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Anhanguera Educacional S.A. Correspondência/Contato Alameda Maria Tereza, 2000 Valinhos, SP - CEP 13278-181 [email protected] [email protected] Coordenação Instituto de Pesquisas Aplicadas e Desenvolvimento Educacional - IPADE
Trabalho realizado com o incentivo e fomento da Anhanguera Educacional S.A.
Graciel Marques Tarão Fernando Milhomem da Silva
Professor Orientador: Esp. Alessandro Gonçalves da Paixão
Curso: Direito
FACULDADE ANHANGUERA DE ANÁPOLIS
Trabalho apresentado no Evento Interno de Iniciação Científica - 2009.
UM NOVO OLHAR À INIMPUTABILIDADE PENAL INDÍGENA
ANUÁRIO DA PRODUÇÃO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA DISCENTE
Vol. XII, Nº. 14, Ano 2009
RESUMO
Segundo a legislação vigente, o “índio de fato”, em regra, é considerado inimputável para os fins de aplicação de penas, ou seja, estão isentos do poder punitivo do Estado, devido à sua condição especial, pois ainda se encontram no estado de selvageria ou de completo isolamento. Porém, os recentes acontecimentos noticiados pelos meios de comunicação, envolvendo índios em fatos criminosos e que a rigor têm alcançado grandes proporções, por vezes, até mesmo em âmbito internacional, trazem à tona a discussão referente à inimputabilidade do silvícola, que até pouco tempo tinha-se por absoluta. Tais acontecimentos podem ser dinamizados no Conflito de Competência nº 93000/MS, suscitado pelo Juízo Federal da 1.ª Vara de Ponta Porã da Seção Judiciária de Mato Grosso do Sul (MS) em face do Juízo de Direito da 1ª Vara de Amambaí (MS), onde se discutiu a competência para julgamento de homicídio cometido pelo indígena Elizeu Lopes. Nesse contexto, percebe-se uma possível divergência no próprio Judiciário quanto à Justiça competente para conhecer da causa do índio, ao mesmo tempo em que a população movida por opiniões diversas e antagônicas tenta compreender o que de fato está ocorrendo. Assim, tais aspectos levam a questionar até que ponto vai a inimputabilidade do silvícola, levando-se em consideração o “mito” de seu desenvolvimento mental incompleto ou retardado. E ainda, qual é de fato a Justiça competente para conhecer da causa. Dúvidas dessa natureza motivaram a presente pesquisa.
Palavras-Chave: inimputabilidade; indígena; desenvolvimento mental; conflito.
207 Publicação: 10 de maio de 2010
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1. INTRODUÇÃO
A população indígena vem, a cada dia, se misturando à sociedade. Segundo dados da
Fundação Nacional do Índio (FUNAI), cerca de 30% das populações indígenas habitam
em áreas urbanas. Isso significa que existem aproximadamente cerca de 190 mil índios
vivendo em contato direto com a sociedade. Esse fato conseqüentemente gera um
aumento proporcional na incidência de índios que cometem crimes. Nesse panorama,
várias questões começam a ser levantadas no meio jurídico.
Dentre essas, há algumas situações que devem ser analisadas, entre as quais, o
fato de o indígena ser considerado portador do desenvolvimento mental incompleto ou
retardado, que por sucessivas vezes tem causado grande instabilidade no meio
doutrinário. Não obstante o mencionado, outro fator de grande relevância, é o aparente
conflito de competência existente entre a Justiça Federal e a Estadual para tratar das ações
envolvendo crimes praticados por índios.
E para melhor compreensão e análise, este artigo foi organizado em seções. A
primeira seção é essa introdução, a seção 2 apresenta os objetivos da pesquisa. A
metodologia utilizada na realização da pesquisa é apresentada na seção 3. As informações
relacionadas ao desenvolvimento da pesquisa como a revisão de literatura, o problema
abordado, a solução proposta e implementada são mostradas na seção 4. Os resultados e
as discussões são descritos na seção 5. Por fim, as considerações finais são apresentadas na
seção 6.
2. OBJETIVO
Com base no exposto supra, foi possível chegar aos seguintes objetivos:
Objetivo Geral
Tentar esclarecer alguns aspectos inerentes à situação do silvícola delituoso frente à
Justiça, no que se refere à sua inimputabilidade penal, fazendo para tanto um minucioso
estudo do tema.
