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Um Diário Imaginário Pietro Tripodi

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Um Diário Imaginário

Pietro Tripodi

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Primeira Parte

...

Exposição

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I. Em algum momento daquela noite – que se fazia limpa, sem qualquer gota d’água, e marcada pelas confusas explosões dos fogos de artifício –, o ano de 2012 deu seu último “tic” e fora imediatamente seguido pelo de 2013. Mas não creio que o simples termo “imediatamente” seja capaz de descrever a efemeridade daquele momento, que por sua vez, se criava e destruía tão rápido que nem se deixava aperceber-se pelos nossos sentidos. Talvez aquele pequeno instante – que ressaltava em todos nós a incerteza do futuro – estivesse escondido em meio a algum dos estampidos brilhantes que avistava da janela. “Paff”: talvez este som incerto, que transita entre o real e o imaginário da minha mente também transitasse entre o ano velho e o ano novo, se colocando lá, talvez imperceptível pelos meus sentidos ou talvez com um timbre quente e metálico, que permitira por um pequeno instante, fazer meus tímpanos vibrarem, e assim conseguir uma impressão verossímil (mas ao mesmo a única) da sua verdadeira existência. Um som entre mundos, que pertence tanto a um mundo quanto ao outro, mas ao mesmo tempo tem seu próprio mundo... Esta existência, que separa, como um único corte de guilhotina o velho e o novo, me parece tão confortável como ter os dias cuidadosamente registrados num calendário fixado na parede – o qual nos permite divisar cuidadosamente as sensações e memórias espalhadas por um período aparentemente indefinível. Posso imaginar tudo que se sucede a esse período indefinível tomando forma, e sendo assim chamado de ano novo... Mas como poderia chamá-lo de novo se sei que tudo aquilo que diz respeito à sua existência tem como única base àquilo que lhe foi anterior, aquilo que lhe foi externo? Era exatamente este mesmo pensamento que se formava pela simples admiração da vista que se podia vislumbrar a partir da janela da minha área de serviço. A janela que permitia a melhor vista da cidade: uma vista interessante, e que em todo ano novo, se fazia mostrar com um festival de fogos relativamente decente. Assim como em todas as noites do ano que se fora, a silhueta dos prédios estendia-se por uns bons 2 ou 3 quilômetros, sendo estes margeados, logo ao fundo pela mancha verde de um parque aparentemente interminável. Mas isto tudo não era coisa que mudava de um ano para o outro: era como um quadro que toda a vez era repintado exatamente igual, mas que mudava o nome e a assinatura das nossas esperanças. Pensei quantas vezes não lancei meu olhar em direção ao futuro, sem nada receber em troca que não fosse o adiamento quase sempre constante da promessa da felicidade – esta cada vez se parecendo mais distante de mim, e de forma quase sempre diferente da anterior. Ah, aquela vista não podia ser outra coisa que não fosse a infelicidade, lançada com escárnio para

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cima de mim, com os tons sombrios da cidade grande e que era causada pela repetição de um modo de vida que não fazia par às diferentes mudanças de meu espírito. Quisera abandonar-me ali, e ir de encontro a todo este terror, este sentimento acinzentado que me cercava. Sabia que toda está angústia só se fazia crescer a cada instante, pois cada novo sorriso, cada nova tentativa de fuga a aumentava ainda mais, e com isso, maior o ódio que já começara a sentir por mim mesmo. Lembro também que um detalhe na paisagem, aparentemente insignificante, me chamou a atenção como nenhum outro: no fundo, um ponto onde os prédios do último plano faziam-se combinar com as casas logo abaixo, parecendo que estas eram nada menos do que o reflexo dos prédios num rio imaginário, e distante. Senti uma sensação utópica, como se aquele rio, em toda a sua beleza e grandeza, fosse capaz de limpar toda a imundice ao seu redor, e devolvê-la toda a glória e perfeição. Em meio a todo este redemoinho de sensações, impressões, idéias, emoções e angústias, e que expandia cada vez mais a solidez de meus pensamentos, minha mãe, incautelosamente, deixou soltar um comentário, aparentemente inofensivo: – Este barulho de fogos, sabe? É igual ao barulho numa guerra. E antes mesmo que meus pensamentos pudessem atingir o auge de seu esclarecimento, me vi em cenários e circunstâncias completamente diferentes. II. Estava numa guerra... Algo parecido com a primeira guerra mundial, dominada por todos os tipos de explosões metálicas e venenosas. Era uma paisagem pintada no negro, e tudo aquilo que parecia fugir da minha compreensão era dominado por um vazio estéril. Um todo desesperador, onde meus sentimentos angustiados pareciam de alguma forma ligados aos gritos e gemidos que ressoavam fantasmagoricamente pelas trincheiras e fossas cavadas no chão arenoso. Tudo era cinza, à exceção do vermelho do sangue salpicado e da cor repulsiva dos gases venenosos. Apesar de tudo, ainda percebia que minha mente transitava entre a confusão apocalíptica e a alegria explosiva da noite de ano novo. Enquanto a confusão se intensificava, e minhas ações se viam cada vez mais dominadas por uma ânsia quase que desumana, pude ver a poucos metros de mim, um soldado com a perna completamente destroçada deitado numa maca e que, após um ruído devastador, fora abandonado por outros dois soldados bem em cima de uma pilha de destroços quase inidentificáveis. O soldado, que parecia agora não pertencer a mundo algum, tinha um rosto tão lindo que dificilmente se faria imaginar. Para ser sincero, aquela não era um beleza de fato concreta, ou tangível... Estava muito mais para um conceito que por estar preso à minha mente, havia se formado como tal, dispensando qualquer imagem nítida ou sólida. Sonhava uma hora um sonho que se fazia no sono, outra hora um sonho que se fazia acordado... Uma cena, uma situação universal, livre de qualquer particularidade, e que em sua existência, abrigava muito mais que a si mesma.

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Ficou-me claro o que tudo aquilo representava na minha mente: era uma coisa complexa, de um simbolismo muitas vezes traiçoeiro, e que por mais que tente agora, esconde boa parte do seu sentido em meio às dobras intermináveis do sonho, da alma e da existência. Antes do despertar, lembro de vê-lo se lamuriando, e de minhas tentativas inúteis de consolá-lo: – Está tudo bem... Queria morrer de tristeza, abandonar a luz e entregar-me a escuridão. Sua perna se estendia inexistente em direção ao caos, e assim como ela, sua existência também. III. Não existe divisão clara entre consciência e sonho, principalmente nos primeiros minutos do despertar; parece que tudo é junto – e também separado – por um vácuo, menos irreal que o sonho e também menos real que a consciência. Mas naquele estado, assim como todos os outros, já havia entrado na melancolia que me dominaria pelo resto do dia. Era como se tanto a realidade quanto o sonho fossem ambos indesejáveis, e dominados pelo mesmo sofrimento: aquilo que eu mais amava parecia inalcançável. IV. Inversos

Acho que você já sabe, mas agora é uma hora formal de se dizer: eu era um “inverso”. Talvez você não saiba o que quero dizer com esta palavra aqui, mas lembre-se: O inverso é contrário de alguma coisa, no caso o contrário do que é tido como certo ou padrão. Muitos se revoltam por este termo, mas não encontro nenhum outro mais apropriado. Muitas das outras denominações, creio eu, resultariam num termo menos amplo, e também limitariam e muito o sentido total. Poderia escrever um livro sobre o assunto, mas vou me conter e só falar do mais externo, sem me apegar ao lado psicológico e filosófico da coisa.

