uma lagrima de mulher

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www.nead.unama.br 1 Universidade da Amazônia Uma Lágrima de Mulher de Aluísio Azevedo de Aluísio Azevedo NEAD – NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA Av. Alcindo Cacela, 287 – Umarizal CEP: 66060-902 Belém – Pará Fones: (91) 210-3196 / 210-3181 www.nead.unama.br E-mail: [email protected]

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    Universidade da Amaznia

    Uma Lgrima deMulher

    de Alusio Azevedode Alusio Azevedo

    NEAD NCLEO DE EDUCAO A DISTNCIAAv. Alcindo Cacela, 287 Umarizal

    CEP: 66060-902Belm Par

    Fones: (91) 210-3196 / 210-3181www.nead.unama.br

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    Uma Lgrima de Mulherde Alusio Azevedo

    PRIMEIRA PARTE

    CAPTULO I

    Numa das formosas ilhas de Lipari, branquejava solitria uma casinhatrrea, meio encravada nos rochedos, que as guas do mar da Siclia batemconstantemente.

    Ao lado esquerdo da modesta habitao, corria uma farta alameda deoliveiras, que, juntamente com os resultados da pesca do coral, constitua os meiosescassos de vida de Maffei e sua famlia.

    O pescador enviuvara cedo.Do amor ardente e rude com que o embalara por dez anos uma formosa

    procitana por quem se apaixonara, restava-lhe, com recordao viva da extintamocidade, como um beijo animado da felicidade que passou, uma alegria de quinzeanos, uma filha querida, meiga e delicada como o afago de uma criancinha.

    Ela adorava-o. Enchia-o de beijos e ternuras; era como um rouxinol aacariciar um tigre. Nas tardes melanclicas do outono, quando se assentavam ao solno terreiro, contrastava com a bruteza do peito largo do pescador a engraadacabea de Rosalina, que se debruava sobre ele.

    Completava a pequena famlia de Lipari uma boa e religiosa velha dos seuscinqenta anos, ama, criada e amiga; ngela era, ao mesmo tempo, a me adotivada filha de Maffei.

    Rosalina era encantadora. Como em quase todas as meninas italianas,adivinhavam-se-lhe os elementos de uma mulher bela. Difcil seria v-la algum,sem prender o corao naquela graciosa liberdade de movimentos; ouvi-la, semguardar na memria, como uma relquia sagrada, o seu falsete de criana.

    H quinze anos, adormecia e levantava-se antes da alva, sempre rindo ecantando; nunca uma tristeza real lhe havia nublado a transparncia azul de suaalegria, parado em meio uma das suas sadias gargalhadas. Amor, que no o daMadona ou da famlia, jamais lhe entrara no corao; e contudo, nos ltimos mesesdos seus quinze anos, caa, s vezes, num cismar de tristeza indefinvel, quando, desobre a penedia, contemplava sozinha a extenso melanclica do mar; sentia emtais momentos como vagas inquietaes, que se lhe debatiam por dentro eprocurava, tolinha! com insistncia pueril, arrancar do oceano o segredo de tudoaquilo; parecia-lhe que o ar misterioso das guas vedava ao seu entendimento overdadeiro motivo dos seus anelos.

    Inexperiente, atribua-os vontade de viajar; nunca sara de sua pequenailha, e essa, apesar da beleza do cu, dos perfumes, das florestas, das sombras dasoliveiras, do amor paterno e da dedicao de ngela enchia-a de tristeza emelancolia.

    Aos domingos costumava ir missa e embalde o aprendiz ou o operrio separamentava com seu gorro novo; a filha do pescador, logo em deixando os trajosdomingueiros, nem mais se lembrava do moo, que a cortejara sorrindo, ou dosingelo galanteio de alguns dos do mesmo ofcio de seu pai

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    Nem por isso deixavam de querer-lhe, pois nas rodas divertidas dosalpendres, enquanto danavam e riam cantando a Tarantella, ao som das gaitas defoles, Rosalina no era esquecida, e at muito de corao lamentavam a mania dovelho Maffei de no consentir que a pequena fosse aos domingos bailar e brincarnos seus folguedos.

    CAPTULO II

    Principiava a declinar o ms de outubro, e j o inverno abria cedo os portesda noite.

    O cu, betumado por igual de um cinzento chumbado e sujo, peneirava devez em quando uma poeira dgua, que se precipitava na lmina polida do mar,como se milhes de flechazinhas microscpicas crivassem o escudo enorme dofabuloso gigante marinho.

    Das guas, mortas e sombreadas pelo azul escuro da noite, levanta-se otorro vulcnico, da ilha, desenhando fantasticamente no fundo plmbeo do cu oscontornos negros das oliveiras.

    As duas vidraas iluminadas da casa de Maffei fitavam da treva as ilhasvizinhas.

    Do lado oposto da ilha, os pescadores lanavam, cantando as redes ao mar,e o som montono das cantigas chegava esfacelado e trmulo, como o reflexo dosseus archotes nas vagas.

    CAPTULO III

    Ia adiantada a noite.A serenidade aparente da casinha branca contrastava com a agitao

    interior. Extraordinrio deveria ser o fato que tinha, to desacostumadamente,despertos at tarde os seus pacficos moradores. Entanto, o bulcio crescia l dentro;iam e vinham de um para outro lado, procurando, influenciados pelo silncio, que anoite s por si impe, abafar o som dos passos e das vozes, como se tivessemvizinhos ou pudessem incomodar algum.

    Em tudo, respirava uma impacincia surda; as andorinhas, pouco habituadascom o rumor, espreitavam curiosas e assustadas por entre as ripas com as suascabecinhas pretas.

    Apesar de velha e magra, ngela era forte e sadia; atarefada emalavaferramentas e movia fardos com facilidade; Rosalina por outro lado, dobrava eempacotava roupas e afivelava malas prontas.

    Tratava-se sem dvida de alguma viagem.Maffei era o nico que no parecia preocupado com o que se passava; de

    natural sombrio e reservado no se mostrava inquieto; imvel, numa cadeira de pau,como dedo grosseiro entre os dentes, dividia e somava mentalmente umas parcelasimaginrias.

    Saam-lhe inarticulados da boca sons aproveitveis s para ele; ao resolverqualquer questo, deixava cair sobre a mesa de nogueira o punho serrado, e com orudo as duas mulheres voltavam rapidamente a cabea; a imobilidade do pescadortranqilizava-as, e ele continuava entregue inteiramente ao seu cogitar.

    Efetivamente, preparava-se uma viagem.

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    Maffei partia no dia seguinte para Npoles, empregado numa companhia,que se propunha continuar em Rezina explorao das famosa runas deHerculano.

    Decorria ento 1838, e nessa poca as ambies voltavam-se abertamentepara Rezina, onde centenas de operrios e trabalhadores, lutando dia e noite, oueram vtimas de sua cobia ou triunfavam ricos e vitoriosos da luta desigual, travadapor eles, com as lavas, que vomitara um dia o Vesvio e setecentos anospetrificavam.

    Seduzido pela fortuna, ia o pescador deixar a filha; o gnio aventureiro eespeculador no lhe permitia avaliar o alcance da empresa. Bem conheciam as boasmulheres o carter de Maffei, e por isso mesmo no arriscavam uma nica palavrapara o dissuadir.

    Para ele, nunca as coisas estavam bem no p em que se achavam. Erasempre preciso melhorar. Tinha a impacincia do mar e a firmeza do ferro; quandoqualquer idia se apoderava dele, era como a ferrugem, que avultava, domina, atcorromper de todo.

    CAPTULO IV

    Mal raiara a aurora triste e descorada do dia de viagem, j de p dispunha-se a famlia para descer ao porto do embarque.

    Aqui chegados, o pai apertou nos braos a filha; duas lgrimas grossas evaronis, como verdadeiros intrpretes da linguagem muda e sincera do amor,abriam-lhe caminho pelas faces tostadas.

    E, enquanto Rosalina esfregava os chorosos olhos com as costas da moesquerda, ngela, meio afastada, rosmeneava a orao favorita, a cobrir debnos o querido aventureiro.

    No tinha ainda o sol enxugado da umidade dos rochedos, que durante anoite receberam chuva contnua e carregada, j uma vela minguava ao longe dabaa, confundindo-se com o claro-escuro das guas.

    CAPTULO V

    Cinco meses depois da partida do pescador, o tempo atirou aso habitantesda ilha um domingo, que se podia chamar a obra-prima de maro.

    S pode ser verdadeiramente apreciado o domingo por um artista, umoperrio, um estudante ou outro qualquer filho legtimo do trabalho e que este sededique toda a semana. Os amados da fortuna e bastardos do suor, que vivempaulatinamente dos seus calados rendimentos, tem sete domingos na semana e nologram conseguintemente o melhor e mais legtimo dos prazeres - o descanso. Parapoder descansar preciso principalmente uma coisa - cansar. Do que se conclui queo domingo existe e pertence exclusivamente a quem ocupa utilmente os outros dias.

    A ilha apresentava um aspecto realmente encantador.Por toda parte, danavam e cantavam grupos alegres de homens sadios e

    mulheres bonitas ao som da guitarra e do pandeiro. missa da manh no faltou habitante de Lipari, que prezasse o seu carter

    tradicionalmente religioso. Encontravam-se os namorados, trocavam-se meias

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    palavrinhas de ressentimento e cime, quando no de amor, e, l muito a furto, onoivo roubava s faces morenas e coradas da sua conversada um suspirado beijo.

    Os sinos da igreja de S. Tiago repicavam o termo da missa.Era muito de ver os moos, com as suas roupas domingueiras, perfilados

    porta da Igreja, aguardando a sada das suas prediletas, namoradas; e para logosurgir, ao calor metlico do bronze, uma onda sangnea de mulheres frescas efortalecidas, procurando, com os olhos inquietos e enfeitiados, os daqueles, que asesperavam.

    Assim apareceu Rosalina, cujos amarrotados da saia denunciavam o muitoque estivera de joelhos.

    Vinha um tanto aborrecida e fatigada: os olhos pareciam mais midos quede ordinrio e os movimentos mais demorados, as faces enrubecidas pelo calor daigreja, a ligeira transpirao, que lhe borrifava o lbio superior e o nariz, davam aomoreno aveludado de sua tez os tons leves e palpitantes, cujo segredo s possuiuMurilo, quando, pintando a cabea da virgem, reproduzia a beleza anglica de suafilha.

    Trazia sai curta de pano escuro e grosseiro, deixando ver o comeo de umaspernas bem feitas e terminadas por dois sapatinhos pretos de fivela e lao. O seioarfava-lhe sob a presso do tecido rijo de barbatanas de baleia, que armavam umcorpete de l vermelho, muito justo e melhor talhado. Os cabelos, de tal negrura, quelevantariam ao sol reflexos de azul-ferrete, destacavam-se do quadrado de linhobranco, que lhe toucava cuidadosamente a fronte e reapareciam mais abundantesno pescoo em forma de duas reforadas tranas.

    Estava cansada. Que a deixassem! Queria desafrontar-se daquelasroupas; e, passeando os olhos pelos grupos multicores dos rapazes no vestbulo,parecia procurar algum com certa impacincia.

    Mal dera alguns passos sorrira. Os lbios sempre anunciam rindo, quandoos olhos acham quem o corao procura.

    Com efeito, um moo, saindo da multido, acercou-se dela.Era um belo rapaz. Esbelto e destro, olhar sombrio e ardente, agradvel

    expresso de amargura na fisionomia, e suma confiana desamparada nosmovimentos. Tinha uma cabea escultural, modelada pelo tipo quase extinto da raaetrusco-pelgia.

    Como os mais vestia jaqueto de veludo com mangas compridas eabotoadas, cales justos e claros, enfeitados de fitas na juno com a meia listrada,camisa de l, aberta no pescoo.

