uma etnografia da devoção a são benedito no litoral norte de são
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA PROGRAMA DE POS-GRADUAO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
GIOVANNI CIRINO
Uma etnografia da devoo a So Benedito
no litoral norte de So Paulo
SO PAULO 2012
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GIOVANNI CIRINO
Uma etnografia da devoo a So Benedito
no litoral norte de So Paulo
Tese apresentada ao Programa de Ps-
Graduao em Antropologia Social da
Faculdade de Filosofia Letras e Cincias
Humanas da Universidade de So Paulo
para obteno do ttulo de Doutor em
Antropologia Social.
Orientador:
Prof. Dr. John Cowart Dawsey
SO PAULO
2012
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Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial desta obra, por qualquer meio convencional
ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
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Nome: CIRINO, Giovanni.
Ttulo: Uma etnografia da devoo a So Benedito no litoral norte de So Paulo
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da Faculdade de
Filosofia Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de
Doutor em Antropologia Social.
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof. Dr. ____________________________ Instituio: ___________________________
Julgamento__________________________ Assinatura: ____________________________
Prof. Dr. _____________________________ Instituio: ___________________________
Julgamento___________________________ Assinatura: ____________________________
Prof. Dr. _____________________________ Instituio: ___________________________
Julgamento____________________________ Assinatura: ___________________________
Prof. Dr. _____________________________ Instituio: ___________________________
Julgamento___________________________ Assinatura: ____________________________
Prof. Dr. _____________________________ Instituio: ___________________________
Julgamento___________________________ Assinatura: ____________________________
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Aos meus pais consanguneos Giuseppina Laurienzo Cirino
Antonio Cirino
Aos meus pais adotivos Maria Lcia Prado
Jos Mauro Rodrigues Rocha
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Agradecimentos Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (Cnpq), Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (Fapesp) pelo financiamento da pesquisa de campo dentro do Projeto Temtico Antropologia da Performance: Drama, Esttica e Ritual (06/53006-2). Ao Departamento de Antropologia e ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social. Tv-Usp que financiou a pesquisa para o documentrio Sobre a Congada de Ilhabela (2004 2011), especialmente Pedro Ortiz e Eduardo Kishimoto pelo convite para participao na pesquisa e roteiro do documentrio e pela confiana depositada para a composio da trilha sonora do Cozinherio Negro. Ao Centro de Biologia Marinha (Cebimar) e ao Alvaro Esteves Migotto pela recepo e hospedagem. Ao meu orientador John Cowart Dawsey pela inestimvel inspirao durante este e outros trabalhos. Vagner Gonalves da Silva e Marianna Francisca Martins Monteiro pelas sugestes valiosas dadas ao relatrio de qualificao. A todos os colegas do Ncleo de Antropologia da Performance e do Drama (Napedra). Especialmente aos interlocutores Regina Plo Mller, Romain Bragard, Danilo Paiva Ramos, Alice Villela, Eduardo Nspoli, Ana Lcia Ferraz, Marcos Vincius Malheiros, Joo Luis Uchoa, Carolina de Camargo Abreu, Ana Lcia Pastore Schritzmeyer, Ana Letcia de Fiori, Denise Moraes Pimenta, Diana Paola Gmez Mateus, Ana Cristina Oliveira Lopes, Vanilza Jaculdino Rodrigues, Ana Goldenstein Carvalhaes. Aos colegas da Universidade Estadual de Londrina (Uel), Celso Vianna Bezerra de Meneses, Martha Ramires-Galvez, Elena Andrei, ao Grupo de Estudos de Novas Tecnologias e Trabalho (Gentt), especialmente Simone Wolff, Savio Cavalcante. Aos colegas do grupo Pesquisa em Antropologia e Msica (Pam). Rose Satiko Gitirana Hikiji, Paulo Menoti del Picchia, Edson Tosta Matarezio Filho, Ewelter Rocha, Lusa Valentini, Frederico Barros, Klaus Wernet, Luciana Ferreira Moura Mendona e Carla Delgado de Souza. Kilza Setti pela recepo e abertura do Acervo Memria Caiara, Paulo Dias e ao Cachuera! pela interlocuo. Iracema Dulley pelo compartilhamento de material de pesquisa e valiosa interlocuo. s Paula Montero, Andr-Kees de Moraes Schouten, Adriana de Oliveira, Alexandre Kishimoto e Rubens Alves da Silva pelas leituras e crticas feitas ao projeto e pesquisa em si.
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So Benedito! Aos homens e mulheres que fazem a Festa de So Benedito em Ilhabela. Aos congueiros. Especialmente Maria Lucia Prado (Mal), Jos Mauro Rodrigues Rocha (Z), Jos Devanir Ribeiro de Lima (Didi), Joo Batista Dias, Adriano Leite, Alcedino Jos da Cruz (Dino), Valdirene Leite dos Santos (Dina), Jos de Alcio, Benedito Hiplito de Carvalho (Dito de Pilaca), Benedito Geraldo dos Santos (Dito de Rosa), Rosa Reis, Flavio Maia dos Reis, Solidnio Narciso dos Reis, Maximino Manoel dos Santos, Iracema Frana Lopez Corra (Dona Ded), Maria da Silva Albuquerque (Dona Isanil), Isildo Souza Tataglione, Ivanildo Ferreira dos Santos, Adenilson de Oliveira Santos (Tico), Aline Cristina Garcia, Ana Esperana Silva, Ana Firmino da Silva, Bruna Bento Machado, Cleber dos Santos, Daniel Roberto Silvestre (Pitu), Geraldo Gomes Pinna, Giba Pinna, Gilmar Pinna, Laureci, Licinha Santos, Luciano dos Santos Souza, Lcio Antonio Siqueira de Jesus, Milena de Carvalho Taboada, Mrcio dos Santos Batista (Maio), Marcos Cardial, Maria Claudia Frana Nogueira, Mara Conceio de Arajo, Maximino Manoel dos Santos, Mercedes dos Santos, Mercedes Maria da Cruz Santos , Nair Tanaka, Nivaldo Simes, Noemi Petarnella, Pedro, Aydano da Silva, Renivaldo da Silva, Silvana Domingues (Nega da Capoeira), Dom Vilson Dias de Oliveira, Wanderlei Leite Cruz e muitos outros, sem os quais este trabalho no teria sido possvel. Aos amigos e colegas Maurcio Fiore, Paulo Arthur Malvasi, Fernanda Luchesi, Arieh Wagner, Enrico Spaggiari, Rodrigo Gomes Lobo, Incio de Carvalho Dias de Andrade, Iara Maia Covas, Rosenilton Silva de Oliveira, Samantha dos Santos Gaspar, Luis Felipe Kojima Hirano, Camila Mainardi, Jacqueline Moraes Teixeira, Jlia Goyat, Marina Barbosa e Silva, Marisol Marini, Michele Escoura, Milena Estorniolo, Raphael Sabaini e Rebeca Ferreira, Pinduca e Tikinho. 451BSV Production pelo suporte tcnico e tecnolgico. Rogers Dias Nesti e Mrcio Bonoli. Aos meus pais Giuseppina Laurienzo Cirino e Antonio Cirino pelo suporte, amor e pacincia essenciais para qualquer ser humano. Helena Cristina Franoso pelo apoio e incentivo constantes que me ajudaram nos eventuais momentos de fraqueza e indeciso. Voc me ajudou a ver o quanto importante a pacincia e a harmonia.
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No tenho dinheiro mas tenho um pouquinho de coragem. s vezes, a coragem sai porque voc se mete num lugar que tem alguma coisa.
[Maximino Manoel dos Santos. 2005]
Pois no somos tocados por um sopro de ar que foi respirado antes? No existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram?
[Walter Benjamin. 1940]
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Resumo O trabalho aborda a Festa de So Benedito realizada no municpio de Ilhabela (litoral norte de So Paulo). A partir da atuao em roteiro e pesquisa no documentrio Sobre a Congada de Ilhabela (Eduardo Kishimoto, TV-USP, 2004 2010) a presente etnografia busca dar conta dos vestgios histricos que se encontram no entrecho procurando iluminar as relaes que se apresentam imbricadas na Festa. Esta abordagem move-se em frentes que procuram dar conta, de um lado, dos eventos supostamente ocorridos referenciados na Congada, e de outro lado, das reverberaes em conflitos e tenses vividos em Ilhabela atualmente. Toma-se a Congada enquanto uma conveno, um resultado de diversas indexaes produzidas pela prtica seus agentes ao longo dos ltimos trezentos anos. A Congada representa os conflitos entre mouros e cristos. A encenao fala de guerra enquanto o contexto no qual se encena apresenta-se em forma de festa. Existe, portanto, uma complementaridade entre o contexto representado e o contexto no qual se representa. Palavras-chave: cultura popular, misses, So Benedito, congada, marimba, documentrio.
Abstract This paper addresses the St. Benedicts Feast yearly held in the municipality of Ilhabela (north coast of So Paulo). From the screenplay and research activities in the documentary Sobre a Congada de Ilhabela (About Ilhabelas Congada) (Eduardo Kishimoto, TV-USP, 2004 2010) this ethnography investigates some historical remains found in the plot looking to illuminate the intertwined relationships that are present in the St. Benedicts Feast. This approach moves in fronts to try to make sense on the one hand, the events allegedly occurred and referenced in the Congada, and on the other hand, the reverberations of conflicts and tensions experienced in Ilhabela today. We take the Congada as a convention, a result of several indexing agents produced by the practice over the last three hundred years. The Congada represents the conflict between Moors and Christians. The staging speaks of war while the context in which it comes is presented as party. Therefore, there is a complementarity between the impersonated context and the context in which it represents. Keywords: Popular Culture. Missions. St. Benedict. Congada. Marimba. Documentary.
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Crditos das Ilustraes Captulo 5 Lista de Fotografias Foto 1. Close da imagem de So Benedito, Il Nero, da Igreja Matriz Nossa Senhora DAjuda (Foto do autor). Foto 2. Bandeira de So Benedito rodeada por flores. Objeto ritual carregado nas antigas Folias do Santo. Atualmente mantida e adorada na Festa. (Imagem extrada do documentrio Sobre a Congada de Ilhabela). Foto 3. Imagens duplicadas do santo no altar principal da Igreja de So Benedito, Praia Grande, Ilhabela. (Foto do autor). Foto 4. Oratrio de So Benedito acompanhado de caf e cachaa. Casa de Milardia. (Foto do autor). Foto 5. Assentamento para So Benedito, casa de Isalva. O santo aparece triplicado em duas imagens, mais a bandeira (dobrada). frente das imagens a Panela da Sorte e da Fartura. (Foto do autor). Foto 6. Bandeira de So Benedito sendo hasteada aps o levantamento do Mastro na abertura da Festa (Foto do autor). Captulo 6 Lista de Imagens Imagem 1. Vila de So Sebastio. Jean Baptiste Debret. 1827. Imagens (de 2 a 6). Ilhabela em sequencia de aproximao do centro histrico, Vila, local onde se realiza a Festa de So Benedito. (Imagens http://maps.google.com.br/maps. 15/01/2012). Imagem 7. Diviso dos trechos urbanos de Ilhabela onde se pode observar o padro da ocupao urbana na orla ocidental (Beni, 2005: 75). Imagem 8. Imagem de satlite da Ilhabela. Pode-se observar o padro da ocupao do territrio e os bairros mais afastados da orla martima continental e algumas comunidade ao Sul (Bonete) e Leste (Castelhanos). (Fonte IBGE, 2005). Lista de Fotografias Foto 1. Igreja de Nossa Senhora DAjuda e Bom Sucesso de Ilhabela enfeitada para a Festa de So Benedito. Foto 2. Em detalhe a esttua do santo localizada esquerda ao lado das escadarias (Fotos do autor). Foto 3. Igreja Nossa Senhora DAjuda ao fundo e o prdio do Frum e Cadeia em primeiro plano, provavelmente na dcada de 1940. Foto 4. Igreja vista da rua Washington Luiz, no final da dcada de 1950. (Fotos gentilmente cedidas por Adrale). Foto 5. A Igreja Nossa Senhora DAjuda vista da Rua Washington Luiz, e direita, atrs da vegetao, o antigo prdio da Cadeia e Frum, atual Sede do Parque Estadual de Ilhabela. Foto 6. Rua Dr. Carvalho, a rua da praia, dcada de 1950 (Foto gentilmente cedida por Adrale).
