordagem permite, ao

voltar-se para os “detalhes” e com isso captar a dinâmica da vida

social, onde os indivíduos não só pensam e agem de acordo com a

razão instrumental, mas também conferem significados distintos aos

mais diversos elementos que compõem a sua vida e que lhe dão um

sentido próprio. Se os bens materiais são também importantes nas

interações humanas para além de sua dimensão econômica,

certamente, ao contrário do que afirmaram os frankfurtianos, os bens

culturais não são exclusivamente mercadorias, sem qualquer valor

cultural. Afinal, eles são o “alimento subjetivo” dos indivíduos,

servindo-lhes de referência para constituírem suas identidades, para se

reconhecerem ou se estranharem neles, por isso mesmo a escolha

sobre aquilo que vai se “alimentar” não se alimenta por uma razão

instrumental somente. Assim como também esses bens culturais

“alimentam” as relações inter-individuais, incluindo a “forma lúdica

de socialização”, a sociabilidade.

Cirne (2000, p.23) é contundente ao afirmar que, na contemporaneidade, a falta

de informação é responsável pela leitura enviesada dos produtos da indústria cultural.

Observemos sua argumentação:

A desinformação criará falsas leituras, falsos questionamentos, falsas

perspectivas. Aliás, deixemos claro: a desinformação, seja em relação

aos bens estéticos da indústria cultural, seja em relação aos demais

discursos artísticos e literários, servirá apenas para gerar preconceito

e/ou desvios ideológicos. Dizer que a indústria cultural provoca

“atrofia da imaginação”, como fizeram Horkheimer e Adorno, é

simplesmente ignorar o que ela produziu de mais significativo em

nosso século.

Segundo este pesquisador, a percepção diferenciada para produtos da indústria

cultural dependerá da forma de olhar. Ela implica conhecimento, inventa novos modos

cada vez melhores de ver determinados discursos e projetos artísticos, reinventa a

leitura e repensa o próprio viver. Nas histórias em quadrinhos, constata-se não a

alienação e, sim, o desafio ao leitor, que conforme as argumentações de Cirne (2000,

p.25) exercitará habilidades específicas de leitura:

Page 41: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

41

[...] que se dá, ao mesmo tempo, de forma múltipla e simultânea, que

constrói sua temporariedade específica no interior da narrativa que, se

de um lado, é a narrativa proposta pelo autor, do outro é a narrativa

mentalmente trabalhada pelos leitores.

Dessa forma, visualizamos as histórias em quadrinhos como um produto cultural

perpassado por duas perspectivas de recepção. A primeira vê o quadrinho como arte que

se destaca por ostentar uma linguagem rica e específica, conectada à comunidade

audiovisual das últimas décadas. A segunda visualiza o quadrinho como produto de

massa caracterizado pela significativa acessibilidade e pelas possibilidades de

ressignificação que estabelece, mas tradicionalmente visto como universo pleno de

carga pejorativa de que resulta o embotamento e depauperação dos estilemas 5.

Preconceitos à parte, esta arte sequencial/produto da cultura de massa deve ser

tomada no sentido proclamado por Alain Rey, para quem ela seria um “[...] fragmento

fértil de uma história do desejo social [...] que renova os caminhos do olhar, reinventa a

leitura, modifica a linguagem” (apud CIRNE, 2000, p.24). Neste patamar encontra-se a

modalidade dos quadrinhos que dialoga com a literatura e passa a ser denominada

quadrinizações literárias por uns e literatura em quadrinhos para outros.

1.3- A literatura em quadrinhos como tradução

Como todo objeto da cultura, a literatura em quadrinhos, perpassada por

linguagens, estabelece, por sua natureza sígnica, processos de diálogo e por esta

dimensão, requer um olhar mais crítico em relação ao processo que a instaura: a

transmutação entre o literário e o quadrinho. Aqui este processo recebe denominações

específicas de tradução e adaptação, que em si podem ser tomadas como sinônimas.

A tradução,processo comumente entendido como transformar uma língua em

outra para efetivar entendimentos entre culturas, sempre foi tomada como o transitar de

um código verbal para outro também verbal, utilizados para promover entendimento

entre comunidades cultural e linguisticamente distintas. Entre os diversos estudos

referentes à tradução, destaca-se o trabalho de Roman Jakobson que amplia a percepção

desta atividade em três possibilidades de realização: a intralingual como interpretação

5Segundo Eco (Apocalípticos e Integrados. São Paulo: Perspectiva, 2008), trata-se dos elementos de

caráter unitário que se identificam na obra enquanto estrutura e apresentam características que os

reassociam aos outros estilemas e estrutura original.

Page 42: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

42

dos signos verbais por outros também verbais da mesma língua; a interlingual,

interpretação de signos verbais de uma língua para outra distinta; e a intersemiótica,

interpretação dos signos verbais através de signos não verbais, ou seja, a transposição

“de um sistema de signos para outro, por exemplo, da arte verbal para a dança, o

cinema, a pintura” (apud PLAZA, Júlio.2008, p.26)

Desta forma, pode-se situar literatura em quadrinhos, ou quadrinização literária,

como um processo de tradução intersemiótica, no qual o signo verbal é transmutado

para o signo não-verbal, num processo de transposição criativa. Apesar de aparentar

erroneamente um simples processo de “cópia” do literário por meios de ilustrações, faz-

se necessário tecer algumas considerações que comprovarão o intrincado processo de

criação signíca que se dá neste objeto ainda muito mal compreendido.

Quatro pontos devem ser norteadores: o entendimento de signo icônico, a

relação entre signos estéticos distintos neste tipo de tradução, a questão da fidelidade ao

texto literário e os motivos de tradução intersemiótica entre literatura e quadrinho.

Conforme Plaza (2008), por ícone entende-se o signo que opera pela

semelhança entre suas qualidades, seu objeto e seu significado. Ele potencializa-se

porque propicia sentimentos (percepções subjetivas) e não a leitura objetiva própria da

remessa de comunicação fora dele. Tais signos são materializados em formas primárias

nas imagens, nas relações análogas dos diagramas e no paralelismo das metáforas,

diferente do índice, que opera na proximidade estabelecida com o objeto real

instaurando comunicação direta e distinta do símbolo, que se configura pela

proximidade instituída entre material e significado, e relacionando-se com o objeto real

pela convenção. Contudo, todo signo difere da coisa significada, pois não há identidade

nem função representativa. A função representativa se dá entre signo e pensamento. Os

três signos se interpenetram na semiose, processo este entendido como ação do signo de

transformar-se em outro signo numa cadeia ininterrupta com meta de estabelecimento da

comunicação. Na plenitude tricotômica dos processos de semiose ocorre porém, a

dominância do simbólico sobre o icônico e indicial.

Sendo o ícone o dominante no signo estético, observa-se que as qualidades estão

em seu objeto imediato (significado construído) e não se pretende à remessa fora dele,

como afirma Plaza: “O signo estético não quer comunicar algo que está fora dele, nem

“distrair-se de si” pela remessa a outro signo, mas colocar-se ele próprio como

objeto.”(p.25). Neste sentido, o signo estético que não tem aptidão para substituir outro

Page 43: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

43

objeto, constitui-se como objeto real no mundo e em sua totalidade é visto como

fenômeno que se erige na dominância do icônico visto que, conforme Mukarovski

(apud.Plaza, Julio.p. 23)

[A produção] da linguagem em função estética significa, antes de mais

nada, uma reflexão sobre as suas próprias qualidades. É no âmago

destas qualidades que cria a diferença entre signo autônomo, auto-

referente e a linguagem funcional de uso comunicativo.

Neste patamar encontram-se as artes como a literatura, que por meio da

ambiguidade poética concede um tom de imprecisão à mensagem criando a tendência

para a auto-verberação. E daí surge a necessidade de recriá-la pela tradução poética.

Na tradução poética o que se pretende é a produção dos efeitos do texto-base,

utilizando, para isso, diferentes meios. É o que ocorre nas quadrinizações literárias: um

processo de tradução do símbolo estético (literatura) por meio de outro símbolo

igualmente estético-icônico (os quadrinhos), ao que Paz denomina “transmutação”,

também nominada de transcodificação criativa. Trata-se de um processo relacional,

promovido pelo trânsito de um código a outro, ambos estéticos e por conseqüência

icônicos, tendo como guia a criatividade. No produto final – a literatura em quadrinhos

– o verbal passa a ceder espaço à imagem. Procede-se, então, a ampliação dos efeitos do

texto literário na literatura em quadrinhos, visto que ela se torna mais compreendida

pela imagem.

Por conseguinte, segundo Plaza (2008, p.31-32), na tradução a relação entre

signos estéticos distintos se dá pela semelhança entre suas qualidades posto que:

[...] o signo estético, quando é traduzido por outro signo estético,

mantém com este uma conexão por similaridade e contigüidade por

referência. A tradução mantém uma relação íntima com seu original,

ao qual deve a sua existência, mas é nela que “a vida do original

alcança sua expressão póstuma mais vasta e sempre renovada”. A

tradução modifica o original, porque esta também é produto de uma

leitura e, ambos, original e tradução, estariam impossibilitados de

chegarem a completar sua intenção que é precisamente a de atingir “a

língua pura”.

Assim, entre literatura e quadrinização temos a conexão pela similaridade e

continuidade pela referenciação, pois a leitura da primeira provoca sentimentos que

terão continuidade e amplificação na expressão renovada da segunda.

Page 44: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

44

É nesta conexão que se abrem as discussões sobre a fidelidade do texto traduzido

em relação ao texto-base. A criação na tradução intersemiótica caracteriza-se pelas

escolhas no sistema sígnico que determinam a dinâmica da criação e afastam a tradução

do traduzido. Mesmo relacionado ao texto-base, um novo texto é construído com outros

signos que tendem a propiciar novos objetos imediatos, novas estruturas que se

disvinculam do original. Assim,

[...] a tradução como signo enraizado no icônico tem no princípio da

similaridade a única responsabilidade de conexão. A cadeia signo-de-

signo, mesmo a nível icônico, comporta tempo, mudança e

transformação, onde a identidade está excluída de antemão,

comportando incompletude e diferença, intervalos que são

preenchidos pelo signo tradutor, pois o signo sugere, elide, aponta,

delimita, indica, mas sempre dentro do sistema de relações analógicas

de sua semiose.(PLAZA,2008,p.32).

A quadrinização literária tem com a literatura, seu texto-base, a relação de

similiridade, não de identidade. A representação icônica pela imagem não é igual ao

texto literário, pois o signo tradutor transforma o texto-base, fazendo surgir novas

possibilidades de complementação da incompletude do texto, via leitura do tradutor. A

fidelidade, neste caso, é “mais uma questão de ideologia, porque o signo não pode ser

“fiel” ou “infiel” ao objeto”, visto que ambos são em si, signicamente, diferentes. A

tradução é um substitutivo que aponta para o texto-base. A maior ou menor

proximidade da tradução em relação ao texto-base dependerá do potencial de criação e

referenciação do tradutor, que propiciará o aumento ou diminuição da informação

estética, o que nos fornecerá o nível e a qualidade da operação tradutora.

A tradução literária não pode se fechar na questão diminuta e ilusória da não

existente igualdade entre o texto-base e o texto traduzido. A questão maior está na

compreensão do motivo de traduzir objetos estéticos de outra época. A tradução

intersemiótica pode ser tomada de forma conservadora, uma recuperação do passado

como nos moldes de um fetiche a ser mantido nostalgicamente. Ou de forma crítica,

como modo de propiciar melhor compreensão do presente pela percepção das ações do

passado. É o protocolo de leitura instaurado sobre a tradução que determinará a função

deste novo objeto da cultura.

A tradução intersemiótica estará colaborando com a manutenção da exclusão, da

superioridade de um objeto cultural sacralizado enquanto mantiver uma política de

conservação apenas da forma estética da elite que se propaga por signos favoráveis à

Page 45: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

45

democratização da arte letrada. Em contrapartida, se esta recuperação da história se der

pela aproximação de culturas antes distanciadas pelas linguagens distintas (aqui a verbal

da elite letrada e a icônica dos produtos quadrinísticos) e propiciar uma leitura crítica do

passado em confronto com o presente, isto torna o projeto poético da tradução também

político, no sentido de transformação de visão, de atuação e de possibilidades.

Neste sentido, torna-se crucial a discussão de Benjamin com relação à visão de

história como linguagem e linguagem como história, para compreender a tradução como

uma forma mais atenta de ler a história do homem. Nesta perspectiva, o passado é uma

constelação de possibilidades em potencial, não apagadas na escolha feita que se tornou

o presente. O passado pode ser recuperado na leitura crítica e iluminar outras

possibilidades, instaurando novos presentes.

E na literatura em quadrinho é possível este repensar o homem e suas

possibilidades históricas em meio à abertura de outras possíveis leituras

1.4- Emergência e diversidade da literatura em quadrinhos

A literatura, objeto da cultura letrada, a partir da segunda metade do século XX

passa a dispor no mercado de novas formas de visibilidade que vão ao encontro das

linguagens contemporâneas, no que diz respeito às adaptações/ressignificações de

produtos inicialmente destinados a um consumo massivo – novelas, minisséries, filmes

e histórias em quadrinhos. Tais ressignificações descentralizam a palavra escrita, antes

tomada como categoria superior integrante de mensagem e agora recuperada como

linguagem despojada, ampliada, identificada e articulada com os recursos da imagem e

do audiovisual.

A literatura em quadrinhos surge como objeto cultural que promove a

dessacralização da arte, dispondo, de certa forma, da neutralização da pecha de veículo

de alienação, como foram rotulados os produtos da cultura de massa pelos

frankfurtianos6. Ela é também entendida como objeto cultural híbrido cuja divulgação

pode se fundar na socialização da arte. Neste sentido, a socialização não deve ser

6 Estudiosos da Escola de Frankfurt, elaboradores da Teoria Crítica na qual Horkheimer e Adorno

analisam a cultura de massa e a indústria cultural como elaboradores de produtos culturais que reorientam

as massas, não permitindo evasão e impondo esquemas para um comportamento conformista, que

sustentam as metas do capitalismo ( MACHADO, 2009).

Page 46: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

46

vislumbrada apenas como a popularização do objeto, mas também como meio de

produção que encaminha a multiculturalidade e a interculturalidade, como observa

García Canclini (2008, p.XXVI-XXVII):

A hibridação, como processo de intersecção e transações, é o que

torna possível que a multiculturalidade evite o que tem de segregação

e se converta em interculturalidade. As políticas de hibridação

serviriam para trabalhar democraticamente com as diferenças [...]

A esta altura, há que dizer que o conceito de hibridação é útil em

algumas pesquisas para abranger conjuntamente contatos

interculturais que costumam receber nomes diferentes: as fusões

raciais ou étnicas denominadas mestiçagem, o sincretismo de crenças

e também outras misturas modernas entre o artesanal e o industrial, o

culto e o popular, o escrito e o visual nas mensagens midiáticas.

[grifos nossos].

Nem unicamente literatura, nem especificamente quadrinhos, mas como outro

objeto cultural, a literatura em quadrinhos reelabora a literatura já estabelecida na

tradição como clássica e de elite, dotando-a de uma linguagem nova – a dos quadrinhos

–, produto da cultura de massa, de natureza popular e urbana. As polarizações – de um

lado, a narrativa da palavra-arte para a elite letrada e, de outro, a narrativa da imagem

para as massas – transformam-se num entrelugar, isto é, numa intersecção das

possibilidades antes segregadas.

Para Martín-Barbero (2004), a trama comunicativa da revolução tecnológica,

marca do processo de globalização, acaba por introduzir um novo modo de relação entre

os processos simbólicos e as formas de produção e distribuição dos bens e serviços.

Apresentam-se intrincadas a produção e a comunicação, pois há uma conversão do

conhecimento em força produtiva direta. Neste sentido, a novidade seria a capacidade

tecnológica de reelaboração dos elementos simbólicos, afirma Martín-Barbero. Segundo

esta abordagem, novas sensibilidades são instauradas e visivelmente percebidas,

especialmente “[...] no entre-tempo dos jovens, cujas enormes dificuldades de conversar

com as outras gerações apontam para tudo o que na mudança geracional há de mutação

cultural” (MARTÍN-BARBERO, 2004, p.36). Esta dificuldade é bastante vivenciada na

relação do jovem com a literatura clássica, que representaria a geração não afeita às

inovações.

A literatura em quadrinhos surge nessa trama comunicativa a partir de 1930,

como um veículo que atende às novas sensibilidades, resgatando dois objetos culturais

Page 47: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

47

distanciados no espaço de produção e no de recepção cultural.

Há uma literatura tradicionalmente identificada com a elite e com o deleite dos

letrados na tradição da escrita. Em outra direção, despontam os quadrinhos, pensados

pelo mercado e adequados à circulação de textos icônicos. Quanto à recepção, a

literatura sacralizada circula predominantemente no espaço acadêmico e escolar. Os

quadrinhos eram vistos como vulgarizados, até por serem consumidos na rua, nas teias

do urbano.

A congruência dos dois objetos culturais na literatura em quadrinhos possibilita

um consumo mais intenso da produção literária, disponibilizada agora também em

quadrinizações. Tal modalidade encaminha propostas de leituras do texto sacralizado

numa perspectiva de contemporaneidade, o que vale dizer que esta forma de interação

com o texto torna-o menos distanciado no tempo. Neste sentido, o quadrinho se

apresenta como um dos mecanismos através do qual a interação com a literatura

referendada como de excelência continua ocupando espaços de recepção. O quadrinho

como veículo de preferência das camadas mais jovens contribui com tal acerto.

A trama comunicativa dos quadrinhos se processa através da transmutação de

linguagens, uma vez que eles não se resumem à simples passagem de um código para

outro, ou seja, apenas a transladação da palavra para a imagem. Faz-se presente, pois,

um sistema de mediações e ressignificações propiciadas pela e para a leitura.

De um lado, há a literatura, linguagem centrada em si mesma, potencializadora

das significações do verbal escrito e cuja percepção semântica nem sempre é assimilada

por todos. Em outra direção, vicejam os quadrinhos que na linguagem icônica se mostra

por inteiro, logo, imediatamente, aproximando-se do receptor. Nos quadrinhos, ambas

as características descritas e qualificadas se fazem presentes, uma colaborando para o

desvelamento da outra, ambas imbuídas do propósito de montagem da interpretação. Há

uma reelaboração em termos da transferência da linguagem escrita para o icônico de

que resulta um produto caracterizado como cultura de massa. Este texto híbrido

conserva os elementos originais e constituintes de cada um dos objetos culturais.

Este novo produto textual/cultural ambienta-se ricamente nas discussões com

que se envolvem a comunicação e a educação, uma vez que ele entrelaça dois espaços

de saberes antes distanciados pela ideia purista de separação entre cultura de elite/arte

(literatura) e cultura de massa (quadrinhos). O quadrinho parece apagar a ideia corrente

de cultura superior, cultura inferior e média, até porque a presença deste novo produto

Page 48: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

48

ultrapassa a noção de cultura de elite de certa forma relacionada com classe social

privilegiada. Por assim dizer, o quadrinho empreenderia o desfazimento de tal barreira,

possibilitando a própria circulação entre os leitores, numa identificação com princípios e

práticas deste momento também de globalização cultural.

Cirne (2000, p.177), pesquisador do tema, apresenta um posicionamento mais

cético quanto à literatura em quadrinhos. Para ele, tal produção não seria um texto

literário, haja vista que apresenta grafia, especificidade e ritmo próprios. A novidade

seriam as adaptações, para ele não merecedoras de tanto crédito, pois elas afastam os

quadrinhos de linguagem e objetivos que lhes são específicos, o que certamente

dificulta o diálogo com outras linguagens:

Há, decerto, uma primeira aproximação, a que diz respeito às

adaptações. Só que, grosso modo, tomadas historicamente, são

adaptações medíocres, se não pelas adaptações em si, pelo resultado

quadrinizante das mesmas. Não nos esqueçamos: são linguagens e

discursos substancialmente diferentes, com propostas e objetivos

díspares.

A dificuldade maior para a quadrinização da literatura, segundo Cirne, reside na

questão da transposição da poeticidade7 do texto literário para as imagens. Assim como

há o encantamento com a magia do verbal, os quadrinhos devem ser contemplados a

partir da riqueza gráfico-visual, advinda da aura literária. Transportar esta poeticidade

da palavra para a imagem, que se apresentaria dotada de certa temperatura gráfica, não

constitui uma habilidade do mundo quadrinístico.

Ressalvas à parte, é fato que um dos espaços em que este objeto cultural híbrido

circularia de modo bem adequado seria o da escola, lugar tradicionalmente visto como

palco da leitura literária. Neste sentido, na recente virada do século, a literatura em

quadrinhos ilustra bem os desafios da comunicação no campo da educação. Como

observa Martín-Barbero, a nova proposta de educação não só aponta para uma mudança

de antigos conteúdos, mas também sugere uma transformação na natureza do processo.

Vive-se um mundo de múltiplas demandas, que decorrem das tão enfatizadas questões

sociais e também das solicitações de natureza cultural.

7 Para o estudioso, a poeticidade não reside apenas no tecido textual dos poemas e contos; encontra-se em

filmes e quadrinhos. Aqui, o termo não se refere aos conceitos aristotélicos de poética, mas aos derivados

dos formalistas russos e do poema-processo com um caráter subjetivo-emocional. Existe mais como

leitura do que propriamente como informação. (CIRNE, 2000).

Page 49: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

49

Conforme Martín-Barbero, muitos são os descompassos que retardam a

aplicação desta nova visão cultural do processo de conhecimento na América Latina.

Como elementos típicos desta condição, ele destaca o não cumprimento da

universalização da escolaridade básica, a deteriorização da qualidade do ensino, que

produz o analfabetismo funcional, e a encarnação e o prolongamento do regime de

saber, que privilegiam o texto escrito e a leitura passiva.

Assim, o tradicional modelo da comunicação pedagógica balizada pelo texto

escrito ainda reina nas salas de aula. Mesmo sendo “[...] assediado pelos quatro cantos

[pelo audiovisual, este paradigma] não só segue vivo hoje como se reforça ao colocar-se

na defensiva, defasando-se aceleradamente dos processos de comunicação que hoje

dinamizam a sociedade” (MARTÍN-BARBERO, 2004, p.337). Esta posição encaminha

processos de resistência ao “descentramento cultural”, isto é, dificulta o afastamento ou

pelo menos a neutralização da ideia do livro como único instrumento de excelência. As

barreiras oriundas das dificuldades de aceitação das mudanças vão incidir nos modos de

utilização das linguagens visuais e audiovisuais, chegando-se até a negar suas

potencialidades textuais e intertextuais.

Neste descompasso, a literatura em quadrinhos – objeto cultural que privilegia

não apenas o texto escrito, mas também possibilita o diálogo deste com os saberes da

sociedade imagética – não encontra muito espaço no mundo escolar e acadêmico. A

maior parte dos tímidos estudos acerca deste objeto cultural circula muito mais em

textos na internet que nas pesquisas e publicações da academia, carecendo, portanto, de

aprofundamento.

Destacam-se neste campo alguns posicionamentos de estudiosos dos quadrinhos

da área da comunicação e quadrinistas que produzem quadrinizações literárias, como

Waldomiro Vergueiro e Paulo Ramos, professores da Escola de Arte da USP,

participantes do Núcleo de Pesquisa em Histórias em Quadrinhos, que sempre

apresentam textos na internet e blogs com observações acerca da literatura em

quadrinhos.

Em seu livro intitulado A literatura em quadrinhos (2009), Vergueiro situa esta

literatura em quadrinhos como uma antiga prática de transposição de importantes obras

da literatura para a linguagem gráfica seqüencial, cuja origem remontaria ao ano de

1941, a partir de um empreendimento do norte- americano Albert Kanter. O referido

empresário acreditava que os quadrinhos poderiam ter fins muito mais nobres que o

Page 50: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

50

entretenimento e, neste sentido, denomina-os de classic-comics. Posteriormente, as

quadrinizações tornam-se mais Cult e denomina a coleção de Classic Illustrated.

No Brasil, a quadrinização das obras literárias tem início em 1947 com O

Guarani, de José de Alencar, na série Clássicos Ilustrados da Editora Brasil-América.

Perdura nos anos 1950 com as traduções da literatura quadrinizada norte-americana e

ganha certa posição de relevo na década de 1960 com obras de Machado de Assis, Jorge

Amado, Joaquim Manuel de Macedo, José Lins do Rego, Gastão Cruls e Raul Pompéia,

nesta mesma editora. As duas obras abaixo são exemplos deste projeto:

Figura 1 : Ubirajara Figura 2 : A Moreninha

Clássicos Ilustrados: capa da Clássicos Ilustrados:capa da

primeira quadrinização, 1952. primeira quadrinização, 1952.

Na figura 1 temos a capa da primeira quadrinizada de Ubirajara, de José de

Alencar, da Edição Maravilhosa, nº 57, de André Le Blanc, datada de 1952. A

utilização do preto, branco e variações de cinza indicam o trabalho inicial na

quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção.

A retratação da personagem principal no espaço onde ocorrerão os fatos era o chamariz

para a leitura do texto. Na figura 2 destaca-se a adaptação de 1952 de A Moreninha que

destaca, já na capa, as principais personagens da trama urbana romântica em traços

leves e bens juvenis, típicas do público a que se destinava. Notemos a obra Ubirajara:

Figura 3 : Ubirajara Figura 4: Ubirajara

Capa 1 Capa 2

Page 51: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

51

Figura 5: Ubirajara Figura 6: Ubirajara

Editora Brasil-América, Pág.1 Editora Brasil-América, pág. 9

Nas figuras 3 e 4 temos a capa (1 e 2) da história Ubirajara ainda encontrada na

década de 70. Na capa 1, além de estampar título, autor e gênero textual (quadrinização

de romance), encontramos alguns requadros relacionados à história que funcionam

como um convite à leitura. Também na capa 2 outros requadros são dispostos,

antecedidos pelos títulos da coleção. Na parte superior inseriu-se a marca da editora

Brasil-América. Toda a disposição dos elementos funciona como propaganda da

coleção.

Na figura 5 destacamos a primeira página que apresenta a personagem-principal

(Ubirajara) no ambiente onde ocorre a história (a mata) em postura de busca (síntese da

temática da história que trata da busca da identidade do índio araguaia). Na figura 6 são

perceptíveis os traços bem delineados em cenas nas cores preto, branco e cinza, em

paisagens de mata sem enriquecimento de detalhes como se nota no terceiro requadro.

Observemos a quadrinização da obra A Moreninha, circulante na década de

1970, que traz ainda incipiente produção das adaptações literárias no Brasil:

Figura 7 : A Moreninha Figura 8: A Moreninha

Editora Brasil-América, Capa 1 Editora Brasil-América, Capa 2

Page 52: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

52

As capas 1 e 2 (figuras 7 e 8) continuam seguindo o padrão adotado pela Editora

Brasil-América – apresentação de requadros com cenas das histórias. Destaque para o

título e autor da obra literária, em letras maiores e estilizadas, o que indica a

ressignificação como forma de divulgação da cultura de elite. Neste trabalho, a

estratégia de apresentação da história é diferenciada, como se pode perceber abaixo:

Figura 9: A Moreninha

Editora Brasil-América, pág. 1

Figura 10: A Moreninha Figura 11: A Moreninha Figura 12: A Moreninha

Editora Brasil-América, Editora Brasil-América, Editora Brasil-América,

Pág. 4 Pág.19 Pág. 24

Primeiro (figura 9) temos uma página com as personagens de destaque, sendo

colocado na parte superior o casal protagonista, com maior destaque para Carolina (a

moreninha). Posteriomente é apresentada a biografia do autor e sua prestigiada

Page 53: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

53

produção literária. A história quadrinizada é iniciada com um texto-comentário da

temática da obra (figura 10), seguido pela ilustração da personagem principal em

primeiro plano, tendo como fundo imagens em marca d’agua da mesma personagem em

supostos movimentos que a caracterizam, em conformidade com o texto descritivo, na

parte inferior da página. Esta estratégia acaba por focalizar Carolina como centro da

história. Do lado esquerdo, estão sobrepostos, de cima para baixo, os quadrinhos que

dão início à história com a conversa entre quatro estudantes no Rio de Janeiro.

Na figura 11, temos a materialização imagética do momento do jantar, quando

os estudantes chegaram à ilha onde residia a avó de um deles. Os traços semelhantes a

esboços indica a frágil qualidade das quadrinizações, percebida nos vazios do requadro:

em boa parte apresenta as personagens e pouco se exploram as possibilidades dadas

pelo texto romântico, rico em descrições, para uma melhor composição das cenas –

ambiente e paisagem. Na figura 12 vemos como o quadrinista recria a rememoração de

infância de Augusto: desenhos tipos rascunho e traços mais infantis, emoldurados por

requadros curvilíneos, para enfatizar o ato de rememorização.

Nos anos posteriores, decrescem estas produções, só voltando a ganhar corpo na

primeira década dos anos 2000, em função do aquecimento do mercado editorial das

histórias em quadrinhos que foram incluídas nos Parâmetros Curriculares Nacionais

(PCNs). As obras quadrinísticas passaram a ser sugeridas como forma de

complementação didática do ensino formal. Destaca-se, nesse período, o Livro de

contos em quadros com adaptações dos contos “Pai contra mãe”, de Machado de Assis,

“O bebê de Taratana Rosa”, de João do Rio, e “O apólogo brasileiro sem véu de

alegoria”, de Alcântara Machado. Em 2004, surge a obra Galvez, o imperador do Acre,

obra patrocinada pela Secretaria de Cultura do Pará.

A literatura em quadrinhos não se limita apenas a obras da literatura brasileira. A

Editora Zahar avança na seara de livros quadrinizados, publicando Em busca do tempo

perdido, de Marcel Proust; a Peirópolis trouxe Dom Quixote, de Cervantes, e Os

Lusíadas, de Camões; a Conrad lança as quadrinizações de A Metamorfose, de Kafka, e

A Relíquia de Eça, de Queiróz. Atualmente, as editoras trazem trabalhos bem estilizados

e singulares, de acordo com roteirista responsável pelo texto escrito e o ilustrador das

imagens. Em boa parte dos trabalhos de tradução, é o quadrinista o detentor dessa dupla

atividade. Notemos algumas produções deste período:

Page 54: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

54

Figura 13: Os Lusíadas Figura 14: Os Lusíadas

Peirópolis, Capa 1 Peirópolis, pág. 6

Na figura 13 temos a quadrinização de Os Lusíadas (2006), pela Peirópolis. Fido

Nesti é o responsável por este trabalho que na capa já traz traços marcantes: o título da

obra refere-se apenas aos quadrinhos sem reportar-se à literatura – o título Os Lusíadas

(em letras maiores) seguido pela especifícação do gênero textual (em quadrinhos), a

autoria (por Fido Nesti), uma cena de destaque da história e o especificativo da coleção

(série clássicos em quadrinhos). O texto traz um mapa sintetizado dos principais fatos

da narrativa resumidos, que de forma inusitada, tem como narrador o próprio autor da

obra literária (Luis de Camões). Na figura 14 temos uma página da quadrinização que

retrata muito bem o estilo do artista que oscila entre traços fortes e delicados, com cores

intensas.

Figura 15: A Relíquia Figura 16: A Relíquia

Conrad, Capa 1 Conrad, pág. 91

A figura 15 traz, da Conrad, a capa da quadrinização A Relíquia (2007),

pontuando o autor da obra literária (Eça de Queiroz) e o ressignificador nos quadrinho

(Marcati). Destaca-se a sombra da personagem principal a pensar (com o diagrama-

Page 55: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

55

balão do pensamento circundado de várias situações da história em desenhos

minúsculos. Na figura 16 destacamos uma página da história na qual se percebem os

desenhos em linhas caricaturais, com a predominância do preto, branco e cinza, com

texto verbal num português mais abrasileirado.

Figura 17: Gema Bovary Figura 18: Gema Bovary

Conrad, Capa 1 Conrad, pág. 21

Na figura 17 temos também, da mesma editora, a quadrinização Gemma Bovary

(2006) que traz a atualização da história Madame Bovary, de Flaubert, em contexto

contemporâneo, século XX, com a preservação dos argumentos da obra literária. A capa

em cores escuras destaca a personagem com nome modificado para Gemma, visual

moderno e um leve toque de sensualidade. Na figura 18 destaca-se uma página da

história na qual se percebe a grande presença do texto verbal, acompanhada das

ilustrações em requadros dispostos de forma mais livre.

Figura 19: O caçador de pipas Figura 20: O caçador de pipas

Nova Fronteira, Capa 1 Nova Fronteira, pág. 13

Na figura 19 a capa da quadrinização de O caçador de pipas (2011), da Nova

Fronteira, em parceria dos ilustradores Fabio Celoni e Mirka Andolfo apresentando

Page 56: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

56

alguns requadros como chamariz. Na figura 20 destacam-se os desenhos com traços

bem delineados e cores fortes e harmônicas, conforme o ambiente retratado.

O trabalho de quadrinização da literatura atualmente não se detém somente aos

romances, contos, poesias, peças teatrais considerados produtos da cultura da elite

letrada, como também alcança a literatura em cordel, produto da cultura popular. São

obras literárias de diferentes épocas e autores, que tornaram releituras pelas

transmutações sígnicas, como se percebe nas ilustrações abaixo:

Figura 21: Galvez, o imperador do Acre. Figura 22: O homem que sabia javanês.

Quadrinização do romance de Quadrinização do conto de Lima

Márcio Souza, patrocinado pela Barreto pela Escala Educacional

Secretaria Executiva de Cultura em 2004.

do Pará em 2004.

Figura 23: O Pavão Misterioso Figura 24: Morte e Vida Severina

Quadrinização do cordel de José Quadrinização do auto de João Cabral

Camelo pela co-edição da Luzeiro/ de Melo Neto pela Editora Massangana

Tupyniquim em 2010. em 2006.

A diversidade estilística nas produções quadrinizadas da literatura brasileira é

um capítulo à parte que merece destaque. Várias editoras contemplaram a proposta de

quadrinizar romances da literatura brasileira, como Ática, Agir, Escala Educacional,

Page 57: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

57

Top Books, Panda Books, Desiderata, Cortez, Companhia Editora Nacional, Editora

Globo, Peirópolis, Companhia das Letras, Pallas, Nemo, todas embaladas pela adesão

ao governo federal, novo cliente. Como amostragem, temos:

Figura 25: A Luneta Mágica Figura 26: A escrava Isaura Figura27: O Guarani

Editora Banda Books, 2006 . Editora Ática, 2010. Editora Cortez, 2007.

As obras quadrinizadas passam a circular com o título seguido pelo

especificativo em quadrinhos, como na figuras 25 e 27, destacando logo o novo

produto cultural, ou o titulo acompanhado pela conjunção “por”, como indício de uma

releitura, uma ressignificação, destacando a presença do novo autor, a exemplo da

figura 26. As capas trazem as personagens principais em uma cena de destaque da

história. As obras quadrinizadas sempre são acompanhadas, no final, por uma sessão

que contextualiza a obra literária que é o texto-base, com informações biográficas sobre

o autor, o adaptador e/ou ilustrador (obras das figuras 25 e 27).

Algumas quadrinizações trazem informações de como se realiza o trabalho de

adaptação, caso da Ática (figura 26) em seção no final do livro. Tal processo pode ser

sinteticamente explicitado: inicia-se com leitura do texto base, em seguida cria-se o

roteiro, fracionando o texto em cenas nas quais predominam as falas das personagens ou

do narrador ( trechos narrativos também são convertidos em falas); por fim, são criados

os desenhos, que para chegar ao requadro final, passam por processos de composição

das ilustrações. As quadrinizações geralmente são acompanhadas de um encarte, famosa

ficha de leitura, com a predominância de questões que enfatizam a leitura do texto

verbal e muito pouco se explora da leitura do icônico.

Page 58: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

58

Também ocorrem variadas quadrinizações de uma mesma obra literária por

diferentes editoras, o que pontua dois fatos: a crescente circulação da literatura em

quadrinhos no mercado de produtos culturais; e a prática de focalizar diferentes

sensibilidades e olhares sobre a obra literária, legado aos leitores-quadrinistas pela

possibilidade de diferentes leituras. Observemos as obras que se seguem:

Figura 28: Memórias de um Figura 29: Memórias de um

Sargento de Milícias Sargento de Milícias

Ática, capa 1 Ática, pág. 6

Figura 30: Memórias de um Figura 31: Memórias de um

Sargento de Milícias Sargento de Milícias

Companhia Nacional do Livro, capa 1 Companhia Nacional do Livro, pág. 9

Na figura 28, da Ática, os quadrinistas apresentam a capa de Memórias de um

sargento de milícias com uma cena-fundo do cotidiano, ao retratar uma via pública do

Rio de Janeiro do início do século XIX, ambientando a história nos meios populares.

Page 59: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

59

Em primeiro plano temos a personagem principal, Leonardo Pataca filho em suas

variadas fases da vida, até a condição de jovem perseguido pelo major Vidigal. Já na

figura 30, o quadrinista Lailson de Holanda Cavalcante apresenta alguns requadros em

que foca algumas cenas importantes da história e centra o olhar nos dois personagens

principais, Leonardo Pataca pai e Leonardo Pataca filho.

As figuras 29 e 31 apresentam o episódio do primeiro encontro entre Leonardo

Pataca pai e Maria das Hortaliças. Rosa e Jaf (29) apresentam o momento do primeiro

contato com detalhes, desde o flerte, as trocas de carícias inusitadas (pisão no pé,

beliscão nas nádegas) em cadenciamento, até a chegada e o produto final deste contato

(viver juntos, Maria grávida). Lailson Cavalcante (31) apresenta o flerte de forma

aligeirada, trocando o beliscão nas nádegas pelo aplicado na mão direita e apresenta o

recém-nascido e a cena coletiva da festa do batizado.

Figura 32 : O Cortiço Figura 33 O Cortiço

Ática, capa 1 Escala Educacional, capa 1

A capa da Ática para O Cortiço (figura 32), a representação dos personagens em

traços grotescos para enfatiza-lhes a condição de populares. Apresenta em perspectiva

especial os personagens de maior foco na obra, apresentando uma cena do cotidiano do

lugar numa amostragem do coletivo. Na capa da Escala Educacional (figura 33) temos a

divisão em requadros de uma cena, o que ilustra a fragmentação da própria vida no

cotidiano do cortiço, focando a sensualidade de Rita Baiana em primeiro plano e a

observação apaixonada de Gerônimo em segundo plano, perspectiva esta de leitura

utilizada pelo roteirista e pelo ilustrador.

Page 60: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

60

Figura 34: O Cortiço Figura 35: O Cortiço

Ática, pág. 37 Ática, pág. 38

Figura 36: O Cortiço Figura 37: O Cortiço

Escala Educacional, pág. 34 Escala Educacional, pág. 35

A cena da briga de Jerônimo e Firmo por Rita Baiana é apresentado em focos

distintos. Jaf e Rosa da Ática (34 e 35) exploram a luta em timming (cadenciando cada

golpe) e utilizando onomatopéias para enfatizar a brutalidade, com os personagens em

trajes que indicam a condição social e caracteres físicos que revelam a etnia. Antonelli e

Vilachã da Escala (36 e 37) sintetizam a briga em poucos requadros, guardando as

característas das personagens nas posturas corporais. As vestimentas e a ilustração do

ambiente revelam o cortiço como um lugar da malandragem, de aspecto boêmio.

Um trabalho bem específico é o realizado pela Editora Globo, com a obra de

Monteiro Lobato. Ele surge a partir da criação do Sítio do Picapau Amarelo, uma

Page 61: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

61

minissérie criada no final da década de 70 e retomada no início dos anos 90 pela

emissora de televisão Globo, além de desenho animado, exibido na TV Bandeirantes em

2011/2012. A história em seriação de acontecimentos retrata o lugar onde vivem

Pedrinho, Narizinho, Emília, Visconde, Dona Benta, Tia Nastácia, em aventuras

adaptadas das obras literárias infantis do referido autor.