    Chamava-se Miguel Rizio. Filho de um msico romano, dedicara-se artedo pai com algum xito at aos doze anos. De repente, viu-se rfo e sem apoio,ficando-lhe, como derradeira consolao, a sua querida rabeca, nica que no vivermiservel de larazone, a que o condenara a misria, no o desamparou jamais.Dormiam abraados, muita vez, pelos alpendres, quando lhes falecia o teto e acama.

    Um belo dia, conseguiu fugir para Roma e l, melhorando a arte, melhoroutambm os meios de subsistncia.

    De volta ilha, sua ptria, encontrava-se aos domingos com Rosalina, edesde ento, apesar da meninice da pequena, amou-a ele, quase tanto, quanto sua rabeca.

    E ela? Valha-a Deus! Por esse tempo nem se lhe dava dos amores domsico.

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    Quem se deu foi o pescador. De uma feita, desconfiou dos olhos ardentesde Miguel, e, cravando neles os seus, no menos ardentes e mais ferozes, f-lodesde a experimentar, a despeito da precoce energias de seus dezenove anos, umno sei que desagradvel, que o obrigava e evitar sempre o pai de Rosalina.

    Agora, ausente este, o moo sentia-se livre e feliz, e nestas circunstnciasdeu com franqueza o brao a Rosalina, tomando alegremente o caminho de casa,que no ficava longe.

    A boa ngela protegia os inocentes amores da pupila, amores novos esuperficiais para ambas, que apenas h dois meses o sabiam; enraizados, porm, evelho para Miguel, que h muito consumia noites e esperanas a cismar na filha doseu gratuito e maior inimigo.

    Caracteres anglicos como o do artista sabem e podem amar; no com esseamor sensual e grosseiro, cheio de desejos, que estiolam o corao e os sentidosdos filhos das grandes capitais, mas com essa fragrncia singela, comparvel aoperfume da violeta e que se pode chamar afeto, religio ou mesmo fanatismo. No aamava ele porque a desejasse, seno porque a sentisse em toda a suaindividualidade; nele tudo se poderia extinguir, menos esse sentimento, que oacompanhava como uma qualidade inerente sua matria. Quanto maisprocuravam evit-lo, quanto mais obstculos levantavam sua passagem, quantomais faziam por pis-lo, mais forte recendia esse afeto, semelhante s plantas doOriente, que tanto mais perfume exalam, quanto mais grosseira for a mo que astriture.

    Supersticioso como era, tinha para si que nem a morte seria capaz dedestruir essa paixo.

    Quando eu morrer pensava ele, h de ficar nesta ilha o meu amor,triste, invisvel e inconsolvel, como um esprito penado, e ir todas as noites deitar-se soleira da tua casinha branca, minha Rosalina. Vs um frasco de perfume quese quebra e derrama o lquido perfumoso? Pois bem; os pedaos desaparecem, aumidade do cho, que o lquido ensopara, bebe-a o calor da atmosfera, mas operfume fica e ficar por muito tempo! assim que eu te amo, minha amiga!

    No entanto, Rosalina estava longe de alcanar a grandiosidade destesentimento: supunha-o vulgar e reles, como soe acontecer com as raparigas, queno conhecem o corao do homem.

    CAPTULO VI

    H dois anos, estava Maffei em Rezina.H dois anos, cartas impregnadas de certo cheiro de prosperidade vinham

    alegrar a famlia do pescador e sobressaltar o nimo do pobre Miguel. Contudo, acasinha branca continuava naquela ignorada e encantadora solido; agora, porm,as oliveiras deixavam apodrecer o fruto nos galhos, o lugar onde dormia ocioso e asredes da pesca no viam gua salgada desde muito tempo.

    Fazia uma noite deliciosa. Uma dessas noites sem lua, em que a frouxaclaridade das estrelas povoa o campo de poesia e amor.

    O relgio de So Tiago badejava pausada e religiosamente, o toque docrepsculo, quando Miguel, com sua rabeca debaixo do brao, seguia abstrado pelaorla do caminho, que ia dar casinha branca.

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    Em breve, atravessava o patamar de pedra da casa do pescador, edescansava vagarosamente sobre a mesa a rabeca e o chapu de feltro de copaalta.

    ngela e Rosalina correram ao encontro do recm-chegado.

    Boa noite, Rosalina! Como passou, me ngela?

    As duas mulheres responderam familiarmente a este cumprimento.

    Senta-te aqui, Miguel disse Rosalina, arrastando uma cadeira de pau,enquanto do fundo da casa, um co, uivando amigavelmente, veio cheirar os ps eas mos do artista.

    Fica visto por esta recepo que aquela visita no era novidade paranenhum dos trs.

    Miguel sentou-se, sem cerimnia, ao lado de Rosalina; Castor, o co, veiosentar-se-lhes aos ps, encostando-lhes humildemente a cabea nas pernas.

    Depois de algum silncio, entabulou-se entre os dois moos uma dessasconversaes fteis e agradveis, cujo segredo s possuem os namorados. Falavambaixo, descansados e desapercebidos de tudo; falavam nimiamente por se ouvir umao outro, com o egosmo dos amantes, mas sem afetao nem constrangimento.

    Qualquer coisa, que dizia Miguel, tinha muita graa para Rosalina. O menorgracejo do artista fazia-a mostrar os dentes claros e a lngua vermelha em uma dassuas francas e sadias gargalhadas.

    Tocas-me hoje o teu Sonho? Perguntou ela, em seguimento da conversa. Tocarei, depois da leitura, mas trago-te uma msica nova. Feita agora? Concluda hoje; j estava principiada a mais tempo. A quem dedicada? Que pergunta! A quem poderia ser? A mim, disse Rosalina, feliz. E sabe como se chama? Perguntou Miguel. Como ? Teu nome! Rosalina? No! Teu nome! Ah, fez rindo a moa. J sei, o nome : Teu nome? Exatamente! Ora! O que se chama Teu nome por bem dizer no tem nome. Tolinha!... Queres que o mude? No!... disse meigamente sorrindo Rosalina. Ento! Senhor Miguel! No temos hoje leitura? Perguntou ngela,

    colocando a mo aberta sobre os olhos para poder enxergar o interrogado.

    Este respondeu, levantando-se e indo tomar um livro de um armrio de pau,pregado na parede; depois, sentou-se defronte da velha, que, junto mesa, cosia aoclaro da luz do azeite.

    Rosalina foi reunir-se ao grupo.Reinava o mais absoluto silncio.

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    Miguel abriu com pachorra o livro, no lugar marcado por uma tira bordada,trabalho delicado de Rosalina, esfregou carinhosamente as palmas da mo nasfolhas do livro, aberto de par em par; cruzou as pernas, enterrando os ps parabaixo da cadeira, em que estava assentado; espevitou o pavio da candeia, e depois,de fitar abstratamente o cabea branca de ngela, principiou, com a voz sonora edesembaraada, a leitura de uns contos fantsticos, que faziam o enlevo da velha ede Rosalina.

    A isto sucedeu completa tranqilidade.Com o interesse do romance, ngela parara maquinalmente o trabalho e,

    firmando os cotovelos descarnados na madeira da mesa, ficava automaticamente afitar, com o rosto apoiado nas mos compridas e ossudas, o movimento regular doslbios do leitor.

    Dominado, como estava, pela mgica influncia do livro, ligavaindistintamente no sei que relao entre a fisionomia expressiva de Miguel e oassunto da novela; parecia-lhe que aquilo eram palavras e pensamentos dele, ditos,e pensados ali, naquele instante; s vezes, sentia vontade de abra-lo, quando apassagem lhe agradava, e ao contrrio, revoltava-se, interiormente, por amor dastranscendentes maldades dos tiranos do romance.

    Choravam e riam silenciosamente as duas, conforme a situao. Tudo erainteresse, at o pobre Castor parecia tomar parte na leitura, sofrendo resignado avontade de ladrar contra as ruidosas lufadas de vento; ficava o pobre animal com acabea estendida e o olhar mole e sensual, a bater com a cauda de um para ourolado, com a uniforme oscilao de uma pndula.

    No meio deste silencio, a voz grave e compassada de Miguel ecoavamonotonamente nas quatro paredes de betume cinzento.

    Terminada a leitura, conversavam os trs sobre o enredo e o carter dospersonagens, que figuravam no romance, cujo desfecho ngela com muito empenhoprofetizava.

    Em seguida, Rosalina foi buscar a rabeca e Miguel executouexpressivamente vrias msicas de sua imaginao, no se esquecendo da ltima -Teu nome, que muito arrebatou e comoveu aquela a quem foi oferecida.

    Com efeito, desvanecia-se a rapariga com ser a inspiradora de to belasconcepes, e ficava enlevada, como a sonhar, bebendo pelo corao asmelanclicas harmonias, que emanavam do instrumento apaixonado.

    Assim fugiram as horas tranqilas e esquecidas da visita, at que os sinosde S. Tiago tocavam o silncio; ento, descontinuava-se o recreio: Miguel despedia-se, beijando a mo da velha e a fronte da moa, e, depois de tomar o chapu e arabeca, partia cabisbaixo.

    Ao sair o msico, fechavam logo a porta; a luz desaparecia da sala e asduas mulheres recolhiam-se para o mesmo quarto, onde rezavam e dormiam juntas;tudo isso era feito com cuidado e devagarinho, como se tivessem medo de acordarcom o barulho a felicidade que se lhes agasalhara em casa.

    Nas noites em que Miguel se demorava ou no ia como de costume,sentiam-se as duas mal e impacientes e Rosalina encostava-se, ento,cantarolando, s ombreiras da porta, e derramava, de vez em quando, um olhar detristeza pela brancura do caminho. Enfim, o rapaz era j como pessoa da famlia;era, ao menos, uma necessidade para ambas.

    Aos domingos de primavera, o sol ao levantar-se s cinco horas j os via dep e em caminho para a missa. Ento, aparecia sempre um pretexto para demorar-se ao passeio, que os levava em geral pelas casas das amigas.

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    O que posso asseverar que o leno, com que Rosalina assistiu ltimamissa, era presente de Miguel: e a gravata com que este no ltimo domingo seenfeitara, era feitura das delicadas mos da sua presenteada.

    Era tudo harmonia e amor naquela casinha branca!

    CAPTULO VII

    Chegara finalmente o vero com o seu cortejo de luz e de alegria; agostosurgira enfeitado e casquilho como um novo campesino a cobrir de beijos e mimos aformosa ilha, sua noiva. Vinha alegre.

    O cu, todo irado, refletia no mar os seus mais belos cambiantes; asrvores, ento, bem cobertas e reverdecidas, derramavam no cho uma alfombraazulada, cheia de languidez e perfumes que encantavam; a brisa sussurrava mornae maliciosa em segredo de namorados; golpeadas de luz quente, as rochas erguiam-se do mar como belos monstros, enfeitados de diamantes.

    Quanta atividade na terra!Quanta doura no cu!O canto saa espontneo das gargantas e os sorrisos dos lbios, e de tal

    sorte se casavam no ar, que o canto parecia riso e o riso parecia canto! A luzenorme do sol caa filtrada dentro do corao, para a abrir uma aurora da mocidadee sade; a bondade vinha superfcie da terra; propagava-se como um som aalegria, e a gargalhada detonava com o eco desse som.

    Pousavam nos colmos os passarinhos ou embalavam-se chilreando nashastes flexveis das videiras. Como uma boa notcia, as andorinhas cortavam a ilhaem todos os sentidos, inquietas como a fortuna, ligeiras como a curiosidade, oraroavam a terra para lhe dizer um segredo, ora molhavam na baa a pontinha negrada asa os se desvaneciam no azul ilimitado do espao.

    No mar o quadro correspondia em movimento e beleza de colorido ao daterra.