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Foto 7. Fotografia atual da mesma rua (Foto do autor). Foto 8. Rua da Padroeira, a rua do Cruzeiro, dcada de 1940 (Foto gentilmente cedida por Adrale). Foto 9. A mesma rua numa fotografia atual. (Foto do autor). Foto 10. Vista atual da rua Dr. Carvalho, a rua da praia. O imvel ocre prximo ao centro da foto a esquina com a rua So Benedito, onde se localiza a Secretaria de Cultura. Foto 11. Vista atual da rua So Benedito, ou rua do meio, com suas lojas, restaurantes e sorveterias (Fotos do autor). Foto 12. Antiga sede da Colnia de Pescadores de Ilhabela Senador Vergueiro, local onde era realizada a Ucharia de So Benedito. Atualmente funciona um comrcio de livros, jornais e revistas (Foto do autor). Captulo 7 Lista de Fotografias Foto 1. Fidalgo do Rei dando sua embaixada, ao fundo se v o exrcito de baixo (Foto Ronald Kraag). Foto 2. Evolues dos Fildalgos ao meio e os Congos de baixo ao reu redor (Foto Ronald Kraag). Foto 3. Rei, Rainha, ao lado do Rei, sem farda, Memas. Atrs do Rei marimba e atabaques e a audincia que assiste atenta as evolues dos Congos (Foto Ronald Kraag). Foto 4. O Embaixador de Luanda ataca, espadas se chocam, os Fidalgos defendem o Rei do inimigo invasor (Foto Ronald Kraag). Foto 5. Os Fidalgos de azul ao centro com os Congos de vermelho ao redor na rua da Padroeira, em frente ao cruzeiro (Foto Ronald Kraag). Foto 6. Os Fidalgos executam uma das coreografias com as quais atravessam o campo de batalha, na rua So Benedito (Foto Ronald Kraag). Fotos 7 e 8. Os chapus dos Fidalgos (Foto Ronald Kraag). Fotos 9 e 10. Os chapus dos Congos (Foto Ronald Kraag). Foto 11. As mulheres da Ucharia servem os convidados (Foto Ronald Kraag). Foto 12. J nas mesas os convidados e congueiros servem-se da comida do santo (Foto Ronald Kraag). Foto 13. Jodelie, o Cozinheiro-Chefe da Ucharia (Foto Ronad Kraag). Foto 14. Dona Isalva, organizao da Ucharia (Imagem extrada Sobre a Congada de Ilhabela). Foto 15. Milardia, coleta e arrecadao (Foto do autor). Foto 16. Procisso com o Mastro de So Benedito na sexta feira de abertura da Festa (Foto do autor). Foto 17. A procisso do Mastro acompanhada de msica com a marimba, atabaques e cantos (Foto do autor). Foto 18. Levantamento do Mastro de So Benedito na abertura da Festa em 2010 (Foto do autor). Fotos 19 e 20. Concertada sendo servida na sexta feira de abertura da Festa de So Benedito aps o levantamento do mastro e hasteamento da bandeira (Imagens extradas Sobre a Congada de Ilhabela ). Foto 21. Missa Conga 2010. Igreja repleta de congueiros que se posicionam frente da imagem de So Benedito (Foto Ronald Kraag). Foto 22. Momento do ofertrio quando os congueiros entram trazendo suas oferendas, So Benedito, Nossa Senhora Aparecida e Santa Bakita (Foto Ronald Kraag). Foto 23. Abaixo a marimba tocada em frente imagem de So Benedito e ao fundo o altar de Nossa Senhora das Dores (Foto Ronald Kraag).
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Foto 24. Missa Conga 2010. Altar com oferendas, frutas e flores (Foto Ronald Kraag). Foto 25. Milardia na Missa dos Congos (Foto Ronald Kraag). Fotos 26 e 27. Procisso de So Benedito em 2006 acompanhada pela corte do Rei (Fotos do autor). Fotos 28 e 29. A Procisso de So Benedito Meia Lua refletida nas vitrines das lojas da Vila. Reflexo e imagem, o santo e a mercadoria: convivncia nem sempre harmnica (Imagens extradas Sobre a Congada de Ilhabela). Fotos 30 e 31. Ensaios da Congada Mirim realizados em 2010 em frente ao Per, rua So Benedito (Fotos do autor). Foto 32. Apresentao da Congada Mirim na sexta-feira de abertura da Festa de So Benedito em 2010 (Foto do autor). Foto 33. Na Congada Mirim, o Embaixador vai preso e levado presena do Rei (Foto do autor). Captulo 8 Lista de imagens Imagem 1. Toque de guerra. Seis exemplos de opes e flutuaes rtmicas utilizadas no toque. Imagem 2. Toque de canto. Seis exemplos de opes e flutuaes rtmicas utilizadas no toque. Imagem 3. Partitura aproximada da cano Santa Luzia Imagem 4. Partitura aproximada da cano Santo Benedito Lista de Fotografias Foto 1. Marimba feita pelo luti Leopoldo Ferreira Louzada, Rio do Ouro, Caraguatatuba, 1989 (Foto Kilza Setti, Acervo Memria Caiara). Foto 2. Marimba e atabaque, So Francisco So Sebastio, 1972 (Foto Kilza Setti, Acervo Memria Caiara). Foto 3. Detalhe da marimba (executada pelo luti Casemiro Camilo dos Santos), congada do Bairro So Francisco So Sebastio, 1997. (Foto Kilza Setti, Acervo Memria Caiara). Fotos 4 e 5. Detalhes da marimba de So Sebastio, Congada do Bairro So Francisco, 10 tabuletas (Fotos do autor, 02/2006). Fotos 6 e 7. Detalhes da marimba de Ilhabela, 6 tabuletas (Fotos do autor, 05/2006). Fotos 8 e 9. Marimba e atabaques (tambaque e tamb). Sentada no banco entre o marimbeiro e os tambores encontra-se Dona Espersia. Seu marido Panilo, Rei da Congada, est atrs junto com sua filha. Fotos da dcada de 1940 (Rossini Tavares de Lima, 1954). Foto 10. Memas, 89 anos. Um dos marimbeiros mais antigos da Congada na atualidade (Foto do autor). Foto 11. Dcada de 1940. Segundo familiares, a cena teria sido montada especificamente para a foto (Foto cedida por Adrale). Foto 12. Dcada de 1940. A congada se apresentando na Rua Dr. Carvalho, Vila. (Foto cedida por Adrale). Fotos 13, 14 e 15. Em registro da dcada de 1950, marimba da regio de Sangine-Chiube (Angola), onde o instrumento tambm conhecido por Njimba, com formato bastante semelhante marimba de Ilhabela (Foto Diamang, 1967).
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Lista das Siglas AA Arquivos de Angola. ACCI Associao Cultural dos Congueiros de Ilhabela. AHU Arquivo Histrico Ultramarino. AMADI Associao dos Moradores Afrodescendentes de Ilhabela. ANTT Arquivo Nacional da Torre do Tombo. DHCMA Descrio Histrica dos Trs Reino do Congo, Matamba e Angola. Obra de Giovanni Antonio Cavazzi da Montecccolo (1687). HCMPF Histria do Imperador Carlos Magno e os Doze Pares de Frana. Traduo do castelhano de Jernimo Moreira Carvalho (1863). HGGA Histria Geral das Guerras Angolanas. Obra de Antonio de Oliveira de Cadornega (1681). LECI Liga da Entidades Carnavalescas de Ilhabela. MMA Momunenta Missionria Africana. Obra do Padre Antonio Brsio. VOC - Vereenidge Oost-Indische (Companhia Unida da ndia Oriental). WIC - West-Indische Compagnie (Companhia das ndias Ocidentais).
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Sumrio Apresentao . . . . . . . . 16 Captulo 1 A Congada e o Documentrio. . . . . . . 26 1.1 A Congada e os Congados . . . . . . 27 1.2 Sobre a Congada de Ilhabela e O Cozinheiro Negro . . . . 42 1.3 Entre a pesquisa etnogrfica e a produo audiovisual . . . 46 Captulo 2 Contexto Representado . . . . . . . 52 2.1 Do que trata a Congada? . . . . . . . 53 2.2 Primeiro Baile . . . . . . . . 56 2.3 Segundo Baile . . . . . . . . 68 2.4 Terceiro Baile . . . . . . . . 80 Captulo 3 Literatura Carolngia e as Misses Catlicas na frica Centro Ocidental 96 3.1 Folcloristas e Carlos Magno . . . . . . 97 3.2 Jesutas flamengos no Congo . . . . . . 104 3.3 Converses . . . . . . . . 109 Captulo 4 Cruis Batalhas de Massangano . . . . . . 122 4.1 Massangano primeiro round: com Paulo Dias de Novais . . . 123 4.2 De 1580 a 1648 . . . . . . . . 128 4.3 Massangano segundo round: com Salvador Corra de S e Benevides . 135 4.4 Alguns desdobramentos da Restaurao de Luanda . . . 142 4.5 Sucesso de Linhagens . . . . . . . 148 Captulo 5 So Benedito: milagre e devoo . . . . . . 154 5.1 Benedetto Manasseri, il Nero . . . . . . 155 5.2 O milagre das flores . . . . . . . 158 5.3 Il Nero, protetor dos negros . . . . . . 161 5.4 Arqueologias de promessas e devoo . . . . . 163 5.5 So Benedito e suas vinganas . . . . . . 169 5.6 Uma narrativa de cura . . . . . . . 173 5.7 Embaixadas, mastro e concertada . . . . . . 176 5.8 Agente operador da ddiva . . . . . . 179
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Captulo 6 Contexto da Representao . . . . . . . 182 6.1 Breve contextualizao histrica . . . . . . 183 6.2 A Festa de So Benedito . . . . . . . 186 6.3 Alguns agentes da Festa . . . . . . . 188 6.4 Consideraes socioeconmicas . . . . . . 194 6.5 Espao da devoo . . . . . . . 196 Captulo 7 A Festa de So Benedito de Ilhabela . . . . . 208 7.1 Os eventos da Festa de So Benedito . . . . . 209 7.2 Congada . . . . . . . . . 214 7.3 A cozinha de So Benedito . . . . . . 220 7.4 Mastro aos cus . . . . . . . . 224 7.5 Concertada e o bolo . . . . . . . 227 7.6 Missa dos Congos . . . . . . . . 228 7.7 Procisso e Meia Lua . . . . . . . 234 7.8 Congada Mirim . . . . . . . . 236 7.9 ACCI e AMADI . . . . . . . . 238 Captulo 8 Os Sons da Devoo . . . . . . . 240 8.1 Msica de tradio negra no litoral norte de So Paulo . . . 241 8.2 Msica na Festa de So Benedito . . . . . . 247 8.3 Um exemplo sonoro . . . . . . . 250 8.4 A congada e o terreiro . . . . . . . 251 8.5 Algumas transcries . . . . . . . 256 Captulo 9 Dramas Sociais em Ilhabela . . . . . . 263 9.1 Antecedentes: os aspectos malditos . . . . . 264 9.2 A destituio do Rei da Congada . . . . . . 267 9.3 A expectativa da sucesso . . . . . 276 9.4 Um rito de passagem . . . . . . . 285 Consideraes Finais . . . . . . . 288 Fontes e bibliografia citadas . . . . . . 294 Anexo . . . . . . . . . 314
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Apresentao
O trabalho que agora se apresenta teve incio em 2004 a partir de um convite da TV USP para
a participao na produo de um documentrio a respeito da Festa de So Benedito de Ilhabela.