Objetivos específicos
• Conceituar didaticamente o que é indígena.
• Buscar esclarecer o “mito” de que o silvícola é portador de desenvolvimento mental incompleto ou retardado.
• Fazer um levantamento histórico das legislações anteriores no que tange
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aos indígenas, demonstrando de que forma era tratado esse assunto no passado.
• Analisar o conflito de competência existente, entre a Justiça Federal e a Estadual.
3. METODOLOGIA
O presente projeto foi desenvolvido basicamente por meio de pesquisa bibliográfica e da
análise crítica de bibliografia, com fontes históricas capazes de conceder subsídios para a
compreensão do objeto de estudo e consecução dos objetivos. Para os resultados
apresentados, o referencial é mormente histórico, pois se entende como necessário para a
análise do tema proposto, em consonância com os objetivos.
4. DESENVOLVIMENTO
Dada a grande importância e pouca disseminação analítica a respeito do tema, faz-se
necessária uma análise acerca da problemática que envolve o indígena, buscando delinear
os aspectos terminológicos, jurídicos, históricos, sócio-culturais e, especialmente, aqueles
que tocam a imputabilidade do silvícola, bem como os critérios que se utilizam para
definir se o índio é imputável ou não.
4.1. Definição
Índio, segundo o dicionário Laudelino Freire, é o aborígine da América, isto é, o habitante
originário da América.
O vocábulo índio e o seu plural índios podem ser encontrados em diversos
dispositivos da legislação brasileira, entre elas, vale citar a Constituição Federal em seu
Capítulo VIII, intitulado “Dos índios”, bem como a Lei 6.001/73, denominada Estatuto do
Índio. Também o vocábulo silvícola é utilizado pela legislação brasileira como sinônimo
de índio.
A Lei 6.001/73, em seu artigo 3º cuida de definir índio como sendo “todo
indivíduo de origem e ascendência pré-colombiana que se identifica e é identificado como
pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade
nacional”. Traço próprio do índio é, pois, a sua pertença a um grupo étnico com
características culturais diferentes das dos demais indivíduos que compõem a sociedade
nacional, tratados, neste trabalho, como não-índios.
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4.2. Evolução Histórica da Legislação Indigenista
Para uma melhor análise acerca da evolução da legislação penal indígena, faz-se
necessário a sua divisão em dois períodos distintos: o período colonial e a fase
constitucionalista.
Período Colonial
Durante o período colonial, foram feitas inúmeras leis e documentos legais que tinham
por finalidade regulamentar a situação dos povos recém descobertos.
Um dos primeiros documentos de que se tem notícia acerca do indígena
brasileiro é o Regimento do Governador Tomé de Souza, o qual continha determinações
extremamente precisas e cruéis com a finalidade de impor a fé católica aos indígenas.
Posteriormente, em 1537 foi expedida uma Carta Regia que permitia a escravização dos
índios Coités. Nesse mesmo ano, o papa Paulo III, expediu uma Bula pela qual eram
excomungados todos aqueles que mantivessem índios em cativeiro, sendo tal ordenado
confirmado em 1639 por Urbano VIII. E, posteriormente, pela lei de 30 de julho de 1609, os
índios foram declarados livres, conforme o direito e o seu nascimento natural, o que
restabeleceu os seus direitos de liberdade. Porém, tal premissa teve pouca duração, pois
com a decretação de nova lei datada de 10 de setembro de 1611, restabeleceu-se o regime
de escravidão.
Embora a Igreja Católica tivesse muita influência no processo de colonização do
Brasil, não foi capaz de impedir a legislação que permitia a escravidão. Somente em 1647,
é que foi revogada a lei de 13 de outubro de 1611, que estabeleceu condições para a
liberdade dos gentios.
Contudo, a incoerência e oscilação da legislação fizeram com que as leis dos anos
1663, 1667 e 1673 voltassem a determinar hipóteses de escravidão indígena. Dessa forma,
a revogação definitiva da escravidão indígena só ocorreu com a Carta Regia de, 27 de
outubro de 1831.
Das Constituições
No que tange as constituições brasileiras, a primeira a dispor acerca da situação jurídica
do índio foi a de 1934, que dedicou em seu texto dois tópicos a respeito dos indígenas.