    O oceano vestira uma domingueira camisa de rendas espumosas.Por todos e de todos os lados, singravam listras multicores dos barcos

    pintados de novo; a espicha vergava com a vela reverberante e cheia. Ospescadores, satisfeitos com a pesca da noite, cantavam anunciando o peixe; outros,j desembarcados na praia, estendiam as redes ao sol, arrastavam o barco, epunham-se depois a subir as granitosas ladeiras, suando, vergados sob o peso doresultado abundante de suas pescarias. O filhinho, mesmo pequeno, j ajudava opai; metia-se-lhe de pernas arregaadas no mar, para colher o cabo do bote e asredes; no o amedrontava a imponncia do leo marinho. Nas cabanas, as velhasconcertavam o peixe e punham a mesa.

    Era para ver o riso, o apetite, a felicidade enfim!De repente, divisou-se ao longe um barco estranho.Diferente e maior que os mais, tinha um sombriamente soberbo, que

    contrastava com a alegre singeleza dos outros.Vinha como uma bala queima-roupa!Dir-se-ia um insulto alcatroado. A vela opada, amarelenta e inchada como o

    saco de couro de uma gaita de foles, lembrava ao mesmo tempo o ventre enorme deum cadver que vai apodrecer.

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    Os pescadores olhavam-no ofendidos como para um intruso; indignavam-secom o vento e com o mar porque tanto o favoreciam. Tinham cimes, os bonspescadores, das suas guas e dos sopros das suas brisas.

    Todavia, o barco no diminua de carreira. Chegou rpido ao porto, desceu avela e atracou.

    Um homem robusto e carrancudo, seguido de marinheiros e homensacarretados de malas, apareceu na praia e subiu com p firme cidade.

    Os camponeses e pescadores olhavam-no com aterrada desconfiana; entreeles alguns davam mostras de conhec-lo, chegando at a falar-lhe. A tudorespondia secamente o recm-chegado.

    Fez impresso nas rodas.Instantneo e curioso silncio apoderava-se dos que o viam; no o largavam

    de vista; o sujeito era observado com respeito e reserva.Os pescadores arriscavam com cuidado palavra a respeito dele,

    murmuravam medrosos, mesmo quando j no podiam ser ouvidos pelo mauhomem e em segredo diziam: era um jettatura, que os livrasse Madona do mauolhado.

    No entanto o mau olhado seguia indiferente o caminho da casinha branca eda a meia hora Rosalina abraava o pai.

    Maffei tinha chegado.Foi um alvoroo em casa. ngela soltou uma exclamao religiosa e

    levantou os braos para o cu. sempre enternecedora a volta de um pai ao seio da famlia.Seja ele uma fera, nessa ocasio h de ser pai.As palavras comeadas, que no se acabam; o pranto, que assistem como

    um amigo da famlia; o co, que fareja alvoroado; tudo! Tudo enternecedor esanto!

    S Maffei no chorou nessa ocasio.Acariciava, beijando a filha, porm sempre spero e inaltervel.Disse depois que estava cansado e que lhe dessem uma cama.Enquanto dormia o aventureiro, ngela agradecia a Deus o seu regresso

    feliz.Rosalina, com os olhos ainda midos, remexia e examinava os objetos que

    lhe trouxera o pai.

    CAPTULO VIII

    Foi-se passando o tempo e o recm-chegado sem explicar a melhora dasituao.

    Tambm as mulheres no se animavam a interrog-lo; compreendeu a boagente que tinha melhorado de sorte, e a Madona por isso recebeu nessa noite umagrinalda nova toda perfumada.

    Com efeito, Maffei tinha enriquecido.Em princpio, encontrou em Rezina a sorte adversa, porm, com energia e

    ambio soubera poupar e avultar um peclio, que, emprestado a juros eespeculaes mais altas, em pouco tempo se multiplicara. A economia rigorosaconcluiu a obra, crescendo na razo direta do engrandecimento do capital.

    Outros atribuam a um princpio ilcito essa riqueza; aqui diziam que roubara;ali, que a fortuna o protegera, fazendo-lhe achar dinheiro nas escavaes.

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    Sabemos que em Herculano no apareceu muito dinheiro, porque apopulao tivera tempo de fugir, quando a cidade foi submergida; tambm sabemosque em Npoles ningum se queixava de Maffei como ladro, mas o que era patentee real que o pai de Rosalina voltava rico, mais ambicioso e necessariamente piorde corao.

    Luzia-lhe agora com mais intensidade a cobia vermelha e sinistra, como umfarol no meio da tempestade.

    E no havia porventura uma tempestade naquela cabea?Sim! porm toda interior.No se ouviam os troves nem os vendavais, a revoluo ia-lhe por dentro e

    s chegava superfcie da fisionomia desfeita em espuma biliosa nos cantosarqueados da boca e em sangue mau no vtreo dos olhos.

    Isso era nos momentos de clera. monotonia bondosa da casinha branca sucedeu a tristeza, espcie de

    pavor, que cerca o homem de m catadura.Contra ele principiavam j a murmurar, na ilha, e, se at ali tinha tido poucos

    amigos, nenhum desses lhe restava agora. Em geral, malqueriam-no davam-lhe apaternidade de coisas horrveis; crimes medonhos, maldades atrozes, tudo serviapara explicar a sua imprevista fortuna.

    Todavia, se bem que contrariado e s, ia ele vivendo, falava menos e commais indelicadeza; durante o sono, balbuciava palavras singulares. Frentico eaborrecido, agitava-o sempre a mesma impacincia e o mesmo cogitar.

    Quais seriam as suas intenes?...No o sabiam as mulheres, nem se animavam a pergunta-lho.Com todas essas coisas ia aviltando a tristeza na casinha branca. Rosalina

    j no era a mesma cotovia alegre e jubilosa, cantadora e risonha; se cantava agora,era triste e suspirando. E as suas notas e suspiros iam, repassados de muitasaudade, em busca de Miguel, que, ao chegar o seu velho inimigo, arrancara-se dali,como o galho partido que o furaco arremessa com estrondo ao longe.

    ngela, cada vez mais devota, passava agora a maior parte do tempo arezar.

    Desconsolado se tornara esse lar, que j nalgum tempo fora vivo quadro depaz e felicidade.

    Agora, o quadro era sombrio.Trs nicas figuras formavam o primeiro plano. Um velho spero, que

    cisma uma devota, que reza uma filha, que suspira; e l, no ltimo plano, meioescondido nas nvoas do poente, um velho esbatido nas meias-tintas do horizonte -um homem, que chora abraado a uma rabeca. Ah! Ainda no quadro uma formanegra, mais um borro que uma figura o co.

    Tambm vivia triste e chorava o animal, que em noites de luar soltava unsuivos to arrastados e queixosos, que enterneciam o corao da gente.

    CAPTULO IX

    Assim decorreram duas estaes, impregnadas, com a vinda de Maffei, deaborrecimento e marasmo.

    Uma noite, estavam todos reunidos em volta da mesa; era a hora da ceia.Rosalina servia, preocupada, um prato de peixe com lentilhas, reverberava-lhe

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    nessa ocasio uma esperana na alma, tinha de todo resolvido falar ao pai arespeito de Miguel.

    ngela conhecia os planos da pupila e prestava-se se fosse necessrio aajud-la.

    A refeio passou-se silenciosa; ao terminarem-na, quedaram-se por meia-hora, imveis nos seus lugares, mudos.

    Ouvia-se l fora bater o vento nas oliveiras, ouviam-se o as cantigaslongnquas dos pescadores nas praias opostas.

    Rosalina, com as mo frias, trouxe a Maffei o cachimbo.O velho ps-se a fumar voltado para o lado da rua e a seguir com a vista no

    caminho, que lhe nascia porta. Estava sombrio como nunca.Faltava a Rosalina nimo de falar ao pai; finalmente, tomando uma

    resoluo extrema foi-se-lhe encostar ao grosseiro espaldar da cadeira.O homem de to preocupado no se apercebera disso; um beijo da filha

    despertou-o, porm, no o comoveu. Refratrio ternura, continuava secamente afumar.

    Rosalina, cujo corao pulsava cada vez mais impetuosamente, passou-lheum brao em volta do pescoo, e com a mo livre messando-lhe os cabelos; entre oreceio e o desejo, mais medrosa que terna:

    Estou triste! Por qu? Interrompeu indiferentemente o pescador.

    ngela ouvia com interesse este dilogo.

    Tenho medo de pedir-lhe uma coisa... E por qu tens medo? Insistiu o velho, sempre a fitar maquinalmente a

    estrada. Porque vai ralhar comigo. Ento, queres pedir-me alguma tolice?... No senhor!... Ento pede... Promete no se zangar?... Sim ! E quando souber que tenho um namorado? Disse abaixando os olhos

    Rosalina, porm, agora mais terna do que medrosa.

    Ao ouvir as ltimas palavras da filha, Maffei tirou vagarosamente o cachimboda boca e voltou-se, cravando nela os olhos vivos e interrogadores.

    A rapariga estremeceu empalidecendo, sentia-se j arrependida do quehouvera arriscado e com dificuldade conseguiu dizer vacilante.

    No senhor! no tenho! Com que, tens um namorado?! repisava entre-dentes o pescador,

    ruminando a frase.

    Rosalina conservava o olhar baixo e, perturbada, alisava com a unha dopolegar da mo direita a costura do corpinho.

    Com que, tens um namorado?!... repetia o velho.

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    Porm disse trmula e sem levantar os olhos Rosalina ele me quertanto! E eu estou afeita a v-lo... e abaixando mais a voz, quase a falar consigo,continuava que era um bom moo, trabalhador, e que tudo era para bem, elequeria espos-la, que...

    Quem ? interrompeu asperamente Maffei. ... ... Miguel Rizio...

    Um raio no produziria o efeito desta revelao. A fisionomia do velhoalterou-se apopleticamente; firmado nas plantas, levantou-se como impelido pelasmolas da clera e descarregou com bruta excitao na mesa, o punho cerrado enervoso.

    Foi um avermelhar de olhos, um crispar de lbios, um contorcer de nervos,mais rpidos que o relmpago. Estava transformado.

    Miguel Rizio! um miservel!...

    E ria-se ironicamente.Rosalina, toda trmula, tinha a cabea baixa e o olhar arrependido;

    apertava-se-lhe naquele momento o corao, como se tivesse cometido um crime;dos lbios semi-abertos, fugia-lhe um rosear frouxo e trmulo, como um cardume demariposas.

    O vulto sombrio e preocupado do velho comeou a passearautomaticamente de um para outro lado da casa.

    Tinha na fisionomia o sobressalto do marinheiro em perigo, nos movimentosumas ligeiras crispaes, que lembravam o balano do navio.

    Era uma capito no seu tombadilho; as sombras do passado e do futuro, asvagas do grande oceano que o embalava; a confisso da filha, o vendaval.

    E assim passeava sem se dirigir a ningum; falava sem se voltar paraRosalina, parecia conversar com Deus, ou com o demnio! Saam-lhe da boca aspalavras escandecidas e speras como as pedras de um vulco.

    E necessariamente ele vinha c!... E eu ignorava que a minha casa erafreqentada por um Miguel Rizio!...

    E voltando-se depois para afilha, como se falasse a um marinheiro, exclamaem tom de ordem:

    No quero casar-te com um maltrapilho daquela laia! Entendes?! Ele bemo sabe, que me evita, o miservel!... Tenho-te reservado nome e posio! Somente de ti depende a minha e a tua felicidade, pelo menos enquanto fores bela!Nada tenho a recear daquele mendigo, porque partimos depois de amanh paraNpoles! Veremos se o maldito lazarone vai l perseguir-nos! E quanto a ti - bradouele com mais fora, apresentando a cara defronte da de Rosalina - quero que no otornes a ver!... Entendes?!...

    Sim, senhor - fez timidamente Rosalina.

    CAPTULO X

    Ir para Npoles!

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    Viver na grande capital, com opulncia, beleza, mocidade, sade, alegria,admiradores; isto , realizar o mais dourado dos sonhos, a mais sonhada dasesperanas, o desejo mais querido e a mais brilhante expectativa do corao deuma mulher bela e vaidosa.

