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11 UMA PRÁTICA DE ENSINO TRANSVERSAL 1 Eni Puccinelli Orlandi Unicamp/Univás RESUMO: Articulando a História das Ideias Linguísticas e a Análise de Discurso, este texto reflete sobre a formação de professores que fazem par- te da implantação do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp e analisa o sentido e importância de uma obra que propunha a articulação entre linguística e ensino (J. Peytard e E. Genouvrier, 1970). A autora ex- põe algumas consequências de levar em conta, no ensino de língua, não só a língua, mas o sujeito e a ideologia, mostrando a importância das teorias sobre língua e subjetividade no ensino da língua institucionalizada. ABSTRACT: Articulating the History of Linguistic Ideas and Discourse Analysis, this text reflects on the training of teachers who are part of the deployment of the Institute of Language Studies at Unicamp and analyzes the meaning and importance of a work which proposed a link between linguistics and education (J. Peytard and E. Genouvrier, 1970). e author outlines some consequences of taking into account, in language teaching, not only language, but subject and ideology, showing the importance of theories about language and subjectivity in institutionalized language te- aching. Introdução A questão do que estou chamando de transversalidade tem-se colo- cado para vários especialistas de diferentes áreas que tocam os estudos da linguagem. Esta é uma forma de levar-se em conta a produção dis- cursiva do conhecimento em diferentes domínios do saber de forma não disciplinar. Procura-se, antes, desfazer-se dos estereótipos produ- zidos, ao longo de toda uma tradição do pensamento, das configura- ções estabelecidas e cristalizadas sobre as disciplinas, das quais se ig- nora o papel constitutivo da linguagem. Em uma posição transversal, ao contrário, busca-se, no processo de constituição do saber, relações nem diretas, nem lineares, nem exatas entre disciplinas, produzindo um

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UMA PRÁTICA DE ENSINO TRANSVERSAL1

Eni Puccinelli OrlandiUnicamp/Univás

RESUMO: Articulando a História das Ideias Linguísticas e a Análise de Discurso, este texto reflete sobre a formação de professores que fazem par-te da implantação do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp e analisa o sentido e importância de uma obra que propunha a articulação entre linguística e ensino (J. Peytard e E. Genouvrier, 1970). A autora ex-põe algumas consequências de levar em conta, no ensino de língua, não só a língua, mas o sujeito e a ideologia, mostrando a importância das teorias sobre língua e subjetividade no ensino da língua institucionalizada.

ABSTRACT: Articulating the History of Linguistic Ideas and Discourse Analysis, this text reflects on the training of teachers who are part of the deployment of the Institute of Language Studies at Unicamp and analyzes the meaning and importance of a work which proposed a link between linguistics and education (J. Peytard and E. Genouvrier, 1970). The author outlines some consequences of taking into account, in language teaching, not only language, but subject and ideology, showing the importance of theories about language and subjectivity in institutionalized language te-aching.

IntroduçãoA questão do que estou chamando de transversalidade tem-se colo-

cado para vários especialistas de diferentes áreas que tocam os estudos da linguagem. Esta é uma forma de levar-se em conta a produção dis-cursiva do conhecimento em diferentes domínios do saber de forma não disciplinar. Procura-se, antes, desfazer-se dos estereótipos produ-zidos, ao longo de toda uma tradição do pensamento, das configura-ções estabelecidas e cristalizadas sobre as disciplinas, das quais se ig-nora o papel constitutivo da linguagem. Em uma posição transversal, ao contrário, busca-se, no processo de constituição do saber, relações nem diretas, nem lineares, nem exatas entre disciplinas, produzindo um

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atravessamento. Um lugar de trocas, de relações livres das disciplinas. Este uso da palavra “transversalidade” apresenta-se quase como um mé-todo de reflexão praticado na Filologia Política, por um autor como R. Descendre (2011), em suas pesquisas sobre a linguagem dos pensadores do século XVI. Saberes que, mais tarde tomarão o nome de geografia política, história política, de sociologia, filosofia política e até mesmo economia política, não respondem automaticamente a estas etiquetas, em seu trabalho de pesquisa, de leitura lenta e atenta.

