uab - antropologia geral - capitulo 5

28
,1 t-", |p *'.'.•>•• t *"T 3. Os principais u. históricos da ciência antropológica

Upload: hugo-rodrigues

Post on 02-Feb-2016

19 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

UAb - Antropologia Geral - Capitulo 5

TRANSCRIPT

Page 1: UAb - Antropologia Geral - Capitulo 5

,1

t-",|p *'. '.•>••

t *"T

3. Os principais u.históricos da ciência antropológica

Page 2: UAb - Antropologia Geral - Capitulo 5

-SUMARIOj._i_ - -

5.1 As principais teorias e escolas

"5.1.1 O evolucionismo

5.1.2 O difusionismo

"5"1".3 "O funcionalismo

5.1.4 O estruturálisrao

5.2 Os fundadores da etnografia: F. Boas e B. Malinowski

5.3 Á contribuição teórica da "escola de sociologia francesa"E. Durkheim e M. Mauss

^ í, •

91

Page 3: UAb - Antropologia Geral - Capitulo 5

Objectivos de Aprendizagem

Após a leitura do V Capítulo - Os principais desenvolvimentos históricosda ciência antropológica, o leitor deverá capaz de entender:

• O percurso histórico geral da antropologia social e cultural.

A contribuição das várias escolas, as suas diferenças e sobreposiçõesteóricas,

As propostas teóricas e metodológicas dos principais precursores.

As orientações teóricas e práticas das principais etnologias nacionais.

92i :**?

«sãs

Page 4: UAb - Antropologia Geral - Capitulo 5

5.1 As principais teorias e escolas

5.1.1 O evolucionismo

O estudo das sociedades humanas vivas, na continuidade das interrogaçõesrenascentistas sobre a alterídade (ou seja, o outro forçosamente distante edesconhecido), só passou a representar um interesse real, a partir do momentoem que foi possível obter informações sobre sociedades muito afastadas eestranhas para os europeus pelo contacto directo com elas. Anteriormente tinha-

~sê especulado muito sobre essas sociedades sem ser possível observá-las. Ocontacto estabelecido com os povos de todos os continentes, graças ao traçadodas novas rotas marítimas pelos portugueses da época, constitui um marco nahistória da humanidade de que a futura antropologia vai poder tirar proveitopara atingir o seu objectivo de conhecimento geral sobre o Homem.

Independentemente dos interesses materiais em causa, as primeiras descrições,muitas vezes fantasiosas, mas em certos casos bastante reveladoras de mundosdiferentes e intrigantes para os europeus do século XVI, suscitavam acuriosidade dos espíritos pelas revelações que eram feitas acerca das novascriaturas humanas, até aí desconhecidas, e dos seus modos de viver.

As descrições de viagens pelos portugueses são várias e extraordinárias para aépoca, entre as quais não se pode deixar de citar: a Crónica do Descobrimentoe Conquista da Guiné de Gomes Eanes de Zurara (1410-1474) onde é descritoo contacto dos portugueses com as tradições dos guineenses; o Roteiro deViagem de Vasco da Gama, redigido em 1497 e atribuído a Álvaro Velho,

-onde-é feita a descrição do encontro entre os-portugueses e os habitantes dabaía de Santa Helena, assim como com os habitantes da enseada de São Brás;a Carta de Pêro Vaz de Caminha, escrivão que viajou com Pedro AlvaresCabral, fascinado pé] as gentes que via pela primeira vez à chegada ao Brasil,enviou uma volumosa carta de várias páginas ao Rei D. Manuel a relatar assuas impressões sobre os ameríndios: o aspecto, os comportamentos, osornamentos, como reagiam ao vinho de uva elemento de civilização deexpressão máxima por excelência. Pode ainda referir-se a obra Etiópia Orientalde Frei João dos Santos (1609) onde são dadas informações sobre os costumes,as artes e ofícios, modos de vestir, tatuagens, enfeites de cabeça, dos váriospovos da costa oriental da África e designadamente dos macuas do Norte deMoçambique. Mas existe ainda o notável relato das aventuras de viagens deFernão Mendes Pinto (1510-1583) pelo Oriente, em Peregrinação^, cujaavaliação científica está por fazer a fim de destrinçar a parte de fantasia eventuale a parte autobiográfica, onde o autor revela usos e costumes das gentes comque se encontrou; posteriormente, durante os séculos XVIU e XIX, outrosnumerosos relatos foram elaborados como o de Lacerda, nas Viagens a

1 A primeira edição de PE.YS-grínação, publicação pós-tuma, data de 1614, em Lis-boa por Pedro Crasbeck.Note-se ainda que FernãoMendes Pinto é conhecidouniversalmente e que Pere-grinação foi modernamentepublicada em diferentes Ifn-guas estrangeiras.

93

Page 5: UAb - Antropologia Geral - Capitulo 5

Cazembe; ou de António Gil, Considerações sobre alguns pontos maisimportantes da moral religiosa e sistema de jurisprudência dos Pretos doContinente de África Ocidental Portuguesa além do Equador, tendentes adar alguma ideia do carácter peculiar das suas instituições primitivas (1854).Segundo J. Poirier [1968], António Gil, considerado um excelente observador,terá sido o primeiro a referir, mesmo antes de B achofen, o modelo de sucessãomatrilinear.

O colonialismo europeu & simultaneamente a sua justificação pelas tesesevolucionistas, vão acelerar todo o processo de conhecimento universal dascomunidades humanas vivas. Num primeiro tempo, os missionários e osadministradores coloniais elaboram os primeiros relatórios sobre as populaçõesque tinham sob a sua responsabilidade e os quais vão servir de material paraelaborar os primeiros grandes trabalhos antropológicos.

Esses primeiros trabalhos, reflectiam urna preocupação pela evolução eprogresso humano, exemplo de progresso por excelência que a Europa daépocafornecia. Tornava-se evidente a diferença constatada entre as sociedadesreportadas pelas descrições que delas eram feitas e o modelo de progressorepresentado pelas sociedades europeias, levando assim a concluir que umasseriam menos evoluídas que outras e as mais evoluídas teriam tido origemnum estado primitivo idêntico, confirmado pelo que parecia ser a evidênciademonstrada pela própria diferença.

O evolucionismo sociológico e a procura das leis do progresso, nos seuscontornos modernos da época - que vai da segunda metade do século XIX atéà segunda década do século XX -, constitui-se a partir das teorias biológicasda evolução, inspiradas dos trabalhos de naturalistas como Lamarck (1744-1829) que descreve os processos de evolução biológica e a correlação entremeio ambiente e estrutura biológica. Mas sobretudo comDarwin (1809-1882)o qual, continuando as teorias do transformas mo, refere que pelo processo deadaptação, necessária à sobrevivência, a espécie animal evoluiu para formas •—mais complexas.

Paralelamente, e por analogia, o evolucionismo sociológico propõe-se estudar . .fos povos (no tempo e no espaço) que se encontram em finais do século XIX ' ;|.em estados desiguais de cultura e progresso em relação à Europa. Esta . i'comparação conduzirá à tentativa de elaboração dos quadros culturais dahumanidade, definidos segundo diferentes etapas de desenvolvimento, peloqual todas as sociedades teriam de passar para atingir o grau de civilização(representada pelos grandes Estados do Mediterrâneo oriental, da China e daíndia, culminando na Europa moderna).

Inerente à procura das leis do progresso, a preocupação dos evolucionistas,cujas escolas dominaram a cena antropológica entre os dois séculos, consistia

94

Page 6: UAb - Antropologia Geral - Capitulo 5

em tentar explicar as origens das sociedades modernas, consideradas aexpressão máxima do progresso humano. Á constatação da diferença, que seconsiderava corresponder a váriog estados de desenvolvimento das sociedades,era obtida em função dos critérios de comparação com o modelo histórico deevolução das sociedades europeias do século XDÍ e XX. Forja-se assim, umaconcepção evolucionista auto-centrada na história. É a partir desta concepção,que se coloca a questão da elaboração de uma tipologia das sociedades e dosquadros culturais da humanidade existentes na altura. A sua elaboraçãopressupunha a definição de estados pelos quais teriam passado todas associedades, umas mais rapidamente, outras mais lentamente - assim como o•estabelecimento das leis permitindo a passagem de um estado para o outro. Oprocesso de evolução a que todas as sociedades teriam de se sujeitar,corresponderia à sucessão, mais ou menos rápida, de um movimento dedesenvolvimento unilinear, segundo mudanças cumulativas e irreversíveiscomuns a todas as sociedades, reflectido pelas características das suasinstituições, das suas técnicas, etc.

Assim, qualquer sociedade, muito diferente das sociedades europeias, denotarianecessariamente arcaísmos internos, considerados testemunhos das fases pelasquais estas últimas teriam passado e não outras tantas formas sócio-culturaispossíveis e viáveis nos seus estados presentes e existentes no panorama vastoe diversificado da humanidade.