Em seguida, a Carta Constitucional de 1967 incluiu entre os bens da União as
terras ocupadas pelos silvícolas e a Emenda Constitucional n° 1, de 17 de outubro de 1969,
em seu artigo 8°, inciso XVII, conferiu à União a atribuição para legislar sobre a
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incorporação dos silvícolas à comunhão nacional. Porém, dentre as constituições a que
mais se dedicou à temática do índio, foi a Carta da República de 1988, que deu maior
atenção à dura realidade vivida pelos indígenas.
Quanto à norma penal, essa foi tratada pela Lei 6.001 de 1973, denominada
Estatuto do Índio, que em seu artigo 56, definiu não só a possibilidade de penalização do
indígena, mas também a sua forma de tratamento em caso de condenação penal.
4.3. Da Integração
Segundo o artigo 4º, incisos I, II e III da Lei 6.000/75, os índios podem ser considerados
como: isolados, em vias de integração e integrados.
Os primeiros são aqueles que vivem em grupos desconhecidos ou dos quais se
possuam poucos e vagos conhecimentos a seu respeito. Os ‘em vias de integração’
corresponderiam àqueles que, “em contato intermitente ou permanente com grupos
estranhos, conservem menor ou maior parte das condições de sua vida nativa, mas
aceitam algumas práticas e modos de existência comuns aos demais setores da comunhão
nacional, da qual vão necessitando cada vez mais para o próprio sustento”. Por fim, os
índios integrados são “aqueles incorporados à comunhão nacional e reconhecidos no
pleno exercício dos direitos civis, ainda que conservem usos, costumes e tradições
característicos da sua cultura”.
4.4. Do desenvolvimento mental incompleto ou retardado
Reza o artigo 56 da Lei nº 6.001/73, “no caso de condenação de índio por infração penal, a
pena deverá ser atenuada e, na sua aplicação, o juiz antenderá também ao grau de
integração do silvícola”.
No que se refere à forma de aplicação da referida sanção penal, salienta o
parágrafo único do mesmo artigo, que “as penas de reclusão e de detenção serão
cumpridas, se possível, em regime de semiliberdade, no local de funcionamento do órgão
federal de assistência aos índios mais próximo da habitação do condenado”.
De forma geral, em consonância com o supra mencionado, as penas aplicadas ao
indígena deverão ser atenuadas, em virtude de ser o agente índio e, como parâmetro de
dosimetria da pena, deverá ser levado em consideração o seu nível de integração social.
Por conseguinte, a referida atenuante alcançará maior proporção, na medida em que for
menor o seu grau de integração.
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Porém, o que se verifica é que tal posicionamento vem sendo tratado de maneira
discriminatória, por parte do entender doutrinário. De modo que alguns doutrinadores
penalistas freqüentemente não têm admitido a atenuante em tela, isto é, o fato de o agente
ser índio, não deve ser considerado. Pelo contrário, o nível de integração vem sendo
tratado em face do artigo 26 caput, e parágrafo único do Código Penal Pátrio, como
sinônimo de desenvolvimento mental incompleto ou retardado.
Segundo mencionado no artigo 26 do Ordenamento Penal Pátrio, é considerado
isento de pena, aquele que por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou
retardado, era ao tempo da ação ou omissão inteiramente impossibilitado de
compreender o caráter ilícito do fato ou de agir de acordo com esse entendimento. O
parágrafo único do mesmo artigo prevê a possibilidade da redução da pena, de um a dois
terços se o agente não era capaz de entender o caráter da ilicitude do fato praticado.
Em conformidade com o mencionado, salienta o renomado doutrinador Nelson
Hungria (1980) in verbis:
Sob este título se agrupam não só os deficitários congênitos, do desenvolvimento psíquico, ou oligofrênicos (idiotas, imbecis, débeis mentais), como os que são por carência de certos sentidos (surdos-mudos) e até mesmo os silvícolas inadaptados... assim, não há dúvida que entre os deficientes mentais é de se incluir também o homo sylvester, inteiramente desprovido das aquisições éticas do civilizado homo medius que a lei penal declara responsável. (HUNGRIA, 1980, p.271).
Passadas décadas, o entendimento jurídico perpetuou no tempo sem mudanças
significativas, pois a grande maioria da doutrina criminal ainda entende que os silvícolas
não integrados hão de ser englobados, para fins de inimputabilidade, no âmbito do
desenvolvimento mental incompleto ou retardado. Afirma Damásio de Jesus (1994, p.