Penso que, em meus trabalhos sobre o século XVI a XIX, no Bra-sil, analisando os relatos de missionários (E. Orlandi, 1990), encontrava esta mesma transversalidade nas formas de conhecimento que se diziam através do que, em francês, se chama “rapport” ou “relation”2. Ciência ou literatura? Era indiferente a estes títulos o que ali se podia compreender. Mais um dos indícios, talvez, do que M. Pêcheux vai falar (1994) sobre a divisão social do trabalho da leitura, o trabalho de arquivo. Diríamos que é, na maior parte das vezes, por retroação, que fixamos sentidos e formas para o conhecimento. Efeitos de leituras e de institucionalização dos gestos de interpretação.

Penso que, quando interrogamos o ensino de língua, a prática da transversalidade mostra-se como um instrumento (cf. P. Henry, 1990) extremamente fecundo e mobilizador. O que estou querendo propor é, pois, que a prática transversal seja uma perspectiva para uma boa práxis para o ensino, sobretudo de língua.

Uma história das ideias e da instituição: um trecho

Vou tratar esta questão praticando o método que põe em relação à análise de discurso e a história das ideias linguísticas.

Para isso, vou considerar o autor J. Peytard em seus trabalhos de formação de professores e em seu trabalho de autor de obras sobre linguagem. Se o faço é porque reconheço neste autor o que chamo de transversalidade. E, em seu caso, tanto as disciplinas, como a questão da linguagem, eram trabalhadas de forma transversal. Em seus cursos, trabalhava a linguagem tomando em conta a relação entre a língua e a literatura, a linguística e a teoria literária. Essa sua qualidade, entre outras, o colocou como mestre privilegiado na construção de um pro-jeto desenvolvido pela Unicamp, ou melhor, que formou pesquisado-res que estão no início da constituição do departamento de linguística da Unicamp, inicialmente sediado no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, vindo, só mais tarde, dar lugar ao Instituto de Estudos da Linguagem.

Não se desconhece (E. Orlandi, in V. Dahlet, 2011) que a área de estudos da linguagem, no Brasil, tem sua história muito ligada aos de-

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senvolvimentos dos estudos de linguagem na França. Sobretudo com os estudos de ensino de língua. Professores de francês e de linguística, franceses, fazem parte de modo consistente do que se produziu nestas áreas de estudo em São Paulo, no Rio Grande do Sul e em muitas regi-ões do Brasil. Relação mutuamente produtiva, brasileiros e franceses se aplicavam (e se aplicam) ao conhecimento da língua (linguística) como parte do ensino da língua.

Pensando a história das ideias linguísticas, não é por acaso que o prof. J. Peytard está presente tanto na proposta de introduzir-se a linguística no ensino de língua quanto na formação destes docentes que virão a fazer parte da primeira geração de mestres da linguística da Unicamp.

Esta história tem um de seus pontos altos no reconhecimento de que as ciências humanas e sociais não podiam ignorar a linguística. Essa era uma ideia já bastante arraigada: a linguística como ciência piloto das ciências humanas. Mas a proposta do prof. Fausto Castilho, que havia sido leitor em Besançon, avançava nessa práxis: constituir as bases do IFCH/Unicamp na Linguística. E, assim, os primeiros bolsistas, futuros professores de filosofia, antropologia, sociologia, economia do IFCH (observem que ainda não estou falando dos professores de linguística, especificamente) aportaram em Besançon, no curso de Linguística.

