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Lúcia Pompeu de Freitas Campos Tudo isso junto de uma vez só: o choro, o forró e as bandas de pífanos na música de Hermeto Pascoal Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em Música da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Música. Linha de pesquisa: Estudo das Práticas Musicais Orientador: Carlos Vicente de Lima Palombini Belo Horizonte Escola de Música da UFMG 2006

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Lúcia Pompeu de Freitas Campos

Tudo isso junto de uma vez só: o choro, o forró e as bandas de pífanos na música de Hermeto Pascoal

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Música da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Música. Linha de pesquisa: Estudo das Práticas Musicais Orientador: Carlos Vicente de Lima Palombini

Belo Horizonte Escola de Música da UFMG

2006

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C198t Campos, Lúcia Pompeu de Freitas Tudo isso junto de uma vez só: o choro, o forró e as

bandas de pífanos na música de Hermeto Pascoal / Lúcia Pompeu de Freitas Campos. –2006. 143 fls. ; il. Bibliografia: f.137-141 Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Música. Orientador: Prof. Dr. Carlos Palombini

1. Música popular - Brasil 2. Música instrumental 3. Pascoal, Hermeto 4. Ritmos brasileiros

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Aos instrumentistas brasileiros, das festas de rua, das bandas às rodas de choro.

A Hermeto Pascoal e sua escola de músicos.

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Agradecimentos

Agradeço aos meus pais, Regina e Léo, pelo apoio amoroso e verdadeiro e pela leitura

cuidadosa dos textos.

Ao Marcelo pelo carinho e bom humor, pelo arranjo do Nazareth e pela ajuda na edição das

partituras.

Ao Prof. Carlos Palombini pela confiança e pela orientação.

Aos professores Carlos Sandroni, Glaura Lucas e Heloísa Feichas, da banca examinadora.

À Edilene, da secretaria da pós-graduação, à Eliana, da seção de ensino, pela atenção de

sempre.

Ao meu irmão Sérgio, à vovó Inah, à Cacau, aos meus amigos e familiares, nessa fase “tudo

junto de uma vez só”.

À memória da vó Eunice, pelo piano e lembranças da bisavó Aída.

Aos amigos do Corta Jaca, do Cataventoré, do Grupo de Percussão e da Orquestra. Em

especial, ao Rafa Martini e ao Marcelo, por terem tocado comigo o “choro em 7”; ao Felipe

José Abreu, pelas informações sobre a Itiberê Orquestra Família.

À Ana Cláudia Assis, ao Rubner de Abreu e à Rosângela de Tugny, pela indicação de

bibliografia; ao Fernando Rocha, pelo arranjo de vibrafone; ao Marcos Filho, pelo auxílio

com o computador.

Aos entrevistados – Hermeto Pascoal, Marcio Bahia, Seu João do Pife, Nenê, Pernambuco

do Pandeiro, Mauro Rodrigues – pela disponibilidade e atenção.

A todos, pelas conversas inspiradoras de idéias.

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Resumo

Seguindo a trajetória musical de Hermeto Pascoal, os trios de forró, os regionais de choro e

as bandas de pífanos foram aqui relacionados de modo a entendê-los como formações

instrumentais tradicionais no Brasil, pelas quais passaram gêneros musicais diversos. Nesse

percurso, descobrimos a orquestra de Guerra Peixe, em Recife, e o regional de Pernambuco

do Pandeiro, no Rio de Janeiro, como escolas de Hermeto nos arranjos, no choro e no forró.

O “paradigma do tresillo” foi referência para, num primeiro momento, apreender a rítmica

tradicional do choro e do forró e, num segundo momento, incorporá-los à multiplicação e

sobreposição de pulsações proposta pela rítmica de Hermeto, que se baseia em jogos e

brincadeiras realizadas tanto em composições como em improvisos. As brincadeiras com

sons de animais relacionam-se às dramatizações musicais das bandas de pífano. Ao moldar

tantas experiências segundo uma intenção musical própria, a música desenvolvida por

Hermeto permite questionar categorias musicais estabelecidas – música popular, folclórica,

erudita – tanto por apresentar elementos de todas essas categorias como também por não se

ater a nenhuma delas. O que Hermeto propõe é uma experiência musical integradora a

partir de uma escuta ampla e irrestrita que realiza a mistura dentro do “tacho de sons”.

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Abstract

Following Hermeto Pascoal’s musical path, the “forró” trios, the “choro” regional groups

and the “pífano” bands were here related so as to understand them as traditional

instrumental formations in Brazil, through which passed diversified musical genres. In this

way, we found Guerra Peixe’s orchestra, in Recife, and Pernambuco do Pandeiro’s regional

group, in Rio de Janeiro, as Hermeto’s schools for the arrangements in “choro” and in

“forró”. The “tresillo paradigm” was, in the first moment, the reference for capturing the

traditional rhythmics of these genres and, in a second moment, for incorporating them to

the multiplication and superposition of pulses proposed by Hermeto’s rythmics, based on

games and plays present both in his compositions and improvisations. The plays made with

animal sounds are related to the musical dramatizations of the “pífano” bands. Shaping so

many experiences under a peculiar musical design, the music developed by Hermeto puts

into question established musical categories – popular, traditional, art music – for

presenting features belonging to all these categories and for not relying on any of them.

Hermeto’s proposal is an integrative musical experience drawing on a wide and unrestricted

listening that makes a blend within the “sound mixing pot”.

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Sumário

Introdução........................................................................................................4

1. Conceitos: se não tê-los, como sabê-los?.............................................7 1.1. Música instrumental?........................................................................7

1.2. Música popular?................................................................................9

1ª parte > O OVO.....................................................................................12

2. Festas e brincadeiras..............................................................................13 2.1. Bailes Populares..............................................................................15

2.2. Segura a porca!................................................................................17

2.3. Um pouco de rítmica.......................................................................20

3. Forró Brasil...............................................................................................25 3.1. Luiz Gonzaga: do choro ao baião...................................................25

3.2. Forró não é só aquilo......................................................................28

3.3. O zabumba do forró........................................................................29

4. Anarriê.......................................................................................................39 4.1. O baile que era choro que hoje é forró... ........................................39

4.2. “As nossas festas”: origens do choro carioca..................................42

5. Da roda aos regionais.............................................................................46 5.1. O choro faz escola...........................................................................46

5.2. Inventando a roda............................................................................47

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5.3. Oficina de composição....................................................................49

5.4. Família choro: gêneros....................................................................52

5.5. Regionais.........................................................................................61

6. Zabumbas ou Bandas de Pífanos..........................................................65 6.1. Guerra-Peixe: o “rei da pesquisa”...................................................65

6.2. Repertório de brincadeiras..............................................................67

2ª parte > TACHO...................................................................................74

7. Escuta Hermeto........................................................................................75

7.1. Da paisagem sonora à linguagem harmônica..................................75

7.2. Viva o som sempre..........................................................................79

7.3. Teoria musical feita em casa...........................................................85

8. Hermeto do choro ao forró....................................................................89 8.1. Pernambuco do Pandeiro................................................................89

8.2. Batucando no morro ou no arraial?.................................................91

9. Choros e arranjos de Hermeto..............................................................98 9.1. Salve Copinha, Abel, Pixinguinha..................................................98

9.2. Um chorinho em sete....................................................................101

10. Rítmica brasileira via Hermeto Pascoal.........................................107 10.1. Bateria brasileira?.......................................................................107

10.2. Coalhada de ritmos......................................................................110

10.3. Aqui não é baile..........................................................................112

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10.4. Siga o chefe.................................................................................114

10.5. Mestre Radamés..........................................................................116

11. Escola Jabour.......................................................................................127 11.1. Só não toca quem não quer?.......................................................127

11.2. 21 de junho de 1997....................................................................130

Conclusões...................................................................................................133

Referências..................................................................................................137

Repertório do CD (anexo 1)...................................................................142

Créditos do DVD (anexo 2).....................................................................143

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Introdução

Meu primeiro intuito com este trabalho foi me aproximar da música de Hermeto

Pascoal, estabelecer relações para participar de sua criatividade, afinar minha percepção

para distinguir suas cores e ritmos. No entanto, é preciso palavras, palavras carregadas de

história. Aliado à percepção da música, foi necessário o entendimento da história.

De onde surgiu essa idéia?

Durante os anos 1990, assisti a muitos shows de Hermeto Pascoal e seu grupo pelas

redondezas de Belo Horizonte: Sabará, Conceição do Mato Dentro, Diamantina, Ouro

Preto... até Friburgo, Niterói e Rio de Janeiro. Além de ter ficado fascinada pela música de

Hermeto, ela me abriu novo leque de interesses pelos ritmos e gêneros da música brasileira,

que a partir de então fui buscando conhecer.

Hermeto abriu minha escuta para uma cultura aparentemente desconhecida pela

história da música que estudamos e apenas decorativa nos meios de comunicação. Foi sua

música que me fez querer conhecer a música das bandas de pífanos, os maracatus, os

choros, enfim, a música presente na cultura popular brasileira, primeiramente a nordestina.

E, quanto mais conhecia esses universos, mais gostava de seus arranjos de flautas, suas

brincadeiras com sons de animais, suas misturas de ritmos.

Atualmente, não por coincidência, participo de um grupo musical diretamente

ligado ao tema desta pesquisa: o Corta Jaca, dedicado ao choro e outros gêneros afins como

schottisch, samba-choro, valsa, maxixe e polca. Participei também, durante quatro anos, da

Banda de Pífanos Cataventoré, onde estudamos alguns gêneros próprios das bandas de

pífanos do nordeste brasileiro, como o caboré, a pipoca, a briga do cachorro com a onça,

dentre outros.

Essa minha experiência pessoal e tantas investigações a serem feitas e registradas

me estimularam a propor este projeto. A investigação da trajetória de Hermeto Pascoal,

desde sua infância em Alagoas até sua atuação profissional nos regionais de Recife e Rio de

Janeiro, evidencia o contato do músico com inúmeros ritmos e gêneros da música popular

brasileira, que ele não só incorporou como também foi transformando ao longo de sua

carreira.

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O foco desta pesquisa incide particularmente sobre três formações instrumentais –

os regionais de choro, as bandas de pífano e os trios de forró – cuja importância para a

formação musical de Hermeto pretendo demonstrar, investigando as relações do músico

com essas tradições musicais e a forma como ele as incorporou em sua obra.

Situando este trabalho em um contexto científico, deparei-me com a necessidade de

interpretar situações, discursos e peças musicais e, como faço agora, escrever sobre eles.

Nesta tarefa, a abordagem semiótica proposta por Clifford Geertz no livro A interpretação

das culturas (Geertz 1989) norteou toda a pesquisa.

Geertz entende cultura como uma construção intersubjetiva constante e dinâmica ou

um conjunto de significados permanentemente construídos e reconstruídos. Seu método,

descrição densa, busca descrever o processo de construção de uma cultura a partir de vários

fios, ou seja, aspectos diversos que se entrelaçam até a construção de um significado. Se o

que proponho é um mergulho na música de Hermeto Pascoal no que concerne a sua relação

com algumas tradições musicais brasileiras, estou falando de cultura ou, como entende

Geertz, estou fazendo cultura. Sobre esse processo, ele diz:

A análise cultural é intrinsecamente incompleta e, o que é pior, quanto mais profunda

menos completa. É uma ciência estranha cujas afirmativas mais marcantes são as que têm a

base mais trêmula, na qual chegar a qualquer lugar com um assunto enfocado é intensificar

a suspeita, a sua própria e a dos outros, de que você não o está encarando de maneira

correta. (Geertz 1989: 39)

Trata-se, portanto, de um processo dialético, uma tentativa constante de interpretar,

contando uma história que pode sempre ser contestada. Meu objetivo aqui, concordando

com Geertz, é menos uma “perfeição de consenso” do que um “refinamento do debate” em

torno da cultura brasileira, mais especificamente, da música brasileira. Essa abordagem

interpretativa me interessa porque enfatiza o caráter vulnerável da análise e da história

contada, que depende de uma boa argumentação e imaginação. O desafio do pesquisador é

justamente esse: refletir sobre seu contexto de observação e assumir sua posição, de tal

forma que sua parcialidade torne-se não um defeito, mas um elemento criativo a mais,

contribuindo para a relevância do estudo.

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Optei também pela observação-participante na medida em que há uma imersão no

universo do choro, das bandas de pífano e da música de Hermeto. Desde 2000, mantive um

contato crescente, sob forma de aulas, oficinas e entrevistas, com os músicos que tocam e

tocaram com Hermeto Pascoal. Em 2005, tive a oportunidade de conversar com o próprio

Hermeto. Em 2006, fiz uma entrevista com Pernambuco do Pandeiro, diretor do regional

que Hermeto participou nos anos 1950, no Rio de Janeiro. Participo atualmente, como

percussionista, de um grupo de choro, rodas de choro, uma orquestra dedicada à música

instrumental brasileira. Além disso, nesse meio tempo, fiz pesquisas junto a duas bandas de

pífano, um grupo de maracatu e participei dos festivais de choro realizados pela Escola

Portátil de Música, no Rio de Janeiro, sob coordenação de Maurício Carrilho e Luciana

Rabello. Nesses festivais, tomei parte nas oficinas de percussão, pandeiro, composição e

história do choro e dos demais gêneros que compõem este universo, um aprendizado

intenso ao qual farei referências ao longo do texto.

Optei por utilizar o primeiro nome no tratamento da maioria das pessoas envolvidas

na pesquisa, o que se justifica pela necessidade de imersão nas observações e entrevistas,

nas quais a formalidade seria excessiva. Muitos dos músicos aos quais farei referência se

apresentam e assinam seus trabalhos com o nome artístico, que também será aqui

priorizado. O tom informal do texto deve-se muitas vezes à permeabilidade dessas

influências. Durante todo o estudo, tive o objetivo de: “Tentar manter a análise das formas

simbólicas tão estreitamente ligadas quanto possível aos acontecimentos sociais e ocasiões

concretas” (Geertz 1989: 40).

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1. Conceitos: se não tê-los, como sabê-los?

Música brasileira, música popular, música erudita, música culta, música de

concerto, música folclórica, música tradicional, música instrumental, música concreta,

música experimental, música universal: música?

A música existe enquanto som em determinado contexto para uma escuta

determinada; existir enquanto “música popular” ou qualquer outra categoria, é outra

história, é outra invenção. Assim como estou aqui inventando o “personagem” Hermeto

Pascoal nesse contexto acadêmico e reinventando tantos outros conceitos relacionados:

choro, forró, etc. Quando vou procurar um CD de Hermeto Pascoal (que raramente consigo

achar) numa loja, normalmente procuro numa categoria chamada “instrumental brasileiro”.

No entanto, essa categoria não existe na Enciclopédia da música brasileira: popular,

erudita e folclórica (2003). Parece que “música instrumental” existe enquanto categoria

comercial (nem tão comercial assim), mas não como categoria intelectual.

1.1. Música instrumental?

De fato, muito pouco foi escrito sobre esse “instrumental brasileiro” ou “música

instrumental brasileira”, definições em si bastante problemáticas. Toda música requer

instrumentos, convencionais ou não, podendo-se entender a voz e o corpo também como

instrumentos. Em geral, entende-se por instrumental a música cuja elaboração independe de

um texto verbal escrito, um poema ou letra de música; brasileira porque foi feita por um

artista brasileiro. Mas não é tão simples assim.

Outro pesquisador que recentemente debruçou-se sobre a criação musical de

Hermeto, Luiz da Costa Lima Neto, cujo estudo em muito ajudou minha pesquisa, admite:

“Questionando ao mesmo tempo os rótulos da indústria cultural e os limites do universo

erudito e popular, Hermeto desafia aqueles que querem estudá-lo” (Lima Neto 1999: 23).

Fui encontrar uma explicação mais detalhada do que seria esse “instrumental

brasileiro” no trabalho de um pesquisador americano: Andrew Connell, que também se

aventurou a entender a obra de Hermeto Pascoal.

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No início dos anos 70 várias transformações resultaram no aparecimento de um novo tipo

de música instrumental no Brasil, que não derivava apenas do choro e da bossa-nova, mas

também de uma ampla gama de gêneros brasileiros e sons internacionais. Aliada aos

desenvolvimentos cosmopolitas da MPB (música popular brasileira), a mídia da música

instrumental e sua presença cultural foram sendo construídas ao longo da década,

estimuladas por eventos como o ressurgimento do choro, a renovada popularidade da

gafieira, o Movimento Black Rio, festivais tanto de choro quanto de jazz, além do crescente

apoio do estado e de instituições. (Connell 2002: 95, tradução da autora)

Segundo Connell, de 1969 a 1975 (época do apogeu dos festivais da canção), a

música instrumental teria sido banida do campo da música popular brasileira. Ressurgiu,

em seguida, a partir de iniciativas diversas: matérias de jornalistas como Ana Maria

Bahiana, Tárik de Souza, Sergio Cabral, Paulo Venâncio Filho, produtores culturais como

Hermínio Bello de Carvalho, além de ajuda estatal e, é claro, da atuação dos próprios

músicos, dentre os quais ele destaca Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti e Paulo Moura.

O choro também fez parte desse movimento dedicado à música instrumental, mas

nessa época ficou restrito ao público nacional. Sobre o choro, entrarei em detalhes no

capítulo 5.

Já a “música instrumental” começou a chamar a atenção no exterior, especialmente

por causa de Hermeto Pascoal e Egberto Gismonti, que fizeram várias turnês internacionais

na década de 70, levando Connell a afirmar: “Desde a bossa nova, a música brasileira não

tinha tido tanta influência no exterior” (Connell 2002: 99, tradução da autora).

Essa nova geração de instrumentistas chamava a música que faziam de “música

instrumental brasileira contemporânea”. Hermeto prefere chamar sua música de “música

universal” ou “música livre”. São definições que buscam outro espaço, talvez uma

alternativa à dicotomia erudito/popular, que sempre esteve presente na categorização da

música no Brasil, conforme explica Elizabeth Travassos:

Duas linhas de força tensionam o entendimento da música no Brasil e projetam-se nos

livros que contam sua história: a alternância entre reprodução dos modelos europeus e

descoberta de um caminho próprio, de um lado, e a dicotomia entre erudito e popular, de

outro. Como uma espécie de corrente subterrânea que alimenta a consciência dos artistas,

críticos e ouvintes, as linhas de força vêm à tona, regularmente, pelo menos desde o século

XIX. [...] Mais recentemente emergem em torno de artistas como Egberto Gismonti e

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Hermeto Pascoal, que problematizam a separação entre erudito e popular. (Travassos 2000:

7, 8)

Ao realizar uma música que interessa a públicos tão diversos, criando novas escutas,

e ao mesmo tempo calcada em fontes nitidamente populares, ambos tornam-se músicos de

difícil definição. Um exemplo desse novo espaço de interação é o fato de músicas de

Hermeto Pascoal e Egberto Gismonti constarem nos programas de concertos do Duo Assad

de violões, conhecido no circuito internacional da chamada música de concerto.

No que diz respeito ao debate acadêmico e terminológico em geral, a música

instrumental popular ou música instrumental brasileira contemporânea, na qual procuro

destacar a música de Hermeto Pascoal, não se encaixa em meio às dicotomias conceituais e

entre os campos que geralmente se dedicam ao estudo da música no Brasil: a musicologia, a

etnomusicologia, os estudos sociais e literários, dentre outros. A meu ver, desde os anos

1970, ela significou justamente uma proposta concreta, ou melhor, sonora, para a diluição

das fronteiras terminológicas.

Há, no entanto, outra fronteira que tende a desaparecer na música de Hermeto

Pascoal, conforme veremos nos capítulos que se seguem: a distinção entre música

folclórica e música popular. Mas antes precisamos entender melhor tais definições.

1.2. Música popular?

Carlos Sandroni, no artigo “Adeus à MPB” (2004), evidencia o vínculo entre o

popular da definição “música popular brasileira” e determinada concepção de povo

brasileiro. A partir desse esclarecimento inicial, ele demonstra como o conceito de “música

popular brasileira” foi se transformando ao longo do tempo, junto com a transformação da

concepção de “povo brasileiro”.

Primeiramente, ele coloca a necessidade de definir o que seja “povo” para se saber o

que vem a ser “popular”. Alguns dilemas emergem dessa questão: a diferença entre música

folclórica e música popular, a mudança de sentido desses termos ao longo do tempo, a

separação entre música rural e música urbana.

Segundo Sandroni, até os anos 1940, usava-se “música popular” referindo-se ao

mundo rural, mas a crescente importância das músicas urbanas, associada à produção

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intelectual de personagens como Alexandre Gonçalves Pinto e Vagalume,1 levou à divisão

entre “folclore” e “popular”, que seria proposta por Oneyda Alvarenga. A partir de então,

consagrou-se a diferença que prevaleceu durante a segunda metade do século XX: a música

popular sendo entendida como a música do rádio e do disco, urbana, autoral e mediada; e a

música folclórica como a música rural, anônima e não-mediada. Segundo a concepção de

Alvarenga, a última seria a mais autêntica e mantenedora do caráter nacional, enquanto a

primeira estaria contaminada pelo comércio e pelo cosmopolitismo (Sandroni 2004: 27,28).

Continuando a cronologia proposta por Sandroni, durante os anos 1960, a música

popular brasileira passa a delimitar um campo que excluía músicas não-nacionais,

cumprindo certo papel de “defesa nacional”, antes atribuído ao folclore. Transforma-se

então na sigla MPB, num momento em que a idéia de “povo brasileiro” foi muito debatida.

Em 1968, o tropicalismo questionou a orientação estético-política da MPB, com a qual o

público se identificava. Já nos anos 1970, gostar de Chico Buarque, Tom Jobim e João

Gilberto significava eleger certo universo de valores e referências. A partir de 1980, a sigla

passou a ser adotada de modo mais amplo, integrando até mesmo o rock nacional (Sandroni

2004: 29, 30).

Como bem observou Sandroni, dos anos 1960 até os anos 1980, MPB foi se

tornando uma categoria analítica, uma opção ideológica e um perfil de consumo, ou seja,

uma sigla com caráter aglutinante que identificava um gosto musical coerente. O que já não

acontece desde os anos 1990. Assiste-se atualmente a dois movimentos: a fragmentação das

músicas populares e a relativização da dicotomia entre a “música popular” e a “música

folclórica” (Sandroni 2004: 31, 32).

Ora, se tomamos o ponto de vista da música instrumental, posso dizer que pelo

menos desde os anos 1970 ela já contribuiu para a fragmentação da idéia de MPB. Falando

particularmente da música de Hermeto Pascoal, ele não só não se encaixa nessa categoria,

como também problematiza a diferença entre música popular e folclórica.

1 Alexandre Gonçalves Pinto foi um chorão da “velha guarda” que em 1936 publicou o livro Choro:

reminiscências dos chorões antigos (Gonçalves Pinto 1936), no qual retrata inúmeros músicos que atuaram no

Rio de Janeiro desde 1870, muitos deles conhecidos graças aos relatos de Alexandre. Francisco Guimarães

Vagalume também foi um personagem atuante na música, como cantor e homem do rádio, que registrou no

livro A roda de samba (Vagalume 1978) suas percepções do meio musical na época em que viveu.

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A primeira música gravada por Hermeto que fez sucesso internacional, “O Gaio da

Roseira” é uma composição de Divina Eulália de Oliveira e Pascoal José da Costa, os pais

de Hermeto, que a cantavam quando trabalhavam na roça. Hermeto não só gravou a

música, como colocou os próprios Divina Eulália e Seu Pascoal como autores. Se Luiz

Gonzaga também gravou adaptações de músicas que tocava com seu pai, como “Asa

Branca”, nunca efetivamente colocou o nome de Januário como compositor.

Creio que essa atitude de Hermeto frente às origens de sua música revela muito de

sua concepção integradora, que vai de encontro à tese de Sandroni:

a distinção entre música popular e música folclórica no Brasil esteve também ligada à idéia

de que a primeira estava viva e a segunda morta. A integração de aspectos de manifestações

folclóricas ao mercado musical moderno é apenas uma das maneiras pelas quais tal

concepção vem sendo posta em xeque nos últimos anos. (Sandroni 2004: 34)

Diante de uma concepção contemporânea do que seja a música presente na cultura

popular, encontrando-a tanto na música de Hermeto como na música de Seu João do Pife,

de Sebastião Biano, nos choros de Pixinguinha e de Maurício Carrilho, dentre outros,

procurarei contextualizar cada uma das manifestações musicais, comparando-as e

relacionando-as. Para isso, esta dissertação foi dividida em duas partes. Na primeira parte,

“O ovo”,2 busco conhecer o caminho percorrido por Hermeto, em suas andanças do forró

ao choro, tangenciando as bandas de pífano. Nesse percurso, ritmos e gêneros musicais

perpassam bailes e festas que recontam caminhos da história da música no Brasil. Na

segunda parte, “Tacho”,3 a música de Hermeto é focalizada e analisada, relacionando sua

concepção sonora e sua escuta às misturas e transformações rítmicas que ele realiza nas

tradições do choro, do forró e das bandas de pífano.

2 “O ovo” foi uma das primeiras composições de Hermeto gravadas, é um choro “bem nordestino” ou um

“forró chorado”, o que sintetiza bem a idéia da primeira parte do estudo, de relacionar a história do forró e do

choro, além de remeter às origens da música de Hermeto. 3 “Tacho” também é o título de uma composição de Hermeto (gravada no CD Missa dos escravos), que

remete à mistura de sons, idéia que será desenvolvida na segunda parte.

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1ª parte > O OVO

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2. Festas e brincadeiras

Não existe na música brasileira essa coisa que Olavo Bilac qualificou como resultado de

“três raças tristes”, pois até a reza-de-defunto (canto de velório, excelências e benditos) na

interpretação do povo é alegre pela sua interpretação expansiva, natural, desinibida.