Comparado com o processo histórico, o evolucionismo sociológico diferedele pelo facto de não ser identificável por uma cronologia de acontecimentosde forma precisa, nem no tempo nem no espaço. Nestas condições, os processosevolucionistas, forçosamente apoiados numa história hipotética, porquedependente de reconstituíçoes conjecturais sobre períodos muito remotos,não eram demonstráveis e muito provavelmente nunca o serão. De facto, nãoexiste nenhuma evidência histórica que permita estabelecer sequências deestados mais primitivos que outros das sociedades humanas. As hipótesesevolucionistas diziam respeito a um passado muito remoto, não permitindovalidar, nem invalidar, pela comparação com sociedades por muito primitivasque parecessem os seus pressupostos. Desde logo, a dedução de estadosprimitivos da história social, a partir dos exemplos de sociedades diferentes'das sociedades ocidentais, implicava uma hipótese histórica, impossível deverificar.

As primeiras figuras mais proeminentes da época evolucionista não tinhamformação antropológica e as suas especialidades iniciais erarn muito diversas:J. J. Bachofen (1815-1897), L. H. Morgan (1818-1881), H. J. S.Maine(1822-1888), J. R MacLennan (1827-1881), eram juristas; A. Bastian(1826-1905) médico; mas também biólogos ou geógrafos como o alemão KRatzel (1S44-1904) fundador da antropogeografia. Porém, a contribuição das

95

Page 7: UAb - Antropologia Geral - Capitulo 5

96

suas diferentes formações iniciais converge no estudo dos quadros culturaisda humanidade e funda uma nova disciplina pela via da comparação: aantropologia.

Bachofen, na Alemanha, Maine e MacLennan. na Grã-Bretanha, e Morgan,na América, foram os principais representantes das teorias evolucionistas sobreos estados primitivos da evolução social.

Morgan, apresentava os três principais estados pelos quais teriam de passartodas as sociedades a fim de atingirem o progresso: a selvajaria, a barbárie efinalmente a civilização. O homemmoderno teria assim passado da selvajariapara a barbárie depois de ter inventado a olaria e atingido a civilização apóster criado a escrita.

Estes estados principais, correspondentes aperíodos conducentes ao progresso,eram por sua vez subdivididos em outros tantoS períodos cuja passagem deum para outro se caracterizaria sempre por uma mudança importante, tanto aonível das técnicas corno da forma de organização social, sempre superiores àanterior. Assim, a selvajaria subdividir-se-ia em selvajaria inferior - média -superior; a barbárie em barbárie inferior - média - superior e finalmente acivilização.

Durante o período evolucionista era raro os estudiosos recolherem eles própriosos materiais sobre os quais se debruçavam para forj ar as suas teorias. Mas noscasos em que tal acontecia, tratava-se sobretudo de recolher o rnaior númerode informações de todas as culturas existentes no tempo e no espaço,designadamente as mais distantes e mais desconhecidas dos europeus. Estava-se ainda muito longe de uma etnografia aprofundada sobre uma determinadasociedade, como veio a ser praticado mais tarde pelos pioneiros do trabalhode campo intensivo, como R Boas e B. Malinowski.

Desta massa de informação recolhida, a interpretação acerca da evolução dassociedades e das suas rnstituições toma duas orientações simultâneas: a que seinterroga sobre as origens das instituições, como o parentesco, a religião etc.;e a outra, sobre a evolução no tempo em que se pretendia fundar a classificação

_ »e a comparação. l

Sobre as origens da instituição do parentesco, vários autores se preocuparam 7corn o assunto. Assim, Bachofen tentou evidenciar a anterioridade de linhagens lmatrilineares e fabulou sobre a existência do matriarcado. MacLennan, tentou [mostrar que as instituições do casamento e da família, tal como elas se i

^ * - í ;apresentavam na Grã-Bretanha da época, deveriam ter evoluído a partir de ?um estado original de promiscuidade primitiva e passado por diferentes estados finiciados com a matrilinearidade (quando a descendência se faz exclusivamente *pelas mulheres), seguida da poliandria (quando uma esposa tem vários maridos) • j ,

i

Page 8: UAb - Antropologia Geral - Capitulo 5

r

e por último a patrilinearidade (quando a descendência se faz exclusivamentepelos homens). O próprio Morgan - cuja perspicácia e visão científica marcouduravelmente a antropologia -, afirmou igualmente a anterioridade da filiaçãomatrilinear sobre a filiação patrilinear.

Mais tarde, foi demonstrada a grande ingenuidade destas afirmações, pelaelaboração de tipologias do parentesco que evidenciaram a existênciasimultânea e contemporânea de todos estes aspectos, com excepção do supostomatriarcado.

No domínio da religião, o evolucionista E. Tyíor (1832-1917) desenvolveuuma teoria sobre o animismo ao qual ele atribuía a primeira manifestação dacrença religiosa, seguindo-se mais tarde J. G, Frazer com a mesma posição apropósito da magia.

Esta época deu origem a uma enorme actividade científica na Europa quelevou à criação de numerosas sociedades científicas e eruditas, de cátedrasuniversitárias e grandes museus europeus que se auto-considerararn osdepositários legítimos do espólio cultural da humanidade. De facto, nesteperíodo, a situação de domínio colonial permitiu espoliar grandes tesourosculturais dos povos colonizados. Espoliação de que não se pode culpar aantropologia de qualquer responsabilidade directa mas cujo conhecimentoserviu certos interesses estranhos aos objectivos da ciência..

A contribuição da escola evolucionista, apesar dos seus excessos teóricos -como o de tentar classificar as sociedades e as suas instituições segundo umacronologia histórica linear -, foi da maior importância para o desenvolvimentoda ciência antropológica. De facto, ao elaborar um projecto de comparaçãoentre as sociedades e constatar semelhanças entre as diversas sociedades, tantasvezes tão distantes umas das outras no espaço e no tempo, deu forma à ideiada unidade do género humano. Ideia que ainda hoje define a finalidade últimada antropologia contemporânea e tão próxima do essencial! s mo de C. Lévi-Strauss.

Graças igualmente ao método comparativo, utilizando a grande massa dematerial etnográfico acumulado, foi possível sistematizar e explicai- dados atéentão em desordem e incompreensíveis. No caso do parentesco, a seguir aMorgan ter evidenciado as terminologias descritivas e classificatórias doparentesco designadamente, foram elaboradas as noções de endogamia eexogamia, de parentesco por aliança, de colateralidade e de poligamia(poliandria e poliginia)2 que conservam actualmente a maior importância geralna antropologia e em particular no estudo do parentesco.

Nos anos sessenta, Morgan voltou à cena antropológica pela mão daantropologia marxista francesa que considera da maior importância a visão

- A organização familiarpol igâmica pode indicaruma situação de po l ig in iaou de poliandria. Apoliginia, refere o tipo deorganização familiar emque um marido pode ter,legalmente, várias esposas.Inversamente, a poliandria,indica a organização fami-liar em que uma esposa tem,legalmente, vários maridosao mesmo tempo.

97

Page 9: UAb - Antropologia Geral - Capitulo 5

que ele tinha da dinâmica da história, assim como por C. Lévi-Strauss que oconsidera como o fundador da antropologia do parentesco de que ele própriofoi um dos notáveis seguidores.

Porém, as teorias evolucionistas davam demasiada importância às semelhançasem detrimento das diferenças. Os evolucionistas só se interessavam peladiversidade histórica das comunidades humanas, na medida em que esta lhespermitia estabelecer as fases da evolução unilinear, em referência à ideia deprogresso subjacente à civilização europeia.

O evolucionismo que dominou a cena antropológica até à terceira década doséculo XX, após ter constituído um progresso, criou um impasse científicocontraditório no modo como tentava articular a relação da unidade e diversidadeda humanidade. Será a corrente funcionalista e um. dos seus maioresrepresentantes Malinoswki que reformula, já a partir da segunda década do-século XX, arelação entre unidade e diversidade s ócio-cultural, introduzindoentão um ponto de vista relativista das culturas e das sociedades.

Também a escola culturalista americana inverteu a perspectiva ao darimportância ã diversidade. Segundo esta escola, as diferentes diversidadesculturais são entidades irredutíveis assim como a unidade do género humanorepresenta a capacidade das sociedades humanas a se diferenciareminfinitamente culturalmente. Este relativismo absoluto será atenuado pelofuncionalismo britânico como veremos mais adiante.

5.1.2 O difiisionismo

Naturalmente, a época evolucionista não foi estanque nem absolutamentehomogénea do ponto de vista do pensamento antropológico. Na realidade,paralelamente a esta, outros pensadores exploravam direcções complementarese, sobretudo, opostas. Para finalmente, face ao impasse e à desconsideraçãodo pensamento evolucionista que se seguiu, outras concepções teóricas daremnovo rumo à compreensão da humanidade sern cortar radicalmente corn algunsaspectos do raciocínio evolucionista.

De facto, no pensamento de certos autores, tornava-se evidente que nenhumasociedade humana se teria desenvolvido isoladamente, sem contactos neminfluências exteriores, ao ponto de as encerrar separadamente num cicloevolutivo interno por etapas. Sob o impulso das críticas do antropólogoamericano F. Boas [1858-1942] às teses evolucionistas, uma nova compreensãoda humanidade desconsidera progressivamente o evolucionismo linear e cedeo lugar ao que foi designado de escola dííusionista ou ainda de corrente dahistória cultural.