Eu sempre soubera dessa minha “característica”, mas tentava ocultá-la, usando a dúvida na esperança que fosse tudo um grande engano. Mas com o tempo a certeza veio, e com isso a consciência de que nunca senti atração alguma pelos indivíduos do outro gênero. Foi um processo longo e doloroso, e que deixa sombras até hoje na minha vida. Quando, finalmente me libertei de todos os meus fantasmas, comecei a contar para as pessoas de fora: primeiro aos amigos (principalmente as amigas) e depois para os meus pais. Estes últimos foram sem dúvidas a causa da maioria das minhas preocupações no começo deste ano.

Eu era filho único. Minha mãe era uma dessas pessoas imponentes, capazes de chamar a atenção, mas ao mesmo tempo, por mais que quisesse esconder de mim e de meu pai era uma pessoa frágil, e que guardava a maioria de seus tormentos para si numa digestão ácida e pessimista de sua vida. Já meu pai, era um homem bastante espirituoso e ao mesmo tempo sério e focado, cujos pensamentos e ideais mais íntimos sempre se mostraram ocultos para mim. Pelo que conhecia dos dois, achava que quando fosse contar, veria minha mãe sendo extremamente receptiva e meu pai extremamente decepcionado. Mas as coisas foram diferentes...

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Ao contar para minha mãe – estava bastante entusiasmado, já não aguentava mais esconder este segredo –, recebi dela uma reação hostil e pesada: ela chorou pelas três semanas seguintes! Será que nunca reparou no meu comportamento, na minha personalidade? No dia seguinte, assim como ela, entrei num estado de ânimo deplorável: recusei-me a falar com qualquer pessoa que fosse, e todo sinal de alegria era rapidamente abafado, escondido. Meu pai veio a saber alguns dias depois por meio dela... Mas ignorou, e ambos nós agora fingimos que não sabemos de nada. Nunca toquei no assunto com ele, nem tenho planos de tocar um dia. No primeiro dia do ano, discuti com a minha mãe novamente: Ela acha que tudo isso é temporário, e que é logo vai passar... Disse também que não vai aceitar até que ela tenha “provas”. Eu sei que ela está enganada, e muito. V. A todas estas preocupações que me afligiram já no segundo dia do ano, e que já coloquei aqui, somou-se mais uma: A vontade nunca realizada de escrever algo que conseguisse publicar, e que me trouxesse algum reconhecimento. Já havia tentado várias vezes, mas quase sempre encontrava os mesmos problemas: 1-Um projeto muito megalomaníaco, que estivesse muito além da minha “idade” e da minha “experiência”. 2-Ao tentar uma aproximação muito afastada da minha realidade cotidiana, entrava em terreno muito perigoso, e que muitas vezes não chegava nem ao papel. 3-Ao tentar uma aproximação muito próxima da minha realidade cotidiana, simplesmente escrevia textos vazios e sem significado algum. Mas naquela noite, na virada do ano, pareceu-me ter enfim encontrado uma solução capaz de resolver todos estes meus problemas. Passei boa parte da madrugada pensando em toda a estrutura desse meu romance. Sempre tenho o costume de ensaiar na minha cabeça frases e até mesmo todo um parágrafo do texto, mas que na maioria das vezes não tenho tempo – nem vontade – o suficiente para registrar no papel. “Nunca soube se era do tipo de escritor produtivo e otimista ou do tipo atordoado e pessimista. Lembro-me de um livro que li, onde o escritor falava basicamente desses dois tipos, e comparava os dois, num jogo maluco de raciocínio... Também não sei se sou desses escritores que idolatram a obra, ou se sou desses que a menosprezam, talvez um pouco de cada, como são os seres humanos. “Muitas vezes não me conformo, e tento inutilmente, passar minha própria existência para o papel, na esperança de dar vida aquele simples pedaço de matéria inanimada. Tudo isto, para mim já se tornou uma religião: a arte é minha crença, o papel meu terço, e a palavra minha esperança. Mas não funciona, pelo menos para mim: A minha vida deixa de ser minha, e o texto, este sim, atinge os céus. Ser artista, é muito antes de ser deus, é ser o objeto de sacrifício, tudo na inútil procura da “plenitude”...” Depois de gastar um dia inteiro me torturando com meus pensamentos, finalmente comecei meu romance...

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VI. Depois de três dias após o ano novo, finalmente sairia de São Paulo. Tinha planos de ir na casa de uma grande amiga minha, junto de sua mãe e de seu primo, e ainda depois encontrar-me com meus primos — com os quais mal mantinha contato —, e junto deles e da minha tia, alugar por alguns dias chalés de frente para o mar. Não sei se estava animado, ou desanimado... Estava um tanto apreensivo, afinal, passaria pouco mais de uma semana na frente de pessoas em grande parte desconhecidas, e com isso seria impossível conseguir qualquer privacidade, o que me fez pensar cada ato ou ação minimamente, com dias e horas de antecedência. De qualquer forma, não eram preocupações realmente assustadoras, ou até mesmo relevantes... Era só um incômodo, um desconforto. A casa da minha amiga ficava no interior do estado, e para chegar lá teria de pegar um ônibus até a rodoviária da cidade, de onde pegaria carona com a mãe dessa minha amiga. Estava levando duas malas cheias de roupas e livros, isso sem contar outras coisas, como o caderno onde estava escrevendo o meu “romance”. A viagem foi horrivelmente longa, com oito horas de duração, que em sua grande maioria foram gastas lendo um livro que comprara recentemente: “O caminho de Swann”. VII. No caminho, o ônibus parou num pequeno posto para que quem quisesse descansar tivesse uns 15 ou 20 minutos de liberdade. Preferi ficar no ônibus sozinho, sem ninguém ao meu redor, olhando o movimento das pessoas no posto através da janela. Fiquei muito tempo olhando todos aqueles que conversavam, imaginando qual seria o tema de suas conversas, o modo de falar de cada um, os sotaques... Fiz isto até ter minha atenção roubada. Ele tinha uns 20 anos, pele morena, magro na medida certa, certo ar de deus romano, e uma correntinha dourada no pescoço. Apesar do frio que eu sentia, ele estava só de shorts e camiseta, o que me permitia admirar seus braços e pernas bronzeadas. Junto dele estava uma senhora — talvez sua mãe — e um senhor, de uns 40 anos, jeito um tanto afeminado, e que enquanto conversava, agarrava-se a um pendente num ato de quase exibicionismo. Depois de um tempo, todos os três entraram no carro — talvez do jovem — e foram embora. Bem, eu nunca tinha visto aquele homem antes, e também acho que não voltarei a vê-lo — pelo menos não ver como tinha visto àquela hora: uma possibilidade em aberto, um desconhecimento apaixonante. Se me apaixonei (coisa que creio eu, não ocorreu), teria sido pela possibilidade que me fora oferecida. Quem sabe, se o conhecesse melhor, talvez tivesse me apaixonado... Mas talvez, em alguma casualidade, na estrada talvez, voltasse a vê-lo. Quem sabe não seria ele o primo da minha amiga?! Ela disse que o primo era um rapaz bonito, uns 20 anos. Por que não poderia ser ele?