(Guerra-Peixe e Raposo 1984: 6)

A alegria de que fala Guerra-Peixe está presente na música de Hermeto Pascoal. O

baterista Nenê, que trabalhou durante dez anos com Hermeto, é quem diz: “É uma música

impregnada de festas populares” (Nenê 2005). Ele cita o exemplo de uma faixa do disco

Brazilian Adventure, a música “Velório”, onde o compositor procura reproduzir os sons das

festas que ocorriam por ocasião dos velórios em sua terra natal. Para isso utilizou matracas

e sussurros, conforme as brincadeiras de sua infância.

Com quase 70 anos de idade, lembranças não faltam a Hermeto, talvez por isso

mesmo ele defenda uma atitude e uma música totalmente voltadas para o presente: “nunca

me lembro do passado, ele já existe na gente. É uma energia que já vem com a gente, quem

procura se lembrar do passado está perdendo o presente praticamente todo” (Pascoal 2005).

Assim é sua música, presente, atual, impregnada de festas e de vida, da sua vida e,

por isso mesmo, de seu passado que se faz presente. Sua recusa do passado não é uma

recusa da tradição, mas uma defesa contra os tradicionalistas. Afinal, sua criatividade

extrapolou as formações musicais pelas quais passou e, ao lado do aprendizado e da

admiração pela cultura popular, há sempre uma recusa da estagnação.

Mas Hermeto viveu sim várias formações musicais, tradicionais ou não. Este é um

passado evidente em sua música, que se torna presente na criação. São vários fios de

cultura que vão se entrelaçando em sua obra, revelando uma música brasileira e, como ele

quer, universal. Contar essa história é uma tentativa constante de equilibrar as vertentes de

arte e tradição.

Começarei pela arte que já é tradição: as festas populares, os bailes chamados de

choros ou forrós, os gêneros, ritmos e formações musicais aí envolvidos. Tradição como

uma manifestação que já é recorrente, envolvendo características que se repetem ao longo

do tempo, que a tornam reconhecida pela comunidade onde se realiza e passível de ser

generalizada como manifestação nacional.

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Dentre as formações instrumentais tipicamente brasileiras, podemos considerar três

especialmente caras à música instrumental: os trios de forró (sanfona, zabumba e triângulo),

as bandas de pífanos (dois pífanos, tarol, prato e zabumba) e os conjuntos regionais (violão,

cavaquinho, pandeiro, flauta, dentre outros instrumentos solistas). A experiência musical de

Hermeto Pascoal é particularmente rica em música brasileira por ele ter vivido, já em sua

infância e adolescência, essas três formações instrumentais.

Nascido em Alagoas em 1936, Hermeto apresenta, em sua trajetória, inúmeras

referências que, como ele diz, vão do forró ao choro.

Minha formação: desde criança, eu tocava o oito-baixos, que era o instrumento que eu

tocava em bailes, lá no nordeste é pé-de-bode. Eu mesmo fazia os meus pifes, no mato, de

cano de mamona, eu já fazia pra tocar, já tinha aquilo na cabeça, mas não saía do lado dos

zabumbeiros, e os zabumbeiros lá em Lagoa da Canoa, em Alagoas, era normal tocar na

porta das igrejas, na feira, em procissão, em bailes também. Então essa era minha infância,

até os 14 anos de idade. Quando eu saí com 14 anos de Alagoas para Recife, aí eu tive

conhecimento do que se chama chorinho. Eu saí direto do forró, das coisas que eu estava

acostumado a tocar, peguei a sanfona e fui tocar chorinho no regional, na Rádio Jornal do

Comércio, em Recife. Com 15, 16 anos, já estava tocando em regional. Quando eu cheguei

no sul, eu fui juntando a música. A gente nunca fica fixo num estilo só, é uma mistura.

(Pascoal 2005)

Hermeto faz uma cronologia dos primeiros instrumentos tocados por ele – a sanfona

de oito-baixos e os pifes (ou pífanos, como veremos no capítulo 6) – acrescentando a

presença constante dos zabumbeiros em suas formações musicais. Dessas combinações

surgem justamente as bandas de forró e de pífanos que, como ele mesmo diz, tocavam “na

porta das igrejas, na feira, em procissão, em bailes...”, sendo responsáveis pelas mais

diversas festividades de cidades do interior como Lagoa da Canoa. A sanfona foi o

instrumento que possibilitou a ele migrar do forró aos regionais, onde passou a tocar choro.

Para participar dessa história contada por Hermeto, precisamos investigar o universo

de cada uma dessas formações musicais. Inspirada pela música de Hermeto, eminentemente

atual, minha abordagem tende a ser calcada no presente, seja em minhas observações e

pesquisas, seja em entrevistas e numa leitura da bibliografia à luz da experiência musical.

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2.1. Bailes Populares

Ao pesquisar as origens do forró e do choro, passando pela tradição das bandas de

pífano, fui percebendo como a história desses conceitos se entrelaça constantemente, a

começar pelo significado original de ambos como bailes populares, sem esquecer os

inúmeros gêneros musicais que aí se relacionam.

Tinhorão nos lembra que, em suas origens, o termo forró, “baile ou festa de gente

humilde, sempre foi palavra pouco nobre, mesmo no nordeste, equivalendo ao carioca

forrobodó” (Tinhorão 1976: 188). Por sua vez o termo carioca forrobodó, do qual forró

seria uma abreviatura, equivaleria a forrobodança, que é comparado ao “Chorão” do Rio de

Janeiro (um baile, obviamente, animado pelos choros), em citação do verbete forró da

Enciclopédia da música brasileira (2003). A compositora Chiquinha Gonzaga, uma das

pioneiras na composição de choros, escreveu a música para uma peça de teatro de revista

cujo título era justamente esse: Forrobodó.

Os bailes populares também eram conhecidos como assustados, chamados ainda de

arrasta-pés, como observa Wisnik ao falar sobre o martírio do compositor Pestana (célebre

personagem de Machado de Assis): “a polca, que persegue o compositor como a maldição

que o condena à vida rasteira dos bailes e assustados – os tradicionais arrasta-pés” (Wisnik

2004: 19). Atualmente, qualquer um que freqüenta um forró sabe que arrasta-pé é um dos

ritmos aí tocados, como veremos mais adiante.

Voltando à denominação dos bailes, Alexandre Gonçalves Pinto e Vagalume são

testemunhas imprescindíveis. O primeiro chama os bailes onde tocavam os antigos chorões

de choros ou pagodes. O segundo, ao falar das batucadas (encontros de samba), diz:

Mas não era só na Penha que os encontros se davam. Era também onde houvesse um

“Choro”, um “arrastado”, um “vira-vira-mexe”, uma festa qualquer e principalmente na

velha Cidade Nova, onde quase sempre se realizava o baile na sala de visitas e um

sambinha mole no quintal. (Vagalume 1978: 36)

Oneyda Alvarenga é quem explica a generalidade dos termos, ao falar que o “Samba

viu o seu sentido ainda mais alargado que o de Batuque, estendendo-se a nome de qualquer

baile popular, equivalente a ‘função’, ‘pagode’, ‘forró’ e outros mais” (Alvarenga s.d: 133).

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Carlos Sandroni distingue entre samba e choro no começo do século XX, sendo o

primeiro uma dança de par separado e o segundo de par enlaçado. Essa relação permeia

também a distinção entre baile e samba, que aparece num depoimento de Pixinguinha: “Em

casa de preto, a festa era na base do choro e do samba. Numa festa de pretos havia o baile

mais civilizado na sala de visitas, o samba na sala do fundo e a batucada no terreiro” (apud

Sandroni 2001: 102, 103). Logo, baile, além de ser um sinônimo para forró, é também para

choro, um “baile mais civilizado”, no dizer do próprio Pixinguinha, no qual as danças eram

de par enlaçado (Sandroni 2001).

Dominique Dreyfus, biógrafa de Luiz Gonzaga, defende:

A palavra “forró”, segundo a época em que é empregada, não tem exatamente o mesmo

significado. Da mesma forma que a palavra “samba”, a palavra “forró” foi evoluindo no

decorrer do século. Até os anos 50, forró significa baile; depois passa a designar o conjunto

da música do nordeste. Hoje em dia, forró é um gênero musical. Nordestino, claro.

(Dreyfus 1997: 198)

Então, para começo de conversa, estamos falando aqui de bailes populares

brasileiros, choros e forrós, bailes onde passaram vários gêneros que hoje conhecemos

pelas generalizações de choro ou forró, e nisso ambos se assemelham, mas estamos falando

também de formações instrumentais distintas. Em geral, nos estudos sobre a música

brasileira, defende-se uma suposta linearidade dos conceitos e dos gêneros musicais, como

se um fosse evoluindo e suplantando o outro. Esta linearidade não se sustenta. Seria mais

interessante assumir a coexistência de sentidos diferentes numa mesma palavra, de aspectos

musicais diversos sob uma mesma denominação ou ainda de conceitos aparentemente

distintos que acabam por revelar semelhanças.

Por exemplo, agora, em 2006, no Brasil, coexistem rodas de choro em Belo

Horizonte, casas de forró, uma escola de choro no Rio de Janeiro e bandas de pífano no

interior de Pernambuco. Ao mesmo tempo em que estão sendo tocados schottischs (um dos

gêneros da família do choro), antigos ou recém-compostos, nas rodas e na escola de choro,

também estão sendo tocados xotes nos forrós e pelas bandas de pífano. A palavra xote é um

abrasileiramento da palavra schottisch (logo veremos o que acontece com o ritmo). Mas

uma coisa é certa, para o xote existir, o schottisch não desapareceu, e, mesmo que tivesse

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desaparecido enquanto manifestação musical espontânea, poderia ser redescoberto a

qualquer momento, a partir dos registros existentes. Outro exemplo: a polca, que é

tradicionalmente associada às origens do choro, continua sendo tocada em rodas de choro e,

é claro, na escola de choro, além disso, ela não só é citada entre os gêneros das bandas de

pífano, como também do forró...

2.2. Segura a porca!

O sanfoneiro era, portanto, um personagem importante da vida no Sertão. Para Januário,

que era um excelente tocador, não faltava trabalho. Da quinta-feira ao domingo, ele não

parava. Saía de casa no final da tarde, com o fole a tiracolo e só voltava para casa de

madrugada. Se a festa não era longe demais, a família o acompanhava. Santana ficava

sentada, olhando tudo. A meninada não perdia uma dança: mazurcas, valsinhas, emboladas,

polcas interpretadas com maestria pelo pai. “Segura a porca!”, gritavam os matutos do

salão, encorajando o sanfoneiro... (Dreyfus 1997: 38)

É forró, é choro? Por enquanto é a polca, gênero ou pelo menos o nome de um

gênero que atravessou a virada do século XX, passando pelos conjuntos de choros, bandas

de pífanos, regionais das rádios e trios de forró (não necessariamente nessa ordem).

A polca, ao chegar perto do lundu, vira a música que vai provocar o aparecimento

do maxixe como dança de salão; ao aproximar-se da marcha, vira frevo; mas se é tocada

pelos regionais, vira choro. Alexandre Gonçalves Pinto defende-a com veemência:

A polka é como o samba, uma tradição brasileira. [...] A polka cadenciada e chorosa ao som

de uma flauta... [...] A polka, com toda a sua belleza, com todos os requisitos de elegância e

com todas as tentações que a sua execução provoca, jamais poderá desapparecer dos nossos

salões e das nossas salinhas, como um preito de homenagem aos nossos bisavós e como

respeito às nossas tradições. (Gonçalves Pinto 1936: 115, 116)

O chorão Alexandre está falando dos “salões” e “salinhas” do Rio de Janeiro na

virada do século XIX para o século XX que, como veremos, não estão tão longe dos bailes

que aconteciam no Nordeste, no que diz respeito não só aos gêneros musicais tocados,

como também à existência dos choros como formações musicais.

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Pelo menos desde os Turunas da Mauricéa4 nota-se que os conjuntos de violão,

cavaquinho e flauta, os choros, eram comuns também no Nordeste, no caso, em Recife,

mesmo que a história do choro teime em consagrá-lo ao Rio de Janeiro, lembrando que na

época, além de “cidade maravilhosa”, o Rio era também a capital do país. Mário de

Andrade já indagava...

Pode-se dizer que o populario musical brasileiro é desconhecido até de nós mesmos.

Vivemos afirmando que é riquíssimo e bonito. Está certo. Só que me parece mais rico e

bonito do que a gente imagina. E sobretudo mais complexo. Nós conhecemos algumas

zonas. Sobretudo a carioca por causa do maxixe impresso e por causa da predominância

expansiva da Côrte sobre os Estados. (Andrade 1928: 6)

A visão exposta por Mário de Andrade mantém sua atualidade e justifica um

parêntese sobre a questão. Suzel Ana Reily faz uma análise da historiografia da música

brasileira, criticando o discurso nacionalista que se pauta por uma sucessão cronológica de

estilos musicais.5

Reily discute a questão do nacional na historiografia da música brasileira. Segundo

ela, na música popular, o nacional é delimitado a partir do gosto da classe média. Na época

da modinha, o nacional era definido pelos gêneros mais tocados no Rio de Janeiro. Todos

os outros estilos que se desenvolviam em outros estados eram taxados de regionais,

4 Conjunto vocal e instrumental fundado em 1926 no Recife composto por Luperce Miranda e Augusto

Calheiros, dentre outros. “O Luperce era tio da minha esposa Ilza. Ele foi um dos maiores bandolinistas do

mundo” (Hermeto 2006). Em entrevista, Márcio Bahia me informou que Hermeto compôs uma bela valsa em

homenagem a Luperce, que nunca foi gravada. 5 Segundo Reily (2000), a história da música brasileira, tal qual é tipicamente contada, começa com um

período de formação, situado na era colonial e caracterizado por uma infinidade de formas híbridas e difusas.

No século XVII, surgem a modinha e o lundu, primeiros gêneros estáveis. Em seguida a modinha torna-se o

gênero mais abrangente, incorporando o lundu, e interessa aos universos erudito e popular. O choro é citado

em seguida, surgindo por volta de 1870, primeiramente como um modo local de tocar as danças européias

então em voga, principalmente a polca. No século XX, em geral as histórias da música popular e erudita se

separam. A primeira se volta para o samba, enquanto a segunda se envolve com o movimento modernista. As

histórias da música constroem narrativas canônicas, paralelamente, que definem os momentos mais

significativos para o desenvolvimento do repertório nacional (Reily 2000).

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inclusive o baião, que ficou nacionalmente conhecido em 1940. Essa história linear sugere

uma narrativa mítica sobre o centro, enquanto a margem permanece invisível (Reily 2000).

No entanto, se aqueles gêneros que contam a “descoberta musical do Brasil” vieram

da Europa, não aportaram somente no Rio. No nordeste, a presença dos gêneros que vão

constituir a família do choro evidencia-se, por exemplo, no repertório das bandas de

pífanos, que são verdadeiros relicários de gêneros antigos como polcas, choros, maxixes e

até tangos brasileiros, como veremos no capítulo 6.

Esses gêneros aparecem também nessa passagem sobre o início da carreira de Luiz

Gonzaga, que consta na biografia de Dreyfus. Ao ser desafiado a tocar “uma coisinha lá do

Nordeste”, Gonzaga...

pegou a sanfona e começou a pensar nas músicas que tocava com o pai. Polcas, mazurcas,

quadrilhas, valsas, chorinhos, coisas que existiam por todo o Brasil, mas que no Sertão,

eram tocadas com “sotaque” local. Gonzaga foi procurando, dedilhando os baixos e as

teclas, revolvendo o passado, reconstituindo a memória musical. (Dreyfus 1997: 82)

Dessa procura teria saído seu primeiro sucesso “Pé de serra”, definida por Dreyfus

como “uma polca charmosa e alegre”.

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2.3. Um pouco de rítmica Festas e brincadeiras, feiras e procissões, bailes chamados forrós e choros... A

rítmica que permeia a música popular brasileira é a rítmica da cultura popular. É a rítmica

dos passos de dança, da marcha das procissões, dos molejos e requebrados da cintura, das

palmas e dos pés. Palmos e pés, que também são usados para medir o espaço, são usados

para medir o tempo. Como também se mede um punhado de farinha ou uma pitada de sal. É

o corpo a medida do espaço e do tempo, e a partir desse corpo podemos entender a rítmica.

O estudo da rítmica brasileira norteia o presente trabalho, desde a identificação de

padrões rítmicos encontrados no forró e no choro até o desenvolvimento e elaboração da

rítmica tradicional na linguagem desenvolvida por Hermeto Pascoal. Para isso, recorrerei à

pesquisa efetuada por Carlos Sandroni, ao explicar as transformações ocorridas no samba

de 1917 a 1933.

Ao estudar o samba, Sandroni observou uma mudança rítmica significativa que teria

ocorrido no período em questão, o que o levou à formulação de dois paradigmas distintos, o

“paradigma do tresillo” e o “paradigma do Estácio”. O paradigma do tresillo é o que nos

interessa no âmbito desse estudo. Embora ele esteja relacionado às origens do samba,

pretendo estendê-lo aqui também às origens do choro e ao forró, abrangência esta que é

sugerida por Sandroni.

O padrão rítmico 3+3+2 [o tresillo] pode ser encontrado hoje na música brasileira de

tradição oral, por exemplo nas palmas que acompanham o samba-de-roda baiano, o coco

nordestino e o partido-alto carioca; e também nos gonguês dos maracatus pernambucanos,

em vários tipos de toques para divindades afro-brasileiras e assim por diante. (Sandroni

2001: 28)

Aliado (ou por vezes contraposto) ao estudo de Sandroni, o conceito de pulsação, tal

qual é formulado por Fabien Lévy (2001), também será um dos pontos de partida aqui

desenvolvidos. Aceitando a idéia de que a percepção do tempo na música clássica ocidental

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se baseia sobre uma estratificação em diferentes níveis de articulação,6 Lévy propõe

agrupar os diversos estratos em três categorias: a “pulsação métrica” (duração mínima de

um ciclo completo que envolve tempos fortes e fracos), a “pulsação unitária ou

metronômica” (nível de subdivisão intermediário) e a “pulsação mínima” (menor valor

rítmico utilizado ou divisão mínima). Para ilustrar essa idéia, podemos imaginar uma régua

elástica, cujas divisões seriam as pulsações e as diferentes pulsações dependeriam da régua

estar esticada ou comprimida. O que as assemelha é a configuração de um ciclo constante,

seja qual for a articulação percebida.

Mais do que os tipos de pulsação destacados, cuja pertinência à rítmica brasileira

mereceria uma investigação mais detalhada, a idéia da coexistência de diferentes níveis de

pulsações será aqui desenvolvida, propondo inclusive outras possibilidades de agrupamento

e articulação. Como afirma Lévy: “os teóricos da psicoacústica estão de acordo sobre a

existência desse tecido cognitivo na maior parte das músicas, o que facilita e orienta a

percepção dos ritmos e durações” (Levy 2001: 8, tradução da autora).

Cabe ressaltar que, enquanto os conceitos de pulsação expostos por Lévy baseiam-

se numa rítmica divisiva, própria da teoria musical clássica européia, o tresillo, ao

contrário, baseia-se numa rítmica aditiva, característica da música africana.7 No entanto,

para se entender a rítmica brasileira, é preciso considerar ambas, a rítmica aditiva e a

divisiva, uma vez que em nossa música convivem, dentre vários outros elementos, a

contrametricidade e o compasso.

Para explicar o paradigma do tresillo Sandroni recorre, por sua vez, aos estudos de

Kolinski, que propõe dois níveis de estruturação do ritmo musical, a métrica e o ritmo:

O caráter variado do ritmo pode confirmar ou contradizer o fundo métrico, que é constante.

Kolinski cunhou os termos “cometricidade” e “contrametricidade” para exprimir essas duas

possibilidades. A “metricidade” de um ritmo seria pois a medida em que ele se aproxima ou

se afasta da métrica subjacente. (Sandroni 2001: 21)

6 Lévy se refere à teoria desenvolvida por Fred Lerdahl e Ray Jackendoff em Théorie Generative de la

musique tonale (1985). 7 Sobre a diferenciação entre rítmica aditiva e divisiva (A. M. Jones apud Sandroni 2001: 24).

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O paradigma do tresillo diz respeito à recorrência do padrão rítmico assimétrico que

comporta três articulações e por isso teria sido chamado pelos cubanos de tresillo [3+3+2].

Sua característica fundamental é a marca contramétrica recorrente na quarta pulsação (ou,

em notação convencional, na quarta semicolcheia) de um grupo de oito, que assim fica

dividido em duas quase-metades desiguais (3+5). É esta marca que o distingue dos padrões

rítmicos que obedecem à teoria clássica ocidental, para a qual a marca equivalente estaria

não na quarta mas na quinta pulsação (ou seja,no início do segundo tempo de um 2/4

convencional e simétrico). (Sandroni 2001: 30)

Ao dizer “sua característica fundamental é a marca contramétrica recorrente na

quarta pulsação”, Sandroni está se referindo à “pulsação mínima”, ou seja, à menor divisão

rítmica empregada que, de acordo com os conceitos de Levy, seria a subdivisão da

“pulsação unitária ou metronômica”, ou seja, da pulsação intermediária, que em geral

equivale à semínima na música clássica ocidental.

Sandroni procura aplicar o que ele chama de lógica da imparidade rítmica8 a figuras

rítmicas que em geral são encaradas pela lógica do compasso. Ao fazer isso, naturalmente,

a unidade métrica que vem à tona não é mais a pulsação metronômica, própria dos passos

de dança, mas as pulsações mínimas, próprias dos molejos e requebrados...

Ou seja, a subdivisão ξξξξ que permeia a música brasileira passa a ser encarada como

a pulsação de referência, e não como subdivisões do padrão simétrico do compasso binário,

dividido em duas partes iguais. Essa abordagem permite refinar a percepção dos ritmos de

forma a entender a miscigenação de padrões distintos, ou seja, a imparidade rítmica própria

da música africana existe na música brasileira, mas dentro de um agrupamento de pulsações

a que os europeus chamam de compasso, referente à “pulsação métrica”.

Segundo Sandroni, no Brasil, o tresillo figura em inúmeras partituras, pelo menos

desde 1856, quando aparece na introdução do lundu “Beijos de Frade”, de Henrique Alves

de Mesquita. O tresillo também consta como um padrão rítmico de acompanhamento em

8 Imparidade rítmica é um fenômeno recorrente na música africana, no qual, embora o ciclo de pulsações seja

um número par e, portanto divisível em duas partes, a articulação dos tempos fortes e fracos não obedece a

essa simetria, dividindo o ciclo em partes assimétricas, como é o caso do tresillo: 3+3+2 (Simha Arom apud

Sandroni 2001: 24 e 25).

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músicas de Nazareth e de compositores eruditos nacionalistas, dentre outros. No que se

refere à música impressa brasileira do século XIX e início do XX, o tresillo possui algumas

variantes: a síncope característica , o padrão de cavaquinho (e caixeta) nos

choros: e o ritmo de habanera ou de tango: . Esse conjunto

de variantes configura o paradigma do tresillo.9

Se examinarmos o baião de Luiz Gonzaga, por exemplo, à luz do paradigma do

tresillo, veremos que ele está muito mais próximo desse paradigma do que do paradigma do

Estácio, que Sandroni explica como sendo o paradigma do novo estilo de samba surgido

nos anos 1930. Aliás, não só o baião, mas a maioria dos ritmos que integram o universo do

forró podem ser assim percebidos. Vemos aí mais um aspecto que aproxima o forró dos

primórdios do choro, e tanto o forró quanto o choro da rítmica de Hermeto Pascoal, como

veremos em detalhes na segunda parte da pesquisa. A “marca contramétrica recorrente na

quarta pulsação” (para usar as palavras de Sandroni) é tão recorrente na linguagem musical

de Hermeto que tem uma denominação própria, chama-se nota “pendurada”: .

A “síncope” é outra figura tão marcante na música de Hermeto que é chamada de

“garfinho”, pela semelhança da figura com um garfo de três dentes: . O conceito de

síncope também permeia nosso trabalho, seja na apreensão da maioria dos ritmos relativos

ao choro e ao forró, seja nas características rítmicas da música de Hermeto Pascoal.

Como explica Sandroni, desde o século XIX, a síncope aparece como uma marca

registrada da música brasileira. Ela aparece também como uma característica que define a

música popular brasileira nos estudos de Mário de Andrade, Andrade Muricy e na “Carta

do samba”.10 Segundo Sandroni, o caráter culturalmente condicionado do conceito de

síncope foi evidenciado pelos estudos de Kolinski. Originalmente, o conceito de síncope

refere-se a uma quebra da regularidade, provocando uma contraposição entre ritmo regular

e ritmo sincopado, mas no Brasil, por exemplo, o irregular é justamente o mais

característico, o que evidencia o paradoxo e a afirmação de que “a síncope não é um

conceito universal da música” (Sandroni 2001: 21).

9 Para informações detalhadas sobre o tresillo e suas variantes, ver Sandroni 2001: 19-32. 10 Documento redigido ao final do I Congresso Nacional do Samba, em 1962, com o objetivo de “preservar as

características tradicionais do samba” (citado por Sandroni 2001).

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Além disso, Sandroni nos lembra que o compasso também não é um

conceito universal da música (Sandroni 2001: 22). No entanto, utilizarei as noções

de compasso e de síncope (ou melhor, “garfinho”) nesse estudo, uma vez que

Hermeto as utiliza em sua concepção musical e são noções correntes no Brasil,

utilizadas por músicos das mais variadas vertentes.