No municpio, a devoo ao santo bastante significativa sendo a Festa popular mais importante
do calendrio catlico. A devoo a So Benedito expressada de diversas maneiras e em muitas
prticas ao longo do ano, contudo, na Festa concentra-se a expresso pblica da devoo durante
trs dias consecutivos.
Cada um dos trs dias uma espcie de modelo miniatura e concentrado do ritual que
representa a Festa como um todo. Em cada um dos trs dias se repetem de maneiras
diversificadas os mesmos ritos que caracterizam as atividades dos ncleos que compem essa
grande manifestao de devoo ao santo. A Festa amarrada em torno de dois principais eixos:
a Ucharia e a Congada. Alm desses, outros so igualmente importantes e compem as
atividades que so refeitas todos os anos em meados de maio.
A Ucharia o ncleo da Festa responsvel pela arrecadao, organizao, preparo e
distribuio das doaes em alimentos dedicadas a So Benedito. A Ucharia uma espcie de
banquete oferecido gratuitamente aos participantes da Festa e populao em geral nos almoos
de sbado e domingo. Mas a Ucharia no apenas um lugar para se alimentar durante os dias de
Festa. A Ucharia uma parte extremamente importante. Ela est diretamente associada ao mito
de So Benedito e ao circuito das ddivas que se fazem em nome do santo. em torno da
Ucharia que se d grande parte da produo material que envolve a devoo ao santo. Os
alimentos oferecidos so tratados muitas vezes como abenoados e capazes de operar curas. O
santo se faz presente na Ucharia e distribui bnos com a graa do que para ele se cozinha, se
oferece, se compartilha e se consome. As graas passam pela comensalidade do que para ele (e
em seu louvor) se cozinha. Nesse sentido, a Ucharia possui aspectos importantes no que diz
respeito s materializaes do sagrado. A Ucharia, portanto, um ncleo imprescindvel que
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apresenta a fartura, o excesso, a mistura de elementos em simultaneidade e a comensalidade
coletiva.
Sem Ucharia no h Congada. Sem Congada no h Ucharia. A Congada uma espcie de
teatro representado nas ruas com falas, danas e cantos cujo entrecho tematiza uma desavena
entre dois grupos rivais: de um lado os Fidalgos do Rei do Congo, considerados cristos e que
se vestem em tons de azul, de outro os Congos do Embaixador de Luanda, considerados os
mouros, pagos, infiis, no-batizados, e que se vestem em tons de encarnado. Uma das
verses apresenta o antecedente da encenao.
(...) o Rei de Congo casado com a Rainha se apaixona por uma mulher do povo e a engravida, desesperado para a Rainha no saber do acontecido pede para essa mulher deixar a cidade de Congo, ela vai embora para a cidade de Luanda e l tem seu filho. Ele se transforma no Embaixador de Luanda e forma um exrcito de Mouros e vai para o Congo pegar o que seu de direito, o trono do Rei. Quando ele chega cidade de Congo, o Reinado estava festejando o dia de So Benedito, ento comea a guerra, pois alm dos Mouros quererem o trono do Rei, tambm lutam para participarem da Festa em homenagem a So Benedito (Leite, 2012: 9)
A encenao apresenta o momento que o Embaixador de Luanda chega na cidade de Congo e se
depara com a Festa de So Benedito. O desenrolar das cenas mostram representaes de
embates, tentativas bruscas de aproximao, entremeadas de falas, cantos e danas. O modelo
tripartite se repete tambm na maneira que apresentado o entrecho. So encenados trs atos,
aos quais os participantes chamam de bailes. Em cada um dos bailes apresentada de maneira
repetida, mas com algumas diferenas, a histria de uma guerra que se faz para que o
Embaixador, filho bastardo do Rei, conquiste o trono. Em cada um dos trs bailes o Embaixador
preso, levado presena do Rei onde, aps debater suas razes, se arrepende e pede perdo.
Ao longo dos bailes o Rei descobre tratar-se de seu filho, criado em outro reino, e resolve perdo-
lo e com ele festejar o dia de So Benedito.
A Congada encenada basicamente por homens, com exceo da Rainha, nica
personagem feminina no entrecho. As pessoas podem ser divididas em dois grupos: aquelas que
encenam personagens do entrecho e aquelas que encenam como figurantes sem falas
especficas. Os protagonistas so o Rei de Congo e o Embaixador de Luanda. Cada um o lder
de um dos exrcitos. Os do Embaixador so os Congos de baixo e os do Rei so os Vassalos ou
Fidalgos de cima.
O Rei se veste de azul, com uma longa capa rosa, coroa, cala branca e tnis branco.
Personagem que se apresenta como a figura do monarca absoluto, aquele que no sofre injrias,
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aquele que representa o poder sagrado entre os homens. Sua legitimidade dada pelos cus.
Benevolente e severo. Sua ao centrada no trono de onde profere quase todas as suas falas. O
mundo gira ao seu redor. Todos os outros personagens se referem e se voltam a ele. O
Embaixador se veste de encarnado bordado em dourado, um chapu comprido com uma pluma
na ponta, longa capa tambm encarnada, cala branca e tnis branco. Personagem intempestivo,
ousado, atrevido. Age com muita energia afrontando o Rei sem medo, ironizando as insgnias de
poder e a corte, falando em tom jocoso e fazendo piadas. O Embaixador busca o tempo todo se
aproximar do Rei com investidas violentas s quais so rechaadas pelos Fidalgos. O
Embaixador se apresenta como uma figura volvel que, a despeito de seu poder e de seu exrcito
em maior nmero, no se pode confiar. Muitas vezes, logo aps um ataque, depois de
violentamente rechaado, quando se espera sua retirada ataca novamente de maneira abrupta.
Uma espcie de trickster que ataca sem avisar, no respeita a tica blica nem os cdigos de
conduta em campo de batalha.
A Rainha uma personagem com pouca participao na ao das cenas. Durantes os
bailes a Rainha no profere nenhum fala e no toma parte no embate entre os exrcitos nem na
discusso entre seus comandantes. Permanecendo durante todas as cenas dos trs bailes sentada
em seu trono ao lado do Rei, a Rainha surge como uma figura enigmtica e silenciosa. Dado sua
inatividade nas aes do entrecho, sua personalidade permanecer sempre indecifrvel, uma
presena inexorvel que assiste ao embate como uma expectadora extraordinria. Num certo
sentido, vestgios da ambigidade desta personagem se encontram quando observa-se suas
vestimentas. De ano a ano alternam-se entre azul e rosa as cores de seu vestido. Diferente do Rei
cujo ator possui o papel herdado, sendo todos os anos mantido, o papel de Rainha
interpretado cada ano por uma menina diferente. No final da Festa, quando se consumaram
todos os atos prescritos So Benedito, a Rainha emerge de seu silncio para o rito de passagem
da coroa para a Rainha do ano seguinte, quando ento participa ativamente tomando parte com
ao e fala.
Enquanto filho do Rei, o Prncipe quer mostra-se como um combatente valente. Em
suas falas, a honra do Rei seu pai sempre enaltecida. No entanto, desvenda-se em sua atuao
desateno e displicncia. Seu papel deve ser pensado em paralelo ao papel do Secretrio com o
qual disputa o protagonismo na guerra, na demonstrao de valentia e servido ao monarca.
Ambos so tambm interpretados em muitas verses como filhos do Rei. O Prncipe, no
entanto, se mostra sempre menos violento, procurando em alguns casos burlar a guerra. J o
Secretrio ativo e destemido. Toma a dianteira da batalha em vrias situaes. Possui um
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temperamento aguerrido sempre procurando defender a honra do reino e do Rei na peleja contra
o Embaixador.
Outros personagens importantes so os Guias ou Caciques. Cada um dos exrcitos
possui seus Guias. Em referncia ao exrcito de cima, o Guia tambm chamado de Cacique de
Primor. No exrcito de baixo fica bem evidenciada a atuao do Guia e Contra-Guia. Os Guias
tem poucas falas quando comparados com os personagens j mencionados mas suas falas so
decisivas. Possuem sempre uma postura pronta para o ataque. Muitas vezes enfrentam seu
prprio general para sugerir o enfrentamento mesmo que tudo termine arrasado. No so afeitos
diplomacia, preferem a batalha. Essa descrio notvel no caso do Cacique do Embaixador
que chega a desobedecer ordens superiores para retomar a batalha quando uma negociao
parece ser articular. Os Guias so tambm os responsveis por puxar os cantos dos Congos.
Os cantos responsoriais so comumente coordenados com as coreografias divididas em duas
fileiras que percorrem longitudinalmente o campo de batalha, os Guias encabeam as fileiras
puxando o canto, ou seja, cantando para que todos os outros Congos acompanhem.
As vestimentas, as fardas, se diferenciam pela cor mas tambm pelas caractersticas. Os
Congos de baixo danam com camisas de cetim cor-de-rosa, chapu redondo de fundo rosa com
fitas tranadas e outros bordados, cala e calado brancos, saiote vermelho por cima da cala e
uma longa capa colorida com estampas floridas. Os de cima vestem-se com camisa de cetim azul
celeste, chapu com fitas tranadas em tonalidade azulada em formato de quepe militar, cala e
calados brancos, uma longa capa colorida com temas floridos, muitas vezes com um fundo azul
marinho. As roupas evidenciam uma esttica deslumbrante. Cheia de brilhos, cores e flores.