No final da década de 1990 o Sítio torna-se história em quadrinhos, nas quais a

turma passa a viver novas histórias com temas contemporâneos ou retornando no tempo

para revisionar fatos históricos, numa linguagem própria ao público infantil.

Na última década, acompanhando o momento das quadrinizações literárias, os

textos infantis lobateanos são adaptados para os quadrinhos, na dinâmica das aventuras

das personagens do sítio. Textos como O Minotauro, Dom Quixote e As aventuras de

Hans Staden são retomados nos quadrinhos com estratégias narrativas específicas e

ilustrações próximas ao universo infantil, como se nota nas figuras abaixo:

Figura 38: O Minotauro Figura 39: O Minotauro

Globo, capa 1 Globo, pág. 38

Figura 40: Dom Quixote das crianças Figura 41: Dom Quixote das crianças

Globo, capa 1 Globo, pág.19

Page 62: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

62

Figura 42: Aventuras de Hans Figura 43: Aventuras de Hans

Staden Staden

Globo, capa 1 Globo, pág. 42

Nas capas dos textos quadrinizados do Sítio do Picapau Amarelo (figuras 38, 40

e 42) destacam-se as personagens principais das histórias revisitadas; ao lado, é disposto

em sentido vertical uma série de requadros nos quais as personagens do Sítio

presentificam as histórias. O diagrama de fala na parte superior indica o propósito dos

textos, ou seja, Monteiro Lobato (metonímia da obra literária do referido autor) em

quadrinhos.

As estratégias narrativas nestes textos são diversificadas. Na figura 39 as

personagens do Sítio viajam no tempo graças ao pó de pirlimpimpim e vivenciam fatos

do passado na Grécia Antiga; na figura 41 temos uma das personagens assumindo as

perspectivas do herói Dom Quixote e na figura 43 Dona Benta assume o papel de

contadora de história e os fatos expostos nos quadrinhos em dois planos - o da

enunciação (momento do ato de contar, mostrando as indagações dos ouvintes acerca da

história) e do enunciado (os fatos contados são ilustrados). A técnica quadrinistica

atende bem às expectativas do universo infantil: desenhos bem definidos com traços

mais infantis bem delineados, jogo de cores suaves e harmônicas e em conformidade

com o ambiente físico e psicológico que quer demonstrar, requadros traçados ou

sobrepostos segundo a intenção da mensagem do texto.

Apesar da diversidade de produção que atende a públicos variados, as

quadrinizações literárias ainda não conseguem amplos espaços, sendo, não raras vezes,

visualizadas apenas como objetos de leituras pedagógicas, pouco exploradas na escola.

Vergueiro (2010) afirma que, apesar da obrigatoriedade na sala de aula, as histórias em

Page 63: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

63

quadrinhos continuam a ser vistas como um material infantil. Somente foram

incorporadas ao ensino médio no formato de literatura em quadrinhos em 2009, inclusão

que parece demonstrar a evolução do pensamento das autoridades governamentais, que

passaram a acreditar no alcance e na potência do diálogo deste objeto cultural com o

ensino formal. Tais autoridades acreditam que a leitura do texto em quadrinhos pode

funcionar, ao longo do tempo, como trampolim para os romances, obras do cinema e do

teatro.

Paulo Ramos8, autor dos livros Quadrinhos na educação: da rejeição à prática e

Como usar as histórias em quadrinho na sala de aula, apresenta uma série de

publicações literárias em quadrinhos. Esta ampliação das publicações traz como ponto

positivo o fato de a literatura se tornar mais atraente para o aluno. Ele destaca como

aspecto negativo o fato de tais produções afastarem os estudantes da obra inicial. O

pesquisador reitera que a adaptação não substitui a versão original e que pode haver

uma saturação do mercado com o aumento das publicações.

Em outro artigo9, Ramos confere relevância a este tipo de texto que também

exige habilidades do leitor e destaca que “se há dificuldades no uso de obras literárias,

imagine dos quadrinhos”.

Ramos e Vergueiro enxergam a inclusão dos quadrinhos na sala de aula como

um avanço, mas consideram insatisfatórios os resultados iniciais desta prática

emergente. Eles nutrem uma visão pessimista ante tal ação pedagógica, já que os

quadrinhos têm sido pouco usados no ensino. Esta constatação decorreria do

desconhecimento e da ausência de habilidade por parte do docente quanto à leitura da

linguagem icônica, o que atrofiaria o emprego deste objeto em sala de aula.

O Jornal Metodista da Universidade Metodista de São Paulo10

traz o

reconhecimento de que a literatura em quadrinhos tornou-se, nos últimos anos, um

nicho em crescimento no mercado dos gibis. Também afirma que as editoras “ganharam

um novo e poderoso cliente”, o que acentua a tônica mercadológica deste objeto cultural

hibrido, além de apresentar o posicionamento de pesquisadores acerca desta temática.

8 Cf. Aberta temporada 2009 de adaptações. Disponível em: <blogdosquadrinhos.blog.uol.com.br >.

Acesso em: 26/mai/2010. 9 Cf. Obras em quadrinhos, sem super-heróis, são obrigatórias.. Ano. Disponível em: <jovem.ig.com.br

>.Acesso em: 26/mai/2010. 10

Cf. Literatura em quadrinhos . Disponível em:< www.metodista.br >. Acesso em: 28/jun/2009.

Page 64: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

64

Dentre estes, Alexandre Linhares, da Boitempo Editora, um dos responsáveis

pela transposição do livro A Relíquia, de Eça de Queirós, para os quadrinhos, destaca

que o aumento destas publicações se deve a uma combinação de fatores e não apenas à

indicação ao Programa Nacional de Bibliotecas nas Escolas (PNBE). Acredita que as

adaptações ganharam atenção especial muito antes, pois “[...] seriam formas de ajudar

os quadrinistas brasileiros a melhorar os roteiros e, assim, ganhar prática e experiência

na roteirização de histórias” (2010).

Destaca-se também o posicionamento dos professores Lielson Zeni e de Elydio

dos Santos Neto, diretor da Faculdade de Educação e Letras da Universidade Metodista

de São Paulo. Para o primeiro, é fundamental saber o que se pretende com a adaptação,

isto é, se a quadrinização funciona como um auxílio ao texto original, buscando-se ser o

mais fiel possível a ele, ou é uma releitura que terá como ponto marcante a utilização

dos recursos da peculiar linguagem quadrinística. Nesta percepção, é centrado o

trabalho do quadrinista, o qual se destaca como o autor que recria o texto imagético a

partir do texto literário. No texto “Literatura em quadrinhos”, integrante da obra

Quadrinho na Educação: da prática á rejeição (2009, p. 127) ele defende a autonomia

das quadrinizações literárias, um novo texto, que muito pode contribuir para a leitura

literária:

As produções em quadrinhos baseadas em obras literárias devem ser

avaliadas por seu valor como arte autônoma, e não à sombra da

produção original. Podemos, entretanto, aproveitar a proximidade

dessas adaptações e do texto que lhe serviu de base para buscar uma

leitura diferenciada, uma outra visão da obra literária.

Para o professor Elydio, a qualidade da adaptação independe da história que a

motiva, posto que apenas a preocupação com a fidelidade ao texto-base pode tornar a

adaptação não interessante, sem força semântica na nova linguagem. Ressalta também a

possibilidade de o trabalho conjunto acontecer em sala de aula, o que enriquecerá o

aluno no referente ao domínio dos recursos que as diferentes linguagens possibilitam.

Ele observa que se torna indispensável a consciência do leitor ante as adaptações,

porque a história não será contada da mesma forma, e afirma:

[...] a adaptação é, já em si, uma leitura do artista que a adaptou para

os quadrinhos. Isso não é, a princípio, bom ou ruim. É importante que

quem esteja lendo uma adaptação saiba que não está lendo a própria

Page 65: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

65

obra literária, mesmo quando a adaptação mantém-se fiel ao texto

literário.

O referido autor ainda ressalta que a leitura dos quadrinhos no ambiente escolar

pode estabelecer um desenvolvimento mais harmonioso entre a análise racional e a

leitura com sensibilidade. Também adverte para uma pedagogização das histórias em

quadrinhos, o que provoca o empobrecimento delas, uma vez que se trata somente da

exploração superficial desta linguagem, isto é, o potencial artístico e o comunicacional

não são verdadeiramente trabalhados. No rastro deste olhar raso, as histórias em

quadrinhos são tomadas apenas como pretextos para estudos linguísticos, técnicas de

cópia de arte ou mera facilitação de entendimento da linguagem literária ou de fatos

históricos.

Mesmo tendo sido tema da Bienal do Livro de Minas Gerais em agosto de 2010,

a literatura em quadrinhos convive com o rótulo de subliteratura, posicionamento

rechaçado pelo quadrinista Lelis11

. Ele é contundente em depoimento sobre a literatura

em quadrinhos: “Um país deve se orgulhar das formas de expressão e não rotulá-las

dando maior importância a uma em detrimento da outra. Ninguém questionou se era

literatura ou sub-literatura. É uma forma de expressão, uma das mais completas e só”

(2010).

Spacca, quadrinista paulista que adaptou Jubiabá, de Jorge Amado, destaca que

a arte literária utiliza a expressão verbal enquanto os quadrinhos usam imagens e

símbolos e nem sempre palavras. Isto confere à literatura em quadrinhos a

caracterização de extraliteratura. Ele explicita: “[...] a HQ utiliza o mesmo suporte físico

da literatura, o livro, as páginas impressas têm a mesma direção de leitura e organização

editorial de uma obra literária. Os novos formatos ainda não oferecem ao leitor a mesma

praticidade do formato clássico” (2010).

A editora da Coleção Clássicos em Quadrinhos da Peirópolis, em apresentação

da obra Os Lusíadas quadrinizada, caracteriza esta literatura como um rito de iniciação

para o leitor, que se depara com um nível de complexidade menor do que no texto

literário. O quadrinista, autor deste trabalho, Fito Nesti, observa que a quadrinização do

texto literário processa-se a partir da extração das passagens mais relevantes e populares

da obra para daí produzir as imagens. Utiliza-se também da estratégia do encontro entre

11

Cf. blog.com.br/quadrinhos. Acesso em: 26/mai/2010

Page 66: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

66

o autor místico da obra literária com o autor-personagem da história em quadrinhos, o

que propicia um trânsito melhor da leitura do texto. Para ele, nasce uma nova história,

um novo livro, que inspira o leitor a olhar com humor para os eventos narrados (NESTI,

2006).

No livro em quadrinhos A Relíquia, da Conrad, o quadrinista Marcatti constrói

uma revisitação à obra literária homônima de forma bem criativa. Produz o novo objeto

cultural por meio de um processo de ressignificação da história: no texto quadrinizado

ocorre a junção de três personagens em um, são realizadas supressões de trechos vistos

como importantes pela leitura tradicional (a exemplo da visão maligna das personagens)

e mantém poucos trechos da linguagem original “abrasileirando” a língua de Portugal.

Independente da instabilidade de compreensão, de conceituação, da real

funcionalidade do texto quadrinístico e da falta de percepção da linguagem específica e

rica que tem, ou de como se dão as trocas e as mediações entre ela e os elementos que a

compõem (palavra e imagem), torna-se imprescindível vislumbrar a literatura em

quadrinhos como objeto cultural enriquecedor da construção das práticas de leitura, sem

estar-se preso a elitismos textuais e sociais. Para isso, é importante observar, como

afirma Michel de Certeau que “[...] a autonomia do leitor depende de uma

transformação das relações sociais que determinam sua interação com os textos. A

criatividade do leitor cresce na medida em que cai o peso da instituição que a controla”

(apud MARTÍN-BARBERO, 2004, p.337). Neste sentido, a escola deverá repensar as

práticas leitoras que promove e o discurso que as rege.

Nesse jogo de indefinições acerca da literatura em quadrinhos, há posições que

deslocam a preocupação com a acessibilidade do texto literário via mediação da

imagem. Tal prática pode desencadear leituras equivocadas, segundo as quais haveria a

mera substituição de um objeto cultural por outro que o simplifica. As interpretações

deturpadas provocam o desperdício das experiências do confronto, da interculturalidade,

da experimentação de novas sensibilidades.

Equívocos dessa natureza não raramente constituem práticas pedagógicas como

a do texto intitulado Precisa estudar literatura pro vestibular? Leia um gibi, ora bolas!

(2009). Este artigo chega a afirmar que deveria haver a substituição dos textos, uma vez

que o fato de clássicos da literatura fazerem parte das listas do vestibular não garante a

efetividade da leitura daquelas obras. As obras literárias são caracterizadas sempre

como dotadas de uma linguagem complicada e de vocabulário difícil. Assim, aponta-se

Page 67: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

67

para a conveniência das versões em quadrinhos, uma vez que, por serem dotadas de

imagens e também por exibirem certo caráter de síntese, tornar-se-iam de leitura mais

fácil. Todos esses aspectos ofereceriam comodidade ao leitor, em detrimento da leitura

do texto literário, desprovido de todas aquelas essas facilidades. Esse procedimento

acaba por vulgarizar o objeto cultural híbrido e por provocar desconfiança quanto a seu

estatuto ontológico.

O duplo equívoco – a canonização da literatura e o desprestígio e mau uso dos

quadrinhos – deve ser repensado, sob pena do apagamento deste objeto cultural,

cabendo-lhe apenas o rótulo de mais um “lixo” da mídia circundante. Este processo

também fortalecerá o ostracismo crescente da literatura, que se fechará ainda mais como

texto intransitivo e identificado com uma tradição passada, pertencente apenas às

práticas de leituras acadêmicas. O texto literário é tido como fechado em si, distante do

mundo altamente tecnológico cada vez mais audiovisual e, em última análise, se

distancia-se, do tempo e do espaço de circulação e recepção contemporâneas.

Torna-se pertinente invocar o pensamento de Benjamin (1994) para situar a

literatura em quadrinhos num patamar que se assemelharia aos processos de

reprodutividade técnica da obra de arte. Neste sentido, o quadrinho, por assim dizer,

deslocaria a arte literária do nicho onde o cultivo de sua aura a colocou e a remeteria

para espaços outros, propícios e adequados a interações e ressonâncias, possibilitados

também pela atuação da imagem. Desta forma, a reprodutividade técnica se identificaria

com os estágios de repaginação assumidos pela arte literária, agora veiculada pela

linguagem icônica. É o próprio Benjamin (1994, p.168-169) quem afirma:

[...] a técnica da reprodutividade destaca do domínio da tradição o

objeto reproduzido. Na medida em que se multiplica a reprodução,

substitui a existência única da obra pela existência serial. E, na medida

em que esta técnica permite à reprodução vir ao encontro do

espectador, em todas as situações ela atualiza o objeto reproduzido.

Neste novo processo, a arte literária sacralizada pela aura do elitismo, afasta-se

de tal posição e, ao se apresentar refuncionalizada nas quadrinizações, empreende

diálogos entre o culto e o massivo, de que resulta possibilidade de interações com novas

sensibilidades.

Page 68: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

68

2. A LITERATURA MACHADIANA ENTRE CONTOS E REQUADROS

2.1. A literatura machadiana nas leituras críticas

Autor de um texto que, em muitas situações, parece dizer o mesmo através de

títulos e gêneros variados, Machado de Assis é um escritor sobre quem, a princípio, se

poderia dizer que fala de uma posição e espaço de elite, sendo por isso tomado como

um dos melhores exemplos da literatura clássica. Entretanto ao mergulhar em seus

textos, nota-se que se trata de um ficcionista cuja profundidade instiga e provoca e se

apresenta como detentor de uma escrita que transcende o momento, o espaço, a etnia; do

jovem que faz o trajeto do arrabalde para o centro.

Ao se debruçar sobre as obras, muitos caminhos de leitura são anunciados e

muitos posicionamentos são construídos, tamanha a habilidade das estratégias de contar,

engendradas em rica sutileza e fina ironia. Destacaremos alguns posicionamentos da

crítica especializada que circulam na academia nos trabalhos de Afrânio Coutinho,

Eugênio Gomes, Sonia Brayner, Antonio Callado, Roberto Schwartz, Luiz Roncari,

Jonh Gledson e Antonio Candido.

Também trilharemos por algumas revistas especializadas, veículos

informacionais que primam pela linguagem mais acessível para professores, estudantes

e interessados na área, cotejando discussões acerca da literatura machadiana. Optamos

pela Entrelivros (2007), Proleitura (1999) e Nova Escola (2008) que circularam no

período de homenagem ao centenário da morte e dos cento e cinqüenta anos de

nascimento de Machado de Assis, respectivamente.

Entre os críticos especializados, Coutinho (1990), debuça-se sobre o estilo de

Machado de Assis e apresenta-o como resultado da lida de um escritor que muito

laborou ante o próprio texto. Nos cinquenta anos de produção, tal escritor vivencia as

marcas de uma evolução literária que o coloca desvinculado de qualquer manifestação

da historiografia literária. Por outro lado, ele se utiliza das possibilidades e matizes dos

variados estilos de época:

Não foi homem de escolas, no sentido estrito. Absorvia o que tinha de

válido, incorporando-o ao seu ideal estético, que era de cunho

clássico, no culto da medida, do equilíbrio, das verdades eternas e

universais. Reagia contra os exageros, pois sabia reconhecer as

virtudes de cada escola e se deixar impregnar por elas. (COUTINHO,

1990, p.31).

Page 69: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

69

O referido crítico faz uma leitura da obra como culminância da maturação

estética que resulta, por sua vez, do amadurecimento existencial do próprio homem, que

não se diz claramente no texto. Nesta direção, trata-se de um escritor que não se

revelaria por inteiro na produção literária. Três marcas da escrita, vistas pelos críticos

como não gratas, merecem certo esclarecimento da parte de Afrânio Coutinho: a

questão das influências, a falta de conexão com a realidade em que vivia (classe e raça)

e o estilo elitista de escrita.

No tocante às influências, o texto machadiano é uma elaboração pessoal,

construída por meio da assimilação das várias leituras que o formaram (COUTINHO,

1990) A partir de Pascal, Machado elabora ideias identificadas com o descrédito no

homem, ser doente e corruptível, sempre incerto, flutuante e marcado pela condição de

miséria da própria existência e que traz de origem a propensão ao mal. De Montaigne,

capta a noção de consciência do homem como ser natural, que vê a vida como instância

nem má, nem boa. Esta percepção é construída por meio do conhecimento que

possibilita a descrição íntima do homem, isto é, fundada na penetração psicológica que

desvenda o universo humano. O homem é um ser extremamente preocupado com a

opinião alheia e dotado de incoerências e variabilidades. Machado se inspira em

Cervantes, Swift, Sterne, Dickens, para construir um humorismo que surpreende

qualquer leitor. Assim, Coutinho afirma que Machado de Assis toma essas posições

para construir certa concepção de mundo a partir de um modo muito próprio de dizê-lo.

No que diz respeito a uma suposta desconexão com a realidade do Brasil,

segundo o autor supracitado, Machado de Assis foge à tendência da unicidade enfática

no nacionalismo carregado de cor local – “Instinto de nacionalidade”. Ele prefere

mostrar o cotidiano com imagens e figuras do Rio de Janeiro do final do século XIX,

com seus dilemas sociais, políticos e econômicos, espaço onde transita um homem

entregue aos próprios impasses existenciais.

Para Coutinho, apontá-lo como um escritor elitista é não perceber naquele texto

a elaboração personalíssima, que preserva a tradição sim, mas acolhe também elementos

da cultura popular. Neste sentido, Machado “[transforma] com seu molho, a matéria-

prima proveniente de fontes das mais díspares – dos escritores lidos, do patrimônio

comum, do acervo popular, dos tesouros de frases feitas, da sabedoria anônima, dos

fatos da vida cotidiana” (COUTINHO, 1990, p.48).

Page 70: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

70

Eugênio Gomes (1958) afirma que com Machado de Assis o romance brasileiro

atingiu o mais avançado grau de refinamento formal, produto do entrelaçamento das

habilidades do cronista, crítico e romancista. O texto torna-se um objeto híbrido, pois o

leitor é seduzido e deleitado não só pelos meandros da ficção em si, mas também pela

percepção do fazer textual marcante.

Na percepção de Gomes, Machado de Assis é o crítico dissimulado no

romancista, que vive a liberdade de criação responsável pela excessiva agudeza de

conhecimento e de malícia moral em suas recriações. O crítico é contundente ao afirmar

que o escritor não foi o frio praticante da arte pela arte. Em suas melhores produções

encontra-se, antes de tudo, o homem interessado pela vida.

Sonia Brayner (1982) vê Machado de Assis muito mais que um reformulador do

modelo literário do final do século XIX. O texto do escritor questiona não apenas o

modelo literário vigente, como também a própria racionalidade com que se faz a leitura

do real – a mimese documental tão em voga. Em outra direção, estabelece-se uma

técnica metafórica escudada num jogo de desnudamentos por meio de uma estratégia

sofisticada de assimilação e desassimilação dos conteúdos.

Segundo a crítica em foco, a obra machadiana instaura um desafio e uma

desestabilização do pensamento racional do Ocidente. Nela encontra-se a lógica da

ambivalência e do paradoxo que desnuda os apoios lógicos de classes e de propriedade,

recursos verbais não tão facilmente encontrados. Ainda segundo a crítica citada, o texto

machadiano traz dois aspectos que merecem atenção especial: um posicionamento

singular próprio de seu discurso intertextual, que tanto o legitima, e a manipulação do

universo ficcional por intermédio da apropriação de formas arcaizantes de humor,

características do século XIX. Desta forma, quebra-se a previsibilidade do bom senso do

texto, de que resulta a indagação profunda, própria da atribuição de sentido.

Em depoimento de sua vivência como leitora de tal obra, a crítica assim se

coloca:

[...] bom, pensando nas minhas vivências machadianas, talvez a coisa

que mais me tenha impressionado no texto do Machado tenha sido o

próprio jogo do texto [...] quer dizer, a capacidade que ele teve em

articular tantos elementos narrativos de forma tão complexa e variada.

[...] Em nenhum momento ele deixou de tentar uma forma através da

qual pudesse dizer o que tinha para dizer da melhor forma possível. E

a capacidade de mudança não arrefeceu até uma modificação, fruto

das tentativas deste percurso. [...] Há, entretanto, um segundo

Machado, que atrai e me desnorteia. Eu nunca cheguei a uma

Page 71: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

71

conclusão definitiva sobre como Machado coloca a mulher dentro de

sua obra [...]. (BREYNER, 1982, p.326).

Antonio Callado tem Machado de Assis como a grande figura do mundo

ocidental. Para ele, Machado é um autor que também traz inquietações à crítica

ocidental, no que concerne inclusive à alegoria política e social que se debruça sobre o

Brasil. Nas narrativas, o Rio de Janeiro e os sujeitos que ali transitam, tornam-se

recorrentes, contudo o adensamento e a profundidade com que é apresentada cada

situação constituem algo que lhe é específico, vez que “[...] ele parte de dentro das

coisas e realmente toma conta da gente de uma forma absoluta, primeiro insinuante, a

gente nem sente” (CALLADO, 1982, p.324).

Roberto Schwarz, em seus estudos sobre a luta ideológica no Brasil a partir da

segunda metade do século XIX, percebe como elemento básico da obra machadiana a

presença do narrador volúvel. Tal narrador, a cada momento, mostra-se desidentificado

em relação a um posicionamento defendido anteriormente, o que faz com que o humor

ocupe papel-chave no desvendamento do texto. Segundo Schwarz (1982, p.318), “[...] é

como se a relativização das idéias dominantes de uma época no centro tivesse um peso

explosivo e a relativização dessas mesmas idéias na periferia tivesse uma dimensão

realista porque a sua relatividade é palpável”. A história brasileira, não raras vezes mal

contada e inexplorada, assume na obra machadiana uma elaboração sutil e aprofundada,

ainda que leituras desatentas vislumbrem nela um caráter a-histórico, conclusão

fundamentada na ausência da mimese documental. Para o crítico paulista, na

experiência leitora do texto machadiano, há um discurso sempre significativo, uma vez

que

Machado vai se impondo ao longo dos anos, e não é tanto pelo lado da

simpatia que ele dura. Os outros, com o passar do tempo, vão

parecendo ingênuos; comparados com ele, vão parecendo bobocas. E

o Machado, não, ele volta a se impor e vai durando... Os outros

somem, e ele sempre está ali. Isso tem a ver com o pessimismo, tem a

ver com a falta de entusiasmo, de que os contemporâneos têm raiva.

[...] Machado [...] não faz a menor diferença entre um rico e um pobre

quanto a sutileza. Para ele, pobre é gente como não é para nenhum

naturalista, inclusive de esquerda. [...] Há em Machado de Assis, com

toda a afinidade dele pela sociedade restrita, um sentimento da

pobreza que é uma coisa extremamente extraordinária. (SCHWARZ,

1982, p.325).

Page 72: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

72

Luiz Roncari, identificado com a leitura cultural, por sua vez vê um Machado de

Assis afinado com a valorização da arte culta, da literatura e língua cultas. Nota que o

escritor apresenta uma percepção da cultura popular, do local, mas parece não saber

integrar as novas vozes emergentes na cultura brasileira. Segundo o crítico, o escritor

percebe a mudança que está por ser instaurada nos fins do século XIX, mas defende

com outros escritores e intelectuais da época a proposta de

[...] levar para o futuro o que merece sobreviver do passado, o que está

vivo ainda do passado. Buscava-se evitar a ruptura brusca, que

algumas vozes literárias, de certa forma, vinham afinando e que

diminuiria o espaço de encontro do velho com o novo, o espaço de

encontro também das diferentes regiões, do regional. (RONCARI,

1982, p.316).

Roncari acredita que a relação entre Machado de Assis e o leitor, inicialmente

seria marcada pela complicação e solidão, mas em momento posterior se chegaria à

intimidade e por fim ao prazer. Identificam-se escritor, leitor, narrador e personagens

que trazem uma espécie de doença na alma, da qual brota o encontro responsável pelo

prazer do texto.

Na obra Machado de Assis: ficção e história, John Gledson (2003) retoma o

debate da relação da literatura machadiana, tida e havida como realista na concepção

reducionista e documental do século XIX, e a reposiciona em sua singularidade de

construção da História, processo denominado de realismo enganoso. Este conceito se

volta para a desestabilização do entendimento do real, que, desta maneira, se torna

oculto e não imediato ao leitor. A percepção do sentido documental se faria notar

somente através da análise e leitura das entrelinhas da narrativa.

Através da alegoria política/histórica, Machado elege uma das interpretações da

trama – o adensamento histórico. Neste sentido, não se trata da “[...] dedução de uma

visão machadiana da História a partir de uma massa de detalhes; é uma exposição sobre

a maneira pela qual essa visão da história molda os próprios romances” (GLEDSON,

2003, p.32). Desta sorte, destacam-se a sutileza e a profundidade na forma de como o

texto espelha as condições locais, brasileiras, o que inaugura uma nova tradição de

leitura.

Uma leitura bastante sólida é apresentada por Antonio Candido (2004), em texto

intitulado “Esquema de Machado de Assis”, integrante da obra Vários escritos.

Negando toda a visão de homem marcado pelo sofrimento e pelo estigma da cor, da

Page 73: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

73

origem humilde e da doença como elementos desencadeadores da condição de

genialidade, o crítico apresenta Machado como escritor que teve apoio e que recebeu

mais louros que críticas em vida. Se, por um lado, apresentou um texto muito bem

elaborado e digno de reconhecimento, também foi um homem com posições

conservadoras nas práticas sociais.

Negando o biografismo e o psicologismo da criação literária, prática comum nas

leituras críticas da década de 30 do século XX, Candido (2004, p.18) reclama para a

obra todos os holofotes, assim afirmando:

Podemos dizer, como Moisés Vellinho, que sua vida é sem relevo

comparada à grandeza de sua obra, e que interessa pouco, enquanto

esta interessa muito mais. Sob o rapaz alegre e mais tarde o burguês

comedido que procurava ajustar-se às manifestações exteriores, que

passou convencionalmente pela vida, respeitando para ser respeitado,

funcionava um escritor poderoso e atormentado, que recobria seus

livros com a cutícula do respeito humano e das boas maneiras para

poder, debaixo dela, desmascarar, investigar, experimentar, descobrir

o mundo da alma, rir da sociedade, expor algumas das componentes

mais esquisitas da personalidade. Na razão inversa da sua prosa

elegante e discreta, do seu tom humorístico e ao mesmo tempo

acadêmico, avultam para o leitor atento as mais desmedidas surpresas.

Candido (2004, p.18) explicita como principal mérito da obra diante do leitor

“[...] a atualidade quase intemporal de seu estilo e desse universo oculto que sugere os

abismos”, que vai ser marca da literatura do século XX. O traço de modernidade de

Machado de Assis, apesar do seu arcaísmo de superfície, configura-se por meio da

técnica em sugerir as coisas mais descabidas de maneira suave; em estabelecer a

contradição entre a normalidade social dos fatos e sua anormalidade essencial; ou em

sugerir que o ato excepcional é normal, e anormal seria o ato corriqueiro, sob a

aparência do contraditório.

Pelo viés das revistas especializadas, destacamos a Entre Livros, produzida pela

Duetto Editorial, revista de circulação mensal, que traz na edição nº 30, de outubro de

2007, como reportagem de capa “O Machado desconhecido”, texto que sugere que há

muito do autor a ser pesquisado. Comenta-se o importante papel do escritor na literatura

e cultura brasileiras, reconhecendo-o como voz única, talento e criatividade

incontestáveis e singulares, mulato vitorioso numa sociedade escravocrata. A seção

dossiê traz o instigante artigo “O escritor de sete faces”, assinado por Cláudia Nina

Page 74: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

74

(2007) que comenta as nuanças da obra machadiana, numa percepção bastante diferente

das postulações trazidas pela crítica acadêmica especializada tradicional. Ela apresenta

novos críticos que, na virada do século XX para o XXI, buscaram desvendar no arguto

texto temas antes inimagináveis, como feminismo, homossexualismo e discussões

voltadas para as questões da afrodescendência.

Uma das leituras indicadas nessa reportagem é “Machado de Assis

Afrodescendente”, de autoria de Eduardo de Assis Duarte, texto que aponta para sutis

posicionamentos políticos e étnicos do escritor mulato, integrado no sistema burguês

vigente, condição que, a princípio, o colocava numa posição de não envolvimento com

as questões raciais. Numa leitura em outra direção, Eduardo de Assis Duarte (2007,

p.24) advoga que “[...] o viés político se mostra no escritor-caramujo, protegido, no

jornal, pelo pseudônimo e, na ficção, pela ironia e por todo um conjunto de

procedimentos dissimuladores”.

Por não concordar com as acusações a Machado de Assis de oportunismo,

aburguesamento, absenteísmo e omissão na luta pelo fim da escravidão, o crítico buscou

nos estudos das crônicas um meio para a descoberta do sentido político na obra do

referido escritor. E aponta para um texto arguto que veicula

[...] uma literatura que não endossa o preconceito; que vai na

contramão do cientificismo hegemônico na época; que se posiciona,

sim. Contra a desigualdade e a injustiça; que rebaixa os heróis e dá à

mulher um papel substantivo; que faz a crítica da classe dominante de

um olhar externo, de baixo para cima, identificado ao subalterno; e

que retira deste, sobretudo do escravo, a lição de que a astúcia é a

grande arma do oprimido. (DUARTE, 2007, p.26).

Outro estudioso apresentado é Paulo Ubiratan, jornalista, escritor e tradutor,

autor não só da Bibliografia machadiana – 1959-2003, obra na qual copila escritos

diversos de jornais, revistas e livros, como também de Três vezes Machado de Assis,

obra em que são reunidos ensaios sobre o contexto histórico do Rio de Janeiro da época.

Em tais textos, Machado de Assis é caracterizado como escritor contemporâneo, visto

que “[...] num mundo de tanta desconfiança como o nosso, as histórias e as personagens

criadas por Machado permanecem absolutamente atuais. O gosto de duvidar de tudo, a

dificuldade e impossibilidade de ter certezas são também características do nosso

tempo” (UBIRATAN, 2007, p.27).

Page 75: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

75

Hélio Guimarães, autor de Os leitores de Machado de Assis: o romance

machadiano e o público do século XIX, analisa o papel da figura do leitor na produção

ficcional romanesca machadiana no Brasil do final do século XIX e início do século

XX, momento em que somente 18% da população era alfabetizada e apenas 2% eram

capazes de ler livros. Em entrevista para a Entre Livros, n. 30, assim se expressa

Guimarães (2007, p.25):

Machado foi um escritor muito festejado em vida, o que não significa

que tinha sido compreendido. [...] O que houve certamente foi uma

enorme dificuldade de descrever e de classificar a obra dentro das

categorias críticas então disponíveis. Mesmo os melhores críticos em

atividade não sabiam onde encaixar aquilo. Daí uma visão inicial da

obra toda calcada em negativas e faltas.

Apesar de todos reconhecerem as habilidades e talentos de Machado

como escritor, ele foi visto como um escritor frio, de pouca

imaginação, pouco interessado no povo brasileiro e nas suas questões,

indiferente às questões políticas, etc. Para as expectativas da época,

Machado era um renomado capítulo de negativas: faltava emoção,

faltava paisagem [...].

O referido crítico afirma que pouco ou quase nada se sabe acerca da recepção

das obras machadianas naquele período, pois não há nenhuma carta de leitor a ele

destinada. Com relação aos leitores atuais, apesar do grande volume de estudos nestes

cem anos, Hélio Guimarães acredita que há muito ainda a ser dito, levando-se em conta,

principalmente, a poesia e o conto.

Alcides Villaça, no artigo “Os apuros de Machado de Assis”, traz a lume a

questão instigante de como é o trabalho com a literatura no interior da academia e no

processo de formação cultural, tradicionalmente pautada por valores humanos

universais, quando os autores que mais reverberam referem-se ao particular do “nefasto

das experiências humanas”. A obra de Machado de Assis é um exemplo claro da

contraposição, no qual a tão louvada intenção construtiva da ação pedagógica de

firmação de valores humanos passa por séria desestabilização. Villaça (2007, p.38)

observa:

A escola acolhe, honrada, um escritor, cujos sólidos princípios acabam

por erigir uma ponte pênsil sobre o abismo. É só chegarmos um

pouquinho mais perto de seus textos e sofreremos a ação dos ácidos

infiltrados na perspectiva do narrador, que destilam do fundo de sua

consciência e se infiltram na nossa, resultando no ganho de uma

Page 76: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

76

estranha e alta lucidez que parece se alimentar de si mesma e

paralisar-se, gostosamente, em seu mirante privilegiado.

Para Villaça, segundo experiências advindas de curso ministrado a partir dos

contos de Machado de Assis, cujos participantes eram jovens leitores, três reações à

leitura foram observadas: desestabilização de valores já instáveis em si, numa fase da

vida em que o jovem procura assentar suas escolhas; reclamação de quem não admite a

contestação de princípios já definidos e cristalizados, especialmente no que se refere à

religião; estranhamento por parte de leitores puristas que não veem na prosa machadiana

uma poética estruturalmente definida. Em todos os casos, o crítico pontua como

motivador o modo como o Bruxo de Cosme Velho relativiza os valores pessoais, sociais

e literários. E assim comenta:

Ora, um evidente efeito de tamanha relativização é atiçar em nós a

emergência de um valor que se sustente altaneiro na prática da vida,

em resposta ao seu escandaloso rebaixamento. Se isso não é muito,

também não é pouco, e, aliás, é político. As situações narrativas de

Machado acusam a complexidade das contradições essenciais,

detectadas no plano da vivência íntima e na dinâmica da vida pública.

O que fazemos com ela é nosso problema.

Não estamos habituados a um confronto deste tipo, em que nos

sentimos cobrados não pela abstração de um elenco de virtudes

clássicas ou de princípios ideológicos, mas pela concreção de

experiências muito detalhadas, que expõem o processo de

mascaramento, escandalosamente familiar das violências grandes ou

pequenas, sobretudo nossas. (VILLAÇA, 2007, p.39).

Perceber o ganho pedagógico no trabalho com Machado de Assis no ambiente

escolar a partir da condição de desestabilizador e relativizador de valores é possível,

sim, para Alcides Villaça. O crítico pontua três vantagens: primeiro, não é perda

pedagógica trabalhar com as contradições que alvejam princípios alternativos, pois se

promovem questionamentos que fazem repensá-los; segundo, a violência da

relativização dos valores promove a relativização do leitor ao propor como resposta

interpretações diversas, visto que a narração machadiana, ao simular descompromisso,

acaba comprometendo a todos; e, por fim, a literatura tem como papel dar expressão ao

que não dispõe de tal, revelar disfarçadamente o que está disfarçado de fato, acusar

eficazmente a ineficácia de abstrações ingênuas, ou seja, revelar o mundo de forma a

provocar um repensar do próprio homem.

Page 77: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

77

Milton Hatoum, no texto “Machado para o jovem leitor”, presente na seção

Norte da referida Revista, acredita que um dos problemas está na seleção das obras para

a leitura do aluno. Segundo ele, há um pressuposto de que o estudante seria incapaz de

realizar leituras de textos complexos. Texto complexo não necessariamente é pesado,

chato e difícil. Texto difícil é aquele que carrega na ênfase do vocabulário precioso e

não aquele que inova na estratégia narrativa e na linguagem inusitada.

Observa que há, como sempre, imposições curriculares não poucas vezes

equivocadas, pois terminam por promover o ódio pela literatura brasileira como um

todo no jovem e inexperiente leitor, ao insistir no trabalho com “textos ásperos, cuja

leitura é sinônimo de suplício” (HATOUM, 2007, p.47). A seleção deveria ter como

critério textos literários bem construídos, mesmo considerados complexos, pois

produzem prazer pela cognição (reflexão) e pela emotividade. E o crítico comenta a

respeito da ausência de recepção do texto machadiano no leitor-estudante:

É inadmissível que tantos jovens desperdicem a oportunidade de ler

“A causa secreta”, “O Enfermeiro”, “Missa do galo”, “O Espelho”,

“Uns braços” [...] e outros contos do Bruxo, um verdadeiro mestre da

narrativa breve, que se situa no mesmo patamar de excelência de seus

contemporâneos europeus.

É muito provável que esses contos sejam lidos e comentados sem

enfado. Porque uma leitura enfadonha e arrastada é, para o leitor

jovem – e talvez para todo leitor –, um ato de flagelação ao espírito.

Claro que há textos intrincados e nada tediosos, que são

imprescindíveis para quem gosta de literatura. (HATOUM, 2007,

p.47).

Também merece atenção o periódico especializado Proleitura da UNESP/Assis,

publicado em parceria com a UEL (Universidade Estadual de Londrina) e com a UEM

(Universidade Estadual de Maringá) do Paraná, texto voltado para os professores de

Língua Portuguesa dos níveis fundamental e médio. Em sua edição n.21, de agosto de

2008, a Proleitura, intitulada Quem tem medo de Machado de Assis, apresenta no

editorial uma sugestão que indicaria caminhos para uma desmistificação do texto

machadiano. Destaca-se o potencial instigador daquele texto que, apesar de contar com

uma extensa fortuna crítica, continua a provocar novos e interessantes estudos, por parte

de pesquisadores brasileiros e estrangeiros. Vale ressaltar que Machado de Assis é causa

de inquietação do profissional de Letras ligado à Educação, que constantemente se

interroga até que ponto o interesse sobre o escritor encontraria eco também no jovem

Page 78: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

78

leitor em formação. Questões como o papel da obra para o leitor em formação e o que

deve ser lido de e sobre Machado de Assis são aspectos motivadores das discussões

desta edição. Dois textos chamam atenção: “Por um Machado de Assis sem

medalhinhas”, de Marisa Lajolo, e “Como ler Machado de Assis”, de Valentim Facioli.