    Tal era o quadro que Maffei descortinara aos olhos fascinadores da filha, talera a cornucpia abundante, cuja fortuna sufocava de alegria o corao, ainda ternode Rosalina.

    Do fundo da sua obscuridade, sentia a formosa filha do pescador asconvulses da prola nas profundezas do oceano.

    Era a sede formidvel de luz e de brilho, de admirao e de inveja! A febrede aparecer e ofuscar! O direito da beleza e a impacincia do ouro!

    Vaidade! Vaidade grosseira da matria! Que supe desperdcio esquecer naostra singela e honesta a jia digna de se corromper na cabea de um rei!

    Vai, criana sonhadora! E que te hajas to ditosa que para ti Npoles sejasomente o que o diadema de uma princesa para uma prola.

    Porm Miguel?! O querido namorado de Rosalina!?...Oh! Que imprudncia... lembrar uma lgrima, quando se trata de todo um

    futuro de prazeres e galas!Quem se importa da ptala da rosa, que o trem faustoso do rico, ao passar

    altivo, esmagou no caminho?!Todavia, Miguel era um ponto sensvel e doloroso no corao da moa

    ambiciosa. A despeito de tudo, ela ainda o amava, e, no meio dos sonhos degrandeza, tinha para o pobre artista um suspiro de amor e saudade, ainda o via, nofundo brilhante do seu quadro de irradiaes e alegrias, sombrio, triste, meioespectro, meio homem, a chorar talvez, com certeza a sofrer. Via-o ela esbelto edelicado, contra a luz das suas esperanas, e sentia-se projetar-se no disco irado deseu corao a sombra negra desse vulto querido.

    No h felicidade, por mais completa, que no ressinta de uma mancha aomenos!

    Todo e qualquer obstculo, por mais mesquinho e miservel que seja,produz uma sombra relativa.

    Subtraiam todos os mundos, todos! Que o firmamento fique um nada infinito.Ento deixem brilhar unicamente o sol, isolado e egosta. S ele! e a sua luz aperder-se pelo nada.

    No se pode certamente julgar mais completa e inteira luz; pois bem, tragamdepois um gro de areia, s um! coloquem-no defronte do sol e ser perturbadaessa imensa pureza de luz! Um mesquinho gro de areia contra a enormidade da luzdo sol! Todavia, o gro de areia ser uma sombra!

    Assim tambm grande e cheia era a taa de nctar, que Maffei entregara filha, porm nessa taa havia uma gota de fel: era o amor do artista.

    A fortuna passara a cobrir Rosalina de beijos, porm nesse aluvio decarcias foi de envolta uma arranhadura.

    Pobre Rosalina!E neste vacilar, entre a felicidade e a dor, entre o bem e o mal, escrevera a

    Miguel uma carta, contando-lhe, com honesta franqueza, o que se passara, eprometendo-lhe uma entrevista, s ocultas do pai.

    O rapaz ficou fulminado ao receber a notcia; entretanto, sofreu todas essascoisas afetando a mais indiferente tranqilidade. Exteriormente, parecia no seuestado normal de tristeza e inteligncia, e contudo no conseguiria, se o tentasse,ligar duas idias.

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    Tinha a lucidez no olhar, porm, as trevas no crebro!De queixas, nem vestgios!De resignao - todos os sintomas!Depois da chegada do pescador, o msico nem cuidava de si; esquecera

    obrigaes e talento!Coitado! Sem famlia, sem um amigo ao menos, um companheiro com quem

    dividisse fraternalmente o seu infortnio, sofria, o desgraado, essa dor ignorada,que s tem uma expresso a lgrima; s sabe um caminho o do tmulo!

    CAPTULO XI

    A casinha branca ficava situada em um dos extremos da ilha, para asbandas do nascente.

    Era um ponto magnfico.A modesta e simptica vivenda olhava de frente, podemos dizer, sorrindo,

    para a estrada que conduzia ao centro povoado da ilha; do mundo, saa-lhecorrendo, em distncia de seiscentos passos, a nossa j conhecida alameda deoliveiras, cujo solo formava um declive suave e frtil, plantado de ambos os lados,com variedade e gosto, at onde o terreno ia pouco a pouco se tornando maisngreme com a vizinhana do mar.

    Ento, principiava uma ladeira pedregosa, que ia acabar, em grandedistncia, numa ampla e formosa praia, de areias claras e batidas livremente pelosventos.

    Do lado direito, avizinhava-se o mar, entre o qual e a casa, interpunha-sesomente uma clareira, onde Rosalina costumava sentar-se tarde, e uma moita deespinheiros, espcie de cerca natural, que ali entrelaara a natureza, para servir deameias, que resguardassem as bordas perigosssimas deste lado.

    Do esquerdo, o espao entre o mar e a casa era desproporcionalmentemaior, porm menos cultivado e coberto de uma vegetao enfezada e m. Porentre esse mato, nascia uma picada, to irregular e confusa, e to dificultada pelosabrolhos e saras, que quase no se deixava perceber; e tanto mais ingrato era osolo, quanto mais se afastava da casa.

    Perto desta era a terra cultivvel e solta, mais ia gradualmente e tornandocalcfera at chegar ao estado de pedra, proporo que se aproximava das bordasda ilha, terminado por um pedregulho alcantilado, inteiramente liso e escorregadio,pelo salpicar constante do p mido das vagas, que se despedaam contra ele.

    A rocha ficava a pique sobre o mar, um precipcio medonho!Nas noites claras do estio, algum que trepasse penedia at galgar os

    alcantis aprumados e reluzentes, abrangeria, s com um abrao de olhos, aimensidade dos horizontes celestes e marinhos; e se, chegado borda do abismo,se debruasse um pouco sobre a ingremidade da rocha, julgar-se-ia solto no espao,sem ligao alguma com este mundo e s preso a Deus pelo esprito.

    Ento sentiria debaixo dos ps os soluos espumosos das ondas, e sobre acabea a linguagem enrgica do nordeste, revelando natureza adormecida osmistrios da criao dos mundos.

    E o mugir dos ventos e o rugido colrico do mar lhe pareciam, nesse instantede transporte, o resumo supremo de todas as foras, de todas as paixes, de todasas virtudes, de todos os vcios, de todas as tempestades dos homens e todas as

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    tempestades dos elementos; chegar-lhe-iam ao corao como o index fabuloso douniverso.

    Assim, medonho e belo, era o lado esquerdo da casinha branca, o que otornava desprezado e quase ignorado, a no ser pelas gaivotas e outras avesaquticas, que l subiam nesses cumes, procura do pouso e da solido.

    CAPTULO XII

    Tinha comeado o inverno e, apesar disso, a noite marcada para aentrevista dos dois amantes era to serena, que faria chorar de inveja a vaidosaprimavera.

    Nem uma nuvem perturbava o aspecto ingnuo e puro do cu.As oliveiras solitrias e esguias, como toda a vegetao de Lipari, em virtude

    da leveza da atmosfera, beijavam-se voluptuosamente, impelidas pela brisa frescado mar, e projetavam no cho, contra a luz da lua, uma sombra de triplicadocomprimento.

    O vento estorcia-se, uivando como um doido de asas e redemoinhava emtorno das oliveiras, cujas sombras desenhavam na aspereza do solo fantasmassingulares e monstros extravagantemente disformes.

    s vezes, o doido mudava de rumo e quebrava no ar o murmrio dascantigas dos pescadores, que estendiam a rede do lado do poente.

    E assim vagavam, soltas e desarticuladas no espao, vozes confusas edisparatadas.

    O mais dormia silenciosamente.A casinha branca parecia, ao luar, embrulhada com frio, num lenol de linha

    alvo.A lua aborrecia-se, coitada! no seu eterno isolamento!

    CAPTULO XIII

    Por volta das dez da noite, um barco costeava a ilha pelo lado da praia.De vez em quando o vento, caprichoso e vadio, trazia de rastro alguns

    fragmentos de uma bela barcarola, que necessariamente vinha do barco. Eram asnoites de uma chorosa rabeca, espcie de harmonia chorada, ou melhor, de prantoharmonioso. O certo que, msica ou pranto, doa gente ouvir soluar daquelemodo. Se fosse possvel fazer do corao um instrumento e tang-lo, com certezahavia o som de ser o mesmo que ento se ouvia.

    O barco vinha-se aproximando lentamente da praia, e lentamente ia-secalando o instrumento; da a pouco paravam ambos, e um vulto de homem, comares de pescador, soltando o ferro, pojava na areia.

    O barqueiro depositou a rabeca sobre um dos bancos de seu barco,conchegou melhor o capote de pescador e, dando alguns passos pela praia,encarou a silenciosa ladeira, frouxamente clareada pelo luar.

    Miguel no faltara entrevista, porm. Temendo vir pela estrada e ter quepassar pela porta de Maffei, resolvera entrar pelo fundo, disfarado em pescador;precaues necessrias para no ser descoberto pelo pai de Rosalina O marsempre era mais seguro.

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    Posto em terra, atravessou o espao, compreendido entre a gua e aladeira, e deitou a subir cautelosamente.

    Subiu sempre at encontrar a primeira rvore; a parou e ficou a escutar.Era tudo absolutamente silencioso.Miguel encostou-se ao tronco da rvore e esperou.Sentia-se mal, o pobre moo! Desde que recebera o bilhete de Rosalina,

    meditava um meio de salvar a situao, e, por mais que desse voltas cabea, nadadescobrira.

    Agora, prestes a v-la, encostado oliveira, com o cotovelo direito na moesquerda e com a outra escondendo o rosto, fazia castelos magnficos e desfazia-os, com a mesma facilidade. Imaginava as coisas mais absurdas, os projetos maisirrealizveis.

    Lembrava-se de raptar Rosalina, fugir com ela para qualquer parte; ouempregar-se em Rezina, como operrio, e especular, como fizera Maffei; ou deixar-se morrer; ou mat-la.

    Enfim, mil outras idias deste gnero encontravam-se, debatiam-se, amorderem-se sangrentas, no crebro molesto do pobre rapaz, como, na mesmaptria, irmos se devoram e matam em tempo de guerra intestina.

    Assim permanecia ele esttico, com o rosto escondido na mo esquerda,invejando interiormente a tranqilidade feliz da natureza, que parecia adormecida asonhar amores.

    A terra, essa boa me pensava ele tambm tem um corao: svezes parece sofrer, porque geme; sentir alegrias, porque ri; amar, porque solua;enfim, no podia deixar de ter um corao, porque me.

    CAPTULO XIV

    Enquanto Miguel, encostado rvore, era todo meditao e cismar, do altoindeciso da ladeira alvejava um vulto trmulo, cujas roupagens flutuantes sedesvaneciam nas sombras transparentes da noite.

    O corao do moo estremeceu, como o ferro quando se avizinha o im: eraRosalina que se aproximava.

    Com aquela cega e santa confiana, que as singelas camponesas tm emsi, com o desamparo dos coraes que no se arreceiam das trevas nem da luz,descia a ladeira, descuidosa, a filha do pescador, procurando descobrir nas sombraso vulto querido do seu amado.

    Assim que o divisou, deitou a correr francamente para ele com os braosabertos.

    Mais parecia descer voando, que correndo; Miguel com os olhos do coraovia-lhe as asas, que a amparavam no vo.

    O vento, repuxando-lhe para trs as saias e os cabelos, contornava-lhe aredondeza correta da cabea e as curvas voluptuosas e macias do corpo; era comose a mo invisvel de um gigante a segurasse por trs, e pouco a pouco a viesseaproximando dos lbios de Miguel.

    Nessa ocasio, para ele Rosalina mais que nunca parecia um anjo; para osamantes vir por cima sempre baixar do cu quando se trata do objeto amado.