98

Page 10: UAb - Antropologia Geral - Capitulo 5

Esta corrente foi sobretudo relevante nos Estados Unidos, mas também naAlemanha pela iniciativa do geógrafo F.Ratzel [1844-1904], onde prevaleceuaté finais dos anos trinta. O contributo de Ratzel apoiava-se na geografia dosmovimentos migratórios, como mecanismo de difusão cultural (invenções,técnicas, organização social) de certas sociedades "mais civilizadas" paraoutras. De pouca importância na Grã-Bretanha, esta corrente teve, no entanto,um grande representante em W.H.R. Rivers [1864-1922], As observaçõesminuciosas de Boas e o estudo comparativo das sociedades pareceu também aRivers evidenciar influências entre elas.

Assim, contrariamente aos evolucionistas, que interpretavam as semelhançasentre sociedades como a expressão de uma evolução paralela, os difusionistasinterpretam esta evolução como sendo essencialmente o resultado deempréstimos e de contactos culturais entre sociedades.

Saída da crítica do evolucionismo, a corrente difusionista, reagindo à ideia deum desenvolvimento unilinear das sociedades, parte do princípio de que oprocesso de desenvolvimento cultural não é uniforme para todas as sociedadesrnas que este conhece a diversidade pelo facto de existirem forçosamentecontactos, mais ou menos acidentais, entre sociedades. O homem sendo poucoinventivo, a história da humanidade resumir-se-ia assim a empréstimos culturaissucessivos, a partir de focos de civilização cuj a distância geográfica, por muitogrande que fosse, não devia constituir qualquer obstáculo para a difusão.

Pretendendo que a maioria dos elementos culturais que constituem umasociedade tinham sido tomados a outras culturas, provenientes de um númerolimitado de centros de difusão - devido à relativa raridade dos processos deinvenção -, a teoria difusionista considerava necessário estabelecer a cronologiada história cultural de uma sociedade para compreender as suas característicasdo momento. Enquanto, para os evolucionistas dois elementos culturaissimilares, existentes em duas culturas distintas, eram interpretados como oresultado de duas evoluções paralelas e independentes, para os difusionistas asemelhança resultava de uma transferência directa ou indirecta de uma dassociedades para a outra.

Assim, para reconstituir a história universal das culturas na snainter-relação -projecto ambicioso e na realidade impossível de realizar -, os difusionistasdividiam as suas áreas culturais, a partir das quais se teriam efectuado asdifusões, em vários estados: os quais iam dos "caçadores-recoltadores"primitivos às civilizações evoluídas daEuropa e da Ásia.

Porém, as escolas difusionistas alemã e austríaca3 obtiveram resultadosinteressantes ao introduzir as noções de complexo cultural4 e de circulo decultura ou de civilização5 para qualificar áreas de vastos complexos culturaisde onde se teriam expandido certos aspectos para a maior parte do planeta.

3 Em alemão a"Kultitrhistorísche Schute" eque os ingleses designam de"Citllure hisiorical school".

4 «Kullur Kamplexe>

í «Kitlturkreise».

99

Page 11: UAb - Antropologia Geral - Capitulo 5

0 Continuador de Graebner,W. Schmidt foi o fundadorda escola de Viena e da re-vista internacionalAnthrapos.

Discípulos de Ratzel, como Frobenius [1873-1938], vulgarizador da noçãode área cultural, ^Kulturkreis"), F. Graebner [l 873-1938] e o missionário W.Schmidt [1S6S-1954]6, sustentavam que era possível redesenhar os caminhosseguidos pelos complexos culturais da difusão e registar os diferentes sítiosonde se observavam as características do complexo. O caminho seguidoconsistia em dividir as culturas em elementos culturais e em conjuntos devestígios culturais pertencentes a uma mesma cultura (complexos culturais).A partir da análise dos diferentes elementos e conjuntos culturais, existentesnuma determinada área geográfica, deduzia-se a sua distribuição no espaço,segundo o grau de quantidade existente, para assim estabelecer áreas culturaismais ou menos homogéneas. Com. este procedimento, tentava-se retraçar oscaminhos da difusão de um determinado aspecto (técnico, instituição, etc.)segundo a história das relações mantidas entre as diferentes culturas. Paratanto, bastava constatar a presença, ou ausência, de certos elementoscaracterísticos de uma cultura de referência e estabelecer as diferenças entrej

culturas em função do resultado obtido. Este objectivo pressupunha demonstrara historicidade particular dos povos, pretensamente sem história singular, peloestudo da sua distribuição no espaço e consequentes influências.

Nestas condições, o difusionismo não era menos hipotético e conjecturai queo evolucionismo.

Precisamente, aprincipal críticafeita ao difusionismo resulta do facto de saberse as diversas culturas, entendidas como expressões convergentes da vidahumana, derivam de certos centros de difusão ou, ao contrário, são invençõesautónomas aparecendo paralelamente umas às outras, para resolvernecessidades idênticas. Além disso, a definição de áreas culturais revela amaior das dificuldades, apesar da multiplicação dos critérios utilizados como:invariante/variante, centro/periferia, formas puras/mistas, concordânciaqualitativa/quantitativa. Por outro lado, ao darem ênfase às permanênciasculturais, os difusionistas não conseguiram resolver a questão da inovação eda criatividade humana, apesar de no seu corpus de análise a quantidade deáreas, consideradas de referência, terem sido substancialmente reduzidas.

Mas a maior oposição ao difusionismo foi suscitada pelaprópria culturologiainglesa ao enredar-se na deriva hiper-difusionista. De facto, o hiper-difusionismo levou ao descrédito completo do difusionismo ern resultado dasua teoria dita "pan-egípcia" ou heliocêntrica, (ou seja, que tudo está centradonum único ponto que regula todo o resto) defendida pelos hiper-difusionistasingleses. O biologista G. EUiot-Smith [1871-1937] e W. J. Perry [1887-1950]pretendiam que o Egipto teria sido o berço de todas as civilizações e o únicocentro de difusão cultural. O seu raciocínio resultava de pensarem que a difusãodos elementos culturais teria partido de focos de civilização de alto prestígioao ponto de marcarem a história cultural da humanidade. Rapidamente esta

T~

100

Page 12: UAb - Antropologia Geral - Capitulo 5

posição foi contrariada por descobertas, em África designadamente,' queatestavam a existência de focos de civilização fora de qualquer influênciaegípcia.

Durante o mesmo período, enquanto a culturologia inglesa dava origem aohiper-difusionismo, o fundador da antropologia americana. FranzBoas, naorigem do culturalismo americano, dedicava-se ao estudo dos processos decontacto e transferência cultural em resultado das migrações, dos empréstimos,da imitação ou da aculturação.

Mais que qualquer outra corrente, a teoria difusionista remete directamentepara a noção de cultura. Porém, a noção de cultura é bastante complexa eincerta, assim como as numerosas definições que suscitou ** ;ue vão da culturadita humanista à cultura antropológica. Muitos autores esforçaram- se em daruma definição precisa a este conceito e inclusivamente fazer a sua recensãoexaustiva, como A. L. Kroeber[1876-1960] e C. Kluckhohn [1905-1960].

E. B- Tylor [1832-1917] (antropólogo britânico considerado o fundador da"culturologia", na perspectiva evolucionista) deu uma definição geral decultura considerada corno amais precisa: "conjunto complexo incluindo ossaberes, as crenças, a arte, os costumes, o direito, assim como toda a tendênciaou hábito adquirido pelo homern vivendo em sociedade". Ao longo do tempo,diferentes autores, em particular os culturalistas americanos foram reafirmandoa abrangência da definição, à qual se poderia acrescentar a relativamente recentedefinição concisa dada pelos franceses M. Pannqff e M. Perrin no seu dicionáriode etnologia [1973:73]: "Conjunto dos conhecimentos e dos comportamentos(técnicos, económicos, religiosos, sociais, etc.) que caracterizam umadeterminada sociedade humana".

Todavia, o interesse da questão não está na reflexão que suscitou a definiçãode Tylor mas por ter instruído a antropologia cultural a reflectir sobre uma dascaracterísticas fundamentais da cultura: a sua íransmissibilicíacíe, na acepçãode tradição cukural. de herança cultural etc., conducente por sua vez auma noção vizinha: a civilização.

A antropologia americana (cuja abordagem, como se viu, difere, em certamedida, da antropologia social britânica que privilegia os factos de sociedadeenquanto relações sociais e menos enquanto comportamentos culturais) tem amaior tradição no estudo da cultura, cuja temática foi desenvolvida pelo seubrilhante representante Franz Boas. Mais tarde, também M. J. Herskovits[1895-1963] (antropólogo americano aluno de F. Boas) esteve particularmenteinteressado no estudo dos problemas derivados do contacto entre culturas edos processos de aculturação.

101

Page 13: UAb - Antropologia Geral - Capitulo 5

A noção de aculturação foi introduzida pelos antropólogos anglo-saxoes jpara designar os fenómenos resultantes de contactos directos e prolongadosentre duas culturas diferentes, caracterizando-se pela modificação outransformação de um ou dos dois tipos culturais em presença. Nesta medida, aaculturação é uni aspecto intrínseco ao processo de difusão.

i,1.--.Actualmente, a palavra aplica-se em certos casos, num sentido mais restritivo, [ao contacto particular de duas sociedades de força desigual, em que a sociedade tdominante, mais numerosa ou tecnologicamente melhor apetrechada, - • -geralmente de tipo ocidental - impõe-se directa ou indirectamente à sociedadedominada. As noções de tipo e grau de aculturação foram introduzidas para [definir o campo e a importância deste fenómeno.