No texto “Por um Machado de Assis sem medalhinhas”, entrevista concedida

por Marisa Lajolo a Proleitura, n.21 (2008), a pesquisadora confessa-se leitora de

Machado de Assis, considerando-o um grande escritor, indispensável à bagagem de

qualquer leitor, especializado ou não. Ela contesta o endeusamento feito ao escritor e,

neste sentido, não compartilha com a política de exclusão do cânone, pois não acredita

na qualidade de um texto literário em detrimento de outros e, sim, no resultado de um

tipo de leitura.

Para Lajolo, o processo de promoção, de avivamento/aceitabilidade de uma obra

literária/escritor se dá processualmente, a partir de uma leitura espontânea, prazerosa,

que evolua para leituras outras, endossadas pela escola. Tais práticas devem contar com

a mediação de professores entusiasmados e que venham a contagiar os alunos. Ela

observa que a acessibilidade ao texto machadiano ocorre por várias vias, apesar da crise

que se torna vultosa na era da comunicação visual. Sobre a recepção da produção

machadiana, ela ressalta:

Machado é, por assim dizer, uma grife de leitura. O dele é um dos

nomes que primeiro ocorre à consciência quando se pensa em leitura,

em aperfeiçoamento cultural. Cai em concursos e em vestibulares, é

mencionado em situações culturalmente marcadas, é fonte de citações

eruditas [...] ele é um bom negócio para a indústria produtora de

objetos de leitura. [...] O que torna Machado mais vendável, mas não

necessariamente mais legível [...] creio que esse desencontro se

transforma num desafio para a escola mas sua aura, transbordando

dela, torna-o um produto sedutor para um ponto de venda tão sem

pedigree cultural quanto uma banca de jornal. (LAJOLO, 2008, p.4).

Já Valentim Facioli, no artigo “Como ler Machado de Assis”, busca situar o que

é ler este autor quase um século e meio depois da época da elaboração e publicação de

seus textos. Tido como escritor antigo e de texto difícil, a não visitação da obra

machadiana se deve também à crise de leitura, apesar da exagerada mercantilização do

livro. Não se pode esquecer de que a considerada pequena recepção do texto literário

Page 79: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

79

estaria relacionada com sua substituição “[...] pela assepsia sórdida do lixo da indústria

cultural e pelas facilidades da imagem visual e eletrônica” (FACIOLI, 2008, p.4).

O referido estudioso aponta para a estrutura autoritária do aparelho escolar e da

própria sala de aula como elementos que dificultam a leitura dos textos de Machado de

Assis, já que a escolha raramente considera o ponto de vista do aluno. Acima de tudo, a

seleção é apoiada no fato de se tratar de autor consagrado e visto como “portador de

valores positivos e universais”. Tudo conflui para que o texto machadiano seja rotulado

como “leitura obrigatória”. Neste sistema de institucionalização conservadora, o texto

torna-se mero instrumento ideológico de reprodução de autoritarismo que se emparelha

com a prática alienante da indústria cultural, no concernente ao reducionismo de uma

leitura rasa e unilateral. Passa então a dizer o que já circula nas relações sociais, nos

meios de comunicação de massa, na própria sala de aula e em autores e meios cuja

intenção é torná-lo fácil e agradável, nada trazendo de desafiante para o leitor

contemporâneo.

Na opinião desse crítico, convém salvar Machado de Assis deste massacre

perpetrado pelo aparelho escolar, pela indústria cultural (TV, cinema), pelas edições

comerciais descuidadas, pela crítica incompetente, pelas médias dos livros didáticos. A

resolução desta problemática repousa na indicação de alguns caminhos para uma leitura

interessante com um progressivo esclarecimento das estratégias construtivas textuais

que engendram a força, a vitalidade e a permanência/atualidade da obra machadiana. Ou

seja, é necessário munir o leitor de elementos que possibilitem um encontro específico e

mais eficiente com o texto machadiano que se livraria de apreciações institucionalizadas

e predeterminadas.

A Nova Escola, publicação da Editora Abril, que circula com o propósito de

socializar modernas práticas pedagógicas em sala de aula, apresentou, na edição 215 de

setembro de 2008, sua parcela de exaltação do texto machadiano.

Com a reportagem de capa “Machado para todas as idades”, a Revista acena

com a possibilidade de tornar os textos machadianos – complexos, questionadores e

ricos em ironia – acessíveis para o leitor desde o 3º ano do ensino fundamental. Esta

discussão é detalhada na reportagem “Machado, um clássico para todos”, na qual o

jornalista Anderson Moço explora a necessidade de ler Machado/clássicos,

fundamentado em argumentos de Ítalo Calvino e nos pontos de vista da escritora Ana

Page 80: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

80

Maria Machado e da especialista Heloisa Celli Ramos, oficineira de leitura da Fundação

Victor Civita.

O autor da referida reportagem considera equivocada a justificativa dos

professores segundo a qual o texto machadiano seria difícil, complexo e extremamente

refinado. Em posição oposta, assim ele se coloca:

É por meio de clássicos, como é o caso de Machado de Assis, que

crianças e adolescentes passam a compartilhar referenciais

lingüísticos, artísticos e culturais que permitem a eles estabelecerem

vínculos com gerações anteriores e se integrar à cultura.

[...]

A qualidade narrativa, a complexidade com que os conflitos são nela

expostos, a força das idéias que transmitam e os questionamentos que

suscitam dão esse status a muito dos escritos de Machado. O autor se

destaca por unir o erudito ao popular de forma única. Ele revolucionou

a cultura nacional. Mulato, gago e epilético, em pleno período

escravocrata, se tornou admirado e respeitado nos mais nobres salões

da corte, contando histórias que ajudaram a moldar a noção que temos

do que é ser brasileiro [...]. Se atualmente é considerado erudito, um

medalhão inalcançável, em sua época era popular. (MOÇO, 2008, p.

47; 48).

Para o crítico, o grande desafio é saber o modo de trabalhar o texto machadiano

em sala de aula, respeitando a fase do desenvolvimento do aluno. Para isso é de grande

valia outros meios de apresentação da obra de Machado, como as adaptações

cinematográficas que se tornam suporte para a leitura do texto literário. Contudo, é

imprescindível que o professor seja um leitor apaixonado, entusiasmado e muito bem

preparado e veja o leitor como copartícipe na construção do sentido do texto. Desta

forma, assim ele se expressa:

Os estudantes se encantam pelo amor que o mestre sente pelas

histórias e isso ajuda a mostrar que a leitura não é uma atividade

mecânica. Muito pelo contrário. “A participação do leitor na

construção do sentido do que está escrito é fundamental”, ressalta

Heloisa. Para Helena Weisz [...] o bom autor sempre deixa fios soltos.

“Cabe ao leitor uni-los, fazendo perguntas e criando respostas.” A

função do professor é dar meios para que essas pistas sejam

descobertas e, com elas, surjam significados. (MOÇO, 2008, p.48-49).

Page 81: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

81

Nesse breve levantamento de leituras críticas sobre a produção de Machado de

Assis, textos especializadas pela academia ou acessível pelas revistas, fica patente a

variabilidade de tratamento interpretativo que a obra extremamente rica em significado

permite. Torna-se evidente a necessidade de um pacto de leitura entre leitores e obra

para o desvendamento desta produção literária. Neste sentido, os primeiros buscariam,

por meio de arsenais teóricos distintos, estabelecer um diálogo possível e a segunda

concederia estratégias específicas de sedução na dicotomia cognição/sensibilidade que

provoca a revelação não só do texto fechado/obra, mas do texto aberto/homem/mundo.

Enfim, é um convite sem medo a um Machado mostrado a partir de várias

nuanças, hábil contador de histórias e construtor de envolventes estratégias narrativas,

de escrita elegante e que abre espaços diversos para o leitor, num movimento constante

de contar, encantar e desencantar, sempre a mostrar a natureza do homem em suas

variadas possibilidades.

2.1.1- A literatura machadiana: entre contos

Da vasta produção machadiana, o conto recebe um tratamento estilístico que o

torna uma experiência ímpar de leitura em todos os tempos. Juntamente com a crônica,

tornou-se um espaço de experimentações do escritor, até o encontro com um estilo

ficcional inconfundível, que se expande nos romances a partir de 1880, conforme

pontua Sonia Brayner (1979, p.65):

Se a crônica permite a Machado um exercício variado e constante do

discurso na perspectiva de um narrador (no caso, reconhecidamente o

autor, que lhe imprime as características próprias do seu relatar), o

conto lhe dará a oportunidade de explorar outros ângulos e categorias

importantes nesta sua renovação da arte literária.

No ensaio de 1873, intitulado “Instinto de nacionalidade” o próprio Machado de

Assis situa o ponto de vista acerca dessa produção, caracterizando-a como “[...] gênero

difícil, a despeito da aparente facilidade, e [...] essa mesma aparência lhe faz mal,

afastando-se dele os escritores, e não dando-lhe, [...], o público toda a atenção de que

ele é muitas vezes credor” (ASSIS, 1997, p. 24)

Para Machado de Assis, muito mais que um laboratório de experimentação

literária, o conto delineia o contato com um gênero que conquistará mais espaço e

Page 82: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

82

significação na modernidade. E para contribuir com o alcance desse propósito, Machado

de Assis destaca a necessidade da qualidade, pois se trata de um texto curto que não

deve ser enfadonho, ao contrário, deve se apresentar como sedutor e inquietante.

No encalço da experimentação, conforme Brayner (1981), as primeiras

recriações machadianas, publicadas até 1880 não vão constituir as produções tidas como

grandiosas, verdadeiras referências do gênero (Contos Fluminenses, de 1870, e

Histórias da meia-noite, de 1873). Tais produções constituem-se como narrativas

longas e subdivididas em partes, aproximando-se das novelas, gênero com bastante

aceitação popular. Não por acaso, constroem-se enredos carregados de teatralidade

romântica, com tramas amorosas convencionalizadas em que se entrançam histórias de

namoros, encontros, desencontros, noivados atados e desatados, adultérios possíveis,

enfim, envolvimentos condenados pelo olhar do Machado de Assis conservador e

moralista. Procede-se à ilustração de tipos sociais e perfis recorrentes na sociedade

aristocrático-burguesa da segunda metade do século XIX.

Para a pesquisadora (1981, p.9), nessas primeiras produções, Machado “[...] é o

retratista da sociedade carioca na segunda metade do século XIX [pois] a população de

seus contos é retirada de uma classe média urbana surpreendida na construção de sua

imagem”. Nesta, fica patente a desatinada, vazia e pretensiosa imitação estrangeira,

ridicularizada com o bom humor de um narrador sempre a conduzir a atenção do leitor.

Na produção inicial, nota-se a tendência de adesão a estratégias narrativas que

visam convidar o leitor a se envolver com a ideia de presentificação do ato de narrar,

isto é, o leitor é induzido a integrar a história no momento em que ele, como expectador,

passa a conhecer os fatos e com eles começa a interagir. Retomando-se as estratégias

anunciadas, delineiam-se aqui os três métodos: o dramático, o amplo uso do diálogo e o

ponto de vista em primeira pessoa.

Nesse momento, segundo Brayner (1981, p.11), uma atenção especial será

dispensada ao receptor, agora despertado e atiçado, pois “[...] ativar o leitor não

permitindo sua passividade é uma tarefa insistente na pretensão de trazer à tona um

questionamento central”, isto é, o leitor, mais do que nunca, se verá envolvido nas

indagações existenciais da trama. Esta estratégia que se identifica com a presença

determinante de nuanças, ganhará mais consistência e mais propriedade na medida em

que a maturação da escrita também se for configurando.

Page 83: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

83

Alfredo Bosi (2003), no ensaio “A máscara e a fenda”, elabora um estudo

detalhado acerca da ideologia implícita no texto machadiano, o que se torna perceptível

já nestas produções iniciais. Para ele, Machado é o contista do mascaramento social:

Machado foi também um escritor afeito às práticas de estilo de

revistas familiares do tempo, principalmente nas décadas de 1860 e

70. O jovem contista exercia-se na convenção estilística das leitoras

de folhetins, em que os chavões idealizantes mascaravam uma conduta

de classe perfeitamente utilitária. (BOSI, 2003, p.75).

Segundo esse pesquisador, nos Contos fluminenses e Histórias da meia-noite,

“[...] a maior angústia oculta ou patente de certas personagens é determinada pelo

horizonte do status; horizonte que ora se aproxima, ora se furta à mira do sujeito que

vive uma condição fundamental de carência” (BOSI, 2003, p.75). O suprimento dela

ocorreria pela obtenção de um patrimônio em herança de parente próximo ou um

protetor ou pelo matrimônio com um parceiro mais abonado. Em ambos os casos, torna-

se evidente a máscara no desejante, a qual se concretizaria nas ações com vistas à

obtenção do benefício, apresentando-se as relações posteriores não raramente marcadas

pela ingratidão ou traição.

Esse mascaramento social identificado com o propósito de ascensão é retratado

nos contos e em alguns romances desta fase. O desejo de alçar posições tidas como

superiores costuma ser rotulado como um traço autobiográfico, sendo o escritor

comumente olhado como alguém que realiza a migração de classe social, na leitura

psicossocial empreendida por Lúcia Miguel Pereira. Com esse perfil, Bosi não vê

Machado como um romântico convicto, mas, sobretudo, como um autor que nutre um

gosto “sapiencial” pela fábula, construindo nas entrelinhas uma lição para o leitor. A

necessidade constante da máscara é uma relativa novidade para a ficção literária da

época, o que ocorre, talvez por intuição. A prática articulada com uma rendição franca à

consciência e à crítica só ocorrerá posteriormente, no momento do amadurecimento de

sua obra.

John Gledson, em “O machete e o violoncelo”, ensaio que compõe a obra Por

um novo Machado de Assis (2006), observa que a produção de contos de Machado de

Assis fez parte de toda a vida do escritor; desde o início, em 1858, até o ano anterior de

sua morte, 1907. O gênero é considerado espaço de constantes reelaborações de estilo e

de temáticas. Apesar de não gozar da mesma popularidade dos romances, é, conforme o

Page 84: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

84

crítico, o gênero mais condizente com o gênio do escritor. Segundo Gledson (2006,

p.35):

Machado gosta muito de anedotas, e de focalizar detalhes

aparentemente triviais, mas que lançam uma luz inesperada sobre

assuntos “importantes”; orgulha-se até de sua miopia. Gosta de

autores que contam fábulas curtas, com uma moralidade irônica –

Esopo, La Fontaine, Swift –, ou que escolhe gêneros mistos, metade

ensaio, metade ficção, como Charles Lamb ou Tomas Carlyle. E os

próprios romances não seguem as convenções do realismo do século

XIX, contendo episódios que em si poderiam ser contos [...].

Para Gledson, os contos produzidos até 1880 se destacam mais pela

compreensão da evolução estilística do contista que pela qualidade. Ele observa que a

circulação de O Jornal das Famílias, veículo em que foi publicada a maioria dos contos

desta fase, tornou-se determinante para o tema e para a forma do texto nesse período.

Eram narrativas mais longas que a média, publicadas em fascículos, destinadas a um

público feminino de classe média, e abordavam temas como o amor e o casamento. Vale

ressaltar que a mulher, sua vida, desamores e frustrações continuariam no leque de

temáticas que se ampliariam, merecendo tratamento crítico.

No final da década de 70 do século XIX, vivendo a “crise dos quarenta anos”, o

autor já apresentava indícios de preocupação com a configuração da própria obra, no

que tange à atitude, ao tom e ao gênero a adotar. É o momento em que se aprofundam o

humor e a ironia chocantes, como se cada conto passasse a exibir uma forma própria:

[...] é que o poder de prosa de Machado ganha uma intensidade e uma

confiança inéditas. É como se, de fato, tivesse dominado uma série de

efeitos novos, uma música nova. Temos até a impressão de que esse

poder se enquadra menos sem limites de gênero [...] É como se ele

tivesse que criar uma forma própria para cada conto: diálogo, pastiche,

sátira, contos longos, médios, curtos. A prosa também se torna

multidimensional, em grande parte por conta do humor. (GLEDSON,

2006, p.47).

Assim, para os leitores especializados, os melhores contos de Machado de Assis

são os publicados nas coletâneas que, a partir de 1882, foram reunidas nas antologias

Papéis Avulsos (1882), Histórias sem data (1884), Várias Histórias (1897), Páginas

Recolhidas (1899) e Relíquias da Casa Velha (1906).

Brayner vê a elaboração dos contos dessa fase como demonstração do alto nível

de experimentação de Machado de Assis, o qual acredita na autonomia e nas

Page 85: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

85

possibilidades estéticas, retratadas na variedade de estratégias narrativas. Através delas

se constatam a mescla de tipos e hábitos socioculturais do Rio de Janeiro da época e

também as generalizações de conceitos e observações voltados para a natureza humana.

Enfim, tais textos desembocam no teatro do mundo “[...] no qual os homens passeiam

seus vícios mais do que suas possíveis virtudes” (BRAYNER, 2006, p.12).

Nessas produções, há uma tendência ao conto relato de observação e de caráter

psicológico, cuja personagem central narra as próprias percepções e justifica seus

comportamentos, ou ocorre a onisciência do ponto de vista que permite a perscrutação

dos recantos da alma humana por parte do Outro. Desenha-se um narrador que capta as

mínimas variações e se mostra sempre atento às transformações dos valores da

consciência.

Brayner percebe, nesse momento da produção machadiana, não só um traço

distintivo entre o ser e o parecer, como também o atrelamento do homem à opinião

como tema geral da relatividade, identificada com a presença da dupla face. É

perceptível a estratégia do mascaramento social nas atitudes convencionalizadas que

ostentam a identidade e a diferença em um mesmo indivíduo, experiência esta tomada

como faceta da mutabilidade interna e contraditória do ser humano.

Frente ao amadurecimento da escrita machadiana, Bosi continua a perceber o

mascaramento social como tema da maturação estilística, que se inscreve na forma

sinuosa dos contos, e que acaba por esconder a contradição entre a aparência e a

essência, entre a máscara e o desejo, entre o feito e o dito. Mesmo reconhecendo esse

antagonismo, o escritor parece conformar-se com a capitulação do sujeito à aparência

dominante na sociedade.

São as produções escritas a partir dos quarenta anos, rascunhos de teorias que

revelam o sentido das relações sociais mais comuns que atingem a estrutura profunda

das instituições. Denominado por Bosi de conto-teoria, por apresentar, através das

marcas de humor, a submissão do ser humano, “alma frouxa e veleitária” às formas

instituídas, aquelas narrativas têm como verdade fundante a relação de dependência do

mundo interior para com a conveniência do mais forte.

Essa postura se explica muito bem numa sociedade marcada pela desigualdade: a

necessidade de se proteger e vencer na vida – mola universal – só se torna saciada pela

alienação do sujeito ante a aparência dominante. Tece-se, no texto, uma crítica

silenciosa que tem como alvo o processo, devendo o leitor manter um olhar astuto para

Page 86: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

86

percebê-la. São exemplos marcantes os contos “O alienista”, “A sereníssima república”,

“O segredo de Bonzo”, “O espelho”. Através da produção machadiana, Bosi (2003,

p.104) vê o homem com uma certeza:

As diferenças entre as pessoas, embora sensíveis a olho nu, afundam

raízes no solo comum dos instintos, que quer o prazer, e da sociedade,

que persegue o interesse. E prazer e interesse responderiam à

pergunta: o que está atrás da máscara? De qualquer modo, são tão

matizados os graus e os momentos do mascaramento e tão várias, se

não infinitas, as combinações tecidas pelo acaso, que o modo próprio

de ser de cada pessoa parecerá ainda e sempre um enigma.

E assim, nos contos-retratos como “D. Benedita”, “Verba Testamentária”,

“Cantigas de Esponsais”, Machado desperta no leitor a certeza de que “[...] só há

consistência no desempenho do papel social: aquém da cena pública a alma humana é

dúbia e veleitária” (BOSI, 2003, p.102), o que confirma a inconsistência do sujeito, que

experimenta a convivência da singularidade com o universal dos interesses e instintos.

Muito mais que um laboratório para aperfeiçoamento do estilo, Antonio Candido

(2002), vê na obra machadiana, especialmente nos contos, traços precursores de

tendências da contemporaneidade: discussões sobre identidade, fragilidades humanas,

mundo das aparências, tênues limites entre a realidade e a fantasia, processos de

manipulação e de uso do homem pelo homem

Paul Dixon, pesquisador norte-americano, em Os contos de Machado de Assis-

mais do que sonha a filosofia (1992), apresenta um trabalho mais organizado sobre os

contos do primeiro contista brasileiro, apontando para a necessidade de estudos deste

gênero literário, tão relegado ao esquecimento. O crítico justifica que tal ausência é

compreendida “[...] porque em muitos aspectos os contos machadianos são uma

glorificação do estranho e do inesperado – das singulares ocorrências, dos lapsos e das

excursões milagrosas [sendo que] [...] este reino maravilhoso está dentro de nós”

(DIXON, 1992, p.10).

O estudo de Dixon contempla as peças literárias que fazem parte do conjunto de

contos produzidos a partir de 1880 nos quais o autor posiciona-se contrariamente não só

ao realismo documental, mas também ao objetivismo e ao positivismo, princípios

cientificistas que dominavam o ambiente intelectual da época. O crítico norte-americano

(1992, p.14) observa que “[...] o discurso machadiano satirizará o pensamento

Page 87: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

87

enciclopédico, destruirá as hierarquias, glorificará a alinearidade e o subjetivismo, e

proclamará as verdades relativas”.

Numa tentativa de ironizar o positivismo, o pesquisador nos indica “leis” e

padrões de interpretação dos contos machadianos. De imediato, ele afirma que uma

tentativa de estabelecimento de “leis” para interpretação da obra machadiana –

lembrança irônica dos postulados e paradigmas do positivismo – se torna inconcebível,

visto que Machado de Assis opera, na verdade com “antileis” e, neste sentido, a única

“lei” vigente em sua ficção é a dos “caminhos oblíquos” da ambiguidade.

Entretanto essas leituras críticas, lideradas por especialistas do mundo

acadêmico – Brayner, Bosi, Candido, Paul Dixon, Gledson e outros aqui não

trabalhados – tornam-se não apreciáveis por todo leitor. Ou por serem construídas numa

linguagem empolada, voltada principalmente para o mundo acadêmico, ou por só

reverberarem entre aqueles que abraçam as filiações teóricas dos especialistas. O fato é

que possibilidades de desvendamento dos contos não são exploradas como merecem.

Algumas revistas, uma variante mais acessível pela linguagem, também

apresentam leituras críticas dos contos nos quais são possíveis leituras mais perspicazes

da sociedade, além de possibilitarem mergulhos consistentes no caráter polivalente da

obra do escritor. Vicente Luís de Castro Pereira (s/d) observa:

Os contos papéis avulsos (1882) promovem uma revolução na

narrativa brasileira comparável à operada pelo romance Memórias

Póstumas de Brás Cubas (1881). Após os livros Contos Fluminenses

(1870) e Histórias da Meia-Noite (1873), o conto machadiano atinge o

grau máximo da sátira dos costumes, do desvelamento de aparências,

da crua exposição dos vínculos de exploração entre os homens e da

denúncia da precariedade dos comportamentos individuais que

espelham a hipocrisia da própria coletividade.

Na Nova Escola, Anderson Moço (2008, p.50) expressa que a iniciação do

pequeno leitor da contemporaneidade nos textos machadianos deve se dá pelos contos,

observando peculiaridades próprias da idade, como descreve:

Nos ciclos iniciais, o ideal é começar a trabalhar Machado pelos

contos, compreensíveis por leitores de qualquer idade e com história

bem próxima da realidade infantil. “Para adquirir o gosto pela leitura é

fundamental que a escolha dos títulos seja adequada à fase do

desenvolvimento do aluno” recomenda Cláudio Bazzoni, selecionador

do Prêmio Victor Civita educador nota 10. O que não quer dizer que

Page 88: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

88

devam ser apresentados exemplos simples. É saudável haver um certo

estranhamento e até um descontentamento com as leituras, pois um

pouco de dificuldade ajuda a formar a capacidade leitora. “Ao longo

do ano, opções mais fáceis são intercaladas às mais refinadas para que

cada um forme sua opinião sobre as histórias e com isso se posicione

criticamente frente a elas”, recomenda Ceccantini, da Unesp.

Percebe-se, nos depoimentos, o destaque tanto para o estilo como para o efeito

que este provoca nas mais variadas temáticas e leituras dos contos. No texto

machadiano, mesclam-se o cognoscível e a emotividade, sem deixar de provocar

alguma forma de crítica no leitor. Neste sentido, Antonio Candido (2004, p.32) observa:

[...] não procuremos na sua obra uma coleção de apólogos nem uma

galeria de tipos singulares. Procuremos as situações ficcionais que ele

inventou. Tanto aquelas onde os destinos e acontecimentos se

organizam segundo uma espécie de encantamento gratuito, quanto as

outras, ricas de significado em sua aparente simplicidade,

manifestando com uma enganadora neutralidade de tom, os conflitos

essenciais do homem consigo mesmo, com os outros homens, com as

classes e os grupos. A visão resultante é poderosa [...].

Aqui, Candido acentua a necessidade de o leitor não se perder com o

afastamento que os excessos das teorias acadêmicas podem promover devido as suas

abordagens sofisticadas em relação ao texto machadiano. A condição primaz que o

referido pesquisador pontua como determinante para melhor se chegar à obra

machadiana, reside não numa leitura pedante e tecnicizada, mas naquela em que o

íntimo e as percepções do leitor possam dar vazão a tudo que esse texto desperta.

2.1.2- Um olhar sobre “A Causa secreta”

O conto “A causa secreta” tem foco específico por ser objeto de apreciação na

atividade investigativa realizada com um grupo de leitores. Tal escolha procedeu por se

tratar de um texto que circula nos manuais didáticos com muita frequência e ser

extremamente instigante muito mais pelo não dito. Torna-se importante continuar

situando os olhares provenientes da crítica acadêmica e das revistas de cunho didático

em relação a este conto.

Page 89: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

89

“A Causa secreta” faz parte de Várias histórias, coletânea publicada em 1897.

Há certo amadurecimento do escritor diante do gênero literário, o que leva Gledson

(2006, p.68) a afirmar sobre este momento da escrita machadiana: “[...] não há dúvida

de que a tensão da prosa sofre um relaxamento. Um indício curioso, quer-me parecer, é

que esses contos quase não precisam de notas. Aqui tudo está claro como água”.

Essa coletânea é uma das mais volumosas como o próprio Machado de Assis

(1964, p.00) adverte na Apresentação, justificando que “[...] o tamanho não é o que faz

mal a este gênero de histórias, é naturalmente a qualidade”. Nessa antologia,

encontramos contos renomados e muito referendados, que também integram os livros

didáticos. São eles: “A Cartomante”, “Entre santos”, “Uns Braços”, “Um Homem

célebre”, “A Desejada das gentes”, “A Causa secreta”, “Trio em lá menor”, “O

enfermeiro”, “O Diplomático”, “Mariana”, “Conto da escola”, “Um apólogo”, “D.

Paula”, “Viver”.

O conto “A Causa Secreta” traz a história de Fortunato, empresário de quarenta

anos, casado com Maria Luiza, mulher frágil e discreta. O empresário desenvolve uma

relação de amizade e posteriormente vem a compor uma sociedade numa casa de saúde

com Garcia, jovem recém-formado em Medicina. O primeiro encontro de Garcia e

Fortunato ocorre quando o empresário acompanha, até a pensão onde mora o médico,

um homem atacado por capoeiras. Travam-se contatos de que resulta a sociedade na

clínica. Garcia vem a se apaixonar pela esposa do sócio e os contatos permanentes lhe

possibilitam perceber o comportamento estranho do esposo de sua amada.

Qual seria a causa secreta? A princípio, poderia ser o comportamento sádico de

Fortunato, o que se revela no prazer com que ele vê o sofrimento do outro – no caso, o

homem da pensão atacado pelos desordeiros. O narrador mostra também a satisfação de

Fortunato ao desferir chutes em animais nas ruas, bem como há certo gozo na sua

excessiva dedicação aos doentes da clínica. Há prazer mórbido nas experiências de

anatomia e fisiologia realizadas com animais na casa de saúde. É o que se observa

claramente na tortura perpetrada contra um rato na biblioteca e, por fim, o inconfundível

e excitante prazer ante a dor de Garcia diante da amada Maria Luiza morta.

Mas será essa a causa secreta do conto, investigação que o próprio título do texto

nos instiga realizar? Será que existe apenas uma causa secreta? Por que o interesse de

Garcia para com Fortunato, o que se observa mesmo antes de o médico conhecê-lo

pessoalmente e com ele passar a conviver, a ponto de já observá-lo demoradamente

Page 90: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

90

quando o via por acaso? Por que o silêncio de Maria Luiza, o que aparece como indício

do terror que o marido lhe imprime? Como se explica o desconhecimento da esposa das

ações de bondade que todos viam nos atos de Fortunato?

Vale retomar uma citação de Afrânio Coutinho (1990, p.126) sobre Machado de

Assis, escritor que qualifica a desconfiança de modo muito próprio:

Para ele os homens só são capazes de vícios, ambições, sentimentos

contraditórios, perversidades, ingratidões, inconstância, e, na sua obra,

assistimos à procissão de todos os vícios e defeitos morais, más

qualidades e pecados, que inteiramente dominam os homens em sua

vida individual e social. Há sempre uma causa secreta, que é preciso

pesquisar, nos atos humanos, e esse é um trabalho constante do

romancista.

Deve-se acrescentar que Machado transfere também para o leitor a pesquisa e a

investigação dos atos humanos, quando o instiga a destrinchar o simples que não é tão

simples. E, nesta direção, é como se ele abrisse um grande leque de possibilidades de

leituras da condição humana.

Gledson (2006) vê em Machado uma tendência a construir personagens dotados

de satisfações sádicas diante da dor, aí disfarçadas pela obstinação científica ou pela

suposta generosidade do ato de caridade. O prazer de Fortunato diante da dor alheia

assemelha-se ao prazer estético vivenciado por uma pessoa defronte de um objeto

artístico. Assim, o melodrama que a personagem assiste “cozido a facadas”, a tortura do

rato, entre outros, provocam-lhe um prazer quieto e profundo, similar ao que a audição

de uma música ou a visão de uma bela estátua daria a um apreciador das artes. Para o

pesquisador, isso também pode ser traduzido como a desconfiança permanente em

relação à ciência e à objetividade, que podem camuflar motivos bastante sórdidos.

Candido (2004) vê em “A Causa Secreta” um paradigma da relação social

construída a partir de normas e padrões que disfarçam e escondem a ação devoradora do

homem pelo próprio homem. Assim se expressa o crítico (2004, p.31):

[...] é interessante comparar a anormalidade essencial de Fortunato

[...] com a sua perfeita normalidade social de proprietário abastado e

sóbrio, que vive de rendas e do respeito coletivo. O senso machadiano

dos sigilos da alma se articula em muitos casos com a compreensão

igualmente profunda das estruturas sociais.

Page 91: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

91

Para Dixon (1992), o olhar do comportamento anormal não está apenas em

Fortunato, mas também em Garcia. O crítico os vê como duplos que existem numa

condição de implicação mútua, pois “[...] Garcia possui as mesmas qualidades de

Fortunato; a maneira com que suas qualidades são manifestadas é que aparece num

nível mais aceito para a sociedade. Fortunato disseca os corpos e Garcia disseca as

almas [...]” (DIXON, 1992, p.62). A descrição da cena no início da narrativa – os três

personagens em posições estáticas – juntamente com o título, de certa forma, já

indiciam a ambiguidade com que se apresentarão não só Fortunato, mas também Garcia

e Luiza.

Para Ariadne Olimpo (s/d) contos machadianos como A cartomante e A causa

secreta “[...] são exemplos de como os valores da consciência humana podem

modificar-se segundo seus interesses.” ( Discutindo Literatura Especial, p.43).

Em A causa secreta ocorre a relativização de valores pela consciência em vários

momentos, segundo Ariadne. Há a mobilização da consciência entre a ética e o interesse

quando Garcia, que já observava a fragilidade da saúde de Maria Luisa, converte a

possibilidade de amor por ela em certeza e passa a acompanhá-la mais de perto. Outro

momento ocorre na tortura do rato: mesmo com repugnância diante do ato executado

por Fortunato, o jovem médico sente prazer em observá-lo, mantendo-se como

espectador à distância para alimentar a sua curiosidade.

Trata-se de um conto inquietante, que não se revela como um todo, apesar da

aparente simplicidade. Há o convite a um mergulho na essência dos fatos e das

personagens, o que nos possibilitaria uma sondagem da natureza humana.

O escritor Machado de Assis convoca a participação do leitor que se aventura na

leitura do conto, dando-lhe uma posição ativa, mediante os questionamentos

provocados, as dúvidas suscitadas e as contradições promovidas. E faz essa convocação

não por meio de textos de leituras correntes, mas através de narrativas com estruturas

sofisticadas, o que desafia o leitor e o enreda nas arestas do próprio texto.

Ler Machado de Assis não representa o encontro com uma suposta mensagem

do texto ou com as conformações aderidas a filiações teóricas; trata-se, na verdade, de

um mergulho na condição do homem no tempo-espaço da sua trajetória. Entender esse

texto em diálogo constante requer a existência de um leitor habilidoso. Até que ponto os

leitores do século XXI, não familiarizados com teorias que provocam e desencadeiam

discussões sofisticadas, tão próprias da academia, podem também ter acesso ao

Page 92: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

92

manancial do texto machadiano? As produções das revistas contemporâneas, de

linguagem mais direta, dão conta de expor tudo que estes textos podem oferecer?

É por meio do contato direto com a obra, o que vale dizer é por intermédio do

exercício da autonomia de leitura que o leitor consegue um encontro mais fecundo com

o texto machadiano. Na contemporaneidade, esse encontro se concretiza também pela

ação do diálogo da obra literária com as releituras adaptadas e empreendidas pelo

cinema, TV e quadrinhos.

Torna-se desafiador compreender como as quadrinizações trabalham o texto

machadiano, para muitos apenas possibilidade de maior acesso a obra machadiana, para

outros apenas mais um produto cultural de consumo rentável. E ainda: investigar como

o leitor reage ante estas novas possibilidades de texto e como interage com elas.

2.2. A literatura machadiana: entre requadros

A literatura, como também outras artes, na contemporaneidade vive num

momento no qual produtos culturais distintos dialogam, o que faz surgir novos espaços

de transmutação de signos, que vislumbra atingir novos apreciadores. A música, o

cinema, os quadrinhos, a minissérie, a novela, o desenho animado são artes/linguagens

que mais aderem a esta inter-relação de produtos culturais híbridos, típica do mundo

globalizado, no qual as culturas até para subsistir buscam romper fronteiras.

Dentro da perspectiva da literatura em quadrinhos como objeto cultural híbrido,

é preponderante averiguar de que forma se processa a tradução do texto literário

machadiano com sua linguagem específica e ambígua, aberta a diversas leituras, para

esta outra linguagem – dos quadrinhos.

É importante salientar que os textos que se entrecruzam para a composição da

literatura em quadrinho têm papel salutar no surgimento deste objeto cultural. São os

roteiristas e ilustradores, na condição de leitores com olhares mais direcionados à

recriação, quem seleciona e ressignifica o texto base em linguagem de quadrinhos,

produto da percepção e significação, isto é, da re-elaboração do texto literário.

A literatura machadiana foi alvo de diferentes olhares e tratamentos estilísticos

nas quadrinizações que se encontram no mercado. Os romances e contos aguçaram a

imaginação e a criatividade de vários ilustradores que, em parceria com roteiristas

Page 93: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

93

(quando a dupla função é exercida por pessoas distintas), apresentaram leituras que

muito reverberaram o potencial da escrita machadiana.

Dentre os variados trabalhos destacam-se as duas traduções do romance que

definitivamente instauraram o estilo de escrita de Machado de Assis – Memórias

Póstumas de Brás Cubas de 1881. Trata-se da história do burguês Brás Cubas, que teve

uma vida ociosa, aos sabores de falidos projetos políticos, profissionais e amorosos,

fatos estes contados de forma irônica e sarcástica pelo próprio personagem após sua

morte, do além-vida. O livro é ressignificado tanto pela Editora Escala Educacional em

2008 e pela Desiderata em 2010.

A tradução da Escala Educacional, que recebe o mesmo título da obra, transmuta

as aproximadamente 200 páginas do texto-base em um texto quadrinístico de quarenta

páginas com roteiro e ilustração de Sebastião Seabra.

Figura 44: Memórias Póstumas Figura 45: Memórias Póstumas Figura 46: Memórias Póstumas

de Brás Cubas de Brás Cubas de Brás Cubas

Escala Educacional, capa 1 Escala Educacional, pág. 1 Escala Educacional, pág. 5

A capa da quadrinização (figura 44) destaca uma série de requadros que

apresentam personagens de destaque (Quincas Borba, Marcela e Brás Cubas) e uma

cena da história (reencontro de Brás e Quincas já adultos). Observa-se que só traz a

inscrição do nome do autor da obra literária. Na primeira página (figura 45),

encontram-se os mesmos requadros (das personagens) na parte superior e as cenas do

Page 94: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

94

pai levando Brás da casa de Marcela à força, a solidão da viagem para Europa e

novamente o encontro já retratado na capa. No centro, a especificação do trabalho, o

título da história, o nome do autor e por fim do artista responsável pelo trabalho,

Sebastião Seabra. A não-identificação do quadrinista na capa 1 pode ser vista como a

supremacia da obra literária no texto híbrido.

Tal percepção se fortalece quando se parte para a leitura da história, na qual a

roteirização preserva o texto-base que se apresenta mais sintético nas legendas e falas. O

início da história traz a marca da liberdade da recriação oferecida pelo signo estético: o

espírito de Brás Cubas desencarna no caixão, presencia seu velório e sepultamento, para

em seguida rememorar sua vida (figura 46).

O personagem-narrador alterna o lugar de onde conta: ora do além-vida, lugar

representado por requadros vazios em uma única cor, geralmente com a personagem

em perspectiva próxima, em close-up (fig. 47 e 49) ou meio-corpo (48) , dirigindo o

olhar para um suposto ouvinte como quem busca diálogo; ou voltando à cena do

passado, dela fazendo parte como espectro e indicando os acontecimentos como analista

cônscio de seus comentários (fig.50, 51 e 52).

Figura 47: Memórias Póstumas Figura 48: Memórias Póstumas Figura 49: Memórias Póstumas

de Brás Cubas de Brás Cubas de Brás Cubas

Escala Educacional,pág. 13 Escala Educacional, pág. 36 Escala Educacional, pág. 36

Page 95: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

95

Figura 50: Memórias Póstumas Figura 51: Memórias Póstumas Figura 52: Memórias Póstumas

de Brás Cubas de Brás Cubas de Brás Cubas

Escala Educacional, pág. 11 Escala Educacional. pág. 19 Escala Educacional, pág. 29

Figura 53: Memórias Póstumas de Brás Cubas

Escala Educacional, pág. 44

Apenas nos requadros finais (figura 53) fica clara a mudança de espaço. Do

ambiente noturno, com aspecto soturno de fantasma, Brás, por meio de pilérias de

feições jocosas, parte para o além-vida (representado em requadro negro) como se

tivesse quite com a vida, sem nada deixar para traz conforme mostram as expressões

faciais e posturas corporais.

Outro recurso usado pelo quadrinista é a bricolagem entre desenhos com traços

simples e marcantes (em cores e tons suaves) com fotos de ambientes em cena ao fundo,

o que dá à história uma nuança realista, como se percebe nas figuras que se seguem:

Page 96: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

96

Figura 54: Memórias Póstumas Figura 55: Memórias Póstumas de Brás Cubas

de Brás Cubas

Escala Educacional, pág. 23 Escala Educacional, pág. 39

A Editora Desiderata, por sua vez, intitula a série de obras literárias

quadrinizadas de Grandes Clássicos da Graphic Novel, o que já indica certa autonomia

da obra produzida em relação ao texto base. Isto é firmado nas indicações das autorias

(figura 48): obra de Machado de Assis recriada por João Batista Melado & Wellinton

Srbek. Trata-se de uma quadrinização de 85 páginas em desenhos bem definidos, que

busca retratar a época de forma bem humorada.