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Quando o vi indo embora, imaginei sua existência se dissolvendo, se convertendo em possibilidades, que iam se espalhando pelo mapa... Quem sabe não sobra um pouco dele em algum lugar? VI. Estava ansioso para chegar logo; o que não é estranho, ainda mais depois de oito horas longas e penosas. Queria conhecer o tal primo. Cheguei na rodoviária, mas para minha grande decepção ele não estava lá. Só estava minha amiga e sua mãe. Entrei no carro, conversei um pouco com elas, e assim que encontrei uma oportunidade, encostei a cabeça na janela do carro e fechei os olhos. Estava realmente com muito sono naquela hora. Antes que continuássemos a viagem, senti que aos poucos minha consciência ia embora. O carro agora acelerava em direção ao vazio, e minha existência ia aos poucos, se esticando, se deformando, se espalhando... Quando por fim, tudo que me era externo se dissolveu no ar, senti meu corpo pesado mergulhar no mar gelado. Abri os olhos: estava deitado na areia, com as pequenas ondas que chegavam até a praia molhando meu corpo. VIII. A solidão me dominava. O sol irradiava seus raios quentes, roubando minha alma, e a espalhando por todo o canto. As minhas memórias estão espalhadas em cada pequeno canto da paisagem. Ouço o som eterno do mar... A paz, a calma, a liberdade... A alma que havia se queimado pelo sol fixo. Eterno, eternamente, perdido no paraíso. IX. Depois de mais de uma hora, finalmente chegamos na casa de campo. Ela se estendia no vazio da mata - no meio de uma cova de grama lisa, uma casa de arquitetura espetacular, toda de madeira. Minha amiga dormiria sozinha; a mãe dela, apesar de tomar nota quanto à minha “orientação”, ainda mantinha um pé atrás, e preferia que eu dormisse separado dela... Pelo que parecia, dormiria com o seu primo, que chegaria logo, no fim da tarde. Não posso negar que estava ansioso, mas o fato de que eu deveria esconder este sentimento (que até a mim parecia ainda obscuro, deformado), acabou no fim, por repeli-lo. Estávamos vendo TV, quando, gradativamente, comecei a perceber o barulho de um carro entrando na garagem. Minha amiga correu logo para fora. “Mateus do céu, por que diabos, você acha mesmo, que ele, o primo, é igual a ele, o cara do posto? Você deve estar louco, só pode! Louco! Ou melhor, você está feito um louco, tentando superar aquele seu amor platônico pelo cara da outra sala... Muito bem!” Antes mesmo que as últimas frases do monólogo reverberassem pelo meu cérebro, vi a porta abrir, e o primo entrar.

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V.

Bem, acho que me empolguei demais e esqueci de dizer um dos muitos problemas que me atrapalham na hora de escrever:

“Quando me empolgo com um texto, muitas vezes coloco mais de mim do que me permito. Não que eu tente afastar minha personalidade das minhas obras, de forma alguma, mas sim, por motivos vários, alguns dos detalhes que escrevo são ocultos da maioria das pessoas, já que são muito íntimos, ou muitas vezes envolvem tabus complexos. Mas com uma ideia que me veio em mente, logo após o ano novo, acho que conseguirei finalmente escrever algo que talvez possa finalmente ser publicado:

“Escrevi um romance que transita entre o real e o imaginário, como um jogo de espelhos, que me permitiria fugir e causar uma grande confusão na cabeça do leitor, mas que ao mesmo tempo, lhe dará toda a minha alma ao seu julgamento. Ainda não sei se dará ou não certo, depende mais dele do que de mim...” X- a. A porta abriu: era um rapaz bonito, mas não era ele. X- b. A porta abriu: para minha enorme surpresa era ele. XI- a, (b). Caminhei lentamente em sua direção. Não podia esconder meu (minha) desapontamento (surpresa), mas que agora se misturava com uma (um) nova (novo) curiosidade (temor), (.) um novo impulso. XII. Falei um “oi”, quase que sussurrando, e num ato de grande timidez estendi meu braço em sua direção. Ele puxou minha mão, tentando abraçar-me, e após alguma resistência minha (talvez estivesse tentando jogar certo “charme”), nos abraçamos. Minha amiga ria, como se entendesse, mas de uma forma torta, todos estes pequenos sentimentos que talvez se fizessem visíveis pela mudança brusca da cor da minha pele de um branco pálido para um vermelho vibrante. Tive que dormir no mesmo quarto que ele. Quando soubera que dividiria meu quarto, justamente com ele, devo confessar que me senti animado, esperançoso, mas mesmo assim, sabia como aquilo era uma perda de tempo... Do que adiantaria criar esperanças inférteis que não

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correspondiam nem um pouco à realidade. Ele era dez anos mais velho, e eu sabia que amá-lo seria algo pelo qual me culparia um dia. No fundo, também sabia que aquele amor era essencialmente uma coisa à qual me obrigava, e que no fundo sabia não existir. Lembro da minha mãe falando: “Você nunca se apaixonou por nenhum dos seus professores, nem platonicamente. Se você realmente fosse gay, tenho certeza que isso aconteceria, e eu repararia. Mas isso nunca aconteceu”. Que raiva que sentia daquelas frases, parecia sentir sua penetração nas minhas entranhas, se vangloriando da fraqueza dos meus sentimentos, destroçando-os e os eliminando de meu corpo. Mas sabia que a verdade, se é que ela, em algum lugar existia, estava muito longe da minha compreensão. Mas o que, sem dúvida realmente me consolou, foi perceber que realmente sentia um desejo por ele, indiferentemente da paixão... Um simples desejo. Passava uns bons minutos, antes de cair no sono, admirando sua pele bronzeada, iluminada por um abajur, e as curvas de diferentes intensidades que se faziam aparecer sobre os músculos despidos — como fazia muito calor ele toda a noite dormia quase nu, só com seu “shorts” —, assim percebendo a diferente gama de emoções provocadas por tais estímulos. Durante toda a sua extensão (dois dias), não ocorreu um evento que fosse capaz de chamar a atenção de você, leitor. A grande maioria deles eram eventos comuns (que podem ser imaginados por qualquer um, e que dificilmente conseguiriam trazer algo de novo), ou eram introspecções tão profundas, que apesar da simplicidade, levariam páginas e páginas com descrições quase incompreensíveis. Depois de três dias, voltei para São Paulo, onde, um dia depois, encontraria meus primos, e iria junto deles à praia. XIII. A: Se há para muitos alguma coisa que seja a mais essencial — “das coisas primeiras e últimas” —, esta seria o amor, principalmente aquele originado da relação entre duas pessoas (independente de qualquer outro fator). B: Conciliar o afeto e o sensual, e ao mesmo tempo o ego e o externo, para dessa forma chegar àquilo que chamamos de “felicidade”; resistir ao avanço inevitável do tempo e o ordenar o caos de si próprio numa tentativa de conseguir qualquer organização...

XIV. A: Estávamos eu, meu prima e sua namorada, meu outro primo, e minha tia. B: Já fazia um bom tempo que não os via — dois ou três meses —, e apesar do forte laço de sangue que nos unia, tinha pouquíssima intimidade com eles. C: A viagem, apesar do desconforto fora rápida e “suportável”, no entanto, houve um acontecimento em particular que me chamou a atenção, e que até hoje me assombra.

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C: E como se já não bastasse, ainda ter que saber lidar tanto com a vontade interna e egoísta quanto à externa, que nem sempre é semelhante a nossa. D: E é daí, dessa confusão, que nasce o inferno: a teia maluca e infinitamente complexa de um infindável jogo de interesses. E: Quisera eu, e todos aqueles que sabem do que eu falo, conciliar o caos, numa vontade única, e que todo o resto chegasse num único ponto: o progresso infinito. F: Mas todos sabemos que tal utopia é impossível, ainda mais nesse caos ignorante, cego, que derruba toda nossa vontade, e a transforma numa matéria disforme, apodrecida. G: E há também os sonhadores, que tentam inutilmente combater as vontades mais essenciais, o ciclo eterno da vida, tentando impor seu modelo superficial e restrito de padrão e progresso. H: Não tenho muito que dizer além de um desprezo quase total sobre essa “instituição” [imposição] e a qual muitas das tentativas, talvez justificadas de negação são levadas muitas vezes ao fracasso e a destruição total.