Todavia, na realidade, esta concepção de mudança automática revelou-se maiscomplexa do que se julgava, na medida em que ela era sempre avaliada em - - - - - -função das culturas dominantes levando a considerar que as sociedadestradicionais eram fatalmente conduzidas a adoptar as características dassociedades de maior força cultural. De facto, o ressurgimento de costumesantigos em determinadas sociedades consideradas aculturadas conduz a umareflexão mais afinada da questão.

5.1.3 O funcionalismo

Em antropologia, o funcionalismo corresponde à doutrina que pretendeprivilegiar o estudo da função dos elementos sociais em detrimento do estudo

r

da sua forma. O conceito de forma social designa qualquer aspecto de um {complexo de civilização cujas expressões podem ser observadas e transmitidas |de uma sociedade para outra. Neste sentido, pode falar-se da "forma" (ou jseja, do aspecto aparente) de um procedimento técnico ou de uma cerimónia. jA transmissão de um elemento de civilização é muitas vezes acompanhada -- 7pela dissociação da forma e da significação dado que, na maioria das vezes, [esta escapa à compreensão dos indivíduos, enquanto a forma pode ser !facilmente apreendida e ser imitada ou copiada sem que necessariamente tenha •o mesmo significado. Assim, é funcionalista a opinião daquele que pretende .atribuir uma função a qualquer elemento social. \r outras palavras, os funcionalistas consideram o estudo da sociedade em

termos de organização e funcionamento. O objectivo é evidenciar as relaçõescausais, funcionais e interdependências entre os factos sociais e as Iinstituições de uma dada sociedade. A análise funcionalista, ao querer estudara função de urna instituição num quadro social geral subentende que os factossociais estão intimamente ligados uns aos outros. Nestas condições qualquermodificação num dos elementos do quadro social geral, pode levar a alterações

.02

Page 14: UAb - Antropologia Geral - Capitulo 5

noutro, ou em todos, dos elementos constituintes desse quadro. Assim, paraos funcionalistas, tudo numa sociedade teria uma função indispensável.

Em antropologia, esta tendência caracterizou inicialmente a escola deMalinowski [1884-1942]. De facto, o fundador e o mais notável representantedo funcionalismo antropológico foi Malinowski. Este tentou ilustrar o postuladofuncionalista em várias obras da sua autoria, em particular nos Argonautas doPacífico Ocidental [1922]. Mas Radcliffe-Brown [1881-1955] esteveigualmente na origem da teoria,jfimcionalista que mais tarde viria a serdesenvolvida por M. Fortes [1906-1983].

Jean Poirier, apoiado no que considera ser a melhor análise sobre a contribuiçãode Malinowski acerca do funcionalismo, na obra colectiva dirigida porRaymond Firth e publicada em 19577, refere o seguinte: "A ideia central danova teoria é que, no organismo social, tudo se explica pelas inter-relaçõesque existem entre os órgãos e as funções; num dado grupo, tudo deve serinteligível a partir da utilidade contemporânea que pode ter tal ou tal fenómeno;a cultura é uma totalidade orgânica cujos diversos elementos estão interligados;cada elemento ajusta-se a todos os outros, no seu lugar, e joga o seu papelnum conjunto significante como o de um vasto maquinismo" [1968:55].Acrescenta ainda que o conceito de relação é fundamental em Malinowski, namedida em que ele insiste fortemente na importância das relações existentesentre os factos sociais e o todo a que pertencem, entre os próprios factos sociaisassim como entre os factos e o meio exterior. E fundamental também, quandoafirma que a especificidade de uma cultura reside na «conexão orgânica detodas as suas partes» e nas relações que cada cultura mantém com o meiointerno do homem (o qual exprime necessidades) e o meio externo (que fornece

-o quadro das respostas fornecidas pelo grupo), isto é com a sociedade [Op.cit].

Para Malinowski," A identidade real de uma cultura parece repousar sobre aconexão orgânica de todas as suas partes, sobre a função que um determinadopormenor preenche no interior do seu sistema, sobre as relações entre o sistema,o meio e as necessidades humanas" [Op.cit.]

O fundamento da necessidade e resposta à necessidade, postulado porMalinowski, leva-o a criar uma tipologia distinguindo entre as necessidadesprimárias a que o homem está adstrito por razões biológicas, algumas delasuniversais por essa razão (como anecessidade de se alimentar); as necessidadesderivadas, próprias da condição humana e específicas das sociedades (taiscomo a educação, a linguagem); e, finalmente, as necessidades sintéticasque correspondem a motivações características do psiquismo humano (comoos ideais, a religião).

A ideia de necessidades humanas, fundamental no pensamento do autor, seráa mais contestada. Com efeito, a proposta teórica de Malinowski, assumida a

7 Raymond Firth, Man andCulture, an evaluation ofthe\vork of BroníslawMalinowski,

103

Page 15: UAb - Antropologia Geral - Capitulo 5

s O holísmo (do grego bolos,inteiro, totalidade) corres-ponde à doutrina segundo aqual o todo tem proprieda-des indispensáveis represen-tadas nas panes constitutivasdesse mesmo lodo. Tanlo embiologia como em antropo-logia, consiste em percebera função de um determina-do elemento (órgão, inst i -tuição, etc.) reintegrando-ono conjunto a que pertence.

9 Os sociólogos intcraccio-nistas concebem o socialcomo o resultado dainteracção de acções e reac-ções entre os membros deum grupo ou entre os dife-rentes grupos de uma socie-dade. A interacção socialderiva de actos de recipro-cidade entre os diferentesactores em presença, namedida em que toda reac-ção pode resultar em novasreacções.

10 A etnomelodología nasceuda revolta do sociólogoamericano Harold Garfínkelcontra a sociologia tradici-onal. Na sua obra Slttclies inethnomerliodolgy [1967],Harold Garfinkel in t roduzo actor social corno fontedas significações, e comotendo um papel decisivo nasociedade: porque possuiuma competência única, odomínio das evidências, écapaz de adaptar o seu com-portamento e de o descre-ver. Assim, a etno-metodologia parte do pos-tulado que um discurso so-cial só tem sentido se forcompreendido no seu estri-to contexto, simultaneamen-te o da emissão do discursoe o da recepção. Este postu-lado é designado pelo concei-to de indexalídade.

partir da síntese de sugestões, revela certas limitações pelo facto de tentargeneralizar conclusões concebidas a partir de uma única experiência pessoalnum pequeno arquipélago das ilhas Trobriand. Por outro lado, a perspectivafuncionalista de Malinowski apresenta-se igualmente de modo rígido, namedida em que assemelha as sociedades a organismos biológicos e, como tal,as considera como algo de inteiramente fechado e acabado. O autor, reagindoao evolucionismo de modo dogmático, não Jeva em linha de consideração adimensão histórica; e em reacção ao difusionismo, dá pouca importância aoscontactos culturais. Esta posição induz um obstáculo dificilmente transponívelna medida em que torna impossível dar conta da complexidade das dinâmicassociais.

Os analistas da teoria funcionalista moderna, expurgada dos seus aspectosmais contestáveis, apresentam o funcionalismo como sendo simultaneamenteuma doutrina e um método. Como doutrina, quando postula urna orientaçãogeral segundo a qual a utilidade é a finalidade absoluta do estado da sociedadeou cultura. Corno método, quando considera que os factos descritos devemser recolocados no seu contexto e interpretados emrelação a este. Como métodoainda, quando a teoria funcionalista é encarada como uma hipótese deexplicação de qualquer fenómeno social, enquanto dependente da totalidadea que pertence, indispensável ao seu funcionamento. Assim, o funcionalismocorresponde ao postulado metodológico doutrinal que consiste em estudar, nasincronia, os factos sociais e as instituições não só em si mas fundamentalmentenas suas relações funcionais com a totalidade do conjunto social onde operam.Segundo os funcionalistas, o facto social ou a instituição ern causa só revela asua razão de ser quando apreendidos nas suas relações funcionais com osoutros factos ou instituições constituintes da totalidade social. Por exemplo,uma determinada cerimónia ritual só será compreensível se for percebida amaneira como se encontra ligada a outros níveis sociais (parentesco, economia,etc.), para revelar assim a sua função emrelação aos outros diferentes níveis.Na perspectiva funcionalista, só esta abordagem permite compreender,simultaneamente, o facto em causa e o sentido da sua existência.

Assim, encontra-se implícito no funcionalismo uma hipótese holística8 e um.princípio utilitarista. É aliás este último aspecto que foi o mais violentamentecontestado. Supor que tudo tem uma função precisa num sistema social, édeixar pouco lugar à disfunção, à dinâmica da mudança. Para autores nãodeterministas (sociólogos interaccionistas9, etnometodólogos10) a carga doprincípio utilitarista do funcionalismo significa atribuir um peso desmesuradoao determinismo do quadro social, no seio do qual os actores sociais se movem,sem que este permita a menor liberdade de acção. Para certos autores, asrepresentações sociais (a ideia que as pessoas fazem da sua prática social)que. ia perspectiva destes, os indivíduos são capazes de alterar segundo ascircunstâncias, são potentes motores de acção social capazes de contrariar o

104

Page 16: UAb - Antropologia Geral - Capitulo 5

relativo determinismo social, engendrando pela mesma ocasião novasrepresentações e assim sucessivamente.