Já na capa 1 (figura 56) e capa 2 (figura 57) são apresentadas as personagens

Brás Cubas, Virgília e Quincas Borba, com um destaque especial para Brás (capa-

frente) como um mago da criação com as palavras pois, de sua mão iluminada, brotam

letras que constituíram as palavras da história (referência à forma inusitada de contar –

um defunto em sua pós-vida, utilizando rememoração em enunciações ácidas sobre os

seus contemporâneos). É o que se pode observar nas figuras que se seguem:

Page 97: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

97

Figura 56: Memórias Póstumas Figura 57: Memórias Póstumas

de Brás Cubas de Brás Cubas

Desiderata, capa 1 Desiderata, capa 2

O texto de apresentação da quadrinização, nas primeiras páginas, de autoria de

Moacyr Scliar, constitui um depoimento em defesa dos textos imagéticos, como a

literatura em quadrinhos. Para o escritor, todo leitor traduz o verbal em imagens e

destaca a tradução criativa dos ilustradores:

[...] todo leitor traduz, quase que automaticamente, as palavras que

está lendo no texto em imagens. Visualização é parte da fantasia,

como mostram os sonhos e devaneios. Mas os grandes ilustradores

vão mais além e, a partir da tarefa que lhe é delegada, criam obras de

arte... (p.7)

O referido escritor destaca que o aspecto inovador e revolucionário da obra

literária é uma petição para ser quadrinizada. Ele lembra que o trabalho imagético já

havia acontecido em três versões cinematográficas (com Fernando Cony – 1967, Julio

Bressane – 1985 e André Klotzel – 2001), o que indica o quanto fascinante é a obra.

Defende, em seu ponto de vista, o objetivo da literatura em quadrinhos, que é “colocar

ao público, sobretudo o jovem, a obra de Machado de forma atraente, acessível”(p.9).

A quadrinização em questão é iniciada com uma página negra, simulando o

vazio, o nada (figura 58) e na página seguinte a ilustração de raízes entrelaçadas com

vermes e a dedicatória da obra no centro da página, nos reporta a idéia da pós-morte

(figura 59).

Page 98: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

98

Figura 58: Memórias Póstumas de Figura 59: Memórias Póstumas de

Brás Cubas Brás Cubas

Desiderata, pág. 8 Desiderata, pág. 9

Na página 10 (figura 60) a personagem-narradora explica a motivação e a

pretensão de sua narração, de forma direta, como se estivesse a dialogar com o leitor, o

que podemos perceber nas figuras da página seguinte:

Figura 60: Memórias Póstumas de Brás Cubas

Desiderata, pág.10

Na quadrinização, durante a enunciação, o além-vida é representado em

requadros em tom azul celeste (fig. 60), com pontos brancos, o que nos pode insinuar o

céu, o infinito. Braz mostra nas feições a segurança no que conta e um ar de certa

superioridade, por estar em lugar onde não pode ser atingindo por ninguém, diante das

revelações e avaliações das pessoas com quem conviveu.

Page 99: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

99

A partir daí o texto quadrinístico é subdividido em capítulos, em conformidade

com o texto-base. Em tais capítulos se observa um trabalho de síntese acurada, efetuado

pelo roteirista que além de condensar muito bem cada parte, traveste o texto de uma

linguagem mais corrente na contemporaneidade.

O narrador passa a contar os fatos de forma distanciada, sem se apresentar

dentro da história, postando-se fora do alcance dos efeitos de sua narração irônica.

Assim, em vários momentos, interrompe-se a narrativa quadrinística e aparece o

narrador-personagem no plano da enunciação em posturas corporais de descontração e

descaso, o que enfatiza seu tom zombateiro, como no caso com Marcela (figura 61); em

posição de descanso e sonho (a possibilidade da paternidade, figura 62); em posição de

cabeça para baixo (sonhos desmoronados, figura 63).

Figura 61: Memórias Póstumas de Brás Cubas

Desiderata, pág. 31

Figura 62: Memórias Póstumas de Figura 63: Memórias Póstumas de

Brás Cubas Brás Cubas

Desiderata, pág . 71 Desiderata, pág . 74

Outra estratégia utilizada pelo quadrinista para materializar a qualidade do

signo estético literário é também metaforizar o signo icônico. As duas faces da ideia

Page 100: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

100

citada no verbal (figura 58) são materializadas nos requadros com o rosto do próprio

narrador em posições opostas nos quadrinhos paralelos para insinuar o conteúdo

manifesto das ideias – filantropia e lucro.

Figura 64: Memórias Póstumas de Brás Cubas

Desiderata, pág. 13

Uma situação de habilidade narrativa na quadrinização ocorre quando Brás

pára o enunciado de apresentação de um amor adolescente e posta-se entre dois

requadros (figura 64) : no primeiro requadro, a legenda sugere uma situação de mistério

com as reticências, que é intensificado com a utilização do recurso da sombra da dama

para ocultá-la; em seguida aparece o narrador, no plano da enunciação (pós-vida), a

interromper a apresentação da identidade da dama com um comentário irônico; por fim

é revelada a imagem da dama. Nesta parte parece que o narrador-personagem brinca

com seu narratário.

Figura 65: Memórias Póstumas de Brás Cubas

Desiderata, pág. 29

Na parte 27 da quadrinização (figura 66) que se refere ao capítulo das negativas,

no qual o narrador faz a avaliação de sua vida, o quadrinista utiliza do recurso de não

mostrar o narrador por completo. Cada requadro apresenta uma parte do corpo ( e meio

corpo: metade do rosto, metade do torax), insinuando a incompletude de suas ações em

Page 101: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

101

vida. É uma situação de transposição criativa da condição de inacabamento das ações da

personagem Brás Cubas, que teve uma vida mal aproveitada, por comodismo e falta de

objetivos.

Figura 66: Memórias Póstumas de Brás Cubas

Desiderata, pág.85

A última página da quadrinização materializa a última frase do romance “Não

tive filhos. Não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria” que é a máxima

do pessimismo humano. A materialização deste tom pessimista se dá na própria imagem

da personagem Brás, em meio corpo e ar de fracasso, desintegrando-se, desaparecendo

no nada, como se pode observar abaixo:

Figura 67: Memórias Póstumas de Brás Cubas

Desiderata, pág. 86

A forma de cada quadrinista traduzir a mesma obra revela como cada um percebe a

leitura e o que mais enfatiza no poético, preservando o máximo ou mínimo de informação

Page 102: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

102

estética do original. Observemos como Sebastião Seabra (Escala Educacional) e João

Batista Melado & Wellinton Srbek (Desiderata) materializam o mesmo episódio da

história. Trata-se de “O delírio”, que corresponde a um dos capítulos mais

impressionantes da literatura brasileira pelo conjunto de livres associações de imagens

descritas em metáforas singulares, produtos do delírio de Brás Cubas no momento em

que a pneumonia já se encontrava em estado avançado.

A quadrinização da Escala Educacional:

Figura 68: Memórias Póstumas de Brás Cubas Figura 69: Memórias Póstumas de Brás Cubas

Escala Educacional, pág.9 Escala Educacional, pág.10

Na quadrinização acima, o capítulo O devaneio é traduzido em vinte e quatro

requadros, observando-se que algumas imagens sofrem o aumento da informação

estética como a referência ao diálogo com Pandora (figura 68) que ganha espaço em

nove quadrinhos, além da perspectiva de superioridade quando ela é gigante e Brás um

insignificante ponto preto no quinto quadrinho. O desfilar dos séculos é ressignificado

em doze requadros (figura 69) com ícones que representam as diferentes épocas

(homem das cavernas, hieróglifos, esfinge, cavaleiros, Cristo crucificado, As Cruzadas,

canhões, castelos, descobertas tecnológicas).

Page 103: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

103

A quadrinização da Desiderata:

Figura 70: Memórias Póstumas de Brás Cubas Figura 71: Memórias Póstumas de Brás Cubas

Desiderata, pág.16 Desiderata, pág.17

Figura 72: Memórias Póstumas de Brás Cubas Figura 73 Memórias Póstumas de Brás Cubas

Desiderata, pág.18 Desiderata, pág.19

Figura 74: Memórias Póstumas de Brás Cubas Figura 75: Memórias Póstumas de Brás Cubas

Desiderata, pag. 20 Desiderata, pág.21

Page 104: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

104

A tradução da Desiderata destaca-se por ilustrações maiores, em traços mais

definidos. Explora o capítulo O Devaneio em vinte e sete requadros, centrando-se na

viagem com o hipopótamo, ser de aspecto alucinante, à origem dos séculos, que é

iconizada em oito requadros (figuras 70 e 71); o encontro com Pandora, cuja imagem

apresenta-se feminina, altiva e superior, é apresentado em oito quadrinhos (figuras 72 e

73), neles Brás é apresentado em imagem minúscula, o que indica a própria

insignificância; e o desfile dos séculos em dois requadros (primeiro da figura 74 e

primeiro da figura 75) no qual a aglomeração das personagens marcantes da história

desfilam. O recobrar da consciência se dá na transformação da imagem do hipopótamo

(ser imaginário de sua angústia delirante) na figura do gato de estimação. Nota-se neste

trabalho a ampliação do signo estético literário no icônico, o que o faz reverbarar mais.

Destaca-se também nesta quadrinização o trabalho feito com o capítulo O velho

diálogo entre Adão e Eva que a editora Escala Educacional suprime no seu texto

quadrinístico. No texto base ele é constituído de pontilhados e sinais de pontuação. Na

tradução da Desiderata ele é concretizado nas imagens que sugerem o ato de despir-se

do casal, insinuando relações íntimas, como se percebe abaixo:

Figura 76: Memórias Póstumas de Brás Cubas

Desiderata, pag. 55

Outro romance que foi ressignificado na íntegra foi Dom Casmurro. A

quadrinização a que aqui nos reportamos trata-se do trabalho de Ruy Trindade que faz

parte do projeto “Transcrever para quadrinhos romances inteiros”, iniciado em 1991,

Page 105: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

105

com o objetivo de incentivar a (boa) leitura. No estilo de ilustração bem sugestiva, em

Dom Casmurro – em quadrinhos sem cortes (2005) o autor utiliza pontilhados e

tracejados para compor as imagens,o que já nos conduz a certa subjetividade de

percepção, favorecendo ao olhar global para melhor leitura da imagem. A própria

técnica escolhida evoca o clima que se estabelece na leitura do romance: nada se diz por

inteiro, trata-se de percepções isoladas nas reminiscências da vida da personagem

Bentinho que de convicto apaixonado, passa a descobrir-se marido traído. Para melhor

apreender os acontecimentos faz-se necessário um posicionamento imparcial do leitor,

ou seja, a leitura global para perceber todas as variantes possíveis da história, como são

variáveis os traços e pontilhados para a percepção com acuidade.

Já na capa (figura 77) a ilustração acaba por nos conduzir a situação mais

corriqueira de leitura de Dom Casmurro: as três personagens principais (Escobar, Capitu

e Bentinho) caminham juntas, a sugerir o triângulo amoroso. Na figura 78 o intróito da

quadrinização ilustra a designação do título do livro: a explicação para o apelido da

personagem Bento que em alguns traços faz lembrar a imagem do próprio escritor

Machado de Assis.

Figura 77: Dom Casmurro Figura 78: Dom Camurro

Bureal Gráfica e Editora, capa 1 Bureal Gráfica e Editora, pág. 1

Page 106: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

106

Toda a quadrinização segue a ordem capitular da obra literária, que é traduzido

em requadros conforme a percepção do quadrinista. O capítulo A inscrição, um dos

mais belos da obra literária, por tratar-se da revelação dos sentimentos adolescentes,

ganha a tradução icônica em treze requadros (figura 79 e 80), nos quais do sexto ao

décimo terceiro explora-se a metáfora “Estávamos ali com o céu em nossas mãos,

unindo os nervos, faziam das duas criaturas, uma só, em uma só criatura seráfica.”, a

partir da utilização da perspectiva de cima, como se o casal fosse olhado do céu, e o

universo semelhante a uma câmara em perspectiva circular, centrasse nos dois.

Figura 79: Dom Casmurro Figura 80: Dom Casmurro

Bureal Gráfica e Editora, pág. 31 Bureal Gráfica e Editora, pág. 32

O capítulo No céu (figura 81) que nos reporta ao casamento de Bento, carregado

de metáfora e citações bíblicas referentes ao amor matrimonial foi tratado de forma

intensa pelo artista. Ele explora a perspectiva de cima para enfatizar a grandeza do

momento tão esperado do casamento (segundo requadro). A explosão dos sentimentos é

traduzido nas metáforas visuais nos requadros 3, 4, 5 e 6: contornos em formas de

nuvens para destacar o momento especial do casal nubente e as estrelas e os corações

enfatizando a paixão e a luz do encontro consumado dos amantes. São estas formas

idôneas, destacadas pelo narrador, que o quadrinista preservou para ilustrar momento tão

intenso.

Page 107: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

107

Figura 81: Dom Casmurro

Bureal Gráfica e Editora, pág 214

No Capítulo Olhos de ressaca (figura 82), o quadrinista utilizou a mesma

contenção que o narrador supôs perceber na esposa, no momento da dor da morte do

amigo Escobar. Capitu é mostrada no conjunto dos participantes da cena, destacando-se

sutilmente como a portadora de um olhar de busca e apreensão. A sensação do narrador

é explorada na cena pela constituição da imagem discreta da esposa e a fixação do olhar

sobre o corpo de Escobar.

Figura 82: Dom Casmurro

Bureal Gráfica e Editora, pág. 250

Page 108: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

108

O quadrinista, em sua tradução preserva a sua afinidade eletiva à obra, pois “

não se traduz qualquer coisa, mas aquilo que conosco sintoniza como eleição da

sensibilidade...” A mesma contenção das metáforas verbais da obra literária é percebida

nos signos icônicos escolhidos para traduzir a paixão, e a desconfiança que emana do

narrador-personagem do romance Dom Casmurro. Tanto Machado quanto o quadrinista

utilizam deste mesmo expediente de reserva,o que provoca no leitor a sensação da

dúvida em relação aos fatos.

O grupo editorial Autêntica lançou-se, em 2011,aos quadrinhos literários e

produziu quadrinizações de obras da literatura mundial, dentre elas Dom Casmurro de

Machado de Assis. A versão quadrinizada teve como roteirista Wellington Srbek e

desenhos do arte-educador José Aguiar, num trabalho com muitos qualificativos.

Nas capas encontramos a motivação da obra, síntese da história: a rememoração

da vida de Bentinho, por ele próprio. Na capa 1 (figura 83), o presente da enunciação,

Bento maduro, relembrando sua história e escrevendo-a em sua escrivaninha é

apresentado em tons mais escuros e cores frias, com exceção do amarelo sobre sua face

a qual apresenta expressão de tristeza e dúvida. Atrás de sua poltrona aparecem as

principais personagens de sua rememoração, os quais predominam na cena de fundo da

capa 1 e tem continuidade na capa 2 (figura 84): Capitu faceira, Bentinho adolescente

correndo afoito sobre os longos cabelos da companheira e mais atrás a figura do jovem

seminarista Escobar. Tudo em tons de vermelho, ora mais claro, ora mais escuro. Ao

fundo, o meio rosto de Capitu, com foco no olhar triste e decepcionado.

Figura 83: Dom Casmurro Figura 84: Dom Casmurro

de Machado de Assis de Machado de Assis

Nemo, capa 2 Nemo, capa 1

Page 109: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

109

A quadrinização da Nemo destaca-se pelos traços retos, cores preta e branca e

texto condensado, que conserva os principais fatos da história, numa linguagem enxuta.

É dividida em vinte partes, em conformidade com os capítulos do romance. Alguns

aspectos da transmutação criativa neste trabalho merecem destaque.

Na parte dois – Do livro – a materialização da descrição da casa de Bentinho,

cópia da casa da mãe, se dá pelo ícone inacabado do prédio ( requadro 1) acompanhado

paralelamente pelo requadro 2 da casa concluída.O ato da mão que desenha a casa no

primeiro quadrinho é uma alusão à reconstrução da vida, metaforizada na casa materna,

pela memória do escritor. A rememoração é uma tentativa de preencher a lacuna que ele

próprio se tornou pela grande dúvida que passou a carregar. Esta dúvida afetiva e

existencial é concretizada por dois requadros paralelos (3 e 4) : no primeiro ele presente

em sua poltrona, no segundo o seu vazio representado pela silhueta branca.

Observemos:

Figura 85: Dom Casmurro

Nemo, pág. 5

A parte 4 – Capitu – trata-se da descoberta de Bentinho do amor pela vizinha. O

ilustrador materializa na corrida para o quintal de Capitu o processo de descoberta do

sentimento. A magnitude da distância não é física, mas do sentimento recém-descoberto

que parece ampliar o espaço percorrido, ora apresentado com requadros em perspectiva

Page 110: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

110

distante, simbolização da sensação de liberdade que o sentimento amoroso proporciona,

ora em perspectiva próxima, demarcação da subjetivação dos sentimentos agora

conscientes pelo jovem, gerando-lhe reflexões, como se nota:

Figura 86: Dom Casmurro

Nemo, pág. 5

A materialização da descrição das personagens, apresentadas com posturas

físicas e feições que intensificam as características, merece atenção: José Dias, postura

ereta e imponente revelando certa autoridade; Capitu, expressões faciais de quem está a

maquinar ideias atrevidas, semblante de quem tem iniciativa; Dona Gloria, ar de pessoa

contrita e firme em seus propósitos.

Figura 87: Dom Casmurro Figura 88: Dom Casmurro Figura 89: Dom Casmurro

Nemo, pág. 10 Nemo, pág. 17 Nemo, pág. 9

Page 111: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

111

A metáfora do olhar de Capitu, muito explorada no romance machadiano, ganha

também destaque nesta quadrinização. Ele é focado em muitos momentos e nuanças: na

desconfiança de José Dias diante do olhar “oblíquo e dissimulado” (figura 90), no olhar

doce, introspectivo e misterioso em busca de saídas para evitar o afastamento do jovem

Bentinho (figura 91), no olhar colérico, sofrido, vencido pela consumação da ida do

enamorado para o seminário (figura 92), no olhar enigmático e distante, guardado pela

lembrança do Casmurro Bento Santiago (figura 93). Muito ficou ocultado, porém

insinuado na forma de olhar de Capitu, o que foi bem reforçado pelo icônico.

Figura 90: Dom Casmurro Figura 91: Dom Casmurro

Nemo, pág. 20 Nemo, pág. 24

Figura 92: Dom Casmurro Figura 93: Dom Casmurro

Nemo, pág. 31 Nemo, pág. 77

Page 112: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

112

A transposição criativa também merece destaque em outras passagens da

quadrinização. O primeiro beijo entre Bentinho e Capitu reverbera o jogo de sedução da

cena do penteado e todo o centramento no universo subjetivo dos adolescentes

apaixonados nos requadros esvaziados e negros, apenas figurando as faces em posições

opostas e o encontro dos lábios para o encaixe perfeito no beijo (figura 94).

Figura 94: Dom Casmurro

Nemo, pág. 26

A crise de ciúmes de Bentinho quando Capitu acompanha o olhar de um

estranho que a admira é materializada em um descontrole dantesco. Este momento é

marcado pela angústia e pela raiva do jovem, reforçadas na multiplicação sequenciada

de sua imagem, nas lágrimas e expressões de cólera e desespero, no close-up dos traços

que intensifica sua ira (boca, olhos e sobrancelhas):

Figura 95: Dom Casmurro

Nemo, pág. 43

Page 113: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

113

A plenitude da realização amorosa dos jovens Bento e Capitu com o casamento é

uma página, ao mesmo tempo bela pelo sentimentalismo e sensualidade (casal destro do

coração consumando a relação amorosa) e sutil pela crítica subliminar aos interesses

que moviam a jovem (necessidade de Capitu de se mostrar aos outros como esposa –

casal caminhando pela rua):

Figura 96: Dom Casmurro

Nemo, pág. 58

Por fim, o recurso utilizado pelo quadrinista para mostrar a semelhança entre o

menino Ezequiel e o amigo Escobar: a sombra de um traz o perfil do outro – o menino

tinha a sombra de Escobar e Escobar tinha a sombra do menino, o que sugere a

semelhança entre ambos em idades diferentes. Tal semelhança encaminha para a

desconfiança sobre a paternidade de Ezequiel e suposta traição de Capitu. A partir deste

momento a decepção e indiferença domina a alma de Bento e provoca a destruição da

sua família:

Figura 97: Dom Casmurro

Nemo, pág. 70

Page 114: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

114

Outra obra de Machado de Assis que merece menção é a novela, ou long short

story, O alienista. A história do ilustre médico Simão Bacamarte, seus estudos e teorias

sobre a mente humana, nas conjecturas sobre equilíbrio e desequilíbrio coadunando com

as conveniências sociais possui uma adaptação para o cinema como Azyllo muito louco

(1971), dirigido por Nelson Pereira dos Santos e uma para a TV, realizada pela Rede

Globo (1993) com título homônimo a obra literária. Atualmente, dispõe de quatro

quadrinizações. A Escala Educacional, a Companhia Editora Nacional, a Ática e a Agir

lançaram-se nesta empreitada de tradução intersemiótica desta história emblemática,

potencializando nas imagens, o signo estilístico machadiano, na literatura em

quadrinhos.

O trabalho da Escala Educacional com ilustração e roteiro de Francisco Vilachã

e cores de Fernando A. A. Rodrigues preservam todo o texto-base, tanto nas legendas

que contam a narração e dominam todo o texto como nos parcos discursos diretos. A

capa 1 da quadrinização (figura 98) traz cinco requadros: no centro a imagem do Dr.

Simão Bacamarte, destacando seu olhar desconfiado acompanhado diagonalmente da

esquerda para direita, por dois requadros que se refere à parte de paisagens; e dois da

direita para a esquerda que trazem as personagens da história.

A quadrinização já apresenta em sua primeira página um Simão Bacamarte

muito bem visto e considerado socialmente, relação materializada pelos olhares e

acenos do padre e escrivão da cidade. Ele é um homem que se dedica incansavelmente

ao estudo, numa Itaguai colonial com traços arquitetônicos e culturais ingleses, tanto no

casario, nas feições urbanas e na vestimenta das personagens (fig.99).

Figura 98: O alienista Figura 99: O alienista Figura 100: O alienista

Escala Educacional, capa 1 Escala Educacional, pág. 3 Escala Educacional, pág. 52

Page 115: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

115

Destaca-se a exploração do signo icônico quando o artista amplia a imagem de

Simão materializando o aumento de poder e influência de Bacamarte que se torna maior

que a Casa Verde quando recolhe como insanos o amigo, vereador, secretário e

presidente da câmara (fig.100).

A crescente insatisfação contra Simão pelos populares da cidade é apresentada

pelas figuras em meio corpo, com expressões faciais de irritação, mostrada em

perspectiva de cima para baixo e a posição de circularidade, indicando o crescente

sentimento de insatisfação que percorre a todos (fig.101).

Na figura 102, o artista explora os requadros em linhas curvas com a

rememoração dos fatos ocorridos com a esposa os quais Simão utiliza para justificar ao

padre o motivo do recolhimento para a Casa Verde como desequilibrada. Ele sempre

apresentado em figura centralizada na página, com olhar desconfiado. No final da

história (figura 103), o alienista passa a definhar, sendo o objeto de suas especulações

científicas. Do olhar desconfiado para todos, a personagem passa a ostentar um olhar de

desencanto, produto da sua vida de estudos e pesquisas. E o mesmo padre que perscruta

Simão com feição de deferência no primeiro requadro da história, é o suposto

divulgador das qualidades que vitimaram Simão Bacamarte. No último requadro da

história a expressão facial do sacerdote é do típico estrategista, que defende a

tranqüilidade da pequena cidade.

Figura 101: O alienista Figura 102: O alienista Figura 103: O alienista

Escala Educacional, pág. 21 Escala Educacional, pág. 44 Escala Educacional, pág. 58

Page 116: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

116

O Alienista de Lailson de Holanda Cavalcanti é uma quadrinização de cinqüenta

e oito páginas, muito bem articuladas no jogo imagem e palavras, como afirma o editor,

“ a imagem deve mostrar o que o texto literário não necessita escrever. Já o texto deve

apresentar o que a narrativa visual não pode mostrar.” (2008, p.59)

A capa (figura 104) traz requadros das personagens que produzem a urdidura da

trama: Simão Bacamarte aficcionado pelos estudos e elocubrando teorias sobre sanidade

e loucura, e a Casa Verde, um sanatório que funcionará como laboratório onde três

quartos da população de Itaguai passará, com o apoio de Crispim Duarte, o boticário;

ele enfrentará a oposição de populares, representado pelo barbeiro revolucionário

Porfírio. A imagem de Simão Bacamarte é explorada pelo quadrinista como um homem

veemente em seu discurso, ostentando traços de severidade em sua expressão facial

enérgica, com olhar atemorizante na terceira página, como prova a figura 105. Os gestos

contundentes destes já sugerem a radicalidade das ações e ideias que perpassarão toda a

história. Na sexta página, o artista expõe a galeria das principais personagens e funções

que conduziram as ações da história (figura 106).

Figura 104: O alienista Figura 105: O alienista Figura 106: O alienista

Companhia Editora Nacional, Companhia Editora Nacional, Companhia Editora Nacional,

capa 1 pág. 1 pág. 6

No trabalho de Laerte, a mítica Itaguaí é caracterizada como uma típica cidade

do período colonial. São explorados o casario e as calçadas de pedras, elementos de

destaque da época (figura 107). Também os espaços interiores das casas e igreja trazem

a atmosfera colonial da época, tanto na arquitetura como nos móveis (figura 108 e 109).

Page 117: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

117

Simão Bacamarte é apresentado de forma altiva, com olhar de constante determinação e

muitas vezes com semblante maquiavélico (figura 107).

O autor explora as elocubrações de Bacamarte a partir do jogo da perspectiva:

próxima e restrita (focalização na parte superior da face, nos olhos com ar alucinado)

para enfatizar a loucura como um objeto de estudo discreto ( metaforizada verbalmente

como ilha perdida no oceano da razão); e da perpectiva distante e ampliada para realçar

a dominação da ideia que a insanidade está em tudo ( metaforizada verbalmente como

um continente). (figura 108, dois últimos requadros).

Destaque especial para a tradução estilística da relação ciência e fé na figura

109. O encontro de Simão e do padre para apresentação da teoria do alienista, nesta

quadrinização se dá na igreja. A defesa de Bacamarte da loucura como uma onda

crescente feita pelo alienista e a contraposição do padre na afirmação de que entre

sanidade e loucura as fronteiras são perfeitamente delimitadas conclui-se com o aperto

de mão dos dois e o estabelecimento da dúvida na teologia. A saída de Simão remete a

idéia de que a Igreja (padre) vê a ciência abrir um novo caminho (porta aberta, mundo

sem fronteiras) para compreensão do mundo, dos homens, bem diferente da teologia

(igreja fechada, com cantos escuros e centro luminoso) com suas restrições.

Figura 107: O alienista Figura 108: O alienista Figura 109: O alienista

Companhia Editora Nacional, Companhia Editora Nacional, Companhia Editora Nacional,

pág. 7 pág. 21 pág. 58

Podem ser constatados dois aspectos no texto verbal desta quadrinização:

enxugamento das expressões carregadas de erudição semântico-sintática, o que se dá

Page 118: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

118

com a síntese de algumas passagens; e a substituição, em muitos trechos, do foco

narrativo constituído pelo narrador onisciente a contar os fatos ditos anônimos, pelas

falas de diversas personagens que fazem circular diversos fatos imputados ao alienista.

Esta segunda estratégia encena o anonimato das informações e fortalece a condição de

anônima à história contada, o que concede uma maior verossimilhança ao texto (figuras

110 e 111).

Figura 110: O alienista Figura 111: O alienista

Companhia Editora Nacional, Companhia Editora Nacional,

pág. 20 pág. 21

O final da quadrinização centra-se na crise de Bacamarte, representada na

oscilação de luz no ambiente onde se encontra a personagem. Dá-se espaço ao

monólogo interior que aponta para as últimas conjecturas de seus pensamentos (figura

112). Na consulta às pessoas próximas o ambiente ganha claridade, na conclusão final

da personagem ele volta a escurecer, recurso utilizado pelo quadrinista para tornar mais

expressiva a ilustração da crise que o alienista vive até chegar a sua última conclusão:

ele é o alienado que merece estudos teóricos e práticos. Nas últimas imagens

Bacamarte é mostrado na posição lateral em metade da face, revelando o

desconhecimento de si e de costa em perspectiva distante, deixando-se vencer pela sua

nova teoria. (figura 113). Por fim, a última página não nos apresenta mais a figura do

ilustre alienista, apenas a Casa Verde, o cortejo de seu enterro e seu túmulo com um

busto: torna-se um homem enterrado pelas próprias concepções cientificas. (figura

114).

Page 119: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

119

Figura 112: O alienista Figura 113: O alienista Figura 114: O alienista

Companhia Editora Nacional, Companhia Editora Nacional, Companhia Editora Nacional

pág. 51 pág. 53 pág. 54

Um dos trabalhos de tradução gráfico-imagético em quadrinhos mais criativo

de O Alienista, é o perpretado por Cesar Lobo (arte) e Luiz Antonio Aguiar (roteiro), da

Editora Ática. Nele ocorre o que Plaza chama “[...] tornar visível o concreto do original,

virá-lo pelo avesso [...] [pois] tradução e invenção se retroalimentam”. Nele é percebido

um aumento da informação estética fornecendo nível e qualidade a operação tradutora

que complementa o signo traduzido, visto que confirma o que Otávio Paz (Apud JULIO

PLAZA, 2008, p.40), pois

[...] o signo estético é um sistema de escolha irrepetível e, por isso

mesmo, congelado. Traduzir é colocar esse cristal em movimento,

para fixá-lo num sistema de escolhas outro, no entanto, análogo.

Traduzir é, nesta medida, repensar a configuração do original,

transmutando-a numa outra configuração seletiva e sintética.

Nesta quadrinização a ideia de terror que é o sentimento vivido na Vila de

Itaguaí, é desfraudada inicialmente por meio de dois signos já na capa ( figura 115): o

doutor Simão Bacamarte em imagem medonha (que lembra o conde Drácula na

tradução da obra de Bran Stock), recluso em seu gabinete de estudo e as sombras de

populares na fachada da casa.

Um dos elementos de criatividade introduzido pela tradução é o duplo de Simão

Bacamarte, o Alienista-Alienado. É o elemento novo que materializa em forma de

Page 120: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

120

espírito fantasmagórico a loucura presente, desde o início no médico e na cidade inteira,

que vai ser descoberta por Simão no decorrer dos acontecimentos. O Alienista-

Alienado abre a história quadrinizada, em preto e branco, tece comentários sobre os

fatos durante a narrativa, o que dá maior dramaticidade ao texto. Ele, nas páginas

iniciais (figuras 116 e 117), se propõe revisar as crônicas que contam seu grande

empreendimento em Itaguaí – lugar onde predomina a insanidade, uma vez que até a

razão e a lógica são pura insânia.

Figura 115: O alienista Figura 116: O alienista Figura 117: O alienista

Ática, capa 1 Ática, pág.5 Ática, pág. 6

A quadrinização é marcada pelo grande teor de dramaticidade na materialização

das personagens, o que se faz perceptível nas posturais corporais. O corpo diz a

personagem: Simão Bacamarte em reverência mostra-se cordato com a autoridade, em

posição de relaxamento revela-se dedicado e ávido pelo estudo (figura 118) e o corpo

em posição de aceitação de louvores, coloca-se como empreendedor na ciência em

benefício da instituição pública (figura 119). A dramaticidade também é percebida na

contextualização da sociedade escravocrata, na qual a figura dos negros escravos

materializa as condições de exploração no trabalho (como pajem durante as refeições

dos senhores brancos ou em trabalhos pesados) e condições de subvida, alimentando-se

dos restos da mesa do homem branco (figura 120).

Page 121: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

121

Figura 118: O alienista Figura 119: O alienista Figura 120: O alienista

Ática, pág.7 Ática, pág.11 Ática, pág.14

Dois processos criativos são evidentes para o alto tom de expressividade da

quadrinização. Primeiro, a constituição do desenho se aproximar das posturas

psicológicas e sociais das personagens: Crispim, de pequena estatura, bajulador e

asqueroso tem sua insignificância metaforizada no desenho em traços e expressões

faciais que o aproximou da imagem de um rato (figura 121). Segundo, apesar da praxe

de condensamento das adaptações, o artista amplifica em vários requadros alguns

acontecimento breves no texto-base, o que destaca ainda mais o terror e a dramaticidade

como na figura 122, o confinamento de uma ex-namorada que veio pedir pelo primo.

Figura 121: O alienista Figura 122: O alienista

Ática, pág.16 Ática, pág.20

Page 122: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

122

As cenas da revolução decorrentes da insatisfação dos populares de Itaguaí com

relação ao clima de medo e terror, na política de recolhimento dos considerados

alienados, são marcadas de forte teatralidade. A entrada dos Canjicas na Câmara de

Vereadores em imagens nas cores cinza e vermelho e a imagem-signo da insurreição

popular francesa acima do líder, insinuando sua pretensão política, marcam o grotesco

da situação que é amplificada com o quebra-quebra e as agressões físicas entre

populares e vereadores (figuras 123 e 124).

A figura 125 apresenta a ínfima reação da criadagem e de Dona Evarista frente à

agitação que está em frente de sua casa; quando relacionada à comoção que toma os

populares, esta situação é materializada pelos artistas com o requadro menor do núcleo

familiar dentro do requadro maior, página inteira, para a percepção da agitação dos

populares.

Figura 123: O alienista Figura 124: O alienista Figura 125: O alienista

Ática, pág.26 Ática, pág.28 Ática, pág.30

As ações e reações de Bacamarte tornam-se capítulos à parte para a percepção de

sua situação psicológica. Em meio à agitação de sua casa e dos populares na rua, ele

reage com indiferença, guardando o livro que lia, e arrumando-o para que não

desconcertasse o alinhamento dos outros (figura 126). Em seguida ele tem a mesma

reação ao dirigir-se à sacada da casa e tentar travar uma conversa com os populares

agitados, numa postura de superioridade: ele parece querer alinhar e extirpar os ânimos

Page 123: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

123

exaltados pela má interpretação das suas ações meramente científicas (figura 127). Por

fim, ao retirar-se da sacada o embate entre os populares e as forças de segurança pública

se intensificam. Bacamarte retorna para suas leituras e sua ciência e considera insanas as

cenas a que apenas assiste pela janela. (figura 128). Em todo momento, a sua

preocupação com a retidão das coisas e sua postura distante e descomprometida com os

fatos que o rodeiam são materializadas nas expressões faciais de alheamento e posturas

corporais descansadas (figura 128).

Figura 126: O alienista Figura 127 O alienista Figura 128: O alienista

Ática, pág.26 Ática, pág.28 Ática, pág.30

A mudança de posição teórica de Simão Bacamarte em relação à caracterização

dos insanos que passam a ser vistos como os que detêm o equilíbrio e a normalidade,

amplia a sua indiferença frente aos amigos em nome de uma impessoalidade científica.

A materialização desta passagem na quadrinização ganha um aspecto de terror e

crueldade pela condição subumana das celas de prisão, das pessoas vestidas com

farrapos de roupas e expressões faciais de terror frente à privação da liberdade. Tais

aspectos são notados nas pessoas íntimas do convívio particular do médico que também

são detidos, a exemplo do padre. Todo este caos humano é perpassado pelas variações

da cor cinza, o que dá maior intensidade a atmosfera insensível disseminada pela visão

científica do alienista que se mantém incólume ao desespero dos que enclausurou na

Casa Verde (figura 129).

Page 124: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

124

Figura 129: O alienista

Ática, pág.30

Os requadros que indicam a derrocada da percepção científica de Bacamarte são

expressos em quadrinhos que tomam a páginas inteira, tornando-se a maior revelação da

história.

Primeiro, do alto de sua varanda em imagem em cores claras, o que indica

momento de paz (do alto de sua superioridade científica, parece analisar as intervenções

que promoveu nos pacientes, com as quais atacavam as belezas morais que disfarçavam

as conveniências e ações nada nobres ) ele questiona se realmente curou a todos. (figura

130).

Posteriormente, (figura 131) o médico se abate com uma crise moral, ao

perceber que não havia insanos na cidade (o ambiente é retratado em tons de vermelho e

preto) e desconfia que o melhor exemplo de sua teoria ainda não havia sido estudado.

Por fim (figura 132), após investigações descobre que ele é o melhor exemplo de

insânia, pois era o único normal e equilibrado da cidade; o que em última análise revela

que ele deva ser recolhido à Casa Verde. Assim, dirige-se nu para aquele local de

recolhimento. O ato de despir-se metaforiza a ação de mostrar-se, de revelar-se como

realmente é. Seu vulto caminhando em frente ao sanatório, com a lua coroando-lhe a

cabeça, insinua seu estado de lunático. Observemos isto nas figuras que se seguem:

Page 125: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

125

Figura 130: O alienista Figura 131: O alienista Figura 132: O alienista

Ática, pág. 67 Ática, pág. 68 Ática, pág. 69

O Alienista da Editora Agir é uma quadrinização, que compõe a série Grandes

Clássicos em Graphic Novel, realizada pelos irmãos Fabio Moon e Gabriel Bá. Já traz

na primeira capa a temática dos estudos científicos que impregna as obras literárias da

época: a figura do cérebro domina boa parte da cena, com os livros na parte superior em

perspectiva próxima, e o homem, o estudioso em perspectiva distante. Nestas

sobreposições sígnicas da capa 1 (figura 133), percebe-se o maior valor dado ao

conhecimento. Assim como no texto base, nota-se a crítica à alucinação pelo

cientificismo, que é metaforizado na capa 2 (134) em negro, imagem em que se destaca

apenas a figura do cérebro e da personagem Simão, ou seja, o homem que apenas

enxerga a ciência em tudo e acaba por cegar-se ( a cor preta dominando a cena) para

outros possibilidades ao seu redor de se assimilar o conhecimento.

Figura 133: O alienista Figura 134: O alienista

Agir, capa 1 Agir, capa 2

Page 126: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

126

Trata-se de uma tradução que conserva o texto-base, alterando alguns aspectos

da linguagem e da sequência narrativa. A narrativa gráfica preserva como fio condutor

as ações de Simão Bacamarte, cuja imagem e feitos são centralizados: estudo na

Europa, regresso a Itaguaí, dedicação aos estudos de psiquiatria (figura 135), construção

da Casa Verde (figura 136), constantes pesquisas, criação e comprovações de teorias

(figura 137). A história de Dona Evarista é deslocada na ordem da narrativa para um

momento posterior, e a referida personagem é apresentada com nuanças românticas.

Figura 135: O alienista Figura 136: O alienista Figura 137: O alienista

Agir, pág. 9 Agir, pág. 11 Agir, pág. 15

Na primeira página da novela gráfica Simão Bacamarte é materializado como

um homem modesto e empreendedor no encalço dos novos caminhos da medicina

frente aos mistérios da alma. Chega a ser metaforizado visualmente pelo destaque da luz

(último requadro da figura 135), símbolo de homem diferenciado numa Itaguaí

tradicional e conservadora

A Casa Verde (figura 136) é o espaço onde o médico se dedicará á caridade

(cuidar dos loucos que nunca tiveram tratamento e atenção particularizada) e ao

aprofundamento do estudo da loucura, seu principal objetivo. Nesta quadrinização a

casa dos alienados é retratada como um espaço aberto, cheio de luz, um mundo

diferenciado. Apenas as celas fechadas são apresentadas como quartos escuros (figura

137 – requadros 2 e 3), na verdade uma metáfora da mente humana ainda desconhecida

pelos estudos da época – século XIX.