Este gesto transformador da prática dos especialistas em ciências hu-manas e sociais, a meu ver, tinha, nesses especialistas, o sentido da rela-ção com a linguística, enquanto ciência piloto, discurso dominante da época, como dissemos. Mas, como sabemos, a linguística, tal como es-tava tradicionalmente constituída, não acolheu as questões postas pelas ciências humanas e sociais, sobretudo as que incluíam o sujeito e a situ-ação, uma vez que, para se constituir como tal, ela os excluía. Daí, a meu ver, fazer alianças3 e manter-se à mesma distância das ciências humanas e sociais. Daí, também, ter mantido para fora o sujeito e a situação, ob-jetivando manter-se em sua cientificidade. No entanto, são os próprios linguistas, ou alguns deles, que já se mostravam sensíveis a uma mu-dança de território em que se perguntasse pelo sujeito e pela situação, nos estudos da linguagem. Nesse sentido é que vejo a importância de J. Peytard, nessa conjuntura que se criara: ele era um mestre sensível à li-teratura e à linguística. Exercia aí uma prática transversal. Nesta medida mesma, sensível a questões que eu chamaria de discursivas sem que este “discursivas” ainda significasse o que passaria a significar mais tarde. Estou falando do final dos anos 60 e início dos anos 70 do século XX.

Esta posição que chamo de transversal de J. Peytard permitiu que ele atendesse aos dois lados desta mesma questão – lugar do equívoco – que refiro acima: formou o mestre L. B. L. Orlandi – com sua dissertação, em 1970: “Analyse critique de deux modèles d´approche du discours litté-

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raire – La Poétique de Todorov” – sendo Orlandi da área de filosofia4. E formou três outros mestres, estes, todos, da área da linguística: R. Ilari (1971) “Une introduction sémantique à la théorie du discours”; C. Vogt (1971) “Une introduction au problème de la sémantique dans la gram-maire générative”; e H. Osakabe, com seu mestrado em 1971 “Recherches en analyse du discours”, e seu doutorado, igualmente com ele, em 1975, “O componente subjetivo no discurso político”5.

Desse modo, eu diria que J. Peytard estabeleceu o lugar intelectual que tornou possível a realização do equívoco: os cientistas sociais e filósofos fazem seus cursos e mestrado, olhando para a linguística (atravessados pelo conhecimento transversal da linguística com a literatura que Peytard praticava) e os linguistas fazem seus mestrados realizando a possibilidade de olhar para além da linguística, sem deixar de lado a importância da lín-gua como ela é. De certo modo, uma piscadela para o círculo de Praga em que o estudo da linguagem trazia a relação da linguística com a literatura. Nem todos sustentaram essa posição. Mas a experimentaram.

Quando falo em equívoco, estou pensando o que é equívoco do pon-to de vista da análise de discurso. Não um engano, mas lugar da falha e do possível. E o resultado foi que se produziu certamente uma ruptura no desenho tanto da produção desses especialistas, como do próprio desenho de suas áreas, afetados pela noção de língua e de linguagem que são concebidas desta perspectiva, no contato com J. Peytard.

As ideias linguísticas e seus caminhos transversosTomemos para observação a obra de J. Peytard que foi referência

forte em seu tempo para os que praticavam o ensino de língua, já ex-perientes nos estudos linguísticos. Trata-se da obra que ele produziu com E. Genouvrier, Linguistique et enseignement du français, traduzida e adaptada ao português por R. Ilari6, por indicação de Peytard, foi pu-blicada em Portugal, em Coimbra, pela Livraria Almedina, em 1974, com o título: Linguística e ensino do português. A questão “linguística e ensino” atravessa transversalmente o Atlântico.

Já aí se veem os meandros da história de um trabalho, da sua posição de autoria, de pesquisa e de ensino, se mostrando em seu trajeto: França, Portugal, Brasil. Os três conjugados na produção e circulação de ideias gramaticais que passam de um campo formal de conhecimento, a lin-guística, olhando transversalmente, como tenho dito, para o ensino de língua. Atravessam-se em uma produção, a publicação em Coimbra, de um texto sobre o ensino do francês e a linguística, traduzido e adaptado por um brasileiro, que foi aluno de Peytard, em Besançon. Esta é a his-toricidade que produz sentidos no texto deste livro. Vejamos que outros sentidos podemos encontrar no que esta obra nos traz.

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Essa obra de Peytard se inscreve no que hoje dizemos ser o funcio-nalismo. Há, entretanto, outros aspectos igualmente importantes nesse processo de autoria desencadeado por este autor.