Certas críticas feitas ao funcionalismo vieram em particular dos antropólogosdinamistas e da corrente marxista (muito representada em Franca, porinvestigadores corno C. Meillassoux, E. Terray, F. Rey, M. Godelier) quecontestaram a suapostura anti-história. Estes, contrariamente aos funcionalistas,consideram que as sociedades não são sistemas delimitados e equilibrados, seo foossem não seria possível dar conta das tensões sociais e da mudança socialobserváveis.

De facto, um dos maiores excessos desta abordagem consiste sem dúvida naanalogia da coerência orgânica. Na realidade, contrariamente a esta, todas associedades são animadas por conflitos inte~nos e não é demonstrável aexistência de sistemas sociais harmoniosamente organizados, graças a um*—' ? o j

conjunto de instituições inteiramente ajustadas uma às outras.

Mas é sobretudo Lévi-Strauss que exemplifica nos memores termos os excessosdo raciocínio funcionalista: "Dizer que uma sociedade funciona é um truísmo;mas dizer que tudo numa sociedade funciona é um absurdo" [1985:17]

No entanto, muitos dos grandes antropólogos modernos deram um tratamentofuncionalista aos domínios que estudavam: designadamente, o próprio B.Malinowski e R. Firth no estudo da organização familiar, da economia, damagia, Radcliffe-Brown e M. Fortes no estudo do parentesco, da religião.

Todavia, em avaliações sucessivas, o funcionalismo foi rectificando os seusexcessos iniciais. Na prática actual, da maioria dos investigadores, a análisefuncional consiste em tratarqualquer facto social do ponto de vista das relaçõesrelativas que ele mantém, sincronicamente, com outros factos sociais no seiode uma totalidade. Porém, esta totalidade não pressupõe estar necessariamenteinteira e definitivamente estruturada. Assim, na sua definição mais recente, anoção de função não deve ser entendida como um facto de causa a efeito massomente como uma relação de interdependência relativa entre os factos,sendo que as relações existentes entre eles não representam relações dedeterminação ou leis de funcionamento. Nestas condições, a função não temvalor explicativo em si mas unicamente um valor heurístico11.

Todavia, recentemente, nos Estado Unidos investigadores referenciados comofazendo parte da escola de pensamento dita "ecologia cultural" retomaram omodo de raciocínio funcionalista na sua globalidade.

11 O termo heurística(etimologia de origem gre-ga, herískêin'. encontrar) sig-nifica aqui as condições queservem para encontrar, queé" capaz de guiar uma inves-tigação. Mas noutra acepçãodo termo, significa tambémparte da ciência históricarespeitante à investigaçãocritica dos documentos.

105

Page 17: UAb - Antropologia Geral - Capitulo 5

106

5.1.4 O estruturalismo - í

C. Lévi-Strauss foi sem dúvida nos anos sessenta o grande representante doestruturalismo em antropologia social. O autor. inspirando~se no método dean alise estrutur alista, inaugurado emlinguística por Ferdinand Saussure [1916]esobretudo graças à imensa influência exercida, em particular, porJakobson,linguista americano, aplicou-o sistematicamente em antropologia. Este interessepela linguística resulta da convicção de que esta ocupava um lugar cimeiro noconjunto das ciências sociais e que neste conjunto foi a que de longe realizouos maiores progressos: "a única, sem dúvida, a poder reivindicar o nome deciência e a ter conseguido, ao mesmo tempo, formular um método positivo econhecer a natureza dos factos submetidos à sua análise" [C. Lévi-Strauss,1985: 37]. Para o autor, o desenvolvimento privilegiado da linguística levouinvestigadores de disciplinas vizinhas a seguiremp seu exemplo e a inspirarem- -- • -se do seu método.

Este método foi sobretudo aplicado em Franca às estruturas do parentesco,aos mitos, à alimentação, de forma muito interessante por C. Lévi-Strauss.Estendeu-se em seguida à semântica em particular e inclusivamente à críticaliterária. Outros, em França, tentaram aplicá-lo a diversos domínios,designadamente J. Lacan na psicanálise, L. Althusser na filosofia, R. Barthesna semiologia, M. Foucault na filosofia.

Segundo Lévi-Strauss, o objecto da análise estrutural, consiste em procurarpelo método dedutivo as estruturas particularmente inconscientes que podemser evidenciadas a partir de dados empíricos etnográficos, como: as regras deparentesco, a mitologia, as práticas culinárias, as classificações culinárias, aarte etc. Análise estrutural significa procurar e estudar a estrutura inconscientesubjacente a cada instituição, o sistema no qual ela assenta e o modo defuncionamento das relações entre todos os elementos constituintes dessesistema.

As estruturas não correspondem à realidade empírica mas aos modelos que ,são construídos a partir dela, os quais devem satisfazer três condições: 1) j.apresentar um carácter de sistema onde todos os elementos são solidários uns j-dos outros, de tal modo que nenhum se pode modificar sem que esta mudança fafecte todos os outros; 2) tornar possível urna série de transformações íordenadas, conduzindo a um ou vários grupos de modelos do mesmo tipo;-3) jpermitir prever de que_ forma reagirá o modelo se uin ou vários dos seuselementos for modificado [Xévi-Strauss, 1985].

Método essencialmente formal, este opõe-se ao ponto de vista histórico eevolucionista que procura saber como, no tempo, uma causa produz urn certoefeito, a qual por sua vez se torna causa.

Page 18: UAb - Antropologia Geral - Capitulo 5

A noção de estrutura é antiga, assim corno a sua utilização em antropologiasocial cuja definição varia segundo os autores. Para alguns destes autores,designadamente sociólogos, a noção de estrutura corresponde à organizaçãosocial e às respectivas relações sociais efectivas ou ao sistema de interacçõesobserváveis entre os diferentes patamares sociais existentes numa sociedade.Deste ponto de vista, uma estrutura social consiste no conjunto dos elemen' osconcretos de um sistema e corresponde afiguras estáticas da organização soei-",tal como os estatutos sociais12 que fazem com que os indivíduos e os grupossej am interdependentes.

Como vimos, a perspectiva é diferente no estruturalismo de Lévi-Strauss.Segundo o autor, a estrutura só se revela através dos modelos construídos apartir da realidade empírica observada e descrita pela etnografia. Ou seja, aestrutura não existe em si. Ela só se revela em função dos elementos que elaconjuga; "O princípio fundamental é que a noção de estrutura social não serefere à realidade empírica, mas aos modelos construídos apartir dela" [Ibid:305], É neste sentido que o autor define a estrutura: "urna estrutura ofereceuma carácter de sistema. Ela consiste em elementos tais que uma modificaçãoqualquer num deles conduz a uma modificação de todos os outros. Em segundolugar, qualquer modelo pertence a um grupo de transformações em que cadauma corresponde a um modelo da mesma família. Em terceiro, as propriedadesindicadas em cima permitem prever de que modo reagirá o modelo no caso demodificação de um dos seus elementos. Finalmente, o modelo deve serconstruído de tal forma que o seu funcionamento possa dar conta de todos osfactos observados" [Ibid: 306].

Muito ern voga nos anos sessenta, o estruturalismo não conseguiu dar-verdadeiramente continuidade a uma escola. Por outro lado, os críticos doestruturalismo emitiram dúvidas sobre o seu carácter científico, qualificando-o de mera postura filosófica. Contudo, não me parece poder negar-se o carácterde cientificidade ao estruturalismo, mesmo se não teve êxito em todas as suasaplicações, mas nesse aspecto não foi o único. Precisamente, o seu méritomenos contestável é o ter alargado, de forma sistemática, o inventário dapertinência. Ele encerra urn certo número de afirmações gerais bernfundamentadas, incidindo sobre factos. Outra das características doestruturalismo de Lévi-Strauss, é querer explicar a relação do universal com oparticular, com fundamento em relações de transformação dos modelos sociais.Porém, o que lhe foi sobretudo criticado é ter prestado maior atenção ao estudoformal dos modelos e menor às relações sociais reais a que dizem respeito.

Certos críticos consideraram a sua perspectiva como uma visão estática dasociedade e acusaram-no de situar fora do tempo as "estruturas lógicas" quesão supostas comandar as sociedades. Porém, Lévi-Strauss nunca recusou ahistória. Para o autor, a história não é recusável, ela é uma realidade que temde ser considerada com a maior atenção.

13 O esiatuto social de umindivíduo corresponde aoconjunto de direitos e deve-res inerentes à sua posiçãonas relações com os outros.Sendo assim, o estatuto so-cial de alguém correspondeà soma dos diferentes esta-tutos parciais que possui noseio dos vários grupos emque participa; família, pro-fissão, etc.