Page 127: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

127

Um aspecto estético que merece destaque é a ressignificação de Itaguaí próxima

ao modelo das cidades do velho oeste americano nos quadrinhos, observado na estrutura

das ruas, o meio de transporte, a vestimenta das personagens, tudo nas cores pastéis e

amarelas, em tom desértico, como se nota na figura abaixo:

Figura 138: O alienista

Agir, pág. 30

O momento da insurreição popular decorrente da insatisfação com relação aos

critérios de recolhimento dos considerados anormais é materializado com moderação,

no tradicional confronto entre representantes da elite e representantes do povo. O

encontro entre Bacamarte e os revoltosos retrata bem esta relação (figura 139).

Bacamarte, bem vestido, na sacada de seu sobrado, em porte imponente e superior é a

representação da elite; os populares, liderados por alguém que lhes determinam as

ações, reclamam, ouvem as justificativas, sempre prontos a agir.

Figura 139: O alienista

Agir, pág. 42

Page 128: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

128

Um recurso bem diferenciado dos quadrinistas é o modo de compor a

rememoração dos fatos relacionados com Dona Evarista e que desencadearam seu

recolhimento para a Casa Verde (figuras 140 e 141). Bacamarte recebe a visita do padre

e passa a relatar as ações suspeitas da esposa, atitudes tais denunciaram certo

desequilíbrio mental. Até aí os requadros tem cores mais escuras. A sequência que

segue constitui um flashback dos atos suspeitos de Evarista, nos quais as imagens

correspondem a atos já acontecidos e retomados pela memória da personagem e para tal

assumem a forma de esboços com cor bastante clara, o que dá às cenas um tom fluído

para sugerir lembranças. Quando a história retoma o tempo presente da conversa com o

padre, os requadros voltam a ter linhas mais definidas e cores mais fortes.

Figura 140: O alienista Figura 141: O alienista

Agir, pág.56 Agir, pág.57

O signo da cor como recurso metafórico e informacional também é utilizado nos

requadros que remetem à liberação dos alienados que foram recolhidos por realizarem

ações baseadas na retidão da conduta (figura 142). Em dado momento, as teorias de

Bacamarte indicam que o equilíbrio não era “normal” e passaram a ser considerarados

“anormais” quem apresentasse esta conduta. Após intervenções que liberaram a

verdadeira natureza das ações nada virtuosas, as pessoas que estavam reclusas foram

liberadas.

A saída destes indivíduos da Casa Verde é transposta para a quadrinização como

um momento iluminado; as pessoas parecem não acreditar na liberdade. O momento da

liberação é ilustrado com grande incidência de luz (cor clara, embranquecimento da

imagem). Também a Casa Verde passa a ser vista com mais luminosidade.

Page 129: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

129

. Figura 142: O alienista

Agir, pág.59

Na parte final da história, Bacamarte descobre, mediante pesquisa e observações

dos amigos e pessoas íntimas, ser ele o único insano da Itaguaí por ter ostentado desde

sempre uma “conduta virtuosa” (figura 143). Para estudo final da sua teoria ele se

recolhe à Casa Verde como objeto das especulações científicas (figura 144).

Figura 143: O alienista Figura 144: O alienista

Agir, pág.68 Agir, pág.69

Os passos do médico que o encaminham para a cela escura (figura 145)

metaforizam o adentramento no lado desconhecido da mente, o mergulho no universo

Page 130: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

130

da insânia. A Casa Verde passou a ter uma única cela fechada, um único insano

prisioneiro nas ideias que Bacamarte acreditava.

Figura 145: O alienista

Agir, pág.70

Nos processos de traduções de O alienista realizados pelos diferentes artistas

observa-se que as “andanças do tradutor se dão na procura das semelhitudes e falas

adormecidas no original” (PLAZA, 2008), que se revelam mediante o ato da leitura

tomado como processo de cognição de um signo (texto-base) que é re-configurado na

transmutação em outro signo (aqui o verbal em icônico). O diálogo mediado pela ação

do signo, entre a mente que conhece e o objeto conhecível, reporta a experiências,

percepções e recriações singulares nas quadrinizações.

Esta transposição criativa de um código para outro resulta em um novo texto

híbrido nas linguagens que lhe dão suporte, não oculta o original nem lhe rouba a luz.

Na realidade, traz o desejo do tradutor de superação do texto-base que se dá na

complementaridade, pelo alargamento de seus sentidos e focalização do original em

pontos de seu significado ainda não percebido. Observemos como isso ocorre nas quatro

quadrinizações de O Alienista.

Destacamos duas passagens da história, que recebem tratamento bem

diferenciado pelos quadrinistas: O capítulo II, A torrente dos loucos; e o capítulo VII, O

inesperado.

O capítulo A torrente dos loucos traz a passagem da chegada dos alienados na

Casa Verde, e a recepção de Bacamarte. Ele mostra ao padre o ambiente e o histórico

Page 131: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

131

que cada insano traz. Esta concretização é feita de modo específico em cada

quadrinização. Waldomiro Seabra transmuta este episódio para treze requadros: ilustra

os inúmeros alienados, em cenas individualizadas, como portadores de algum distúrbio,

tornando a moléstia mental perceptível a nível de discurso verbal e gestual dos

enfermos. O aspecto físico das vestimentas dos alienados nada denunciava, como se

nota nas figuras abaixo:

Figura 146: O alienista Figura 147: O alienista Figura 148: O alienista

Escala Educacional, pág. 8 Escala Educacional, pág. 9 Escala Educacional, pág. 10

O quadrinista Lailson apresenta coletivamente, no pátio, os insanos da Casa

Verde, em apenas dois requadros (figura 149). Lá, simultaneamente, cada um parece

estar em seu mundo, proferindo em discursos particulares suas histórias individuais, o

que sugere as crises. O aspecto físico (vestimentas, gestos, expressões fisionômicas) é

bem caricatural, o que denuncia a constante insanidade.

Figura 149: O alienista

Companhia Editora Nacional , pág. 11

Page 132: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

132

Cesar Lobo e Luiz Antonio Aguiar traduzem a rotina dos alienados (figura 150)

de forma bastante realista: nus, em autoflagelo, andrajosos, em crises assustadoras.

Todo isso é composto em um requadro de página inteira e enquadrado na perspectiva de

visão de Bacamarte. Detalhe especial para a retirada do padre deste episódio e a

presença de Bacamarte do alto da varanda, distante e superior, a anotar de forma

incólume, tudo o que observa.

Figura 150: O alienista

Ática, pág. 14

Fábio Moon e Gabriel Bá apresentam os convivas da Casa Verde (figuras 151,

152 e 153) em quinze requadros: primeiro, em panorâmica, visualiza todos para em

seguida particularizar sete casos, nos quais os trajes e os comportamentos incomuns e

repetitivos (conversas com parede, correr até o fim do mundo...) indicavam problemas

mentais. Nesta quadrinização, Bacamarte, modesto, caminha entre os insanos com o

padre.

Figura 151: O alienista Figura 152: O alienista Figura 153: O alienista

Agir, pág. 12 Agir, pág. 13 Agir, pág. 14

Page 133: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

133

Um dos episódios de maior tensão no texto literário é o relato do confronto das

forças da segurança pública de Itaguaí ( os dragões) com os participantes da insurreição

popular, liderados por Porfílio, o barbeiro. Waldomiro Seabra apresenta o fato de

maneira contida (figuras 154 e 155): ultimato para dispersão, relutância liderada pelo

barbeiro, avanço dos dragões com arma em punho, adesão de alguns dragões à rebelião,

entrega das armas pelo capitão e caminhada de todos para a Câmara.

Figura 154: O alienista Figura 155: O alienista

Escala Educacional, pág.33 Escala Educacional, pág.34

Lailson de Holanda materializa o mesmo momento de tensão, não de forma tão

contida (figuras 156 e 157), explora o ar de desentendimento de forma mais

performática, explorando o embate corporal e a exaltação de ânimos no carregamento

da expressão facial dos dois grupos.

Figura 156: O alienista Figura 157: O alienista

Companhia Editora Nacional , pág.40 Companhia Editora Nacional , pág.41

Page 134: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

134

A quadrinização de Cesar Lobo e Luiz Antonio Aguiar intensifica com grande

dramaticidade o embate entre os populares e os dragões explorando as posições

corporais e expressões fisionômicas, além de utilizar o discurso direto em medida

adequada, deixando a imagem falar pelas palavras.

O primeiro requadro da página 36 (figura 158) traz a cena do início do confronto

de forma que nos faz recordar momentos históricos de batalhas em prol da liberdade,

tamanha expressividade na luta. No segundo requadro o barbeiro Porfílio encena com

maestria o papel do líder da rebelião. Na página 37 (figura 159) em requadro único,

ocorre o ápice do combate, um verdadeiro banho de sangue defronte à casa de Simão

Bacamarte. Da casa destaca-se a varanda com a luz acesa. É este o elemento novo nesta

tradução (figura 160): o alienista acompanha “de camarote” a carnificina, considera por

ele como insânia, preocupado apenas com seus estudos.

Figura 158: O alienista Figura 159: O alienista Figura 160: O alienista

Ática, pág. 36 Ática, pág. 37 Ática, pág. 38

A quadrinização de Fábio Moon e Gabriel Bá traz a cena da batalha de modo

mais estilizado. Ela se inicia com o disparo do capitão que exige que a multidão se

disperse. Ora um requadro focaliza os dragões, ora os revoltosos (figura 161), que em

cólera avançam sobre os dragões, apesar dos tiros (figura 162).

O trabalho com os gritos e as onomatopéias relacionadas com os tiros intensifica

a violência do combate. Os quadrinhos apresentam cenas nas quais os populares são

Page 135: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

135

atingidos pelos tiros e a batalha parece fenecer com a vitória dos dragões. Percebe-se

que no último requadro, à distancia do lugar do combate, alguém vislumbra a vila de

uma varanda e ouve o estampir dos tiros. Este recurso é utilizado para aguçar a

curiosidade do leitor em relação à próxima página: quem é a pessoa que observa? Qual

o resultado do confronto?

Na página seguinte (figura 163) revela-se que os observadores são os

vereadores, que vêem, aos poucos o inusitado resultado do confronto: união dos

rebeldes com os dragões (imagem em perspectiva distante, silhuetas que se deslocam

irreconhecíveis no requadro 4 e 5, vão se aproximando e revelam a inesperada união de

forças no requadro 6).

Figura 161: O alienista Figura 162: O alienista Figura 163: O alienista

Agir, pág. 44 Agir, pág. 45 Agir, pág. 46

Observa-se que a tradução retoma o texto-base, sendo fiel a ele nas legendas,

mas confere ao quadrinista a liberdade de transmutar em ícones de acordo com a

interpretação e criatividade do tradutor, pois:

[...] o signo estético, quando traduzido por um outro signo estético,

mantém com este uma relação por similaridade e contigüidade por

referência. A tradução mantém uma relação íntima com seu original,

ao qual deve a sua existência, mas é nela que “a vida do original

alcança sua expansão póstuma mais vasta e sempre renovada”. A

tradução modifica o original porque este também é um produto de

uma leitura e, ambos, tradução e original, estariam possibilitados de

Page 136: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

136

chegarem a completar sua intenção que é precisamente de se atingir “a

língua pura”. (PLAZA, 2008)

As quadrinizações literárias como um signo estético que se origina de outro

signo estético surgem como uma possibilidade de leitura entre outras. Trata-se de um

processo de semiose pelo icônico que comporta tempo, mudança e transformação e o

novo signo busca sempre preencher os intervalos do original pela transposição criativa,

com signos balizados na visão de mundo do artista que a compõe.

Além dos romances e da novela, também contos machadianos passaram pelo

processo de transposição criativa em quadrinizações. A Peirópolis traz o Conto da

escola traduzido por Laerte Silvino, na coleção Clássicos em Quadrinhos em HQ que

tem como mérito inquestionável, apontado na apresentação por Maurício Soares Filho

“[...] apresentar a leitores obras fundamentais para formação de um repertório

intelectual, sem facilitar os textos ou diminuir sua profundidade e grandeza” (p.3).

Nota-se desde já que o texto-base será preservado na íntegra como legenda ou diálogos

entre as personagens, estando aí, na opinião de Maurício, o desafio para o quadrinista. É

ele quem afirma:

As metáforas pouco convencionais são um aspecto muito significativo

do trabalho de Machado, e esta versão em quadrinhos, que traz o texto

na íntegra, não poderia eliminar o prazer do leitor em descobri-las.

Laerte Silvino contribui com a narrativa machadiana ao explicitar, por

meio de cores, alguns elementos fundamentais para a sua apreciação,

especialmente ao explorar a subjetividade do narrador, que conta a sua

história em primeira pessoa. Difícil tarefa para um quadrinista esta,

ficar em silêncio para deixar Machado falar. Silvino não só dá conta

do recado como aproxima o leitor do século XXI de um dos maiores

exploradores da alma humana que já existiram.

Ao reverberar o texto machadiano, o quadrinista se mostra num processo

criativo interessante, percebido desde a capa 1 (figura 164) e capa 2 (figura165), que

abertas se complementam trazendo a própria crítica do texto-base em questão: o menino

saindo do seu espaço de liberdade (lugar onde mora) e sente-se diminuindo, castrado

quando vai para a escola. Para demonstrar isso, Silvino utiliza a imagem gingante meio

corpo, cintura para baixo, que se reduz em uma sombra minúscula. Existe aqui a ideia

da perda de liberdade e consequentemente, de identidade, como se pode ver nas figuras

que se seguem:

Page 137: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

137

Figura 164: Conto da escola Figura 165: Conto da escola

Peirópolis, capa 1 Peirópolis, capa 2

A quadrinização é realizada em técnica de ilustração infantil que metaforiza a

forma da criança olhar o mundo: o narrador adulto conta a partir das suas memórias da

infância, como via e sentia as situações. Além deste, outro recurso que torna coerente

esta perspectiva de narração é a materialização do temor que sentia pelo professor na

forma agigantada do mestre (figura 166); a perspectiva do requadro direto na ação

praticada (figura 167).

Figura 166: Conto da escola Figura 167: Conto da escola

Peirópolis, pág. 10 Peirópolis, pág. 26

Page 138: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

138

A utilização da cor como forma de representar emoções fortes é uma estratégia

marcante nesta quadrinização: o branco indica sentimento de realização (figura168), o

vermelho enfatiza a dor (figura 169); o cinza, situação de desencanto; e o preto, a

condição de vergonha e medo (170).

Figura 168: Conto da escola Figura 169: Conto da escola Figura 170: Conto da escola

Peirópolis, pág. 27 Peirópolis, pág. 36 Peirópolis, pág. 37

A Escala Educacional é outra editora que vem explorando os contos

machadianos em seu projeto de acessibilidade da literatura clássica. Deteremo-nos em

análise mais específica da sua quadrinização pelo fato de seu trabalho com os contos

constituir um aspecto desta pesquisa nas vivências de leitura com alunos.

Já no texto de apresentação das quadrinizações, que é comum a todas as obras,

os editores destacam como condição precípua para a adaptação a presença dos

elementos descritivos no texto. Eles advertem que a nova linguagem não substitui a

forma original da obra a qual é indubitavelmente importante para uma boa formação do

leitor.

A capa da referida coleção apresenta em letras maiúsculas, pretas e brancas, o

título da coleção literatura brasileira em primeiro plano, centralizado, como referência

ao objeto cultural que é ponto de partida do trabalho. Em seguida tem-se o termo

especificativo em quadrinhos, mais à esquerda, também em letras maiúsculas,

Page 139: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

139

proporcionalmente menor e de cor destacada, a indicar o novo processo, o novo suporte

– a literatura quadrinizada.

Esta forma de apresentar o título da coleção direciona para a transposição de um

leitura clássica e de tradição (sugerida no jogo das cores preta e branca) para uma leitura

marginalizada e mais criativa dos quadrinhos (percebida pelo colorido no termo

especificativo “em quadrinhos”, não centralizado).

O oposto ocorre nos elementos que se seguem: o título da obra literária é

apresentado em letras menores, dando-se maior destaque a um conjunto de requadros

que sintetizam a história em uma cena.

Neste jogo espacial e dimensional do título da coleção e cena-síntese pode-se

perceber a valoração dos objetos culturais envolvidos na composição do texto. Menor e

acima - a literatura brasileira. Maior e um pouco abaixo, mais tomando o centro e o

foco da folha - o requadro. Esta é a metáfora da situação social e de mercado dos

elementos formadores deste novo objeto cultural híbrido.

Observemos a disposição do título da coleção na capa 1 :

LITERATURA

BRASILEIRA

EM QUADRINHOS

A estrutura do título da coleção, acima transposto, pode ser reportado a uma

leitura crítica da origem dos objetos culturais que compõem o novo produto: situação de

prestígio (literatura) e desprestígio (quadrinhos) na origem dos objetos culturais que

formam a literatura em quadrinho.

Na continuidade, os elementos que também compõem a capa 1 – título da obra/

autor e requadro, metaforizam a situação atual das quadrinizações, na qual a imagem

ganha destaque em relação a palavra, percebidos na leitura subliminar e cultural.

Ao observar este jogo mais diretamente, percebe-se que a capa é uma metáfora

da relação dos objetos culturais (literatura e quadrinho) e o suposto ganho de espaço do

Page 140: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

140

novo objeto cultural híbrido na sociedade imagética contemporânea, como se observa

abaixo:

Figura 171: A cartomante

Escala Educacional: capa 1

O mesmo processo de composição é percebido em outros títulos da mesma

coleção, especialmente nas ressignificações de textos machadianos, como se observa a

seguir:

LITERATURA BRASILEIRA: Titulo principal

centralizado, dominante, em cores clássicas, indicando

o prestigio, o centro para a literatura clássica.

EM QUADRINHO à esquerda, um pouco menor. Sugere

algo fora do centro, buscando o centro, o prestígio.

TÍTULO DA OBRA , em cor preta padrão, em caixa menor,

retirando o destaque da obra literária.

CENA-SÍNTESE DA HISTÓRIA, quadrinizada, maior e mais

colorida, ganha destaque na capa. A imagem ganha maior

visibilidade, caso se observe o título da obra.

NOME DO AUTOR da obra literária e ausência do

nome do autor da quadrinização revela ainda a

condição de maior prestígio social para a literatura.

Page 141: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

141

Figura 172: A causa secreta Figura 173: O alienista

Escala Educacional, capa 1 Escala Educacional, capa 1

Figura 174: O enfermeiro Figura 175: Uns braços

Escala Educacional, capa 1 Escala Educacional, capa 1

Nota-se o jogo de paralelismo na capa que já apresenta a relação entre os dois

objetos culturais (literatura e quadrinhos) que apesar das linguagens específicas e do

prestígio que gozam ante os públicos delimitados a que se destinam, aglutinam-se em

um objeto cultural híbrido. Este novo produto cultural propicia a acessibilidade do leitor

Page 142: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

142

para a literatura clássica, sem perder as marcas específicas de cada linguagem que o

compõe.

2.2.1- Um olhar sobre a quadrinização de “A Causa secreta”

A quadrinização de “A causa Secreta” é um trabalho de roteiro e desenhos de

Francisco Vilachã e cores de Fernando A. A. Rodrigues. Apresentada num formato de

livro composto por quarenta e oito páginas: as duas iniciais como contracapa e

apresentação do trabalho pelos editores e a denominação da equipe responsável pela

coleção; quarenta páginas repletas de requadros e legendas; e as seis últimas com uma

pequena biografia/bibliografia e uma ficha de leitura contendo quinze questões que

focam muito mais a linguagem verbal que a imagética.

O texto base que dá origem à literatura em quadrinho é constituído de setenta e

três (73) parágrafos. Ele é traduzido para a linguagem visual em 317 requadros,

acompanhados quase que totalmente por legendas narrativas e pouquíssimos diálogos.

Toda a parte verbal escrita nas legendas dos quadrinhos mantém-se literalmente fiel ao

conto machadiano do qual é originário, que foi segmentado conforme a interpretação do

artista para estruturar a quadrinização.

Como exemplo da liberdade de criação do artista no que se refere a estruturação

do texto verbal para transmutação ao icônico, observemos o fragmento do texto base.

Trata-se do parágrafo 19:

O pobre-diabo saiu mortificado de lá, humilhado, mastigando a custo

o desdém, forcejando por esquecê-lo, explicá-lo ou perdoá-lo, para

que no coração só ficasse a memória do benefício; mas o esforço era

em vão. O ressentimento, hóspede novo e exclusivo, entrou e pôs fora

o benefício, de tal modo que o desgraçado não teve mais que trepar a

cabeça e refugiar-se ali como uma simples idéia. Foi assim que o

próprio benfeitor insinuou a este homem o sentimento de ingratidão.

(ASSIS, p.513)

O quadrinista fragmentou o parágrafo e o traduziu para a forma de sete

requadros, com imagens que retratam o contexto histórico e geográfico da época. Isto é

percebido pelos casarões, ruas, vestuário dos personagens, como se pode perceber a

seguir:

Page 143: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

143

Figura 176: A causa secreta

Escala Educacional, pág.16

No trecho destacado do texto base, sentimentos são personificados poeticamente

(ressentimento torna-se hóspede da cabeça e refugia-se na idéia e ingratidão) e

sensações ganham força na metáfora (mastigando a custo o desdém). Na quadrinização,

a transmutação criativa da temperatura poética deste trecho em imagens se deu em

conformidade a subjetividade e liberdade da leitura do artista quadrinista, que traduz

estes sentimentos nas posturas de corpo, expressões faciais e formas de olhar da

personagem.

Gouveia, a personagem da trama em destaque nos requadros, é apresentada nas

imagens com postura corporal desanimada (cabeça baixa, olhar voltado para o chão)

para indicar o estado de espírito de decepção. Nos requadros 2, 3, 2 4, o homem é

Page 144: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

144

focado em perspectiva distante, com as vistas baixas acentuando a condição de

humilhado. A partir do quinto requadro a centralização do olhar, em perspectiva frontal

e em aproximação gradativa, revela, aos poucos, o surgimento de uma expressão dura e

carregada. A aproximação contínua com foco no olhar sugere uma atividade mental de

introspecção, ou seja, o nascimento, de forma dolorosa, do sentimento de ingratidão,

provocada em Gouveia pela frieza de Fortunato.

Por outro lado, a liberdade de criação é delimitada pela preservação do texto

literário, transposto como legendas nos requadros, com as características da escrita da

época da produção. A ilustração torna acessível a enunciação verbal graças às imagens,

pois somente a primeira pode parecer difícil para compreensão de algum leitor não

afeito às construções subjetivas do texto literário machadiano.

Na totalidade da obra, poucas foram as reduções ocorridas no texto literário ao

ser transposto segmentado para as legendas. E quando isso ocorreu deu-se pela

eliminação de palavras que se tornaram elementos imagéticos constituindo a cena.

Mantê-las seria redundância desnecessária nesta transposição como se observa no

parágrafo 13 do conto que foi fragmentado para oito requadros. O trecho “[...] Durante o

curativo, ajudado pelo estudante, Fortunato serviu de criado, segurando a bacia, a vela,

os panos, sem perturbar nada, olhando friamente para o ferido, que gemia muito”.

(ASSIS, Machado. Várias Histórias. A Causa Secreta, p.513) foi traduzido para os três

requadros que se seguem:

Figura 177: A causa secreta

Escala Educacional, pág. 11

Page 145: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

145

Naturalmente o trecho descritivo da ação da personagem Fortunato “segurando a

bacia, a vela, os panos” tornou-se imagem no primeiro requadro, o que dipensou as

palavras correspondentes na legenda.

Outra forma de redução do texto literário na legenda do quadrinho dá-se quando

a imagem contribuiu para a caracterização da personagem Fortunato, sendo suprimidos

os termos descritivos que não acrescentariam nenhuma informação, como se observa

nos fragmento abaixo:

Olhou para ele, viu-o sentar-se tranquilamente, estirar as pernas, meter

as mãos na algibeira da calça, e fitar os olhos do ferido. Os olhos eram

claros, cor de chumbo, moviam-se devagar e tinham a expressão dura,

seca e fria. Cara magra e pálida; uma tira estreita de barba, por baixo

do queixo, e de uma têmpora a outra, curta, ruiva e rara.Teria quarenta

anos.

(ASSIS, p.513)

O referido fragmento, ao ser transmutado para as imagens, é transformado em

cinco requadros (figura 178), como se observa abaixo:

Figura 178: A causa secreta

Escala Educacional, pág. 12

Na legenda do primeiro requadro, a expressão “sentar-se traquilamente” abarca

as informações semânticas consecutivas “estirar as pernas, meter as mãos na algibeira”,

presentes no conto, entretanto, eliminadas no quadrinho. O advérbio tranquilamente e a

Page 146: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

146

imagem elaborada para ilustrar Fortunato supõem implicitamente esta postura corporal,

não havendo necessidade das palavras.

Também as expressões adjetivas “Cara magra e pálida; uma tira estreita de

barba, por baixo do queixo, e de uma têmpora a outra, curta, ruiva e rara.” são

descartadas por já estarem concretizadas nas imagens do terceiro e quarto requadros.

Um dos trechos mais reveladores e detalhados em ações no conto, também sofre

redução nas legendas. Observemos o trecho, abaixo transcrito:

[...] Viu Fortunato sentado à mesa, que havia no centro do gabinete, e

qual pusera um prato com espírito de vinho. O líquido flamejava.

Entre o polegar e o indicador da mão esquerda segurava um barbante,

de cuja ponta pendia o rato atado pela cauda. Na direita tinha uma

tesoura. [...]

No quadrinho eliminou-se a legenda e inicialmente apresenta a imagem do

objeto das torturas (figura 179) que passa a insinuar algo insólito:

Figura 179: A causa secreta

Escala Educacional, pág. 29

Somente nas quatro páginas seguintes será apresentada cada etapa da tortura,

que é antecipada por dois requadros (figura 180): o primeiro com a imagem de Garcia,

em perspectiva próxima, em close-up com foco no olhar atônito; o que sugere a sua

chegada, e o segundo, ato que Garcia começou a presenciar – o início do ritual de

tortura do rato. A colocação de apenas uma legenda para os dois requadros indica a

importância do foco de observação na narrativa – de Garcia para com Fortunato. Nela a

omissão do verbo viu ocorre por esta ação já está materializada na imagem.

O segundo requadro não apresenta uma legenda com descrição do ocorrido, que

é bem detalhado no texto base (Entre o polegar e o indicador da mão esquerda

segurava um barbante, de cuja ponta pendia o rato atado pela cauda. Na direita tinha

uma tesoura), pois a imagem por si só relatou todos os atos, evitando uma legenda que

seria redundante. Notemos as imagens:

Page 147: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

147

Figura 180: A causa secreta Figura 181: A causa secreta

Escala Educacional, pág. 30 Escala Educacional, pág. 31

Figura 182: A causa secreta Figura 183: A causa secreta

Escala Educacional, pág. 32 Escala Educacional, pág. 33

Garcia assite ao início da tortura, mesmo incomodado com o que vê, supondo

uma ação única e rápida na queima do rato. Quando a tortura se torna mais atroz,

mutilação intermediada pela queima lenta, ele interfere solicitando o término (figura

180 – último quadrinho). Fortunato absorto no prazer da ação não nota a presença do

jovem médico que continua como espectador da cena.

Page 148: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

148

A partir daí momentos de atrocidade com mutilações e queimas lentas do rato se

sucedem, alternando-se com requadros de Fortunato em meio busto, close-up da face e

meia face transbordando expressão de prazer (figuras 181 e 182). Para provocar o efeito

de terror nos quadrinhos, o artista utiliza-se de um olhar materializado de forma

enviezada e macabra, além do sombreado e as cores amarela e vermelha reluzindo no

rosto de Fortunato, como chama, a intensidade de seu prazer . Na figura 183 tem-se o

final da tortura na perceptível sensação de satisfação de Fortunato, que só então dá se

conta da presença de Garcia e tenta disfarçar o ocorrido.

Assim fica evidente que por mais que o quadrinista conserve o texto literário nas

legendas dos requadros, enquanto leitor ele processa uma recriação, uma reconstrução

do verbal no imagético. Também na condição de criador tem ele a liberdade de retirar

trechos que se tornariam redundantes no ato de confronto do verbal e visual. A

fidelidade ao texto existe até o momento em que o próprio texto não comprometa a

fruição e a leveza da interpretação imagética do artista.

E esta liberdade de recriação do quadrinista é contundente nas duas primeiras

páginas da quadrinização pela estratégia de ficcionalização do próprio escritor do texto

base. Tal estratégia torna-o narrador-personagem testemunha do novo texto. Ou seja,

enquanto no conto o escritor Machado de Assis é criador de uma entidade imaginária

para narrar o que viu e ouviu – narrador-personagem-testemunha, nesta quadrinização o

escritor é transformado em criatura – o próprio Machado de Assis é a personagem que

se dirige ao leitor para contar-lhe os fatos, como se nota nos requadros abaixo:

Figura 184: A causa secreta

Escala Educacional, pág. 3

Page 149: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

149

Figura 185: A causa secreta

Escala Educacional, pág. 3

Figura 186: A causa secreta

Escala Educacional, pág. 4

Figura 187: A causa secreta

Escala Educacional, pág. 4

A materialização do narrador é reconhecida nas ilustrações que trazem o perfil

do escritor real: óculos pequenos, traje ao estilo inglês, gestos graves. Esta estratégia é

utilizada para diluir a complexidade que se dá nos dois parágrafos do conto, quando a

narração apresenta um fato já adiantado da história, o que dificulta ao leitor situar quem

são narrador, personagens e o que realmente aconteceu.

No texto base, o primeiro parágrafo apresenta uma montagem da cena com os

personagens para depois situar a voz que conta, o que desconserta o leitor menos

persistente, como se observa abaixo:

Garcia em pé, mirava e estalava as unhas; Fortunato, na cadeira de

balanço, olhava para o tecto; Maria Luisa, perto da janela, concluía

um trabalho de agulha. Havia cinco minutos que nenhum deles dizia

Page 150: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

150

nada. Tinham falado do dia, que estivera excelente, - de Catumbi,

onde morava o casal Fortunato, e de uma casa de saúde, que adiante se

explicará. Como os três personagens aqui presentes estão agora

mortos e enterrados, tempo é de contar a história sem rebuço.

(ASSIS, Machado de. Obras Completas: Contos. Várias

Histórias. A Cause Secreta, p.511)

Nos quadrinhos, a primeira página (figura 188) é uma das mais interessantes da

obra. Ela é o que preconiza Eisner (1999, p.64), “um trampolim para a narrativa, [...] Se

bem utilizada, ela prende a atenção do leitor e prepara a sua atitude para como os

eventos que se seguem.”. Nela tem-se como meta a centralização do leitor na instalação

da situação narrativa, na qual fica clara a criatividade do quadrinista e a percepção do

leitor arguto que ele demonstra ser. Observemos:

Figura 188: A causa secreta

Escala Educacional, pág. 3

Fica evidente a técnica quadrinística de apresentação sucinta do cerne da história

já nas posturas corporais e faciais das personagens: Garcia e Maria Luisa apresentados

Page 151: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

151

em perspectiva próxima, em figura média, nos requadros 2 e 4, parecem decepcionados.

A imagem destas personagens são complementadas sintática e semanticamente em meio

corpo nos requadros 5 e 7, revelando gestos de tensão. Fortunato, em close-up no

quadrinho 3, complementado no requadro 6, transparece uma mistura de distanciamento

e deleite. As posturas das personagens revelam uma velada discordância entre eles.

Instaura-se um clima de tensão e mistério na suposta relação entre as três personagens.

No segundo parágrafo, o narrador foca o presente da narrativa para o mote de

desvendamento da cena instalada, ou seja, o flashback da história, como se nota:

Tinham falado também de outra cousa, além daquelas três questões,

coisa tão feia e grave, que não lhes deixou muito gosto para tratar do

dia, do bairro e da casa de saúde. Toda a conversação a este respeito

foi constrangida. Agora mesmo, os dedos de Maria Luisa parecem

ainda trêmulos, ao passo que há no rosto de Garcia uma expressão de

severidade, que lhe não é habitual. Em verdade, o que se passou foi de

tal natureza, que para fazê-lo entender, é preciso remontar a origem da

situação.

(ASSIS, p.511)

Por sua vez, na página da quadrinização (figura 189), o narrador-personagem

materializado insinua uma problemática para a história que está prestes a iniciar:

Figura 189: A causa secreta

Escala Educacional, pág. 4

Page 152: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

152

É nos requadros 1, 2, 3, 4 que temos o momento de maior revelação do contador

dos fatos: o narrador-personagem retratado em diferentes ângulos, posições e

enquadramentos – perspectiva frontal, ora próxima, ora distante, em figura de corpo

inteiro, médio e close-up – estabelece sua posição na narrativa. Mediante os seus gestos

corporais, ele se mostra bem performático na ação de narrar, o que insinua uma

interlocução com o receptor. Esta é a forma que o quadrinista encontrou para

materializar a condição de diálogo que Machado de Assis cultiva com o leitor no texto

base.

No texto base, o escritor nos propicia um breve perfil das personagens

caracterizadas conforme suas reações (dedos trêmulos de Luísa, rosto com expressão de

severidade de Garcia); nos quadrinhos (figura 190) o quadrinista explora estas

informações também nos traços faciais que ganham através das marcas de

sombreamento e olhar declinado, um estado emocional de mistério, desengano e certa

tristeza. Acrescenta-se a imagem de Fortunato no requadro sem legenda, o que insinua

perversidade e alheamento no olhar distante.

Figura 190: A causa secreta

Escala Educacional, pág. 3

A cousa tão feia e grave que provocara o nervosismo de Maria Luísa e o ar

severo de Garcia nos quadrinhos da figura anterior é o estopim para a narrativa ser

Page 153: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

153

retomada nas origens. Assim situa-se a história da relação entre os três personagens, o

foco das ações, passando à linearidade do ato narrativo. Têm-se desta maneira a

apresentação de uma situação de mistério na página 1 e a instauração do processo

narrativo na página 2, ambas entronizando a diegese para melhor explicitar a história ao

leitor. Isto não ocorre no conto, no qual apenas é apresentada a cena inicial, descrita

como um quadro por um narrador que não se revela para que o leitor o situe no processo

de enunciação.

As duas principais técnicas da arte dos quadrinhos, muito bem utilizadas nesta

quadrinização do texto machadiano para intensificar as informações semânticas do texto

base, é o uso do sombreado para indicar algo recôndito, que passa no íntimo das

personagens, que não se revelam com clareza; e a utilização do close-up no rosto,

realçando o olhar, oblíquo, enviesado que dá a impressão de ocultamento de algo que

não se mostra na aparência das ações das personagens.

Estes recursos trazem mais efeito às conotações que caracterizam as personagens

durante toda a narrativa. É nas ilustrações de Fortunato que mais se percebe a utilização

desta técnica intensificando suas características, como se pode notar:

Figura 191: A causa secreta Figura 192: A causa secreta

Escala Educacional, pág. 6 Escala Educacional, pág. 7

Page 154: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

154

Figura 193: A causa secreta

Escala Educacional, pág. 28

Figura 194: A causa secreta Figura 195: A causa secreta

Escala Educacional, pág. 16 Escala Educacional, pág. 34

Figura 196: A causa secreta Figura 197: A causa secreta

Escala Educacional, pág. 25 Escala Educacional, pág. 42

O sombreamento é constante em parte, em meia ou na totalidade da face. O

olhar sempre de lado, enviesado, sempre distante, dando um ar muitas vezes

Page 155: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

155

maquiavélico. O rosto sempre de perfil tanto em figura inteira, quanto em close up . São

marcas de quem não se revela por completo e sempre tem algo a ocultar.

Em Garcia, o sombreamento se dá de maneira mais leve (figuras 198, 199, 202),

exceto nos momentos de maior tensão (figuras 200 e 201). O rosto em close-up mostra-

se mais frontal ou ligeiramente em perfil. O olhar em diagonal, geralmente mais claro,

traz curiosidade, dúvida, busca, (figura 203) características típicas do observador.

Figura 198: A causa secreta Figura 199: A causa secreta Figura 200: A causa secreta

Escala Educacional, pág. 21 Escala Educacional, pág. 23 Escala Educacional, pág. 32

Figura 201: A causa secreta Figura 202: A causa secreta

Escala Educacional, pág.36 Escala Educacional, pág. 6

Figura 203: A causa secreta

Escala Educacional, pág. 17

Page 156: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

156

Em Maria Luíza, o sombreamento é leve, em metade da face, indicativo de

temor. Os olhos sempre focados para baixo, mesmo quando de perfil, acentuam-lhe um

ar servil, de resignação. Quando focados para frente, mostram-se sofredores e

angustiados, como se quisessem revelar algo e faltasse coragem. Em muitas cenas o

olhar aparece extremamente voltado para baixo que os olhos parecem fechados, o que

evidencia o aspecto da solidão e decepção da jovem.

Figura 204: A causa secreta Figura 205: A causa secreta

Escala Educacional, pág. 19 Escala Educacional, pág.

Figura 206: A causa secreta Figura 207: A causa secreta

Escala Educacional, pág. 37 Escala Educacional, pág. 19

O artista também utiliza de outras estratégias próprias da linguagem dos

quadrinhos para dar mais vivacidade ao texto impondo-nos com clareza que não se trata

de simples ilustrações da obra literária, mas de um novo texto imagético, no qual o

quadrinista-leitor reverbera a obra literária. Assim, observa-se

Cena em requadros de continuidade, intensificando as emoções e

informações que quer passar ao leitor. Na figura abaixo a ausência da

legenda no último quadrinho associado a esta técnica dá expressividade

máxima à ação malévola de Fortunato.

Page 157: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

157

Figura 208: A causa secreta

Escala Educacional, pág. 8

A utilização de elementos icônicos de forma criativa para dar certo

sentido à cena, como na figura 206 quando o formato da fumaça e as

expressões das personagens sugerem o ar de descontração e familiaridade

no encontro entre Fortunato, Garcia e Maria Luíza.

Figura 209: A causa secreta

Escala Educacional, pág. 19

Um pequeno fragmento do texto-base ganha uma série de requadros,

unificados em uma única legenda. Na figura 169, para indicar um clima

de desconfiança, dúvida e curiosidade, o fragmento do texto-base é

materializado em nove quadrinhos, com uma legenda sobreposta nos três

primeiros requadros, e os seis restantes buscando detalhar o

acontecimento a partir pontos de vistas diferenciados:

Page 158: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

158

Figura 210: A causa secreta

Escala Educacional, pág. 13

Utilização de imagens a mais do que sugere o texto-base, o que mostra a

visão do quadrinista enquanto leitor da obra. Na figura 208, a colocação

da imagem de Fortunato já impinge algum mistério a ser descoberto, o

que reforça ainda mais a atenção do leitor para sua figura um tanto

incomum. Na figura 209 a imagem de Fortunato a espreitar o homem ao

qual ajudara é criação do artista para intensificar ainda mais sua postura

de desdém em relação ao outro. São acréscimos que atestam a

transposição criativa do tradutor, o que potencializa o texto-base

enquanto signo estilístico.

Figura 211: A causa secreta

Escala Educacional, pág. 4

Page 159: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

159

Figura 212: A causa secreta

Escala Educacional, pág. 16

Desta maneira, a literatura em quadrinhos A Causa Secreta de Vilachã torna-se

um objeto cultural híbrido, ao assumir a proposta de aglutinar as distintas linguagens

dos objetos que antes pareciam atender a públicos distintos, mas que neste

entrecruzamento tende a alcançar um universo maior de leitores. A hibridez acaba se

efetivando via tradução intersemiótica, ou seja, há transposição criativa de signos

estéticos verbais para signos estéticos icônicos, o que origina um novo texto.