Semelhanas entre as fardas: em ambos exrcitos surge o branco (calas e calados) e as capas
estampadas com temas floridos. As flores, sempre muito presentes em toda a Festa, esto
presentes de maneira significativa tambm no mito de So Benedito, elas so o produto do
milagre.
Tambm comum a ambos os exrcitos so as espadas com as quais encenam violentas
batalhas. Objeto extremamente cuidado e reverenciado, a espada em geral herdada de algum
familiar ou produzida sob encomenda para algum participante especfico. Entrando no circuito
da devoo, a espada nominada e lhe atribuda qualidades intrnsecas. As batalhas encenadas
na Congada com a espada transferem elementos da capacidade de defesa e ataque. Ambos os
exrcitos lutam com espadas que trazem com muito zelo, ateno e cuidado.
Alm da Congada e da Ucharia, outros elementos compem o contexto da festa (ver
Captulo 7): a atuao da igreja catlica com a realizao do trduo e da missa-cultural; as
procisses; a Associao Cultural dos Congueiros de Ilhabela, ncleo organizacional e
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administrativo; a Congada Mirim, espcie de escola para as crianas; a famlia do Capito do
Mastro, pessoa responsvel pela manuteno e levantamento do mastro de So Benedito; a
concertada, bebida tpica que oferecida aps o levantamento do mastro; o ncleo dos
batuqueiros que se revezam na banda composta por uma marimba e dois atabaques. Todas
essas instituies compem a Festa de So Benedito de Ilhabela e possuem relaes muitas
vezes tensas e conflituosas entre si e com outras instncias que se relacionam com a Festa.
Por sua tradio que remonta entre sculo e meio a dois sculos (alguns dizem at trs), a
Festa de So Benedito um acontecimento que remete s festas e celebraes do perodo
colonial fundadas sobre a matriz barroca, a centralizao poltica do Estado moderno e a
defensiva da Contra-Reforma. As festas que ainda hoje se fazem, herdeiras das festas coloniais,
devem portanto, ser contextualizadas tambm dentro das questes ligadas ao poder como
mostra a literatura (Arajo, 1993; Souza, 1994; 2002; Del Priore, 1994; Jancs & Kantor, 2001), e
consideradas a partir de uma espcie de matriz simblica distribudas em diversas formas
culturais que conservam seus elementos constitutivos, muito embora, na maioria das vezes
ressignificados em outros contextos. Em que pese as correes a esta estratgia, atravs de uma
metodologia transversal busca-se olhar alguns dos elementos expressivos enquanto um lcus para
a investigao das relaes de poder, notadamente a paisagem sonora e o contedo do entrecho.
(...) parece possvel dizer que, se a festa colonial funde num mesmo todo a fora do Estado e Igreja para d-la a ver pela performance graas qual a celebrao tem existncia como espetculo do poder, seu carter barroco confere, no entanto, uma conotao peculiar linguagem pela qual essa fuso se evidencia (Grifos da autora. Montes, 1998).
Esta linguagem o mbito no qual as hipteses perseguidas por esta tese se encontram de maneira
mais evidentes. Dado as figuras que exprimem seus significados e que so dessa maneira
esteticamente representadas, o elemento expressivo como a msica, o canto, os ritmos, a
linguagem corporal, as falas do entrecho tem a capacidade de dar uma existncia material,
corprea, visual e sonora ao carter barroco. Absolutamente evidente quando se observa, por
exemplo, as procisses barrocas que realizavam a afirmao da monarquia portuguesa. O reinado
do Congo era apenas uma parte integrante do desfile em que se faziam representar muitas outras
instituies significativas do mundo colonial como as irmandades, os ofcios, as autoridades civis
e eclesisticas, enfim, a imagem do corpo mstico. A procisso barroca foi responsvel por
expor e publicizar via desfile a transformao do sentido sacramental para o jurdico do corpo
mstico, no entanto, fora do desfile o escravo negro cristianizado continuava sem lugar definido.
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Ao mesmo tempo, a ideia do corpo mstico transposta para a comunidade, sendo o Rei o
representante mximo da unidade, harmonia e justia (Monteiro 2011).
O Estado absolutista portugus se constitui com a misso de propagao do cristianismo
e a converso do infiel. Este projeto messinico do Estado ganhou reforo com a instituio do
Padroado que dava o direito ao Rei de exercer atividade missionria em nome do Papa. A
propagao da f justamente o fundamento da guerra justa, conceito que surge no debate a
respeito da legitimidade da passagem da condio de homem livre para a de escravo. A guerra
justa, onde interessa a causa, a despeito de sua instrumentalidade jurdica, passa a ser utilizada
como justificativa das mais variadas situaes contraditrias.
Tanto a procisso quanto a festa barroca so articulaes que exprimem a maneira que o
Estado abraou a sua misso imperialista e projetou suas prticas. Os reinados, enquanto parte
integrante dessa representao maior do Estado absoluto, compartilham a idia de uma
representao de poder. O cortejo, por sua vez, reproduz o corpo mstico do Estado atravs da
apresentao de foras sociais e espirituais por meio da manipulao dos signos materiais,
plsticos e sonoros, articulados a partir de uma sintaxe prpria em termos de tpicas retricas
tradicionais. A festa barroca propaga um conceito realizando-o na prtica (Idem: 79). A prtica
dos agentes determina as formas de ressignificao que as tpicas tradicionais ganham em novos
contextos. Nesse sentido, os elementos expressivos que ganham espao nessas formas de
representaes de poder de natureza teolgico-poltica so aspectos imprescindveis para o
entendimento das relaes entre texto e contexto no projeto mstico e messinico portugus. Isto
porque so atravs desses elementos que os sentidos so conformados e convencionados a partir
de indexaes especficas.
Enquanto o cortejo barroco d expresso ao corpo poltico, as representaes de guerras
simuladas expressam atravs da cena da converso (ou do batismo) o elogio da expanso colonial
e a legitimidade da conquista. Pensando no desdobramento da representao da soberania e da
sociedade concebida como corpo mstico, em representaes de outros reinos subjugados aps
uma guerra justa, a Festa de So Benedito de Ilhabela parece ser um exemplo da articulao entre
o projeto messinico do Estado e dentro dele a atividade missionria que dava suporte e
legitimidade expanso. Na Festa, com alguma boa vontade, entrev-se o projeto portugus
convertido em programa de ao que articula justificativas ideolgicas e representaes coletivas,
ao mesmo tempo em que vincula sagrado e profano num espetculo de poder cujo carter
barroco atribui uma conotao peculiar linguagem. Na fuso entre Estado e Igreja que se
evidencia pela linguagem, a festa barroca produz atravs do espetculo do poder a traduo de
uma experincia marcada pelo contraditrio e pela integrao precria de metades indissociveis
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de uma realidade moderna e arcaica. Nesse sentido, a busca pela restaurao de uma ideia de
ordem se faz sob o signo da contradio: de um lado o sentimento moderno do poder criador do
indivduo e de outro, o sentimento arcaico de sua limitao frente a um mundo que escapa ao
seu controle (Montes, 1998).
A esttica do barroco funda-se no ldico, enquanto sentido de jogo e fora criativa que
recombina constantemente elementos de lugares e de pocas diversas recriando o arcaico (vila,
1994). O barroco surge surpreendentemente na linguagem utilizada pelos protagonistas e
coadjuvantes da Congada de Ilhabela. Na literatura, a utilizao das metforas, a ordem indireta
do discurso, a linguagem preciosa e as volutas verbais so as correspondentes ao gosto pela
profuso, o ornamento excessivo e o horror do vazio nas artes plsticas.
Supondo que no caleidoscpio da festa barroca so colocados em cena fragmentos e
vestgios de outra viso de mundo para alm do iderio cristo a dos reinos subjugados intenta-
se enfocar os elementos expressivos procurando neles os nexos entre os processos histricos, as
relaes de poder, as formas de ressignificao e produo de identidades. Os elementos
expressivos colocam em circulao a fora criativa do ldico na medida em que so eles os
materiais recombinados.
Para tal, pensa-se a Festa de So Benedito, e em especial a Congada, como o resultado de
uma relao entre agentes que se constitui enquanto uma conveno de significao. Tal
processo se produz no cotidiano do encontro dos agentes que carregam universos de sentidos
especficos. Como resultado desse encontro, as representaes de poder de natureza teolgico-
poltica so interessantes para observar a produo de convenes a partir de determinadas
indexaes (Dulley, 2010). A especificidade do objeto est intimamente ligada ao fato da
conveno no permanecer como algo estabelecido. Isso porque o cdigo que circulou nas
misses como resultado na relao dos agentes e da indexao de categorias locais ao universo
cristo tambm reorganizado em novas conjunturas. Da uma dificuldade a mais para pensar
a prpria produo de convenes quando se trabalha com eventos e performances.
Tomando indexao como o processo no qual um cdigo se constitui pela associao
estabelecida entre uma parte do campo semntico de categorias provenientes de contextos
simblicos distintos, prevalecendo aquelas com maior capacidade de generalizao (Sahlins,
2008), procuramos observar as determinaes expressivas produzidas na correlao de foras
que determinam as posies ocupadas pelos agentes.
Na medida em que abriu-se mo da caracterizao dos agentes indexadores, bem como
da grade de leitura manipulada pelos missionrios (primeiro na frica e depois no Brasil), atemo-
nos prpria Festa e seus materiais expressivos como dado emprico buscando a
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reconstituio do processo atravs das pistas que remetem a dados histricos. Quer-se crer que
estes rastros permitem citar o ocorrido enquanto um agora que irrompe se relacionando com
os dramas sociais da Ilhabela e do Brasil.
O texto que se segue inicia com um pequeno esboo sobre os estudos das congadas e
congados procurando situar algumas das hipteses aqui perseguidas. Nesse sentido, introduz-se a
insero do pesquisador em campo a partir do trabalho com o documentrio, aproveitando para
desvelar algumas das diretrizes metodolgicas pensadas a partir da tentativa de articulao do
trabalho audiovisual com o etnogrfico. A seguir, apresenta-se o contedo do entrecho a partir
de sua resenha, ao mesmo tempo em que se levantam questes que permanecem em aberto para
serem retrabalhadas ao longo dos captulos. Com o contedo apresentado passamos para as
consideraes a respeito da literatura carolngia e as misses catlicas na frica Ocidental
(especialmente os jesutas portugueses e flamengos, bem como os capuchinhos italianos), que
foram os responsveis pela propagao na Europa do xito missionrio no continente africano.
No captulo seguinte expe-se as circunstncias das batalhas ocorridas na regio de Massangano
(Angola) procurando responder as questes referentes sucesso e s motivaes que teriam
produzido a ciso entre os exrcitos antagnicos.
Em um segundo movimento do trabalho retoma-se a Festa a partir de seus fundamentos.