441), que a segunda cláusula de inimputabilidade é o desenvolvimento mental
incompleto, i.e., o desenvolvimento mental que ainda não se concluiu. É o caso dos
menores de 18 anos e dos silvícolas inadaptados.
No entanto, é de se perceber que o grau de integração do silvícola e o
desenvolvimento mental são duas premissas que não mantêm a menor correspondência
entre si. Pois, para que um índio ou qualquer outra pessoa seja portadora do
desenvolvimento mental incompleto, não há de se exigir que este esteja integrado ao meio
social. Não se pode permitir que as diferenças culturais sejam utilizadas como argumento
para se fazer o julgamento da sanidade, ou do desenvolvimento mental de qualquer
pessoa. Colocar diferenças culturais em patamar de retardamento resulta algo
extremamente perigoso, pois partindo de tal entendimento, todo aquele que não fizer
parte de um determinado padrão de organização social passa a ser tratado como
retardado.
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Para evitar tal desatino, ensina o mestre Heleno Fragoso (1995), que “é
necessário, fazer uma distinção precisa entre a inimputabilidade decorrente de uma
situação peculiar, do ponto de vista sociocultural e a cláusula de desenvolvimento mental
incompleto.”.
A jurisprudência mais recente tem se desenvolvido no sentido de estabelecer
uma clara distinção entre desenvolvimento mental incompleto e/ ou retardado e o grau
de integração do silvícola. Portanto, é perceptível que o desenvolvimento mental
incompleto, bem como baixo nível de aculturação são elementos totalmente distintos e
não podem ser confundidos.
Portanto, frente aos recentes acontecimentos, não se pode continuar a tratar o
silvícola como um ser com desenvolvimento mental incompleto ou retardado, pois como
argumentou Solange Rita Marczynsky, em debate na comissão pró-índio de 1990, em São
Paulo - SP, “[...] o índio é mentalmente normal, o que ele tem é cultura diferente, e por
vezes não entende o significado de determinada regra, como um estrangeiro pode
também não entender [...]”.
Também no sentido do desenvolvimento mental do índio Helder Girão Barreto
(2005), anota que:
A qualificação do índio como ‘inimputável’, na presunção de que seu desenvolvimento mental é incompleto, a nosso sentir tem forte odor de discriminação. Primeiro, porque se inadaptação for sinal de desenvolvimento mental incompleto, haveremos de inserir nessa categoria muitos estrangeiros. Segundo, porque a inadaptação não significa ausência ou redução de entendimento de valores e práticas, mas exatamente o contrário: significa consciência que eles são ‘diferentes’. Terceiro, mesmo que o pressuposto fosse verdadeiro, dele não decorreria a inimputabilidade: seria necessária a prova de ausência da capacidade de entender e de querer no momento da conduta. (BARRETO, 2005, p. 41).
Dessa forma, para que se detecte a imputabilidade indígena, o fato de ele ser
tratado como portador do desenvolvimento mental incompleto ou retardado, não é
suficiente para tanto, sendo necessário analisar a cultura e os costumes, para que se saiba
se há, ou não, condições de o indígena compreender o caráter ilícito da conduta tipificada
em nossa sociedade.
Sendo essa a orientação estabelecida no artigo 8.1 da Convenção 169 da OIT,
segundo o qual, “ao aplicar a legislação nacional aos povos interessados deverão ser
levados em consideração seus costumes ou seu direito consuetudinário.” Tal conotação
tem amparo no art. 231 da Constituição Federal, que garante o reconhecimento da
diversidade étnica e cultural e impõe respeito aos valores determinadores do
comportamento do grupo minoritário.
Nessa vertente assenta Paulo de Bessa Antunes (2005), in verbis:
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Retardamento mental, não só para os índios, mas também para todo e qualquer acusado deve ser comprovado por perícia médicopsiquiatrica. Já o grau de integração do índio somente pode ser provado pela perícia antropológica que é a modalidade técnica específica. Não pode o magistrado baseado em impressões pessoais, determinar se o indígena já se encontra em nível de compreensão plena do ordenamento jurídico da sociedade nacional e em gozo da capacidade de se auto-ordenar, em consonância com tal entendimento. (ANTUNES, 2005, p. 1074).