O quadrinista é um leitor/criador que, muito além de conservar ao máximo o

texto literário base, amplifica-lhe o sentido via ressignificação processada em sua

leitura. Aqui, traduzir é materializar em imagens o texto verbal machadiano, levando-se

em consideração a forma peculiar do quadrinista ler as suas metaforizações.

Page 160: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

160

3. OS CONTOS E REQUADROS MACHADIANOS NA APRECIAÇÃO DO

LEITOR CONTEMPORÂNEO

3.1 O leitor na contemporaneidade

No processo comunicacional literário, o leitor contemporâneo não é mero

elemento passivo que se porta como auscultador da cultura e do saber da literatura da

elite letrada, esta tomada como referência de formação do sujeito. Muitos e diversos são

os objetos culturais híbridos de leitura que dialogam com a literatura. Muitas são as

compreensões do ato de ler.

Nos dois últimos séculos, o leitor tornou-se uma figura bastante discutida frente

às transformações culturais. Compreender quem é este sujeito da leitura está atrelado ao

entendimento do processo que ele executa e dos objetos culturais que ele vasculha.

A visão da leitura como mero processo de decodificação da palavra escrita está

sendo ampliada. Não se trata apenas de decifrar os códigos verbais escritos como nos

textos pragmáticos cotidianos. Muito menos de assenhorear-se dos mecanismos das

obras literárias canônicas que requerem leitores iniciados, isto é, indivíduos dotados de

habilidades que facilitam e permitem o domínio dos estratagemas específicos daquelas

produções.

Ao lado da leitura meramente informativa, que inunda a vida cotidiana do

trabalho e das relações sociais, há outra proposta de leitura cuja interpretação carece de

habilidades linguísticas consideradas do padrão culto – a da literatura letrada. Tais

produções determinam por si só certo caráter de exclusão, por não serem de fácil acesso

a um grande público. Existe um descompasso, alimentado pela desconsideração dos

leitores das culturas periféricas, grupos desprivilegiados por não deterem poder

socioeconômico, mas que nem por isso deixam de ser olhados como consumidores em

potencial.

Neste universo de descompasso emergem práticas leitoras fomentadas pelo

mercado e favorecidas pela gama de textos que rompem a fronteira do código verbal

letrado e que se articulam com experiências e saberes antes relegados à marginalidade.

O texto literário culto passa a dividir espaços com a literatura popular, com os objetos

culturais antes considerados como pertencentes apenas à cultura de massa (cinema,

quadrinho...) e com produtos da tecnologia que negam a condição de exclusivismo ao

livro tradicional. Esta perspectiva é confirmada nas palavras de Martin-Barbero (2004)

Page 161: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

161

quando este acena para novas tendências do conceito e domínio da cultura na sociedade

moderna, tecnológica e globalizada, que tende a “[...] densificar-se e se converter em

estrutural, pois a tecnologia remete hoje não a novas máquinas ou aparelhos, mas a

novos modelos de percepção e de linguagem, a novas sensibilidades e escritas.”.

Frente a esta gama de possibilidades, o sujeito leitor passa a ser visto como um

indivíduo cujas identificações em muito vai definir sua escolha de leitura. Esta atitude,

no entanto, não segrega a atividade leitora a um único gênero textual, visto que a grande

circulação dos textos híbridos amplifica a atividade leitora. Ler, neste contexto sócio-

histórico e na presente pesquisa, passa a ser um ato tradutor, de domínio de diferentes

códigos que dialogam e ressignificam práticas culturais diferenciadas, o que faz com

que se ampliem as fronteiras de apreciação.

É forçoso, entretanto, abrir espaço para um questionamento: num país onde o ato

de ler está atrelado ao domínio dos textos seletos da elite letrada e é quase que restrito

ao ambiente escolar, como o leitor literário contemporâneo tem acesso a este produto da

leitura?

A academia idealiza o leitor literário como um dos partícipes do percurso da

obra literária tradicionalmente estruturada na tríade autor/obra literária/leitor. As

abordagens teóricas de leitura variam conforme o foco, segundo Antoine Compagnon

(2001,p. 139):

[...] A abordagem objetiva, ou formal, da literatura se interessa pela

obra; a abordagem expressiva, pelo artista; a abordagem mimética,

pelo mundo; e a abordagem pragmática, enfim, pelo público, pela

audiência, pelos leitores. Os estudos literários dedicam um lugar

muito vulnerável ao leitor [...]

O lugar destinado ao leitor é delimitado pela contradição, segundo Compagnon.

Por um lado, nas correntes de leitura imanente ao texto, ele é ignorado, visto como um

mero receptor da obra-organismo autônomo ou simples elemento constituinte da obra-

estrutura sistêmica organizada. É visto como um apreciador da obra, produto social pela

sociologia da literatura. Em outras discussões o leitor é extremamente valorizado e o ato

de leitura da obra literária procede pela simpatia e reações deste leitor, que muitas vezes

confunde o processo de compreensão do texto literário com a leitura de si mesmo.

Assim, de acordo com o teórico, coexistem diferentes denominações

acadêmicas, com que se qualifica o leitor, conforme o papel que a teoria lega. Destaca-

se o leitor empírico, real, do cotidiano, isto é, aquele leitor que faz a leitura voltada para

Page 162: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

162

aspectos pragmáticos. Geralmente só terá contato com o texto literário quando chega ao

mundo da escola.

Para o estruturalismo, corrente literária que prima pela leitura objetiva, a obra

literária é tomada como uma estrutura. Segundo Eagleton (2001), tal corrente trazia em

sua prática a separação do conteúdo real da história e concentrava-se na forma. O leitor

não é considerado como um sujeito histórico e social, o leitor ideal, “[...] apenas uma

espécie de espelho refletor da obra – alguém que a compreendia ‘tal como era’. [...]

perfeitamente equipado de todo o conhecimento técnico essencial para [decifrá-la].” ( p.

166). Assim o leitor, elemento sem subjetividade, tem a leitura regulada pelas

imposições textuais, realizando a descrição estrutural do texto e não a interpretação, o

que o torna uma espécie de elemento funcional do texto.

Para o new-criticism, o leitor-aprendiz é o indivíduo “[...] a quem é preciso

ensinar a ler mais cuidadosamente, a superar suas limitações individuais e culturais [...]”

(Compagnon, 2001, p. 142). A obra é tomada como unidade orgânica suficiente, da qual

deveria ser realizada uma leitura fechada, objetiva e descritiva.

Para Candido (2008), um dos representantes da crítica sociológica no Brasil, a

literatura é um sistema vivo de obras que agem umas sobre as outras e sobre os leitores.

Estes é que dão permanência à obra – produto fixo ante o público. Obra e público atuam

um sobre o outro. Contudo o leitor é denominado público, não um grupo social

específico, mas uma coleção de indivíduos organizados ou não, que trazem em comum

o interesse pelo fato que a obra literária veicula. O foco não se centra no leitor, mas no

contexto de produção e na representação social veiculada na obra.

Na estética da recepção, segundo Compagnon, “[...] o objeto literário não é o

texto objetivo, nem a experiência subjetiva, mas o esquema virtual (uma espécie de

programa ou partitura) feito de lacuna, de buracos e de indeterminações. Em outros

termos, o texto instrui e o leitor constrói. [...] (p.150)”. Nesta relação texto/leitor, Iser

defende o princípio do leitor implícito, calcado no autor implícito que, segundo Booth,

tratava-se de um substitutivo do autor na obra. Aqui, “[...] haveria, assim, em todo texto,

construído pelo autor [...] um lugar reservado para o leitor, o qual é livre para ocupar ou

não” (idem).

Apesar das diversas definições teórico-acadêmicas, o leitor que a escola

secularmente cultiva (ou imagina cultivar) ainda está extremamente relacionado ao

decodificador passivo frente à supremacia da obra literária, no processo de leitura que

Page 163: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

163

produz apenas uma única possibilidade de entendimento do texto, tomada como correta.

A escola, por sua vez, busca ensinar ao aluno a literatura culta, o que é alcançado via

aprendizagem dos recursos de linguagem, da estrutura do texto, da contextualização do

momento de produção e da biografia do autor. Ocorre pouca ou quase nenhuma

experimentação do texto e as respostas aos questionamentos são condicionadas aos

manuais utilizados pelos professores.

Não obstante, a educação oferecida pelo aparelho estatal prevê a estética da

sensibilidade, além da igualdade e identidade como fundamentos para as experiências

de aprendizagens na escola, pressuposta na Constituição e na LDB. Tal estética

substitui, no ambiente escolar, a padronização e a repetição dos modos de agir e pensar,

instauradoras de ideologias homogêneas, pelo estímulo à criatividade, ao espírito

inventivo, à afetividade para facultar a construção da identidade numa sociedade na qual

o incerto, a inquietação, o imprevisível e o diferente tornam-se a tônica das relações e

produções. O leitor, neste contexto, passa a ser visto como um sujeito de ação e

integração no ato de leitura e com acessibilidade às diversas formas de textos

produzidos na cultura. Nos Parâmetros Curriculares: do Ensino Médio (1999, p. 76)

está previsto que:

A estética da sensibilidade não é um princípio inspirador apenas do

ensino de conteúdos ou atividades expressivas, mas uma atitude diante

de todas as formas de expressão [...]. Ela não se dissocia das

dimensões éticas e políticas da educação porque quer promover a

crítica à vulgarização da pessoa; às formas estereotipadas e

reducionistas de expressão da realidade; às manifestações que

banalizam e brutalizam as relações pessoais.

Neste contexto da estética da sensibilidade, o leitor enquanto sujeito histórico e

cultural teria a liberdade de elaboração de leituras e possibilidade de apreciação dos

diversos produtos da cultura, visto que ela “[...] não exclui outras estéticas, próprias de

outros tempos e lugares. Como forma mais avançada de expressão ela as subassume,

explica, entende, critica, contextualiza porque não convive com a exclusão, a

intolerância e a intransigência.”(PCN p. 76).

Muito diferente do previsto, a prática leitora promovida pela escola

autointitulada de democrática é, em muito, arcaica, autoritária e excludente. Quando

muito, privilegia apenas o domínio de textos interligados com as necessidades do

mundo referencial em que o sujeito é solicitado a agir de modo pragmático, uma vez

Page 164: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

164

que ele se depara com a necessidade de atuações objetivas. A leitura literária é apenas

uma exigência do currículo para os exames vestibulares, pretexto para estudos

gramaticais e não uma prática comunicativa promotora do prazer estético, em tudo bem

distante, portanto, do que descreve Reis (1992, p.76):

O ato de leitura é um fenômeno altamente complexo e possui um

caráter eminentemente dialogal: na leitura não interagem não apenas o

leitor e o texto, mas, através do texto, o leitor entabula uma

conversação com o autor, com o contexto histórico e social, com uma

cultura, uma tradição literária, uma visão de mundo, um acervo

linguístico.

Neste sentido, a pretendida formação para a leitura literária orientada pela

estética da sensibilidade conduz a um posicionamento político de consciência individual

e social pelo respeito às diferentes produções e formas de expressões que estabeleçam a

percepção das realidades sócio-culturais e promovam trocas de experiências capazes de

tornar o sujeito crítico. Para isso, urge uma análise textual balizada em caminhos

teóricos que ofereçam uma prática leitora para além da mera percepção estrutural e da

reverberação do discurso elitista que permeiam a leitura dos clássicos na escola, como

comenta Reis (idem, p.86):

[...] a análise textual não é por si só bastante para dar conta do

fenômeno literário em toda a sua extensão e complexidade – em

particular se pensamos em surpreendê-lo em sua interseção com a

trama social – cabe acentuar que uma abordagem do texto, mesmo

daqueles canônicos, que esteja animada pelo mencionado paradigma e

que exponha a uma diferente maneira de ler já faz emergir um leque

de idéias fecundas para se pensar a literatura e a cultura brasileira, as

quais deveriam ser arrematadas, num outro simultâneo gesto de

leitura, pelo inventário das condições de circulação, reprodução,

legitimação e consumo deste mesmo texto no interior do campo e da

sociedade em que figurar.

Trata-se de possibilidades de ler que privilegiem a leitura da sociedade e da

cultura multifacetadas. Dois caminhos são recorrentes nos últimos anos: na teoria

literária, a estética da recepção; nas discussões culturais, o interculturalismo.

A estética da recepção, teoria da crítica literária discutida com mais fervor na

década de 60 e 70 do século XX, é retomada como uma nova atitude diante das práticas

de leituras contemporâneas. Segundo destaca Costa Lima (2002), a princípio a referida

teoria colocava o leitor como centro da pesquisa recepcional defendida com vigor por

Jauss. Com Iser, houve uma tendência para uma compreensão do texto enquanto

Page 165: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

165

estrutura marcada por indeterminações que orientam o leitor e ativam a sua participação

nas variadas construções de sentido.

Posteriormente, Gumbrechet teoriza o deslocamento do foco para a compreensão

do processo realizado pelo leitor como construtor das diferentes exegeses de um texto,

abandonando a clássica ideia de uma única interpretação correta que erige a imagem do

leitor ideal.

Nesta recondução do papel do leitor no ato da leitura, enquanto sujeito social, ele

teria historicidade e identidade respeitadas dentro da escola, espaço destinado para as

práticas leitoras, especialmente as literárias, o que o faria caminhar ao encontro da

postulada estética da sensibilidade.

Vale salientar que, segundo Jauss12

a leitura literária que deveria então, como em

qualquer arte, promover no leitor o prazer estético, recebe, na atualidade, novas

compreensões. Tais compreensões são motivadas pela dissociação entre trabalho e

prazer e pelas constantes críticas à reação de prazer relacionada à espiritualização da

arte, em contraponto ao efeito de consumo promovido pelos produtos da cultura de

massa. Este contexto promove posições ideológicas distintas quanto ao entendimento do

tão discutido prazer estético, que para algumas reflexões marxistas, nada mais é que

uma forma burguesa de apreciação. Para este teórico o prazer estético:

[...] perdeu muito de seu sentido elevado. Outrora, o prazer justificava,

como um modo de domínio do mundo e de autoconhecimento e, a

seguir, como conceito da filosofia da história e da psicanálise, as

relações com a arte. Hoje, para muitos a experiência estética só é vista

como genuína quando se priva de todo o prazer e se eleva a um nível

de reflexão estética. (JAUSS, 2002)

Diante dos diferentes posicionamentos, interessa-nos observar que a

comunicação literária só preserva o caráter de experiência estética, de acordo com Jauss,

se a atividade da poiesis (técnica), da aistheses (visão de mundo) ou da katharsis

(comunicação) mantiver o caráter de prazer, afirmando a autonomia da ação humana,

aqui, ação do leitor. Desta maneira, a oscilação entre prazer sensorial e reflexão estética,

típica da moderna teoria da arte, confirma as diferentes abordagens do leitor frente ao

texto. Tais abordagens, ainda segundo Jauss, são muito bem definidas e reelaboradas

12

JAUSS, Hans Robert. A estética da recepção: colocações gerais. In LIMA, Luiz Costa (Org.). A

Literatura e o leitor: textos da estética da recepção. Rio de Janeiro: terra e Paz. 2002

Page 166: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

166

por Goethe (Apud. JAUSS, Hans Robert in LIMA, Luiz Costa (Org.) p.103 ) na antecipada

inversão da aiesthesis em poesis, ao afirmar que “Há três classes de leitores: o primeiro,

o que goza sem julgamento, o terceiro, o que julga sem gozar, o intermédio, que julga

gozando e goza julgando, é o que propriamente recria a obra de arte.”

As diferentes formas de apreciação do leitor acima observadas já nos

encaminham para uma postura recorrente do leitor contemporâneo: os textos literários

considerados por ele difíceis não provocam satisfação, uma vez que lhe dão trabalho

para a realização da leitura e interpretação. Esta postura provoca uma tendência à

preferência pelos textos híbridos icônicos, considerados facilitadores do entendimento

de obras literárias na contemporaneidade.

Neste sentido, produtos das diferentes culturas (da elite, da popular e da de

massa) são reelaborados e facilitam a percepção dessa variedade cultural. Diversidade

esta, própria do ambiente escolar por ser compostos de sujeitos de variadas realidades

culturais e que na vida cotidiana é seduzido por produtos multiculturais. Tais produtos

que ainda não circulam devidamente na escola, aparecem esporadicamente em práticas

dúbias.

O processo da multiculturalidade não se limita apenas à percepção da existência

da diversidade cultural. Ele avança para um posicionamento político segundo o qual, no

mundo globalizado, as culturas se confrontam e se aglutinam, produzindo textos

híbridos numa tendência à interculturalidade. Esta interculturalidade, compreendida

como a promoção de diálogos com as diferentes culturas, concretiza-se nos novos

produtos culturais descortinadores de novas sensibilidades, promotores da socialização

das artes e das diversas experiências de vida.

Neste contexto, a escola, para sobreviver, necessita tornar-se um espaço propício

para os diferentes produtos culturais em suas práticas de leitura, estas tomadas como

forma de comunicação de conhecimento. E para evitar o ostracismo e a repulsa do texto

literário, devido ao “trabalho” empreendido no ato de ler, precisa ser promovido o

diálogo dos diversos produtos, com vistas à possibilidade de prazer do leitor.

Tais produtos vêm ganhando visibilidade pela cultura das mídias que faz surgir

novos textos, transformados por intermédio da tradução intersemiótica. São textos

híbridos que circulam na sociedade contemporânea em variados suportes e promovem o

encontro da literatura na música, da música nos quadrinhos, dos quadrinhos no cinema,

da literatura nos quadrinhos, da literatura no cinema, do cordel nos quadrinhos, do

Page 167: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

167

cordel na TV. Neste processo de linguagem intercultural, a estética da sensibilidade e o

senso crítico do sujeito leitor são privilegiados.

É neste contexto que nos interessa compreender como produtos distintos - o

conto literário e a quadrinização - são apreciados pelo leitor contemporâneo. A

interação deste leitor com o texto machadiano, produto da literatura clássica, e hoje,

também inscrito, na cultura das mídias pela via do filme, da minissérie, e neste caso

particular, da história em quadrinhos, torna-se objeto interessante para estudo.

3.2 – O contexto da atividade investigativa Entre contos e requadros: a recepção do

texto machadiano na contemporaneidade

Com esta percepção de distanciamento entre o que a academia imagina como

leitor nas teorias literárias clássicas e a realidade da(s) identidade(s) leitora(s) numa

sociedade multi e intercultural, associada à dificuldade da escola interagir com este

novo paradigma de cultura, buscamos construir uma análise de como age e interage o

leitor contemporâneo frente ao texto da literatura clássica machadiana e a literatura em

quadrinhos.

Neste intuito, foi realizada uma pesquisa mais pontual, uma atividade

investigativa, intitulada Entre contos e enquadramentos: a recepção do texto

machadiano na contemporaneidade, que teve como objetivo observar como o leitor

empírico reage e como fazia emergir a sua experiência estética diante do texto de

Machado de Assis (literatura clássica) e da obra quadrinizada do referido autor (produto

cultural híbrido). Descreveremos este processo em todos os seus constituintes: onde,

quando, como e quem. A análise dos dados se configurou em uma seção específica do

nosso texto.

O local da atividade investigativa foi o Colégio Polivalente Edvaldo Boaventura,

uma escola tradicional em Jequié. Ela traz um passado de glórias por ter sido um

colégio público que oferecia o ensino fundamental de 5ª a 8ª série, cujas vagas eram

disputadas por todas as classes sociais da cidade. Seu público discente era constituído

por estudantes, em sua maioria, oriundos da classe média-alta e que ocupavam boa parte

dessas vagas por terem alcançado as maiores nota na seleção. A forma de entrada na

escola na década de 1970 até meados dos anos 1980 era uma avaliação escrita das

Page 168: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

168

disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática. Esta era a única escola pública de

Jequié que realizava processo de seleção, haja vista a grande procura por suas vagas, o

que comprova sua tendência elitista.

A partir de 1984, devido à política educacional de democratização do ensino, foi

eliminado o teste seletivo e ampliou-se o universo da escola, que passou a oferecer o

Ensino Médio, com o curso Propedêutico diurno, e implantou o ensino noturno nesta

mesma modalidade. Aos poucos a escola diminuiu a sua oferta de ensino fundamental,

que passou a ser de responsabilidade da rede municipal de ensino, concentrando-se no

Ensino Médio. Em 2009 instituiu a oferta do Ensino Médio Profissionalizante em

conformidade com as novas metas da educação básica no estado, que prevê também, a

preparação do jovem para o mundo do trabalho.

Tal escola vive ainda o saudosismo de seu período áureo, momento no qual

possuía o ensino fundamental, o qual para muitos professores, melhor preparava os

alunos que chegavam ao Ensino Médio, desenvolvendo suas habilidades de leitura,

escrita e cálculo. Houve tentativas de recolocação das séries finais do ensino

fundamental, de 2008 a 2010, com o objetivo de amainar este déficit de aprendizagem,

o que não surtiu o efeito desejado. Atualmente o colégio apresenta baixas médias no

IDEB, Prova Brasil, ENEM e exames vestibulares. Estes resultados insatisfatórios são

atribuídos pelos professores à entrada de alunos de diferentes escolas, geralmente dos

bairros periféricos e alguns oriundos da zona rural.

O espaço de leitura no colégio ainda é restrito, destinado quase que

especificamente às aulas de Língua Portuguesa, predominantemente gramaticalistas, nas

quais a literatura culta é trabalhada pontualmente com seminários sobre os estilos de

época, escolas literárias e biografias de autores consagrados. A leitura literária não é

estimulada, poucos alunos recorrem, por conta própria, à biblioteca que tem um espaço

e acervo diminutos. A leitura de produtos culturais diferenciados, quando realizada, dá-

se de forma mecânica, sem reflexão e estímulo à formação leitora: assiste-se a filmes

para responder algumas questões de sociologia, filosofia, história e ecologia, em

práticas disciplinares isoladas.

Page 169: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

169

A atividade investigativa foi realizada no mês de setembro de 2010. O período

foi escolhido por se tratar de um mês do calendário escolar em que, pelo menos em tese,

70% dos conteúdos já estariam ministrados e as habilidades pretendidas já teriam sido

alcançadas.

Nesta altura, a escola já havia realizado boa parte dos projetos planejados.

Restavam ainda três semanas para o final da terceira unidade. Os alunos da 3ª série já

tinham realizado o ENEM e buscavam definir suas escolhas de curso para prestar o

vestibular.

A atividade foi executada em quatro dias, em período oposto às aulas, em salas

do próprio colégio; foram realizados quatro encontros com duração de quatro horas cada

um.

A chegada dos alunos não era marcada pela pontualidade, visto que eles saíam

do seu turno de aulas às 11h40 e teriam de estar de volta às14h para esta atividade

voluntária. Nenhum deles residia próximo à escola, e a participação na pesquisa já

indicava interesse incomum entre os alunos. Geralmente, estes só participavam das

atividades promovidas pela escola, caso estas objetivassem atribuição de notas para as

disciplinas do currículo.

A formação do grupo de leitores deu-se a partir de convite informal feito pela

assistente de direção do turno matutino, Leila Graciela, funcionária contratada na escola

sob Regime Especial de Direito Administrativo - REDA, com formação superior em

Pedagogia. Todo o projeto foi explicado à referida funcionária, destacando-se que o

gosto pela leitura era o requisito para participação nos encontros de leituras do texto de

Machado de Assis.

Ela contactou diversos alunos do 1º, 2º e 3º ano do Ensino Médio, que sempre

costumavam frequentar a biblioteca em momentos livres. Eram adolescentes que

constantemente buscavam a biblioteca para empréstimos de livros.

O primeiro encontro ocorreu no dia 02/09/2010, ao qual compareceram

dezessete adolescentes, sendo um rapaz e dezesseis moças, com idades entre quinze e

dezoito anos. Quando indagados sobre o porquê da aceitação do convite, eles quase que

unanimemente apontaram a curiosidade como motivação. Duas constatações já

poderiam ser feitas: primeira, a leitura literária é uma prática que atrai um número

Page 170: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

170

reduzido de alunos; segunda, a falta de uma prática consistente deste tipo de leitura, o

que só ocorre em momentos mínimos no horário de aula.

O projeto da atividade investigativa foi apresentado em linhas gerais e foi

explicada a metodologia dos encontros. Apenas uma garota se apresentou como leitora

assídua do texto machadiano. Todos ficaram surpresos quando informados de como

procederiam nos círculos de leitura: eles falariam sobre o entendimento que teriam do

texto lido e o pesquisador se portaria como ouvinte. Alguns ficaram apreensivos e

esboçaram o receio de participar devido à timidez e ao medo de errar. Ficou claro que

os alunos traziam consigo experiências de aulas com leitura nas quais o professor era

quem sabia e falava do texto, cabendo a eles o silêncio pelo receio de errarem.

Foi explicitado ao grupo que todo leitor tem algo a dizer sobre o texto que lê,

com o que corrobora Reis (1992), ao afirmar que:

Um texto literário, escreve Jenaro Talens, não é uma presença, mas

um vazio, cuja semantização está para ser produzida pela práxis

historicamente determinada do leitor. É o ato de leitura que faz com

que o espaço vazio se transforme em uma obra literária, produzida

depois de ter sido transformada em algo dotado de um significado pela

apropriação do leitor.

Esclareceu-se que nada do que fosse falado por eles seria utilizado

indevidamente, de forma que os constrangessem. Foi solicitado que lessem e assinassem

o termo de aceite para participação na pesquisa e que levassem para os pais ou

responsáveis, para que estes tivessem ciência sobre a pesquisa e demonstrassem

aquiescência à participação dos filhos na atividade.

O grupo foi consultado a respeito do calendário dos encontros, sendo a princípio

agendados às segundas-feiras, durante três semanas. Este cronograma não funcionou,

pois o primeiro círculo de leitura antecedia a um feriado, o que fez com que fosse

reprogramado para três dias consecutivos: 13, 14 e 15 de setembro de 2010.

O primeiro círculo de leitura teve como texto o conto machadiano A causa

secreta. Inicialmente justificou-se aos alunos voluntários que o gênero conto foi

escolhido para a prática leitora por caber temporalmente na proposta do círculo e o texto

A causa secreta, porque além de instigante, era facilmente encontrado nos manuais

didáticos, e possivelmente já seria conhecido por eles.

Page 171: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

171

Foi entregue o texto xerografado para a leitura individual estimada em quarenta

minutos. Antes de iniciarem, pediram folha de ofício e caneta para anotações. Nenhum

participante concluiu a leitura antes de cinquenta minutos, o que denotou um ritmo lento

de leitura, frente ao texto literário.

O segundo círculo de leitura foi realizado com a adaptação em quadrinhos de A

causa secreta, que foi recebida como uma novidade pelos voluntários. Foi explicado

que tipo de texto era e solicitado, em seguida, uma apreciação do texto quadrinizado,

destacando qual a novidade deste tipo de texto. Cada aluno recebeu uma quadrinização

colorida, evitando a xerografia (em preto e branco) pelo fato de anular as informações

pertinentes à linguagem das cores, próprias das histórias em quadrinhos.

O terceiro encontro foi destinado ao confronto dos dois textos e a avaliação dos

alunos sobre como perceberam cada texto, como interagiram e que efeito cada um lhes

causou, na condição de leitor.

Os registros dos círculos de leitura foram feitos de duas formas: a gravação dos

depoimentos e a compilação por escrito das principais impressões relatadas.

O público alvo da atividade investigativa Entre contos e enquadramentos: a

recepção do texto machadiano na contemporaneidade foi realizada, como já apontado,

com alunos do Ensino Médio, do turno matutino. A escolha deste turno se deu por

possuir um universo maior de alunos cursando a 2ª e a 3ª, séries, que já teriam travado

algum contato com o texto de Machado de Assis, considerando o currículo da escola.

Vale destacar que não foi destinado nenhum momento da pesquisa para descrever a obra

e o estilo do referido autor, isto porque interessou-nos observar o contato do aluno com

o texto, a partir do qual supostamente seriam utilizadas as habilidades para leitura

literária, em tese, trabalhadas nas aulas de Língua Portuguesa.

No encontro de apresentação da atividade, os dezessete alunos que se fizeram

presentes traziam um misto de curiosidade e a vontade de ter mais informações,

aspectos típicos dos jovens comprometidos com os exames vestibulares. Apenas oito

continuaram no processo, os outros desistiram porque seria um trabalho com leitura e

teriam um espaço maior para exposição de idéias, com pouca participação do mediador.

A timidez, a crença no conhecimento ditado pela autoridade do professor e não na

construção coletiva do grupo foram os elementos determinantes para a desistência.

Page 172: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

172

Dos oito alunos participantes da atividade investigativa, dois cursavam a 3ª série

e seis a 2ª. Eram sete garotas e um garoto com idades diferenciadas: um tinha 15; dois,

dezesseis; três, dezessete; e dois, dezoito anos.

Os oito alunos expuseram de forma diferenciada o motivo de estar no grupo da

pesquisa: três disseram que queriam aprender para o vestibular, dois desejavam

conhecer mais literatura, dois justificaram não terem sido chamados, mas souberam da

proposta por meio dos colegas e vieram movidos pela curiosidade, e apenas uma aluna

confessava-se leitora de textos machadianos.

A maioria dos alunos disse que só lia textos literários quando o professor

solicitava na sala de aula para teste, trabalho em grupo ou prova. Uma aluna informou

que Machado de Assis foi trabalhado pelo seu professor de Língua Portuguesa mediante

a leitura em grupo de alguns contos (inclusive A causa secreta) com o objetivo de

responder algumas questões formuladas previamente; ela informou, também, que

muitos alunos sequer entenderam o texto.

O perfil de leituras preferido dos alunos era bem diversificado: revistas, jornais,

livros de auto-ajuda, literatura infanto-juvenil contemporânea (Crepúsculo, Eclipse,

Amanhecer, Coleção Harry Potter...), história em quadrinhos. Apenas uma aluna era

leitora da literatura “clássica” (Machado de Assis, Jorge Amado, José Lins do Rego,

José de Alencar, José Saramago...). Podemos afirmar que tivemos leitores de textos

diversos, mas distantes da literatura clássica que era caracterizada como de difícil

compreensão devido à linguagem de “outra época”, sendo, na visão deles, melhor pegar

resumos da internet ou ver os filmes adaptados dos romances.

Pelo menos duas observações podem ser feitas referentes a esses jovens leitores,

a partir do diálogo inicial travado com o grupo de pesquisa: primeiro, o paradigma de

leitura imposto pela escola afasta os alunos da leitura literária clássica, visto que a

literatura é apresentada com uma única possibilidade de leitura, uma leitura correta (do

professor que impõe as respostas, tidas como certas, dos manuais didáticos, diante de

outras erradas, construídas pelos alunos); segundo, a linguagem dos textos clássicos traz

um repertório vocabular diferente do vivenciado pelos alunos, o que os afasta da

compreensão do texto.

Page 173: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

173

3.3- O leitor entre contos e requadros: relatos de recepção

Numa proposta de leitura que ressoe a estética da sensibilidade e ao mesmo

tempo o faça confrontar com o interculturalismo dos meios de produção, circulação e

reprodução do texto literário, os alunos voluntários realizaram leituras do conto literário

machadiano e da quadrinização na atividade investigativa intitulada Entre contos e

enquadramentos: a recepção do texto machadiano na contemporaneidade.

O primeiro passo foi a realização do Círculo de Leitura Nº 01 intitulado O leitor

contemporâneo e o conto machadiano “A causa secreta”. A princípio os participantes

estavam tímidos, sendo necessária a mediação para serem instigados a posicionar-se

com sua leitura. Para isso contamos com a colaboração da Profª Adlene Karla Nunes

Rocha, pertencente ao quadro docente da escola, mas que não é professora dos

participantes da pesquisa. A participação da professora nos ajudou no sentido de termos

uma ação mediadora o mais imparcial possível, sem privilegiar aos alunos já

considerados leitores literários.

A leitura silenciosa prevista para cinqüenta minutos ampliou-se para mais de

uma hora. Quando confrontados com o conto literário, os leitores apresentaram

dificuldade em construir uma leitura seqüenciada, expondo as informações gerais, que

apareciam claras no texto, evitando as indeterminações.

A princípio, foi solicitado dos leitores que colocassem suas impressões sobre o

texto. Eles destacaram os fatos que julgaram marcantes e que estavam explícitos na

primeira leitura. O texto foi tomado, neste primeiro momento, muito mais como espaço

no qual se veiculam comportamentos individuais dignos de discussão e não como objeto

estruturado para apreciação estética, como se observa na fala de Leiliane:

Eu começaria com a personagem tipo Garcia (...) a frieza de uma

pessoa com animais que não apresentava nenhum tipo de risco para

ele... Ele faz questão de cutucar, no caso do cachorro... e a frieza parte

por parte de um rato. No caso, ainda chamava a mulher de medrosa

pelo fato de ela não assistir tal fato... E aí eu... por isso que eu acredito

na frieza dele com o que não apresentava nenhum risco para ele.

Como a sequência narrativa do conto era inversa e a narração iniciava com o

relato do episódio posterior ao clímax, houve confusões na identificação das

personagens por Leiliane, o que foi ratificado por Ana Carolina, em comentários que

Page 174: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

174

progrediram na direção dos fatos e atos mais contundentes para a caracterização da

personagem Fortunato, tomada como referência na leitura do texto:

Fortunato, né? Que tinha essa frieza com os animais. Ele era frio

mesmo... No começo ele falava que o amigo dele, Garcia, como

estudante de medicina. Ele aí ... ele pede Fortunato para ajudar uma

tal pessoa que tinha sido agredida na rua. Depois que ele ajuda essa

pessoa, que vai na casa agradecer, quando essa pessoa sai, ele vai falar

para essa pessoa que o agressor era ele. E aí começa... ele ser uma

pessoa extremamente fria... e depois que começa a estudar anatomia,

fisiologia começa com os animais, como ela falou aí. Ele tem prazer

de torturar animais.

Raquel, uma leitora com prática de leitura maior, como se pôde perceber nos

comentários que teceu durante todo o trabalho, avançou da leitura intuitiva, de fruição,

para uma reflexão estética, quando avaliou o estilo do autor:

Ele faz... Ele descreve bem as características pessoais, o caráter de

cada um [com relação ao autor]. No caso de Fortunato, quando ela fala

da frieza, mas também salienta que no fundo ele gostava... do prazer

que ele tinha de ver o outro sofrer... O autor descreve bem as

características e sentimentos das pessoas.

Marília foi uma leitora que buscou ampliar a visão do texto, quando rompeu com

a imagem de Fortunato como o “frio da história”, em suas palavras, destacando a falta

de ação da esposa, Maria Luisa, como preponderante no comportamento do esposo,

apesar do foco permanecer em Fortunato:

No texto, Maria também é muito fria. Mostra ela cometendo o

adultério. Mostra que ela não tinha piedade. Ela não fez nada com as

crueldades dele [Fortunato]. Ela é muito fria. Na hora que Garcia beija

Maria Luiza, beija uma vez, volta a beijar... ele mostra o prazer com a

dor que ele tem com a dor das pessoas.

Toda leitura caminhou para a frieza de Fortunato ou para a história do amor

secreto de Garcia e Maria Luiza, já destacada na fala de Marília e tomada como tônica

nas observações que se seguiram, como “Eu achei muito bonito quando ele beijou.”, na

fala de Siérico e “Garcia beijou e chorou. Na verdade, entre beijar e chorar ele gosta de

Maria. Ele gostava dela. Ele amava Maria.” observação de Aiala.

Neste momento a tônica da leitura romântica e ingênua tornou-se dominante, ao

ponto de a figura feminina sofredora dominar o comentário de Liliane:

Eu vi como a representação até... de um sentimento no momento que

ele foi beijá-la. Ele chorou. Passou um ponto positivo. Mas eu...

Page 175: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

175

discordando de Marília... Eu não considero ela tão fria. Por dentro ela

não queria, mas não fez nada para se opor. Ela sente na pele, não pelo

fato de assistir o rato.

Além da postura cortês romântica de Garcia, própria da burguesia, ser defendida

por Raquel: “Mas eu acho que Garcia, no caso dele foi questão de respeito. Era um

amigo dele. Guardou o sentimento por respeito. Porque era um amigo... Pelo fato de

respeitar a instituição casamento... No meu entender não houve adultério”. Percebeu-se,

nesta altura das discussões, a continuidade da tendência romântica, mas agora acrescida

do elemento maniqueísta. Três proposições foram observadas nos comentários do grupo

de leitores, que confirmam esta tendência: primeiro, Fortunato era extremamente frio,

cruel, próximo daquilo que a literatura tradicional chama de vilão; segundo, Garcia e

Maria Luiza viviam uma história de amor secreta, incentivada até pela frieza e falta de

atenção de Fortunato enquanto marido; e, por fim, Maria Luiza era a vítima, sofredora e

submissa às pressões oriundas do comportamento estranho e distante do marido.

Tal comportamento de Fortunato passa a ser notado como um desvio patológico

da personalidade, assim definido por Ana Carolina, uma das participantes do círculo:

Tem uma parte [episódio do rato] que fala que ele não sentia nem

raiva, nem ódio. Era isto prazer... uma sensação estranha. Ele tava

gostando daquilo e fingindo que não gostava. Para mim era uma

doença – o sadismo – que a pessoa faz o mal a pessoa ou animal e

sente prazer com aquilo.

Neste ponto, ficou claro que os leitores traziam consigo um arsenal de

proposições oriundas das suas impressões um tanto intuitivas, e de uma pequena

bagagem da leitura inocente da literatura do texto romântico oferecida pelo parco

trabalho com a literatura no Ensino Médio. Norteados por tais elementos, os leitores

voluntários demonstraram tentar cingir sua leitura a uma única interpretação, fugindo de

uma série de indeterminações13

que o texto machadiano oferece.

13

Por inderterminação entendamos os elementos que provocam diferentes efeitos nos leitores e

a leitura como a transformação dos signos do autor. Descrever a relação texto e leitor passa pela

pesquisa de três estágios, segundo Iser: primeiro a indicação das qualidades singulares do texto

literário; segundo, nomeação e análise dos elementos básicos dos efeitos que as obras literárias

produzem (as indeterminações); e terceiro, o esclarecimento do visível crescimento das

indeterminações na literatura a partir do séc. XVIII. (Cadernos do Centro de Pesquisas da

PUCRS, série Traduções, Porto Alegre, vol.3. n.2, março de 1999)

Page 176: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

176

Quatro indeterminações puderam ser notadas nas estratégias utilizadas pelo autor

e que foram detectadas mais tarde durante as discussões entre os alunos nas tentativas

de reconstrução do texto lido. A primeira, a estrutura narrativa inversa, o que dificultou

o entendimento dos fatos e de quem os realizou. A segunda, a sutil parcialidade do

narrador para centralizar os fatos conforme o olhar da personagem Garcia, sem declarar

tal tendência, o que causou dificuldades para uma percepção mais acurada sobre as

personagens e ludibriou os leitores na avaliação das ações. A terceira, o título do texto

visto como “pegadinha”, posto que trazia notória ambigüidade por trás de uma história

de tônicas superficialmente maniqueístas. Por fim, a quarta, embutida nos comentários

do narrador.