Tomemos a relação que ele estabelece entre sincronia e diacronia com escrito e oral. Em seguida, a relação que ele estabelece entre estes e a pedagogia de línguas e, sobretudo, ao valor dado à “apropriação da língua pela escrita” (p.20).

Referindo-se à fala do escrito ele dirá que: “Assim, a situação linguís-tica do aluno é a de quem usa duas línguas de expressão oral: a que lhe pertence por aprendizado “natural” e a que ele confecciona para conhe-cer o escrito e a partir do escrito. Experiência capital tanto para o aluno quanto para o mestre” (p.21). E o que é esta fala do escrito? É a leitura. A leitura, em seu caráter mediador, permite aos autores (Peytard e Genou-vrier) significarem de maneira muito particular este sujeito do ensino de língua: ele não é mais a fonte da mesma, ele descobre a fala e a ouve, ele fala a partir de um texto. Pela leitura. O oral é fundamental para que a grafia se mostre a este aprendiz. O que leva a concluir que é porque é pela leitura como mediadora que se fala, que o aluno fica com a im-pressão de que só se fala bem a língua a partir do escrito. Esta afirmação interessa porque não é feita, como comumente vemos, a partir da ideia da imposição de uma norma da escrita, mas da observação do próprio funcionamento da língua em sua relação com o sujeito, em particular, neste caso, referida à leitura.

Outro ponto a se ressaltar é a distinção que eles propõem, para o ensino da língua, entre sincronia e diacronia e língua e discurso. Esta distinção traz a palavra discurso, mas esta não deve ser confundida com o que é definido como discurso, por exemplo, por M.Pêcheux (1969), mas como correlato de fala (em Saussure). Para Pêcheux (1975), como sabemos, língua e discurso não se opõem. E a língua, para a análise de discurso é relativamente autônoma e sujeita a falhas. Não é a língua do linguista. A fala, para Saussure, se opõe à língua, sendo esta um siste-ma autônomo, “où tout se tient”. Esta é uma diferença intransponível teoricamente entre o que se chama Análise Linguística do Discurso (J. Peytard) e a Análise de Discurso (M. Pêcheux).

É nesse ponto, também, que Peytard e Genouvrier indicam a ne-cessidade da linguística para o conhecimento da língua e seu ensino. Argumentam, com razão, que os alunos esperam que o professor lhes ensine “inicialmente a língua que eles têm que falar e compreender, ler e escrever, ou seja, o português contemporâneo”.

A ideia é que se parta da fala para a língua, tendo como mediação as disciplinas teóricas e descritivas da linguagem. Desse modo é que intro-duzem as distinções sincronia e diacronia e língua e discurso (fala). Para

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estes autores, distinguir sincronia e diacronia permite que o aluno não confunda os dois planos como fazem muitas gramáticas (citando exem-plos do século XVIII, e elidindo torneios contemporâneos fecundos). Por outro lado, distinguir língua e discurso (fala) é “passar de uma rea-lidade concreta mas desordenada para uma entidade (a língua) virtual mas organizada”. Para os autores, sem a linguística, reina aí o atomismo e a desordem porque fica no primeiro estágio (realidade concreta).

É também neste ponto que uma posição teórica discursiva que tenha se constituído por uma mudança de terreno como a proposta por M. Pêcheux, faz falta. Seria necessário, a meu ver, justamente nesse ponto, a elaboração, a mudança de terreno teórica, feita por um autor como M. Pêcheux, pela qual, saindo da oposição língua e fala e indo para a relação língua/discurso, e considerando a relação da linguagem com sua exterioridade, torna-se possível trabalhar o funcionamento do discurso, encontrando, portanto, no discurso, uma certa ordem, a sua analisibili-dade. A partir da qual se articula descrição e interpretação, na compre-ensão da relação entre estrutura e acontecimento (M. Pêcheux, 1990) e se considera a língua enquanto condição de base para o funcionamento do discurso. Considerações que, transferidas para o terreno do materia-lismo, vão permitir falar que a materialidade específica da ideologia é o discurso e a do discurso é a língua.