107

Page 19: UAb - Antropologia Geral - Capitulo 5

A questão central, em Lévi-Strauss, é a explicação do tipo de fenómeno emcausa: a essência da natureza humana. O autor, face às diferentes realidadessociais, aplicou-se a estabelecer uma divisão metodológica na procura dosfenómenos, o que em nada afecta a tomada em consideração da história masdesembaraça a antropologia e clarifica o seu objecto. Na realidade, ele colocoude forma rigorosa e complexa, o problema das relações entre a história e aantropologia, formulando-o do seguinte modo: "ou as nossas ciências sedebruçam sobre a dimensão diacrónica dos fenómenos, quer dizer sobre a suaordem no tempo, e elas são incapazes de fazer a sua história; ou elas tentamtrabalhar à maneira do historiador, e a dimensão do tempo escapa-lhes.Pretender reconstituir um passado do qual é impossível atingir a história, ouquerer fazer a história dê um presente sern passado, drama da etnologia numcaso, da etnografia no outro, tal é, em qualquer caso, o dilema..." [Lévi-Strauss,1985:5]. _ _ _ _ _ _ _

O cientista francês tinhaparticularmente emmente as pequenas sociedades daAmérica tropical, onde o uso da história é diferente do europeu. Ao referir quealgumas destas sociedades se encontram perto do "grau zero de temperaturahistórica" não pretendia afirmar que não possuíam história. Significava somenteque essas sociedades não têm consciência idêntica à dos europeus dessepassado, o qual transcende a mera memória colectiva, e sempre que algumaalteração significativa acontece, e dela se apercebem, todos os esforços sãodesenvolvidos no sentido de repor a situação tal como ela é imaginada ter sido- o que naturalmente é vão. Esta ilusão, da possibilidade de reposição desituações anteriores, normalmente feitas na base de representações sociais,limita a tomada de consciência e o controlo dos acontecimentos na longaduração: "A natureza do pensamento selvagem, é ser intemporal; ele desejaagarrar o mundo, ao mesmo tempo, como totalidade sincrónica e diacrónica, eo conhecimento que dele tem parece-se com a que oferecem, de um quarto,espelhos fixados a paredes opostas e que se reflectem um no outro (assimcomo os objectos colocados no espaço que os separa), mas sem seremrigorosarnenteparalelos" [C. Lévi-Strauss, 1962: 348],

Importantes dimensões do passado tomam então a forrna de mito, outrasperdem-se para sempre, o que não significa que os acontecimentos não tenhamtido lugar. É precisamente no estudo dos mitos que Lévi-Strauss vai igualmenteaplicar a análise estrutural depois da sua obra monumental sobre as EstruturasElementares do Parentesco [1982]. EmMithologiques I [1964], analisa umnúmero considerável de mitos comuns à região dita de língua Gê, na Américatropical, os quais apresentam dês continuidade no espaço (recolhidos em zonasdistintas) e inclusivamente no tempo (tendo alguns deles sofrido alterações aolongo dos processos de transmissão) assim como uma desordem manifesta eum significado incoerente aparentes. A análise estrutural permite ao autorintroduzir uma ordem na desordem aparente, dar sentido ao caótico, fazer

108

Page 20: UAb - Antropologia Geral - Capitulo 5

sobressair as invariantes na infinita variedade das narrativas míticas, e evidenciarfinalmente o substrato sociológico explicativo comum a todos eles: nuns, aexplicação do aparecimento do fogo, noutros o aparecimento da vida humana,etc.

As maiores críticas feitas ao estruturalismo francês foram menos a propostasegundo a qual as mesmas estruturas, activas em todas as sociedades humanas,podem, segundo os casos, subtender manifestações diferentes e mais o princípiode que todas as variações culturais podem resultar de um fundo humanoinvariável [Dan Sperber, 1985]. Mas precisamente, segundo Dan Sperber[1968], um dos aspectos positivos da obra de C. Lévi-Strauss é o de recentrara antropologia no estudo do seu primeiro objecto: a natureza humana.

Todavia, o estruturalismo antropológico não se resume ao de Lévi-Strauss,nem este é exactamente o mesmo que o dos sociólogos ou de antropólogoscorno Radcliffe-Brown designadamente, o qual define a estrutura como tendo"uma disposição ordenada de partes ou de elementos que a compõem5'.Segundo esta proposta, "Os elementos da estruturasão pessoas, seres humanos,considerados não como organismos rnas como ocupando um lugar na estruturasocial." Quanto à estrutura social, esta "designa a rede complexa de relaçõessociais existindo realmente e reunindo seres humanos individuais num certoambiente nalural".[m A. R. Radcliff-Brown, 1968: 313 ] Ou seja, paraRadcHffe-Brown, a estrutura tem uma existência concreta, provida de elementosna forma de indivíduos, com lugar marcado na estrutura social, a qual elaprópria resulta de relações inter-indi vi duais reais. . .

Ora, esta definição de estrutura foi bastante criticada por Lévi-Strauss, o qualJhe_..apontava o.facto desta surgir.comp_urn conceito intermediário entre aantropologia social e a biologia; e ainda de Radcliffe-Brown partilhar comMalinowski uma certa inspiração naturalista da escola inglesa que ele opõe àatitude sistemática e formalista necessária. Segundo o autor francês, a posiçãoempirista de Radcliffe-Brown impedia-o de distinguir claramente estruturasocial e relações sociais, reduzindo assim a noção de estrutura social ao conjuntodas relações sociais concretas numa determinada sociedade. Daqui, segundoo autor francês, resulta o facto de Radcliffe-Brown não ter atribuído uma maiorimportância à distinção entre estrutura Q forma estrutural, entre modelo erealidade. Para acentuar a importância da distinção e reforçar a sua crítica,Lévi-Strauss cita M. Fortes que escreveu, tal como ele próprio pensava, "Aestrutura não pode ser directamente apreendida na «realidade concreta».Quando nos aplicamos a definir uma estrutura, colocamo-nos, poderíamosdizer, ao nível da gramática e da sintaxe, e não da língua falada" [M. Fortes,1949:56, znLévi-Strauss, 1958].

A perspectiva de Radcliffe-Brown nunca chegou a revelar-se, no sentidomoderno da definição dapalavrr, uma abordagem dos fenómenos sociais dita

109

Page 21: UAb - Antropologia Geral - Capitulo 5

estruturalista. A razão prende-se com o facto de considerar a natureza daestrutura como a soma dos seus elementos constituintes e estes elementos deestrutura com tendo um papel funcional concreto no sistema social. Por estarazão, Radcliffe-Brown não é considerado um estruturalista, masfundamentalmente um estruturo-funcionalista.

5.2 Os fundadores da etnografia: Franz Boas e BronislawMalinowski

A prática científica antropológica limitou-se, durante muito tempo, à análisede gabinete. Até perto do início do século XX, os grandes nomes quecontribuíram para as descobertas antropológicas não tiveram qualquer contactodirecto com a natureza dos factos sobre os quais dissertavam. Conta-se queSir James Prazer, antropólogo inglês, quando lhe perguntavam se alguma veztinha visto os naturais de que tão brilhantemente falava, costumava responder"Deus me guarde!".

Os eruditos de gabinete procediam às suas análises a partir de informaçõesrecolhidas por terceiros, tais como missionários, governadores coloniais eaventureiros de toda a ordem. Estes não eram profissionais e muito menoscientistas. Naturalmente, os preconceitos e o etnocentrismo das suas descriçõeseram uma constante. Desconhecendo as línguas locais, a maioria dasintervenções no terreno eram realizadas por intermédio de tradutores o quereforçava a distorção e incompreensão das sociedades visitadas que não eramvistas como totalidades viáveis, mas estados atrasados em relação à civilização.

Porém, a partir do fim do século XIX todas as escolas antropológicas passarama considerar a presença do investigador no terreno como absolutamenteindispensável, a fim de proceder à colheita directa de dados e à sua descriçãoenquanto fase imprescindível ao prosseguimento posterior do estudo dasrealidades sócio-culturais.

Iniciada por Lewis Morgan junto dos índios iroqueses, a prática da etnologiaempírica sistematiza-se com Boas e aperfeiçoa a sua forma científica modernacom Malinowski. De facto, no quadro científico que se perfila no horizontedo fim do século XIX, Franz Boas e Branislaw Malinowski revolucionam,decisivamente, a metodologia etnológica ao fundarem uma etnografia de terrenode extremo rigor.

Assim, no fim do século XIX, Franz Boas [1858-1942] vai viver pessoalmentea experiência de investigações etnográficas junto dos Kwakiutl e dos Chinookda Colômbia britânica. Nestas missões, afina os métodos de estudo

110

Page 22: UAb - Antropologia Geral - Capitulo 5

considerando que no terreno tudo deve ser objecto de descrição meticulosa eminuciosa: desde os objectos mais concretos aos aspectos mais simbólicos.Para ele, tudo deve ser anotado na medida em que cada pormenor tem a maiorimportância para a reconstituição de uma totalidade social. Nesta época, oobjectivo consistia em constituir "arquivos" culturais de toda a humanidade.Boas e, à sua volta, os seus discípulos13 dedicam-se à colheita de dados e à suadescrição de forma total, mas sem alguma vez tentar organizar e sintetizar aenorme quantidade de dados recolhidos, considerando a colheita quase comoum fim em si. Na época, e mesmo bastante tempo depois, em resultado deum i atitude científica de um extremo rigor, Boas não foi o único a considerar-como prematura a teorização e generalização da informação recolhida.