Das quatro indeterminações, não expressas com consistência pelas leituras

construídas pelos alunos voluntários, o comentário do autor, aspecto próprio do

repertório de indeterminação do texto que pode direcionar a resposta do leitor, foi a

primeira percebida por uma das leitoras do grupo. Em linhas gerais esta estratégia é de

natureza avaliativa sobre o acontecimento e era utilizada de tal forma, que diminuía a

participação do leitor por remover as lacunas. Alguns romancistas do século XVIII e

XIX, a exemplo de Machado de Assis, souberam utilizar este artifício, criando lacunas

de modo que

[...] as observações do autor são feitas visando não a interpretar o

sentido dos eventos, mas a assumir uma posição exterior a eles – para

olhá-los como se fosse à distância. Os comentários, então, atingem

como meras hipóteses e parecem sugerir outras possibilidades de

avaliação diferente daquelas que surgem diretamente dos fatos

descritos. (ISER, 1999, p.16 )

No texto em questão esta estratégia foi utilizada e percebida por Franciele, que

não conseguiu expressar com clareza sua interpretação, assim externada: “Eu acho

assim... pelo fato de ele não sentir dor nenhuma, na parte do texto “A sensação de poder

de um homem é ver a dor alheia.” No fundo dele... ele tem um ser bom. Ao ver a mulher

assim... tocou no fundo... dentro dele tem ternura.” Contudo, notou-se que a referida

aluna voluntária divergia da visão de frieza total da personagem Fortunato dominante no

grupo, percebendo-o como portador de uma pequena centelha de sentimento, mesmo

tendo o espírito propenso a satisfazer-se com a dor alheia. Tal percepção destoou da

visão maniqueísta assumida pelo grupo e sugerida aparentemente pelo texto.

Page 177: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

177

Quando a mediadora pedia que os leitores atentassem mais para os perfis e a

suposta relação entre as personagens, observando o lugar social de cada uma, as

opiniões passaram a ser revistas, como a de Raquel na conjectura de que “Eh... Não era

amizade. Era como uma conveniência para Garcia aquela relação de amizade. Ele

apenas freqüentava a casa. Não era amigo. Se fosse amigo, ele faria a interferência.”. Os

mesmos passos foram seguidos por Leiliane que reconfigura sua opinião sobre a esposa

de Fortunato, dizendo que “Maria também foi fria porque aceitou que ele fizesse aquela

casa lá... onde ele ia pegar as pessoas debilitadas... ela poderia evitar ‘não faça isso’.

Fazê-lo procurar um tratamento.”

A esta altura, boa parte dos leitores enveredou na tentativa de uma leitura mais

crítica, e passaram a construir uma série de proposições, que se misturam com posturas

românticas das personagens, como se nota nos comentários abaixo:

Liliane: “Garcia não tinha coragem de praticar os atos como Fortunato e sentir bem. Ele se põe

frio também naquela situação, mas não faz nada para interferir.”

Raquel: “O mesmo sofrimento do rato era o de Maria Luiza.”

Siérico: “Não era o mesmo sofrimento. Mas ela sentiu.”

Leiliane: “Não era conveniência para Maria Luiza aquilo... Ela não lucrava nada... Ela via

aquilo e sentia-se mal, cada vez mais...”

Raquel: “Para Garcia aquela relação era conveniente para ficar perto de Maria Luiza.”

No processo de reconstrução do texto durante o debate das opiniões, alguns

avançaram da fruição, o sentir o texto, para a reflexão estética, ou seja, o ato de pensar a

forma como o autor constrói o texto em suas minúncias. Esta postura de leitura requereu

mais atenção do leitor que passa a relativizar as interpretações.

Tal atitude vai ao encontro das observações do jornalista Alcides Vilaça no que

diz respeito à desestabilização provocada pelo texto machadiano nos jovens leitores,

tanto no que tange ao estranhamento provocado pela poética estrutural do texto como na

desestabilização dos valores humanos universais (rever p.76). Esta postura foi notada

Leiliane que fez a seguinte avaliação: “No caso, o romance está explícito no texto.

Houve algum detalhe que não conseguimos pegar. Estamos voltados ao sentimentalismo

e nos voltamos à frieza... e levamos o texto ao lado sentimental.”. Também Raquel

observou isso: “Ninguém nunca tem a mesma interpretação. O texto de Machado de

Assis sempre deixou reticências. Ninguém nunca interpreta do mesmo jeito.”

Page 178: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

178

A discussão até aqui trouxe vários focos: perfil das personagens Fortunato,

Garcia, Maria Luiza; a intrincada relação entre as personagens com destaque para

Fortunato/sadismo; o amor entre Garcia/Maria Luiza; e daí para qual seria e de quem

seria a causa secreta.

O título, A causa secreta, passou a ser utilizado como fomento para inquietude

dos leitores. Cada um passou a repensar as personagens e possíveis causas secretas.

Assim tivemos variados posicionamentos pela lacuna provocada a partir do título:

Aiala: “Eu pensava, a primeira vista, a causa secreta era o amor de Garcia.”

Leiliane: “Poderia ser o amor de Maria Luiza por Garcia. Porém não relata com clareza como

relata o amor de Garcia por ela. É mais complicado.”

Raquel: “A causa secreta é de Fortunato. A frieza dele, o sofrimento por dentro dele.”

Leiliane: “Ele não tem amor. Ele desconta nos animais algo que fizeram com ele. Ele poderia ter

algum tipo de sentimento dentro de si, mas não demonstrava. Ele sentia prazer, de certa forma,

ou totalmente, em fazer aquilo.”

Ana Carolina: “[A causa secreta] É de Maria Luiza. Maria Luiza é assim... Ela sofre, porém não

expõe o que sente ao ver Fortunato fazer aquelas ações.”

Siérico: “[A causa secreta] é de Maria Luiza. Ela vivia o amor por Garcia e não podia viver o

amor com ele. Sentia vontade de ficar com ele, mas ela não podia – era casada.”

Neste momento, os leitores passaram a ser instigados a observar mais

atentamente as relações entre as personagens Garcia e Fortunato, e se havia algum tipo

de vantagem na relação. Ainda mais inquietude e construção de novos posicionamentos

críticos foram percebidos:

Raquel: “Para Fortunato que ele queria abrir uma Santa casa... um hospital. Garcia era o

passaporte... Por ser médico daria possibilidade para isso.”

Leiliane: “Havia uma troca de interesse. Fortunato iria usar o recém-formado.”

Raquel: “Garcia, recém-formado, iria ter possibilidade de atuar.”

Raquel: “Eu ainda vejo Fortunato. Ele ainda tinha um interesse maior: abrir uma Santa Casa.”

Leiliane: “Ele iria usar o recém-formado para isso. E Garcia?”

Franciele: “A causa secreta é de Fortunato e Garcia. De certa forma, um precisava do outro.”

A intrincada relação das personagens tornou-se, assim, alvo das especulações

dos leitores mais questionadores, como Raquel, Leiliane e Franciele. Outros

acompanhavam os posicionamentos dos colegas sem lançar opiniões.

Page 179: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

179

Notou-se que os leitores voluntários, enquanto alunos, não estavam habituados a

serem instigados a construir suas leituras. Frente às provocações lançadas pela

mediadora, alguns se entusiasmavam a construir e reconstruir suas opiniões, outros se

impacientavam dizendo que não falariam mais nada, que era complicado, um trabalho

difícil. Uma aluna se exaltou a ponto de questionar se o escritor havia deixado escrito

qual era a causa secreta.

A percepção de outra indeterminação começou a despontar: toda a leitura

apresentada pelos alunos foi conduzida pelo olhar de Garcia, para o qual pende a visão

apresentada pelo narrador. Raquel chegou a tecer comentário que ia ao encontro dessa

percepção, sem contudo, notar claramente este estratagema do autor:

Fortunato é... Ele é mais visado. Quando a gente lê, visa

primeiramente ele, como se fosse a história dele. É como se você

fizesse a leitura ele como personagem principal e Maria Luiza parece

ser parte da história dele. Ele tem características mais fortes E Maria

Luiza não aparecem muitos traços da personalidade dela.

Quando questionados sobre Garcia, as observações passaram a ser mais incisivas

com uma visão mais crítica do texto:

Beatriz: “Ele era frio, apaixonado, traidor...”

Siérico: “Ele fica observando tudo de fora... Igual a Fortunato. Uma pessoa fria e calculista.”

Leiliane: “Ele não tinha a mesma audácia de Fortunato, de praticar os mesmos atos. Poderia ter

algo que ele queria, mas não tinha a mesma audácia.”

Ana Carolina: “A audácia é no final, quando ele beija Maria Luiza.”

Leiliane: ‘Isso é o que está explícito. E o que não está?”

As inquietudes agora observadas nos leitores passaram a coadunar-se com as

afirmações de Coutinho (1990,p.125-126), que assim descreve a percepção do ser

humano na ótica machadiana, retratada nas personagens construídas pelo escritor:

[...] Para ele os homens só são capazes de vícios, ambições,

dissimulações, sentimentos contraditórios, perversidades, ingratidões,

inconstância, e, na sua obra, assistimos à procissão de todos os vícios

e defeitos morais, más qualidades e pecados, que inteiramente

dominam homens na vida individual e social. Há sempre uma causa

secreta, que é preciso pesquisar, nos atos humanos [...]

O circulo nº 01 foi encerrado com os leitores tendo a sensação de que havia

questões em aberto sobre as personagens. Notou-se que, a princípio, os leitores frente ao

conto literário, limitavam-se ao dito de forma explícita no texto sem ater-se ao não dito,

Page 180: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

180

às lacunas. Quando eram indagados pela mediadora, sentiam-se perdidos, descentrados

e até surpresos.

O segundo momento da pesquisa configurou-se no Círculo de Leitura Nº 02

intitulado O leitor contemporâneo e a quadrinização “A causa secreta” que se iniciou

num misto de satisfação e desconfiança diante da literatura em quadrinhos. Os leitores

adeptos dos quadrinhos mostraram-se mais motivados pelo texto quadrinizado, que,

conforme Siérico era mais fácil de ler.

Raquel, por sua vez, um tanto precavida, afirmou que “Os quadrinhos é bom.

Tem coisas que você deixa passar quando você lê só o texto... que às vezes até olhar

você presta mais atenção.Você vai olhar as personagens.”. Entretanto, manteve sua

preferência pelo texto literário, enfatizando que “[...] o conto sem as imagens deixa você

mais livre para imaginar tudo o que você quiser”. Notou-se que para ela, o texto icônico

explora potencialmente detalhes do texto verbal que passam despercebidos na leitura.

Contudo, o conto na forma literária clássica, não condiciona a uma só percepção do

texto, dando ao leitor a liberdade de recriação.

Ana Carolina, por sua vez, afirmou ter percebido que o texto icônico não castra a

imaginação, apenas a torna “mais possível”, de outra forma, defendendo que “É até

mais fácil. E mesmo nos quadrinhos a pessoa ainda tem imaginação. Eu mesmo tive

outra imaginação... até mesmo no quadrinho a imaginação é outra.”

De forma mais concreta, Aiala enfatizou a contribuição maior do texto

quadrinístico para compreensão da rede de enunciações, visto que “Dá pra entender

melhor quem falou tal fala. Porque ontem a gente ficava sem saber quem falou isso. Nos

quadrinhos dá pra ver mais quem, as personagens falou o que, o que foi que ela falou.

Dá pra entender mais a história.”

A quadrinização superou as expectativas de Raquel, leitora constante da

literatura clássica, que defendeu a integridade deste texto nos quadrinhos, como se pode

observar:

Ah! É por isso que eu digo que os quadrinhos superaram as

espectativas. Quando você ler outros quadrinhos que não é literatura

não há tanta narração. É mais centrado, eu achei que fosse assim

também, na ação, mais no momento...geralmente não há muito

flashback, é centrado naquilo... Eu achei que os quadrinhos fossem

Page 181: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

181

cortar muitos pedaços, como se fossem aquelas adaptações que você

faz... que você acha muito fraca. Igual quando você resolve resumir

algum livro de literatura e você sente que falta aquela coisa... como se

fosse bem fraquinha. Mas aqui é diferente. Por aqui, os elementos da

narrativa [do texto base] estão todos aqui.

Em linhas gerais, os leitores do grupo perceberam o texto quadrinístico como

uma forma nova de leitura do texto literário, a qual melhora a interpretação, visto que,

conforme Raquel, “Os quadrinhos redobra a atenção pela leitura e também para as

imagens que você está associando. Você não pode ler assim, só por correr os olhos. Eu

acho que prende mais a atenção.”, quebrando um pouco da ideia de leitura supostamente

facilitada.

Além disso, a versão em quadrinhos não se distanciou do texto-base, mas

intensificou a mensagem do mesmo, como destaca Marília, ressaltando que “Ele mostra

os detalhes, aqui, os olhos. Também ele divide cada parte, a cada sensação, sabe, a cada

reação da personagem.”, referindo-se aos requadros a seguir:

Figura 213: A causa secreta

Escala Educacional, pág. 7.

Os elementos da linguagem quadrinística como timming e perspectiva, são

destacados por Raquel de forma intuitiva: “Ele colocou vários quadrinhos. Às vezes é

como... tem quadrinho que você tem no lugar e daqui a pouco você já está em outro

totalmente diferente. E ele vai detalhadamente, mesmo que seja a mesma cena, aparece

duas, três vezes.”

Page 182: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

182

Para Carol, os quadrinhos foram elucidativos ao ponto de afirmar que “Agora

que eu vi entender o conto, né. Mas ai eu encontrei no primeiro uma visão totalmente

diferente da história em quadrinhos.”, sem, contudo, explicitar como se deu a

contribuição da quadrinização para a sua compreensão do conto.

Raquel, por sua vez, confessou ter compreendido o conto só com o texto-base, e

percebeu a quadrinização como uma forma de ler do quadrinista, da qual nos

apossamos:

Eu consegui pegar só no conto, eu acho que consegui, a essência.

Porque quando a gente não tem recurso da imagem a gente dá asas a

imaginação... quando a gente vê as imagens, a gente muda um

pouquinho. Porque a gente tá vendo também a visão de quem ilustra.

A gente pega um pouquinho emprestado a visão de quem ta

ilustrando. Porque a pessoa pra ilustrar, primeiro ela tem que

interpretar porque o autor usa tal palavra ou porque tal pessoa tem tal

gesto, tal semblante. Então ele interpreta pra desenhar. Então a gente

rouba um pouquinho da interpretação da pessoa.

Tal percepção de Raquel dialoga muito bem com as análises do Professor Elydio

Neto (ver p.65) posto que a adaptação/tradução é a leitura do artista. Também

aproxima-se da discussão de Plaza em relação ao tradutor intersemiótico. Aqui ele é o

quadrinista, leitor que tem uma visão do texto-base pela empatia e simpatia, e através da

analogia materializa o sentido depreendido do verbal. Assim, ele “empresta sua leitura”

para o outro, leitor da sua recriação, pois:

Leitura para a tradução é um movimento hermenêutico onde o tradutor

escolhe e é escolhido. É evidente que tudo parece traduzível, mas não

é tudo que se traduz. Traduz aquilo que nos interessa dentro do projeto

criativo (tradução enquanto arte), aquilo que em nós suscita empatia e

simpatia como primeira qualidade do sentimento, presente à

consciência de modo instantâneo e inexaminável, no sentido de que

uma coisa está a outra conforme os princípios da analogia e da

ressonância.(PLAZA,2008,p.33-34)

Apesar do posicionamento diverso frente ao alcance do texto literário

quadrinizado, alguns alunos foram taxativos com relação à necessidade de se ler o conto

literário antes da quadrinização, como se nota a seguir:

Siérico: “Agora, assim: primeiro a gente lê o conto normal.”

Marília: “Eu acho que se ler os quadrinhos primeiro, a gente já vai ter essas imagens. Antes de

ter a imagem dos quadrinhos tem que, em primeiro lugar, ver o conto.”

Page 183: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

183

Raquel: “Isso. É como no filme. Quando a gente vê o filme primeiro pra depois lê o livro, a

gente recorda da personagem que já sofria aquela dor. A gente traz as imagens para o livro,

como nos quadrinhos.”

Tais proposições dos alunos caminham para os posicionamentos de Plaza de que

“A tradução mantém uma relação íntima com seu original, ao qual deve a sua existência

[...]”. Ao relacionar o texto-base à tradução, de certa forma os leitores comungam da

ideia de que “a vida do original alcança sua expansão póstuma mais vasta e sempre

renovada” (BENJAMIN, apud PLAZA, p. 32.) na quadrinização, mas não elimina a

necessidade da leitura do texto literário.

Isto também pode ser interpretado como uma forma de o leitor, enquanto

tradutor, não deixar a imaginação ser condicionada unicamente pela leitura do

quadrinista, a qual pode castrar o exercício de criatividade e até de emotividade mais

ampla, promovido pelos signos do texto-base. Tal texto é extremamente rico de

informação estética, que é filtrada pelo quadrinista no processo de seleção e associação,

para proceder à recriação quadrinizada. E a leitura do original torna-se fundamental para

a apreensão do conteúdo, dando-lhe uma dinâmica afetiva sem similar, o que se pode

perceber no depoimento de Siérico sobre o episódio da tortura do rato:

No conto a cena do rato foi mais forte que agora [nos quadrinhos].

Não sei se foi a primeira vez [primeira leitura]... Eu achei assim...

começou com a primeira pata... a segunda... Eu fiquei olhando as

perninhas do rato. Ele só mostra lá quando arranca a última pata. O

impacto foi maior [ no conto].

E que tem a aquiescência de Raquel quando afirma que: “Também. Eu achei que

aqui o rato não parecia estar mais sofrendo. Talvez tenha sido o choque da primeira

leitura e depois é diferente também de quando a gente já conhece a história. A gente já

percorreu. Quando a gente faz a releitura não é mais pra conhecer.”

Também foi reconhecido pelos leitores que o quadrinista, via imagem, pode criar

novos estratagemas no texto para a composição das cenas como detalhamento de traços,

elementos antes não explorados pelo autor do conto e que passariam despercebidas na

imaginação do leitor. Estes novos elementos tornaram-se significativos para a leitura.

Como as imagens dos pacientes e do cão na experimentação, não tão explorados no

texto-base, como se pode notar:

Page 184: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

184

Figura 214: A causa secreta

Escala Educacional, pág. 25.

Figura 215: A causa secreta

Escala Educacional, pág. 27.

As referidas cenas são destacadas na quadrinização pelo aluno Siérico da

seguinte forma: “Essa aqui foi mais forte pra mim no quadrinho que no conto: a parte

do velho com a boca aberta, o cão com a boca aberta agonizando de dor”...

Estas percepções e comentários de Siérico e Raquel caminham na direção do que

Plaza (2008) aponta sobre a tradução intersemiótica induzir à descoberta de novas

realidades no texto-base pela constituição sintática da nova linguagem. Tal observação

de Plaza sustenta-se na afirmação de Décio Pignatari (apud PLAZA, 2008, p.30): “[...]

na criação de uma nova linguagem não se visa simplesmente uma outra representação

de realidades ou conteúdos já pré-existentes em outras linguagens, mas a criação de

“novas realidades, de novas formas-conteúdos.”

Outra novidade foi percebida por Marília. No conto o narrador é testemunha,

conta o que viu ou ouviu. Ao transpor a história para os quadrinhos, Machado de Assis

tornou-se o narrador, assim descrito pela referida aluna: “E também nas duas páginas do

Page 185: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

185

conto aparece aqui Machado de Assis. Eu acho que é Machado de Assis, né? Contando,

como se fosse ele o narrador. Ai mostra aqui o começo, como se fosse a introdução pra

a apresentação da história.”

Os leitores também ganharam novas tônicas para a percepção das personagens,

que para uns confirmaram o que o texto-base dizia e para outros impregnaram a

interpretação de novos contornos. Para Marília, a frieza de Fortunato tornou-se patente

até na variabilidade do olhar explorado pelo quadrinista, como ela descreve: “Fortunato

continua frio. As expressões dele, o rosto, os gestos, a reação dele diante do sofrimento,

no teatro... quando ele vê a parte das facadas lá... ele olhando assim... O olhar tem horas

que fica mais leve, tem horas mais forte... pra chamar atenção.”

Para Franciele, Fortunato transparece mais frieza no conto. Nas imagens, ele lhe

desperta compaixão, numa leitura bastante particularizada:

Já eu achei ele mais frio no conto. Aqui, assim... olhando, aqui eu tive

pena dele. Ele parece uma pessoa que não era normal. É sério, filha.

Parece que era um trauma que ele tinha... que algum tempo fazia isso.

No conto ele parecia mais frio. Aqui eu não achei ele tão frio assim.

Vai ver ele faz isso devido a alguma coisa que aconteceu com ele...

Que ele tem medo de ser bom.

Também Garcia teve (mereceu) apreciações diferenciadas a partir da imagem.

Para Siérico a referida personagem ficou aquém do conto, como ele mesmo diz:

Eu não via Garcia com essa cara de tristeza. No quadrinho tem cara de

gay. É demais. É sério. Eu não sei. Ele tem cara assim, de ... de meio

bestalhado. Não que ele seja sério, mas aquela coisa assim, mais séria,

mais séria de jovem, mas de um jovem mais sério, mais ativo...E aí ele

tem cara de besta, com esse cabelo enroladinho...

Já para Raquel ele ganha ainda mais ênfase em suas ações de observador e é o

foco que o narrador passa a dar na narração:

Eu vi ele no quadrinho... como mais observador. Eu achava que...

depois você vai olhar e vai ver... que ele a descrição toda é isso: ele

vai observando a vida de Fortunato. Eu vi ele mais como um narrador

vai da visão dele. É que sempre passa ele, a imagem dele observando.

Aí eu percebi melhor é que tudo aqui é como ele, a visão dele de

Fortunato e de Maria Luisa.

Também Marília percebeu maior ênfase das ações de Fortunato nos quadrinhos,

tornando mais intensas e claras as reações de Garcia, assim descritas: “Garcia espantado

com as coisas que ele faz [Fortunato]... A admiração dele. Aqui no conto ilustrado a

Page 186: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

186

expressão dele já muda para mim. Fica mais clara a indignação dele com os atos de

Fortunato.”, referindo-se aos seguintes requadros:

Figura 216: A causa secreta Figura 217: A causa secreta Figura 218: A causa secreta

Escala Educacional, pág.31. Escala Educacional, pág.32. Escala Educacional, pág.33

A referida aluna também destaca a seguinte passagem:

Figura 219: A causa secreta

Escala Educacional, pág. 16.

Ela teceu comentários que apontam para a percepção da intensidade dada na

quadrinização aos sentimentos da personagem Gouveia. Pela utilização da perspectiva

frontal do rosto em close-up e aproximação dos olhos, desvenda-se o novo sentimento

de ingratidão, marcado pela insatisfação e raiva percebidas nas feições do olhar, o que

amplia a probabilidade de leitura, como a aluna discorre:

Aqui na página 36 mesmo, do Gouveia, o cara que foi humilhado...

Ele fala do sentimento de ingratidão, a expressão do olhar dele como

de raiva de Fortunato e aí no conto sem ilustração não parece que ele

Page 187: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

187

ficou tão, tão insatisfeito com aquilo. E já no quadrinho já dá pra ver a

expressão mais forte.

Outro episódio também destacado refere-se ao estado de terror de Maria Luiza,

que ganha uma nova tônica de sentimento na quadrinização, conforme Raquel, nos

requadros que se seguem:

Figura 220: A causa secreta

Escala Educacional, pág. 27.

A aluna assim descreve a sua leitura:

Agora tem uma cena que parece diferente. Da página 27. É como se

ela tivesse com raiva. Desse quadrinho debaixo. É uma parte que... da

cena... como se ela estivesse com raiva. Pra mim o autor fez as

expressões parecer como se ela estivesse com raiva. Mas se você

observar a cena não era que ela estava com raiva... Ela estava fazendo

um pedido.

Mesmo defendendo o ponto de vista de que os quadrinhos propiciaram uma

leitura mais elucidativa, a subjetividade do leitor também foi observada diante da leitura

da imagem. Foi o que se pôde perceber na discussão da seguinte passagem:

Figura 221: A causa secreta Figura 222: A causa secreta

Escala Educacional, pág. 41. Escala Educacional, pág. 42.

Page 188: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

188

Para alguns alunos, o último fato traduzido iconicamente nas duas últimas

páginas da quadrinização, gerou variadas percepções que diferenciaram um pouco as

leituras como se pode perceber no debate abaixo transcrito:

Marília: “Uma coisa que eu não entendi foi esse final. De tortura...”

Siérico: “Acho que ele ficou meio intrigado e com raiva.”

Raquel: “Foi a expressão que colocou aqui. Está difícil um pouquinho pra decifrar. Pra mim é a

penúltima que você não sabe, é mais difícil. Você não consegue dizer o jeito... porque a

sombrancelha e a boca é que mais emoldura a expressão. E aí eu não sei dizer se é raiva, ou se é

tristeza, ou se foi prazer de o ver chorar.”

Franciele: “É tanto que quando eu li o conto que falou assim... esse negócio com certo rigozijo,

pra mim ele estava dando uma risada quando ele vê aquela cena de Garcia beijando a mulher.

Mas aqui não, ele mostra certa indignação vendo aquilo.”

Raquel: “Se você olhar... é como se fosse um sorriso. O prazer de...”

Franciele: “Mas, no caso como eu falei, como eu achei ele mais frio no conto, nunca achei que

ele dava risada. Entendeu? Pelo prazer de ser frio...”

Marília: “Uma risada tendenciosamente longa... como se... é... ele... fosse pra... a imagem de

Fortunato que pelo prazer de gostar de ver o sofrimento do outro.”

Aiala: “Pra mim esta expressão foi como se estivesse ... é ... descoberto alguma coisa... um

segredo que estivesse escondido. Pra mim foi isso: ter descoberto algo de Garcia.”

Siérico: “Porque eu acho que ele conteve a raiva dele em vê um cara ... Garcia... beijando a

mulher dele. Mas ele conteve a raiva e ao mesmo tempo teve satisfação, prazer, em saber que

ele tinha a mulher que Garcia tanto desejava e nunca pôde ter.”

Raquel: “É quando você vê o quadrinho, você confronta a visão de como o ilustrador viu a cena

e de como a gente viu a cena.”

Tais conjecturas de leitura confirmam a autonomia do leitor não só em relação

ao conto literário, como também frente à quadrinização, pois ele, ao buscar vencer as

dificuldades de leitura, avança na criatividade e cognicidade para a construção de seus

posicionamentos. Confirmou-se a proposição de Iser (1999,p.22), no texto literário

verbal e também quadrinizado, com relação a defesa de que :

[...] o texto oferece ao leitor nada mais que um conjunto de

posições as quais apresenta em uma variedade de

relacionamentos, sem nunca formular um ponto focal a que

convergem, pois este está na imaginação do leitor e, na verdade,

só pode ser criado através de sua leitura.

E assim encerrou-se a segunda etapa da pesquisa que se pautou na leitura e

apreciação das interpretações da quadrinização A causa secreta. Aqui ficou evidente a

aceitação deste texto híbrido, motivador de um arsenal de variantes de leituras, frente a

Page 189: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

189

um leitor que, instigado, torna-se um caçador de possibilidades para uma interpretação

coerente.

O terceiro momento da pesquisa, concretizado no Círculo de Leitura Nº 03

intitulado O leitor contemporâneo entre conto e requadro, centrou-se no confronto

direto entre os dois textos, vislumbrando perceber o posicionamento dos leitores com

relação aos textos, em especial, a literatura em quadrinhos.

Leiliane, diante dos dois textos, relata diferentes sensações. Para ela, no texto

escrito o envolvimento subjetivo é maior, enquanto nos quadrinhos ela sente certo

distanciamento do fato, posturas assim descritas:

Eu me sinto, de certa forma, dentro do texto [conto]. Porque eu me

sinto como estivesse ali, vendo cada cena, vendo cada momento. E ...

quando saio para o ilustrado, de certa forma me sinto dentro, mas não

como se estivesse lá. É um fora que dá pra perceber bem. Agora a

ilustração, ela relata bem, dá pra relatar bem a época, a maneira das

roupas que as personagens estão muito bem usando que tá muito bem

colocado, os desenhos estão muito bem ilustrados, as calçadas, as

casas... Então, cada momento dá pra distinguir muito bem. Tá muito

bem definido um pro outro...

As imagens, se por um lado provocaram nela um olhar de “fora”, por outro

situaram bem o tempo e o espaço, dando-lhe clareza na contextualização do

acontecimento relatado. Neste processo de leitura do texto quadrinizado, a imaginação

apóia-se no real de uma época (aqui século XIX) materializada pelo signo, o que faz a

interpretação transcorrer de forma mais clara, posto que, segundo Franciele “apenas a

história [conto], a gente apenas lê... e imagina às vezes como é. Mas as figuras mostram

como era antigamente, as casas, as roupas, e dá pra vê como é realmente que a história

aconteceu.”.

Para Siérico a contribuição do texto quadrinístico ainda é maior, posto que

exterioriza de forma mais concreta as ações da personagem, visto que “Você sente cada

gesto da personagem, a maneira como ele se porta.”

Ao serem provocados com relação a como se deu a transposição do verbal para o

icônico, a surpresa dos alunos foi logo externada, uma vez que a quadrinização superou

as expectativas, como relata Raquel: “Foi isso que me surpreendeu. Eu esperava que

quem fizesse os quadrinhos resumisse. E aí eu já estava logo pensando que eu não fosse

Page 190: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

190

gostar, certo? , enquanto que os quadrinhos fosse bem resumido. E isso me

surpreendeu.”

Mesma reação foi percebida em Leiliane que melhor detalhou a permanência dos

elementos do texto literário escrito na quadrinização, chegando a hipotetizar que a

manutenção do primeiro na transposição poderia tornar cansativo o segundo. Tal

sensação, todavia, não se confirmou, pois o que poderia ser propensão para o cansativo

no texto verbal tornou-se, em sua opinião, elementos de riqueza no conto quadrinizado,

assim descrito:

Hoje, quando eu e Raquel estava saindo, Leila tinha me dado e eu já

tinha lido. Eu li aqui na escola mesmo. Ai ela me comentou o que

surpreendeu foi isso; de não ter cortado nenhuma parte do texto. Ai eu

falei assim: É! Porque eu pensei assim... já que vão ter partes

ilustradas pra não ficar muito cansativo, porque... é... iria ficar

cansativo, que iria cortar. Foi o mesmo pensamento de Raquel. E ai vê

que... procurou guardar cada pedacinho sem cortar. E mesmo assim

não ficou algo cansativo. Ficou algo ilustrado e algo rico pelo fato de

estar todo o texto na história em quadrinho.

Apesar da recepção positiva para os quadrinhos, a preferência em relação aos

textos foi muito dividida e os argumentos bem definidores. Para Raquel, defensora da

interpretação criativa no ato de recriação do texto pelo leitor, nos quadrinhos:

Eu acho que a linguagem, ela facilita. Mas o meu favorito continua

sendo o texto escrito. Eu acho que eu me divirto mais criando as cenas

na minha cabeça do que ver as cenas prontas. Mas se for analisar as

linguagens, os quadrinhos ajudam, mas eu acho mais divertido ler o

texto puro.

Também para Leiliane, defensora da inserção do leitor no texto pela imaginação,

o texto puro – como ela denomina o texto literário verbal – permite um maior

envolvimento subjetivo, uma maior fruição estética, assim descrita:

Em relação ao texto puro, Quel, eu também gosto pelo fato de ...aqui

eu não tava lá dentro. Eu já tava vendo todo mundo no seu lugar. E

quando tá o texto vazio, sem as ilustrações, eu estou aqui. E em algum

momento, às vezes só em alguns momentos eu vejo a história inteira.

Não sei aonde eu estou, eu tô vendo cada cena...

Para Siérico, leitor assíduo de quadrinhos, seu posicionamento subjetivo frente

aos textos também é bem definido. Em seu ponto de vista ocorre a supremacia do

envolvimento maior do leitor no texto literário escrito, e destacou que: “No texto só de

Page 191: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

191

palavras, eu me sinto como o narrador. No texto das imagens parece que eu estou

assistindo”...

Ana Carolina aponta que a diferença na percepção dos dois tipos de textos aqui

discutidos está na arbitrariedade interpretativa possível do texto literário escrito, posto

que “No texto em palavras a gente cria a cena do jeito que a gente quer. E aqui não, já

está criado, então pra gente é assim como se a gente estivesse mesmo recebendo.”

Foi destacado que a quadrinização, releitura-recriação do texto literário pelo

ilustrador, acabou esclarecendo outras indeterminações do texto não percebidas na

leitura do conto literário. Carol evidenciou isso na estratégia de narração. Para ela, foi

na leitura dos quadrinhos que começou a se esclarecer como se configurou a cena inicial

da história, como ele afirma:

Ó, professora, eu achei diferente. Muito diferente [no conto]. Esse

momento ajuda a gente a entender. Quando começa a falar de Garcia

em pé, Fortunato na cadeira, pra cada um estava separado, cada um

num canto ... Eu estava sem entender o início da história. E eu vim

perceber assim... que ele e Garcia já se conheciam e eram amigos. E aí

esta história de Casa de Saúde já vinha falando desde o começo. E no

momento que fala da Casa de Saúde já mostra que Maria Luiza não ia

gostar... Já fala que ela está com os dedos trêmulos. Realmente eu não

tinha entendido esta parte. Pra mim, cada um estava em seu canto...

mas eles já estavam juntos... E depois vem o encontro. Aquela parte

que Garcia entra na universidade.

O que vai ser confirmado por ela com a retomada das imagens em outro

momento da quadrinização, como destaca:

E na página 36, aqui, eu agora é que eu vim ver aqui o que ela

realmente falou do começo. É que a página 36 volta para o final. É a

mesma cena do início. É ...que é Fortunato sentado, o médico Garcia

em pé e na página 35 mostra Maria Luiza costurando. É a mesma cena

do começo.

Raquel foi quem explicitou todo o processo realizado na técnica do flashback,

por ela percebido desde a leitura do conto. Ela provou, em outra fala, seu ponto de vista

com passagens do texto literário escrito, o qual continuou a defender. Na sua exposição,

fica patente a ideia da quadrinização como uma releitura do conto por meio do signo

icônico, exatamente o que Plaza chama de tradução intersemiótica. Esta tradução que é

releitura/refeitura é confrontada com a sua leitura do conto, ocorrendo convergências e

divergências nas percepções da citada leitora:

Page 192: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

192

Pra mim foi diferente. Eu entendi que ele estava fazendo um

flashback. Ele usou o recurso: diz uma parte mais adiante do que ele

conta a história. Ai ele volta atrás, quando eles não se conheciam pra

que a gente entenda aquele ponto que eles tinham chegado. Agora, eu

acho que, quando ...o ilustrador fazer isso ele tem que interpretar pra

colocar os desenhos, o que às vezes confrontam com a nossa forma de

ver. É uma expressão diferente, certas cenas imaginei diferente,

imaginei um sentimento diferente das personagens. Às vezes muda um

pouquinho, às vezes sai igualzinho como eu tinha imaginado.

..............................................

No fim da página 4 ele fala: “Pra fazê-lo entender é preciso remontar a

origem da situação.”.

Outra indeterminação do texto literário que perdurou até a leitura dos

quadrinhos, na opinião de Carol, foi a participação de Fortunato no episódio do

espancamento de Gouveia, visto que também a quadrinização preservou o ar enigmático

da referida personagem. A princípio, chegou-se a pensar que ele era o enfermeiro que

surgiu para socorrer a vítima dos capoeiras. Posteriormente Aiala cogitou que seria ele

(Fortunato) o autor da atrocidade, até que Raquel provou que ele era um observador,

acompanhante de todos os fatos de forma bastante estranha, como se nota no diálogo

travado:

Carol: “Ó, eu ainda continuo acreditando, pra mim, que Fortunato era enfermeiro. Porque aqui

nesta parte o homem está na cama, página 4, último quadrinhos. Ai fala assim, que depois de

pôr ele na cama, Garcia disse que era preciso chamar o médico. Ai um dos homens que tava na

casa falou “ai vem um”. É quando entra Fortunato, Então alguém chamou ele. Ele também age

como enfermeiro. Depois fala Garcia olhou e era o mesmo homem da Santa casa e do teatro.”

Raquel: “Mas na página 11 ele diz “não caiu logo; disse onde morava e, como era a dois passos,

achei melhor trazê-lo. Ele presenciou e trouxe o homem.”

Aiala: “No conto, eu também pensei que fosse ele.”

A contribuição da quadrinização para melhor compreensão do conto foi

destacada pelos alunos ao indicarem os elementos da linguagem quadrinística que mais

acrescentaram informações à leitura. O detalhamento da ação da personagem utilizando

variadas posturas corporais, em diferentes requadros, foi o primeiro a ser citado. Um

exemplo indicado por Liliane diz respeito ao narrador, que durante a narração é

mostrado em diferentes focos frontais. Neste caso, o detalhamento ocorre para dar

ênfase à performance narrativa do enunciador (aqui, a representação do próprio

escritor), como se nota nos requadros abaixo:

Page 193: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

193

Figura 223: A causa secreta

Escala Educacional, pág. 3.

Figura 224: A causa secreta

Escala Educacional, pág. 3

Figura 225: A causa secreta

Escala Educacional, pág. 4.

Figura 226: A causa secreta

Escala Educacional, pág. 4.

A aluna em questão assim explicita este processo, apresentando a leitura das

posturas e expressões do narrador no icônico:

Page 194: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

194

O detalhamento da ação é maravilhoso. Porque assim... quando a

gente... É igual a visão que a gente faz de cada vez que a gente lê.

Nós não teríamos essa... acho que tanta criatividade de pôr cena por

cena. Aqui na página 04 aparece Fortunato três vezes num só

momento, um do lado do outro, se fosse eu não colocaria assim. Eu

colocaria uma vez só e sairia falando tudo o que fosse pra falar. Mas

quem teve a ideia de fazer os quadrinhos, foi bem rico nisso. Que teve

esse ponto de detalhe, de pôr cada em seu lugar. E cada detalhe mostra

ele com a feição diferente, a indicação, o rosto, o sorriso, em pé... É o

narrador? Desculpa. Se fosse eu, colocaria ele de uma vez só para

falar tudo.

O detalhamento com ênfase nas expressões faciais da personagem para narrar

como transcorre o fato foi destacado por Aiala como de grande importância visto que “O

quadrinho foi melhor, mas o conto deixa imaginar mais. [No quadrinho] A pessoa pode

não estar falando nada, as expressões dizem alguma coisa, se está alegre ou se está

triste”. Isto ocorre na descoberta da doença e definhamento de Maria Luiza, assim

explorada pelo quadrinista:

Figura 227: A causa secreta

Escala Educacional, pág. 37.

Figura 228: A causa secreta

Escala Educacional, pág. 38.

Page 195: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

195

Também Leiliane teceu as seguintes observações sobre esta passagem, corroborando

com as impressões de Aiala:

Na morte de Maria Luiza, aos pouco eu fui acompanhando passo a

passo. Ela não estava no momento falando nada. Mas a expressão

facial via que ela estava definhando, definhando aos poucos. Aqui fala

assim: “Maria Luiza cismava e sofria.”. Ela não falava nada apenas

tossia. E ai foi:“Ela tossia e não passou muito tempo que a moléstia

não tirasse a máscara. Então só foi mostrando. Dá pra ver assim... A

expressão facial é algo que... nós temos a mania de querer as coisas

prontas. A princípio fomos fazendo cada imagem na cabeça e quando

pegamos um texto ilustrado que distorce um pouco daquilo que

imaginávamos acabamos gostando porque ele... neste texto ele mostra

os detalhes e põe Maria Luiza em várias cenas, porém cada uma vai

mostrando o detalhe do rosto diferente, vai deixando...aqui na página

37 dá pra ver isso bem.

As diferentes angulações da postura corporal para melhor detalhamento da ação e

percepção da pretensão da personagem no fato foi intuitivamente percebido por Aiala quando

destacou a seguinte passagem “Na página 20 mostra Garcia indo pra ... de frente... pra

faculdade. E antes dele, já mostra o lado dele. Aqui tá de costas, já cá mostra o lado

dele. O lado do rosto dele...”, assim materializado na imagem:

Figura 229: A causa secreta

Escala Educacional, pág. 17.