    Era aquilo um descer vertiginoso e quase fantstico: as pedrinhas do chodesprendiam-se e rolavam com rudo at a praia; os belos e adestrados ps de

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    Rosalina corriam pelo solo conhecido, com a facilidade com que deslizam pelotelhado os dedos de um mestre de piano. Atravessando a alameda, ora recebia emcheio o luar pelos claros da folhagem e pelos espaos de entre as rvores, ora secobria rapidamente de sombra, para reaparecer logo na luz. Miguel correu aoencontro de Rosalina, recebendo-a em cheio nos braos.

    Vinha ofegante de cansao, e nesse estado se abandonava de si, para detodo se entregar negligentemente aos braos do amante.

    Assim ficaram por algum tempo silenciosamente abraados; ela a respirarsofregamente e ele a fartar-se de v-la, queimando-a com esse olhar, que parece oreflexo vermelho do incndio que cai pelo corao.

    Desabraaram-se para segurar as mos um do outro; os amantes, quandoss, nunca tm as mos ociosas.

    Oh! Como esto frias! Disse Rosalina, tomando entre as suas as deMiguel.

    Tenho-as frias como tenho despedaado o corao. No h calor nasrunas! volveu tristemente Miguel e recolheu-se a cismar; porm, pouco depois,tomado de sbita agitao, ergueu com fora a cabea e rompeu a falardesordenadamente, como se a dor, que desde a vspera prendera em ferros,rebentasse vista de Rosalina, medonha e troadora, rompendo cadeias, violandorepresas.

    Ouve Rosalina! Eu tinha uma fortuna, uma esperana, uma alegria, umanica felicidade, desde o princpio de minha vida, isto , desde que te conheo, meuamor! Teu pai entendeu para si de transformar numa chaga sempre aberta isso queera o meu nico sorriso. Vais partir para Npoles e vais rica; conheo bem oscostumes dessa cidade: so maus e perigosos, principalmente para os ricos! Sersporventura a mesma quando l te vires, cercada de opulncia e de aduladores?...Essa dvida me mata!...

    E soluou.

    Miguel!... Tenho medo, minha Rosalina; pode muito a ausncia! Tenho medo de

    que te esqueas por uma vez do pobre artista! E que seria de mim se me deixassesde amar? Desaparece, e nada mais aqui fica que me aproveite! Apaga a luzinha queconduz o viajante, e v-lo-s perdido; toma o cajado ao cego, e v-lo-s cair; privado sol a planta, e v-la-s murchar; arranca do desgraado a crena em Deus, e v-lo-s sucumbir. Pois bem! Tu s a estrela que me guia ao futuro, o cajado que meampara na vida, a luz que me d crenas e a crena que me d foras. Desaparecee eu cairei nas trevas e morrerei sem crenas! Repito, Rosalina! disse Miguelcomovido e enxugando as lgrimas Repito! Tenho medo que te esqueas parasempre de mim!

    No, meu amigo, no me mais possvel esquecer-te - volveu a moa,conchegando para si o amante e passando-lhe os braos em volta do pescoo. Oamor que tenho, meu amigo, no entrou neste corao j feito e desenvolvido, no!ele aqui nasceu, fecundado por ti, foi pequenino e hoje est crescido, eduquei-opouco a pouco como se educa um filho querido, que sai de nossas entranhas;amamentei-o como a minha primeira esperana; alimentei-o depois com a tuadedicao; santifiquei-o ao calor religioso de teus sacrifcios e fielmente robusteci-oao claro vivificante do teu talento. Amei-te, porque s nobre, forte e dedicado! Hoje

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    o nosso filho querido, o nosso amor dono absoluto de mim; o corao, com afranqueza de me, habituada a fazer-lhe todos os caprichozinhos, j no reage. Eparece-te que eu seria capaz, que poderia, ainda se quisesse, enxot-lo da casa?No sabes que depois da recusa de meu pai eu mais e mais te quero? Oh! mas eleconsentir em tudo! meu pai bom e ainda no te conhece bem; logo que assimacontea, gostar necessariamente de ti. E muito mais sabendo que eu te amo tantoe tanto!

    E dizendo isso, Rosalina cada vez mais estreitava o amante com carinho.E ele, com os lbios juntos aos dela, sentia carem-lhe dentro aquelas

    palavras como beijos incendiados.Todas as trevas de seu passado dispersaram-se espavoridas como um

    bando de aves negras ao contato da luz daqueles beijos.Sentia-se novamente feliz, dessa felicidade, ou talvez, desta vaidade que

    enche os coraes ainda moos e enamorados, quando embevecidos recebem doslbios da mulher amada a confirmao da prpria fortuna. E assim foi que Miguel,possudo do inesperado contentamento, rindo e chorando, murmurou em segredo edesordem junto aos ouvidos de Rosalina:

    Fala! meu amor! Continua a dizer dessas coisas! Enlouqueo de te ouvirdizer assim a nossa felicidade! Dize! Dize que me amas muito e que me amars semfim.

    E o roar dos lbios dos amantes desprendeu um beijo, semelhante chispa, que o atrito do ferro levanta da pedra.

    Uma fasca sempre perigosa: pode fazer exploso.Sbito, um jato de luz vermelha inundou rpido o grupo abraado dos dois

    amantes.Se Satans existe, deve ser dessa cor a sua aureola.Rosalina soltou um grito horrorizada, grito igual ao da cotovia ao sentir a

    bala do caador, e caiu sem sentidos nos braos de Miguel, que imvel, hirto,chumbado terra, parecia uma esttua de bronze, tendo nos braos uma mulherbela e plida, de uma beleza e de uma palidez de mrmore.

    CAPTULO XV

    Continuava o sopro brando sussurrante da brisa do mar.Rosalina tinha a cabea pendente para a terra e os seus cabelos,

    indiferentes, brincavam ao soprar travesso da brisa com as pedrinhas soltas naladeira.

    O silncio principiava a coalhar.A cinco passos de distncia, de p, com uma lanterna furta-luz na mo

    esquerda, e com a direita sustentando uma machadinha de abordagem, estava doalto Maffei, plido de raiva, com a boca serrada a salivar biles.

    Luzia-lhe o olhar com a mesma vermelhido da lanterna; os cabelosempastados de suor, caam-lhe midos pela testa. Estava medonho.

    Era uma quadro sombrio e lgubre.A figura austera do velho, mergulhada na penumbra, contrastava com o

    grupo iluminado do primeiro plano. A atmosfera comeava de se fazer carregada e

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    pouco a pouco escondera a lua. O foco da lanterna aumentava a densidade dassombras, onde os olhos de Maffei brilhavam como os de um gato bravo. Esse olhartinha as fosforescncias da pupila do tigre.

    O desgraado Miguel sentia mais que nunca a influncia magnticadaqueles olhos que o fitavam da escurido; afiguravam-se-lhe a prpria sombra aespi-lo.

    Nessa ocasio, a lanterna tinha um qu de humana e atrevida: parecia umacara risonha e irnica e contrair-se no vidro sujo de p e a deitar para fora a lnguacomprida e ensangentada, lngua de luz, cuja claridade doa como um insulto.

    Quando essa claridade caiu em cheio no rosto de Miguel produziu o efeitode uma bofetada. Estremeceu e corou de vergonha.

    Felizmente, voltara-lhe o sangue frio.O velho, com um gesto imperioso e grosseiro, ordenou-lhe que o

    acompanhasse; Miguel maquinalmente abaixou a cabea, enquanto Maffei, semprecalmo, deu-lhe indiferente as costas e ps-se a subir a ladeira.

    Rosalina permanecia sem sentidos nos braos do amante, que, comtranqila delicadeza, segurou-a pelos joelhos com a mo direita e com a esquerdaamparou-lhe a cabea lnguida, e, como uma me faria ao pequenino, deitou-acarinhosamente no colo; depois, segurando-lhe as costas com o brao, f-ladescansar com cuidado a cabea em um dos seus ombros, e comeou a seguirsilenciosa e vagarosamente o velho.

    A luz da lanterna ia gradualmente amortecendo, proporo que no cu onegrume se desenvolvia.

    No meio do silncio, destacavam-se os passos cadenciados do velho e doranger de galhos e folhas secas, que o outono arrojara ao cho.

    Um ou outro passarinho, enganado pela claridade da lanterna ao passarMaffei, piava do seu esconderijo, cumprimentando o dia artificial.

    Quando a gente sobe uma ladeira, qualquer peso estafa logo e pareceavultar extraordinariamente.

    Depois de cinqenta passos, Miguel sentiu-se exausto. proporo que iasubindo, mais ngreme, mais pedregosa e mais difcil era a ladeira; firmava o p, e apedra em que firmava desprendia-se a rolar ruidosamente at a praia; ento oequilbrio e a agilidade substituam as foras, que alis lhe minguavam.

    Para animar-se apertava de vez em quando o corpo de Rosalina, ao que adesfalecida respondia com um suspiro tranqilo e duvidoso, como o ressonar deuma criana adormecida.

    Porm, pouco a pouco, foram desaparecendo os ltimos recursos ereproduzindo-se as dificuldades: o suor jorrava em bagas da fronte do moo; aspernas tremiam-lhe; a vista perturbava-se; a lngua seca, o corao dodo, a cabeaperdida; a respirao cada vez mais demorada e mais forte. O corpo de Rosalinaparecia de chumbo; o cansao fizera dele um corpo de gigante. Ora desanimava, orareagia; as foras iam e vinham. Era um vaivm de agonias.

    E nessa vertigem acompanhava ele com a vista esgazeada a luz vermelhada lanterna, que gradualmente ia-se afastando, diminuindo sempre.

    Sem saber porque, ligava certa correspondncia entre as prprias fora que,extinta aquela luz, fartar-lhe-ia o nimo para o resto do caminho; pedia mentalmentea Deus a vida para ela, com o mesmo fervoroso interesse como a pediria para si.

    Contudo, a lanterna estava j nos seus ltimos arrancos.O velho tinha com vantagens de foras aumentado o espao entre si e

    Miguel; mais dez passos, oito! cinco passos! Dois... e chegou!

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    A lanterna escondeu-se, a luz desapareceu para Miguel. O rapaz vacilou, aocair! Equilibrou-se!...

    Um vozear confuso e penetrante parecia-lhe dizer aos ouvidos nimo!Um esforo mais! Um ltimo arranco!O moo reuniu os destroos de suas foras; beijou com os lbios cobertos

    de suor o rosto gelado de Rosalina, e cortou de carreira os ltimos trinta passos quefaltavam.

    A lanterna crepitava o seu ltimo claro, podemos dizer, o seu ltimosuspiro, brilhou mais forte e morreu!...

    Nisto, Miguel acabava de atravessar a porta do fundo da casinha branca ecaa desamparadamente no cho, com Rosalina a seu lado.

    Desabou, quase morto.O suor corria-lhe de todo o corpo; a caixa dos pulmes erguia-se e abaixava-

    se com a sofreguido de um fole enorme fazendo grande rumor a respirao ao sair;a voz desaparecera; as plpebras fecharam-se; o suor convertera-se em umidadepegajosa e doentia, como a ltima transpirao de um tsico.

    Sentia vertigens e vontade de vomitar. Era um incomodo comparvel aoenjo do mar.

    CAPTULO XVI

    O pescador foi ao interior da casa e pouco depois voltou.Com a presena do velho, Miguel ergueu-se de um pulo era outra vez um

    homem.Num dos ngulos sombrios de um quarto, ngela, ao claro minguado da luz

    de azeite orava, Madona; a claridade mortia do nicho escorria at a varanda ebatia em cheio na palidez nublada do rosto de Rosalina. Estava sinistramenteencantadora.

    Maffei aproximou-se dela, arrastou-a at o leito e voltou.Um gemido da desfalecida atraiu para si ao mesmo instante ngela; para os

    coraes extremosos, um gemido sempre um apelo urgentssimo.Voltava o velho com as mos vazias e o olhar tranqilamente feroz; Miguel

    no era covarde, esperou-o sereno, de braos cruzados.