Embora noutro registo, o próprio Evans-Pritchard [1902-1973] referiu que associedades que o antropólogo estuda eram do domínio do "descritivo" e nãodo "explicativo".

Outros antropólogos pensaram ser a melhor postura científica enquanto nãofosse conseguido o quadro completo das tipologias. das sociedades humanas.Diga-se no entanto, incidentemente, que esta atitude científica é uma exigênciageral devendo ser respeitada, sem excessos, onde a investigação não tenhareunido as condições indispensáveis à teorização e generalização. Contudo, ainvestigação deverá gravitar à volta de uma teoria central orientadora - postuladoque recusava Boas e os seus discípulos,'embora também ele se movesse noterreno com um certo objectivo.

Boas, formado em ciências físicas e naturais, compreendia melhor que ninguémesta condição científica e, como tal, não aceitava as generalizaçõesevplucionistas e mesmo -difusionistas que considerava não estaremdemonstradas nem susceptíveis de serem demonstráveis. É precisamente porrecusar qualquer teoria preconcebida, ou proposta de explicação geral, e pensarque cada cultura é dotada da sua própria história irredutível a outras que Boaselaborou um método extremamente indutivo, implicando urn trabalho derecolha exaustiva de dados de terreno. A especial atenção dada aos métodosde recolha de dados, conduziu-o a fornecer descrições interessantíssimas sobredeterminadas instituições, como por exemplo o potlach (cerimónia referidano Cap. IV) dos índios da Costa setentrional da América do Norte.

A reacção de B oas às teses evolucionistas lineares - e em particular à obra deMorgan - foi excessiva, conduzindo-o a considerar que as formas culturaissendo inúmeras, os antropólogos se deveriam limitar a descrevê-lasrigorosamente sem se preocuparem em retirar conclusões de carácter geral.Boas, pensava de facto ser impossível descobrir a ordem do quadro global dasinstituições humanas - atitude radical e estéril partilhada igualmente por Lowie[1883-1957] e designada por "Morfologísmo" de Boas e Lowie.

13 Foram suas alunas R.Benedict [1887-1948] e M.Mead [1901-1978]), repre-sentantes da tendência dita"cultura e personalidade" daescola culturalista america-na, cujos trabalhos tiveramorientações diversas. R.Benedíct, desenvolveu asnoções de relativismo cul-tural e de pattern (padrãode cultura: ou a forma quetoma o modelo cultural),assim como a ideia de "tipopsicológico" para se referira características culturais. M.Mead, trabalhou sobre aOceânía. Pôs em causa auniversalidade das perturba-ções que acompanham operíodo da adolescência.Para cia a educação, a per-sonalidade do adulto e o tipode cultura a que pertence,formam um conjunto orga-nizado e indissociável quepermite colocar a questão desaber em que lugar se situaa ordem do "natural" emcada cultura.

111

Page 23: UAb - Antropologia Geral - Capitulo 5

Seja como for e como se pode imaginar, é vão pensar, ser possível, fazer oinventário de todas as instituições culturais existentes no universo. Para alémda tarefa ser vã e acima de todas as capacidades humanas, estas instituiçõesnão são estáveis, modificam-se, rnudam conforme os contextos, apresentammulti-contornos e, desde logo, não são facilmente apreensíveis. O tempoencarrega-se de as reconfigurar à semelhança do caleidoscópio que segundoos movimentos que se lhe imprime modifica, sem se repetirem, as formas e ascores das configurações apresentadas.

Assim, de Franz B oas, mais do que a sua exagerada prudência e do tambémdesignado "nominalismo boasiano" de que foi censurado, retêm-seessencialmente o seu exemplo como excepcional e escrupuloso investigadorde terreno, patente no rigor da recolha exaustiva do material etnográfico.

Porém, se Boas foi um dos percursores do trabalho de campo,.é-.sobretudo— ^_Bronislaw ÍVÍalinowski que é considerado o fundador da modalidade científica *moderna da prática etnográfica. A diferença entre a sua abordagem de terrenoe a do seu contemporâneo Boas, resulta do facto de Malinowski não sepreocupar em relevar factos etnográficos com vista à constituição exaustivade arquivos etnográficos da humanidade, mas sim em. função da apli cução deum ponto de vista teórico: o aspecto funcional da vida social.

Deste postulado teórico, resulta a particularidade metodológica de Malinowskique o conduz a apurar os modos e, formas de compreensão das sociedades.Dando o exemplo de longas estadas no terreno (ao que se sabe cerca de trêsanos, no caso das ilhas Trobriand, isolado dos seus semelhantes), a fim de seimpregnar da vida dos habitantes-locais, ele levou ao extremo o descentramentode si, da sua personalidade europeia, para melhor integrar as categorias mentaislocais e compreender pelo interior a sociedade estudada.

Malinowski, de certo modo inspirado na "escola sociológica francesa" e naimportância que Durkheim dá ao contexto sociológico, a fim de fundamentara explicação dos factos sociais, vai revolucionar a investigação antropológica,colocando no centro desta a importância do inquérito de terreno. Para ele, ocontexto sociológico e explicação dos factos sociais significa conciliar inquéritodirecto no terreno e reflexão teórica. Esta nova atitude deriva do facto deMalinowski pensar não poder haver melhor observador que o próprio teórico,homem de ciência dotado de neutralidade intrínseca, e não dever a observaçãodas sociedades fícar a cargo de pessoas sem a formação necessária que lhespermita um olhar adequadamente objectivo. Viver a mesma vida que os naturaisde um local, torna-se para ele a condição absolutamente necessária àinvestigação antropológica.

O método da observação participante que ele põe em prática, implicaprocedimentos de inquérito específicos que tiveram uma influência decisiva

112

Page 24: UAb - Antropologia Geral - Capitulo 5

sobre a reflexão teórica e vice-versa. A necessidade do estudo da realidadesocial total deve conduzir à síntese da cultura pelo próprio investigador. Ouseja, de modo a que a "sua própria experiência da experiência local se torneigualmente na experiência do leitor" [G. W. Jr. Stocking, 1983: 106].

A partir de Malinowski, a experiência pessoal converte-se numa normaincontornável da profissão de antropólogo. Ou seja, a necessidade absolutada experiência pessoal no local estudado, passa a fazer parte da actividade doinvestigador. Deste modo, o investigador adquire uma autoridade científicaque lhe advém do facto de conhecer intimamente o local de pesquisa e de

_ transmitir um testemunho absolutamente pessoal. A este propósito, a lição queMalinowski nos dá nos Argonauts ofthe Western Pacific [1922] é exemplar edas mais fascinantes.

5.3 À contribuição teórica da "escola de sociologia francesa":Emile Durkheim e Mareei Mauss

Após longos anos de estudos de gabinete, sem contacto directo com aspopulações longínquas sobre as quais dissertava e agora, finalmente, já dotadado método de trabalho de campo, a antropologia carecia todavia de um aparelhoteórico capaz de dar sentido à acumulação de informação recolhida pelos novosetnógrafos do fim do século XIX. Na prática, a investigação de terreno eraefectuada, na maioria das vezes, com poucas excepções, por pessoas sem amenor formação. Estas, embora muito empenhadas, realizavam apenas meras-descrições e não podiam f azerprogredir qualquerproblemáticacientífica, apesardas suas qualidades pessoais.

Face ao impasse etnográfico, a tradição do racionalismo intelectual francêsvai fornecer os primeiros elementos de teoria que irão enquadrar e dar impulsoa um novo desenvolvimento da antropologia. De Rousseau [1670-1741] aDurkheim[lS5S~1917] e deste a Mauss [1872-1950], a sedimentação dopensamento de carácter filosófico acerca das questões sociais, base dasociologia nascente, irá permitir forjar os primeiros princípios do quadro teórico- de conceitos e modelos explicativos - que carecia até então a disciplina.

DurJcheim, tern como preocupação demonstrar a autonomia do social emrelaçãoa todos os aspectos que não pertençam à sua esfera. Uma autonomia quedeveria caracterizar- se pela capacidade de explicação do socialpelo social -a qual deveria ser independente da explicação psicológica (ciência nascente),da explicação histórica (na perspectiva evolucionista), geográfica (naperspectiva difusionisla) e biológica (na perspectiva funcionalista deMalinowski). Já antes dele, E. B. Tylor tinha levantado a questão da autonomia

113

Page 25: UAb - Antropologia Geral - Capitulo 5

'•* Publicação de 1912 ereeditado em 1960.

15 Obra publicada cm 1898.

16 Publicado cm 1902.

do social mas de forma enviesada e contraditória impedindo-o de firmarclaramente aideia sob forma de postulado teórico.

Para Durkheim [1987], a especificidade do facto social, significa que este nãoé redutível ã psicologia particular dos indivíduos, mas exterior a estes,preexistindo-lhes e continuando a existir depois deles. Assim, os factos sociaisdevem ser apreendidos como "coisas", só susceptíveis de serem explicados serelacionados com factos de mesma natureza. Tendo como referência as ciênciasexperimentais da época que obtêm a sua especificidade e firmam a suaautonomia, umas em relação às outras, também a sociologia adquire a suaautonomia, sob o impulso de Durkheim, o qual pelas premissas teóricas novasque propõe renova a epistemologia das ciências sociais.