Como esta mudança de terreno não é feita, os autores resolvem a falta pelo acréscimo: colocam mais uma parte (a V) sobre problemas do estilo. Tem sido esta a solução tradicional: os autores servem-se da ques-tão do estilo para tratar o que não deveu caber na gramática.

No entanto, não é sem interesse observar, antes de considerarmos a parte sobre estilo, o que os autores dizem sempre, no final das diferen-tes partes de seu livro, relativamente ao ensino e ao conhecimento lin-guístico. Este último sempre aparece para mostrar que “verdades” que tomamos como certas não o são, se tomarmos a perspectiva dos estudos linguísticos. Além disso, do ponto de vista pedagógico, somos adverti-dos que a linguística só pode propor hoje (naquela época, anos 70) pers-pectivas de pesquisa e não aplicações. Esta advertência, digamos, é algo que distingue estes autores. O que temos, na relação com a linguística, desde o início, na escola, é a imprudência de aplicações sem mediação da pesquisa, pelos próprios professores da graduação e do curso básico em geral, treinados7 por professores da universidade. Procedimento que tem levado a uma má compreensão da linguística e torna os professores, sobretudo no Brasil, impermeáveis a esta. Considero assim este um dos pontos fortes do trabalho e da proposta de Peytard e que, penso, foi um princípio em sua prática pedagógica. Nesse sentido, exemplar. Como é posto, não se trata de “teorizar” através de discursos magistrais sobre

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linguística, mas de estimular a intuição do aluno e explorar esta intuição para levar o aluno a compreendê-la e situá-la, linguisticamente.

Não falta a referência aos “níveis de língua”. Mas também aqui, mais do que dar uma regra, os autores falam na delicadeza desta definição argumentando que isto é assim porque, nos níveis, juntam-se gramática e léxico, normas sociais e intuições pessoais. E após dizer que envolve o estilo, mas não só, eles comentam as várias distinções de níveis esta-belecidas por diferentes linguistas: entre língua falada e língua escrita; uma língua comum de nível médio (padrão) e um nível, acima, mais elevado e, abaixo, mais familiar. Se tomarmos como parâmetro a língua comum, os outros níveis seriam desvios. Há também a distinção entre terminologia técnica e metalinguagem. Citando Marouzeau, é lembrada a distinção do homem do norte ou do sul, do camponês e do citadino e os diferentes agrupamentos possíveis: por profissão, classe social, famí-lia, partidos etc. Como se vê, a classe social não aparece nesta reflexão como referência básica como tem sido a preocupação de gramáticos que pensam a norma culta e o falar popular, considerado desleixado e de classe baixa, como se passou a fazer, nos estudos gramaticais-padrão.

Linguística e estilo no ensino da língua Face ao ensino da língua, os autores não se colocam na posição de

que a linguística deva receitar modelos ou métodos, mas tornar mais claros os pressupostos da pedagogia de língua. Assim, diante de algu-mas propostas pedagógicas, que tiveram grande aceitação, os autores propõem que se descubram as concepções de estilo que elas subenten-dem.

Esta análise das concepções tem como fim a questão da escrita e do seu ensino, ou seja, a redação. Objetivo que, como sabemos, é o alvo, sempre fugidio, de todo professor de língua, sobretudo se esta língua é a sua própria, que, no nosso caso, é a portuguesa, inscrita em um processo de colonização em que a relação entre escrita e oral tem suas complexi-dades, que não cabe explorar aqui. Vamos ao ensino da redação.

Os autores detectam o ponto do equívoco: os professores, quanto a esta questão da metodologia da redação, chamam a atenção para fato-res secundários: a necessidade de motivar psicologicamente o aluno. Aí entram os elementos mais variados. O gosto do professor pelo lite-rário, a espontaneidade e liberdade que resultariam em uma expressão autêntica na expressão da escrita: escolher um tema do gosto do aluno, por exemplo. Que implica em que o critério não seja da preferência individual do professor, mas que atenda o desenvolvimento mental e emocional do jovem e de seus interesses atuais; além disso, para par-tir do desejo do aluno, que o verá assim como escolha própria, deve-

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-se criar, no aluno, um centro de interesse (motivação) por todos os meios audiovisuais. Lembremos que estamos falando de uma obra es-crita nos anos 70; hoje, temos as tecnologias de linguagem e as mídias sociais que, segundo alguns professores, bastam para se alcançar o objetivo. Sem esquecer a natureza criativa da redação. Daí aproximar--se da literatura. Ler bons autores, e pronto. Certamente a relação da escrita com a leitura de autores interessantes é desejável e necessária, mas, dizem os autores, com razão, não é suficiente. E propõem que se desloque a questão para seu verdadeiro terreno: o da linguagem, ou melhor, o da linguística.