    Precisamos nos entender, disse Maffei com aspereza. Venha! E tomou olado dos abrolhos, esquerda da casa.

    Miguel seguiu-o silenciosamente.Entranharam-se na picada e desapareceram.O caminho no era freqentado, com o que se tornava mais difcil e em

    parte quase intransitvel.Miguel apenas o conhecia; o velho, porm, apesar dos obstculos e do

    negrume da noite, que se tornara sombria, caminhava desembaraadamente e atcom pressa; o outro seguia-o, perdendo-o s vezes de vista, cortando comdificuldade a vegetao enfezada, que lhe obstava a passagem; os galhoschicoteavam-lhe as pernas e o rosto; diversas partes do corpo sangravam com osespinhos, duas gotas de sangue, que lhe corriam pela face, lembravam duaslgrimas vermelhas.

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    Depois de vencerem duzentos dificultosos passos, deram subitamente coma rocha; achavam-se defronte do mar.

    As lufadas fortes do vento anunciavam prxima tempestade.O tempo parecia colrico e os dois homens calmos e sombrios.O velho sentou-se tranqilamente na nica pedra solta que havia e com um

    gesto convidou o companheiro a fazer o mesmo.Miguel aceitou o convite e ficaram juntos.A pedra era pequena, o que os obrigava a ficarem encostados, unidos, ss,

    como dois bons amigos de infncia.Depois de algum silncio, Maffei abriu a falar, porm era como se o fizesse

    por mera formalidade; falava como se estivesse lendo, era como se proferisse asfrases convencionais de um juramento perante um tribunal. Aquelas palavrasmetdicas e sem expresso verdadeira lembravam a missa. O velho falava como umpadre.

    Teodoro Rizio, principiou ele, viveu para vergonha sua e da famlia. Eradevasso e encontrado constantemente bbado pelos alpendres; foi acusado deassassino e morreu preso numa priso de Leorne. Sua desgraada mulher no osobreviveu por muito tempo, morrendo pouco depois, de tsica, dizem uns, demisria, dizem outros; de vergonha, digo eu.

    De desgosto... emendou Miguel, deveras chocado com as palavrasgrosseiras do pescador, que lhe caam na cabea, pesadas e inteirias, comoparaleleppedos de pedra.

    No isso verdade?... perguntou Maffei , fez secamente o moo.

    O velho continuou sacudindo os ombros, cada vez mais automaticamente.

    Ficou desses desgraados um filho; no sei se herdou do pai todos osvcios, porm certo ter herdado toda a misria, que o fez peregrinar pelas ruas deRoma, sem po, sem lar, sem famlia. isto ou no verdade?

    Meu pai, disse humildemente o filho de Teodoro, no me deixoumiservel, deu-me uma rabeca e ensinou-me a tirar dela o po para a boca.

    Mas foste um vagabundo! Fui. Bem, continuou o velho. Eu tambm fui pobre, eu tambm tenho famlia,

    no entanto nunca fui um desgraado! Porque foi sempre feliz, disse indiferente o moo. Mas sou muito ambicioso! muito! Entendes?! Disse o velho arregalando

    os olhos e batendo convulsivamente na perna de Miguel. J o sabia, respondeu este com calma.

    O velho continuou como se falasse para si:

    Fui pobre, verdade, mas trabalhei e trabalhei muito e por muito tempo,para juntar alguma coisa; poupei, especulei e consegui entesourar ainda mais! Hojesou rico! Bastante rico! Entendes? Porm, mais do que nunca ambicioso. Preciso deminha filha para subir, talvez venha a ser nobre, e no para dar-ta a ti ou a outroqualquer bomio.

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    O moo resmungou alguns sons ininteligveis.

    Bem sei, prosseguiu mais brando o velho, de tudo quanto se tempassado; Rosalina sofrer, por isso que te ama, mas espero que em breve estejatudo acabado. Tu ficas aqui e ns partimos. Por ora aceita isso para te arranjares.

    E assim dizendo procurou manter na mo de Miguel uma bolsa comdinheiro, que tirara da algibeira.

    Guarde-o! disse este com altivez. No preciso de esmolas! No queres ento aceitar? insistiu Maffei. No! disse resolutamente Miguel, levantando-se. Contudo, creio que no nos aparecers em Npoles... impossvel!... Impossvel?!... perguntou Maffei, cuja clera principiava a transpirar. E

    que vai l fazer? Sim! que vais buscar?!... Ver Rosalina... disse naturalmente Miguel, procur-la, dizer que a amo e

    amarei sempre! essa a tua resoluo? At a morte.

    A resoluta calma do artista incendiou o nimo do velho, e, transformando-orpido como um raio, assistiu-lhe sangrenta a raiva por todos os poros, como sedentro lhe rebentasse uma aneurisma de clera.

    Rangiam-lhe os queixais, roncava-lhe a respirao, partiam-lhe chispasdiablicas dos olhos; as unhas, de to cerradas, sangravam-lhe as palmas. E,medonho e insolentemente nervoso, levantou-se cambaleando.

    Cravou por algum tempo no moo o olhar esfogueado e com uma voz, queseria a do tigre se o tigre falasse, bradou:

    Preferes antes morrer! desgraado! a deixar de v-la? No isso?! fala!

    O velho roncava estas palavras na posio da fera que arma o pulo.Firmando nas plantas, com as mos abertas como duas garras, encarava ferozMiguel, como suspenso espera da resposta suprema.

    O amante de Rosalina, depois de leve perturbao, meneou a cabeaafirmativamente.

    Este gesto foi o grito de guerra!Um bramido selvagem ecoou nas cavernas do peito do velho! E a pantera

    arremeteu-se contra a vtima!

    CAPTULO XVII

    Entretanto, as nuvens negras cresciam no cu, como os fantasmas crescemna sombra, como remorso cresce no corao, como a ferrugem cresce no ferro ecomo a lcera cresce nos pulmes.

    O mar, cada vez mais encarapinhado, quebrava-se de encontro rocha,salpicando-a de cuspiduras espumosas e grossas, como as de um brio.

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    Com este salivar a pedra se tornava mais e mais escorregadia. J o p noencontrava resistncia.

    Peito a peito, brao a brao, lutavam os dois homens; ora escorregava um ese firmava no adversrio: ora cambaleava o outro, e restabeleciam o equilbrio.

    A luta continuava.Abraaram-se mais. Estreitavam-se com o frenesi de dois amantes moos

    que se encontram depois de longa ausncia.E lutaram!De repente, deslocou-se o ar com a detonao da queda de um s corpo.Foi uma queda para dois; rolavam formando um s vulto.Lembrava aquilo uma besta informe nas agonias da morte: os dois

    formavam uma fera.Era a mocidade fundida na clera de um velho. A fora dos vinte anos e a

    clera dos cinqenta eram o motor dois do bruto negro, que engatinhava, rolava e setorcia na lisura da pedra, um monstro marinho, fora dgua.

    A claridade fosfrica do mar, a besta movia-se em todos os sentidos etomava novas propores; parecia fantasticamente ora crescer, ora diminuir.

    A boca espumosa do velho esfregava-se pela cara do moo, segredando-lheem tom terrvel e quebrado pelo cansao estas palavras:

    Pois morrers! Miservel!...

    E mordiam-se.

    Pois morrers!

    Procuravam matar um ao outro.Lutavam!E a rocha cada vez mais escorregadia, o cu mais negro e o mar mais

    bravo.A luta tendia a enfraquecer: a fera ia sossegando; a massa bruta dilatava-se:

    a mole negra parecia diluir-se.Era o cansao.Desfaziam-se como uma nuvem negra no horizonte.Como um urso enorme e velho, arrastavam-se surda e vagarosamente para

    a borda do precipcio.Miguel se apercebera disso e reagiu: com um esforo supremo lograra tomar

    sob si o velho, ficando de gatinhas sobre ele. Tinha um aspecto feroz; o sangueescorria-lhe por entre os dentes e pelas ventas; a posio, como o olhar, eramirracionais. Nesta atitude, ia atirar-se garganta do adversrio, quando este,concentrando o resto das foras, reagiu por sua vez: com um empurro expeliu de sio moo.

    Miguel rolou pela pedra at segurar-se nas asperezas das bordas doprecipcio.

    Maffei no lhe dera tempo para mais, de um salto deitou-se ao comprido nocho, e engatinhando com ligeireza de tigre, agarrou-o pelas costas.

    Cinqenta ps os separavam do mar, e nesse ponto a pedra erainteiramente ngreme, quase cavada.

    Miguel torcia-se todo nas mos do velho.

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    De repente, um grito agudo e rpido sucedeu a uma gargalhada surda,estalada pelo cansao. Gargalhadas como s sabem dar um velho mau ou uma medoida.

    Maffei, e bruos sobre a roda, via tranqilamente rolar pelo precipcio ocorpo ensangentado de Miguel. Um sorriso cansado e triunfante encrespou-lhe oslbios esfolados, ao ouvir o rudo cavo de um corpo que cai na gua.

    A tempestade, que se preparava ameaadora, desabou encerrando oespetculo; e o mar, contente de sua presa, gargalhou com seu rir de espumas.

    Comeou a chover copiosamente.Tranqilo, como nos seus dias mais tranqilos, o velho levantou-se, sacudiu

    a roupa molhada e ps-se a andar para casa silenciosa e pacificamente, como umamenina quando volta do banho do mar.

    CAPTULO XVIII

    No dia seguinte, Maffei e a famlia abandonaram a formosa ilha, e, no seucompleto isolamento, debatia-se a casinha branca nas vascas de um incndio,ateado de propsito pelo pai e Rosalina.

    Defronte daquele chamejar doido e desapiedado, Castor, o co, uivavaplangentemente.

    SEGUNDA PARTE

    CAPTULO I

    Na clebre rua de Toledo, em Npoles, porventura mais bela hoje do que noano de 1843, poca em que sucederam os fatos que estamos narrando, figuravauma casa cinzenta com cimalhas de mrmore cor-de-rosa.

    O edifcio tinha trinta metros de altura sobre sessenta de comprimento, e, ajulgar da colorao e feitio de portas e janelas, e atentando para as folhas de acantoque ornavam o baco das colunas de dez dimetros de altura e pertencentes semdvida rica e variada ordem corntia, era talhado pela escola antiga.

    A face dianteira, posto que um tanto chata, era bem arquitetada, podendoser dividida em trs partes distintas. A central, com cinco janelas de honra e trsportas de entrada geral, sendo a do centro mais larga e mais guarnecida - e as duaspartes laterais, inteiramente iguais entre si, com trs janelas cada uma e fechandoem graciosa curva as extremidades do frontispcio.

    Destas extremidades, partiam duas alas de colunas, que, sustentando umesfrico avarandado de balastres do mesmo mrmore das cimalhas, ladearamelegante e circularmente o edifcio.

    O porto central com pilares de mrmore tambm cor-de-rosa abria para umtrio, espcie de corredor quadrado, cujas paredes betumadas com terra cozidaapresentava, em alto relevo, assuntos mitolgicos, notando-se alguma monotonia nadisposio simtrica das figuras meio humanas e meio irracionais, sendo na maiorparte fabulosas.

    O cho desse corredor, ladrilhado de pedra de diversas cores, terminava poruma ampla escadaria de pedra calcria, dividida em dois lances, que seencontravam na extremidade superior. A uma varanda gradeada com vista para o

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    corredor dava passagem para o interior da casa por uma larga e bonita porta, quecomunicava imediatamente com a sala de espera, na qual uma infinidade deestatuetas, vasos de prfiro e outros muito variadssimos objetos de arte distraiam aateno de quem l se achasse.