Salienta ainda o mencionado autor que a inexistência do laudo antropológico, em
sede de condenação criminal de indígena, poderá acarretar a nulidade da decisão em
virtude do cerceamento do direito de defesa e falta de prova técnica.
O projeto de Lei nº 2.057/91, que estabelece o Estatuto das Sociedades Indígenas,
em seu artigo 151, § 1º, determina a obrigatoriedade da perícia antropológica para que se
possa determinar o grau de consciência da ilicitude do ato praticado pelo indígena, dando
assim um tratamento mais pertinente à matéria, sendo superior ao tratamento contido na
Lei 6.001/73.
4.5. Da Competência
No que diz respeito à competência, foi este um ponto que por muito tempo demandou
inúmeras controvérsias entre Justiça Federal e Justiça Estadual, para definir qual a
competente para conhecer das causas em que havia indígena figurando como autor ou
vítima.
A Constituição Federal em seu artigo 109, XI, atribui aos juízes federais a
competência para processar e julgar “a disputa sobre direitos indígenas”. Dessa forma a
Justiça Estadual não estaria mais legitimada a tratar das infrações praticadas por ou em
desfavor de índios.
Porém , em 1995, no Superior Tribunal de Justiça, o tema foi pacificado na
Súmula 140, “Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar crime em que o
indígena figure como autor ou vítima.” Entretanto o Supremo Tribunal Federal, em
julgamento realizado pela 2ª Turma, mostrou - se em sentido contrário a Súmula 140 STJ,
estabelecendo a competência exclusiva para a Justiça Federal.
Nesses termos, se faz necessário ressaltar as palavras do eminente ministro Celso
de Mello, in verbis:
A Constituição promulgada em l988 introduziu nova regra de competência, ampliando a esfera de atribuições jurisdicionais da Justiça Federal, que se acha, agora, investida de poder para também apreciar “a disputa sobre direitos indígenas” (CF, art. 109, XI). Essa regra de competência jurisdicional - que traduz expressiva inovação da Carta Política de l988 - impõe o deslocamento, para o âmbito de cognição da Justiça Federal, de todas as controvérsias, que, versando sobre questão de direitos indígenas, venham a ser suscitados em função de situações específicas. A competência para dirimir controvérsias pertinentes aos direitos indígenas pertence à Justiça Federal comum. (MELLO; RE 183.188, p. 2).
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Nesse aspecto, a falta de consenso no entendimento contido na Sumula 140 do
STJ e os julgados do Supremo Tribunal Federal, poderia gerar indicação a necessidade de
revisão da Súmula 140 do superior Tribunal de Justiça, que se encontraria ligado ao já
superado ideal integracionista.
No entanto, o que se percebe é que a divergência em foco já está pacificada na
jurisprudência, recentemente, a 1ª e 2ª turmas do Supremo Tribunal Federal, não
seguindo a orientação anteriormente proferida pelo mesmo Tribunal, passaram a
considerar de competência da Justiça Federal, apenas os fatos que versar sobre questões
ligadas a cultura indígena e aos direitos e fatos sobre suas terras.
Dessa forma, deixaria de existir o mencionado conflito, visto que, os demais
crimes envolvendo indígenas e que não versassem sobre os referidos temas, seriam
tratados pela justiça comum estadual, em face da Súmula 140 do Superior Tribunal de
Justiça.
5. RESULTADOS
Percebe-se que a discussão quanto à possibilidade de o indígena responder penalmente
por eventual prática de crime, aos olhos da doutrina e da jurisprudência, resta superada.
Pois já é pacífico o entendimento de que somente está isento de pena o índio inadaptado,
isto é, aquele que se encontra isolado e que ainda não assimilou a cultura do não índio.
Dessa forma, os demais, ou seja, aqueles que se encontram integrados ou em vias
de integração, com exceção daqueles que de fato são portadores de doença mental, são
“plenamente” responsáveis em face da legislação penal. O que faz com que o índio tenha
um tratamento diferenciado é a sua própria razão de ser índio, garantindo assim, não uma
descriminalização das condutas tidas como delituosas por ele praticadas, mas sim, um
tratamento diferenciado no que diz respeito à forma de execução e cumprimento de suas
penas, devido as suas particularidades.