Toma-se a presena de So Benedito, patrono da Festa, pelas narrativas que enfocam o milagre
das flores, as promessas, curas e vinganas. O material apresentado neste captulo articula-se
com os aspectos mais essenciais da Festa que remontam a histria do santo que foi tomado
como protetor do escravos e dos negros em geral. Santo de muito poder, So Benedito
tambm cozinheiro que pregava a humildade e o compartilhamento do alimento. As narrativas
so produzidas pelos participantes da Festa e devotos que em sua maioria moram na Ilha. Os
dois captulos seguintes apresentam uma descrio do local em que ocorre a Festa, bem como as
pessoas e os eventos que a caracterizam. A inteno destes captulos criar um panorama do
cenrio, bem como seus atores sociais e um pouco do histrico da Festa. Nesse sentido, elenca-
se a sequncia de atividades desenvolvidas procurando atrelar as pessoas a determinadas prticas
no circuito da devoo.
No penltimo captulo enfoca-se a paisagem sonora da Festa procurando trazer alguns
dos aspectos da expresso sonora que evidenciam suas relaes com expresses presentes na
frica Centro Ocidental. Atravs da anlise do instrumento musical marimba e de um exemplo
sonoro gravado durante uma procisso de So Benedito, este captulo procura contribuir no
sentido de fixar algumas das estruturas sonoras que permitem relacion-las aos resultados das
pesquisas em musicologia africana, demonstrando elementos que perduraram no Brasil e que
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marcam as msicas afrobrasileiras. Procura-se salientar que nas indexaes realizadas a partir da
relao entre Igreja, Estado e povos subjugados, so mobilizados os aspectos expressivos mais
bsicos da encenao. Postula-se que na expresso musical no h uma fuso completa dos
elementos que possa suprimir todas as marcas de origem da msica, notadamente os elementos
formais e de estrutura, que fazem da expresso sonora um campo privilegiado para compreenso
da produo de convenes (Oliveira Pinto, 2002).
luz das questes levantadas ao longo do trabalho, o ltimo captulo dedicado
anlise dos dramas sociais de Ilhabela. Toma-se como central a sucesso do Rei como um dos
dramas que tem mobilizado os participantes da Festa. A partir de uma reconstruo do histrico
da relao entre as equipes de filmagem e os participantes da Festa ao longo das ltimas seis
dcadas, procura-se retomar e relacionar aspectos presentes no entrecho que impregnam
tambm as construes sobre os momentos de crise e suspenso do ordinrio. Nesse sentido,
este ltimo captulo procura retomar a idia da relao entre os elementos expressivos e seus
nexos com processos histricos, relaes de poder e as formas de produes de identidade.
Dessa maneira pretende-se fornecer elementos para pensar a devoo a So Benedito menos
como um fenmeno de resistncia cultural e mais como um resultado complexo de indexaes
que continuam sendo realizadas por diversos agentes na produo das convenes que se
estabelecem.
A insero em campo do pesquisador enquanto membro de uma equipe de filmagens, colocou
de antemo a impossibilidade de dissociao entre os processos de produo do documentrio e
produo da etnografia, sob a pena de esterilizar aspectos singulares dos materiais empricos
coletados e da experincia do pesquisador. Procurando criar possibilidades para o leitor
acompanhar a utilizao dos dados empricos, sempre que necessrio e possvel so utilizadas
falas que fazem parte da srie Sobre a Congada de Ilhabela (TV USP. Edurado Kishimoto, 2004 -
2011. Sete documentrios de 26 minutos cada). Busca-se com isso no somente dar acesso s
informaes e entrevistas com os interlocutores, mas tambm construir uma discusso
suplementar a partir do aprofundamento das hipteses apresentadas no filme. Nesse sentido, a
anlise se produz a partir da interseco entre os materiais produzidos para o documentrio e os
materiais coletados em trabalho de campo posterior. A respeito do problema da edio de falas
nativas, sempre presentes nos trabalhos etnogrficos, buscou-se uma soluo que procura, se no
resolver, ao menos minimizar os efeitos da edio atravs da transcrio de falas, entrevistas e
depoimentos presentes no documentrio, dando ao leitor a possibilidade de avaliar no s o
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contedo em si das falas, mas a maneira como foram construdas. No sentido de facilitar a
leitura, tais materiais podem ser identificados a partir de uma [fonte textual diferenciada] bem
como sua localizao na srie.
Dado o contedo controverso e polmico que algumas das discusses suscitam na comunidade
foram utilizados nomes fictcios em substituio aos nomes reais das pessoas no sentido de
preservar a integridade dos interlocutores e do pesquisador.
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CAPTULO 1
A Congada e o Documentrio
E ecoa noite e dia ensurdecedor Ai, mas que agonia O canto do trabalhador Esse canto que devia Ser um canto de alegria Soa apenas como um soluar de dor [O canto das trs raas Mrio Duarte e Paulo Csar Pinheiro]
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1.1 A Congada e os congados
As manifestaes que encerram os rituais de eleio, investidura e entronizao do rei tem sido
objeto de interesse nas cincias humanas e em especial na antropologia h mais de um
sculo. Talvez tenha sido Sir James Frazer o primeiro proeminente antroplogo a tratar da
questo em seu famoso The Golden Bough, publicado pela primeira vez em 1890 (1982). Um dos
desafios daquela poca era explicar os comportamentos que pareciam irracionais aos olhos
etnocntricos dos europeus. Frazer, que teve a primeira ctedra de antropologia em 1927,
procurava entender a unidade original do pensamento religioso a partir do tema do deus
imolado. Tanto tempo depois de Frazer essa questo continua sendo debatida sob diferentes
vieses na antropologia. Pressupondo um dilogo, recupera-se algumas das principais hipteses
dos pesquisadores que se dedicaram ao mesmo tema. Nesse sentido, trata-se dos autores a partir
da metodologia e tipo de anlise produzida. Inicialmente recuperando as discusses de Mario de
Andrade em seu trabalho Os Congos cuja introduo foi publicada pela primeira vez em
1934 e Rossini Tavares de Lima em seu O Folclore do Litoral Norte de So Paulo de 1959. Ambos
os autores apresentam um modelo de tratamento do objeto que influenciou diretamente
trabalhos, como por exemplo A Congada de Ilhabela na Festa de So Benedito (1981) de Iracema
Frana Lopes Corra.
A partir das linhas de discusses levantadas por Andrade ([1934, 1935] 1982a; 1982b),
Lima ([1959, 1968] 1981) e Corra (1981) procuramos ampliar a discusso introduzindo tambm
algumas questes provenientes do congado mineiro a partir de Leda Maria Martins (1997),
Glaura Lucas (2002) e Rubens Alves da Silva (2005a; 2005b; 2008; 2010), no sentido de salientar
alguns elementos interessantes para pensar os processos de folclorizao e domesticao das
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manifestaes populares de carter devocional, bem como processos de legitimao e construo
de discursos nos quais as expresses culturais so produzidas, rearranjadas e modificadas
historicamente.
Pretende-se atentar tambm para a idia de que, a despeito dos elementos expressivos
(como a msica, a dana e as cores) com possveis relaes com tradies africanas ou
afrobrasileiras carter mais evidenciado na literatura que trabalha as questes de resistncia
cultural, sincretismo e hibridismos , o modelo de congada que apresenta o complexo Cristo
versus Infiis possui uma procedncia ligada aos projetos de missionao catlica no Brasil,
notadamente os jesutas. Mesmo representando em seu drama esttico episdios de dramas
sociais no Congo e em Angola, espraia-se em desdobramentos aqui no Brasil refletindo tambm
dramas sociais locais. As questes provenientes do congado mineiro ajudam a pensar tambm
numa ampliao de questes ao retornar ao nosso objeto a partir dos trabalhos de Hayde
Dourado de Faria Cardoso (1982; 1990), Mrcia Merlo (2000; 2005a; 2005b) e Marianna
Francisca Martins Monteiro (2011).
Reconhecendo um parentesco entre os temas tratados, Mario de Andrade (1982b) cita
Frazer (1982) ao discutir que entre as remanescncias do culto das rvores na Europa Moderna, a
pessoa vestida de folhagem representando o esprito do vegetal conhecida sob o ttulo de rei ou
rainha. De alguma maneira as eleies e coroaes de reis negros no Brasil encontram paralelos
na ideia do deus imolado de Frazer, na medida em que o assassinato do rei deriva do carter
divino que lhe outorgado. Tal aspecto no lhe permite apresentar imperfeies. Sendo um
mortal, sua substituio se torna imprescindvel. Sendo a morte natural tambm dada como
impossvel (uma vez que quando o princpio anmico abandona voluntariamente o corpo, no h
reencarnao noutro indivduo, em um novo rei) sua substituio se torna necessria. Este o
cerne do argumento de Frazer que recuperado por Andrade, ou seja, o rei no o
representante da coletividade seno seu princpio contrrio, o elemento contraditrio. Nesse
sentido, a eleio e coroao, incluindo os rituais de investidura, so na modernidade correlatos
aos supostos assassinatos expostos por Frazer. Havendo outros mecanismos de substituio do
monarca, no sendo mais necessrio sua imolao, o carter eminentemente poltico da ao
toma outros contornos, bem como o conceito de representao e a ideia do rei como princpio
contrrio sociedade.
Divergindo de Guilherme Pereira de Mello, para o qual as congadas teriam origem
proveniente das reinages francesas, no entender de Andrade o costume dos reinados dos negros
no Brasil eram uma manobra diplomtica dos Portugueses para instituir espcies de falsos
reinados, ou seja, os reis que em nada mandam. As figuraes de inmeras relaes que
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expressam sempre uma contraposio primordial vai sendo reproduzida de infinitas formas,
no direi do Bem e do Mal, mas do benfico e do malfico (Andrade, 1982b, 32). A Rainha
Ginga que Mrio de Andrade analisa a partir de uma congada do Rio Grande do Norte,
representa o lado malfico que momentaneamente vencedor, mas somente at o verdadeiro
vitorioso tomar as rdeas da disputa.
Certamente muitas variaes dessas expresses populares possuem elementos
semelhantes e distintos. Os nomes pelos quais so conhecidas tais manifestaes tambm so
muitos, congos, congadas, congados bem como outros que possuem relaes como os
Ticumbi, Cacumbi, Ternos, Moambiques, Maracatus, Cheganas de Mouros, Marujadas,
Cavalhadas, etc. no entanto, chamam ateno suas semelhanas mesmo com tantos elementos
que as distinguem. No complexo cristos versus infiis, o herege, o mouro, o infiel no-
batizado, o elemento associado ao malfico e que deve ser combatido. Aquele que vem para
substituir o rei bom. Se em Frazer o novo rei desejado, no complexo cristos versus infiis o
novo rei o inimigo. O estranho e que vem de fora.
As definies que foram atribudas a tais manifestaes mudaram bastante. Indo desde
suposies historicamente embasadas at interpretaes bastante subjetivas. Para Mrio de
Andrade, por exemplo:
Os Congos so uma dana-dramtica, de origem Africana, rememorando costumes e fatos da vida tribal. () mesmo na manifestao mais primria de simples cortejo dum rei negro, os textos das danas, e em parte mais vaga as coreografias, sempre aludem a prticas religiosas, trabalhos, guerras e festas da coletividade. A origem dos congos bem africana, derivando o bailado do costume de celebrar a entronizao do rei novo (Idem: 17).