D: Meu primo sempre gostou de música clássica, ao contrário de mim, e do resto da família e enquanto cruzávamos as montanhas e o radio estava ligado, tivemos a raríssima oportunidade de ouvir uma música como nenhuma outra que qualquer um de nós jamais ouvira. E: Era algo de outro mundo, sem dúvida... F: Parecia estar ouvindo ora as vozes mais profundas do inferno, em acordes repletos das mais terríveis e dissonantes harmonias, ora a música mais harmoniosa e celestial. G: Meu primo disse confiante que era alguma produção sinfônica da primeira metade do século XX, mas nunca voltei a descobrir que música era aquela. H: Mas voltando ao que interessa, havíamos planejado de dormir em chalés próximos a praia. I: A grande maioria das pessoas que estavam naquele acampamento pertencia ao modelo tradicional de família, e a nossa era uma rara exceção; J: Bem, não resistirei agora, em traçar alguns comentários sobre certos problemas que venho enxergando no mundo, por mais que saiba que isto talvez atrapalhe na narração, acho importante que seja ressaltado aqui. K: Não tenho muito que dizer além de um desprezo quase total sobre essa “instituição” [familiar] e a qual muitas das tentativas, talvez justificadas de negação são levadas muitas vezes ao fracasso e a destruição total. L: Quando digo isto, não gostaria que em momento algum pensem que eu acho que ela, como uma forma de expressão, é errada; mas sim que por ser exatamente uma forma de expressão não deve ser imposta. É fácil me entender. Sem estender demais o assunto, o que quero

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falar, essencialmente é que, numa sociedade rígida como a nossa, nós, os inversos, e outros grupos, muitas vezes são impedidos por meio de quase sempre uma violência cega, de demonstrar qualquer sinal de sua natureza. Quantas vezes não sentimos nós, medo de ao menos admirar a beleza que nos é proibida, temendo que a qualquer esquina encontremos a morte e o sofrimento por meio de mão injustas e sedentas de sangue? Quisera eu, pelo menos admirar a beleza simplesmente como ela é, uma expressão da natureza. XV.

Talvez, para o leitor que tenha chegado até aqui seja difícil entender a relação entre todas essas divagações e o “resort” onde me hospedei com meus primos. Para ser sincero, até mesmo eu não sei exatamente do que tratam, muito menos se são válidas ou verdadeiras, mas me senti na necessidade de escreve-las, simplesmente. De qualquer forma, acho que encontrei aqui uma forma de explica-las [justifica-las]: Aquele lugar me pareceu cru; como se a personalidade e a índole das pessoas estivessem tão expostas quanto seus corpos quase sem roupa que desfilavam pela praia. Mas sei que essas analogias e metáforas são pura coincidência — já que as pessoas eram as mesmas, pouco importava o local ou a vestimenta — e também causas de uma imaginação fértil e solitária. Passei dias numa solidão exacerbada, confesso, e que fez as coisas se tornarem burlescas, grotescas. VII.

1. Olhar, se interessar e até mesmo se apaixonar por várias pessoas ao mesmo tempo não é necessariamente promiscuidade: é muito antes uma característica humana, afinal homens e mulheres não são somente homens e mulheres. Então, por que amar ou admirar uma só pessoa por completo, como se fosse a única pessoa?

2. A maioria das pessoas que estavam junto de nós mostraram-se antipáticas grande parte do tempo, se recusando a conversar qualquer coisa que não um simples e seco “oi” ou um aceno de mão; no entanto, um casal, que junto com os filhos dividia um chalé logo ao lado me chamou a atenção por passar vários minutos conversando com minha tia, sem nem mesmo conhece-la. Era uma senhora de uns quarenta anos, muito simpática, e que de tempos em tempos passava na nossa frente para nos cumprimentar. Não me interessei de início pela sua amizade pois sabia que qualquer que fosse a relação que criasse lá, jamais seria capaz de por um fim a esta minha solidão, mas sim aumenta-la mais ainda. Mudei de ideia assim que vi o filho dela.

Ele estava passando em frente ao chalé daquela família quando meus olhos focaram em sua direção — aquele jovem não muito magro, de pele bem morena, cabelos negros, e que passava na minha frente sem camisa —, enquanto ajudava a mãe carregando a bagagem. Tinha uns 15 anos (coisa que comprovei mais tarde enquanto conversava com a sua mãe), e ele provavelmente não notou nenhum dos olhares desejosos que soltei em sua direção; acho que

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estava muito mais interessado na tediosa tarefa na qual se envolveu. Mas apesar de tantas linhas gastas aqui, não poderia dizer que quando isso realmente aconteceu, nas páginas da minha vida, dei importância. Aqui, como no romance que estou escrevendo, tudo funciona por antecipação: você lê esta linha para chegar na próxima, mas não encontra nada, a não ser um motivo novo para ler mais uma linha, até chegar na última, e tudo isso parece sistematicamente proposital. Até aí, não há problema algum, no entanto, para o leitor pode haver uma dúvida: Até onde aquilo que eu escrevo tem uma função clara, evidente, proposital; ou seria tudo um equivoco de um escritor inexperiente?

Mas pense no romance que ainda não está escrito quando estiver pronto, ou melhor, pronto e já lido inteiro. Fiquemos com a pergunta que dá continuidade aqui: Por que eu gastei tantas linhas com algo tão fútil?

Mas é claro; para o que vem depois! Eis que, como um profeta dos meus pensamentos, surge ele, com o mesmo corpo de sempre, consegue arrematar um sorriso da minha boca e parece insinuar nos meus pensamentos a ideia de que talvez estivesse apaixonado. O motivo desse tormento foi simplesmente o sorriso e o olhar único que dirigiu impiedosamente a mim. Mas não foi simplesmente: tanto o olhar quanto o sorriso foram únicos. Tanto o sorriso ao mesmo tempo generoso, não mostrava qualquer sinal de simpatia, e o olhar parecia um espelho que refletia meus pensamentos mais íntimos — e ao mesmo tempo maliciosos. Por um bom tempo, estes sinais se espalharam pela minha mente, assumindo a cada novo momento um significado diferente, se espalhando e ao mesmo tempo se confundindo. De resto, não aconteceu mais nada, troquei umas palavras com ele, e só. Não foi dessas paixões arrebatadoras, na verdade nem foi uma paixão. Poderia ser, mas simplesmente não foi. Se fosse, seria perda de tempo. Vamos ao próximo...

3. Eu realmente não sei como poderia descrever os sentimentos e as circunstâncias que

vou colocar agora. Eles foram tão sutis e ao mesmo tempo tão vagos e imprecisos que qualquer tentativa será provavelmente, ou algo muito exagerado, ou ago muito certo, destruindo qualquer particularidade. Também as coisas não foram exatamente ordenadas: foram se justapondo, e agora, enquanto me lembro, não sei mais qual era a ordem. É assim com todos nós, mas há algo que certamente me diferencia. Gritar por todo o canto meus sentimentos incertos, como se não os temesse, como se não temesse a traição — pois sim, uma vez que achamos que entendemos os nossos sentimentos, passamos a teme-los, completamente. Sempre vivi assim: revelando esses supostos sentimentos, e os usando de ferramenta, parecendo. Quantas vezes não me vi traído pelas próprias palavras e me vendo agindo, e sendo tratado com sentimentos completamente diferentes daqueles que realmente acreditava existirem? Depois, quando percebia todo esse equívoco, essa ingenuidade, me via dominado pela mais cruel das angústias; uma raiva abjeta de mim. Mas enquanto vivia o sentimento — e sua causa—, nada disso me incomodava. Tudo isso é simplesmente uma conseqüência de reflexões posteriores, fruto de um pensamento.