O compasso seria o ponto de convergência, para onde ritmo, melodia e harmonia se

direcionam. As danças de origem européia, como a polca, baseiam-se em ciclos repetidos,

que organizam tempos fortes e fracos, ou seja, seus passos coincidem com a pulsação

métrica, o compasso. No entanto, quando as articulações e acentos variam, deslocando-se

dos tempos cométricos, como no maxixe, evidencia-se a pulsação mínima, o que acontece é

que outras partes do corpo também vão se movimentar, como a cintura, as ancas,

provocando os requebrados das danças brasileiras.

A partir dessas constatações, é quase irresistível apontar a evidência de que a

contrametricidade da rítmica africana continuou a existir na rítmica brasileira dentro dos

limites impostos pela cultura musical européia, ou seja, o compasso. E esse é mais um dos

limites com os quais Hermeto vai brincar, como veremos na segunda parte da pesquisa.

O paradigma do tresillo cria novos pontos de vista (ou de escuta) sobre os ritmos

brasileiros e suas transformações. Tomando-o como referência, procurarei, num primeiro

momento, entender os ritmos brasileiros que perpassam a história do choro e do forró a

partir das notações propostas pelos músicos consultados, que vivem e desenvolvem essas

tradições. São eles Márcio Bahia, Nenê, Zezinho Pitoco, Eder “o” Rocha, no universo do

forró, e Maurício Carrilho, no domínio da linguagem do choro. Cada um deles será

oportunamente apresentado. Num segundo momento, meu objetivo nas análises rítmicas

será justamente compreender a coexistência dos agrupamentos métricos e ritmos brasileiros

na música de Hermeto.

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3. Forró Brasil11

3.1. Luiz Gonzaga: do choro ao baião

A relação de Luiz Gonzaga com os gêneros originários do choro não se resume à

sua infância nordestina, assim como a relação do choro com o forró também vai ser

reformulada em outro contexto: os regionais de rádio. No início dos anos 1940, já no Rio

de Janeiro, época em que era sanfoneiro contratado da Rádio Tamoio e da Gravadora

Victor, mas tentava a sorte como cantor, evidencia-se a experiência de Gonzaga no choro:

Gonzaga fora contratado como sanfoneiro e sanfoneiro seguiria sendo, gravando seus

discos solos, e acompanhando os colegas da Victor: Carmem Costa, Bob Nelson [...],

Marilú, Ademilde Fonseca... pois ninguém melhor que o homem que colocou a sanfona no

choro, gênero predominante no seu repertório então, podia acompanhar a mulher que

inventou o “choro cantado”. Também acompanhava Benedito Lacerda e seu regional, cujo

guitarrista, um certo Dino (futuramente “Sete Cordas”), divertindo-se com aquela cara

redonda de sertanejo, o apelidou de “Lua”. (Dreyfus 1997: 98)

É exagerado dizer que Gonzaga foi “o homem que colocou a sanfona no choro”,

assim como é exagero dizer que ele inventou o baião. Talvez ele tenha inventado aquele

baião que passou a ser divulgado nas rádios. Em 1953, Jackson do Pandeiro já questiona a

paternidade do baião, ao gravar a música “Êta Baião”, de Marçal Araújo, que sugere uma

explicação de onde viria o termo: “Como é bonito ver no alto do sertão/ Os violeiro

rasqueando/ A queimar com o bordão/ Os cabra fazem o desafio/ Rima sem perder o fio/ E

assim nasce o baião” (citado por Moura e Vicente 2001: 168). Ainda sobre a origem do

termo, o que Jackson do Pandeiro cantava não era apenas uma provocação, como explica

Dominique Dreyfus:

O termo baião, sinônimo de rojão, já existia, designando na linguagem dos repentistas

nordestinos, o pequeno trecho musical tocado pela viola, que permite ao violeiro testar a

11 “Forró Brasil” é o nome de uma música de Hermeto, gravada no disco Hermeto Pascoal ao vivo em

Montreux.

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afinação do instrumento e esperar a inspiração, assim como introduz o verso do cantador ou

pontua o final de cada estrofe. No repente ou no desafio, cuja forma de cantar é recitativa e

monocórdia, o “baião” é a única seqüência rítmica e melódica. (Dreyfus 1997: 110)

“Baião” seria o título do primeiro sucesso da dupla Luiz Gonzaga e Humberto

Teixeira em 1946 e, a partir de então, o manifesto de um novo ritmo. De sanfoneiro

contratado, tocando em regionais, Gonzaga passa a gravar e fazer apresentações em rádio

acompanhado pelos conjuntos regionais.12 Segundo Dreyfus, tais conjuntos – pandeiro,

bandolim, violão, cavaquinho – imprimiam ao baião de Luiz Gonzaga “um jeitinho de

choro estilizado” (Dreyfus 1997: 150), mas não há como negar que foi a partir daí que ele

tomou forma, ou seja, o baião de Luiz Gonzaga nasceu dos regionais de choro.

Mais uma vez, o fole da sanfona realiza a aproximação entre o forró e o choro,

como aconteceu com Hermeto, lembrando que o próprio “Gonzaga se divertia dizendo,

com toda razão, que acordeom e sanfona eram o mesmo instrumento, mas, quando o artista

tocava música de salão, era acordeonista e, quando era mais popular, tornava-se

sanfoneiro” (Dreyfus 1997: 79). Trocando em miúdos: quando tocava choro era

acordeonista e quando tocava forró era sanfoneiro? Então choro e forró também seriam a

mesma música? Com diferentes sotaques que aos poucos foram definindo os gêneros e os

“regionalizando”?

De fato, o “Xote das Meninas” tocado por Luiz Gonzaga difere em muito dos

schottischs compostos por Irineu de Almeida, o professor de Pixinguinha, pelo menos

cinqüenta anos antes. A música das quadrilhas das atuais festas de São João também quase

não guarda vestígios das quadrilhas compostas por Callado em fins do século XIX.

Nessa época, Alexandre Gonçalves Pinto retrata um chorão chamado Pedro da

Harmônica que, pela descrição, parecia tocar mesmo acordeom: “Pedro sabia tirar partido

de sua harmônica, solando e acompanhando com facilidade músicas difíceis” (Gonçalves

Pinto 1936: 130). Apesar de harmônica ser um sinônimo tanto para gaita de boca como para

12 Particularmente na Nacional, suas músicas ganham arranjos de Radamés Gnatalli. Falaremos dos conjuntos

regionais no capítulo 5. No que diz respeito à valorização do acordeom nesse contexto, Chiquinho do

Acordeom se destacou no regional de Claudionor Cruz e no Trio Surdina, ao lado de Garoto (violão) e Fafá

Lemos (violino). Chiquinho integrou também o Sexteto Radamés Gnatalli, tendo sido o acordeonista

preferido do maestro, a quem Radamés dedicou algumas peças de concerto.

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sanfona ou acordeom, o fato do músico atuar também como acompanhador sugere que ele

tocava um instrumento harmônico, ou seja, a sanfona ou acordeom.

Mário de Andrade, em 1928, nos lembra que “A sanfona que está influindo bem na

melódica da zona mineira, é acompanhada por triângulo nos fuás13 de Pernambuco”

(Andrade 1928: 23), um primeiro indício do conjunto típico nordestino que Luiz Gonzaga

viria a divulgar por todo o Brasil, como ele mesmo explica:

Eu, no início da minha carreira, tocava sozinho... porque não sabia tocar, só sabia imitar os

tocadores de valsas, de tangos. Só depois é que eu precisei de uma banda. Foi quando me

lembrei das bandas de pife que tocavam nas igrejas, na novena lá do Araripe e que tinham

zabumba e às vezes também um triângulo. Quando não havia triângulo pra fazer o agudo, o

pessoal tanto podia bater num ferrinho qualquer. Primeiro eu botei a zabumba me

acompanhando. Mais tarde, numa feira no Recife, eu vi um menino que vendia biscoitinho,

e o pregão dele era tocando triângulo. Eu gostei, achei que daria um contraste bom com o

zabumba, que era grave. Havia os pífanos, que têm o som agudo, mas eu não quis utilizá-

los porque a sanfona, com aquele sonzão dela, ia cobrir os pífanos todinhos. [...] Agora, o

que eu criei, foi a divisão do triângulo, como ele é tocado no baião. Isso aí não era

conhecido. (Gonzaga apud Dreyfus 1997:151, 152)

Assim como Hermeto, Gonzaga também destaca a influência dos pífanos em sua

formação musical. As bandas de pife aparecem aqui na origem do trio de forró que se

generalizou com a música de Luiz Gonzaga. Mais uma vez essas formações instrumentais

estão de tal forma relacionadas que não há como estancá-las em gêneros musicais e

histórias distintas. Mas, como vimos, os regionais de choro também participaram dessa

história que, por enquanto, apresenta dois músicos nordestinos como protagonistas:

Hermeto Pascoal e Luiz Gonzaga, cada qual em sua época com sua respectiva trajetória,

mas ambos abraçados às suas sanfonas.

13 Festa ou brincadeira.

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3.2. Forró não é só aquilo

Márcio Bahia, baterista que toca no grupo de Hermeto, entende que o forró não é

um ritmo específico, mas “é o lugar onde se toca o baião, o xote, o xaxado” (Bahia 2005).

Hermeto já é mais ousado: “quando eu digo só de forró, tem frevo, tem maracatu, fiz pra

mostrar que forró não é só aquilo, que forró abrange várias tendências musicais” (Pascoal

1999).

Ao dizer “forró não é só aquilo” Hermeto talvez esteja se referindo ao conceito de

forró que generalizou-se com a migração de nordestinos para RJ, SP e Brasília na segunda

metade dos anos 1950. Segundo Tinhorão, houve então um processo de fusão de práticas

regionais diversas, o que explicava o aparecimento de novos ritmos nordestinos e novas

casas de dança chamadas forrós. Como conseqüência desse movimento, houve a criação de

um mercado (e um público) para um novo gênero de música urbana – o baião do

pernambucano Luís Gonzaga e do cearense Humberto Teixeira, lançado na segunda metade

da década de 1940 - e o surgimento de pequenas gravadoras “interessadas no lançamento de

ritmos como o xaxado, o coco, o xote, a polca e a mazurca” (Tinhorão 1976: 187).

Tais produções musicais alcançaram o público primeiramente através de alto-

falantes públicos, nos circos ou nas praças e, em seguida, em locais apropriados para ouvir

música e dançar: os forrós, chamados pelos cariocas de “gafieiras de nordestinos”. Nesses

forrós, trabalhadores vindos dos mais diferentes estados do nordeste reencontravam-se com

sua cultura regional, ao som do trio (já clássico): sanfona, triângulo e zabumba (Tinhorão

1976).

Atualmente, forró parece ser um gênero aberto, como defende Hermeto, incluindo

todos o gêneros que em determinada época estão sendo dançados nos forrós (aqui

entendidos como bailes), geralmente tocados pelos trios de forró, mas que hoje apresentam

inúmeras outras formações. No entanto, alguns ritmos já estão tão associados ao contexto

nordestino que passaram a ser chamados de forró independente de onde e por qual

formação são tocados. É o caso daqueles consagrados por Luiz Gonzaga: o baião, o xote, o

arrasta-pé, o xaxado, dentre outros, e é o caso também de ritmos de folguedos e

brincadeiras populares nordestinas como o coco, o frevo e até o maracatu. Além disso, as

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diferentes técnicas instrumentais e as diferentes formações também vão imprimindo

diferenças aos gêneros. Mas a acentuação rítmica não deixa dúvidas.

3.3. O zabumba do forró

Para falar dos ritmos do forró, falaremos primeiramente de um instrumento – o

zabumba – que faz a ponte entre os trios de forró e as bandas de pífano, como mencionado

por Luiz Gonzaga e como veremos também no capítulo 6.

Eder “o” Rocha, percussionista que sistematizou vários ritmos tocados pelo

zabumba, 14 explica que o zabumba é um tambor grave de bojo largo, tocado em frente ao

corpo, na diagonal, de forma que a mão dominante toque a pele mais grossa, de som grave,

e a outra mão toque a pele de baixo, mais fina e de som agudo. Em geral utiliza-se uma

baqueta de ponta grossa e macia na mão dominante e um bacalhau ou vareta na outra mão.

No caso das bandas de pífano, o zabumbeiro pode também não utilizar o bacalhau,

percutindo e abafando a pele de baixo com a própria mão, como é o caso da Banda Dois

Irmãos, de Caruaru. A partir de Luiz Gonzaga, esse tambor passou a ser conhecido

principalmente como o “zabumba do forró”.

De acordo com Rocha, embora o zabumba do forró ou zabumba do nordeste seja o

mais conhecido, há também o zabumba do maracatu nação de baque virado (também

chamado de bombo ou alfaia), de Recife; do maracatu de Fortaleza; e do boi de zabumba

do Maranhão, dentre outros. Em todos esses casos, o que define o zabumba é a função que

ele desempenha, ou seja, é sempre o grave dentro de determinada tessitura.

Segundo Rocha, esse tambor teria duas origens: o tambor grave das bandas militares

e o omelê, um instrumento grave que seria o ancestral do zabumba no Nordeste, tocado

freqüentemente com a sanfona pé-de-bode (oito-baixos). Assim como esta é uma versão

mais simples e menos sonora do acordeom, o omelê seria o correspondente do zabumba.

14 Eder “o” Rocha participou do grupo Mestre Ambrósio, onde ele desenvolveu um set de percussão a que deu

o nome de “zabumbateria”. Usarei seu nome na grafia que ele adota em seu método Zabumba moderno (s.d.),

ou seja, Eder “o” Rocha. Participei de seu workshop em dezembro de 2005 na Escola de Música da UFMG,

onde tive acesso a algumas das informações aqui registradas.

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Concordando com a definição de forró proposta por Márcio Bahia, Rocha acredita

que forró é a festa onde tem coco, ciranda, xaxado, xote, etc. Os ritmos e gêneros musicais

vão se multiplicando, assim como nossa concepção múltipla de forró como um gênero

aberto que abarca tantos outros...

É preciso então conhecer isoladamente cada um dos ritmos que integram a

concepção atual e abrangente de forró, defendida por Hermeto. O maracatu e o frevo

integram a concepção de forró citada, pois podem muito bem ser tocados (e de fato o são)

nos forrós pelos trios de sanfona, zabumba e triângulo. Quanto aos ritmos e gêneros que

vimos perpassar tanto a história do choro, quanto a história do forró e das bandas de

pífanos, enfatizaremos aqui aqueles que permaneceram como típicos do forró, conforme a

abordagem atual que me propus adotar.

Os ritmos do zabumba que se seguem são transcritos conforme a notação de

zabumba proposta por Rocha, no livro Zabumba moderno. Apresento as versões de Rocha e

Pitoco15 para os ritmos destacados. Para compreender os ritmos, tal qual são tocados no

zabumba, é preciso seguir a legenda. A membrana superior é a que tem a pele mais grossa e

é tocada com uma baqueta grossa e macia, produzindo um som grave que pode ser aberto

(solto) ou fechado (abafado). A membrana inferior, mais fina, é tocada com uma vareta ou

bacalhau, produzindo um som agudo que também pode ser aberto (solto) ou fechado

(abafado).

15 Zezinho Pitoco é percussionista, saxofonista e clarinetista, toca na Orquestra Popular de Câmara e no grupo

de Antônio Nóbrega, dentre outros. Tive aulas de percussão com ele durante o “Encontro com a Dança e a

Música brasileiras” no Teatro-Escola Brincante, em São Paulo, ano de 1998.

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a) Baião

Também chamado de baiano, segundo Oneyda Alvarenga, era uma dança de pares

solistas, com palmas, sapateados, umbigada, estalos de dedos ou eventualmente

castanholas. Oneyda compara o lundu e o baiano, alegando que o lundu seria a origem do

baiano que, por ser praticado na Bahia, passou a ter esse nome. Suas características

musicais seriam as melodias sincopadas, os refrões semelhantes ao refrão dos lundus e de

outros gêneros “que revelam no seu corte rítmico que se destinam a danças cheias de

movimentos de ancas” (Alvarenga s.d: 157).

A partir de 1950, ficou conhecido em todo o Brasil, como o baião de Luiz Gonzaga

(chamado de Rei do Baião) e passou a ser o ritmo mais característico do forró. O caráter

modal das melodias, predominantemente em mixolídio, está presente nas toadas dos

violeiros, na sonoridade característica dos pifes,16 sendo retomado pelo baião de Gonzaga.

Quanto ao ritmo, o baião apresenta a acentuação do tresillo bem marcada e tem inúmeras

variantes, conforme o andamento e as acentuações.

b) Coco

O coco não tem uma formação instrumental específica, os instrumentos variam de

acordo com a região em que é tocado. Muitas vezes utilizam-se os instrumentos de outro

folguedo ou brincadeira. A dança (o trupé, passo característico) e o canto são recorrentes

em algumas regiões, como no Coco de Arco Verde (PE). Rocha distingue entre três tipos de

16 O flautista e “pifeiro” (tocador de pífano) Marcelo Chiaretti, explica que a nota do sétimo grau abaixada, do

modo mixolídio, é própria para ser tocada no pífano e caracteriza sua sonoridade.

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coco: o desdobrado (mais lento), o dobrado (mais rápido) e o coco-canção. Apresenta

inúmeras variantes rítmicas, também dentro do paradigma do tresillo.

c) Xaxado

Originalmente, o xaxado era uma dança executada apenas por “cabra macho”, no

sertão de Pernambuco, sua disseminação por todo o nordeste é atribuída ao bando de

Lampião, nas palavras de Luiz Gonzaga “o rifle é a dama” (EMB 2003). Era dança

individual, em círculos, o arrastado das sandálias (xá-xá) caracterizando o nome xaxado.

Mas, pela voz do próprio Gonzaga, Jackson do Pandeiro e outros compositores, o xaxado

também se incorporou ao universo do forró, transformando-se em “xaxado urbano”, dança

de salão com presença feminina, de par enlaçado. O ritmo assemelha-se ao do baião, mas

apresenta andamento um pouco mais rápido e mais variações rítmicas.

A seguir, apresento um quadro comparativo das marcações graves nos ritmos do

baião, coco, xaxado e variantes:

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Fontes: Bahia (2005); Nenê (1999); Rocha (s.d); Pitoco (1998)

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Como vimos, o baião, o coco, o xaxado e suas variantes apresentam muitas

semelhanças rítmicas, todos eles são variações dentro do “paradigma do tresillo”, com a

acentuação da “nota pendurada”.17 As versões de Márcio Bahia e Nenê referem-se ao

bumbo da bateria; enquanto Rocha e Pitoco tocam o zabumba. Não há um consenso entre

eles em relação à marcação do grave do baião, do coco e do xaxado. Se compararmos as

marcações graves de cada um deles, a única semelhança que se mantém é o ritmo básico, a

marcação da quarta pulsação mínima (“a pendurada”), que caracteriza o tresillo. Os

zabumbeiros apresentaram mais variantes: Pitoco cita o baião-coco e o rojão (segundo ele,

a junção de samba e baião); Rocha apresenta muitas variantes para o baião, o coco e o

xaxado em seu livro. No presente estudo, foi necessário fazer uma seleção. Escolhi as

variantes que apresentavam as marcações mais simples ou aquelas mais recorrentes, ou

seja, as marcações graves que se repetiam na maioria delas.18

d) Xote

A schottisch, dança de salão muito difundida em meados do século XIX na Europa,

teve grande aceitação ao chegar ao Brasil, sendo primeiramente adaptada pelos conjuntos

de choro. Logo se popularizou pelo Brasil rural como “xote”, tanto no Rio Grande do Sul,

onde se adaptou à gaita, quanto no Nordeste onde era executado no fole (Dreyfus 1997:

110). Atualmente, o xote é tocado nos bailes de forró de todo o Brasil. A dança, a dois, é

cadenciada e sensual, de acordo com a música, de andamento moderado. Um exemplo bem

conhecido é o “Xote das Meninas”, de Luiz Gonzaga.

17 “Nota pendurada” é um exemplo da linguagem musical praticada na Escola Jabour, como veremos no

capítulo 11. 18 Para notações detalhadas dos ritmos no zabumba e suas variantes, ver Rocha (s.d.). Para as adaptações dos

ritmos do forró para a bateria ver Nenê (1999).

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e) Maracatu

Qual maracatu? Ao falar maracatu, Hermeto se refere ao maracatu nação, ou

maracatu de baque virado, pois ele viveu em Recife e teve contato com esse ritmo tanto nas

ruas, durante o carnaval, quanto na rádio onde trabalhava, como veremos no capítulo 5.19

O maracatu de baque virado é um cortejo real cuja origem remonta às festas de

coroação de reis negros, durante a instituição do Rei do Congo no Brasil, que data de 1662,

segundo Guerra-Peixe (1980). Nessas ocasiões, diversos grupos ou nações concorriam para

celebrar o rei eleito. Se a instituição desapareceu em meados do século XIX, em Recife

permaneceu o auto dos “Congos”, dramatização da antiga coroação. Mas a parte teatral foi

sendo suprimida e o cortejo com as personagens derivou para o maracatu, um folguedo com

música e dança.

No cortejo, uma corte é formada: rei, rainha, dama do passo, calunga, catirinas,

brincantes. O baque vai atrás, com suas alfaias, bombos ou zabumbas, xequerês,20 caixa ou

tarol, gonguê e ganzás.21 Quem não dança, não toca, quem não toca, não canta, quem não

canta, não brinca... Os movimentos da dança sugerem os movimentos do toque das alfaias.

A polirritmia entre percussão e canto predomina, mas não há que se falar em dificuldades

técnicas. As habilidades se integram na brincadeira de rua.

Baque é o nome dado tanto para a orquestra de percussão quanto para os diferentes

padrões rítmicos executados, que são inúmeros, dependendo da loa ou toada cantada e do

19 Além desse, existem pelo menos dois outros tipos de maracatu, o maracatu de baque solto ou maracatu

rural e o maracatu de Fortaleza (ver Rocha s.d.). 20 Xequerê é “um chocalho externo feito com uma cabaça envolta numa rede de malhas grandes em cujas

interseções e, eventualmente, em todo o fio da malha, são colocadas sementes” (Frungillo 2003: 389). 21 Gonguê “é o nome da campânula de metal cônica, simples ou dupla, com cabo, tocada com baqueta de

metal ou madeira” (Frungillo 2003: 141); o ganzá ou mineiro utilizado em alguns maracatus é um chocalho

cilíndrico feito de metal.

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grupo que a executa. Os padrões destacados por Rocha referem-se sobretudo à sua vivência

no grupo de maracatu Estrela Brilhante, dirigido por Walter França, no Alto Zé do Pinho,

em Recife, adaptados nesta notação para o zabumba do forró.

A variante de gonguê que se popularizou no sudeste do Brasil, em composições e

arranjos de maracatu na música de Guerra-Peixe, Hermeto Pascoal, dentre vários outros

compositores, é uma das variantes do gonguê recolhidas pelo próprio Guerra-Peixe.

Curiosamente, esta variante foi mais difundida do que o padrão utilizado pelos

grupos tradicionais Estrela Brilhante e Leão Coroado, por exemplo.

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Uma das explicações possíveis para este fato seria o aprendizado do maracatu por

músicos e compositores através de fontes secundárias, no caso o trabalho de Guerra-Peixe,

que era a principal referência e, durante os anos 1970, teria sido mais difundido no sudeste

do Brasil do que a própria música dos maracatus tradicionais.

f) Frevo

O frevo é uma marcha acelerada, originada da “fervura” das marchas militares

misturadas ao ritmo da capoeira. Segundo Tinhorão (1975: 137, 138), essa mistura teria se

dado nos desafios entre bandas rivais, nos quais figuravam grupos de capoeiras abrindo

caminho e passando rasteiras. No auge do desafio, as marchas se aceleravam, juntamente

aos passos, dando origem à dança e música que conhecemos hoje. Música alegre, animada,

de andamento rápido, próprio para os passos, rodopios e pulos virtuosísticos dos

dançarinos-equilibristas, com a tradicional sombrinha colorida.

Rocha (s.d.) distingue entre o frevo de rua, o frevo de bloco e o frevo-canção. As

orquestras de frevo atuais guardam resquícios de sua origem. Principalmente as orquestras

de frevo de rua, compostas pelos metais (naipe de trompete, trombone, saxofone e tuba)

lado a lado à caixa-clara, ao pandeiro e ao surdo. Os frevos de rua são os frevos

instrumentais. As orquestras de frevo de bloco substituem os metais pelas madeiras (flauta,

clarineta e sax), e acrescentam o naipe de cordas dedilhadas (violão, cavaquinho, banjo e

bandolim) e às vezes também um ou dois instrumentos de cordas friccionadas (violino e

viola), essas orquestras podem também ser chamadas “orquestras de cordas dedilhadas”. As

canções são entoadas por várias vozes, formando um coro. São os chamados frevos-canção.

Nas orquestras de clubes, os frevos-canção são interpretados por cantores, em coro ou solo,

e, além dos instrumentos tradicionais de sopro e percussão, são acrescentados instrumentos

elétricos (guitarra, baixo e teclado).

Atualmente, os trios de forró também tocam frevo, à sua maneira. O zabumba se

desdobra entre o ritmo da caixa (no bacalhau) e do surdo (na pele grave), enquanto um

triângulo faz a célula rítmica característica da marcha: .

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g) Arrasta-pé

Rocha chama esse ritmo de marcha junina ou marcha de quadrilha, presente na

própria quadrilha, manifestação originada dos bailes franceses, que aqui anima as festas de

São João, como veremos a seguir.