Para o autor as verses onde se apresentam apenas cortejos e cerimoniais de coroao so
expresses empobrecidas desta mesma dana-dramtica. A entronizao do rei africano era
um aspecto central para a hiptese da origem Africana. No queremos aqui discutir as
questes ligadas origem, mas salientar que na busca pelos fundamentos do religioso, na
esteira de Frazer, surgem as questes relacionadas com hierarquia que algures teria sido de suma
importncia. Cmara Cascudo foi outro autor que conceitua os termos congada, congado e
congo. Em seu Dicionrio do Folclore Brasileiro (2002) o autor fornece a seguinte definio:
Folguedo de formao afro-brasileira, em que se destacam as tradies histricas, os usos e costumes tribais de Angola e do Congo, com influncias ibricas no que diz respeito religiosidade. Lembra a coroao do Rei Congo e da Rainha Ginga de Angola, com a presena da corte e seus vassalos. Trata-se de um auto que rene elementos temticos africanos e ibricos, cuja difuso vem do
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sculo XVII. As congadas com representao teatral focalizam sempre a luta entre mouros e cristos, terminando com a vitria dos cristos e a converso dos mouros, que so batizados no final. () (Cascudo, 2002: 149).
Cascudo prefere a sugesto afrobrasileira africana de Mrio de Andrade. As duas formas so
mencionadas por Cascudo, tanto aquela que apresenta apenas a coroao do Rei Congo, quanto
aquela que mostra a luta entre mouros e cristos, no entanto a primeira no tomada como uma
verso depauperada da segunda. Outro autor referencial nos estudos sobre as congadas Alfredo
Joo Rabaal. Em sua obra As congadas no Brasil (1976), o autor recupera registros desde os
viajantes e administradores coloniais que escreveram no sculo XIX passando por todos os
folcloristas.
Os Congos, Congados, Congadas, so um tipo de folguedo popular que segundo a maioria dos autores que com ele se tm impressionado, forma entre as expresses afro-brasileiras em que se destacam de maneira predominante tradies histricas e costumes tribais de Angola e Congo, com a predominncia de traos culturais do grupo Bantu, aculturados a elementos do catolicismo catequtico e ao brinquedo de Mouros de Cristos. () so divididos em duas classes, uma constituda pelos grupos organizados como simples desfiles, e a outra, tambm pela representao dramtica, que recebe o nome de embaixada (Rabaal, 1976: 9).
Rabaal chama ateno para uma diviso em duas classes, uma somente com os desfiles e outra
com a representao dramtica. Alm disso, menciona os bantos como grupo cultural de origem,
aculturados ao catolicismo catequtico e ao brinquedo de mouros e cristos. A informao
sobre os elementos do catolicismo catequtico remete para a ideia do auto mencionado por
Cascudo que, como se sabe, foi uma das formas que os jesutas costumavam catequizar nas
colnias da frica e Amrica (cf. Kassab, 2010).
Apesar da carncia de fontes, outro autor que menciona de maneira enftica a ao dos
missionrios Alceu Maynard Arajo (1952, 1964) para o qual a congada um bailado, um
teatro catequtico no qual se encontra uma dicotomia que se fundamenta na religio: converso e
ressureio. Explica ainda que trata-se de um bailado popular tradicional (1952) sobre a
converso dos infiis ao cristianismo. Em obra posterior, Arajo (1964) fornece dados mais
detalhados:
O jesuta conhecedor da pedagogia. Sobre o conhecido se inicia a ensinar o desconhecido. Sobre os alicerces de algo que se praticara que se levantou o edifcio artstico do bailado popular. Aproveitou velhas prticas africanas, a
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ndole belicosa, a hierarquia brega e quejandas, ensinou-lhes porm que para gozar das delcias do cu era preciso converter-se, deixar o paganismo e o maometanismo. No desprezou o passado negro, deu-lhe um presente branco para gozar um futuro celeste, graas converso e abrigo no seio da santa religio. Ensinou que h uma luta entre o Bem e o Mal. Este deve perecer, aquele vencer. O mal o mouro, o bem o cristo, foi o discernimento que o bailado popular deu (Grifos do autor. Arajo, 1964: 213 14).
Nesta passagem fica claro que Arajo atribui uma carga significativa aos missionrios da
Sociedade de Jesus para a existncia da congada. Fazendo uma distino bastante rgida entre
congada e coroao de reis e tomando como folclrico aquilo que se produz
espontaneamente a partir do elemento popular, o autor vai alm dizendo que a difuso e
uniformidade s foi possvel graas ao dos missionrios jesutas. Afirma ainda que trata-se de
um teatro catequtico (Idem: 215) cujo entrecho teria sido escrito um erudito, e por isso no
manifestao genuinamente folclrica. Para Arajo a congada no de origem africana, mas uma
remanescncia da Chanson de Roland que teria sido aproveitada pelo catequista (ver Captulo 3).
Nessa verso, divergindo de Mrio de Andrade e Cmara Cascudo, Arajo no atribui a origem
da congada frica ou aos afrobrasileiros, mas aos eruditos catequistas europeus que teriam se
aproveitado de prticas africanas.
Os trabalhos aqui mencionados, que remontam o que poderamos chamar de primeira
gerao de estudos das congadas, eram caracterizados por transcries das falas, descries
bastante densas das coreografias e das cenas, havendo espao para transcrio de partituras dos
cantos, grficos, diagramas e figurados. As descries expressam de maneira evidente uma forte
tendncia ao registro como uma forma de preveno suposta extino de tais manifestaes.
A questo em torno da origem certamente era significativa na poca em que tais
trabalhos foram produzidos. Cada um dos autores, como que num reflexo do receio da extino
de tais manifestaes (ou buscando um antdoto para tal), expressam uma variedade de termos
que envolvem uma definio e desdobramentos em torno da origem: dana-dramtica de origem
Africana (Mrio de Andrade); folguedo de formao afrobrasileira (Cmara Cascudo); folguedo
popular banto (Alfredo Joo Rabaal); e bailado popular dos eruditos catequistas (Alceu Maynard
Arajo).
Ainda numa linha bastante semelhantes aos estudos folcloristas surgem os trabalhos de
Rossini Tavares de Lima (1954; [1959] 1981) sobre as congadas do Litoral Norte de So Paulo.
Tendo como integrantes de sua equipe Alfredo Joo Rabaal, Guerra Peixe e Kilza Setti, Lima
enfrentou muitas dificuldades de cunho logstico para realizar a pesquisa de campo. O trabalho
em questo apresenta debates importantes para entender problemas que estavam em discusso
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no s no meio acadmico na dcada de 1950, mas no prprio Litoral Norte e em especial na
Ilhabela. Segundo o relatrio da pesquisa foram recolhidas as congadas de Caraguatatuba e de
So Sebastio (Bairro So Francisco). Com relao Congada da Ilhabela, Lima afirma no ter
sido possvel uma pesquisa mais detida. Os motivos que levaram a essa lamentvel lacuna sero
mais discutidos no Captulo 9. A pesquisa com as congadas de Caraguatatuba e So Francisco
permitem a produo de parmetros comparativos uma vez que so detectados diversos
elementos com significativas similaridades como falas inteiras de determinados personagens ou
melodias de canes que, embora o texto tenha se modificado, o substrato musical demonstra
inevitveis parentescos.
Tais parmetros comparativos so interessantes notadamente no que diz respeito
uniformidade das manifestaes. De um lado, o dado esparso: os registros nos levam a observ-
la de norte a sul do litoral brasileiro; de outro, o dado denso e concentrado: na regio do litoral
norte paulista as congadas apresentam evidentes e significativas similaridades e recorrncias. Tais
recorrncias e semelhanas, menos interessantes por evidenciar um suposto parentesco, so
significativas porque evidenciam elementos apontados como importantes pelas pessoas que
praticam a Congada em Ilhabela. O dado histrico que remete ao parentesco interessante,
portanto, na medida em que demonstra a profundidade temporal compartilhada por tais
manifestaes.
Segundo Lima (1981), as congadas encontradas na regio pesquisada (municpios de
Ubatuba, So Sebastio e Ilhabela) apresentam muitas semelhanas em termos formais e
morfolgicos. Chama ateno tambm que as coincidncias se apresentam no apenas em
detalhes como frases, melodias e versos, mas no que tange ao prprio enredo do entrecho.
Foram selecionados dois aspectos como exemplos: o texto e os instrumentos.
No texto apresentado so evidentes as falas semelhantes. Em So Sebastio temos o
Secretrio fazendo referncia Dom Francisco e Dom Antnio, Dom Manuel engraado
(Lima, 1981: 25), ou ento a fala em que ele se diz o Fidalgo mais empenhado. O Rei em So
Sebastio no lembra que aquele o dia de louvar So Benedito e fica bravo com seu filho
Prncipe, pois alm de tambm ter esquecido, deixa o Secretrio tomar seu lugar se adiantando ao
anunciar a Festa de So Benedito. Seguem-se as falas de cada um dos Fidalgos do Rei que se
apresentam e louvam o santo em honra ao Rei. Em seguida a primeira fala do Embaixador faz
aluso entrada nas terras do Rei tambm em louvor a So Benedito. Tudo bastante semelhante
Congada de Ilhabela. Mesmo a estrutura da Festa, levantamento do mastro, apresentaes do
entrecho e banquete, em quase todos os momentos apresentam evidentes semelhanas, sendo ao
mesmo tempo tambm completamente diferente, horrios, datas, roupas, cantos, ritmos etc.
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Uma outra similaridade interessante a cano que se entoa pela congada do Bairro So
Francisco aps a primeira fala do Embaixador. Soldados em guerra/ com armas ao ombro/
Nis temos batalha/ com o nosso Rei de Congo (Lima, 1981: 31). Em Ilhabela temos a mesma
cano com melodia bastante prxima tambm. Soldados em guerra/ com armas no ombro/
vencemos a batalha/ do famoso Embaixador (Corra, 1981: 118). E em Caraguatatuba temos
Soldados em guerra/ com armas no ombro/ nis temo batalha/ com aquele Rei do Congo
(Lima, 1981: 90). Os instrumentos que acompanham os cantos e danas tambm so
basicamente os mesmos. O instrumental composto por marimba e dois tambores (ver Captulo
8). Entre os municpios existem diferenas entre cada um dos instrumentos mas a formao
sempre a mesma. A estrutura morfolgica tanto das marimbas quanto dos tambores so bastante
parecidas apresentando variaes apenas nas dimenses e material utilizado, no caso dos
tambores, e quantidade de teclas, no caso das marimbas.
E assim poder-se-ia pinar diversas outras coincidncias e diferenas. Nos trs casos o
Embaixador se entrega, se deixa prender para se aproximar do Rei. Nos trs casos o Rei
pergunta ao Embaixador Quem sois vs? E este responde com escrnio. Em Ilhabela e
Caraguatatuba, o Embaixador vem acompanhado com soldados de Massangana (Lima: 1981: 93).