De qualquer forma, foi em algum momento esquecido que vi a afinidade que dedicava a um outro certo jovem se transformar em uma obsessão; que me fazia passar horas, depois de interromper a leitura de algum livro por falta de concentração, pensando na sua existência, e na

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natureza, ainda oculta do meu amor; tentando, é claro, chamar sua atenção. Selecionei as horas em que sabia poder encontra-lo e criei uma forma de rotina na tentativa de passar o máximo de tempo na sua companhia. Claro, com este também, não troquei palavras. Mas quando, nos últimos minutos da minha estadia naquele lugar, não o encontrei, senti um pesar enorme, desespero. Não pude amar, não tinha desculpa alguma. Era, assim como aquele romance todo que estou escrevendo, uma “futilidade de adolescente”. Não lembro mais nada depois disso, só, talvez, o que senti. XVI. Inferno Uma hora ou outra iria parar no inferno, se continuasse indo daquele jeito ou naquele lugar. Já passara e muito da meia noite — sem sinos, silenciosa e sem sinais —, e eu e meus primos voltávamos vagarosamente para o chalé. A rua (o caminho) estava toda muito escura, quase apavorante. Mesmo assim, eu insisti que deveria ir à frente, me perder na escuridão e ser silenciado por ela. Ter o meu sofrimento roubado pelas sombras e minhas lágrimas perdidas. Poderia sentir medo, ou pavor, mas aquilo não seria nada. Um ânimo vazio, só. Que raiva que senti quando percebi que as sombras deram seu lugar à luz, e o caminho já se mostrava conhecido a mim! Senti como se me foi roubada a única coisa que jamais tivera. Queria dormir, para nunca mais acordar, viver no inferno. Aos poucos comecei a ver os vultos daquele lugar, com os quais já me acostumava. Senti toda a paixão que parecia exalar dos corpos de dois jovens enamorados, seus sofrimentos, suas angústias. Lembro da luz das lanternas — lanternas sempre indiferentes a todo o sofrimento que passava sob sua luz. Depois de dormir, senti como se delirasse novamente, e já me via sonhando. XVII. Apresentação Acho que ainda não me apresentei. Nunca sei o jeito certo de me apresentar, até mesmo se é necessário: se pulasse esse capítulo, será que o leitor repararia? De qualquer forma, não pulei. Sendo poético, sei que quando falam a palavra “Mateus” e estou por perto, sei que o que querem é comigo. Já me acostumei com essas sílabas desconexas, mas com um significado único e total para mim: É aquilo que junta tudo, das pequenas sutilezas que por muito tempo achei que eram únicas para mim, até as emoções mais fortes, mas ao mesmo tempo confusas e dispersas. Tudo isso com um nome só: Mateus. De alma mesmo, não sei como sou. Talvez todas as páginas aqui ajudem um pouco, mas no fundo não acho que perguntas ajudam muito. Não há “como” para a alma, nem nada. De corpo, não me acho bonito, nem sei como um dia poderia ser desejado por alguém, como poderia ser amado. Mas essa não é a causa da minha aparente baixa estima, nem de longe! Não sou de todo um infeliz. Só que eu vejo as coisas erradas, de um jeito errado, na hora errada. As pessoas sempre falam que não, mas sei que no fundo sou um fracassado, é inevitável. Acho que nunca fui uma dessas pessoas de espírito, dessas pessoas que fazem de si próprias um reflexo dos seus pensamentos, que são de longe, obras de arte personificadas. Sou

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daquele tipo fraco — ou talvez o que melhor saiba das coisas —, que sabe ver e criar a beleza, mas não sabe ser ela. Mas talvez também seja um nada, que tenta inutilmente justificar sua existência neste mundo. Nem sei argumentar. Como diria um artista muito amado: “Não sou particularmente interessante”. XVIII. Preciso do novo. Acho que é a única forma de chegar no único, no original. Um livro, por exemplo, por que as pessoas haveriam de ler um livro se ele é basicamente uma repetição, não tivesse coisa alguma de nova? Todas aquelas minha ideias de romance; elas sabem porque nunca as permiti a vaga ideia de uma realização: pois ficaram velhas, não conseguiram acompanhar meus pensamentos. Todos nós esperamos o dia em que algo novo apareça em nossas vidas, uma pessoa nova, um pensamento novo, um novo jeito de ver o mundo. Queremos que o passado volte, e seja tão novo quanto já foi. Que nos ensine a viver como não sabíamos. Todos nós sabemos como um pequeno detalhe poderia mudar tudo. Mas no fundo, do que se trata viver, se apaixonar, que não uma dolorosa espera? Esperar um pequeno detalhe, algo que permita uma nova visão, um novo mundo. Esperar o indefinível. Esperar a próxima frase, a próxima página do livro...

Fim da primeira parte

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Segunda Parte

...

Desenvolvimento

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NOTA SOBRE A SEGUNDA PARTE:

A segunda parte, ao contrário da primeira, chegou fragmentada, com 

somente algumas passagens desconexas concluídas pelo autor. No entanto, é 

claramente possível ter uma boa visão do enredo e da estrutura desta parte. 

O autor escrevia dos capítulos mais importantes para os mais superficiais, o 

que nos permitiu reconstruir quase que totalmente suas intenções literárias. 

Para isto, enumeramos os blocos de texto com letras. Há também passagens 

que foi difícil relacionar com o enredo geral, então decidimos por colocá‐las 

no anexo. 

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A.

Sinto-me embaçado, numa névoa, um ser indefinido. Às vezes perco minha consciência, minha integridade toda no ar, como se fosse um sinal de T.V. fora do ar — um sinal de programa ainda não começado, talvez algum resquício de sinal de programa já encerrado, e ainda, talvez o sinal de um programa atual, mas que por algum motivo, está fora do ar. Ah, e tem ainda aquele cheiro da melancolia, aquela fumaça... Misturando-se com o gosto de café. Um silêncio, ou talvez aquela música intensa, mas que no fundo é um silêncio também. Tédio, sono, cabeça jogada em cima da mesa; um peso morto. Quem sabe, talvez, em meio as dobras da roupa, ou se arrastando pela pele, encontremos uma lágrima perdida? Há pouquíssima luz, raramente abro a janela, e o quarto fica abafado.

Sinto-me vulnerável. Sei que a qualquer momento posso perder minha essência; para ser sincero, eu nem consigo acha-la. Há papel sobre a mesa, e tento ao máximo escrever, preciso falar sobre minhas férias, detalha-las intensamente, mas não sei como; é difícil. Tudo isso me tortura — me tortura ver o que perdi pelo caminho. Estou em São Paulo; me sinto como se fosse a própria cidade: posso sentir meus nervos como se fossem os fios de telefone — que todo momento recebem boas e más notícias — e meus olhos como o céu — que solta suas lágrimas ácidas. É tudo um desânimo; tudo parece extremamente exagerado.

Logo volto às aulas, só me restam oito dias. Tão ansioso quanto desanimado. Penso em tudo que nunca tive, e também no que perdi [pelo caminho]. Vazio; é assim que me sinto, realmente.

Preciso falar do meu romance, falar tudo, de cabo a rabo. Mas o problema é que ainda não o acabei. B.

Não comecei meu romance nem por necessidade, nem por capricho, mas sim por desespero. Desespero puro de sair do silêncio, de fazer minhas palavras se espalharem pelo espaço vazio, contaminarem meus pensamentos. Não queria que fosse longo, mas cada nova ideia o torna mais extenso — indesejavelmente mais extenso e mal cadenciado. Também não o queria muito íntimo, pessoal; como se violasse minha alma. Mas foi inevitável essa minha entrega quase completa. Então não me importo mais. Mas o que realmente preciso falar é que basicamente, o romance será uma mentira. As palavras vão aos poucos se afastando da realidade, até chegar num mundo etéreo, tenebroso, imaterial; e é nessa confusão que eu poderei colocar as minhas imaginações sem que ninguém perceba. Em surdina, consegui misturar tanto os fatos mais reais e terríveis da minha vida, com os prazeres deliciosos e nunca experimentados — que, no entanto são tão importantes para a compreensão do todo quanto o real.