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4. Anarriê

4.1. O baile que era choro que hoje é forró...

“Anarriê” vem de en arrière (“para trás” em francês) e remete às quadrilhas das

festas de São João que atualmente acontecem por todo o Brasil no mês de junho. Mas se

voltamos ainda mais “para trás”, descobrimos que quadrilha era também uma dança

animada pelos choros no Rio de Janeiro, ainda no século XIX. E não só no Rio de Janeiro.

Segundo Mário de Andrade, “a quadrilha fez furor no Recife por 1840 desbancando tudo

quanto era dança do tempo” (Andrade 1999: 414).

A quadrilha torna-se portanto mais um elo de ligação entre o choro e o forró que

conhecemos hoje. Apesar de atualmente ela estar mais associada ao forró, tanto ela

pertence ao universo do choro que quem vai explicar como ela acontecia é Alexandre

Gonçalves Pinto, o saudoso chorão:

A quadrilha era uma dança figurada com cadência de seis por oito e dois por quatro no

compasso. [...] Esse estilo de dança traz saudades das marcações: “Travessê!”, “Balancê!”,

“Tour!”, “Anavancatre!”, “Marcantes anavan!”, “Caminhos da roça!”, “Volta gente que está

chovendo!” [...] Para ser marcante era preciso conhecer todas as evoluções da quadrilha, e

estar muito atento ao desenrolar da música. (Gonçalves Pinto 1936: 112, 113)

Como bom observador, Alexandre não só descreve momentos engraçados das

quadrilhas que freqüentava, como também aponta diferenças entre as quadrilhas dançadas

nos salões dos bairros de Botafogo e Tijuca (os ricos) e a“que era desengonçada na Cidade

Nova e Jacarepaguá” (Gonçalves Pinto 1936: 113), a “roda do povo”:

Os ricos [...] observavam rigorosamente a pronúncia francesa e a orquestra só parava

quando o “marcante” dava o sinal. Na roda do povo [...] a marcação era gozada porque

sendo feita num “francês-macarrônico”, tinha uns enxertos, conforme a festividade do

marcante. (Gonçalves Pinto 1936: 113)

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Ele dá um exemplo dessas invenções das quadrilhas do povo:

No “caminho da roça”, por exemplo, davam-se passagens de rir a bom rir, porque muitas

vezes, percorria-se toda a casa, saindo pela cozinha para entrar novamente pela sala de

visitas. Aí o marcante bradava: - Aos seus lugares! Era a hora do fuzuê... (Gonçalves Pinto

1936: 114)

Se lembrarmos da famosa disposição da casa da Tia Ciata22 e dos ritmos que

aconteciam em cada cômodo, podemos imaginar uma quadrilha que vai da sala de jantar à

cozinha e de volta à sala de jantar, passando pelo choro, pelo samba, pelo batuque,

terminando em fuzuê, ou quem sabe em forró. Apesar de ser apenas uma suposição, não

deixa de simbolizar bem o caminho da quadrilha de dança de salão a dança do povo, ou dos

bailes animados pelos choros ao bailes chamados forrós.

Mário de Andrade fala do abrasileiramento da quadrilha, sugerindo ainda o caminho

do salão para o terreiro “ao ar livre”: “Dança de salão, aos pares, de origem francesa, e que

no Brasil passou a ser dançada também ao ar livre, nas festas do mês de junho em Louvor a

São João, Santo Antônio e São Pedro” (Andrade 1999: 414).

Sobre a religiosidade dessa e de outras festas falaremos a seguir. Agora é preciso

atentar para a música das quadrilhas. Nada melhor do que as engraçadas descrições de

Alexandre Gonçalves Pinto, ao falar dos desencontros entre o marcante e o “mestre do

choro”, um dos músicos que atuava também como regente dos conjuntos:

Sucedia muitas vezes que o marcante se entusiasmava e se esquecia de dar sinal para acabar

uma parte, o choro parava deixando em meio uma evolução. Era motivo para gargalhadas

gerais... [...] Sucedia ainda que o mestre do choro, por malhas ou por tralhas, não gostasse

do marcante: antipatia, inimizade pessoal, dor de cotovelo e então sujeitava-o às mais

desconcertantes borracheiras em pleno salão. Onde isto não sucedia era nos bailes de

harmônica; porque o tocador só parava quando o marcante dizia: - Pára mano veio!... (

Gonçalves Pinto 1936: 114)

Enquanto as quadrilhas dos salões mais abastados eram animadas por orquestras,

(como se vê na página anterior), as quadrilhas “do povo” eram animadas pelos choros, mas

22 Sobre a disposição da casa da Tia Ciata, ver Moura (1983) e Sandroni (2001: 100, 117).

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em alguns bailes figurava a harmônica ou sanfona, que sozinha animava o salão, tornando

mais direta a relação do músico com o marcante. Mário de Andrade, já em sua época,

atesta: “o acompanhamento tradicional das quadrilhas é a sanfona” (Andrade 1999: 414).

Mas a quadrilha de que estamos falando é também um gênero musical pertencente

ao universo do choro. Em geral, é formada por cinco partes: a primeira e a terceira parte são

em 6/8 (seis por oito) e as outras três (segunda, quarta e quinta) em 2/4 (dois por quatro).

Inúmeros chorões compuseram quadrilhas, como Joaquim Callado, Henrique Alves de

Mesquita e “o inesquecível Barata, o sempre lembrado Silveira, o saudoso Metra, o

inolvidável Anacleto” (Gonçalves Pinto 1936: 112).

Câmara Cascudo diz: “no Brasil, em todo lugar se dançou a quadrilha, em cinco

partes, com introdução vibrante, movimentos vivos em 6/8 e 2/4, terminando sempre em

um galope” (Câmara Cascudo 2001: 548). Mas as quadrilhas de que fala Alexandre

terminavam com uma polca, após a agitação da quinta parte, como uma espécie de “prêmio

de consolação” aos pares de namorados: “uma polca bem chorosa, bem macia, bem

cadenciada e que compensava perfeitamente os esforços empregados na quadrilha”

(Gonçalves Pinto 1936: 114).

Atualmente, o gênero musical denominado quadrilha, pertencente ao universo do

choro, é praticamente desconhecido.

A quadrilha caiu em completo desuso entre os chorões a partir da terceira década do século

XX, tendo sido o único gênero ligado ao choro cuja tradição oral desapareceu

completamente. A partir da década de 1990, graças ao violonista Maurício Carrilho, a

quadrilha foi “recriada”, assumindo um caráter mais camerístico, com um andamento mais

lento, que possibilita salientar as belas melodias e o caráter lírico das antigas quadrilhas.

(Paes e Aragão 2005: 19)

Apesar desse ressurgimento da quadrilha enquanto gênero e forma musical, o nome

quadrilha, em nossa época, ainda é predominantemente associado à dança e ao gênero

musical chamado “marcha de quadrilha”, tocado nas festas de São João por todo o Brasil,

pertencente ao universo do forró e não do choro, como explicado no livro Zabumba

moderno: “marchas juninas: também chamadas de arrasta-pé, marcha de quadrilha ou

marchinhas sertanejas [...]. Essa música faz parte do contexto das quadrilhas –

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manifestações derivadas dos grandes bailes franceses -, que representam um bem humorado

baile de casamento” (Rocha s.d: 30).

Nesse contexto, arrasta-pé é sinônimo para marcha de quadrilha, tocado pelos trios

de forró. Como vimos, arrasta-pé já foi o nome dos bailes animados pelos choros e

quadrilha uma das danças que lá aconteciam. Tinhorão aponta o sucesso do maxixe, em fins

do século XIX, como uma das possíveis causas para o desaparecimento das quadrilhas nos

salões, quando estas “transformaram-se em dança pitoresca, exclusiva das festas de São

João” (Tinhorão 1997: 124).

De qualquer forma, a perpetuação da quadrilha como uma tradição brasileira não

apenas exemplifica claramente a íntima relação entre a história do forró e do choro, como

também sugere a disseminação da cultura oral e a permanência de manifestações antigas

em contextos diversos.

4.2. “As nossas festas”: origens do choro carioca

São João, Santo Antônio, São Pedro, São Sebastião, São Francisco... Santos não

faltam para serem celebrados e assim as festas não param de acontecer durante todo o ano

no Brasil. Se no capítulo 6 veremos a função das bandas de pífanos em algumas dessas

celebrações, aqui nos deteremos em algumas funções animadas pelos choros ainda no

século XIX. Em contextos e épocas diversas, essas duas formações instrumentais

apresentam um objetivo comum: a função social de celebrar datas importantes em suas

respectivas comunidades. Essa faceta da história dos choros não costuma ser destacada. No

entanto, saber que essa formação instrumental tomou parte em celebrações de rua,

religiosas ou não, não só a aproxima das bandas de pífano como revela inúmeros aspectos

interessantes de sua história.

No pequeno capítulo “As nossas festas”, Alexandre Gonçalves Pinto (1936: 64, 65)

narra onde e quando os choros tinham oportunidade de tocar: nas festas de “Ano Bom”,

quando “As famílias se reuniam para festejar [...] organizando boas serenatas, e maviosos

choros em louvor a São Silvestre” (Gonçalves Pinto 1936: 64) e também no...

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dia do Mártir São Sebastião, padroeiro desta cidade maravilhosa, dia este que tinha o

esplendor das festas de todos os lares familiares, realizações de casamentos e batizados,

bailes cheios de alegria organizados por chorões que com suas harmonias deliciavam a

grandeza deste dia. Depois o Carnaval com as cinzas precursoras da Semana Santa.

(Gonçalves Pinto 1936: 64)

Havia também um lugar chamado “Ponto dos chorões”, onde “imperava o chôro nas

festas de Santo Antônio, São João, São Pedro e Sant’Anna” (Gonçalves Pinto 1936: 95).

Ainda sobre as festas de São Francisco: “Também eram encontrados muitos músicos

chorões que combinavam boas patuscadas” (Gonçalves Pinto 1936: 95).

Todas as festas, primeiramente animadas pelas bandas de escravos e homens livres

depois já pelos choros da cidade, eram festas do calendário religioso, com exceção, é claro,

do carnaval. Sobre a relação dos chorões com as festas, Alexandre Gonçalves Pinto

conclui: “festas estas que tinham resplendor e devotamento em cada um chorão da velha

guarda, no correr do ano” (Gonçalves Pinto 1936: 65). As funções eram animadas e a

presença dos chorões, ou seja, dos conjuntos de flauta, violão, cavaquinho e oficleide,23

principalmente, era indispensável. Além das oito festas principais, sete do calendário

religioso e uma profana, o carnaval, havia ainda as festas de casamento e batizado, e as

serenatas A partir dessas constatações, Tinhorão defende que

o choro é mais uma contribuição indireta da Igreja Católica, no Brasil, às alegres

manifestações pagãs das camadas populares. Sob o título “A Alvorada da Música” [...],

Alexandre Gonçalves Pinto dá a entender – mais do que diz, expressamente – que a origem

do choro por ele decantado em suas memórias dos velhos chorões estaria nas bandas que

saíam a tocar nas festas de igreja [...]. (Tinhorão 1997: 112)

Ainda segundo Tinhorão, a origem do choro carioca remonta às bandas de músicas

de escravos das fazendas fluminenses e da própria corte, na segunda metade do século XIX.

No início do século XX, os conjuntos que tocavam nas casas eram tantos que algumas

passaram a ficar conhecidas pela presença dos melhores músicos. Como exemplo, as festas

de Machadinho, que duravam dias seguidos, nas quais os chorões se revezavam para 23 Oficleide é um instrumento de sopro grave, muito utilizado nos primórdios do choro para fazer os

contracantos, seria um híbrido de fagote e bombardino.

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mostrar seu talento. Na casa de Adauto, as “brincadeiras eram realizadas com chorões

escolhidos” (Gonçalves Pinto 1936: 94). Na falta de bailes públicos ou rádio, os músicos

ficavam conhecidos nas festas particulares de maior fama e seu virtuosismo corria de boca-

em-boca (Tinhorão 1997).

O Rio de Janeiro posterior a 1870 (que é até quando recuam as memórias de Alexandre

Gonçalves Pinto) até cerca de 1930 (quando estão morrendo os últimos chorões e com eles o

choro boêmio) era um Rio de Janeiro muito provinciano. As diversões públicas – como os

cafés cantantes dos remediados e os chopes-berrantes, mais populares – só começaram a

aparecer praticamente no início do século, quando o rápido processo de urbanização

conseqüente da abolição da escravatura e da formação das pequenas indústrias [...] provocou

uma brusca modificação na fisionomia social da cidade. (Tinhorão 1997: 121, 122)

Ao fazer um levantamento das biografias dos músicos, cantores, mestres de bandas

e boêmios referidos por Alexandre Gonçalves Pinto, Tinhorão afirma que, dentre estes, há

principalmente tocadores de violão, flautistas,24 cavaquinistas e tocadores de oficleide. Mas

também há vários trombonistas, trompetistas, bandolinistas, clarinetistas, tocadores de

requinta e de harmônica, cantores, pianistas, regentes, poetas e também os anfitriões das

casas onde se reuniam os choros.

Alexandre cita a profissão de muitos chorões: carteiros, soldados, componentes das

bandas de corporação, feitores de obras, pequenos empregados do comércio e burocratas.

Depois dos correios, a instituição de onde mais saíam chorões eram as bandas militares.

Tais bandas eram importantes núcleos formadores de músicos, e havia várias delas,25 frente

à escassez de orquestras (Tinhorão 1997).

Segundo Tinhorão, os conjuntos de choro tiveram seu apogeu até que a atração das

revistas e, depois, do disco e do rádio, vieram diversificar os meios de diversão. O maxixe e

o samba, juntamente com a música das jazz-bands, puseram fim à “era sentimental dos

chorões”. Alguns chorões se profissionalizaram para tocar nas orquestras de cinema e

24 Alguns ainda tocavam a flauta do sistema antigo, de cinco chaves. 25 Algumas bandas citadas por Alexandre Gonçalves Pinto: a Banda do Corpo de Marinheiros, a da Guarda

Nacional, a do Batalhão Municipal e, principalmente, a do Corpo de Bombeiros, da qual Anacleto de

Medeiros era regente.

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teatros de revistas, outros aderiram às jazz-bands, trocando o oficleide pelo saxofone.

Tinhorão lamenta os tempos idos e a influência crescente da cultura americana,

arrematando: “de toda a experiência se salvava, afinal, um gênero novo de música popular,

o choro” (Tinhorão 1997: 124).

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5. Da roda aos regionais

5.1. O choro faz escola

Não compartilho das lembranças e do saudosismo de Alexandre Gonçalves Pinto

nem da nostalgia de Tinhorão porque, obviamente, não vivi “naquele tempo”. Procuro

conhecer e reconhecer o choro como uma tradição viva, tanto em gravações antigas da Casa

Edison, como em rodas de choro, shows e gravações recentes de Hermeto Pascoal, Moacir

Santos, Maurício Carrilho, Luciana Rabello, dentre outros. E foi a partir dessas escutas e de

alguma vivência no meio musical que fui percebendo a importância do choro como uma

escola de instrumentistas. Entendendo “escola” aqui como o lugar onde o aprendizado parte

da convivência, sendo espontâneo e praticamente inevitável.

Essa escola teve seu papel naquela época, fins do século XIX e início do século XX,

quando não havia as escolas de música propriamente ditas. Supriam essa lacuna as bandas

das corporações e os conjuntos e rodas de choro, como afirma o próprio Alexandre sobre o

choro de um certo Gedeão: “Morava numa pequena casa na Rua Machado Coelho, perto do

Estácio, esta casa era a reunião dos chorões, sendo portanto uma grande escola de

musicistas, onde o autor deste livro ia ali beber naquela fonte sua aprendizagem de violão e

cavaquinho (Gonçalves Pinto 1936: 17)”

Mais tarde, foram os conjuntos regionais que assumiram o papel de formar os

instrumentistas. Nas rádios, os músicos tinham contato com gêneros musicais diversos que

aos poucos iam incorporando ao seu vocabulário musical, com a orientação dos maestros,

compositores e arranjadores ou, como narrado por Hermeto no capítulo 6, apenas assistindo

aos ensaios. Músicos como Jackson do Pandeiro, Guerra-Peixe, Radamés Gnatalli, Moacir

Santos, Sivuca, além de Luiz Gonzaga e do próprio Hermeto, passaram por essa

experiência, seja como mestres ou pupilos.

Mas as rodas de choro não desapareceram, como dá a entender Tinhorão quando

escreve o capítulo “Como as revistas, o disco e o rádio mataram o choro” (Tinhorão 1997:

121). Um chorão que tocava no regional da rádio ou nas gravações de sambas dificilmente

deixa a roda de lado. Ainda hoje, a roda é, por excelência, o espaço de confraternização dos

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chorões e não deixa de manter seu papel de escola, ou seja, de convivência e trocas

musicais.

5.2. Inventando a roda

Mário de Andrade, no Dicionário musical brasileiro, fala da ambigüidade da

palavra choro, que designa um gênero musical e um agrupamento instrumental. Ele sugere

que o termo choro viria da expressão “chorar”, metáfora muito utilizada para designar

determinada maneira de tocar, que afinal desenvolveu-se como designação de um gênero

musical. Apesar de caracterizar o choro primeiramente como música noturna de caráter

popular coreográfico, ele procura logo desvencilhá-lo de qualquer função utilitária,

afirmando seu caráter eminentemente instrumental e até anticoreográfico, sendo portanto

música desinteressada.

Como vimos, o choro “desinteressado” é o choro que conhecemos desde as

primeiras gravações até hoje, mas as memórias de Alexandre Gonçalves Pinto revelam

justamente a importância dos conjuntos chamados choros nas festividades religiosas e

familiares do Rio de Janeiro provinciano. Nem sempre os choros tiveram função

“puramente musical” como quer Mário de Andrade. Ele tinha como referência as gravações

que ouvia, o “Urubu”, interpretado por Pixinguinha, por exemplo, que ele cita mais de uma

vez (Andrade 1928 e 1999), destacando a rapidez e o virtuosismo do intérprete. A partir da

exuberância instrumental que Mário procura enfatizar, ele aproxima o choro do jazz e do

caráter allegro da música erudita.

Ao falar dos conjuntos chamados choros, Câmara Cascudo afirma que eles

“tocavam músicas populares comuns, a que depois deram um traço próprio e uma

expressão típica” (Câmara Cascudo 2001: 135). Assim ele explica os dois significados da

palavra choro: um conjunto instrumental cujo repertório aos poucos adquire uma

“expressão típica” e passa também a ser chamado de choro.

Até agora uma característica fundamental é apontada: o caráter instrumental. De

fato, ao sintetizar uma formação instrumental e em seguida a música a que essa formação

deu origem, o choro continua até hoje equilibrando esses significados e, dessa forma, foi

possível a consolidação de um repertório de música instrumental ao longo de várias

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gerações de músicos. Esse repertório, apesar de algumas exceções de músicas com letras

colocadas posteriormente, consolidou uma tradição de música instrumental brasileira a que

chamamos hoje de choro.

A concepção de choro como grupo instrumental não desapareceu, tanto que aos

poucos vão sendo inseridos outros ritmos e outras melodias no repertório dos chorões,

todos eles sendo incorporados ao universo do choro. Por exemplo, uma música do próprio

Hermeto Pascoal, “Bebê”, que originalmente, é um baião, mas é tocada em rodas e por

grupos de choro.

Participando em rodas de choro, como ouvinte e musicista, observei que a palavra

continua sendo usada em diferentes sentidos, referindo-se ora ao grupo que toca, ora às

músicas tocadas. No entanto, prevalece o uso da palavra choro significando o tipo de

música. Nesse sentido, ainda é interessante notar que, por um lado, trata-se de um gênero

que engloba vários outros, talvez como um resquício daquele sentido original de “maneira

de tocar”, ou seja, praticamente qualquer música sendo tocada de tal maneira por um grupo

de choro, é choro. Mas, por outro lado, choro designa também um gênero com

características próprias, que o diferem da polca, do maxixe, do tango etc.

Se um brasileiro, acostumado a ouvir uma roda de choro, escuta “A vida é um

buraco”, “Naquele tempo”, ambas de Pixinguinha e “O gaúcho”, de Chiquinha Gonzaga

(músicas muito conhecidas e tocadas nas rodas de choro de Belo Horizonte, por exemplo),

provavelmente ele reconhece todas essas músicas como sendo choros, por estarem sendo

tocadas naquele contexto específico. No entanto, tanto o músico que lê a respectiva

partitura, quanto aquele que já incorporou “de ouvido” harmonia, ritmo e melodia,

sabem que as três músicas são bem diferentes, a ponto de demandarem “levadas”26

distintas: polca, choro, maxixe ou tango brasileiro.

Atualmente, além das rodas de choro, há uma escola de choro propriamente dita em

atividade no Rio de Janeiro. Chama-se Escola Portátil de Música porque, assim como as

rodas antigas e atuais, conserva uma certa mobilidade, podendo acontecer em locais

diferentes. A escola é coordenada pelo compositor e violonista Maurício Carrilho e pela

26 “Levada” é o mesmo que batida rítmica, ou seja, o padrão rítmico de acompanhamento utilizado no choro

(ou em vários outros gêneros musicais brasileiros), sobretudo pelos instrumentos de “base”: o violão, o

cavaquinho e o pandeiro.

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cavaquinista Luciana Rabello. Em 2004 e 2006, participei de dois festivais organizados por

eles em Mendes, onde tive acesso a um vasto material sobre a prática dos gêneros musicais

que compõem o universo do choro, como veremos a seguir.

5.3. Oficina de composição

No segundo Festival Nacional de Choro que aconteceu em janeiro de 2006, em

Mendes, tive a oportunidade de participar de um curso de composição de choro ministrado

por Maurício Carrilho, músico que reúne qualidades de compositor, violonista, professor e

pesquisador.

A primeira lição da aula foi a composição de uma polca. Estavam presentes em

média 20 alunos, de todo o Brasil, além de um italiano e um argentino, cada qual

matutando e costurando sua respectiva polca. No meu caso, a primeira parte da polca veio

rapidamente, lembrei-me de algumas polcas que conhecia e fui cantarolando um pequeno

motivo, em seguida aprendi que precisava responder àquele motivo uma vez de forma

suspensiva (reticências, interrogação) para em seguida respondê-lo de forma conclusiva

(ponto). A primeira parte estava feita, lá fui eu para a segunda. Era preciso modular, por

exemplo para um tom menor. Fui então tocando uma harmonia possível e um outro motivo

foi aparecendo. Mostrei para o Maurício e ele foi claro na constatação: “Tem muita

síncope, virou tango ou no máximo uma polca-tango.” Resultado, eliminei praticamente

todas as síncopes da partitura, terminei a polca.

Ao final da oficina, tínhamos o privilégio de escutar nossas composições sendo

tocadas por um regional formado pelos próprios mestres (os professores de cada

instrumento). Qual não foi minha surpresa ao escutar minha “polquinha” e perceber que

mesmo sem síncopes na melodia, havia acentuações rítmicas no acompanhamento, além do

sotaque característico ao tocar, que naturalmente integravam aquela melodia ao universo do

choro.

Não foi por acaso que começamos a oficina de composição entendendo o que seria

uma polca. Como veremos em detalhes no próximo tópico, a polca foi um dos primeiros

gêneros destinados à dança que chegou da Europa ao Brasil. Mas, afinal, o que faz da

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polca, um choro, ou do choro, uma polca? Enfim, o que faz do choro, um choro e de uma

polca, uma polca? São inúmeros os detalhes que distinguem cada um dos gêneros do

universo do choro, mas há uma estrutura básica que permite uma primeira identificação

formal dos gêneros.

De acordo com Maurício Carrilho, um choro tradicional é geralmente constituído de

três partes (A, B e C), contendo cada uma 16 compassos. Essas três partes são organizadas

da seguinte forma: AA-BB-A-CC-A. Agora estamos utilizando choro em seu sentido

amplo, de “maneira de tocar” que configura um gênero aberto, que engloba vários outros. O

enfoque se dá na semelhança entre eles, que faz com que todos sejam chamados de choros.

A partir de análises de choros de diversas épocas, Maurício propõe um modelo

freqüentemente utilizado na elaboração de cada parte:

Tema ------------------- resposta suspensiva (1º motivo)

(4 compassos) (4 compassos)

Tema ------------------- resposta conclusiva (2º motivo)

(4 compassos) (4 compassos)

(Carrilho 2006: 1)

O modelo acima representa a quadratura comumente encontrada nos choros

tradicionais. Maurício Carrilho chama de motivos as subdivisões de cada uma das partes do

choro. Se cada parte (A, B e C) apresenta 16 compassos, os motivos respeitam a quadratura

e apresentam 8 compassos cada um.

O tema, além de ser a frase melódica apresentada nos primeiros quatro compassos

do choro, reaparece no início do segundo motivo e pode ainda reaparecer na segunda e

terceira partes do choro, em outro modo ou tonalidade. Por isso, segundo Maurício, o tema

deve ter característica marcante em seu conteúdo rítmico, melódico e harmônico.

Para completar o primeiro motivo, logo após o tema a melodia toma um caráter

interrogativo (resposta suspensiva) e a harmonia conduz à dominante da tonalidade inicial,

conduzindo em seguida à reexposição do tema, já no segundo motivo. Após essa

reapresentação do tema, a melodia reafirma a idéia temática e expressa “um caráter

inquestionável de conclusão” (Carrilho 2006: 8). Há o retorno à tonalidade inicial,

lembrando que o final da primeira parte será também o final do choro.