Enfim, estas so algumas das semelhanas entre as falas dos entrechos. No entanto, uma
informao que nos parece significativa o fato de apenas em Ilhabela o Rei perguntar como o
Embaixador teria fugido de seus ps, qual ele responde Soberano, a cruel batalha de
Massangano foi a causa (Corra, 1981: 136). Interessante pois esta passagem que se encaixa
em meio a um dilogo comum s trs congadas explicita o suposto motivo da ciso. Caso o
conflito encenado tivesse sido motivado por uma cruel batalha precedente, esta teria um valor
intrnseco para entender o entrecho. H uma meno explcita a um evento significativo.
(...) um evento no apenas um acontecimento caracterstico do fenmeno, mesmo que, enquanto fenmeno, ele tenha foras e razes prprias, independentes de qualquer sistema simblico. Um evento transforma-se naquilo que lhe dado como interpretao. Somente quando apropriado por, e atravs do esquema cultural, que adquire uma significncia histrica (Grifos do autor. Sahlins, 1999: 14 15)]
O evento apresentado como estopim de um conflito e deve ser tomado como um motivo
significativo o suficiente para originar uma ciso. Essas e outras semelhanas e diferenas
permitem aproximaes e distanciamentos entre as congadas dos trs municpios (Caraguatatuba,
So Sebastio e Ilhabela): procedimentos que apontam para algo em comum, algo cuja fora vem
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do passado e se apresenta no presente, simultneo inmeras transformaes do contexto social
na qual praticada e que lhe teria possibilitado as condies de surgimento e existncia.
Aluna do professor Rossini Tavares de Lima, Iracema Frana Lopes Correa autora da
primeira referncia textual sobre a Congada da Ilha. O livro A Congada de Ilhabela na Festa de So
Benedito (1981) representou durante anos a nica e principal referncia sobre o assunto. Sua
pesquisa se inicia no final da dcada de 70 e se estende por mais de uma dcada. No entanto,
durante a dcada de 80, alm de pesquisadora, Corra se tornou tambm organizadora dos
ensaios, das roupas e diversas outros aspectos referentes festa. Essa atuao era motivada por
sua relao com a Congada, e posteriormente, tambm devido ao cargo de Secretria da Cultura
do municpio em meados da dcada de 80.
Os mtodos utilizados por Rossini Tavares de Lima (1981) e Iracema Frana Lopes
Correa (1981) apresentam poucas, ou nenhuma diferena. Ambos so embasados em uma
descrio detalhada, acompanhada de transcries das falas e cantos, partituras dos cantos e
toques, bem como figurados que pretendem demonstrar as coreografias. Dado a coincidncia
metodolgica e de apresentao dos resultados das pesquisas, torna-se possvel recorrer ao
mtodo comparativo a partir de informaes bastante seguras. Na linha dos trabalhos que
proporcionam possibilidades analticas significativas, alguns dos que abordam as manifestaes
em Minas Gerais nos parecem igualmente teis.
Os trabalhos de Leda Maria Martins (1997), Glaura Lucas (2002) e Rubens Alves da Silva
(2005) so menos interessantes pelas similaridades metodolgicas, e mais significativos pela
profundidade e competncia na elaborao de algo que poderamos chamar de teorias do
congado. No quero aqui apresentar em detalhes cada um dos trabalhos, mas salientar alguns
aspectos que nos parecem jogar luz sobre a Festa de So Benedito em Ilhabela.
Martins (1997) aborda a Irmandade de Nossa Senhora do Rosrio, na regio do Jatob
(Belo Horizonte MG), apresentando seu trabalho a partir de narrativas sobre os rituais de
linguagem encenados no reinado. Para a autora a matriz africana entendida como um dos
constitutivos significativos da textualidade e da produo cultural brasileira. Tomando
emprestado o termo oralitura (cf. Schipper, 1989), a autora apresenta os atos de fala e de
performance como inscries do registro oral.
(...) como littera, letra, grafa o sujeito no territrio narratrio e enunciativo de uma nao, imprimindo, ainda, no neologismo, seu valor de litura, rasura da linguagem, alterao significante, constituinte da diferena e da alteridade dos sujeitos, da cultura e das suas representaes simblicas (Grifos da autora. Martins, 1997: 21).
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Nesse sentido, a oralitura se refere presena de registros e solues formais prprias da
oralidade em textos da literatura africana escrita.
A partir dessa abordagem, Martins (1997) trabalha a idia do sincretismo enquanto
fuso e aglutinao de registros simblicos que originam novos cdigos e sintaxes que se
evidencia na presena dos registros da oralidade. O Reinado definido pela autora a partir de
uma estrutura simblica complexa e ritos que incluem a instaurao de um Imprio cuja
concepo inclui variados elementos, atos litrgicos, cerimoniais e narrativas que, na performance
mitopotica, reinterpretam as travessias dos negros da frica nas Amricas (Grifo da autora.
Idem: 32). O Imprio enquanto um dos elementos do Reinado interpretado como um exemplo
emblemtico da estrutura simblica e de seus ritos.
Procurando aproximaes entre as anlises de Martins com a Festa de So Benedito de
Ilhabela observa-se que, apesar da inexistncia dos termos reinado ou imprio em Ilhabela
da mesma maneira que no Jatob, os elementos presentes tambm instauram algo que se projeta
na existncia da comunidade atravs de uma espcie de performance mitopotica. Para a autora,
ao narrar certos mitos, as festas de coroao seriam uma espcie de sobrevivncia do costume
dos reis bantos de fazerem suas excurses e embaixadas entoando cantos e danas (cf.
Alvarenga, 1960: 90; Lopes, 2006: 191; Martins, 1997: 39). Esta interpretao oferecida por Leda
Martins apresenta os Reinados como instituies com forma e organizao social distintivas, que
podem ser pensados (...) como um micro-sistema que opera no interior do macro-sistema,
dramatizando um modo de reelaborao secular e religioso diverso (...) (Martins, 1997: 47).
Procurando fazer um levantamento das narrativas da lenda fundacional de Nossa
Senhora do Rosrio, Martins (1997) remonta as Guerras Santas e Justas e toma a Batalha de
Lepanto1 como um evento de suma importncia para a difuso do culto Nossa Senhora do
Rosrio pelos dominicanos. Estando sempre associada a vitrias em batalhas, a Senhora do
Rosrio esteve ligada tambm libertao dos escravos. Esse arcabouo mtico discutido por
Martins (1997) a partir de seis narrativas de integrantes do Reinado do Jatob das quais a autora
extrai trs elementos em comum: 1) a descrio de uma represso vivida pelo negro; 2) a
1 A Batalha de Lepanto, entre os reinos cristos e os turcos ocorreu em 07/10/1571 e ficou conhecida como uma
das maiores batalhas navais no Mediterrneo. Do ponto de vista dos cristos, o objetivo da batalha era impedir o avano dos Turcos Otomanos depois que estes tomaram a Ilha de Chipre, possesso da Repblica de Veneza. Como Veneza representava o domnio do Mediterrneo e a porta de entrada para a Europa, os venezianos pediram ajuda ao papa. Formou-se ento a chamada Liga Santa (Repblica de Veneza, Espanha dos Habsburgos, Estados Pontifcios, Reino de Npoles, Genova, Savia e Cavaleiros de Malta) liderada por Joo da ustria que combateu com os Turcos liderados pelo comandante Mezzinzade Ali Pax. A Batalha terminou em poucas horas com a vitria dos cristos. Segundo Jannuzzi (2005), narra-se que os soldados de Mafoma (Maom) teriam avistado nessa batalha a imagem ameaadora de Nossa Senhora do Rosrio (cf. Montanelli & Cervi, 2004; Jannuzzi, 2005).
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reverso simblica dessa situao; e 3) a instituio de uma nova hierarquia e de outro poder,
fundados pelo arcabouo mtico.
Na Festa de So Benedito de Ilhabela observa-se tambm a instaurao de uma espcie
de organizao social distintiva que pode ser pensada enquanto um micro-sistema. Tomando
as narrativas sobre cura e milagres de So Benedito como o mote do entrecho, na linha de
Martins (1997), pode-se pensar em enunciados atravs de uma performance mitopotica. A
dramatizao que encontramos na elaborao do entrecho dramtico da Congada de Ilhabela,
tambm participa de processos mais amplos de reterritorializao de sistemas simblicos
africanos no Brasil e a ressemantizao dos elementos da religiosidade catlica (...) (cf. Martins,
1997: 60).
Outra autora que encontra ecos nas interpretaes de Martins (1997) Glaura Lucas.
Abordando duas comunidades, o Reinado da Irmandade de Nossa Senhora do Rosrio do Jatob
e a Comunidade Negra dos Arturos, ambas localizadas na regio metropolitana de Belo
Horizonte, em seu trabalho h uma ampliao do universo emprico e uma mudana de recorte.
Tendo Martins (1997) como literatura fundamental para seu trabalho, Lucas (2002) utiliza uma
abordagem que privilegia os aspectos sonoros da devoo, analisando em detalhe as construes
musicais dos cnticos e dos trs grupos sagrados (ritmos e repertrios): congo, moambique e
candombe. A autora constata que na literatura acadmica sobre tais comunidades a msica no
tem merecido o mesmo grau de importncia que outros elementos expressivos e simblicos do
Congado (Idem: 41).
Nesse sentido, o trabalho da autora preenche uma lacuna na literatura sobre tais
comunidades, ao mesmo tempo em que fornece uma abordagem metodolgica extremamente
rigorosa para o enfrentamento desse tipo de manifestao. Alm do rico material registrado e
transcrito sobre os trs repertrios, o trabalho de Glaura Lucas tambm realiza anlises dos
instrumentos sagrados, do material rtmico e meldico produzindo uma obra que no toma a
msica como mero coadjuvante, mas como protagonista de uma abordagem a partir de sua
prpria dimenso expressiva. Interessa-nos justamente alguns dos aspectos metodolgicos e do
enfoque, notadamente a orientao do tratamento despendido aos elementos do universo
expressivo sonoro da Festa de So Benedito.
Procurar ouvir os aspectos sonoros da devoo, ou os sons da devoo, implica tratar
os sons da Festa (sejam eles falas, cantos, instrumentos, conversas) no como acessrios ou
meros veculos para os textos transmitidos pelos cantos, ou propulsor de movimentos corporais
das danas. Nesse sentido, procura-se explorar alguns aspectos da linguagem dos instrumentos e
dos cantos (Captulo 8) a partir de passos j explorados por Lucas, focando as construes
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musicais presentes na Festa de So Benedito, os aspectos formais dos cantos, dos instrumentos e
das estruturas rtmicas: A inteno, sim, a de trazer um ponto de escuta, um ouvir, ou seja,
um enfoque auditivo sobre o Congado. Isso no implica minimizar a eficincia e importncia da
percepo visual (Lucas, 2002: 41).