Devendo ainda, ser necessário a realização do exame antropológico para que, no
momento da aplicação da sanção penal, possa se saber o grau de integração do indígena e
auferir, no momento do ato, a sua capacidade de entender a ilicitude.
Assim, torna-se perceptível que o indígena, ao contrário do que muito se discute,
não é portador de desenvolvimento mental incompleto ou retardado, pois o que de fato se
demonstra é que o índio possui cultura diferente, pois como afirma Aníbal Bruno (2003),
in verbis:
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Não há nada aí de patológico, ou tetralógico, é claro, mas a ausência de adaptação à vida social do nosso nível, às normas complexas que regulam e aos seus critérios de valor dos julgamentos, além da existência de certas tonalidades dos processos psíquicos desses indivíduos e de certos complexos afetivos, que os dirigem e os põem em condição de incapacidade de entendimento e orientação volitiva na qualidade e graus exigidos pelo código (BRUNO, 2003, p.135).
Nesse prisma, assevera-se que ao indígena deve ser assegurado o direito a
alteridade, assim como menciona a Carta Constitucional de 1988, reforçada pela
convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que têm como objetivos
fundamentais garantir ao indígena a manutenção de sua cultura, valores e
conseqüentemente seu direito à diferença.
Deve-se ressaltar também, que esses direitos referentes à diferença e alteridade
em decorrência de sua cultura têm sido desrespeitados, desde o período colonial.
Sendo o indígena portador de cultura diferente, e em virtude de sua situação de
quase extinção, a União, por meio da Carta Constitucional de 1988, chamou para si de
forma clara a competência para julgar todos os assuntos referentes aos direitos indígenas
e suas terras, atribuindo tal especificidade à Justiça Federal.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo, além de oferecer uma maior compreensão a cerca do tema, no que diz
respeito à situação do silvícola, também demonstrou a fragilidade da nossa legislação, na
forma de lidar com o indígena infrator, uma vez que ainda se mostra presa ao antigo e
ultrapassado ideal integracionista.
Sendo, para tanto, necessário uma reformulação da legislação vigente, pois, além
de mostrar-se ineficaz, também gera controvérsias, mesmo que aparentes. E tal ocorrência
não deve ser admitida em um Estado Democrático de Direito, onde se prima pela clareza
e segurança da norma jurídica.
O que também se percebe é que os estudos jurídicos voltados exclusivamente
para os índios e sua realidade são muito poucos em nossa literatura especializada. E
apesar das recentes tentativas de uma nova abordagem do tema, infelizmente, esta lacuna
em nosso universo jurídico ainda está longe de ser superada. Na realidade, os cursos
jurídicos e os estudantes do Direito não têm demonstrado muito interesse, seja pela vida
ou pelos direitos indigenistas. Mostrando-se necessário um maior debate acerca do tema
que ainda apresenta uma vastidão de critérios, os quais ainda se quer foram cogitados.
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Nesse aspecto, o tema da inimputabilidade indígena, é apenas uma das
ramificações desta ceara do Direito, que ainda se mostra pouco debatida, o que abre a
possibilidade para o desenvolvimento de novas pesquisas e trabalhos a respeito do tema.
REFERÊNCIAS
ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 7. ed. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2005.
BARRETO, Helder Girão. Direitos indígenas vetores constitucionais. Curitiba: Editora Juruá, 2005.
BRASIL. Constituição da República Federativa de 1988, 1888.
______. Lei n° 6.001, de 19 de dezembro de 1973.
BRUNO, Aníbal. Direito Penal parte Geral. Editora Forense, 2003.
FRAGOSO, Heleno Claudio. Lições de Direito Penal. 15. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1995.
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JESUS, Damásio E. de. Direito Penal – 1° volume – Parte Geral. São Paulo: Editora Saraiva. 13. edição, 1994.
MARCZYNSKY, Solange Rita. Índios: temas polêmicos. Revista Trimestral de Jurisprudência dos Estados, v. 88.
MELLO, Celso de. RECURSO EXTRAORDINÁRIO Nº 183.188-0 MATO GROSSO DO SUL.
SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés. O Direito envergonhado: o direito e os índios no Brasil. In: GRUPIONI, L.D. Benzi (Org.). Índios do Brasil. São Paulo: Secretaria Municipal de cultura, s/d.
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