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Além desse modelo recorrente de pergunta e resposta dentro de cada parte, há

também uma relação de tonalidade entre as partes de um choro tradicional. Maurício

esquematiza essa relação da seguinte forma, para a maioria dos choros compostos em

tonalidade maior:

A (primeira parte) -------------- do maior

B (segunda parte)--------------- la menor (relativo menor)

C (terceira parte) --------------- fa maior (IV grau)

ou: A (primeira parte) -------------- do maior

B (segunda parte)--------------- sol maior (V grau)

C (terceira parte) --------------- fa maior (IV grau)

(Carrilho 2006: 10)

Já nos choros compostos em tonalidade menor, Maurício verifica com maior

freqüência as seguintes relações de tonalidade:

A (primeira parte) -------------- la menor

B (segunda parte)--------------- do maior (relativo maior)

C (terceira parte) --------------- la maior (homônimo maior)

ou: A (primeira parte) -------------- la menor

B (segunda parte)--------------- do maior (relativo maior)

C (terceira parte) --------------- fa maior (bVI do tom de A e IV grau de B)

(Carrilho 2006: 12)

Como vimos, a linguagem harmônica do choro é essencialmente tonal, o que a

diferencia do modalismo presente no baião, por exemplo. Nos choros tradicionais, os

desenhos rítmicos são particularmente determinantes para a caracterização de cada gênero,

por isso desenvolveremos as questões rítmicas ao observar cada gênero em particular.27

27 As questões rítmicas serão detalhadas na segunda parte do trabalho.

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5.4. Família choro: gêneros

A identificação dos gêneros musicais que integram o choro é um assunto repleto de

questões que mereceriam um detalhamento maior ou até outra pesquisa. No entanto, como

falar do choro, do forró e das bandas de pífanos sem falar dos gêneros que os integram?

Diante desse dilema e da necessidade de delimitar o estudo aqui realizado, optei por falar

dos gêneros a partir de fontes atuais e muitas vezes inéditas, que não configuram

propriamente um estudo de caso, mas sim a elaboração da experiência de músicos que

conhecem e praticam cada uma dessas linguagens.

Segundo Maurício Carrilho, os gêneros que compõem o universo do choro e seus

respectivos compassos são: a habanera, o lundú, a polca, o tango brasileiro, o maxixe e o

choro (todos em 2/4), a valsa e a mazurca (ambas em 3/4), o schottisch (em 4/4) e a

quadrilha, composta de cinco movimentos: I e III em 6/8 e II, IV e V em 2/4.

Veremos os principais deles separadamente, lembrando que a caracterização de cada

gênero é a combinação do ritmo melódico com o ritmo de acompanhamento. A maioria das

informações sobre os gêneros aqui descritas são interpretações do material recolhido

durante o primeiro e o segundo Festival Nacional de Choro, em 2005 e 2006,

principalmente nas oficinas de Composição, ministrada por Maurício Carrilho, e História

do Choro, ministrada pelo bandolinista e pesquisador Pedro Aragão e pela violonista e

pesquisadora Anna Paes.

a) A polca

De acordo com Pedro Aragão, a polca foi um gênero musical disseminado

rapidamente por várias partes do mundo no século XIX, com grande sucesso. Segundo ele e

Anna Paes, as primeiras polcas vieram da Tchecoslováquia, sendo que a primeira partitura

impressa em Praga data de 1837. Pouco tempo depois, em 1845, a polca teria sido

apresentada pela primeira vez no Rio de Janeiro. Como já vimos nas declarações de

Alexandre Gonçalves Pinto, a polca foi muito valorizada entre os chorões, além de estar na

origem de inúmeras combinações que originaram outros ritmos brasileiros, do forró ao

frevo.

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Há polcas em andamento vivo e outras líricas e nostálgicas, em andamento lento.

Algumas características estilísticas definem o gênero: melodias graciosas ou jocosas, com a

rara presença de síncopes. O tema, em geral, inicia-se na dominante. O acompanhamento

obedece a dois padrões diferentes, conforme a polca seja mais ou menos abrasileirada. Essa

diferença entre os dois tipos de polca foi notada por Mário de Andrade, conforme observa

Sandroni: “existem mesmo dois tipos de polca, e um dos critérios principais para

diferenciá-los é o dos padrões rítmicos no acompanhamento” (Sandroni 2001: 71). Vejamos

os acompanhamentos:

Enquanto o primeiro tipo de polca apresentado prioriza a terceira pulsação

do tresillo, além da célula rítmica característica das marchas ( ), o segundo

tipo caracteriza-se pelo uso da síncope no acompanhamento, ou seja, é mais

contramétrico.

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b) O lundu

Originalmente uma dança de roda angolana, caracterizada como uma dança de

umbigada e acompanhada por atabaques, ainda no século XIX. Mais tarde, o lundu seria

introduzido nos salões das cortes do Brasil e Portugal, sob a forma de canção,

acompanhado ao piano. No século XIX, passou a ser acompanhado ao violão e tornou-se

cantiga de escárnio, cultuada por artistas como Xisto Bahia.

A partir da integração do lundu com as danças européias, originaram-se novos

gêneros musicais como a polca-lundu e o tango-lundu, já recheados de síncopes. A partir da

afirmação de Sandroni: “é por síncopes que a música escrita fez alusões ao que há de

africano em nossa música de tradição oral” (Sandroni 2001: 26), podemos entender a

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interpretação de que o lundu seria “o principal canal por onde a influência africana chegou

ao choro” (Paes e Aragão 2005: 8).

c) O tango brasileiro

Sandroni (2001: 77 e 78) atribui à palavra tango o sentido de baile de negros, o

lugar onde os bailes eram realizados e a música que era tocada. Nesse sentido, o tango

brasileiro refere-se ao universo afro-americano e não à fusão da polca com danças

espanholas, como defendem Paes e Aragão (2005: 11).

A diferença entre o tango brasileiro e o maxixe também suscita interpretações

diversas ao longo da história. Maurício Carrilho enfatiza a diferença entre os dois gêneros,

observando que o maxixe passou a ser gênero depois de ser dança e por isso, é mais

extrovertido. Já o tango brasileiro é uma música mais séria, mais solene, própria para ser

escutada e não tanto para a dança.

Segundo Paes e Aragão, Henrique Alves de Mesquita foi o primeiro a compor

tangos brasileiros. Ernesto Nazareth foi um dos compositores que mais desenvolveu esse

gênero, incorporando a ele a rítmica própria da execução dos pequenos conjuntos de choro,

um exemplo da relação direta entre os choros dos conjuntos aos pianos, e vice-versa.

“Brejeiro”, de Ernesto Nazareth, é considerado o “tango clássico”, hoje constantemente

executado em rodas de choro.

d) O maxixe

Como destaca Maurício Carrilho, o maxixe é música de festa, de dança. Ele teria

surgido justamente como uma forma abrasileirada de dançar a polca, o tango, a habanera e

o lundu nos bailes populares da Cidade Nova (RJ). Depois de uma primeira fase em que foi

considerado dança indecente e, portanto, proibida nos salões da alta sociedade, o maxixe foi

aos poucos sendo incorporado ao repertório dos compositores de teatro de revista e aos

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salões das sociedades carnavalescas. Da interação entre dança e música, passou a ser

considerado um gênero musical, disseminando-se por todas as classes sociais.

No que se refere à música propriamente, além das diferenças já citadas, outro fator

que distingue o maxixe dos tangos brasileiros é a presença das “baixarias sincopadas” feitas

pelas tubas e outros instrumentos de sopro graves, nas bandas, ou pelo contracanto dos

baixos dos violões, nos conjuntos de choro.

e) O schottisch

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Segundo Paes e Aragão (2005), a schottisch, que quer dizer escocesa, seria uma

dança de origem alemã, levada para a Inglaterra e para a França na primeira metade do

século XIX e posteriormente introduzida no Brasil, em 1851, pelo professor de dança José

Maria Toussaint. Já sabemos que, no Nordeste, deu origem ao xote e no Rio de Janeiro, ao

schottisch, gênero de compasso quaternário, semelhante a uma polca “esticada”, menos

ritmada e de andamento mais lento. Iara, de Anacleto de Medeiros, cujo tema foi utilizado

por Villa-Lobos no Choros nº 10, é um dos schottischs mais conhecidos.

f) A valsa brasileira

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De acordo com Paes e Aragão, a valsa foi um dos primeiros gêneros europeus que

aportou no Brasil, ainda na segunda década do século XIX.

A valsa, assim como o schottisch e a polca, dentre outros, assumiu formas diferentes

conforme a região do Brasil ou a formação musical que a incorporou, das bandas de pífanos

à música de concerto. O que assemelha tantas expressões da valsa brasileira é o compasso

ternário característico.

Apesar de originalmente ser uma dança de salão, de par enlaçado, a valsa brasileira

tornou-se música mais para se ouvir do que para se dançar. Talvez por isso, a execução de

muitas valsas pelos chorões prima pela liberdade rítmica, o que acentua sua expressividade.

Como em todos esse gêneros, a partitura e a notação das levadas são apenas “mapas”. Nas

valsas, é a melodia que geralmente rege o conjunto, o solista podendo se antecipar ou

retardar em determinadas passagens, desafiando os acompanhantes.

(padrões rítmicos de acompanhamento no violão)

g) O choro

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Como visto anteriormente, no Rio de Janeiro do século XIX, a palavra choro

designava não só o grupo instrumental composto por flauta, cavaquinho e violão, mas

também o local onde esse grupo tocava para que os pares enlaçados dançassem as danças

européias já abrasileiradas. Joaquim Callado foi um dos primeiros músicos a constituir um

conjunto com essa formação chamado Choro Carioca, por volta de 1870. Em geral, nesses

grupos, os acompanhantes não liam, os copistas eram os flautistas. Daí a importância dos

“cadernos dos flautistas”, únicos registros escritos dessa cultura até então

predominantemente oral. No final do século XIX os choros já haviam incorporado novos

instrumentos como o clarinete, o oficleide, o trompete, o trombone e o bombardino. Nessa

época, a Banda do Corpo de Bombeiros, dirigida e fundada pelo maestro Anacleto de

Medeiros, era formada por muitos músicos vindos dos choros. (Paes e Aragão 2005)

Desde o século XIX, já eram editadas partituras para piano e os choros traduziam

para sua formação os ritmos europeus escutados ao piano, transformando-os. A

compositora Chiquinha Gonzaga teve papel primordial nessa passagem dos ritmos do piano

aos conjuntos de choro e também dos choros ao piano, incorporando os “sotaques”

característicos. São esses “sotaques” que, na virada do século XX, vão caracterizar e definir

o estilo interpretativo que passa então a ser considerado um gênero musical. Esse gênero

vai incorporar elementos de todos os gêneros que lhe deram origem, sua rítmica é, portanto,

bastante diversificada, baseia-se em combinações de grupos de semicolcheias e síncopes.

h) O choro-samba e o samba-choro

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O samba sempre esteve relacionado historicamente com o choro – a maioria dos músicos

que acompanharam cantores de samba era formada pela escola do choro: Pixinguinha,

Benedito Lacerda, Dino, Meira, Canhoto, entre muitos outros. A influência do choro pode

ser sentida também nas composições de muitos sambistas, como Nelson Cavaquinho – cujo

modo de tocar violão, repleto de baixarias, nos remete aos contrapontos do choro – ou D.

Ivone Lara, afilhada do chorão Candinho do Trombone, autora de composições com

sofisticação harmônica e melódica. (Paes e Aragão 2005: 21)

O choro-samba e o samba-choro são gêneros distintos que nasceram desta íntima

relação. Segundo Paes e Aragão, o samba-choro caracteriza-se por composições que

apresentam elementos rítmicos e melódicos próprios ao choro, mas são feitas originalmente

com letra. Não é o caso de choros que receberam letra posteriormente, estes são

simplesmente choros. Tal distinção faz lembrar que a palavra choro designava nas capas

dos primeiros discos de samba gravados o samba instrumental, do lado oposto aos mesmos

sambas cantados. O choro-samba, também chamado choro-sambado, por sua vez, é um

choro que apresenta características rítmicas e melódicas típicas do samba, como o ritmo da

levada de um tamborim de samba no acompanhamento (o samba de teleco-teco, como

veremos com Pernambuco do Pandeiro, no capítulo 8).

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5.5. Regionais

Com o início das gravações (1902) e, posteriormente, o advento do rádio (1922), a

importância do choro extrapolou os domínios da música instrumental. Além da “música

tocada”,28 os conjuntos de choro passaram a ser a base instrumental que acompanhava

cantores tanto nos discos como nas rádios. “A partir dos anos 20, na maioria das gravações

comerciais de samba, foram os músicos de choro que se responsabilizaram pelo suporte

harmônico e pela ornamentação melódica de flauta, trombone etc” (Sandroni 2001:105). A

formação que se perpetua a partir de então é destacada a seguir: “no solo, uma flauta,

bandolim ou clarinete dando a introdução para os cantores; na harmonização, um

cavaquinho e dois violões fazendo frases musicais ‘em terças’ alinhavados pelo ritmo de

um pandeiro de atuação discreta” (Prata 2005).

Até agora havíamos falado dos conjuntos de choro tradicionais, também

formados por violão, cavaquinho, flauta e outros instrumentos solistas. Mas o

pandeiro só aparece em um dos depoimentos de Alexandre Gonçalves Pinto,

quando ele fala de João da Baiana. Por volta de 1919, com Jacó Palmieri, do grupo

Os Oito Batutas, o pandeiro, além de outros instrumentos de percussão, torna-se

imprescindível à formação.

Pixinguinha e os Oito Batutas é o grupo que estará se apresentando na

ocasião em que o rádio fez sua primeira aparição pública e oficial no Brasil, em

1922, na Exposição Nacional, preparada para os festejos do Centenário da

Independência. Houve então a transmissão do discurso do Presidente da República

Epitácio Pessoa e da ópera “O Guarani”, de Carlos Gomes, diretamente do Teatro

Municipal. Em meio a tantas comemorações, configura-se o início da parceria entre

o rádio, que dava seus primeiros passos no Brasil, e a formação instrumental que

iria dar o suporte necessário para este novo veículo de comunicação: os conjuntos

regionais.

De acordo com Sérgio Prata, o nome “regionais” teria se generalizado a

partir da caracterização dos pernambucanos Turunas da Mauricéia, dos cariocas 28 Pernambuco do Pandeiro é quem vai chamar os choros e sambas instrumentais que gravou de “música

tocada”, como veremos no capítulo 8.

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Bando dos Tangarás, de Noel Rosa e Almirante, e do Bando do Caxangá, com

Pixinguinha, dentre outros grupos que na época se apresentavam vestidos com

roupas típicas do sertão (pelo menos 30 anos antes de Luiz Gonzaga e seu chapéu

de couro).

Em 1923, Roquete Pinto, antropólogo e educador, considerado o pai do

rádio brasileiro, e Henry Morize, cientista e professor, fundam a primeira rádio

brasileira: a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, criada para atuar sem fins

comerciais. Mas só na década de 1930 é que o rádio vai realmente se estabelecer

como um veículo popular e, através da publicidade, economicamente rentável. A

legislação promulgada em 1932 oferecia soluções para o problema da sobrevivência

financeira das emissoras e garantia ao Estado uma hora diária da programação em

todo o território nacional – o Programa Nacional. Em 1939, é criada a Hora do

Brasil. Em 1936, é fundada a Rádio Nacional do Rio de Janeiro que, em 1940,

torna-se estatal.

De meados dos anos 30 até o final da década de 50, uma das marcas registradas de uma

emissora de rádio era o seu regional. O Gente do Morro e Jacob e sua Gente eram da Rádio

Ipanema. Os Regionais de Benedito Lacerda e Rogério Guimarães atuaram vários anos na

Rádio Tupi. O Regional do Canhoto era exclusivo da Rádio Mayrink Veiga. Os Regionais

de César Moreno e Dante Santoro foram da Rádio Nacional. Na Rádio Mauá atuavam Jacob

e seu regional e os Regionais de Darly do Pandeiro e Pernambuco do Pandeiro. (Prata 2005)

Durante esses 20 anos, o rádio esteve diretamente ligado à profissionalização da

música popular no Brasil. De acordo com Pernambuco do Pandeiro, de quem falaremos no

capítulo 8, os conjuntos regionais eram os “tapa-buracos” das rádios, e daí sua importância,

uma vez que os músicos eram mestres no improviso e não necessitavam de arranjos e, às

vezes, sequer de ensaios, como explica Sérgio Prata:

A necessidade de se dar qualidade ao acompanhamento do samba, principal gênero popular

da época; a versatilidade para acompanhar calouros, já que os músicos de choro eram

mestres no acompanhamento “de ouvido”; uma bem-vinda praticidade, pois não

necessitavam de arranjos escritos, bastando saber o tom da música e acertar a introdução,

além de um inegável virtuosismo quando se tratava de apresentar o seu repertório de choro

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fizeram dos regionais a instrumentação musical ideal para a radiofonia brasileira, ainda em

formação. (Prata 2005)

Mas a profissionalização dos músicos nas rádios não se resumia à atuação nos

regionais, havia também as orquestras, na qual, além de músicos dos mais variados

instrumentos, havia trabalho também para os maestros e arranjadores. As primeiras

experiências do maestro Radamés Gnattali como arranjador, ao lado de Pixinguinha e

outros, datam de 1930, época da inauguração da Rádio Transmissora, que era da gravadora

Victor.

Pixinguinha trabalhava mais com arranjos carnavalescos, que eram o seu forte, ficando a

parte romântica comigo e outros maestros. Na orquestra Guarda-Velha, eu era o pianista e

Pixinguinha o arranjador. Nas músicas românticas, nos sambas canções, nas gravações de

Orlando Silva, eu era o arranjador e Pixinguinha o flautista. (Barbosa e Devos 1985: 34)

Enquanto, no Rio de Janeiro, Radamés desenvolvia formas de transpor a rítmica do

regional para a orquestra, adaptando as “baixarias” e os bordões do sete cordas para os

baixos e cellos, os violinos e violas assumindo as funções do cavaquinho e até dos

tamborins, no Recife, a rádio Jornal do Comércio, em ascensão, abria espaço para as

experimentações de outro importante maestro-arranjador: Guerra-Peixe.

Estive observando as Sociedades Carnavalescas. Tomei nota de muita coisa do maracatu,

principalmente. É difícil escrever esse negócio. Quase fiquei dôido!!! Mas consegui alguma

coisa e até já tive oportunidade de experimentar na orquestra da rádio. A não ser o

Radamés, eu duvido que algum músico que viva pelo sul seja capaz de escrever estes

ritmos. (Guerra-Peixe a Curt Lange, 12 de março, 1950)

Nesse mesmo ano, 1950, Hermeto Pascoal é convidado por Sivuca a integrar o

regional da rádio Jornal do Comércio, juntamente com seu irmão, José Neto. Já nesse

primeiro emprego formal como músico, o sanfoneiro estava muito atento aos sons e

acontecimentos à sua volta: “em Recife, eu tinha 15 anos. Lá conheci as cirandas, os

maracatus. Nas próprias orquestras das rádios tocava-se muito esses ritmos. Lá trabalhava o

maestro Guerra-Peixe, um excelente arranjador que fazia muita pesquisa folclórica”

(Pascoal 2006).

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No momento em que abraçava os ideais da música nacionalista, Guerra-Peixe viu

nas então chamadas “pesquisas folclóricas” uma via de estudo e incorporação dos

elementos nacionais que procurava. O trabalho na rádio foi para ele não só meio de

sobrevivência, como também laboratório para suas experimentações musicais. Guerra-

Peixe foi a primeira referência para Hermeto no que se refere ao trabalho de arranjador,

além disso, é preciso salientar a importância de suas pesquisas (sobre o maracatu, sobre as

zabumbas, como veremos a seguir) para o jovem músico alagoano.

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6. Zabumbas ou Bandas de Pífanos

6.1. Guerra-Peixe: o “rei da pesquisa”

Para Guerra-Peixe, o zabumba é um tambor grave, a zabumba é o conjunto musical.

O instrumento zabumba já foi mencionado por Hermeto, ao falar dos zabumbeiros de

Lagoa da Canoa, por Luiz Gonzaga, ao falar das bandas de pife do Araripe e também por

Rocha, ao falar dos ritmos do forró. Agora, falaremos das bandas, a partir de relatos do

próprio Hermeto e pesquisas em Caruaru, junto à Zabumba Dois Irmãos, de Seu João do

Pife.

Quanto à bibliografia consultada, é preciso destacar as pesquisas do compositor e

maestro Guerra-Peixe, que realizou pesquisas sobre o maracatu e as zabumbas no estado de

Pernambuco, onde Hermeto viveu. Guerra-Peixe foi seu contemporâneo na Rádio do Jornal

do Comércio, conforme narrado por Hermeto:

Guerra-Peixe era maestro lá na Jornal do Comércio, nessa época eu tinha 14 pra 15 anos. Eu

ficava no auditório assistindo os ensaios, ficava fascinado. Aquilo pra mim foi muito bom

porque nessa época eu tocava chorinho e forró. Eu via tudo aquilo, eu via que o Guerra-

Peixe tinha algo mais além de tocar, de fazer arranjos. Ele era também o rei da pesquisa

[grifo meu], ele ia para o interior pra ver os zabumbas, ele ia pessoalmente escutar o som

dos zabumbeiros... Naquele tempo ninguém dava valor, era música de cachaceiro... Eu

escutando tudo isso, de repente via a maneira dele fazer, pegar, transformar um arranjo.

(Pascoal 2005)

Guerra-Peixe se interessou justamente por algumas formações instrumentais que

faziam parte da infância de Hermeto em Alagoas, como as Zabumbas ou Bandas de Pífano,

e foi estudá-las. Para o jovem músico alagoano, recém-chegado na cidade de Recife, não

passou desapercebido o valor dado àquela música para ele tão cotidiana por um compositor

e maestro admirado por ele.

O pesquisador Guerra-Peixe concorda com o caráter típico da formação

instrumental das zabumbas:

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Por toda uma área que compreende os estados do Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte,

Paraíba, Alagoas, Pernambuco e pelo menos o norte baiano atua uma “banda” típica, ou

melhor, uma orquestra, cuja denominação mais usual é “zabumba”, o mesmo nome do

bombo popular. (Guerra-Peixe 1970: 15)

Em geral, essas bandas são formadas por dois pifes, o próprio zabumba e um tarol

ou caixa. Os nomes dados ao conjunto variam conforme a região, assim como os

instrumentos tocados, podendo ser acrescidos pratos, triângulo, pandeiro, um surdinho,

ganzá, dentre outros. O zabumba e os pifes parecem ser recorrentes como a base da

formação.

Os pifes, pífanos ou pífaros são flautas feitas artesanalmente de bambu (taboca).

Atualmente, devido à falta de matéria prima decorrente do desmatamento, os músicos

artesãos passaram a fazer pifes também de pvc. Seja qual for o material empregado, os

pifes apresentam sete orifícios − seis para digitação e um para sopro. Em geral, são flautas

transversais, diferentes das gaitas, que são flautas artesanais tocadas na vertical, como as

gaitas de caboclinhos, presentes no carnaval de Recife.

A formação instrumental que reúne o som dos pifes (em intervalos paralelos) à

percussão do zabumba, da caixa e dos pratos, dentre outros, possui vários nomes: banda ou

terno cabaçal, terno de couro, banda ou terno de pífanos, zabumba, terno de zabumba e

esquenta-mulher, como era conhecida por Hermeto em Alagoas.

Os relatos sobre as zabumbas ou bandas de pífanos indicam que originalmente eram

bandas ligadas às festas religiosas, que cumpriam as mais diversas funções sociais –

novenas, procissões, batizados, casamentos. Mas aos poucos foram tomando parte também

nas festas cívicas e finalmente nas profanas como forrós e carnavais. Tal separação às vezes

é problemática porque as próprias festas de São João são festas híbridas, religiosas e

profanas, como tantas outras em nossa cultura. Mas o que pretendo salientar é a

versatilidade de tais conjuntos, que dialogam tanto com as bandas de coreto quanto com as

procissões de beatas e os trios de forró. Todas essas influências estão presentes nas bandas

de pífano, como estão presentes na música de Hermeto.

Com o intuito de perceber a transposição musical da vida cotidiana feita por

Hermeto, no caso, das festas de rua vividas por ele, podemos escutar a composição “Santo

Antônio” (faixa 1, CD em anexo), gravada no disco Zabumbê-bum-á. Essa gravação é uma

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procissão de Santo Antônio musicada, ao invés do cortejo e das bandas de pífano,

escutamos a melodia nas flautas sobrepostas às vozes. É possível escutá-la lado-a-lado a

uma gravação de uma procissão de Santo Antônio em tempo real feita na Aldeia de

Pankararu do Brejo dos Padres (município de Tacaratu, em Pernambuco) em 13 de junho

de 2003 (faixa 2, CD em anexo), presente no disco Responde a roda outra vez (2004).

Nesta Festa de Santo Antônio, ouve-se a Banda de Pífanos de Zé Branco, que toca um

bendito, entremeada pelas vozes dos fiéis e os fogos de artifícios. Em épocas e contextos

distintos, ambas as gravações apresentam paisagens sonoras que podem ser relacionadas: a

sobreposição de vozes e melodias nas flautas, ambas as manifestações são dedicadas a

Santo Antônio. Se, da linguagem das bandas de pífano, por exemplo, Hermeto utiliza os

blocos paralelos e a polirritmia, ou seja, melodias em notas paralelas sobrepostas a uma

grande movimentação rítmica na base; a comparação nos permite observar que, para a

escuta de Hermeto, todos aqueles sons juntos são música, não apenas as melodias e ritmos

da banda de pífanos, mas a paisagem sonora inteira.

6.2. Repertório de brincadeiras

O repertório variado e eclético das bandinhas segue sua versatilidade. Elas tocam

desde músicas próprias, geralmente compostas pelos próprios pifeiros, até músicas

adaptadas de outras formações, como as bandas militares, as bandas de coreto, os trios de

forró, além de músicas ouvidas no rádio. Alguns ritmos e gêneros são mais comuns no

repertório: dobrados, marchas, valsas, baiões, polcas, xotes, dentre outros.