Juntamente com o trabalho de Martins (1997), Lucas (2002) apresenta uma abordagem
que cobre determinada lacuna e suscita diversas questes significativas para tratar da paisagem
sonora de Festas Populares nas quais ocorrem congadas e congados. Tomando os exemplos das
duas autoras supracitas, algumas precaues se tornam necessrias. A partir do fato da maioria
das comunidades que praticam tais manifestaes (inclusive Ilhabela) recusarem o termo
folclore uma vez que as tratam como religio e prticas devocionais a abordagem deve
simultaneamente tomar, de um lado, o termo folclore sem sua acepo pejorativa, e de outro,
criticar esse aproveitamento do material coletado e documentado para futura elaborao por
artistas eruditos (Reily, 1990 Apud. Lucas, 2002: 38). A acepo pejorativa, que folcloriza
manifestaes tidas como religio, acaba por descontextualizar e desvirtuar seus objetivos
devocionais promovendo um processo no qual (...) manifestaes da cultura negra passam a ser
consumidas como cultura de massas e como entretenimento (...). A religio e outros aspectos da
cultura negra passam por esse processo de domesticao e de folclorizao, divulgada pelos
meios de massa, transformando-se em espetculo extico para consumo turstico (Ferreti, 1995:
104 Apud. Lucas, 2002: 39).
O apelo turstico muito forte em Ilhabela. A acepo folclrica da Festa de So
Benedito inspira os eventos do poder pblico que a envolvem e a tomam no como religio, mas
como uma atividade a ser enquadrada na chamada Semana de Cultura Caiara. A Festa de So
Benedito em Ilhabela passa no s por um processo que confunde religio com folclore, mas tal
domesticao envolve tambm um processo que equipara e toma como sinnimos dois termos
cuja equivalncia duvidosa: cultura negra e cultura caiara.
Outro autor inspirador para esta pesquisa Rubens Alves da Silva cujas pesquisas sobre
os Congados mineiros iluminam de forma significativa a Festa de So Benedito em Ilhabela. Silva
procura atentar para aspectos normalmente menosprezados pelas etnografias que tm como
objeto as manifestaes de representaes de eleies e coroao de reis africanos e suas verses
de congadas e congados. Em seu trabalho de 2010, Silva trata da construo da identidade negra
que se apresenta e representa no contexto ritual do Congado em Minas, utilizando para isso o
mtodo comparativo entre a ocorrncia na capital Belo Horizonte e no interior, Dores de Indai.
A partir de uma descrio detalhada, Silva nos apresenta anlise do discurso e dos
elementos simblicos que circulam e so articulados na construo da identidade negra nos
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Congados. A despeito da presena efetiva de elementos da Umbanda, a identidade religiosa
catlica a que se reivindica de maneira mais explcita no Congado, no entanto, trata-se de uma
identidade devocional que justifica as danas, cantos e toques numa forma de expresso ritual e
culto devotado Nossa Senhora do Rosrio e aos santos pretos, cones da tradio So
Benedito e Santa Efignia (Silva, 2010: 149).
Da mesma forma que Martins (1997), Silva tambm trabalha com as verses dos mitos
fundadores. Chegando a utilizar seis verses, o autor aponta por um lado, a nfase na oposio
entre grupos dominantes e dominados na sociedade, e por outro, o conflito entre a Igreja e o
Congado. Dessa maneira, o mito traduz elementos que estariam nas fundaes da construo da
identidade negra no mbito dos Congados. O mito sugere inverso de status. Os grupos
dominados no quadro da estrutura social so, por sua vez, os que aparecem como,
simbolicamente, os dominantes (...) (Idem: 133 134). O autor chama ateno para o fato do
mito de origem reforar a ideia de que foram os negros com sua f absoluta que conquistam a
simpatia da Santa. Por esses e diversos outros elementos, Silva demonstra que, escapando dos
estigmas (Goffman, 2008), os Congados criam uma forma particular de expresso, um
catolicismo negro (Bastide, 1989) a partir de uma construo positiva da identidade negra (Silva,
2010: 135).
Esta forma positivada de encarar a identidade negra distancia o trabalho de Rubens Alves
da Silva do de Pierre Sanchis (1995) e o aproxima das concepes de Bastide (1989), para o qual
o Catolicismo negro brasileiro foi, como as religies africanas em certa medida, uma subcultura
de classe (Bastide, 1989: 162 Apud. Silva, 2010: 176). Nesse sentido, a aproximao permite a
interpretao de que atravs do mito de origem do Congado os sujeitos tratam de relaes
raciais. Interessante notar pelo trabalho de Silva (2008) que, nessa construo positiva da
identidade negra, o processo de domesticao e de folclorizao de alguma maneira no
encontra as condies mais adequadas para seu desenvolvimento. Muitas contradies que
apontam para tal questo se encontram discutidas em seu artigo de 2008, no qual debate
especificamente as diferenas e tenses entre a viso dos partcipes e as montagens em matrias
para a televiso. Discute-se a presena da mdia como um dado etnogrfico que contribui para a
reflexo a respeito do processo de legitimidade social de manifestaes como as congadas (e
congados) bem como a amplitude da difuso que se pretende quando se busca inclusive o
estrangeiro (cf. Silva, 2008: 179 180).
A importncia da reflexo evidente, na medida em que para alm da atuao local,
territorializada e contextualizada na devoo, manifestaes como congadas se projetam para
fora de seus limites municipais. Ao faz-lo novas circunstncias so criadas, novos discursos so
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apresentados e novas interpretaes so produzidas a partir dessas montagens, narrativas
audiovisuais que vo desde produes para matrias de telejornais regionais e at nacionais,
como tambm produes institucionais ou particulares com objetivo de divulgar ou cobrir o
evento.
(...) o jornalismo no s silencia pelo apagamento dos fatos, mas tambm pela visibilidade que d a eles. No caso das performances congadeiras foi possvel perceber essa estratgia, pois os noticirios ao escolh-las como pauta preferencial na cobertura do que reconhecido como tradio local, em certo sentido, imps um vu sobre as contradies latentes no seu contexto especfico e, por sua vez, sugestivas dos problemas no resolvidos e mais amplos, de ordens histrica, social e poltica da sociedade brasileira (Silva, 2008: 194).
Nesta passagem o autor evidencia um processo que explicita fissuras semelhantes ao que ocorre
na Festa de So Benedito de Ilhabela. As especificidades da linguagem audiovisual so tambm
colocadas sob perspectiva crtica: ao silenciar, por uma espcie de ocultar mostrando, a
aniquilao das contradies e tenses so determinadas no pela visibilidade em si, mas pela
maneira que se constri tal montagem atravs da qual se d visibilidade. H inteno e objetivo
em todos esses processos que no podem se dar a no ser de maneira pensada e calculada.
Da mesma maneira que os mtodos de investigao dos folcloristas e suas publicaes
determinaram, de certa maneira, os processos de domesticao de tais manifestaes, certamente
as montagens televisivas e audiovisuais contribuem para a continuidade desse mesmo processo,
produzindo as formas nas quais os discursos so produzidos, formas que prescrevem medida
que descrevem (Bourdieu: 1996), modelos performativos que tencionam com a realidade local de
maneira dissonante, produzindo formas objetivadas que induzem interpretaes harmonizantes,
unnimes e universais.
Movendo-se de Minas Gerais para o litoral norte de So Paulo, alguns trabalhos sobre os
municpios de Ubatuba, Caraguatatuba, So Sebastio e Ilhabela so extremamente importantes
para compreender questes referenciais do contexto no qual ocorre a Festa de So Benedito. A
dissertao de Hayde Dourado de Faria Cardoso, Relaes entre cultura popular e indstria cultural: a
congada de Ilhabela (1982) tem a preocupao de abordar a Congada da Ilha tomando as
modificaes ocorridas a partir do final da dcada de 1960, quando se d o incio do crescimento
do turismo na Ilha. A autora descreve o surgimento e incremento das dificuldades de
sobrevivncia na Ilha aps a queda do ciclo econmico do caf que obriga muitos caiaras a
migrarem ou venderem suas terras prximas s praias, paralelamente ao crescimento das favelas,
dos hotis, das marinas e da populao flutuante (Cardoso, 1982: 11; cf. Mussolini, 1980;
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Marclio, 1986). Apoiando-se no texto de Kazadi Wa Mukuna (1999), Cardoso argumenta que as
migraes das populaes bantos no Brasil coincidem com a incidncia das congadas.
Uma das principais hipteses de Cardoso (1982) a de que as palavras pronunciadas na
Congada seriam provenientes de lnguas africanas teriam relao direta com a manuteno dos
fundamentos das religies africanas e do candombl. Cardoso faz tambm uma anlise da
encenao da Congada e de seu texto, abordando diversos eventos conflituosos no que diz
respeito hereditariedade da transmisso da coroa do Rei da Congada. Deste trabalho, nos
interessa muito as descries sobre a crise de 1978 quando o Rei Man decide no realizar a
Congada devido a um convite para filmagem e acaba sendo destitudo. Este um trabalho
importantssimo para o entendimento de nosso objeto, na medida em que articulam-se
negociaes para a transmisso do cargo de Rei da Congada e um possvel retorno da coroa para
a famlia tradicional depois de quase 30 anos.
Em seu trabalho de 1990, O gesto, o canto, o riso: histria viva na memria, Cardoso aborda
no mais apenas a Congada, mas tambm os Caiaps e os Quilombos, procurando entender de
que maneira opera o conjunto de smbolos encontrados nessas danas a partir do eixo de que as
guerras so os pontos recorrentes essenciais dessas encenaes. A autora utiliza as idias do
historiador francs Marc Ferro (s/d) sobre as falsificaes da histria pensando as trs
manifestaes como expresses reais que agem no sentido de conservar determinadas memrias
e assim tornar inteligvel o presente atravs do passado. Ao concluir, a autora afirma que as trs
manifestaes se referem memria coletiva do trfico negreiro. As questes relacionadas com
os dramas sociais presentes em Ilhabela inclusive a questo em torno da transmisso da coroa
nos interessam sobremaneira pois parecem intimamente conectadas com as questes histricas
que tornam o presente inteligvel.
Justamente sobre esta questo se debrua Mrcia Merlo (2000, 2005a, 2005b), cujos
argumentos so extremamente importantes dentro do quadro dessa literatura apresentada. Em
seu livro intitulado Memria de Ilhabela: faces ocultas vozes no ar (2000), a autora mostra de que
maneira na Congada so expressos elementos ligados cultura banto nos quais ressoam vozes
encobertas e memrias quase esquecidas. Apoiada pela teoria da memria de Henry Brgson
(1990), Ecla Bosi (1979), Maurice Halbwachs (1935, 1990) e Michel Pollak ([1938] 1989, 1992),
Merlo procura evidenciar a emergncia de contradies entre interesses de comerciantes,
investidores fundirios e a populao nativa. A partir de narrativas que exploram a relao do
passado com o presente do cotidiano da Ilha, Merlo argumenta que a face caiara continua
resistindo e se reinventando atravs da Congada, do Caiap e das Folias de Reis. Aproximando
os trabalhos de Silva (2005a; 2008; 2010) e Merlo (2000) um aspecto surge de maneira muito
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evidente: a ateno aos elementos contraditrios manipulados nas construes dos discursos que
envolvem questes tnicas e culturais.
Em 2005 Mrcia Merlo publica En