Tudo isso que é dito sobre as circunstâncias da escrita, alocadas no psicológico, eles chamam de condicionamento (o que lembra o “eterno” behaviorismo que ronda o ensino). E, segundo os autores, o condiciona-mento pode desencadear o ato da escrita, mas não fornece nem orienta-ção nem matéria, pois, escrever significa defrontar-se com a linguagem em sua materialidade8. A escrita, dizem eles, “dá corpo às palavras, ela materializa a língua”. A resistência, ou seja, a dificuldade apresentada pelos alunos não é mais da ordem psicológica mas linguística. Damos assim, penso, um grande passo na pedagogia de línguas com estes auto-res que aliam ensino de língua e linguística, sem receitas mas como pes-quisa, conhecimento, compreensão do funcionamento da linguagem. Há, pois, restrições léxicas, semânticas que é preciso reconhecer para dominar, segundo eles. Não adianta burlar (com criatividade?). Como o aluno prova sua “liberdade” onde a língua, por ser escrita, é mais densa, tem uma espessura mais complexa do que o oral?

E temos então uma argumentação que se mostra de muita impor-tância, ainda hoje, frente os métodos de ensino de língua em geral, mas, sobretudo, do ensino de redação. Dizem os autores que a posição dos professores é de que a língua é comunicação sentida como natural e pró-pria do indivíduo. Então, a posição que daí resulta é: deixem que ele se expresse que ele se expressará bem, deixem-no escrever o que lhe agrada escrever que a escrita será boa... No entanto, dizem os autores, os alunos sentirão que o instrumento que utilizam tem sua própria inércia e não se presta tão facilmente aos caprichos de sua fantasia solta. Pois o proble-ma do estilo, dizem os autores, continua sendo o de saber como ensinar o aluno a orientar-se, mais livremente, no interior do código da língua a escrever. E para isto não basta a espontaneidade.

Sem dúvida, nos anos 70 do século XX, esta posição, buscando colo-car no terreno da linguística o que se colocava no da espontaneidade e do psicológico, torna a pedagogia de língua sujeita a pesquisa e reflexão e não um receituário feito na base das intuições pedagógicas, muitas vezes até sustentadas em teorias educacionais, mas que não sabiam nada

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sobre a língua. O que fazem estes autores é colocar a questão da língua para os que trabalham com a pedagogia de língua.

E continuam sua tarefa mostrando que não há uma relação natural entre língua/pensamento/realidade. Destroem assim “a crença ingênua e simplista na adequação da linguagem à “realidade”; a crença de que a cada palavra corresponde uma coisa”. Tampouco se pode pensar um aluno que “possa neutralizar suas reações subjetivas ao exercício da fala”. Estas ideias, repetidas por nossos teóricos, dizem Genouvrier e Peytard, permanecem alheias ao que faz o corpo e alma de toda expressão: a própria língua.

Desse modo, podemos dizer, a ideia de real, de materialidade da língua, de sua ordem própria já aparecem. Envolvidas, é certo, em uma sustentação teórica que mobiliza a ideia de comunicação e expressão, de língua como instrumento de comunicação. Mas sem dúvida produzem uma ruptura com o espontaneísmo pedagógico sobre o ensino de língua e colocam a questão da definição da própria língua como objeto de ensino. Pela linguís-tica, desnaturalizam a relação com a língua, seja oral, seja escrita.