Várias semelhanças me saltaram aos olhos (e aos ouvidos) ao comparar as primeiras

gravações de choro com gravações recentes de bandas de pífano. De alguma forma, a

música das bandas de pífano preserva ares de um passado distante, resquícios de músicas

ouvidas no rádio misturadas às mais diversas influências. E tudo isso numa formação que

reúne os pífanos, flautas não tão diferentes das flautas de cinco furos utilizadas nos choros

do século XIX, aliadas à zabumba, ao tarol e aos pratos. Para os ouvidos de hoje, uma

mistura de trio de forró, banda militar e choros, com a cor inconfundível dos pifes...

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As bandas de pífano parecem ter, de alguma forma, conservado a tradição dos

choros que remonta ao final do século XIX, não só pela função semelhante que

desempenham, ao tocar nas celebrações religiosas durante o ano, em casamentos, bailes e

até no carnaval; mas também pelo repertório que reúne tantos gêneros antigos. Veremos

alguns desses gêneros a seguir, lembrando que é quase impossível esgotá-los, tendo em

vista a amplitude geográfica e temporal da tradição das bandas de pífano, além de não ser

este o principal objetivo deste estudo.

Os gêneros foram agrupados em “gêneros de todo dia”, que são os mais comuns,

presentes em qualquer tipo de festa; os “gêneros ligados às festas religiosas”, ou seja, que

geralmente dirigem-se a uma celebração específica (novenas, por exemplo) ou um santo em

particular (bendito de Santo Antônio, bendito de São Pedro, etc); por último, os “gêneros

onomatopaicos”, que julguei especialmente característicos dessa formação pelas

brincadeiras ou dramatizações que realizam ao imitarem sons da natureza ou do cotidiano à

sua volta. Devido à escassa bibliografia sobre o assunto, as descrições de cada gênero

baseiam-se sobretudo em minhas audições de gravações de bandas de pífanos, minhas

vivências musicais nessa formação e às pesquisas já citadas.

Gêneros de todo dia:

- marchas: são as marchinhas adaptadas das bandas militares; em geral alternam-se

duas partes, uma rítmica e animada, a outra mais solene e marcial. A presença dos

pratos de choque na banda acentua o caráter marcial. A banda dos irmãos Aniceto,

do Crato, por exemplo apresenta marchas de chegada e de saída. Há também as

marchas lentas, de procissão.

- samba: o samba tocado no zabumba é o “sambinha”, em diminutivo como as

“bandinhas” de pífano frente às bandas de coreto. A marcação no segundo tempo é

característica, a melodia tende a ser sincopada, com características de choro. Muitas

vezes a forma é aberta, recheada de improvisos e cadências dos pífanos em

ostinatos.

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- chorinho: o “chorinho de pife” como diz Seu João, é um samba abaianado onde

cabe um surdinho e até um triângulo. Os desenhos melódicos rítmicos e arpejados é

que dão o caráter da música.

- lundu: no caso das zabumbas, não estamos falando aqui do lundu-canção, mas de

um lundu próprio para a dança, primo do baião. A banda de Bendegó, por exemplo,

diferencia dois ritmos de lundu, um deles seria um toque antigo, semelhante ao

maxixe, o outro seria mais recente e assemelha-se ao baião.

- polcas: ritmo de origem européia, que no sudeste do Brasil deu origem ao choro,

mas que, como vimos, está associado aos mais diversos bailes brasileiros. As

bandas de pífano também tocam polca, advinda das bandas de coreto.

- valsa: ritmo ternário característico que faz parte da tradição mais antiga das bandas

de pífano, o que evidencia a influência européia da formação.

- rancheira: uma valsa rápida, mais próxima da mazurca, própria para a dança

animada.

Gêneros ligados às festas religiosas:

- bendito: ritmo lento e cadenciado utilizado em procissões. O compasso, variado,

acompanha a melodia que, por sua vez, parece acompanhar a marcha da procissão.

Pode apresentar compassos de dois, três, quatro e até cinco tempos. As melodias

lembram lamentações ou ladainhas, em que predominam as notas ligadas. Há

benditos que se apresentam sob forma de marchas ou dobrados.

- novena: gênero próprio das novenas, festas religiosas que duram nove dias na

preparação para o Natal. Acompanha procissões e rezas. Pode também apresentar-se

como “marcha de novena”, “marcha de procissão” ou “baião de novena”.

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Gêneros onomatopaicos:

- pipocas: gênero próprio das bandas de pífano, o que o caracteriza é uma das partes

da música, que é tocada nos aros dos instrumentos de percussão, imitando o som de

pipocas estalando.

- caborés: melodias repetitivas que imitam o som das corujinhas chamadas caborés.

Paralelamente, há grande movimentação rítmica nas percussões, em andamento

animado.

- briga do cachorro com a onça: uma dramatização musical, será explicada em

detalhes no final deste capítulo.

As bandas de pífano tocam também xote, xaxado, coco, frevo, maracatu, ciranda,

etc. No entanto, esses ritmos já fazem parte do repertório moderno das bandinhas, resultado

da interação dessas com outras formações como os trios de forró ou simplesmente com

músicas ouvidas no rádio.

O repertório ligado às festas religiosas em geral não se mistura ao repertório de

bailes e divertimentos. As bandas de Caruaru mais conhecidas e divulgadas pela mídia – a

Banda de Caruaru (cujos integrantes atualmente moram em São Paulo) e a Banda Dois

Irmãos – praticamente não tocam mais novenas e benditos, por exemplo. João do Pife, da

Banda Dois Irmãos, explica:

Nosso primeiro repertório, que não posso esquecer, vem do meu pai, ele me deu um bom

presente que foi o pífano e me ensinou a tradição tocando novena, nas festas de interior, eu e

meu irmão. Ele dizia: “João, não acabe não, que isso é bom, é a tradição...”. É uma raiz que

vem do meu pai e está mantida a palavra dele... Depois passei a morar em Caruaru, fazer o

pife, vender na feira... As gerações vão passando e essas gerações mais novas não sabem o

que é novena, então a gente tem outro tipo de repertório pra acompanhar o tempo: xote, pra

dançar, o baião, o forró que está na mídia...É uma mistura, a gente sempre coloca um

chorinho lá no meio, o chorinho de pife. Os tradicionais são a novena, rancheira, valsas, os

benditos de São Sebastião, Santa Luzia, Santo Antônio... Pra dançar, tem o xaxado, o xote, o

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baião, o forró... Estamos trabalhando em cima do maracatu que tem uma raiz forte na

capital... Tem vários ritmos porque nós precisamos variar. (João do Pife 2005)

João do Pife salienta a presença de choros compostos por ele e do maracatu, ritmo

que vem sendo cada vez mais difundido pela mídia, desde Chico Science. Diante dessa

necessidade de renovação, ele critica as bandas que, segundo ele, tocam sempre o mesmo

repertório, há décadas: “eu conheço muitas bandinhas em Caruaru, esses senhores lá nos

pés-de-serra... que ficaram naquele estilo de tocar novena, não procuraram, não se

interessaram em ensaiar outro repertório” (João do Pife 2005).

Hermeto acha o pife um “instrumento lindo” e as bandas “maravilhosas” mas, assim

como seu João do Pife critica as bandinhas do sertão, ele também reclama: “Desde que eu

nasci o repertório não mudou nada, está igual música erudita. Desde que eu me entendo por

gente essa música do cachorro e da onça está a mesma coisa” (Pascoal 2005).

A necessidade de renovação aparece na fala do músico, artista atuante no mercado

musical. Mas, por outro lado, será essa uma tradição musical preservada no Brasil? A

reclamação de Hermeto aponta a possibilidade de existirem no Brasil formações populares

tradicionais sujeitas a se transformarem em música erudita ou culta porque fazem parte da

cultura há séculos. Por outro lado, tanto a fala de seu João quanto a de Hermeto nos

remetem à suposta fronteira entre “música folclórica” e “música popular” (que discutimos

no capítulo 1), evidenciando a diferença entre o contexto das festas e dos rituais e o

contexto do rádio, dos shows e do disco. Enquanto, no primeiro, o valor principal seria a

continuidade, a manutenção da tradição, no segundo, o valor seria a novidade, a

transformação. A meu ver, não há que separar os dois contextos, mas sim mostrar que, na

música de Hermeto, eles são complementares: é ele que transforma o palco em uma festa de

rua, da mesma forma que transforma a feira de Caruaru em um palco, conforme narrado por

Ana Maria Bahiana (1980). Muitas bandas de pífanos também colocam em cheque essa

distinção, ao se apropriarem do espaço do palco para a realização de suas brincadeiras e

improvisações, em si bastante dinâmicas e criativas, contradizendo qualquer idéia de

tradição estática.

Além de ter tocado pife em sua infância, Hermeto teve contatos recentes com duas

bandas de pífanos bem conhecidas. Sobre a participação no show da Banda de Pífanos de

Caruaru, ele conta:

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Lá em São Paulo tem a Banda de Caruaru, uma vez fui a uma festa que eles estavam

tocando, foi no Brás, chegou lá, tinha falecido o pai deles e o cara chegou disse que estava

com o pife do pai dele e me pediu pra dar uma canja, tocou a que eu conhecia mais que era a

do cachorro com a onça, foi bonito, eu toquei, parecia que tinha ensaiado com eles...

(Pascoal 2005)

Em outra ocasião, chamou os irmãos Aniceto, do Ceará, para uma participação em

seu show, sobre esse episódio, ele diz:

Eu chamei o grupo pra dar uma canja, e disse: “vocês tocam o que quiserem”, eu tava com o

DX7 (teclado) e disse pro meu grupo: “eu vou harmonizar moderno em cima do zabumbeiro

e o velhinho vai olhar pra trás feliz, achando que coisa bonita, que coisa linda”. Aí tocaram

justamente essa “A briga do cachorro com a onça” que é o hino nacional do zabumbeiro...

Aí tocaram e quando eu fui entrar, o cara olhou pra trás... Eu toquei como se tivesse tocando

com o [meu] grupo, foi um sucesso tão grande... (Pascoal 2005)

Nessas apresentações, a improvisação é um elemento criativo compartilhado pelas

bandas de pífanos e por Hermeto. Juntos, eles transformam o palco em um espaço de

interação espontânea, semelhante à que ocorre nas festas de rua.

Além da improvisação constante, outra faceta criativa das bandas de pífano são as

brincadeiras. É comum as músicas imitarem sons da natureza, sons de animais ou mesmo

da cidade. Há um caso interessante narrado por Sebastião Biano, pifeiro e compositor da

Banda de Pífanos de Caruaru, em conversa informal com a autora. Ao falar da pipoca,

gênero musical próprio das bandas de pífano, Biano diz que criou músicas chamadas

pipocas escutando o estalar do milho quando sua mãe fazia pipocas. Mais tarde, ficou

curioso ao ver um tipo de pipoca industrializado e foi até a fábrica conferir como era feita.

A partir dessa escuta, teria inventado a “Pipoca Moderna” (célebre música gravada pela

Banda de Pífanos de Caruaru no disco Expresso 2222 de Gilberto Gil). Pelo menos desde

essa composição, Sebastião Biano já problematizou a diferença entre música popular e

folclórica.

Assim como as pipocas, em que os percussionistas tocam um ritmo nos aros dos

instrumentos imitando as pipocas estalando, há também os caborés, em que os pifes imitam

o som das corujinhas chamadas caborés. Mas a brincadeira mais difundida é sem dúvida a

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“Briga do cachorro com a onça”, citada acima, que é aqui descrita por Guerra-Peixe, com o

título de um dueto, “A onça e o cachorro”:

(1) toque de percussão por tempo indeterminado; (2) entram os pifes, “imitando os passos

do cachorro”, muda o toque da percussão, a melodia do cachorro se desenvolve em forma de

interlúdio; (3) a “luta”. A onça ataca o cachorro; (4) abatido “o cachorro geme”

(portamentos descendentes); daqui há volta ao começo, várias vezes; (5) final, reunindo

elementos melódicos diversos. (Guerra-Peixe 1970: 35)

Não por acaso a música de Hermeto está repleta de sons cotidianos, seja da

natureza, dos bichos ou de sons de casa. Essa prática de Hermeto é constantemente

relacionada à música de vanguarda do século XX – música concreta de Pierre Schaeffer,

ruidismo futurista de Luigi Russolo, uso de sons cotidianos por Jonh Cage – ou ao free jazz,

como veremos no próximo capítulo, no entanto, considero pertinente relacioná-la

primeiramente às bandas de pífano, como o próprio Hermeto reconhece:

Tem aquela coisa que eles gostam muito, de brincadeira, tem a “Briga do cachorro com a

onça”. Eu vivi isso, é por isso que eu imito as coisas com meus instrumentos, por

exemplo eu pego minha flauta transversa e imito um cachorro, é influência disso.

(Pascoal 2005)

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2ª parte > TACHO

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7. Escuta Hermeto

Esta música é uma mistura de chorinho com baião, samba e com tudo. Assim como o

tempo muda, tudo tem que evoluir sempre. [...] Esta música é uma mistura de mato com

asfalto... [...] Esta música é uma mistura de mambo em dois, com chorinho e feijão com

farinha e arroz, o resto é só tocar. Viva a inspiração! (Pascoal 2000: 147, 227, 253)

Até aqui, buscamos reconhecer a música presente em três formações instrumentais

das quais Hermeto participou: os trios de forró, os conjuntos regionais e as bandas de

pífanos, com o intuito de desenvolver uma trajetória desde a paisagem sonora vivenciada

por ele, repleta de festas e brincadeiras, até sua linguagem musical contemporânea.

Deste ponto em diante, o foco incide sobre a música de Hermeto e as

transformações rítmicas aí elaboradas, seguindo seu próprio relato: “Quando eu

cheguei no sul, eu fui juntando a música. A gente nunca fica fixo num estilo só, é

uma mistura” (Pascoal 2005). Para isso recorrerei às suas primeiras gravações ainda

com o regional de Pernambuco do Pandeiro e, em seguida, a composições escritas

por ele em partituras, além de gravações de suas composições. Antes das análises,

merecem atenção algumas considerações sobre a biografia de Hermeto e o

desenvolvimento de sua escuta.

7.1. Da paisagem sonora à linguagem harmônica

A partir de uma entrevista feita com Jovino Santos, músico que integrou o grupo de

Hermeto Pascoal, o pesquisador Costa Lima Neto, em sua dissertação “A música

experimental de Hermeto Paschoal e grupo (1981-1993): concepção e linguagem”,

desenvolve uma hipótese sobre a gênese da linguagem musical de Hermeto, sobretudo sua

concepção harmônica. O estudo de Lima Neto é muito interessante e relevante também

pelas análises musicais feitas e pela biografia de Hermeto. Neste tópico, busco dialogar

com ele, questionando algumas idéias levantadas e incorporando aquelas que considero

pertinentes ao meu próprio estudo.

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Segundo Jovino, a linguagem harmônica de Hermeto não se resume, mas se baseia quase

totalmente, em estruturas triádicas superpostas de maneira não funcional. Jovino levanta a

possibilidade deste procedimento harmônico ter se originado da sanfona de oito baixos

(também chamada no nordeste de pé de bode), que foi o primeiro instrumento do

compositor alagoano depois das flautas de galho de mamona e dos pedaços de ferro

percutido. A pé-de-bode possui dois sistemas de botões. O primeiro sistema produz notas e

serve para o instrumentista executar melodias. O segundo sistema de botões produz acordes

maiores, menores e dominantes, que servem para o acompanhamento. Por não ser

cromática, a sanfona de oito baixos não possui todos os tons, sendo por isso um

instrumento bastante limitado. Jovino nos relata que, na infância de Hermeto, este ia para o

“monturo” (o ferro-velho) de seu avô ferreiro e, batendo nos diferentes pedaços de ferro,

procurava suas notas fundamentais na sanfona, bem como os harmônicos que estas

produziam. (Lima Neto 1999: 6 e 7)

A partir dessas experiências Hermeto elabora “uma linguagem harmônica

parcialmente baseada em tríades, as quais ele superpõe umas às outras, gerando

agrupamentos verticais de maior ou menor complexidade e tensão intervalar” (Lima Neto

1999: 9). Segundo Jovino, ele teria desenvolvido esse sistema a partir da exploração de

sons do cotidiano (principalmente os ferros percutidos) e a tentativa de adaptar esses sons a

seu primeiro instrumento “convencional”, uma sanfona de oito baixos. Explorando o

instrumento, Hermeto acaba por desenvolver um jogo de superposições de tríades.

Simultaneamente, ele tenta reproduzir na sanfona as sonoridades inarmônicas dos

sons cotidianos, desenvolvendo também uma escuta ampliada. Dessa forma, ele teria

iniciado seu idioma harmônico. Mais tarde, Hermeto continua desenvolvendo esse processo

ao longo de sua carreira, seja na utilização recorrente de objetos e instrumentos não

convencionais em shows e gravações, seja na busca de sons e harmonias não convencionais

nos instrumentos utilizados em seu grupo: flauta, sax, teclados, baixo, bateria, percussão.

A escuta de Hermeto desenvolve-se de tal forma que sua linguagem harmônica cria

um universo próprio, recriado a partir da paisagem sonora que ele percebe no cotidiano.

Configura-se aí um interessante exemplo de uma paisagem sonora particular cujos

elementos acústicos permitem a criação de uma linguagem que associa timbre e harmonia.

Investigando as relações entre espectros e escalas, Sethares (1997) dá o exemplo das

orquestras de gamelan, da Indonésia, cujas escalas são diretamente correlatas ao espectro

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dos metalofones em que são tocadas. Segundo ele, também na música ocidental tonal,

existe uma estreita relação entre os tipos de sons produzidos pelos instrumentos e os tipos

de intervalos e escalas utilizados. Mas ele enfatiza que, apesar da música ocidental européia

se pautar fortemente em sons harmônicos, estes são apenas um tipo dentre uma gama

enorme de sons possíveis.

Hermeto, por sua vez, também utiliza os sons mais diversos em sua música. Por

exemplo, “Tiruliruli” e “Vai mais garotinho”, presentes no CD Lagoa da Canoa –

município de Arapiraca, são narrações de futebol que foram musicadas por Hermeto.

Nessas gravações, ele não só extrai a melodia da fala dos narradores como também

harmoniza as melodias tocadas, num processo que ele intitulou “Música da aura”. Os

exemplos são muitos, no CD Missa dos escravos, ele utiliza o grunhido de um porco, no

CD Hermeto Pascoal e grupo estão presentes cigarras e cachorros. Em seus shows é

recorrente a apresentação de uma música feita para canos de metal, “Entrando pelo cano”, e

outra feita para tamancos de tamanhos diferentes. Mais de uma vez já ouvi Hermeto

tocando uma chaleira com água, um copo d’água ou até mesmo sua própria barba. Qualquer

som para ele é matéria-prima.

As constatações elaboradas por Lima Neto são muito pertinentes no que diz respeito

à concepção harmônica desenvolvida por Hermeto e a relação desta com a paisagem sonora

de sua infância, mais especificamente os sons dos ferros percutidos, hipótese levantada por

Jovino. Mas a paisagem sonora vivida por Hermeto na infância era também rica em festas,

brincadeiras e folguedos populares, como estamos descobrindo. No entanto, logo após

levantar hipótese tão interessante, Lima Neto deixa a paisagem sonora em segundo plano e

passa à relação de Hermeto com o free jazz, rotulando suas demais influências de “música

brasileira folclórica”.

Ao investigar de onde teria surgido o que ele chama “experimentalismo” na música

de Hermeto, Lima Neto enfatiza a época em que ele viveu nos EUA, nos anos 1970,

salientando então a influência do jazz, frente à suposta influência da música erudita:

Talvez seja mais pertinente supor o aparecimento na linguagem de Hermeto a partir de

alguns procedimentos composicionais – como a atonalidade, o rompimento com a

regularidade do andamento, a improvisação extásica, o uso musical de ruídos, etc – mais

pela via free jazz do que pela música erudita contemporânea.... (Lima Neto 1999: 46)

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Ao fazer isso, Lima Neto desconsidera a experiência de Hermeto junto às bandas de

pífano, aos trios de forró, nos conjuntos regionais, dentre outros. Quando procura

redimensionar sua tese, a música presente na cultura popular vivida por Hermeto aparece

no discurso de Lima Neto como “música brasileira folclórica” em combinação com o free

jazz:

De qualquer forma, o free jazz apresenta apenas uma das várias facetas da linguagem de

Hermeto na década de 70 [...] já que a linguagem de Hermeto é realmente múltipla,

integrando e ultrapassando o próprio modelo experimental do free jazz, ao combiná-lo com

a música brasileira folclórica ou, alternando na mesma música trechos improvisados a la

free jazz, com outros totalmente tradicionais e arranjados. (Lima Neto 1999: 47)

O discurso de Lima Neto dá a impressão que ele partiu de premissas da música

erudita e também do jazz para entender a concepção musical de Hermeto mas, ao se

deparar, com a hipótese de Jovino (que Neto intitula “surpreendente versão nativa”), uma

nova via se abre. Ele constata que Hermeto nunca teve um contato sistemático com a

música erudita contemporânea e sua incorporação de elementos comuns a essa linguagem é

fruto de sua experiência pessoal. No entanto, a tendência em buscar referências musicais ao

mesmo tempo consagradas e generalizantes (música erudita, jazz) persistiu durante o seu

estudo. O próprio Hermeto vai questionar a idéia, em nota comentada por Lima Neto

referente à última entrevista feita por ele:

Ele [Hermeto] nos disse que o jazz influenciou sua música harmonicamente, mas que do

ponto de vista rítmico, se comparado à rítmica brasileira, este estilo é muito pobre. Quanto

à improvisação jazzística, Hermeto lembra que há outros modelos que o influenciaram

igualmente, como por exemplo os cantadores de embolada e os repentistas nordestinos.

(Lima Neto 1999: 54)

A meu ver, tal observação mereceria mais do que uma nota de pé de página. Se a

hipótese de Jovino evidencia justamente a importância das experiências sonoras de

Hermeto na infância, porque dar tanto peso às influências jazzísticas?

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As influências jazzísticas seriam, a partir dos EUA, mais fortemente assimiladas em sua linguagem,

na forma de longas improvisações atonais, dissolução do metro, pesquisa de timbres e com ruídos,

etc. Estas características experimentais parecem como já dissemos, ter influenciado Hermeto via free

jazz americano. (Lima Neto 1999: 55)

Ao dizer isso, Lima Neto desconsidera inúmeras referências anteriores de Hermeto:

as bandas de pífanos, os forrós, os maracatus, os regionais das rádios, dentre outras.

Hermeto passou pelo jazz, e pelo free jazz, como passou por várias outras formações

musicais. Dessa passagem, e da estadia nos EUA, mais do que as influências musicais, o

baterista Nenê destaca que Hermeto teria ficado mais corajoso, mais audacioso. Ou seja,

passou a valorizar mais a experimentação que ele já realizava, desde os pífanos de cano de

mamona, desde a sanfona de oito baixos...

7.2. Viva o som sempre29

No fundo, amanhã já é passado. Esse passado nos acompanha muito mais fortemente que

nossa sombra. [...] Ele passa na nossa frente várias vezes. Vive em nossa volta. [...] Por isso

não é preciso pensar no passado. Não precisa ser saudosista. Necessário é ter saudade.

(Hermeto 1998: 47)

Hermeto Pascoal, hoje com 70 anos, viveu grande parte do século XX e participou

ativamente da história da música brasileira. Em 2000, lançou o livro Calendário do som

onde, além das 366 partituras compostas por ele (uma para cada dia de um ano bissexto), há

também um verdadeiro diário registrado ao pé de cada partitura: são comentários,

anotações, lembranças evocadas pelas composições. Nesse diário, Hermeto tece uma

história não linear que acaba por revelar, em homenagens, muitas de suas referências. Farei

aqui, das palavras de Hermeto, uma breve biografia30.

29 Frase que acompanha a assinatura do compositor na maioria das músicas do Calendário do som. 30 As fontes das informações biográficas aqui destacadas são entrevistas com Hermeto (Pascoal 1998, 1999,

2005 e 2006), a entrevista com Pernambuco do Pandeiro (2006), o livro Calendário do Som (Pascoal 2000) e

a dissertação “A música experimental de Hermeto Paschoal e grupo: concepção e linguagem” (Lima Neto

1999).

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Compus essa música pensando nas bandinhas de música das cidades do interior de todas as

partes do mundo, porque elas são grandes fontes cristalinas de música. (Pascoal 2000: 403)

Hermeto nasceu no interior de Alagoas, no povoado de Olho D’àgua, perto da

cidade de Lagoa da Canoa, município de Arapiraca, em 22 de junho de 1936. Em sua

infância participou das mais diversas brincadeiras populares.

Esta música me lembra muito as festas de cavalhadas em minha cidade, Lagoa da Canoa.

[...] Me lembrei muito de Lagoa da Canoa e da banda de música Arapiraca tocando nas

praças e nas festas de fim de ano. [...] Compondo essa música me lembrei do carnaval de

Lagoa da Canoa, a mamãe me fantasiava de Catarina para brincar, com os meus oito anos.

(Pascoal 2000: 354, 288, 322)

Sua infância também é permeada por referências à natureza, aos animais e ao

trabalho na roça.