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Gostaria muito que fosse um livro entendível. Estou me esforçando ao máximo para que seja perfeito que a cada novo esforço parece que vai ficando mais imperfeito. Às vezes penso em desistir, deixar o livro inacabado, mas sei que seria como a minha morte. Eu preciso termina-lo, terminar-me. C. Tive que acordar realmente muito cedo hoje. Parece que o tempo deu um salto, foi interrompido e pulou para trás. Não sei se vejo o tempo como uma linha. Definitivamente não. Não faz muito sentido; uma linha... Mas pouco importa agora; o que importa é que eu tenho que me trocar e ir para a porcaria do colégio. Sinto-me mal, depois de tanto tempo e as coisas voltam ao normal. A única fuga que tenho é tentar imaginar, fantasiar, criar [falsas] expectativas. Enquanto estou no vagão do trem, minhas expectativas se lançam ao espaço; batem nas paredes frias e rígidas do compartimento de metal; e voltam para mim, com uma violência estranha e inexplicável. Cada incompatibilidade entre o mundo real e minha imaginação soa como uma facada, um lembrete indesejável. Imagino-me entrando numa sala enevoada e vazia, com uma única alma sozinha, no fundo. Ele, no caso, seria perfeito. Trocaria algumas palavras com ele, e depois viria o “felizes para sempre”. Mas precisaria de um pouco de sofrimento; dá um tempero para a felicidade.   Desci do vagão, estava atrasado. Estudava a tarde, e quase todo o dia chegava antes de tocar o sinal da manhã. No caminho encontrei alguns amigos que saíam do colégio, e que estavam de manhã. E junto deles, vi a grande paixão que me marcou durante tanto tempo. Ao rever seu rosto pude sentir... [A partir deste ponto o manuscrito fica incompleto, e não temos qualquer resquício de como continuaria. Mas por motivos de encadeamento, vamos prosseguir com um capítulo, que apesar de mudar de contexto e foco, continua com o raciocínio anterior...] D.

Já falei aqui de tantas coisas, por páginas de páginas, que esqueci de uma das mais essenciais. Já deve estar cansado das minhas paixões imaginárias, tanto que dei uma pausa, mas essa que é a mais importante, precisa ser mencionada. Ela só aparecerá aqui, depois você verá sua sombra, e esta sim, estará por todo o canto, até na última página, na última linha. Mas comecemos do final, até onde parei na vida. Não lembro muito bem o que falava com a minha amiga, mas ela, que estudava na mesma sala que ele, disse que naquele dia, ele estava deprimido.

— Mas por que? — Não sei, ninguém deve saber. — Ele não parece ser uma pessoa muito triste. — Ele é muito, quase nunca está feliz. Hoje ele derrubou o celular e eu peguei. Ele

disse um obrigado tão triste que me deu até dó. — Nossa, muito estranho.

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Eu gostava dele já fazia seis meses, foi (e acho que ainda é), a paixão mais forte de todas. E também a mais desnecessária. Já estava apaixonado antes de começar o livro, antes mesmo de quase tudo. Você sabe, não há muito o que falar, foi uma dessas paixões que ocorrem por todo o momento da nossa vida, e que não servem para nada, a não ser nos torturar com sua impossibilidade óbvia. Não tem muito que dizer. Metemos na nossa cabeça que um ser é tudo aquilo que desejamos e depois para tirar da cabeça... Nós não tiramos.

Mas então, por que a tristeza? Ele pareceu sempre uma pessoa tão indiferente, vazia, sem sentimentos. Nunca soube se gostava de homens como eu, acho que sim. Ele tinha um jeito. Lembro daqueles dias de frio, em que passava horas imaginando o que eu faria com essa minha paixão. Imaginava tantas coisas, como chegaria a falar com ele pela primeira vez, tudo. Só falei com ele umas três vezes, nunca pessoalmente. Ah, às vezes também imagino o encontrando em algum lugar, principalmente no metro. Vejo ele na escola todo o dia. Mas aquela tristeza, não faz sentido. Desde quando ele poderia amar? Para mim, ele foi sempre o amado, o receptor passivo do meu sentimento, ele nunca teve qualquer escolha em relação ao meu amor. Será que assim como eu, ele também ama alguém, e sofre tanto quanto eu? Será que a sua vida é tão sem sentido quanto a minha? Isso é péssimo, só me dá mais dúvidas, e com isso mais me confundo. Será que, se ele pensa assim como eu, talvez todas estas páginas sejam um enorme engano, e no fundo, ele seja o verdadeiro escritor, e eu, somente um dos seus personagens. Às vezes penso como se ele me amasse também, mas por algum motivo, o mais terrível de todos, fosse obrigado a esconder esse amor. Talvez ele, assim como eu, esteja escrevendo um romance e ele também está mudando o nome do protagonista pelo meu nome — o nome do seu amado. E. Sinto-me torturado por todos os objetos a minha volta, desde que percebo sua essência sendo incorporada em cada pequeno objeto; eles parecem refletir a mesma ânsia que eu pelo seu corpo, pela alma que idealizei. Lembro de uma foto em que ele segurava um livro. Não era um livro que me causava interesse de imediato, mas depois de ver a foto, todos os livros pareciam inferiores a ele, todos os meus livros. Todos os livros que poderia conseguir. Mas não eram só os livros, com o tempo as músicas, as roupas, os filmes, tudo parecia sentir ciúmes assim como eu. O meu corpo também. Passava horas me olhando no espelho a procura de um ângulo em que me assemelhasse, ao menos levemente com o seu corpo. Como já disse: Os objetos a minha volta me torturam. F.

Depois de duas semanas, o Leonardo me lembrou que um de nós deveria ir na casa do outro para terminar o trabalho de filosofia. Ele era o único que me sobrou para fazer o trabalho, já que eu faltei no dia da escolha dos grupos. Acho que ele faltou também. Não gostava dele: Seus amigos me odiavam, e a sua simpatia quase que burlesca me dava náusea. Normalmente julgo as pessoas de duas formas, essencialmente: como “pessoas”, ou se for um homem também pela beleza. Acho que ele não se encaixava em

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nenhuma categoria. Se eu realmente o desejasse, até que poderia tê-lo, mas seria um esforço tremendo, e além do mais, eu não queria. Ele era muito afeminado para ser tão feio daquele jeito. Acho que tinha nojo dele. Nos últimos dias, vinha estranhando a simpatia com a que me tratava, talvez fosse tudo para facilitar o trabalho. Não queria dor de cabeça, mas era estranho. Sei que no fundo sabia do que se tratava essa estranheza toda, mas preferi por não pensar no assunto. Era preguiça de pensar.

— Oi! Mateus, vai ser na minha ou na sua casa que vamos fazer o trabalho? Não queria que fosse na minha casa. De jeito algum. Não queria que minha mãe

visse aquela “aberração” Era isso que ela pensaria dele. Não sou cruel, de forma alguma, mas era para o bem dele, e para o meu também. Não tinha motivos para levar ele na minha casa. Sabia o que queria e ponto.

— Na sua, minha mãe trabalha no computador o dia inteiro... Não vamos conseguir trabalhar direito. —Tudo bem então — ele disse, enquanto me olhava com um olhar terno e simpático e falava cada palavra ao mesmo tempo em que sorria. — Sábado?

— Sim — Ao contrário dele, tentava não ser tão simpático. Ser o mais econômico possível. — Onde você mora? — Acho que em nenhum momento olhei verdadeiramente nos olhos dele. — É longe?

— Dá pra ir do colégio até minha casa a pé. Já sei, nos encontramos no colégio, talvez meio dia, almoçamos, e vamos para minha casa...

— Tudo bem.— Demorei um pouco demais para responder. Fingi estar mais preocupado em copiar a lousa do que conversar com ele. Depois de uns minutos, ele saiu da carteira ao meu lado e voltou para o seu lugar do outro lado da sala. Aquele foi um momento raro e efêmero. Apesar da aparente indiferença (ou não), realmente pensei muito naquilo. Será que seríamos amigos?