Contemporâneo deBoas, Durkheim, exclusivamente interessado inicialmentepela sociologia, ciência que pretende estudar os fenómenos sociais, irá mais _tarde dar importância ao estudo das sociedades '^primitivas". Assim, em Lêsfonnes élémentaires de Ia vie religieuse.^ elabora uma teoria da religião, onderealça a noção de função social que o faz aparecer como o precursor dofuncionalismo (diferente do funcionalismo biológico de Maiinowski). Emseguida, realiza uma análise etnológica sobre o incesto e o parentesco emZ/zprohibition de 1'inceste et sés origines^5, assim como numerosos trabalhos dereferência etnológica, entre eles De quelques formes primitives declassification16.

A sua influência, para além da colaboração directa com Mareei Mauss, (seusobrinho e até certo ponto seu discípulo), foi importante emFrança e teve umagrande audiência fora do país. Essa influência estendeu-se a Inglaterra, ondealcançou uni grande ascendente sobre a antropologia britânica e em particularsobre Radcliffe-Brown que irá estudar no terreno os rituais da população dasilhas Adamão, seguindo nesse estudo, segundo Paul Mercier, a direcção dasconclusões sugeridas por Durkheim em Lês fonnes élémentaires de Ia viereligieuse ao interpretar o sentido profundo (a função) dos ritos religiosos numadeterminada sociedade: "...a sociedade, ao render ura culto ao seu totemou ao seu deus, rende de certo modo um culto a ela mesma e assim reforçaa sua coesão, a sua continuidade, e o sentimento da sua identidadecolectiva" \in Mercier, 1986:113]. Esta influência estende-se igualmente aosEstados Unidos onde, a partir do anos trinta, as concepções durkbeirnianasterão a atenção da antropologia americana.

Mas, como se constata, se Durkheim não teve contacto directo com asrealidades concretas sobre as quais dissertava, evidenciou, no entanto, asmaiores qualidades científicas enquanto analista dessas mesmas realidades,marcando decisivamente as ciências sociais e nomeadamente a antropologiasocial. A este propósito, para terminar, gostaria de citar P. Mercier quando diz:"Se os antropólogos de gabinete tivessem necessidade de ser reabilitados, é

1.14

Page 26: UAb - Antropologia Geral - Capitulo 5

sem dúvida o caso de Durkheim que necessitaria de ser tomado em contacorno exemplo privilegiado"[Ibid: 114].

Na época, a cena da investigação antropológica está praticamente ocupadapelos anglo-saxões, entretanto embrionária noutros países. Todavia, comMauss(.1872-1950), a antropologia francesa, incipiente e marginal até ao fim do séculoXIX, inicia a sua autonomia em relação à sociologia. Tal, e se bern que Maussfique ainda durante algum tempo ligado à sociologia e à filosofia dos seusantecessores, a influência de "1'école sociologique française" estende-sedecisivamente ao domínio antropológico a partir do momento em que esta se

-passa a interessar pelos factos "primitivos".

Como Durkheim, também Mauss não era um homem de terreno. Porém, foigraças a ele que se formaram os primeiros etnólogos franceses e a fortededicação dos seus antigos alunos ao mestre que foi, levou um deles (D. Paulme)a publicar o essencial das aulas do seu curso geral, sob o título Manual deEtnografia [1993].

Como o seu predecessor, Mauss pretende afirmar igualmente a autonomia dosocial mas, ao contrario de Durkheim, considera os fenómenos sociais emtodas as suas dimensões humanas. Tendo, à partida o rnesmo ponto de .vistaque Durkheim sobre os factos sociais, o seu pensamento contrasta contudocom o distanciamento sociológico que pressupõe a metodologia daquele. Assim,para Mauss, os fenómenos sociais são "em primeiro lugar sociais, mas tambémao mesmo tempo fisiológicos e psicológicos". E nesta medida devem sercompreendidos na sua inteira dimensão humana.

Esta concepção, Mauss exprime-a em Essai sur lê don, foiine archaique del 'échange do modo seguinte: "...o dado, é Roma, é Atenas, é o francês médio,é o melanésio de tal ou tal ilha, e não a oração ou o direito em si [...] ospsicólogos [...] sentem fortemente o privilégio, e sobretudo os psicopatologistastêm a certeza de estudar o concreto [...] o comportamento de seres totais e nãodivididos em faculdades. E preciso imitá-los. O estudo do concreto, coisacompleta, é possível e mais cativante e mais explicativo ainda em sociologia[..,] O princípio e o fim da sociologia, é de avistar o grupo inteiro e o seucomportamento todo inteiro" [1923:24].

De facto, como já foi referido no capítulo IV, pode dizer-se que um dosconceitos mais importantes proposto por Mauss foi o de "fenómeno socialtotal". Deste postulado, resulta a sua preocupação constante de definir asentidades sócio-culturais como agregados profundamente integrados e,sobretudo, de estudar exaustivamente as relações entre os elementos quecompõem cada um desses complexos.

115

Page 27: UAb - Antropologia Geral - Capitulo 5

17 Esta noção define a confi-guração psicológica resul-tante do conjunto dos ele-mentos constitutivos da' per-sonalidade possuídos cmcomum pelos membros deuma sociedade.

Assim, no mesmo Ensaio sobre o Dom o autor refere ainda: "Os factos queestudámos são todos [...] factos sociais totais [...] quer dizer põem emmovimento, em certos casos, a totalidade da sociedade e das instituições [...]Todos estes fenómenos são ao mesmo tempo jurídicos, económicos, religiosos,e meímo estéticos morfológicos, etc. [...] São «todos», sistemas sociais inteiros,dos quais tentámos descrever o funcionamento. Vimos sociedades no estadodinâmico ou fisiológico. Não os estudámos como se estivessem estáticos nurnf stado único ou cadavérico, e ainda menos os decompusemos ou dissecámosem regras de direito, em mitos, em Acalores e em preço. Foi considerando otodo em conjunto que pudemos aperceber o essencial, o movimento do todo,o aspecto vivo, o instante fugidio em que a sociedade toma, em que os homenstomam consciência sentimental deles próprios e da sua situação em relação aoutro" [op.citj.

Estas preocupaçÕe~s~de~Mãuss7Tó~dás~"erás""metdecisivamente o desenvolvimento do pensamento antropológico que se seguiu.Em França, designadamente comM. Griaule que trabalhou junto dos dogon eestudou as culturas do ponto de vista da interpretação dos seus própriosmembros, tentando rrostiai como os mesmos esquemas culturais podiam estai'presentes em níveis culturais diferentes; com C. Levi-C*rauss; comBalandier,antropólogo africanista, que se dedicou ao estudo das mutações africanas doapós-guerra; mas também com o austríaco R. Thurnwald, considerado umdos porta-voz do funcionalismo (de um funcionalismo matizado cm relaçãoao de Malinowski); ou ainda com o próprio Malinowski; e igualmente com osamericanos R. H. Lowie (discípulo de Boas), o qual se fez notai- no domíniodo estudo Ia organização social, M. Mead que estudou os Arapesh e osMundugamor da Nova Guiné cujo "temperamento" masculino e femininocomparou, C. Du B ois, R. Linton e A. Kardiner que trabalharam sobre o temado comportamento, determinado pela educação e pelo meio técnico eeconómico, imposto pelo grupo aos indivíduos. Estes três últimos autores estãotambém na origem da noção "personalidade de base"17 e de "patem".

Todos eles tiveram, de uma forma ou outra, Mauss como referência teórica emetodológica. E'ainda hoje., a maioria dos antropólogos, com excepção dealgumas tendências, tem como implícito nas suas investigações a teoria emetodologia de Mareei Mauss. Uma última nota para dizer que se o seucontributo para a teoria geral da antropologia foi de facto importante, em Frar já,Mauss ocupa um lugar à altura dessa importância, um lugar comparável ac deBoas nos Estados Unidos.

;:. ,:-.-.

116

Page 28: UAb - Antropologia Geral - Capitulo 5

V Para saber mais:

DURKHEIM, Émile

1987 As Regras do Método Sociológico, Lisboa: EditorialIPresença

EVÁNS-PRTTCHARD, Edward Evans

1981 "Mauss (1872-1950)" mHistory of Anthropological Throught,Londres: Faber and Faber, pp. 189-192.

LEVI-STRAUSS, Claude

1982 As Estruturas Elementares do Parentesco, Petrópolis: Vozes.

MALINOWSKI, Bronislaw

1922 Argonauts ofthe Western Pacific, Londres: Routledge and KeganPaul.

MERCIER, Paul

1986 História da Antropologia, Lisboa: Teorema.

RADCLIEFE-BROWN, Alfred Reginald

1989 Estrutura e Função nas Sociedades Primitivas, Lisboa: Edições70.

SPERBER, Dan

1968 Qu'est-ce que lê Structuralisme? 3. Lê Structuralisme enAnthropologie, Paris: Editions du Seuil/

1985 "Un esprit psichologue", Magazine Littéraire, 223:56-57

117