Esta música tem muito a ver com burro, jumento, galo, galinha, porco e todos os animais da

terra. Viva as boiadas e seus boiadeiros. [...] Escrevendo esta composição me lembrei muito

de quando eu andava pelas matas à cata de som, sempre encontrava. [...] Compus essa

música pensando muito nos aboios dos vaqueiros tangendo o gado pela estrada e às vezes

até tendo que atravessar rios e riachos, até chegar lá. Tenho tudo isso gravado em minha

mente. Viva o som, as idéias, as nuvens e as estrelas coloridas. (Pascoal 2000: 344, 407,

400)

Com o pai, Seu Pascoal, e o irmão, José Neto, tocou em festas de casamento e

forrós em Alagoas.

Viva a música sempre! Me lembrei muito dos arrasta-pés que eu tocava em minha terra

Lagoa da Canoa; começava a tocar na sexta-feira e só terminava na segunda à tardinha. [...]

Esta música lembra muito as festas de casamento que eu tocava três dias sem parar, até o

sol nascer. (Pascoal 2000: 398, 411)

Em 1950, Hermeto é convidado por Sivuca a integrar o regional da rádio Jornal do

Comércio, em Recife, juntamente com seu irmão, José Neto. Hermeto foi então com toda a

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família para Recife, onde passou a ter contato com as orquestras de rádio e com as festas

populares da cidade.

Esta música é muito parecida com aquele povo lindo de Recife; me lembro quando cheguei

lá com os meus 14 anos, sempre como observador na boa música. Aprendi muito escutando

os ensaios com os grandes maestros Clóvis Pereira, Guerra-Peixe, maestro Duda e muitos

outros. [...] Esta música lembra-me muito as cirandinhas de Recife e os frevos das ruas, e

compositores como Capiba, Nelson Ferreira e cantores como Claudionor Germano,

Expedito Baracho, Paulo Tito e tantos outros. (Pascoal 2000: 403, 411)

Em Recife, passou também pelo trio de albinos “O mundo pegando fogo”, com

Sivuca e José Neto, o nome do grupo referindo-se à cor avermelhada dos músicos. Além

desse grupo, Hermeto foi convidado por Heraldo do Monte a tocar com ele:

O Heraldo me chamou pra tocar numa boate no lugar de um pianista. Eu fui tocar, mas eu

não tocava piano. Ele disse “mas você é muito musical, você toque só na mão direita que eu

vou fazer na guitarra e quando o dono da casa passar eu fico na frente pra ele não ver a sua

mão esquerda”. E eu estudando... Quando eu melhorei, eu falei, não precisa mais... (Pascoal

2005)

Ainda na Rádio Jornal do Comércio, não eram só os ensaios de Guerra-Peixe que

interessavam a Hermeto...

Ia escutar um pianista que chamava-se Alberto Figueiredo, que tocava só Chopin, não

tocava mais nenhum compositor. Ele lia a partitura e criava. Aquilo pra mim foi muito bom

porque nessa época eu só tocava chorinho e forró. (Pascoal 2005)

Nessa época, Hermeto conhece também Jackson do Pandeiro, seu colega na Rádio

Jornal do Comércio.

Esta música lembra o grande e eterno Jackson do Pandeiro, pensei nele enquanto estava

compondo, tenho certeza que ele estava perto. É mais um som para a gente curtir. Viva a

luz e o som sempre! (Pascoal 2000: 406)

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Jackson já começava a ser reconhecido como cantor e Hermeto passou a substituí-lo

no pandeiro. No entanto, seria advertido pelo próprio Jackson a não aceitar tal substituição,

uma vez que havia sido contratado para tocar acordeom. Desse impasse resultaria um

desentendimento com seu chefe na rádio que levaria Hermeto a ser transferido para

Caruaru, onde passa a estudar teoria musical por conta própria.

Agora a minha memória foi parar em Caruaru, na Rádio Difusora onde eu fiquei mais de

três anos. Foi lá que aprendi a tocar sanfona junto com os grandes músicos hoje grandes

maestros, compositores e instrumentistas. Caruaru é José Gomes, o grande Omildo

Almeida, compositor daquela música linda que se chama “Feira de Caruaru”, também do

maestro Joaquim Augusto [...] a todos um grande som. (Pascoal 2000: 408)

Volta para Recife e vai para a Rádio Tabajara, em João Pessoa:

Compondo esta música me lembrei muito de quando tocava em conjunto regional em

Recife e João Pessoa [...]. Isso lembra-me muito os encontros dos músicos antes de

começar os ensaios do regional com os cantores e instrumentistas nas rádios. (Pascoal

2000: 369, 412)

Pouco tempo depois, é convidado a integrar o Regional de Pernambuco do

Pandeiro, na Rádio Mauá, Rio de Janeiro, ainda tocando acordeom.31 Com esse Regional,

Hermeto participa da gravação de três discos (conforme veremos no próximo capítulo).

Compondo essa música lembrei-me muito do grande amigo e incentivador Pernambuco do

pandeiro e seu regional; me lembrei também dos violonistas Jorge e Pingüim, Ubiratan e

seu cavaquinho. E um dos melhores flautistas de todos os tempos que se chama

Manuelzinho da flauta, e o grande Pernambuco. (Pascoal 2000: 405)

Hermeto participou também do Trio Surdina, formado por Garoto, no violão e pelo

violinista Fafá Lemos. Já no final deste trio, Hermeto entrou no lugar de Chiquinho do

acordeom. No entanto, no início dos anos 1960, houve uma mudança significativa no

31 Quando chega ao Rio de Janeiro, em 1953, Hermeto faz gravações com o irmão José Neto que nessa época

tocava no regional de Arlindo Branco, na Rádio Tupi.

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panorama musical nacional, a transição do rádio para a televisão, a divulgação da estética

da Bossa-Nova, houve então um declínio na carreira de Luiz Gonzaga. Dreyfus faz uma

caricatura da década de 60: “na rua, quem andasse com sanfona a tiracolo era motivo de

gozação. Na época, mais valia trocar o acordeom por um órgão” (Dreyfus 1997: 229).

Curiosamente, é mais ou menos o que Hermeto vai fazer, resguardando sua preferência

pelos sons acústicos.

Em 1961, Pernambuco é chamado a organizar seu regional em Brasília, quando

todos os componentes ganhariam do Presidente Juscelino Kubisctheck um emprego de

fiscal. Hermeto não pôde ir imediatamente porque tinha um contrato de ainda três meses no

Rio de Janeiro, para tocar com a orquestra do maestro Copinha. Mas a proposta do regional

em Brasília não vingou e os músicos se dispersaram, apenas Pernambuco fica em Brasília.

(Pernambuco do Pandeiro 2006)

Com o fim do regional, Hermeto dedica-se mais ao piano,32 na orquestra do maestro

Copinha e, em seguida, em boates na noite de São Paulo. Apesar das mudanças na

formação instrumental, a mão direita do pianista é a mesma que toca o teclado do

acordeom. Nessa época, começa também a praticar flauta e sax e conhece vários músicos.

Me lembrei de história que eu já contei para vários amigos, do tempo em que eu morava em

cortiço, tinha briga todos os dias mas eu sempre estudava no banheiro. (Pascoal 2000: 409)

A noite e os regionais das rádios foram as escolas de Hermeto, nas quais ele

aprendeu oralmente um vocabulário musical variado.

Esta música me faz lembrar muito o tempo em que eu tocava na noite para dançar. (Pascoal

2000: 396)

32 Pernambuco conta que, ainda no regional, conseguiu para Hermeto a chave do piano da rádio Mauá, e ele

sempre estudava antes dos ensaios.

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Em São Paulo, tocou com o Som 4, com o Sambrasa Trio (1965), com o Quarteto

Novo (1967) e com o Brazilian Octopus (1970). Participou de gravações com os três

últimos, nas quais já figuram composições de Hermeto.33

Esta música lembra-me muito o Quarteto Novo, quando estava compondo parecia tocando

com ele. Foi a partir do Quarteto Novo que me descobri mais como compositor e

arranjador. Viva o som sempre! (Pascoal 2000: 406)

Com o Quarteto Novo, também acompanha cantores e participa de Festivais da

canção, onde exercita sua prática de arranjos.

Compus esta música pensando muito nas coisas do carnaval: confete, serpentina, apitos e o

povo dançando nas ruas com o Edu Lobo cantando com seu violão diferente. É estilo

pessoal. Viva Edu Lobo! (Pascoal 2000: 403)

Em 1969, a convite de Airto Moreira e Flora Purim, vai para os EUA, onde conhece

os mais importantes músicos de jazz da época. A partir daí, Hermeto começa a ser

reconhecido internacionalmente. Só voltaria de vez ao Brasil dez anos e quatro discos

depois, quando congrega um grupo fixo de músicos, gravando mais seis LPs e ampliando

sua carreira internacional.

A casa de Hermeto, no bairro Jabour, Rio de Janeiro, vira referência para vários

músicos que vão até lá assistir aos ensaios. A cantora Joyce fez a música “Na casa do

campeão” onde ensina o caminho para se chegar lá. O grupo de Hermeto torna-se então

uma verdadeira escola,34 onde ele vai aplicar e continuar a desenvolver sua concepção

musical. Esse grupo teve várias formações. Inicialmente participaram o baterista Realcino

Lima Junior (o Nenê), o flautista Mazinho, o baixista Anunciação, a cantora Rosemaire

Pidner (Zabelê), o flautista Cacau, dentre outros. Passaram pelo grupo também os bateristas

Paulo Braga e José Eduardo Nazário e o saxofonista e flautista Nivaldo Ornelas. Durante os

33 Apesar de “O ovo” ser constantemente apontada como a primeira composição gravada de Hermeto, em

1965 ele já havia gravado a música “Coalhada” com o Sambrasa Trio. No entanto, “O ovo” (com o Quarteto

Novo) foi a mais divulgada. 34 Sobre os ensaios na casa de Hermeto ver Lima Neto (1999: 60-75)

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anos 1980 e 1990, os músicos que permaneceram foram o baixista Itiberê Zwarg e o

baterista Márcio Bahia. O percussionista Fábio Pascoal (filho de Hermeto), o flautista e

saxofonista Vinícius Dorin e o pianista André Marques se juntaram a eles. O percussionista

Pernambuco35, o flautista e pianista Jovino Santos e o flautista e saxofonista Carlos Malta

saíram do grupo nos anos 1990.36

Obrigado ao Márcio Bahia, Itiberê, André, Vinícius, Fábio, Pernambuco e Manoel. Viva o

som sempre. (Pascoal 2000: 404)

7.3. Teoria musical feita em casa

Porque música não é para entender, é para sentir. Como é que você vai entender o vento?

(Hermeto 1998: 51)

De origem humilde, albino e com a visão prejudicada, Hermeto era recusado pelos

padrões escolares que não se adaptavam às suas diferenças. Além disso, não podia ajudar

na lavoura por ser albino. Segundo seu próprio relato, seu pai o deixava sozinho debaixo de

uma árvore quando o sol estava muito forte. Esse isolamento forçado fez com que ele

desenvolvesse formas próprias de estar no mundo, de se comunicar e de brincar, o que ele

acabou conseguindo através da música. Em prefácio ao livro Calendário do som, o

jornalista Sergio Cabral assim define o músico:

é um desses brasileiros que, pela determinação e pelo talento, conseguiram superar as

deficiências do nosso sistema educacional. Nascido e criado numa região desprovida de

35 O percussionista Pernambuco, aqui citado, que participou do grupo de Hermeto nos anos 1980 não é o

Pernambuco do Pandeiro, seu homônimo, de cujo regional Hermeto participou ainda nos anos 1950, como

veremos no capítulo 8. 36 Desde 2003, Hermeto não mora mais no Jabour. Mesmo sem ensaios regulares, o grupo continua atuante.

Recentemente, a escola de Hermeto tem dado frutos também através dos músicos que dela participam ou

participaram, por exemplo o baixista Itiberê criou a Itiberê Orquestra Família; o flautista e saxofonista Carlos

Malta fundou os grupos Coreto Urbano e Pife Moderno; o pianista André Marques participa do trio Curupira.

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escolas de música [...] tornou-se um dos nossos grandes instrumentistas, um magnífico

arranjador e um compositor tão maravilhoso quanto original. (Pascoal 2000: 11)

Essa faceta da história de Hermeto simboliza a contradição evidente entre ensino

musical e criação musical no Brasil. Apesar do aprendizado musical espontâneo desde

muito cedo, como já foi dito, explorando sons da natureza, ferros de seu avô ferreiro até a

sanfona de oito-baixos de seu pai, Hermeto teve muita dificuldade ao tentar ter acesso a um

aprendizado formal de teoria musical, devido à sua visão debilitada. Depois de algumas

tentativas frustradas, só foi aprender um pouco de teoria quando já era músico profissional:

A teoria musical eu vim aprender depois de meus 35 anos de idade, aprendendo com a

vida, sem escola sem nada. Nunca estudei com nenhum professor. Infelizmente porque

isto me tomou muito tempo. Aprendo as coisas com deduções, porque Deus fez o mundo

bem feito, tem uma lógica para tudo. Não tem esse papo de isso não tem lógica. Quando

não tem lógica é porque não existe. Outros confundem lógica com padrão. Tá errado!

Padronizar as coisas não tem nada a ver com lógica. (Pascoal 1999)

Seu aprendizado informal deu origem a uma concepção de música totalmente ligada

à vida cotidiana, inspirada pelos motivos e sons mais diversos, desde o jogo do Fluminense

até o balançar das cortinas de sua casa. A integração entre a linguagem musical e a vida

evidencia-se também em sua teoria musical: “O ritmo casou com a harmonia. Nasceu o

tema. (...) A menina chama-se melodia” (Pascoal 1998: 51); ou “são tantos os caminhos

harmônicos para a gente percorrer que digo com muita convicção: a harmonia é a mãe, o

ritmo é o pai e o tema é o filho” (Pascoal 2000: 402). Para ele, a música é o casamento da

mãe-harmonia com o pai-ritmo, que dá origem à filha-melodia e ao filho-tema. Muitas

vezes, harmonia e ritmo ficam por conta dos filhos mais novos, que fazem muita arte...37

A teoria em torno da linguagem musical de Hermeto envolve também

denominações próprias para os conceitos e elementos musicais mais utilizados. Como

vimos, a síncope é “garfinho”, a marca contramétrica que caracteriza o tresillo é a

“pendurada”; além das expressões correntes utilizadas: o “chão” seria a referência de

metricidade, “quebrar tudo” é priorizar os acentos e ritmos contramétricos, ou seja, “fora do 37 Idéia sugerida por Felipe José Oliveira Abreu, violoncelista mineiro que participou da Itiberê Orquestra

Família.

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chão”, e assim por diante. São denominações que se referem ao cotidiano, à casa, à família

e às ações corriqueiras: quebrar, pendurar... Ou simplesmente ao desenho das figuras

rítmicas recorrentes: as pontuadas, o garfinho.

O aprendizado tardio de regras e conceitos da teoria musical tradicional causou um

certo estranhamento no compositor acostumado a compreender o mundo através de uma

reflexão cotidiana e uma escuta ampliada:

Foi por volta dos 45 anos de idade que eu descobri que a teoria, não a música, tem doze

notas. [...] Aí eu me decepcionei e por um momento me deu um branco na cabeça. Meu

Deus, quer dizer que tudo que eu faço é com essas doze notas? Eu me esqueci de pensar

que nas cores você tem o azul claro, o azul escuro, você tem a areia branca, a areia

vermelha e nessa hora não me veio que na música eu tenho as oitavas, tenho as quartas, as

quintas, para me tranqüilizar. [...] Ficou chato naquela noite porque eu queria fazer uma

composição e na minha cabeça tinha notas que não existiam na notação convencional. É

por isso que tem a percussão e os sons dos bichos. (Lima Neto 1999: 193)

Mas tal aprendizado não o limitou, pelo contrário, a liberdade e as brincadeiras

caracterizam suas composições. Esse viés lúdico da composição de Hermeto foi estudado

por Tato Taborda (apud Lima Neto 1999), que fez um paralelo entre Hermeto e Pierre

Schaeffer. Taborda estabelece um território de contato entre o universo popular e o erudito

que ele chama “música de invenção", nesse ínterim, ele fala sobre as brincadeiras de

Hermeto com os objetos sonoros, referindo-se à hipotética aproximação entre Hermeto

Pascoal e Luigi Russolo ou Hermeto e Pierre Schaffer, de onde aponta o caráter lúdico da

atividade criativa de Hermeto.

Como bem assinala Tato, o experimentalismo em Hermeto está bastante relacionado à

espontaneidade e ao prazer. A nosso ver, isso se deve ao fato da exploração sonora estar

associada fortemente ao brincar. A música, desde Lagoa da Canoa, sempre foi para

Hermeto seu maior brinquedo. Privado das brincadeiras sob o sol com as outras crianças,

Hermeto parece ter canalizado seu ludismo totalmente para as brincadeiras sonoras. Ainda

hoje, a busca de Hermeto pelo inusitado é alegre e não tem a seriedade de algumas

correntes contemporâneas que racionalizam muito o experimento. (Lima Neto 1999: 15)

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Em sua dissertação, Lima Neto enfatiza alguns princípios relativos à concepção

musical de Hermeto:

• a postura criativa do músico, predominantemente voltada para a esfera do sensível,

para a intuição e para a prática;

• a prática musical consistindo em três etapas de um “ritornello infinito”: a livre

exploração do som (harmônico ou inarmônico); a representação escrita, que, por sua

vez, torna-se uma estrutura-base para outras improvisações;

• a busca sistemática do alegre, do inusitado, da surpresa;

• a exploração musical lúdica, diretamente ligada ao cotidiano;

• a percepção ampliada de Hermeto, que ele parece ter conservado desde sua infância.

A concepção da linguagem musical de Hermeto está diretamente ligada às suas

reflexões, às suas brincadeiras, à sua escuta ampliada. Sua trajetória musical está permeada

por essas relações, é a partir delas que ele vai transformar suas inúmeras influências, da

música das bandas de pífano do interior de Alagoas aos regionais do choro. Apesar de

Hermeto se considerar um autodidata, nessa dissertação procuro mostrar justamente como

as bandas de música (de coreto, de forró, de pífanos) e os regionais das rádios foram suas

primeiras “escolas” de música.

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8. Hermeto do choro ao forró

8.1. Pernambuco do Pandeiro

Pernambuco do Pandeiro é um capítulo à parte. Desde que comecei a pesquisar a

história de Hermeto no choro, aparecia esse nome – Pernambuco do Pandeiro – como uma

referência importante, quase uma lenda. No seu rastro, surgiam informações

desencontradas sobre o disco Batucando no morro, uma raridade. Até que (surpresa)

descobri que Pernambuco do Pandeiro não é apenas uma lenda, mas uma lenda viva! E que

mora em Uberaba, nem tão longe de Belo Horizonte. Fui então procurá-lo.

Pernambuco do Pandeiro, hoje com 81 anos, é um senhor cheio de carisma e

energia, que toca pandeiro com a propriedade de quem fez história no rádio brasileiro. Sem

querer, descobri, logo ali em Uberaba, um mestre da escola de pandeiro do choro carioca.

Seu espírito brincalhão, comunicativo lembrou-me logo Hermeto.

Já na sala de visitas de sua casa, as paredes repletas de fotos revelam desde a

história do rádio brasileiro até a criação do Clube do Choro em Brasília, do qual ele é um

dos fundadores. São fotos e mais fotos, Pernambuco participando de várias gerações da

música brasileira: com Waldir Azevedo, Luiz Gonzaga, Carmélia Alves, Carmem Miranda,

Abel Ferreira, Paulo Moura, Claudionor Cruz. Dentre estes e tantos outros, destaca-se uma

grande foto com três barbudos de cabelo branco: Pernambuco, Sivuca e Hermeto. A cada

história que ele contava eu não sabia mais se Pernambuco estava me fazendo descobrir

Hermeto Pascoal ou se era o Hermeto que me fazia descobrir esse outro personagem da

música brasileira.

Pernambuco, ou melhor, Inácio Pinheiro Sobrinho, nasceu em Gravatá, interior de

Pernambuco, mas foi criado na Paraíba, na cidade de Lagoa da Roça de São Sebastião. Em

1936, quando Hermeto ainda estava nascendo lá em Alagoas, Pernambuco, com 12 anos,

mudava-se com a família para o Rio de Janeiro. Trabalhava como engraxate, tocava

cavaquinho, mas logo interessou-se pelo pandeiro, com o qual, além de tocar, fazia

malabares. Morou no morro de São Carlos. Na Lapa teve contato constante com a boemia

musical da cidade. Conheceu um grupo de chorões que tocava na casa do Professor

Waldemar, “uma casa da maior freqüência de choristas, a casa do compadre de Pixinguinha

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lá no Catumbi” (Pernambuco 2006). Sobre o Pixinguinha, ele conta: “Não era Pixinguinha,

era Bixiguinha que a vó dele chamava...” (Pernambuco 2006).

Com 16 anos, Pernambuco tentou a sorte num programa de calouros da Rádio

Mayrink Veiga e teve êxito. Logo seria chamado a tocar em regionais e acompanhar

cantores. Arlindo Ferreira foi quem o batizou de Pernambuco do Pandeiro. Na década de

1940, acompanhou Araci de Almeida, Angela Maria, Francisco Alves, Ari Barroso,

Adoniran Barbosa, participou dos regionais de Henrique Xavier Pinheiro, César Faria e

Dona Paula (pais de Paulinho da Viola), Jacob do Bandolim, Claudionor Cruz, Benedito

Lacerda, tocou com Pixinguinha, Carlos Poyares, Waldir Azevedo... Nos anos 1950,

Pernambuco cita dois acontecimentos marcantes para sua carreira: a turnê com Carmélia

Alves (a rainha do baião) pela Europa, quando também morou em Portugal, e a “Primeira

Caravana Oficial da Música Popular Brasileira”, da qual faziam parte Pernambuco, Sivuca,

Guio de Moraes, Abel Ferreira e o Trio Irakitan, excursionando pela Europa em missão do

governo brasileiro.

No contexto dos regionais das rádios, os percussionistas eram então chamados

ritmistas. Além do pandeiro, Pernambuco tocava também caixeta, ganzá38 e zabumba. No

pandeiro, desenvolveu muitos toques diferentes. Tocando só as platinelas, ele imita um

ganzá, uma frigideira ou castanholas; friccionando o centro da pele, ele faz uma cuíca; com

o dedão, ele faz um surdo grave e sonoro... Ao tocar cada parte do pandeiro separadamente

ele explica porque o pandeiro é uma pequena escola de samba. Além desses, faz também

estripulias de malabarista e um rulo perpétuo, desenhando um “8” na pele, toque que ele

chama de “cascavel”.

Pernambuco cita outros colegas ritmistas que trabalhavam nas rádios como ele:

Risadinha, Pingo, Gilberto (segundo ele, o pandeirista preferido de Jacob), Catamilho e

também o então jovem Jorginho do Pandeiro. Pernambuco e Catamilho tocavam também o

zabumba. Catamilho era o zabumbeiro de Luiz Gonzaga e tinha esse nome, segundo

Pernambuco, porque fazia um tal movimento com os dedos quando tocava pandeiro que

parecia que ele estava catando milho.

38 Caixeta é uma caixinha de madeira, também chamada woodblock, tocada com uma baqueta numa das mãos,

tal qual um tamborim, e às vezes uma moeda fazendo as “respostas” na outra mão. O ganzá de que falamos

aqui é um chocalho de forma cilíndrica geralmente feito de metal.

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Do mesmo modo que Hermeto e Luiz Gonzaga, como descobrimos na 1ª parte da

pesquisa, Pernambuco também trabalhou na ponte entre o choro e o forró, ou seja, nos

regionais, onde tantos ritmos, gêneros e experiências musicais se encontravam e se

misturavam. “Em todos os regionais do Rio de Janeiro eu toquei, passei pela peneira de

todos. Aí fiz o meu” (Pernambuco 2006). Com tanta bagagem e experiência, Pernambuco

funda em meados de 1950 seu próprio regional, em cujas gravações vamos encontrar Jorge,

Gaúcho, Pingüim, Ubiratan, Manuelzinho, alguns dos companheiros já citados por Hermeto

e, para nossa surpresa, o próprio Hermeto, com 18 anos, recém-chegado de Recife.39

8.2. Batucando no morro ou no arraial?

Pernambuco falando sobre o Hermeto: “Grande monstro. Maravilhoso. Ele não

aprendeu comigo. Você precisa ver o que ele e o Escurinho40 fazem no disco!”

(Pernambuco 2006). Mas a semelhança entre Pernambuco e Hermeto não deixa dúvidas,

existiu ali uma forte relação de aprendizado e convivência musical.

Em sua casa, Pernambuco apresentou-me não apenas o disco Batucando no morro

(que eu já havia procurado sem sucesso), como também outros dois discos que ele gravou

nos anos 1950 – No meu Brasil é assim e No arraial de Santo Antônio. O regional dessa

vez foi do morro ao arraial, passando pelo samba, pelo choro, pela valsa, pelo forró... Em

todos os três discos, lá está o balanço do acordeom de Hermeto. Antes dele, haviam

passado pelo regional os acordeonistas Toninho, Auro Gaúcho, Reginaldo da Silva

(Caçulinha) e Edinho; Hermeto entrou no lugar desse último.

O Hermeto tinha um irmão que já tocava no Rio, chamava-se Zé Neto. O irmão falava

muito nele; dizia: “Pernambuco, dá uma chance para o meu irmão, eu trago ele”. Quando

dei cartão vermelho para o Edinho, o Hermeto já não estava na Rádio Jornal do Comércio,

em Recife, ele já estava na Rádio Tabajara, na Paraíba. Mandei um telegrama para o

Hermeto “Venha para o meu regional, o seu lugar está garantido”. Um dia, eu estou na

rádio Mauá com o meu regional, aí entra o Zé Neto, aí me lembrei do recado... Então

apareceu lá o ratinho branco [Hermeto] com 80 baixos... (Pernambuco 2006) 39 Depoimento de Pernambuco do Pandeiro sobre a chegada de Hermeto no regional, ver DVD em anexo. 40 Escurinho é Manoel Gomes, o Manezinho da Flauta, que dividia os solos com Hermeto, como veremos a

seguir.