...

Talvez julgar alguém simplesmente pelos seus gostos não dê certo. Muitas vezes me questiono quanto à forma de como julgar alguém, é muito complexo. Também penso como posso me amar, se me conheço tão bem, se sei cada pequeno detalhe da minha alma, cada pequena coisa, mesmo que ínfima?

Talvez a loucura seja uma tentativa desesperada de se amar, de se esquecer. No fundo o que mais queremos é que alguém nos ame, nem que sejamos nós mesmos. É muito paradoxal, sabemos que ninguém nos conhecerá mais do que nós mesmos, mas mesmo assim, esperamos que um dia alguém nos ame mais do que nos permitiríamos nos amar. Quando penso em amor, penso também em solidão. Há uma relação muito forte entre eles na minha cabeça. Acho que forte até demais. ...

Sábado acordei cedo, tomei banho, gastei um pouco do meu tempo lendo e fui embora alguns minutos adiantado. Estava usando minha melhor roupa, e usando um perfume novo que gostava bastante. Durante a semana não pensei muito no assunto (ou fingi pensar), achava realmente aquilo estranho, mas no fundo era uma novidade interessante, mesmo eu não me dando ao trabalho de falar meus pensamentos com

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ninguém. Sabia que naquele dia teria que trata-lo com uma intimidade sobrenatural, que nunca sonhara em ter com ele. Era como se saísse pela primeira vez com alguém que conheci a vida toda.

Cheguei dez minutos adiantado no colégio, não havia ninguém. Ele não se atrasou, chegou na hora marcada. Também ele, estava mais arrumado do que de costume.

Não sabia como poderia conversar com ele, e ele também, não sabia o que falar. Comecei perguntando alguma coisa sobre as provas. Um assunto seguro, uma base, dificilmente naquele assunto ele iria discordar muito de mim. Conversamos enquanto ainda não havíamos chegado no restaurante. Chegando lá, ele me indicou quais eram os melhores pratos. Aceitei sua sugestão, e disse que eram realmente muito bons. “Muito bom esse frango. Maravilhoso, mesmo”. Ele sorriu, demais, e ainda disse que adorava o prato. Por dentro, eu estava realmente apavorado. Sentia vergonha de sair com ele, sabia muito bem o que passava pela cabeça das pessoas ao redor. “Dois homens, almoçando juntos, sozinhos... Um deles, eu diria um pouco estranho, já o outro, nossa, ele é muito...” As pessoas o devem achar uma aberração da natureza. Mas ao mesmo tempo tinha uma culpa no meio dos meus pensamentos, pois sabia que se o que eu realmente escolhera fosse amar outros homens, esse pensamento era o tipo de coisa mais nojenta e deplorável ao qual podia me permitir. Foi um dos momentos em que mais tive dúvidas do que realmente era. Mas toda essa angústia, esse pavor não poderia existir, nem na minha cabeça.

Durante nossa conversa no restaurante mudamos de assunto e começamos a falar de pessoas. Acho que deixo claro o que penso das pessoas, no fundo, mesmo que seja uma comunicação muito indiferente. Mas ele soube, como ninguém, captar meus pensamentos e convencer-me mais ainda de como estavam certos. Soube o que falar, e em troca, como uma cortesia, devolvi sua atitude elogiando aqueles que ele mais estimava, e não falando nada dos outros. Aquilo me agradou. É, ele me agradou, e eu o agradei também, mesmo que de formas diferentes.

Do restaurante até sua casa o caminho era bem curto. Falamos sobre coisas simples do mundo. Falei como devia ser fácil pra ele morar perto do colégio. Ele concordou, e disse também que era por morar perto que estudava lá. Chegávamos num limite; O silêncio dura até chegarmos ao seu apartamento. “Minha irmã deveria estar aqui, com a gente, mas parece que a mãe do namorado está muito mal. Triste... Mas não acho que vá atrapalhar muito...” Nesse momento nós ríamos, muito. Ríamos da ironia, um da cara do outro, e ele mais do que eu.

Eu já estava muito nervoso, tão nervoso que já tinha deixado de parecer nervoso. Sabia de tudo o que ainda viria a acontecer...

— Eu trouxe uns livros, onde posso colocar? — Coloca na mesa do computador, no meu quarto. — Pronto — Quer começar o trabalho agora? — Vamos logo, melhor... — Também acho... Ele quis que eu sentasse no computador. Não tinha muito o que fazer, só juntar o

que havíamos feito e fazer uma conclusão. Lembro que depois de uma hora que comecei a juntar os arquivos e tirar as discrepâncias, enquanto andava minha mão pela mesa do computador por cima do “mouse”, ele, ligeiramente, tocou com sua mão o meu pulso, e a

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colocou sobre minha mão, quase que solenemente. Não gosto de por simbolismos em cada pequena ação do cotidiano, tento fugir da ambigüidade, mas naquele momento era claro e gritante demais.

Não pude evitar, de, no momento seguinte, me sentir completamente apavorado, mas ao mesmo tempo, sentia uma estranha excitação, um ânimo. Talvez aquele simples gesto sozinho (que ainda não tivera tempo de se transformar em coisa alguma) representasse na minha mente, várias outras coisas, tal como uma esperança, ou o começo de uma história antes tão procurada. Podia sentir o arrepio sutil se arrastando pela minha coluna, ou as primeiras gotas de suor que surgiam em minhas mãos.

Olhei para cima, tentei fazer com que no meu rosto se visse a expressão mais neutra (e distante) possível, mas acho que não consegui esconder uma certa surpresa. Ele me olhava sorridente, talvez me amasse, falava sem palavras. Se as circunstancias fossem, pelo menos, um pouco diferentes, talvez eu tivesse fugido naquele mesmo instante, mas não: por mais que no fundo soubesse que não queria aquilo, com ele, eu achava que como fazia parte de tudo que havia escolhido, deveria me permitir experimentar tais coisas, pois senão, talvez surgisse a dúvida de que talvez tudo fosse um engano.

Como uma resposta ao seu sorriso simpático, olhei para baixo e também sorri. Achei que fosse um sorriso de simpatia, só uma retribuição. Ele pôs a mão no meu ombro, e dessa vez me arrepiei por completo. Achava também que fosse só um arrepio de melancolia. O prazer que se anunciava era tão bom que tive vontade de chorar. Olhei para ele, para seus olhos, e esse prazer (e essa tristeza também) aumentou mais ainda. Acho que era amor, totalmente, desesperadamente. Ele colocou as suas mãos nos meus ombros, e nos atraímos.

Aquele foi meu primeiro beijo. Era como se eu me sentisse obrigado a recompensá-lo pelo seu amor. Não me achava digno do amor de ninguém. Passei a mão no seu cabelo. Eles eram grossos, curtos, inférteis. Tinha nojo, desprezo por ele.

Nos amamos enlouquecidamente, foi terrível. Ele me desejava ardentemente, me senti surpreso, e também alienado. Já eu achava que estava só atuando, atuando a mim mesmo, imitando certo desejo meu ou certa reação. No auge de tudo aquilo, me agarrei a ele como se fosse à mim mesmo, não queria jamais soltar. Mas aos poucos fomos nos separando, cada um para o seu caminho.

Ele deitou sua cabeça no meu peito, e continuei a passar minha mão no seu cabelo infértil. Pensava em imaginar como seria se minha grande paixão estivesse lá... Como seria passar a mão no seu cabelo loiro...

— Eu te amo, sabia? Queria poder responder da forma que ele realmente merecesse: — Amar é bom, no fundo. Dessa vez eu que o beijei... — Você não sabe como estou feliz... — Ainda não te conheço direito... Mas gosto de você, só. — Vamos namorar? — Tanto faz. Vai ser só dessa porta para dentro mesmo. — Como assim? — Você acha que podemos andar de mãos dadas na rua? Ou nos beijarmos? — Por que não? — Ah, você sabe! Mas se quer namorar...