Também Siérico fez menção à continuidade da mesma passagem “Do lado de uma

árvore, depois da árvore, de costas e depois subindo a escada, ao lado de ... Fortunato.

Page 196: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

196

Por trás de Fortunato” que ganhou expressividade com a mesma técnica, como se pode

observar :

Figura 230: A causa secreta

Escala Educacional, pág. 18.

As referidas contribuições, destacadas pelos leitores, em dado momento foram

classificados como elementos facilitadores para a leitura do texto literário. Contudo, a

aluna Raquel observou as variantes no ato interpretativo do quadrinista e do leitor.

Neste jogo de percepções confrontadas, o leitor acresce para si a interpretação do

quadrinista, o que favorece uma melhor apreensão do texto literário. Assim ela

descreveu o processo:

Uma diferença que você nota é a seguinte: quando você lê o texto

puro, você faz a sua interpretação; mas quando você lê o quadrinho,

além de você fazer a sua, a visão de quem ilustrou passa para você. Eu

acabo pegando um pouquinho a visão da pessoa que ilustrou. Eu faço

a junção da minha ou, às vezes, eu mudo a percepção de tal cena

dependendo do que ele ilustra. Ele passa a interpretação dele para mim

também.

Neste momento das discussões, notaram-se duas posturas dos leitores, frente ao

texto quadrinístico: uma mais crítica, do leitor que confronta sua leitura com a do

ilustrador e ora concorda, ora discorda; a outra do leitor que acha o texto dos quadrinhos

perfeito, exatamente o que ele necessitava para compreender o conto, aceitando, na

íntegra, a leitura do ilustrador. Discutido o motivo da aparente facilidade das

quadrinizações, os posicionamentos se alinharam no argumento do mínimo esforço para

a imaginação, como se observou nas falas de Leiliane:

Sim. É algo que... são detalhes como Carol colocou aí. Três quadrinhos que estamos dando importância a mais detalhes e tal... e quando vê ilustrado a gente consegue captar detalhes que nós não

Page 197: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

197

tínhamos conseguido captar. Então é algo que vem mais fácil... Eu acho...

.......................................................................................................

Assim... Eu e Raquel, eu acho que tu chegou a ler O primo Basílio,

não foi? Nós assistimos o filme e lemos o livro. O livro, ele também é

rico em detalhes como Siérico colocou, só que... quando vai assistir o

filme é algo que... é mais fácil de entender porque até então quando

estamos apenas lendo... lá começa também dizendo que o primo

Basílio estava em tal lugar e no filme a gente não precisa imaginar

assim... porque a gente já tá vendo tudo ali.

Siérico também não deixou de destacar a riqueza do texto literário, entretanto,

para ele “O quadrinho... é como se fosse o filme. É muito mais fácil você entender e

apreciar o filme do que ler o livro. O livro é rico em detalhes, mas o filme lhe dá tudo

pronto ali... cada expressão, cada coisa, cada gesto. E o livro não.”.

Ao focar o processo imaginativo no ato da interpretação, os leitores enfatizaram

que se dá de diferentes formas e intensidade em cada tipo de texto: literário escrito,

filme ou quadrinho. Contudo, para Raquel, o adaptador da obra literária percebe em sua

leitura a intensidade do conteúdo e o rearranja em novos elementos (signos icônicos)

para melhor expressá-la no novo texto que produz. Independente do texto, é o hábito de

leitura que vai ser determinante para a interpretação, a imaginação, que deverá vencer

os obstáculos, as indeterminações para a produção do sentido. Assim ela discorreu:

Eu acho assim que a diferença entre O primo Basílio - livro e filme:

quem adapta, olha o tempo que vai ter, se você vê o livro é denso, ele

tem que cortar, ele tem que resumir, às vezes ele muda coisa, então

fica mais fácil. Agora eu acho que o quadrinho ajuda, é importante,

mas tanto um quanto o outro se tornam difícil para as pessoas que não

tem hábito de leitura. Se eu pego uma pessoa que tem a mesma idade

que eu, mas ela não tem hábito de ler nenhum livro, revista, nem o

livro didático, vou dar um livro de Machado de Assis, a pessoa vai

ficar perdida como um cego em tiroteio. Mas quando você já tem o

hábito de leitura, quem já leu muito livro antigo... Aí tem termos que

os alunos ficam azuados. Quando fala “tílburi” e, no caso, que não

fala carroça nem carruagem. Quando fala tílburi e você já sabe o que é

, quando fala de doença, a bexiga, você vai habituando e não precisa

mais consultar dicionário embaixo. Mas o primeiro livro antigo assim,

de Machado de Assis, que eu li, que foi um fenômeno, só que o

primeiro diálogo dele eu falava “eu não vou conseguir ir adiante. Por

que é muito difícil e extremo, principalmente no livro daquela época

era um diálogo bem mais monótono e cansativo. A partir do momento

que você já tem um hábito de leitura, você vai se acostumando e se

torna uma coisa corriqueira.

Page 198: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

198

A aluna Marília destacou a quadrinização como mecanismo de facilitação do

conto, e apesar de transparecer a leitura pejorativa dos quadrinhos, estes tomados como

causadores do empobrecimento do exercício mental, também defendida por Franciele,

percebeu que o leitor diante da leitura quadrinística tem a participação ativa da recriação

motivada pela presentificação do texto no ato de ler. Assim as alunas, respectivamente,

discorreram:

Eu escolho o quadrinho, pelo fato de facilitar a intepretação do conto.

Eu acho que a imagem, como se diz, reduz o nosso exercício com a

mente. Em vez da gente se esforçar mais em imaginar aquela cena, a

gente já recebe pronta e aí com base naquela figura a gente vai

recriando aquilo como se fosse um filme, acontecendo naquele

momento, como se fosse ao vivo.

......................................................................................................

É mais fácil porque... como a menina aí falou, porque exercita a

mente, né. E é mais interessante... você tá vendo aquela imagem é

melhor. Você tá vendo cada imagem, cada frase do texto. Basta só

interpretar porque quando a gente lê, não acontece como o texto

[escrito]. Eu mesmo, é mais fácil interpretar com imagens.

Posicionamento e adesão similares ao de Marília ocorreram com Ana Carolina,

que pode ser vista como uma típica leitora contemporânea, afeita às benesses da era

tecnológicae imagética. Ela reconheceu nas leituras das quadrinizações um momento de

fruição estética propiciado pelo icônico:

Pra mim também... a gente... parece que é uma aventura que a gente tá

vendo... Pra mim o quadrinho é a mesma coisa de tá assistindo um

filme. E a gente vê, a gente se emociona e é muito bom mesmo. Eu

gosto. Minha mãe mesmo reclama porque eu sou muito viciada em

computador, e eu sinceramente pra não ficar no computador disse pra

ela comprar um bocado de revista em quadrinho pra eu ler. Ela falou

que ia comprar mesmo. Eu amei que gosto. Isso aqui prende minha

atenção. Eu, assim que cheguei em casa, li esse negócio aqui três

vezes: duas vezes ontem e uma antes de vir pra cá. Porque eu

realmente gosto mesmo.

Aiala se mostrou mais ponderada em relação à suposta facilidade da leitura dos

quadrinhos e destacou a necessidade de percepção apurada para a linguagem deste tipo

de texto:

É... Eu já tenho minha opinião. Eu acho fácil e difícil. Porque assim...

no ilustrado você tem que olhar cada traço, cada pontinho... o rosto

mesmo, mostra sombra em Fortunato. Porque essa sombra? É mais

intrigante descobrir esta sombra. E no texto não, você vê e imagina

normal, tranquilo. Já nesse não.

Page 199: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

199

E teve a corroboração na fala de Raquel, que foi mais contudente ao apontar para

a necessidade de dupla habilidade de leitura que o texto quadrinístico requer, similar aos

filmes:

“Deixa eu cortar aqui. Eu não acho mais fácil porque quando você lê

um texto, faz análise apenas do texto. Aqui, o mesmo texto e ainda

tem que fazer análise da imagem. Agora, o que muda é que pra muita

gente é mais prazeroso vendo a imagem. Ai quando você gosta mais

de ver imagem, pra você se torna mais fácil. É igual: pergunta aí quem

gosta mais de assistir filme legendado ou dublado? Filme dublado é

bem mais fácil. Agora quando você vai no legendado, tem que ler

aquela legenda e não perder o fio da meada da imagem. É o que muita

gente não gosta e aí fala: “eu não consigo acompanhar”, “eu não

consigo fazer a conexão”. Então acho que fica mais cômodo e

prazeroso para o leitor”.

Leiliane cogitou a necessidade de método de leitura para uma melhor apreensão

do texto literário ou da quadrinização, como tentou explicitar:

“Se me desse esse conto pra ler, eu não ia ter um apoio, um suporte

em nenhuma pessoa pra discutir. Ia achar a causa secreta qualquer

uma – o amor de Garcia por Luiza. E ali, para mim, ia ficar assim. E ia

dar vontade que outras pessoas lessem, mas para mim a causa secreta

era aquela. Eu não ia ficar me remoendo, procurando de quem seria a

causa secreta. Agora vem na cabeça: se estivesse só as imagens sem a

escrita, como é que nós iríamos narrar, se cada imagem (um homem

de frente, dedos estalando...), as imagens são muito ricas? A gente ia

ficar imaginando”...

Quando questionados se os quadrinhos são mera facilidade, economia de ato de

pensar ou uma possibilidade de interação com a alteridade ao se buscar confirmação da

leitura no texto iconográfico, Siérico buscou um consenso dos posicionamentos,

afirmando que “É facilidade e confirmação na leitura do ilustrador. “Um pouco dos

dois. É mais fácil você olhar, ler aqui e ver a imagem. Você olha, imagina ‘será isso

mesmo’? E aí você pega e olha a imagem e é isso mesmo.”

Ana Carolina, por sua vez, percebeu uma relação de interdependência entre o

verbal e o não-verbal, muito bem engendrada na quadrinização literária, uma vez que:

“A imagem, ela depende muito do texto. É como ela falou, se tivesse

só a imagem aqui, eu ia ficar perdida sem saber o que estava

acontecendo. Então no caso também do conto, só a escrita a gente

sempre imagina as imagens. E a imagem só a gente ficaria perdida.

Um depende do outro”.

Independente do conto literário ou da quadrinização, Aiala mostrou-se muito

motivada pela leitura do texto machadiano “A causa secreta”, muito instigante em suas

Page 200: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

200

indeterminações, o que a levou a socializá-lo com o pai, a mãe e o namorado, dos quais

colheu as seguintes leituras:

“Ontem eu dei esse livro pro meu pai ler. E ai ontem foi uma

discussão! Ele disse que Maria Luiza parece que tinha uma doença e

Fortunato estaria pesquisando esta doença ou procurando um método

pra curar esta doença, que quando Garcia falou assim...que ele tinha

salvado um homem, mas ele não ficou feliz. Mas que Fortunato não

queria que descobrisse esse ato de bondade dele”.

..................................................................................................

“Ontem minha mãe leu e ela disse que a causa era Garcia que

gostava de Fortunato. Eu disse que não, não é. Tá aí um segredo,

mas não é”.

Conforme Iser, mesmo sabendo que o texto representa algo e o significado

daquilo que é representado existe independente de cada reação singular que desperte,

por outro lado, esse significado, independentemente de cada concretização, é mais uma

experiência de leitura individual identificada com o próprio texto. Observa-se que os

leitores, diante das indeterminações dos textos, sentem-se extremamente estimulados e

provocados, como também se observa no comentário de Leiliane ao afirmar que a causa

secreta do conto “Poderia ser um acordo dos três [personagens]. Cada um poderia ter

uma [causa secreta]. É algo que cada vez que a gente lê, cada vez que a gente discute,

aparece algo que ainda não foi discutido, aparece algo que ainda falta se descobrir.

Gente! É muita coisa!”.

Assim, muito mais que a elitização do texto literário, ou o acesso a ele

propiciado pelos textos híbridos como a quadrinização aqui estudada, a recepção do

texto machadiano ou de qualquer literatura dependerá da socialização destes textos com

o universo dos leitores. É o do método de leitura que torna um texto ou autor mais

apreciado conforme Marisa Lajolo (rever p.79). Este ponto de vista é manifestado, em

outras palavras, por Raquel:

O que tornou a leitura diferente é isso. Porque... é... quando a gente se

reúne para discutir tem sempre alguém instigando. Então agente tá

sempre buscando um elemento a mais dentro da leitura. Se eu pegasse

o conto para ler na biblioteca, eu não ia ficar pensando qual era a

causa secreta. Realmente ia terminar, conhecer a história e fechar o

livro. Ia ler ali e acabou. Ia comentar e iria morrer ali. Como tá todo

mundo instigando, ... a gente presta mais atenção, porque às vezes

não tem opinião, mas a gente quer mostrar opinião, e a gente tem que

conhecer o evento para dizer não é assim não. É assim,no texto de

Page 201: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

201

Machado de Assis é isso. A gente vê de forma diferente. É igual a

Dom Casmurro, um dia a gente sentou pra discutir. Um dizia que

traiu, outro dizia que não. Cada um quer defender seu ponto de vista...

Desta maneira, foi observado no confronto estabelecido, que os leitores da

pesquisa, à princípio se portaram tímidos frente às indeterminações do texto literário,

não enfrentando a maioria delas. No máximo, em alguns momentos buscaram descrever

as dificuldades. Graças às provocações da mediadora e debates promovidos frente ao

texto é que as barreiras foram vencidas.

Já frente à quadrinização, os leitores mostraram-se mais receptivos, sem

desconsiderar a necessidade da leitura do texto literário e a percepção dos detalhes da

linguagem quadrinística.

Page 202: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

202

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O mundo contemporâneo apresenta-nos novas possibilidades de vivenciar as

variadas culturas por meio das re-elaborações dos objetos culturais. Tais possibilidades

vêm motivadas pelas aproximações espaciais, sociais e temporais promovidas pelo

mercado globalizado que reconfigura também a ideia de consumidor. As expressões das

culturas, produtos consumíveis, antes delimitadas pelas fronteiras geográficas,

cronológicas e sociais, passam por revisões na tradição que as redirecionam para um

diálogo com novas linguagens. Tal diálogo ocorre com o fito de intercambiar as

experiências diversas do presente-passado e fundamenta-se na busca da sobrevivência

de objetos culturais tradicionais frente às mais diversas criações tecnológicas.

Neste contexto, variados produtos culturais saem de suas redomas clássicas, das

margens populares e da subalternidade das massas e são traduzidos em novas

linguagens por meio do diálogo que possibilita e promove a hibridização dos textos.

Literatura, cinema, quadrinhos, música, telenovela, minisséries, desenho animado

tornam-se espaços artísticos e comunicacionais sem fronteiras para novas produções que

ampliam a recepção da arte e do conhecimento, antes fechados em castas, ou restritos

aos guetos populares e massificados.

Trata-se de um panorama lido em dois vieses: o do mercado avassalador e

seletivo, o qual, por meio dos recursos midiáticos e tecnológicos de que dispõe, amplia

seu poder econômico e ideológico derrubando as fronteiras culturais, impondo produtos

perpassados por valores típicos das classes dominantes, considerados como detentores

da qualidade; o outro viés é o do mercado ciente da diversidade cultural e que a utiliza

para ampliar seu raio de ação, apostando em novas sensibilidades e no resgate das

expressões marginalizadas para circular numa comunicação planetária que o dinamiza.

A literatura clássica, foco de atenção neste trabalho, caracterizada como

expressão restrita a determinados grupos, passa a dialogar com outras artes e saberes e

ganha nova roupagem para tornar-se mais atraente aos olhos de um leitor que busca e

encontra entretenimento gerado pelas facilitações e dinamismos oriundos do mercado

globalizado, tecnológico e cibernético. Dos variados diálogos construídos, nosso olhar

voltou-se para o estudo das quadrinizações literárias ou literatura em quadrinhos,

Page 203: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

203

produções que no Brasil surgiram na década de 1940 do século XX e ganharam

propulsão no mercado editorial na primeira década deste século XXI. O romance, o

conto, autos, peças teatrais, poesia e até literatura de cordel são repaginados na

linguagem quadrinística, que promove um novo texto que prima pela iconicidade para

atender ao mercado multicultural.

Se de um lado, a literatura clássica se restringia ao livro acessível a uma pequena

parcela de leitores acadêmicos, de outro os quadrinhos eram objeto das massas em

busca de entretenimento rápido e direto, que não costuma se fixar nas delongas e

meandros das conotações verbais rebuscadas; a literatura em quadrinhos torna-se, desse

modo, um intermédio. Trata-se de um novo objeto cultural híbrido que utiliza o melhor

das duas linguagens, no sentido de instigar e atrair o leitor contemporâneo.

Determinar o que vem ser a literatura em quadrinhos torna-se uma ação

espinhosa. Porém, podemos embeber-nos dos diferentes teóricos aqui visitados para, em

diálogo com seus pensamentos, situar este objeto cultural. À luz das postulações de

Canclini, as quadrinizações literárias podem ser tomadas como textos híbridos, que se

prestam à socialização da arte, como forma de fazer circular trocas de experiências e

vivências de novas sensibilidades necessárias para a subsistência de culturas. Tomando

as lições de Martin-Barbero, a literatura em quadrinhos torna-se um novo texto, de

natureza híbrida, que vem inserir a literatura na trama da comunicação cultural, levando

em consideração o tempo-lugar das novas gerações ao dotar o texto visto como de “de

outra época” de uma linguagem mais próxima dos jovens. Observando as teorizações de

Walter Benjamin, os quadrinhos literários destacam-se como forma de reprodutibilidade

técnica que diminuiria os sentidos auráticos da literatura clássica enquanto produto da e

para uma elite e que muito serviu aos interesses de dominação cultural. Trata-se de um

novo produto cultural que ganha espaço por meio de releituras e ressignificações

próprias do processo de tradução intersemiótica que favorece a uma leitura crítica da

história via posicionamento poético-político, conforme Plaza.

Fica patente que as quadrinizações são resultado do processo de transmutação de

um texto para outro (da literatura para o quadrinho), novas produções que se

concretizam por ser o resultado da junção de códigos distintos (do verbal para o

icônico). Trata-se de um processo de semiose, no qual o signo verbal transita para o

Page 204: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

204

signo icônico, sem que haja perdas nas linguagens ou prejuízo para a comunicação. Tal

processo é marcado pela subjetividade da leitura e é transformado pela criatividade

artística do quadrinista, que transubstancia as conotações do texto literário verbal para o

icônico dos quadrinhos.

A tradução intersemiótica, denominação deste processo, caracteriza-se como

geradora de novos produtos culturais para o mercado do entretenimento. Ela tem sua

razão ontológica na concepção da História como mônada, conceito teorizado por Walter

Benjamim para quem o passado é um conjunto de possibilidades que podem ser

revisitadas em outro momento. Neste sentido, a literatura em quadrinho pode ser

tomada como um veículo de revisitação histórica, que metaforiza o homem, as

ideologias, via texto hibrido, para melhor compreensão da cultura herdada com fim na

construção do homem do presente. Ler literatura numa linguagem mais próxima da

comunicação contemporânea favorece a este conhecimento, e também à percepção desta

sensibilidade, que extravasa a mera produção da indústria cultural alienante, como

alguns proclamam. O leitor deste texto não é um mero consumidor, mas o sujeito ativo

de uma recepção veiculadora de sensibilidades próprias e que por meio da empatia

entabula diálogos que conduzem à alteridade.

Os elementos diferenciadores destas produções podem ser resumidos no

tratamento dado ao texto-base (literatura), ora conservado, ora enxugado nas ações

centrais, ora atualizados nos argumentos. Neste sentido, a fidelidade, considerada

problema nas quadrinizações pelo fato destas serem relacionadas à cópia-preservação do

texto traduzido pelos leitores mais conservadores, tem status de invenção, de

transcodificação criativa, conforme Plaza (2008). Tal teórico afirma que o texto

adaptado “não pode ser fiel ou infiel ao objeto, pois como substituto só pode apontar

para ele” (p.32), uma vez que não oculta o texto-base e “se manifesta em termos de

complementação com ele, alargando seus sentidos e/ou tocando o original num ponto

tangencial de seu sentido [...]” . (p.30)

Ocorre, então, via tradução intersemiótica, a materialização das metáforas

verbais do literário que é tratado também esteticamente no signo icônico. Assim, os

elementos da linguagem icônica quadrinística como timmming, perspectiva, planos de

cena, postura corporal, expressões faciais, símbolos cinéticos, metáforas visuais, cores,

Page 205: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

205

balões, montagem de requadros, vinhetas, entre outros, são utilizados no sentido de

potencializar o conteúdo do texto literário, que pode ser colocado ou não com cortes,

nas legendas e diálogos, ao tempo em que aponta para novas nuanças do conteúdo.

A literatura machadiana, por este caminho, ganha novos contornos que

intensificam a potencialidade do texto verbal. Reconhecido pela ironia e relativização de

valores, pelas metáforas genuínas, pela análise ácida da alma humana, o texto de

Machado de Assis, aclamado no cânone literário, porém marcado por indeterminações

que desconsertam a leitura comumente tomada como um ato de única mensagem e

torna-se distante para o leitor contemporâneo, seja por suas estratégias narrativas

complexas, seja pela linguagem dotada de elaborações para o leitor não iniciado. Muitas

são as tentativas de tornar este texto mais próximo, mais acessível: na televisão com

novelas e minisséries, no cinema com adaptações de filmes e nos quadrinhos com a

literatura quadrinizada. São as propostas de revisitação ora louvadas pelos leitores

abertos aos diálogos textuais, pelo potencial criativo-artístico destas reconstruções, ora

rechaçadas por leitores conservadores pela suposta alienação e massificação que são

atribuídas a estes textos.

A literatura em quadrinho, ou quadrinização literária, é um dos espaços de

revisitação do texto machadiano que vem ganhando espaço de destaque, havendo títulos

que passam por várias traduções, como também ocorreu no cinema. Atualmente, O

alienista ganhou quatro versões quadrinizadas. Memórias Póstumas de Brás Cubas é

encontrada em três e Dom Casmurro em duas versões. Muitos contos já são

disponibilizados no formato de literatura em quadrinhos e Machado de Assis é o escritor

brasileiro que mais tem merecido o olhar das quadrinizações, conforme constatamos ao

longo desta pesquisa.

Os processos de transmutação das obras machadianas para os quadrinhos

tornam-se experiências bem peculiares para os quadrinistas, artistas-autores que têm

com o texto-base experiências de leituras específicas, cada um com suas percepções.

O romance Memórias Póstumas de Brás Cubas tem a linguagem original

mantida quase que integralmente na maioria dos trabalhos, ocorrendo diferença apenas

nas sínteses-roteiros. O diferencial se faz presente a partir da constatação dos recursos

utilizados criativamente por cada quadrinista.

Page 206: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

206

Em O alienista, a singularidade de cada quadrinização se faz presente no

sentido de que o leitor vive a sensação da leitura de um novo texto, ao se deparar com

cada versão; seja a partir da percepção de traços mais caricaturais das personagens da

Companhia da Editora Nacional, ou da criação de uma atmosfera marcada por breve

tônica de terror na produção da Ática, ou pelo texto mais próximo ao texto-base em sua

caracterização geográfica e histórica da Escala Educacional, ou ainda no texto que

reflete a visão realista-naturalista da personagem em sua interrelação com as outras

personagens e interação com o meio da Agir. Cada texto quadrinizado deste conto

ganha uma tônica diferenciada de acordo com a leitura e a técnica artística do

quadrinista.

A quadrinização de O Conto da Escola, da Peirópolis traz como particularidade

a convergência da técnica narrativa do conto e o estilo do desenho, ambos apontando

para a percepção do mundo infantil, haja vista que se trata da rememoração de um

episódio da infância por parte de um menino.

A causa secreta, texto machadiano escolhido para ser apreciado pelo grupo de

leitores voluntários na pesquisação, destaca-se por se tratar de um texto extremamente

instigante e gerador de diferentes percepções de leitura. A caracterização das

personagens Fortunato, Maria Luiza e Garcia, muito mais do que a assimilação dos

aspectos naturalistas no concernente à análise comportamental, apresenta-se como o

retrato de uma época, no concernente às posturas individuais e sociais das personagens.

Mais que a causa secreta, talvez coubesse denominar a obra de as causas secretas,

devido às intrincadas relações e comportamentos que movem o enredo.

Na quadrinização, um texto que aparentemente não prima pelo desenho artístico,

traduz de forma direta e objetiva o universo dúbil das relações sociais, amorosas,

econômicas e científicas que contextualizam a sociedade brasileira da segunda metade

do século XIX. Luiz Vilaçhã, quadrinista da obra, explora uma das metáforas mais

discutidas na obra machadiana: o olhar. Em várias perspectivas, ângulos, expressões, os

olhares das personagens são sempre carregados de certo mistério. Isto possibilita uma

leitura de constantes suspeitas em relação às ações e pretensões das personagens, o que

desfoca o rumo da narrativa, à princípio dirigida unicamente pela dubiedade dos

comportamentos da personagem Fortunato.

Page 207: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

207

O leitor contemporâneo, motivado pelas leituras de textos pragmáticos e

midiáticos, frente ao texto machadiano tradicional sente-se desmotivado. Geralmente

tomado como texto do ambiente escolar utilizado para mensurar os conhecimentos

sobre a cultura da elite de uma época distante, a literatura machadiana torna-se um

fetiche para uns, ou uma adaptação aos valores dominantes para outros, que ignoram a

cena multiculturalista que ganha primeiro plano neste novo século. E nesta paisagem de

relações marcadamente interculturais, nas quais as fronteiras sociais e culturais tornam-

se fluídas pela circulação de objetos híbridos que promovem a necessidade de

ressignificações das variadas manifestações culturais, o leitor encontra, nas

quadrinizações literárias machadianas, um espaço de diálogo mais próximo e mais

fecundo.

Frente ao texto quadrinizado A causa secreta, de Machado de Assis, um grupo

de estudantes do Colégio Polivalente Edivaldo Boaventura demonstrou como a leitura

de textos híbridos, em diálogo com o texto-base, pode tornar-se um encontro produtivo.

Apesar de demonstrarem que, para a maioria, a leitura literária não fazia parte das

atividades que realizam com prazer e constância, este leitor aceita desafios conforme a

proposta realizada.

No primeiro momento, diante do texto-base, o conto A causa secreta, os leitores

reagiram com certa relutância devido às indeterminações da narrativa, as quais foram

tomadas como dificuldades. No decorrer das discussões, mediante as relativizações dos

valores, aspectos possibilitados pelo texto machadiano, e os processos de

desestabilização a que foram remetidos, tais leitores foram instigados a se distanciar de

uma única interpretação. Neste sentido, os jovens passaram a vivenciar o processo

recepcional como uma reconstrução da história, a partir dos elementos oferecidos pelo

autor. Passaram a perceber que o texto machadiano solicita de cada leitor uma leitura

arguta que pode levar a vários caminhos no processo de construção de sentidos.

No segundo momento, em contato com a quadrinização A causa secreta, de

Francisco Vilachã e Fernando Rodrigues, os leitores mostraram-se mais afeitos à leitura

por acreditarem que o entendimento do texto se efetivaria com facilidade devido ao

elemento icônico, o qual viabilizaria o prazer estético, sem exaustão, num trabalho

interpretativo caracterizado mais por incógnitas do que por encontros. Defenderam que

Page 208: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

208

ocorre o processo imaginativo frente ao texto imagético, de forma diferenciada, devido

às especificidades da linguagem quadrinística.

As indeterminações do texto-base no que diz respeito à percepção do flashback e

do estabelecimento das falas nos diálogos foram preenchidas com mais efetividade

pelos leitores na quadrinização por oferecer condições mais objetivas de percepção

graças às imagens.

Os leitores foram unânimes na avaliação de que a quadrinização reverbera o

texto-base, ampliando o potencial do signo estético por meio de elementos outros da

linguagem. Detalhes das ações das personagens são explorados pela apresentação e

recriação de outros detalhes que vão além da descrição oferecida pelo verbal, graças aos

processos de timming, focalização e perspectiva. Intensificam-se os sentimentos e

reações das personagens por meio do close-up em partes específicas do corpo (rosto,

olhar, mãos...), das expressões faciais, dos gestos e das posturas nem sempre oferecidas

no texto-base.

No terceiro momento, destinado ao confronto dos textos, houve consenso no que

tange à crença de que a quadrinização não substitui o texto-base, o qual é considerado

necessário para uma leitura mais eficiente da ressignificação. Mesmo que a criação do

texto quadrinizado esteja vinculada ao texto-base, cada leitor demonstrou percepções

muito próprias e específicas.

Alguns leitores sentiram-se como observadores que assistem às cenas, capazes

de avaliar fatos e situações de modo mais objetivo, efeito provocado pela imagem já

elaborada, o que comprova a afirmação de certa facilidade de compreensão. Frente ao

texto-base, eles se perceberam como uma personagem da história, envolvidos

subjetivamente nas situações engendradas na história, o que em muito pode tornar a

construção de sentido um processo mais complicado.

Apesar de o texto quadrinístico ostentar condição de texto apreendido sem

demandas de suposta complicação, o prazer estético não se torna menor, posto que

demanda certas habilidades de percepção e capacidade cognitiva para compreensão das

informações provenientes do signo icônico. Muitas vezes a quadrinização amplia o

conteúdo informacional em relação ao texto-base.

Page 209: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

209

Pelo menos duas possibilidades de leitores foram estabelecidas frente à leitura

quadrinística: o leitor acomodado, que acredita nas quadrinizações como textos fáceis

por não exigirem esforço mental, e o leitor crítico que vê a literatura em quadrinhos

como um texto repleto de estratagemas para os quais a atenção deve ser redobrada.

Um aspecto que despontou de forma a provocar outras discussões é como se dá a

prática de diálogos que os textos instaurariam. Literatura, filme, novela, música,

quadrinhos com suas linguagens específicas para atender a grupos específicos,

segregados ou não, ou textos híbridos que articulam, problematizam, confrontam

culturas de forma crítica no sentido de favorecer e acessibilizar o conhecimento e a

sensibilidade, nada repercutirá no leitor se este encontro não for permeado pela

socialização.

Enfim, a literatura em quadrinhos desponta como um objeto cultural híbrido que

apresenta condição de interculturalidade, pela necessidade de socializar as diferentes

experiências de vida por meio de linguagens que propiciam uma maior circulação de

conhecimento, de saberes e de sensibilidades. Tal produto cultural é mais uma das

opções de trânsito destes saberes tão em voga na teia da comunicação global. Mas vale

salientar que é na alteridade que o encontro gera significação e se viabiliza. Muito mais

que o formato do texto, é a forma como dispomos ou intencionamos a prática de leitura

que tornará fecundas estas vivências.

Page 210: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

210

REFERÊNCIAS

ASSIS, Machado de. Crítica & variedades. In: ______. Obras completas de Machado

de Assis.São Paulo: Globo, 1997. ASSIS, Machado de. Obra completa. São Paulo:

Companhia Brasileira de Impressão, 1964.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre a literatura e

história da cultura. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. são Paulo: Brasiliense, 1994.

BOSI, Alfredo (Org.). Machado de Assis. São Paulo: Ática, 1982. (Coleção escritores

brasileiros).

BOSI, Alfredo. Machado de Assis: o enigma do olhar. São Paulo: Ática, 2003.

BRAYNER, Sônia. Labirintos do espaço: romanesco: tradição e renovação da literatura

brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.

BRAYNER, Sônia (Org.). O conto de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 1981.

CÂNDIDO, Antonio. Vários escritos. São Paulo: Edições Ouro sobre o Azul, 2004.

CÂNDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Edições Ouro sobre o Azul,

2008.

CIRNE, Moacy. Quadrinhos, sedução e paixão. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes,

2000.

COELHO, Marcelo. Crítica Cultural: teoria e prática. São Paulo: Publifolha, 2006.

COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria e senso comum. Trad. Cleonice Paes

Barreto Mourão/Consuelo Fontes Santiago. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001.

COUTINHO, Afrânio. Machado de Assis na literatura brasileira. Rio de Janeiro:

Academia Brasileira de Letras, 1990.

CULLER, Jonathan. Teoria Literária: uma introdução. São Paulo: Beca, 1999.

CUNHA, Eneida Leal. A emergência da cultura e da crítica cultural. Cadernos de

Estudos Culturais, Campo Grande, Mato Grosso do Sul, v.1, n.2, p. 73-82, jul./dez.

2009.

Page 211: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

211

CUNHA, Eneida Leal. Entre a história e a teoria, a crítica cultural. Cadernos do Centro

de Pesquisas da PUCRS: História da Literatura em questão, Porto Alegre, n.1, v.10,

p.39-43, set. 2004.

DIXON, Paulo. Os contos de Machado de Assis: mais do que sonha a filosofia. Porto

Alegre: Movimento, 1992.

DISCUTINDO LITERATURA ESPECIAL. São Paulo: Escala Educacional, ano1, n.1,

mar. 2009. 66 p.

D’OLIVEIRA, Gêisa Fernandes. Cultura em quadrinhos: reflexões sobre as histórias

em quadrinhos na perspectiva dos Estudos Culturais. Revista ALCEU. v.4. n.8. p. 78-93,

jan./jun. 2004.

DOS CLÁSSICOS do passado aos quadrinhos do futuro. Disponível em.<http://

www.jblog.com.br/quadrinhos.php?itemid=21238. Acesso em: 26 maio 2010.

EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura: uma introdução. Trad.Waltersir Dutra. 4ª ed.

São Paulo: Martins Fontes, 2001.

ECO, Humberto. Apocalípticos e integrados. Trad. Pérola de Carvalho. São Paulo:

Perspectiva, 2008.

EISNER, Will. Quadrinhos e arte seqüencial. 3.ed. São Paulo:Martins Fontes, 1999.

FEIJÓ, Mário. Quadrinhos em ação: um século de história. São Paulo: Moderna, 1997.

FISCHER, Steven Roger. Tradução Cláudia Freire. São Paulo: Editora UNESP,2006.

GARCÍA CANCLINI, Néstor. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da

modernidade. 4. ed. São Paulo: Edusp, 2008.

GLEDSON, John. Machado de Assis: ficção e história. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra,

2003.

GLEDSON, John. Por um novo Machado de Assis: ensaios. São Paulo: Companhia das

Letras, 2006.

GOMES, Eugênio. Aspectos do romance brasileiro. Salvador: Progresso, 1958.

GOTLIB, Nádia. Teoria do conto. 11.ed. São Paulo: Ática, 2006 (Coleção Princípios).

HOLLANDA, Heloísa de. A questão do mútuo impacto entre a historiografia e os

estudos culturais. Cadernos do Centro de Pesquisas da PUCRS: História da Literatura

em questão, Porto Alegre, n.1, v.10, p.69-73, set. 2004.

Page 212: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

212

ISER, Wolfgang. A indeterminação e a resposta do leitor na prosa de ficção. Trad.

Maria Angela Aguiar. Cadernos do Centro de Pesquisa Literários da PUCRS. Série

traduções. Porto Alegre. v. 3, nº 2, março/1999.

JAUSS, Hans Robert. A estética da recepção: colocações gerais. In LIMA, Luiz Costa

(Org.). A Literatura e o leitor: textos da estética da recepção. Rio de Janeiro: terra e Paz.

2002

LIMA, Luiz costa (org.). A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Rio de

janeiro: Paz e Terra, 1979.

LITERATURA em quadrinhos Disponível:<http://www.metodista.br/jornal-

metodista/90/literatura-em-quadrinhos.>Acesso em: 28 jun. 2009.

MACHADO de Assis: o lince. Discutindo Literatura, São Paulo, n. 4, p.30-39, s/d.

MACHADO, Rosi Marques. Da indústria cultural à economia criativa. Revista ALCEU,

v.9. n.18, p.83-95, jan./jun. 2009.

MARGATO, Izabel; GOMES, Renato Cordeiro. Espécies de espaço: territoriedades,

literatura e mídia. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2008. p.6-17.

MARTÍN BARBERO, Jesús. América Latina e os anos recentes. Trad. Sílvia Cristina

Ditta e Kiel Pimenta. In: SOUSA, Mauro Wilton (Prg). Sujeito, o lado oculto do

receptor. São Paulo: Brasiliense, 1995.

MARTÍN BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e

hegemonia. Trad. Ronaldo Polito e Sergio Alcides. 6. ed. Rio de Janeiro:Editora da

UERJ., 2009

MARTÍN BARBERO, Jesús. Ofício de cartógrafo: travessias latino-americanas da

cultura na educação. Trad. Fidelina Gonzales. São Paulo: Edições Loyola, 2004.

MOÇO, Anderson. Machado, um clássico para todos. Nova Escola, São Paulo, n.218,

p.46-53, set. 2008.

NINA, Cláudia. O escritor de 7 faces. Entre Livros, São Paulo, n.30, p.23-47, out.2007.

OLIMPO, Ariadne. Moralismo no divã. Discutindo Literatura [especial], São Paulo, n.

1, p.42-44. s/d.

PASSOS, Lavínia Resende; NOGUEIRA, Maria das Graças Fernandes. Histórias em

quadrinhos: um suporte a mais na formação de leitores. Disponível em: <http://

www.letras.ufmg.br/atelaeotexto/revistaxt5/laviniaartigo.html>. Acesso em: 26 maio

2010.

Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Médio. Ministério da Educação. Secretaria

de Educação Média e Tecnológica – Brasília: Ministério da Educação, 1999.

PEREIRA, Vicente Luiz de Castro. Para além das fronteiras dos gêneros. Discutindo

Literatura [especial], São Paulo, n.1, p.18-23, s/d.

Page 213: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB PRÓ … · quadrinização de obras da literatura brasileira, ainda em passos lentos nesta produção. ... A literatura em quadrinhos não se

213

PLAZA, Julio. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2008

PRECISA estudar literatura para vestibular? Leia um gibi, ora bolas! Disponível em:

<http://

www.hq/Cosmo.com.br/textos/hqcoisa/h0168_literaturaemquadrinhoss_281006.htm>.

Acesso em: 28 jun. 2009.

PROLEITURA. São Paulo: UNESP/UEM/UEL, ano5, n.21, ago.1998. 12 p.

RAMOS, Paulo. Aberta temporada 2009 de adaptações literárias. Disponível em:

<http:// www.blogdosquadrinhos.blog.uol.com.br>. Acesso em: 26 mar. 2010.

RAMOS, Paulo. A leitura dos quadrinhos. São Paulo: Contexto, 2009.

REIS. Roberto. Cânon. In: JOBIM, José Luiz. (Org,) Palavras da crítica: uma

introdução. Trad, Tomaz Tadeu de Souza. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

SANTAELLA, Lúcia. Culturas e artes do pós-humano: da cultura da mídia a

cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003.

SANTOS, Boaventura de Souza. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia

das emergências. In: ______. Conhecimento decente para uma vida decente: um

discurso sobre as ciências revisitado. São Paulo: Cortez, 2004. p.777-807.

SOUZA, Eneida Maria de. Babel multiculturalista. Cadernos de Estudos Culturais,

Campo Grande, MS, v.1, n.2, p.17-29, jul./dez. 2009.

SOUZA, Helton Gonçalves; VIEIRA, Martha Lourenço. Entrevista a Eneida Maria de

Souza. In. SOUZA, Eneida Maria de. Tempo de Pós-crítica. Belo Horizonte: Veredas e

Cenários, 2007. p. 4-24.

SUSSEKIND, Flora. Papéis colados. 2.ed. Rio de janeiro: Editora UFRJ, 2003.

VERGUEIRO, Waldomiro. Literatura brasileira em quadrinhos. Disponível em: <http://

www.poppycorn.com.br>.Acesso em: 26 mar. 2010.

ZENI, Lielson. Literatura em quadrinhos. In: VERGUEIRO, Waldomiro; RAMOS,

Paulo (Org.). Quadrinhos na Educação: da prática à rejeição. São Paulo: Contexto,

2009. p. 127-158.