    Seguia-se a sala de visitas, preparada e guarnecida com gosto e rigor,sobressaindo do roxo escuro das paredes a brancura opaca dos bustos e estatuetasde jaspe colocadas de espao em espao sobre trabalhadas peanhas de basalto;magnficas mesas de sicmoro, caprichosamente talhadas, refletiam-se, pejadas dedelicadas tetias, nos espelhos oitavados com moldura de metal dourado embutidono bano; o cho, de madeira brunida, luzia como uma lmina de ao polido,refletindo o fundo artisticamente talhado das cadeiras e das mesas.

    Atravessavam-se ainda algumas casas, destinadas a sales de baile,alcovas particulares e cmaras de recreio, tais como biblioteca, sala de fumar,quarto de armas, etc., at chegar a uma enorme varanda que costeava emsemicrculo de um lado a outro toda a casa.

    Efetivamente, dessa varanda gozava-se de uma vista esplndida evariadssima: das janelas da frente devassava-se a Chiaja, Vila Realie e lados deCapo di monte; quem ai estivesse veria o formigar constante e geral da populao esentiria o confuso motim dos cafs, restaurantes, ourivesarias e casas de modas, deque j ento abundava a rua de Toledo; da envolveria agradavelmente com a vistao soberbo Palcio Real com o seu jardim beira do golfo, e os seus grupos debronze no comeo do jardim.

    Do fundo, davam as vistas sobre uma magnfica chcara, pertencente casa, bem plantada e guarnecida, tendo no centro um belo chafariz de mrmorerajado. Galgavam depois os olhos os grupos amontoados de casas e quintais, aalcanavam finalmente os pitorescos arrabaldes, anunciados pela copa de rvoresseculares.

    CAPTULO II

    No h nada to desastrado e perigoso como mudar repentinamente deposio.

    Modificam-se os caracteres mais firmes e delicados e confrangem-se ascrenas mais arraigadas; um desmoronar doloroso, um despertar de nufrago:iluses desfeitas, convices profanadas, afetos destrudos, tranqilidade nula, amorproscrito tais so os efeitos da luta desigual dos hbitos de toda vida com ocapricho vaidoso de um dia; tais so os rastros que, aps a tormenta, sobrenadam flor do oceano revolto da alma, restos de um corao que naufragou.

    Grosseira e estpida a que leva o homem a trocar a paz segura do lar pelasuposta fortuna.

    Foi isso que sucedeu famlia do pescador - enriqueceu.Para alguns, enriquecer naufragar, no em alto mar, porm em alta

    sociedade.O vcio a fome desse naufrgio.Maffei enfronhara-se na opulncia como uma casaca alheia: sentia-se mal;

    incomodavam-lhe as mangas compridas demais, porm a tudo fechava os olhos,contanto que desses sacrifcios resultassem para ele dignidades e consideraes.

    Era o seu sonho dourado.E com essas honras e com esses supostos ttulos acharia ele a felicidade?

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    No, de certo, porque a verdadeira felicidade incompatvel com o rudo e ofulgor. No, porque ela tranqila, singela, econmica a alheia a tudo que brilhante e espetaculoso.

    A felicidade, como o mais neste mundo, relativa, e s pode subsistir dentrode seus competentes limites.

    Maffei, cego pela ambio, buscava uma felicidade alheia. Desgraado!...fatalmente seria vtima da sua cegueira, tanto quanto uma ave que tentassemergulhar ou um peixe que quisesse voar.

    A casa cinzenta da rua de Toledo era propriedade do antigo pescador.Com algum jeito, conseguiu introduzir nela o jogo elegante; receber todos os

    sbados e gastar todos os dias.O Ouro para o parasita o que o im para o ferro: em pouco tempo,

    encheram-se os sales de Maffei. E no meio daquela gente que o adulava, o ricoburgus sentia-se grande, invejado e respeitvel..

    Entretanto, aquela roda se desenvolvia e multiplicava com a prodigiosafecundidade da larva.

    Mas donde vinha essa gente?No sei!... A podrido que responda donde lhe vm os vermes.Tudo neste mundo tem a sua conseqncia, o seu squito prprio de

    misrias, o seu acompanhamento natural e espontneo - a glria tem a vaidade; oamor o egosmo; a podrido o verme. a lei fatal dos contrastes e dos extremostocados: no h sentimento que no tenha uma extremidade na terra e outra no cu,um p no bero e outro no tmulo, um olho na luz e outro na treva.

    Foi por isso que, a cabo de trs anos, Maffei tinha com hericos esforos,cevado, relacionado e habituado aos costumes de sua casa uma roda de homenselegantes, que fumavam, bebiam e jogavam custa dele.

    Houve que lhe proporcionasse ocasio de especular com os seus bens:triplicou-os.

    J era poderoso e ridculo, antiptico e adulado; justo viesse a ser rico edesgraado.

    E, com efeito, passava os dias entregue sempre a esse cogitar aborrecido,que produz a preocupao doentia dos homens excessivamente ambiciosos; nadadesfrutava, nada o distraa, nada podia arranc-lo das profundezas de suaspreocupaes; vivia a mergulhar no fundo dessa cisma constante e estril, que fazde um homem um bicho insuportvel.

    Maffei seria insuportvel, se no fosse rico.Mesmo durante o sono, o pobre diabo no vivia menos apoquentado: nessa

    segunda existncia aturava coisas horrveis! s vezes, numa especulao, perdiatodos os bens e via-se a esmolar inteiramente pobre com a filha; outras vezes, davapara roubar e era preso como ladro, condenado s gals e coberto de grilhes epancadas; noutras ocasies era Miguel que lhe aparecia formidvel, saindo do mar,cheio de sangue, de limo e de clera, a exprob-lo como se espancasse um co; e,coisa mais singular, Maffei, que acordado s se lembrava de Miguel com indiferenae desprezo, durante o sono temia-o covardemente, e deixava-se bater por ele,trmulo e suplicante a seus ps, confessando as prprias culpas e reconhecendo arazo da parte do adversrio. Um dia, Rosalina afigurou-se-lhe descomposta e sempudor a injuri-lo; outra vez, foi enforcado e seu carrasco era Cristo, que do alto docadafalso, potico, louro, cheio de bondade, sorria piedosamente para ele; cometia,s vezes, sacrilgios e ento acordava em gritos e prantos; enfim, Maffei durante o

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    sono sofria horrivelmente dominado e combatido por um inimigo tremendo e mau,que o fustigava e repelia apesar de sair dele prprio.

    Queremo-nos referir a esse eu, que durante o sono sai de ns e parteconstitui livremente a sua individualidade, pensando, praticando e resolvendo muitoa seu bel-prazer, sem nos ouvir, sem nos consultar.

    Vezes h que, durante o sonho, a despeito da nossa honra, roubamos, adespeito da nossa coragem, choramos aos ps de um inimigo, e a despeito donosso amor, matamos o prprio pai ou irmo. E o eu independente e arbitrriodos sonhos faz-nos caprichosamente assassinos, ladres e covardes, sem por issoter nenhuma responsabilidade ou castigo.

    Por outro lado, Rosalina transformava-se de dia para dia. J no dava maisa mais plida idia da antiga camponesa, formosa e lou, cheia de singela ternura,amada, mulher na idade, criana na inocncia. Alm da beleza, nada mais restavadesse encantador mais divino que humano, mais anjo que mulher, desse ente queoutrora com a sua garganta e o seu corao incensava de poesia e cantos matutinosa casinha branca.

    Fizera-se elegante e no sem trabalho.Teve de vencer certos obstculos renitentes como a linguagem, a princpio,

    depois os movimentos, a voz, o olhar, o sorriso, tudo, toda essa beleza foranecessrio desmoronar, e com que dificuldade! Para sobre as runas dela construir-se outra beleza mais falsa, mais cara e menos rara a elegncia. A elegnciacomea sempre onde a natureza acaba, uma viciosa continuao pelo homem.

    As regras do canto, os passos da dana, a msica, os preceitos decivilidade, a distrao afetada, a gramtica so coisas fceis de aprender nameninice, porm obstculos assustadores na idade em que j se no tem respeitoaos mestres.

    Todavia, Rosalina venceu todas as dificuldades.Agora, no a incomodavam mais os vestidos justos, decotados e de enorme

    cauda, afizera-se aos sapatinhos moda francesa, e o triunfo seria completo se, devez em quando, sob os invlucros de seda e de rendas bordadas, no quisessem asdesenvoltas carnes da outrora camponesa, proclamar sua independncia, violandocolchetes e estalando alguns pontos mais delicados do vestido.

    Quanto no custou habituar aquelas belas mos to morenas e togordinhas s luvas apertadas!

    Os dedos repeliam os anis, o pescoo o colar, os braos a pulseira!Como no suspiravam os delgados ps pelos sapatos frouxos com que

    dantes corriam?E os cabelos? Os belos cabelos pretos de Rosalina, que dantes to

    vaidosamente se ostentavam ao sol com seus reflexos de azul-ferrete? Coitados!Choravam agora escondidos e presos nos caprichosos penteados cheios de floresartificiais e pedrarias. Mas na sua raiva, tinham razo os cabelos, que to bonitoscomo aqueles, compravam-se falsos penteados; porm to belos cabelos comodantes mostrara Rosalina, s os pudera ostentar quem os possusse naturais.

    Em suma, Rosalina j no era uma rapariga, era uma senhora.Conhecia todos os segredinhos das salas, j sabia ostentar um sorriso

    fingido as visitas de cerimnia, aturava maadas sociais com aparente alegria,ajeitava a fisionomia a sorrir e ficar triste, segundo a ocasio, como impe a sbiadelicadeza, tinha amizades convencionais, ares de proteo e tinha tambm sempreengatilhado nos lbios um formidvel Oh! para todas as pessoas que lhemereciam respeito e acatamento.

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    Estava completa a obra.O ouro derretera-se, dele levantaram-se as duas espirais de fumo

    Civilizao e Hipocrisia. Estas duas foras combinadas possuem um fludo capaz detransformar um anjo em mulher e uma mulher em demnio.

    Rosalina respirou esse fludo e aprendeu a grande cincia da vida sabiaesquecer, sabia odiar e sabia mentir.

    Quando a gente chega a conhecer tanta coisa no pode mais, nem precisaaprender o que ser boa e honesta. Maffei cada vez estava pior.

    A despeito da tua to prspera fortuna, entristecia progressivamente comoum velho urso de feira; vivia cada vez mais concentrado e sombrio, procurando oisolamento e a solido.

    Afetava uns instantes de prazer quando se metia na roda dos amigos;chegava mesmo, com fora de vontade, a arranjar uma espcie de sorriso artificial,com que os obsequiava; consistia essa espcie de sorriso em dilatar os lbios,avincar as peles franzidas do rosto, que lhe sustentavam as mandbulas, e por entreos dentes soprar uns sons bestiais, que se podiam classificar entre uma notadesafinada de clarinete e o ronco gutural de um porco.

    Estava no entanto civilizado tinha cabeleireiro prprio, vestia-se comdistino, bebia licores que estragam o estmago e o crebro, e jogava to bemcomo qualquer fidalgo de alta linhagem.

    Que faltava, pois?Simplesmente duas coisas esperar mais algum tempo e casar a filha com

    algum titular de pura nobreza e reumatismo gotoso. Bela expectativa!Da famlia, foi ngela quem menos se modificou. Cada vez mais devota,

    encerrava-se no quarto, indignada contra tudo e contra todos. Que no aprocurassem! No se queria comunicar com pessoa alguma. O que, digamos depassagem, sobremaneira satisfazia o ex-pescador, que pensava consigo: Ora quediabo vai fazer nas salas esta velha ridcula e burguesa, seno incomodar a mim edivertir os mais? Antes trate ela de liquidar este restinho de vida, que para pouco ounada lhe poder servir.

    Contudo, ia a boa me ngela bocejando as suas interminveis oraes etransformando insensivelmente a religiosidade em mania. Mais dois passos edespenhava com certeza aquela carga de ossos no idiotismo.