E vão mais longe, pois, mesmo que inscritos no funcionalismo, mostram a importância da teoria, no ensino. E transcrevo o que dizem, como forma de mostrar como introduzem além das noções que citei mais acima, também a de função e funcionamento da linguagem, ainda presas à linha funcionalista, apontando para a necessidade da teoria:

O que é preciso, para o mestre, é ter refletido, através de análises tão científicas quanto possível, sobre a realidade da língua, na ordem do oral e do escritural; é poder descobrir metodologica-mente os meios de ensinar a expressão, de alcançar o domínio do estilo, não pelo simples uso da imitação ou da impregnação empírica, mas aprofundando o conhecimento das funções e do funcionamento da língua9 (...) todo trabalho sobre a linguagem fundamenta-se na teoria da linguagem (p.387). [grifos meus].

Eles passam em revista, em seguida, alguns manuais de redação, sem-pre com o mesmo objetivo: observar que pressupostos sobre a língua e a linguagem aí estão funcionando. Buscam “levar o leitor a refletir sobre os pressupostos que fundamentam a “arte” da redação e da explicação de textos” (p.410). Para isso, refletem sobre problemas do estilo. Dividem a questão em duas: a do estudo estilístico e a da redação.

Face à questão do estudo do estilo, concluem que o apelo a uma esti-lística do desvio pode até ser satisfatória quando se trata da ordem oral ou dos textos não literários. Mas quando se trata dos textos literários, é claramente insuficiente, pois é preciso pensar o texto como uma totalida-

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de e é então que uma análise estrutural dá sua contribuição, sem a qual o estudo é insuficiente.

Finalmente, para tratar da questão do estilo face á redação, o que dizem os autores refere à relação linguagem/pensamento. A estilística dos desvios se apoia na distância entre pensamento e linguagem que leva a uma “arte de escrever” que se resume na prática da ornamentação, dizem eles. Como resultado, cria-se a ideia de que o aluno não se compromete – eu diria, dire-tamente, não pensa – com a escrita e as ideias só valem pela cobertura das palavras. Não há uma relação constitutiva entre pensamento e linguagem. No entanto, afirmam os autores, “escrever não é aplicar palavras sobre ideias pré-existentes” (p.411). E retomam então a ideia de totalidade, de relações que os alunos devem aprender a explorar e atualizar.

Sem dúvida, com estas posições tomadas pelos autores podemos ver claramente em J. Peytard, um precursor da análise linguística do texto. Mes-mo o que hoje se chama análise linguística do discurso. A que não muda de terreno, permanece na linguística, e acrescenta aquilo que se apresenta na “realização do discurso”. Sem esquecer que a noção de discurso aí está fortemente ligada à fala. Estudo da língua acrescida do “estilo”. Mas vejo também que em Peytard, em sua forma de praticar a pedagogia de língua, aflora, sem que, no entanto, seja desenvolvida, a compreensão de uma outra noção de discurso, que é a que exige uma mudança de terreno face à linguística, aquela que, segundo J.J. Courtine (1999), demanda que seja-mos linguistas mas que esqueçamos que o somos. Muitos não esquecem. E continuam a fazer linguística + discurso. Não mudam de terreno, não se expõem ao equívoco, ao real da história, à ideologia.

Penso que na forma de pensar a relação escrito/ oral, fala, e leitura (duas línguas de expressão oral), em sua posição que não desdenhava o que fazia a literatura, J. Peytard pré-sentiu esta mudança de terreno. E sua crítica à noção de desvio (écart) é, para mim, o sintoma, o pressen-timento da necessidade dessa mudança. Mudança que leva à análise de discurso sem o adjetivo “linguística”, mas que dá à língua, como queria Peytard, um largo espaço teórico, mudança que M. Pêcheux realizou com todas as letras. Mas esta já é outra história, que mostra outros tra-jetos entre França e Brasil10, face à língua e à linguagem.

Nesta análise de discurso, que praticamos, que muda de terreno e que não tem a língua mas o discurso como seu objeto, interessa-nos compreender como o sujeito, afetado pela linguagem e interpelado pela ideologia, se individua pela articulação simbólica e política produzida pelo Estado com suas instituições e discursos. Entre as instituições está a escola e, nela, pratica-se a língua institucionalizada, a legítima.