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— Que? — Então estamos namorando, mas não peça muita coisa, precisamos nos conhecer. — Sim, que livros você gosta? — Vários, gosto também de escrever, e você? — Também... Vários. Que gosta de escrever? — Aquilo que penso, sem parecer muito poético... Mesmo. — Quero ler depois Eu o beijei. Não que eu queria o calar, mas queria me impedir de falar. Queria

poder amá-lo ardentemente. — Cinco horas já! Tenho que ir. — Já?! — Claro, tenho hora para voltar. Arrumei-me e fui embora. No caminho pensei em tudo. Os sorrisos que soltava

enquanto estava no vagão do trem mostravam a todos que estava cego de felicidade. Assim que cheguei em casa, deitei na cama sorridente, só por lembrar de tudo. Queria que aquele fosse o momento mais feliz da minha vida... G.

— Mateus, precisamos conversar agora. Sai da frente do computador. — Que foi? To muito cansado, não to com a mínima vontade de perder meu

tempo. — É sobre aquilo. É bom você não estar cansado que tenho muito o que falar. — Não. Que saco, não to a fim de perder tempo falando com você, simplesmente

não. — Senta no sofá... Então, falei com meu cunhado e tanto eu quanto ele estamos

certos de que o que você está fazendo é errado. É nojento... Eu até aceitaria se você fosse realmente feminino, mas você não é. É nojento, uma abominação.

— Vocês são uns imbecis. Quem escolhe isso sou eu, não vocês. — Não! Enquanto você morar aqui, que escolhe isso sou eu. — Mas isso é uma decisão minha, não sua. Nem sei se é uma decisão. — É uma decisão sim, e você está fazendo ela por birra, por birra contra mim e seu

pai. — Meu pai nem se importa, ele não está nem aí. — Ele está muito triste. Não foi para isso que te criamos. Para ser essa coisa

nojenta. — Se eu tivesse escolha você acha que estaria sofrendo tanto assim a toa? Eu não

tive escolha, nasci assim e pronto. — Ninguém nasce assim, nem nunca nasceu. Isso é um capricho dos últimos

tempos. Antigamente as coisas eram bem melhores... Essas pessoas não existiam. — Como você pode ser tão burra? — Burro é você que é fresco desse jeito. — Não. — Vamos ao que interessa: Ou você muda ou não mora mais aqui. Você que

escolhe.

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— Quê !!! ??? — Você não é surdo. Ou você para com isso ou não mora mais aqui.

H. Parece que tudo que cruza meu caminho é um sinal inadiável do fim. Todo o dia quando vou para a escola cruzo com o mesmo comerciante. Antes ele me cumprimentava e me falava “olá”, mas agora ele me olha violentamente, como se fosse a maldade incorporada. Os seus olhares são tão violentos quanto suas mãos, que muitas vezes imagino sendo socadas contra meu corpo no meio da noite. Hoje estava pegando o metrô e sem querer acabei por me desequilibrar e me apoiar no ombro de um senhor. Mas por mais que eu tenha pedido desculpas, ele me olhou com um olhar violento, e ainda limpou seu ombro com a mão, como se tivesse nojo de mim. Quando olho meu reflexo no espelho sinto uma raiva tremenda, não consigo exigir muito de mim, e sei que será difícil exigir muito dos outros. Quando falo com alguém me sinto solitário, há coisas que nunca falarei com ninguém. Quando amo, falta alguma coisa sempre... O meu relacionamento com o Leonardo que sei que não vai dar certo; a cada encontra assomam-se novos problemas, e eu já falei deles aqui. E o que poderia me salvar, o meu romance, está desandando. Parece que nunca vou conseguir termina-lo, ele se estende indefinidamente, infinitamente, e a cada nova página aprecem mais problemas, erros irremediáveis que será praticamente impossível resolver. Estou desistindo, não quero que ele saia do papel. Metade das coisas que ele fala são mentiras, sonhos, irrealizações. A outra metade é a mais pura verdade, só que uma verdade seca. Sei que desistir dele significa muitas outras coisas, mas não tenho escolha. Hoje vou chegar em casa, ouvir música. Tentarei chorar, mas será impossível. Em algum momento irei ter certeza que tudo está perdido. Irei até a janela e pensarei em me jogar. Terei quase certeza, mas a névoa que se estende lá embaixo me impede de ter certeza do que irá acontecer. Se não por um fim, nada mais terá sentido.

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Terceira parte

...

Recapitulação

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NOTA SOBRE A TERCEIRA PARTE:

A terceira parte é, sem dúvida, a que está mais fragmentada e incompleta. Dos muitos capítulos planejados, só chegou até nós um. No entanto, é possível ter um ideia da estrutura da obra graças à um esquema que o autor nos deixou: 

 

I. Tentativa de construção sobre o caos;  II. Fantasia e sonho;  III. Transição gradual para a realidade;  IV. Mudança brusca para a realidade;  V. Metalinguagem no romance;  VI. Realidade cada vez mais brusca, e sem relação com o eu;  VII. Paixão;  VIII. Contraste entre realidade e fantasia;  IX. Alienação;  X. Divisão;  XI. Entrelaçamento; 

XII. Realidade única;  XIII. A ideia e sua realidade;  XIV. A realidade e sua ideia;  XV. A realidade subjetiva;  XVI. O caos;  XVII. Afirmação;  XVIII. Introdução.    No entanto, apesar da clareza do esquema, não é possível ter certeza 

da ordem dos capítulos no livro. Talvez até mesmo o primeiro capítulo fosse o último... 

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VII. Paixão Você chegou até aqui, então sabe do que estou falando; já falei tanto que não resta falar quase nada. Não posso mais fantasiar, sonhar. Aquilo ia me levar à morte, a loucura. Vou realmente desistir, parar por aqui. Não há nada mais para ser dito, só mais duas páginas, e você leitor sabe disso. Chegar à um fim é chegar no repouso. Mas aonde chegamos? Mudou alguma coisa? Não vejo mais nada que possa fazer, nem pensar, nem falar; nem escrever. Agora vejo que nada poderia ter mudado, seria um absurdo, uma loucura. O dia em que mudar eu não serei mais eu, serei meu sonho. Ainda estou apaixonado, sinto as lágrimas vertendo pelo meu rosto, No entanto me sinto feliz, em paz. Às vezes o maior prazer é simplesmente ser sincero. Poder amar, viver.

 

 

 

 

 

 

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Quarta parte

...

Conclusão

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FIM

Já Passou um ano. Um pouco menos de um ano desde que me hospedei naquele

lugar pela primeira vez. Nada havia mudado. Assim que deixei minhas coisas em um canto

qualquer do quarto, fui dar uma volta. Queria rever cada lugar, cada emoção. Comecei

pelos lugares onde havia a menor possibilidade de encontra-lo; como se numa refeição

deixasse o melhor para o final.

Acho que finalmente encontrei o jeito certo de viver, mas não tenho certeza. Ainda

falta dar um fim em muitas coisas, até mesmo aquele meu romance... Mas pouco importa, a

ordem que eu escrevo é diferente da verdadeira. É como pensar.

Não o encontrei em lugar algum, mas de qualquer forma, aquilo me dava cada vez

mais esperanças de encontra-lo no lugar que eu sabia que era o mais provável. Caminhei

com calma, meu coração acelerado, meu olhar tenso e atencioso. Quando cheguei num

ponto onde já poderia avistar todos que lá se encontravam, decidi não olhar. Foi só, quando

por fim já tinha subido as escadas que finalmente o vi. Precisava me apaixonar, conhece-lo,

amar, sofrer. Tomei coragem e fui em sua direção falar com ele. Em suas mãos está um

exemplar do romance “Um diário imaginário” — escrito por mim.

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