    CAPTULO III

    Fatal metamorfose!Maffei e a filha rolavam pelos despenhadeiros da sociedade; dera-lhes o

    primeiro empurro a cobia, a posse o segundo, depois o orgulho e finalmente ovcio. No cair vertiginoso, tentaram, baldadas vezes, agarrar-se s asperezas doprecipcio e no conseguiam mais que sujar as mos, porque a lama faz escorregare suja.

    Afigurava-se-lhes, entretanto, estarem a voar para cima; tm destes efeitossingulares as grandes quedas. s vezes supomos subir quando evidentementecamos. Viam tudo luzir em torno deles, sem se lembrarem que a lama tambm temo seu brilho, em lhe batendo a luz... do ouro.

    E caam! caam sempre, porque o mal como a lua - cresce ou diminui,nuca estaciona.

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    Uma noite, seriam duas da madrugada, os sales da casa da rua de Toledoreverberavam ao claro aristocrtico das mangas multicores de cristal.

    Era noite de baile.O baile tem um qu de morcego - s aparece noite e rouba as cores s

    raparigas.Havia grande folgana na casa, porque muito se ria e danava; a festa

    chegara s fases do frenesi e da loucura.Em uma das salas, porm, lvido, monstruoso e feroz, encerrado ali como

    uma fera na jaula, o jogo devorava, silenciosamente, terras, palcios, jias, dinheiroe reputao; era um tragar de jibia - engolia sem mastigar.

    O silncio indicava que o monstro fazia a digesto surda e pesada, pormfortssima desgasta o ouro e o diamante com a imperturbalidade e pachorra deum cnego velho e gastrnomo, que rumina, com apetite e mtodo, o fruto dacaridade do povo.

    A conscincia sentia vertigens de olhar por muito tempo para aquele grupo,espcie de autmato, movido pela cobia e governado pela fora abstrata do vcio.

    No meio da mesa, brilhava como um centro planetrio, o monte de moedasde ouro, em torno do qual toda a fora e ateno dos circunstantes gravitavamimpacientes e desordenadas.

    Era o centro de gravidade das almas daqueles miserveis; para eleconvergiam todos aqueles sentidos cariados e todos aqueles coraes sujos - ptria,famlia, aspiraes, glria, tudo, tudo se resumia no punhado de moedas.

    No se ouvia palavra.Como esttuas movedias, atiravam boca escancarada da fera os seus

    bens, os do filho, o futuro da prpria famlia e da alheia.E a fera, como uma vala de cemitrio, ia sorvendo em silncio tudo o que lhe

    lanavam, enquanto todos jaziam a meditar, que tambm a gente medita para fazero mal.

    Todavia, toda e qualquer conscincia tem horror ao jogo; a ningumincomoda tanto o tapete verde como ao prprio jogador - enquanto lana sorte oque possui, calca aos ps a pobre conscincia, que, ao lado das escarradeiras,dorme bria e envergonhada debaixo da mesa.

    O salo principal do baile oferecia um espetculo inteiramente oposto ao queacabamos de esboar.

    No se ouvia aqui o ressonar pesado do jogo, sentia-se a febre vertiginosada dana; aqui era tudo delrio e loucura. A atmosfera morna, pesada, abafadia, ede um branco opaco, enervava a cabea e dilatava os sentidos.

    A atmosfera de um baile daquela ordem, no seu apogeu, afetasingularmente a economia animal dos moos. O corao como se derrete ao calordos galanteios, dos perfumes, das luzes, dos vinhos, dos vapores estimulantes queexalam os corpos cansados das mulheres e derrama-se por todo o corpo como umfiltro diablico e sensual, que percorre e excita os tecidos orgnicos, precipitando assuas competentes funes; o exerccio da valsa d ao corao formas extravagantese caprichosas f-lo pular, estremecer e palpitar; e, conforme as impresses querecebe, informa-se, dilata-se, encolhe e chega a tomar formas.

    A gente mais facilmente ama nessas ocasies porque a atmosfera e ocansao aceleram os fenmenos vitais. Em tais circunstncias uma resistncia quase impossvel - afinal o corpo descai e languesce voluptuosamente; percorretodos os membros uma moleza gostosa e doentia; sentimos ccegas nos cantinhosda boca e no interior das ventas; o rosto afogueia-se, desfalece a energia; o hlito

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    queima; os dedos criam uma sensibilidade igual da lngua; o vtreo dos olhos raia-se de sangue e faz-nos ver tudo por um prisma vermelho e fantstico.

    O pio no produz efeitos to deslumbrantes.Quanto mais a gente dana, quanto mais se agitam os membros estafados,

    tanto mais se envenena o ar; as flores terminam a obra roubando o pouco oxignioque resta na atmosfera. Resulta de tudo isto um ar viciadssimo e to gasto econdensado que se pode comer em vez de respir-lo.

    Quanto mais tempo dura o baile e com ele a aglomerao e o exerccio,tanto maior e mais veemente a necessidade de respirar, e ento sorve-se comsofreguido o ar e o p j muito usados por todos.

    Os pulmes aspiram e expelem sempre o mesmo ar e o mesmo p.O ar como um pensamento e o pulmo como um crebro, acontece que

    o mesmo ar penetra, como uma idia geral, todos os pulmes, e esse ar ou essaidia nica corre toda a sala, entra por todos, domina quem a recebe e acaba porformar, identificando toda a sociedade - um s pulmo e uma s cabea, isto , umas vontade e um s querer.

    Eis a o que era um baile em casa de Maffei. Simplesmente uma reunio demoos de ambos os sexos, metidos numa sala bem fechada, onde danavam,pulavam, cansavam e apodreciam, como muitas mas em um cesto, onde bastante haver uma podre para contaminar e corromper as outras.

    Esse contato infernal era uma lgica conseqncia do ar viciado e dasimpatia.

    E tanto assim que em algumas ocasies no queremos tomar parte numdivertimento que nos parece mau, e, uma vez entrados, empenhamo-nos nele tantocomo os que l estavam; veja-se de parte de um baile e este se nos afigurar umareunio de doidos. Num combate se verifica a mesma coisa - travada a luta sotodos bravos; nos crceres so todos maus; nos hospitais so todos doentes; em umnaufrgio so todos religiosos e assim por diante.

    O ar sempre transmite a quem o respira o carter do lugar em que se acha,como no leite a ama transmite criana, que amamenta, todos os seus males fsicose morais.

    Para fazer um homem mau bastante obrig-lo a respirar com os maus.E h quatro anos os pulmes da bela Rosalina enchiam-se com o

    mesmssimo ar que uma roda m e corrupta at as pontinhas dos cabelos, sorvia eexpelia por todos os poros.

    CAPTULO IV

    Mas que roda era essa to esquisita?Donde vinha semelhante gente, e para onde se destinava?Vinha do nada e caminhada para o nada, pouco mais ou menos...

    De quem ou de que se compunha?

    De restos.Expliquemo-nos.Em todas as grandes capitais, h deste gnero de bomios aristocrticos,

    que Dumas Filho, referindo-se aos de Paris, intitula Demi-Monde, espcie de ilhaflutuante, que bia flor da sociedade universal.

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    Em Npoles, essa sociedade de ouropel florescia em 1846, comescandalosa aceitao, e, sustentando-se por necessidade, ia caminhando,podemos dizer, com regularidade, substituindo a nobreza pelo dinheiro e o dinheiropela nobreza, e, na falta de algum destes agentes, socorrendo-se formosura e mocidade, na ausncia dos quais ainda lanava mo, como ltimo recurso, dotalento de savoir-vivre e da arte de se meter em toda parte e de saber tirar partido detudo.

    Essa singularssima e perigosa prole principiou do seguinte modo: - Umfidalgo arruinado, depois de atirar pela janela do desperdcio o ltimo centavo e, nopodendo abdicar para sempre dos seus inveterados hbitos de opulncia, procurouum burgus rico com o fim de, muito em segredo, nele se arrimar; o burgus, poroutro lado, tambm precisava do auxlio da nobreza, para ter importncia e subir;reunidos satisfaziam mutuamente o til e o agradvel. Fundiram-se.

    Dessa combinao resultou luz e movimento. O paraltico prestou olhosao cego, e o cego pernas ao paraltico. E assim puderam ver e andar.

    Ora, tudo aquilo que v e anda, pode ir para diante e suscetvel deprogresso.

    Foi o que sucedeu prosseguiram.Pelo caminho foram atraindo com a luz da sua idia os companheiros que

    andavam desnorteados e erradios procura de um rumo.A luz transformou-se em farol os nufragos sociais engrossaram o grupo.As mulheres, que se desacreditavam na alta sociedade, vinham, repelidas

    pelos competentes maridos e pelas competentes famlias, refugiar-se nessa roda; osfilhinhos, ou melhor, as causas inocentes desta debandada, chegavam juntamentecom as mes repelidas e com elas se educavam no mesmo meio.

    Estas malfadadas crianas cresciam e, quando, por fraqueza ou por falta depundonor, no fugiam envergonhadas, formavam a parte moa da SociedadeFlutuante. As vagas dos maridos eram razoavelmente preenchidas e jamais os filhosconheciam os verdadeiros pais.

    Era mais uma roda de enjeitados do que uma roda social.Compunha-se especialmente de destroos e de vergonhas ali o que era

    um resto era um embrio ou tinha j deixado de ser ou ainda no era; ningumtinha um lugar definitivo, porque logo que chegasse a alcan-lo desertavaincontinenti.

    Podia tambm aquilo ser considerado como um curso preparatrio;habilitavam-se ali para poder galgar um lugar fora, e s na hiptese de nadaencontrar exteriormente, recorriam Sociedade Flutuante, como remdio extremoou como ltimo porto de salvao.

    E em verdade que, at certo ponto, achavam os fugitivos, na obscuridadedessa roda, abrigo seguro para as suas vergonhas e pesares. Esses eram osdesesperanados.

    Conclu-se que aquilo podia ser ou um tmulo, de qualquer modo seriamtrevas, semelhana do homem, cujos extremos so sempre sombras; podia ser umprincpio ou um fim, porm nunca um meio, isto , uma posio social.

    Em pblico, todos odiavam essa sociedade; em particular muitos aprocuravam e ningum, que pblica ou particularmente, queria, por gosto, ali ficarpara sempre. Quem ali permanecia era por no obter absolutamente outro recurso.

    Desse feito, pensava Maffei, e tinha para si que o casamento de Rosalinacom um fidalgo arruinado abriria na nobreza uma brecha assaz larga para ele evadir-se tambm. Um fidalgo, quando empobrece, continua o burgus a pensar, em

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    geral cai e com o choque abre na sua classe uma fenda por onde vai se introduzindoa burguesia.

    Frgil e desgraada coisa a nobreza que precisa de dinheiro para norachar.

    Era com essa fenda que contava o antigo pescador. E contava muito bem,porque os homens, ao contrrio dos gases, quanto mais pesados mais sobem.

    A Sociedade Flutuante avultava de dia para dia; ultimamente, tornara-se atbastante conhecida e um tanto censurada, e, se bem que afetasse tima aparncia,a polcia tinha-a de olho.

    Os seus mais perigosos detratores eram justamente os seus prpriosadeptos diziam mal uns dos outros e, a falta que este, com mil cuidados seesforava por encobrir, aquele lha devassava pela sorrelfa.

    Iam contudo vivendo e alis regularmente.O maior desejo das raparigas que l caiam era casar fora dessa roda ou

    com algum que ali estivesse por mera curiosidade, como simples amador. Se ologravam, saam sem sequer voltar para trs a cabea desapareciam por umavez, e faziam bem.

    Quem mais gostava da Sociedade Flutuante eram os rapazes solteiros. Os amores, como diz Dumas, so a mais fceis do que na alta sociedade e maisbaratos do que na baixa.

    Isto compreende-se com os amadores, com os que a freqentavam poresprito de - curiosidade, espcie de scios honorrios, porque com os outros, isto