Esta legitimidade, a não transparência da língua, o seu modo de fun-cionamento, sua materialidade, assim como a relação entre oralidade e

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escrita, já não são apenas objeto de uma reflexão que se dá buscando mos-trar os pressupostos linguísticos que subentendem o ensino da língua. Isto já não basta, pois, ao introduzir-se o sujeito, por uma teoria não subjetiva do sujeito, entram de imediato as condições de produção, o imaginário, o interdiscurso e a ideologia na produção dos processos de significação. Aí mudamos de terreno e nos instalamos na teoria e análise de discurso. E aí o saber inclui um saber que não se aprende mas que funciona em nós produzindo seus efeitos. A ideologia. Relação transversal entre o linguista e o analista de discurso na prática do ensino.

Como resultado desta reflexão, gostaríamos de dizer que, nesta po-sição do analista de discurso, é preciso lembrar, e isto Peytard (e Ge-nouvrier, id.) sabia, que não se trata de aplicação, nem tampouco de dar aulas magistrais sobre esta teoria. E acrescentar que, pensando discursi-vamente, trata-se, na relação com o educador, com o professor de língua, de dar-lhe condições de reflexão e pesquisa, de criar um espaço pedagó-gico politicamente significado, que lhe permita compreender que teoria da linguagem, que instrumentos de conhecimento estão implicados nas práticas de ensino que lhe são propostas. Desse modo ele deixa de ser uma peça mediadora de um discurso pedagógico que lhe vem pronto, de fora, e pode ter uma parte na produção do conhecimento da língua.

Notas1 Este artigo é uma versão desenvolvida do texto, em francês, apresentado no Encontro em Homenagem a J. Peytard, em Mariana (MG). 2 No século XVI e XVII, “rapport” e “relation” significam dubiamente relato ou relatório. Depois vão-se distinguir, no final do século XVIII, início do XIX.3 Ler, a esse respeito, M. Pêcheux e F. Gadet “Há uma saída para a Linguística fora do formalismo e do Logicismo” (1981) ou M. Pêcheux “A (des-)construção da teoria lin-guística” (1981a).4 Vale observar que o sociólogo do grupo (A.Villalobos) e o antropólogo (A.A. Arantes) fizeram seus mestrados, respectivamente com Poulantzas (em Paris) e com Leech (na Inglaterra), mas frequentaram o curso de linguística da Universidade de Besançon.5 Informações obtidas junto ao trabalho de iniciação científica de Ana Cláudia Fer-nandes (2002), orientada por E. Guimarães.6 Um dos mestrandos em Besançon, como vimos, e professor do departamento de lin-guística da Unicamp.7 Hoje a palavra é capacitados, que não significa de forma alguma que foram formados em algo, no sentido de poderem dispor desse conhecimento segundo suas necessidades e objetivos, mas em um modo de aplicação que não passa pela formação de conheci-mento, só a repetição de estratégias.8 Não se trata da materialidade como tratada na análise de discurso da filiação a M.Pêcheux. Aqui se trata da materialidade da língua, não com o sentido em que mate-rialidade se inscreve no território do materialismo, mas naquele da linguística que, ao falar em ordem da língua, já desde Saussure, que a vê como um sistema, reconhece sua

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materialidade e a regularidade de seu funcionamento (a língua é forma e não substân-cia). O passo dado por M. Pêcheux (1969) foi estabelecer as bases da teoria que dava visibilidade ao funcionamento do discurso e elaborar um método para poder mostrar esse funcionamento em sua materialidade linguístico-histórica, ou seja, discursiva, o que já é outra coisa, e se inscreve no materialismo histórico. Com Pêcheux, temos a materialidade do discurso que tem, em seu funcionamento, como condição material de base, a língua, ou seja, a materialidade linguística.9 Observe-se que eles não falam apenas em função, mas, em funcionamento.10 Cf Meu livro Discurso em Análise: Sujeito, Sentido, ideologia, Pontes: Campinas, 2012.

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Palavras-chave: ensino, teorias da linguagem, discursoKey-words: teaching, language theories, discourse