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a) No meu Brasil é assim

O LP No meu Brasil é assim, da gravadora Copacabana, data de 1954. Este disco

começou a ser gravado com oito faixas, que era o padrão da época, mas foi finalizado com

doze faixas. As sete primeiras faixas já estavam prontas quando Hermeto entrou no

regional, por isso ele só toca nas cinco últimas e seu nome sequer aparece nos créditos do

disco.

A formação do regional que gravou esse disco contava com Manoel Gomes (o

Escurinho da flauta), Gaúcho (acordeom), Jorge da Silva e Darli Louzada (violões de sete

cordas), José de Freitas (violão de seis cordas), Vicente de Paula, (o Pingüim do

cavaquinho), o mestre da Banda do Corpo de Bombeiros Paulo de Souza (bombardino),

José Américo (Tuba), além do próprio Pernambuco no pandeiro. Juntaram-se a eles Abel

Ferreira (saxofone) na gravação da valsa “Dolorosa Saudade” (Ratinho), Caçulinha

(acordeom) em “Casinha Pequenina” e Hermeto Pascoal (acordeom) nos choros

“Relembrando os coroas” (Pernambuco do Pandeiro e M. Rodrigues) e “Dinorah”

(Benedito Lacerda e José Ferreira Ramos);41 nas valsas “Maria das Dores” (H. Xavier

Pinheiro), na já citada “Dolorosa Saudade” e “Sulimar” (Manoel Gomes).

41 Pesquisas recentes de Maurício Carrilho e Anna Paes para a coleção “Princípios do choro” (Rabello e

Carrilho 2001) descobriram que a música “Dinorah” já existia: chamava-se “Flor de Liz”, tendo sido

composta por Cícero Telles de Menezes ainda no século XIX. A partitura de “Dinorah” em que constam

Benedito Lacerda e José Ferreira Ramos como compositores apresenta pouquíssimas alterações em relação à

original.

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Os testemunhos de Pernambuco sobre as composições e gravações são

particularmente interessantes. Na gravação de “Dolorosa Saudade” ele conta que Abel

colocou um lenço dentro do saxofone para abafar um pouco o som do instrumento. Na

música “Casinha Pequenina” ele diz que fez um arranjo “em quatro ritmos” e destaca o

“jogo de fole de Sivuca” que ensinou ao acordeonista Caçulinha. “Maria das Dores” ele

classifica como uma “valsa para coreto”. O compositor da valsa “Sulimar”, Manoel Gomes,

é o Escurinho da flauta, também chamado de Manezinho ou Manuelzinho, companheiro

inseparável de Pernambuco e, a partir de então, também de Hermeto. É dele que Hermeto

está falando quando diz: “... e um dos melhores flautistas de todos os tempos que se chama

Manuelzinho da flauta” (Pascoal 2000: 405).

Pernambuco conta que Hermeto sempre estudava antes dos ensaios, muitas vezes

junto com o Escurinho. No choro “Dinorah” (“Flor de liz”, para sermos justos), por

exemplo, o entrosamento entre os dois solistas principais é impressionante (faixa 3, CD em

anexo). Na introdução, um pandeiro e uma caixeta. Escurinho e Hermeto revezam-se entre

as partes do choro; o fraseado deles vai muito além da partitura. O pandeiro de Pernambuco

faz uma cadência antes da parte A final, Hermeto entra solando em seguida, desdobrando a

melodia e, no último tema, eles fazem o que Pernambuco chama de “zigue-zague”:

Hermeto faz a melodia e Escurinho faz o eco. Escutando a música, Pernambuco conclui:

“nós não fazíamos choro quadrado” (Pernambuco 2006).

b) Batucando no morro

A marca registrada do regional de Pernambuco do Pandeiro não poderia deixar de

ser o naipe de percussão: “regional de pandeirista!” (Pernambuco 2006). Os arranjos não

deixam por menos: tem caixeta, surdo, ganzá, reco-reco, tamborim, solo de cuíca, de

pandeiro... E no meio da batucada, Hermeto Pascoal e Escurinho fraseando as melodias e

improvisando.

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Na foto da capa, aparecem Escurinho (flauta), Pernambuco (pandeiro), Hermeto

(acordeom), Jorge (violão de sete), Nilton (violão de seis) e Ubiratan (cavaquinho). Além

destes, participaram das gravações Amaro (baixo), Paulinho (bateria) e o conjunto “Os

Batuqueiros”, formado por Bucy Moreira e Arno Canegal (tamborins), Gilberto (surdo),

Raul Marques (agogô), Boca de Ouro (cuíca) e Tufy (afoxé), Pernambuco também fazia

parte desse conjunto.

Na contracapa do disco, lê-se: “está em suas mãos um LP de autêntica música

popular brasileira, do chamado Samba de Telecoteco”. A música popular brasileira (da

definição de Oneyda Alvarenga) parecia estar então em evidência, buscando a autenticidade

antes atribuída ao folclore. “Samba de Telecoteco” refere-se ao ritmo do tamborim de

samba, como lembrou Pernambuco: “teco-teco-teleco-teco-teco-teco-teleco”, que pertence

ao “Paradigma do Estácio” (Sandroni 2001).

O repertório do disco intercala samba e choro, mas são todos “música tocada”, ou

seja, instrumental.

Eu aproveitei nesse disco para lembrar dos grandes. Não é que estavam esquecidos, mas é

que não davam chance de tocar música “tocada”. Música tocada nunca foi muito aceita,

principalmente esse gênero que eu fiz. Eu fui um que abri caminhos para a música tocada.

(Pernambuco 2006)

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Muitos dos sambas gravados nesse LP, Pernambuco já os havia gravado

acompanhando cantores e resolveu gravar instrumental, com arranjos criativos, cheios de

improvisos. Dentre os choros gravados, ele cita “Chorinho em Aldeia”...

do grande Severino, grande amigo, companheiro, tirei ele de um jogo de damas pra ele

escrever a grade, ele escreveu. Você vai ver o que Hermeto vai fazer aí de acordeom...

Coisa impressionante... Era uma figura, como eu lhe disse, fazia aquilo com alma, com uma

simplicidade tremenda.... (Pernambuco 2006)

“Fracasso” também é um choro, no qual Hermeto faz o solo na região grave do

acordeom; a escala utilizada lembra música espanhola (modo frígio), enquanto Escurinho

improvisa. A última música do LP é uma composição de P. Sobrinho, o próprio

Pernambuco: chama-se “Deixando saudades” (faixa 4, CD em anexo). Ao escutar esse

choro, Pernambuco lembra que Hermeto pedia o acordeom do irmão José Neto emprestado,

porque o dele era 80 baixos, enquanto o do irmão tinha 120 baixos.

Pernambuco destaca o disco Batucando no morro como o mais importante dos três

que ele gravou com o regional e, segundo ele, teria ganho um grande prêmio, não fosse o

voto contrário de um jornalista que não aceitara justamente a presença do acordeom no

samba. Coincidência ou não, o próximo disco que ele escolhe gravar é um disco de forró...

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c) No arraial de Santo Antônio

O último LP gravado pelo regional de Pernambuco do Pandeiro foi No arraial de

Santo Antônio, em 1958. Segundo Pernambuco, nesse disco, ele fez uma “bandinha”,

acrescentou ao regional a tuba e o bombardino, instrumentos típicos das bandas. Para isso,

chamou o mestre da banda do Corpo de Bombeiros na época, que se chamava Agobá, no

bombardino, e José Américo, na tuba. Além deles, participam do disco Abel Ferreira no

clarinete, Paulinho na bateria – “para fazer os pratos da banda!” (Pernambuco 2006) – e o

regional: Pernambuco, Hermeto, Jorge, Ubiratan e Darli.

A música que dá nome ao disco, “No arraial de Santo Antônio”, é um dobrado: os

metais acentuam o caráter de “música de banda” e a tuba muitas vezes faz também a

melodia. Os compositores são Frederico Freitas e Júlio Dantas.

Como não poderia faltar no “arraial”, há uma polca bem tradicional, com caixa,

bumbo e pratos: a “Polquinha mineira” (faixa 5, CD em anexo) de Abel Ferreira, que sola

ao clarinete. Nesse disco, como o próprio nome sugere, predomina o “clima” de forró,

desde o título das músicas - “São João do carneirinho”, “Noites de junho”, “Baião da

garoa”, “A dança da moda” - até os instrumentos utilizados na percussão, destacando a

zabumba e o triângulo.

O compositor Luiz Gonzaga é lembrado com três músicas: “A dança da moda”,

“Assum preto” e “Baião da garoa”. Pernambuco (ou P. Sobrinho) também aparece como

compositor de forró nas músicas “Quando vovô era menino”, junto com Washington

Fernandes, e “Delirando”, com Luiz Gaúcho. Há também um “arranjo circense” de “São

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Paulo quatrocentão” (Garoto/ Chiquinho), que lembra a chegada do circo em cidades do

interior.

Nos arranjos das músicas, além da formação, destaca-se o cuidado com a dinâmica,

a alternância entre piano e forte. O grupo estava bem ensaiado e equilibrado, lembrando

que as gravações eram “ao vivo”, ou seja, todos juntos, com pouquíssima possibilidade de

edição posterior.

Tuba, bombardino, clarineta, acordeom, zabumba, triângulo, caixa-clara, bumbo e

pratos... A formação é uma mistura de banda de coreto com trio de forró; aliás a primeira

não deixa de ser uma das origens do segundo. Se Hermeto já convivia com sonoridades

semelhantes em sua terra natal, no regional de Pernambuco ele pôde desenvolvê-las em

arranjos. Os arranjos do disco lembram circo, bandinhas e forrós do interior, ótimos para se

dançar... seria em Lagoa da Canoa?

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9. Choros e arranjos de Hermeto

9.1. Salve Copinha, Abel, Pixinguinha...

Além das referências ao regional de Pernambuco do Pandeiro, no Calendário do

som, Hermeto faz uma genealogia do choro, pontuando uma certa relação com o jazz

americano e com o cinema, de forma bem humorada:

Esta música se parece muito com as escadas antigas dos sobrados velhos que quando a

gente pisa faz um som alegre e as passadas lembram filmes do cinema mudo e os

músicos tocando chorinho tipo jazz americano, Abel Ferreira, Pixinguinha, Copinha,

Radamés, Altamiro Carrilho, Jacó do Bandolim, Valdir Azevedo e outros. (Pascoal 2000:

304)

Cada um desses personagens listados por Hermeto tem seu respectivo papel no

desenvolvimento da linguagem do choro. Hermeto participou e ainda participa dessa

história. Com Abel Ferreira, como vimos, ele tocou desde choro até forró, ainda no regional

de Pernambuco do Pandeiro. De Pixinguinha, ele gravou, no disco A música livre de

Hermeto Pascoal, um dos choros mais conhecidos: o “Carinhoso”, com um arranjo em que

mistura influências do choro, em contracantos elaborados, e do jazz, acrescentando uma

parte para improvisos de saxofone e flautas. De Pixinguinha, ele gravou também a valsa

“Rosa”, numa leitura livre, com improvisos, em piano solo.

Gravei Rosa do Pixinguinha que era uma música que eu tocava muito no tempo em que

tinha um regional lá em Caruaru. Sempre achei que era uma melodia linda que pedia uma

nova vestimenta. Agora soltei as pétalas da rosa e na música elas vão voando e se juntam

de novo. (Pascoal, Por Diferentes Caminhos 1988)

No Calendário, Hermeto lembra do dia 23 de abril: “Hoje o céu está em festa, é

aniversário do grande mestre Pixinguinha [...] Em nome do som e do povo, meus parabéns”

(Pascoal 2000: 347).

A referência ao Maestro Copinha na primeira citação lembra-nos que Hermeto

participou de sua orquestra, sendo este outro importante mestre para o músico. No disco

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Brasil universo, Hermeto gravou o choro “Salve Copinha” (faixa 6, CD em anexo), em

homenagem ao maestro. Esse é um dos choros de Hermeto que mais segue a forma

tradicional, pois apresenta três partes distintas: divide-se em introdução, partes A, B e C,

volta para o A e termina com uma coda. Ao final da parte B, Hermeto muda a divisão

rítmica, inserindo quiálteras na melodia, recurso que ele utiliza em muitos choros, para

fazer a transição entre as partes.

Radamés Gnattali também é uma constante referência de Hermeto, por quem ele

nutre grande admiração, segundo Márcio Bahia. O baterista cita a música “Mestre

Radamés”, de Hermeto Pascoal, na qual o compositor explora a linguagem da bateria

(veremos essa música em detalhes no próximo capítulo).

Márcio Bahia, que toca com ele desde 1981, concorda com a importância dada aos

conjuntos regionais e ao choro na formação musical de Hermeto:

No começo do grupo, quando a gente ensaiava todo dia, sempre tinha um choro no

repertório. Ele tem essa linguagem do choro muito bem fundamentada, ele aprendeu

tocando nos regionais. Ele tocava acordeom e pandeiro no choro. (Bahia 2005)

“Chorinho pra ele” e “Intocável” são choros bem conhecidos de Hermeto Pascoal,

que ele gravou respectivamente nos discos Missa dos escravos e Só não toca quem não

quer. Ambos apresentam algumas características próprias aos choros tradicionais, o

compasso 2/4, duas partes distintas e bem desenvolvidas (embora a maioria dos choros

apresente três partes), melodias em âmbito extenso com desenhos que provocam um efeito

de falso-contraponto, bordaduras e ornamentos etc. Ritmicamente, há um uso recorrente de

quiálteras que articulam frases e partes distintas. Particularmente no “Chorinho pra ele”,

acontecem breques em que o solista faz cadências curtas em quiálteras. Ao final, o

andamento é “dobrado”, um recurso recorrente em rodas de choro, em gravações de

músicas nordestinas e choros, como por exemplo “Brasileirinho”, de Waldir Azevedo. No

choro “Intocável”, a formação aproxima-se da convencional pela presença da flauta e do

violão de sete cordas, tocado por Rafael Rabello.

Além dessas músicas, há outros choros de Hermeto gravados: “Sorrindo”, no disco

Hermeto Pascoal e grupo; “Chorinho Mec”, no disco Eu e eles; “Música é que nem filho, a

gente faz e depois dá o nome” e “Vocês me deixam ali e seguem no carro”, gravadas pelo

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grupo de choro Galo Preto. Apesar de não ser propriamente um choro, mas um baião,

“Bebê”, como já foi dito, também foi gravada por grupos de choro.

Ao falar sobre os choros de Hermeto, Bahia destaca harmonia e melodia: “No

choro, ele faz uma sofisticação em seus elementos, sobretudo harmonia e melodia. O que

eu noto é que ele respeita o idioma do choro, mas ele brinca também com a parte rítmica”

(Bahia 2005). Sobre a parte rítmica, Bahia cita a recorrência de quiálteras, elemento que

Hermeto desenvolve ao brincar com a divisão rítmica, fazendo as alterações transpassarem

a melodia várias vezes, naturalmente. A “sofisticação” parece estar também nas melodias

cheias de acidentes e cadências que surpreendem.

Uma das características que geralmente surpreende na música de Hermeto Pascoal é

a transformação dos ritmos brasileiros tradicionais (baião, maracatu, frevo etc) através da

mistura entre elementos de cada um deles, da mudança de compasso ou da adoção

deliberada de compassos de 5 ou 7 tempos, que não são comuns em nossa tradição musical.

Márcio Bahia aprendeu grande parte dos ritmos brasileiros com Hermeto. Sobre

essa aprendizagem ele diz que Hermeto “sempre mistura com outras coisas, ele muitas

vezes mostra o ritmo já híbrido” (Bahia 2005). No Calendário do som, o próprio Hermeto

assume a mistura, ao falar da composição do dia 25 de outubro: “Esta música é uma

mistura de chorinho com baião, samba e com tudo. Assim como o tempo muda, tudo tem

que evoluir sempre” (Pascoal 2000: 147).

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9.2. Um chorinho em sete

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A música “1º de fevereiro de 1997”, do Calendário do som é, segundo o

compositor, “um chorinho em sete” (Pascoal 2000: 246). Esse foi o único choro encontrado

no repertório de Hermeto Pascoal que não apresenta o compasso 2/4 tradicional. Segundo

seu próprio relato, trata-se por isso de um choro que alude a uma transformação: “Vai para

vocês mais uma em sete por quatro. Me inspirei num chorinho. Acho que já está na hora de

tocar chorinho em sete para acostumar. É o barato” (Pascoal 2000: 246).

No Calendário do som, cada partitura é um desenho, ocupando o espaço de uma

página: acabou o papel em branco, acabou a música... Em meio às notas desenhadas, há

comentários, palavras, desenhos... A barra de compasso vira um passarinho. Na notação do

compositor, os traços entre as hastes das notas parecem indicar também a articulação da

melodia, o próprio desenho das notas sugere que elas estejam ligadas ou desligadas. Logo

abaixo da melodia, Hermeto indica o ritmo da base harmônica. Ao ler o desenho do

primeiro tema, já podemos imaginar a articulação sugerida:

Da nota sol inicial até a nota sol que inicia o quarto compasso, ele tece uma frase

articulada e melodiosa, cujo caráter lembra um choro antigo, dolente. Nem parece que o

compasso não é nada convencional. Ao final do quarto compasso, a melodia faz um “quatro

contra três”, ou seja, divide os três tempos em quatro notas de duração semelhante. Esse

recurso de polirritmia é bastante usado por Hermeto: são as “pontuadas”:42

42 Esse recurso é tão característico da linguagem de Hermeto que é simplesmente chamado de “as pontuadas”

pelos músicos da Itiberê Orquestra Família, segundo informação de Felipe José Abreu.

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Tem-se a impressão que diferentes pulsações rítmicas perpassam suas músicas

causando modulações também nesse parâmetro. Muitas vezes, a “frase polirrítmica”

provoca um efeito de articulação de uma frase ou parte para a outra, como acontece nos

compassos a seguir (4, 8 e 15):

No 13º compasso, ele indica uma interpretação, “bem ritmado”, o que sugere que a

base rítmica deve dobrar a pulsação. O caráter contrasta com o do trecho inicial. Aqui o

caráter rítmico da melodia predomina, sugerindo um breve ostinato. A figura que se repete,

uma bordadura cromática e um salto, também é característica do choro.

Ao final do compasso 15, surgem novamente as pontuadas, sugerindo mais uma vez

a articulação entre partes distintas. Lembrando que a pulsação mínima aqui é a colcheia,

Hermeto utiliza várias frases rítmicas muito encontradas nos choros, todas elas baseadas em

grupos de colcheias, no garfinho (síncope) e outras variantes do tresillo, ou seja, muitas

passagens contramétricas, além das polirritimias já citadas. Em relação à melodia, ele

costura sem hesitar passagens lineares dentro da escala prevista e saltos ou intervalos

inesperados.

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Ao mesmo tempo em que conhece as características do gênero a ponto de chamar a

música de choro, Hermeto as extrapola. Nessa música particularmente, ele não utiliza o

compasso convencional de 2/4, nem a forma ternária característica. No entanto, ele mesmo

fala que a música é um choro e deve ser tocada como tal. Ao escutarmos a música, notamos

que ela remete ao universo do choro e pode muito bem ser tocada por flauta, pandeiro,

violão de sete cordas e cavaquinho. O compasso em 7/4 provavelmente provocará mais

estranhamento nos músicos de choro acostumados com o compasso binário tradicional do

que no público leigo, a quem só interessa a escuta agradável. Mas a análise também

demonstra que apesar da mudança do compasso e forma, a música apresenta muitos

elementos do gênero choro na construção e desenvolvimento da melodia.

A seguir, faço um detalhamento da análise da peça de Hermeto a partir dos

parâmetros propostos por Dante Grela, que ajudam a perceber as unidades formais que

compõem a melodia.

Como vimos no capítulo 5, um choro tradicional é geralmente constituído de três

partes (A, B e C), contendo cada uma 16 compassos. O modelo freqüentemente utilizado na

elaboração de cada parte seria: o tema seguido de uma resposta suspensiva (1º motivo) e

outra vez o tema, seguido de uma resposta conclusiva (2º motivo). Ao compor uma melodia

em 7/4, Hermeto transforma esse modelo. O tema está presente, representado por a

(exposição), mas sua divisão não obedece à quadratura normal do choro. Ao invés de

apresentar dois motivos, divide-se em três sub-partes: a1, a2 e a3. Podemos observar que

a1 e a2 apresentam respostas suspensivas e apenas a3 apresenta uma curta resposta

conclusiva, logo quebrada pela polirritmia articulatória, característica de Hermeto.

O choro se divide em duas grandes partes (A e B), cada qual apresenta duas sub-

partes menores: a e b, c e d. Outra interpretação possível seria identificar a sub-parte a

como tema principal, e as demais partes como variações desse tema, uma forma livre que

sugere uma linguagem de improviso. Mas, entendendo cada variação como uma parte

distinta, podemos dizer que, após o tema inicial (a1, a2, a3), há uma breve transição que

desemboca na parte b, caracterizada por uma variação do material exposto em a. Em

seguida, vem a parte c que sugere uma transformação e maior desenvolvimento do material

harmônico. Segue uma passagem que caracteriza uma interjeição, ou seja, uma função de

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tipo exclamativo, desempenhada por unidades que provocam uma interrupção do sentido

discursivo. É o que acontece em d1, uma passagem essencialmente rítmica, um ostinato.

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A sub-parte d2 não chega a ser uma “resposta conclusiva” porque a harmonia faz a

transição de volta ao início da música. Por fim, e representa uma codetta final ou extensão

conclusiva.

Quanto à harmonia, a primeira parte começa em tom menor (Cm), passando em b

para o tom da subdominante (Fm). Em seguida, a parte c modula para C maior (homônimo

maior). A instabilidade harmônica impera, assim como a melodia raramente conclui,

também a harmonia segue numa progressão movimentada que só repousa ao final.

A unidade formal dos motivos fica clara se observamos os desenhos rítmicos que

Hermeto utiliza. Muitas vezes ele utiliza o mesmo desenho, mudando apenas as alturas da

notas, às vezes utilizando arpejos, outras vezes bordaduras ou repetições. A melodia

transcorre lírica e chorosa não deixando dúvida sobre o gênero da música: um choro. Em

7/4.

Tanto no repertório gravado quanto nas partituras editadas, compassos em cinco e

sete são freqüentes. A utilização desses compassos aliada à mistura dos ritmos provoca uma

linguagem rítmica ao mesmo tempo complexa e assimilável, porque transforma a tradição

sem perder seu élan, sua vitalidade, seus princípios, o que Hermeto, afinal, vivenciou: uma

tradição viva, em constante transformação. No próximo capítulo, vamos investigar mais de

perto a linguagem rítmica de Hermeto.

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10. Rítmica brasileira via Hermeto Pascoal43

Se juntamos um bombo, dois pratos de choque e uma caixa-clara temos a base

percussiva de uma banda de pífanos? Sim, mas se todos esses instrumentos estão sendo

tocados por um só músico, aí temos uma bateria.

Para investigar a linguagem rítmica da música de Hermeto, os bateristas Nenê e

Márcio Bahia são referências fundamentais. Foram eles os bateristas que gravaram em

quase todos os discos do grupo de Hermeto e trabalharam mais tempo (contratempo,

tercina, síncope) com ele. Nesse capítulo falaremos da concepção rítmica de Hermeto sob o

ponto de vista de cada um deles.

Inicialmente, ambos destacam o aprendizado dos ritmos brasileiros com Hermeto e,

a partir daí, o desenvolvimento de uma linguagem de bateria brasileira. Se, num primeiro

momento, Nenê enfatiza a improvisação e as brincadeiras rítmicas, Márcio, por sua vez, me

mostrou partituras escritas por Hermeto para bateria, dentre as quais ele destaca a partitura

da música “Mestre Radamés”, que analisaremos no tópico 10.5.

10.1. Bateria brasileira?

Antes da bateria, Nenê tocou acordeom e nesse instrumento conheceu o choro. Mas,

diferentemente de Hermeto, Nenê veio do Rio Grande do Sul e suas referências no

acordeom eram bem diferentes das nordestinas. Sua formação na bateria também passava

longe dos ritmos nordestinos, enfatizando a bossa nova e o jazz: “o Hermeto me mostrou

essa parte do Brasil que eu desconhecia, lá no sul ninguém tocava esses ritmos brasileiros

porque achavam que era brega, tocar baião, xote, essas coisas, a moda era tocar jazz” (Nenê

2005).

Ao entrar para o Quarteto Novo,44 a proposta era radicalmente diferente do que ele

já conhecia, a ponto de ser “proibido improvisar como americano” (Nenê 2005). Em 1966,

43 Nome sugerido pelo baterista Márcio Bahia. 44 Antes de entrar para o Quarteto Novo, Nenê tocava com José Neto, o irmão de Hermeto.

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faziam parte do Quarteto Novo45, além de Hermeto (flauta e piano), Heraldo do Monte

(viola caipira e guitarra), Téo de Barros (violão e baixo) e Airto Moreira (bateria). Em

1969, o grupo se dissolve. Nenê tocou com eles só a partir de 1968, quando Airto foi para

os EUA.

Apesar de sua meteórica carreira, o Quarteto Novo afetou toda uma geração de músicos, de

Edu Lobo a Tom Jobim, ao combinar percussão, viola caipira, violão, flauta, bateria, piano

e guitarra. A proposta original do Quarteto Novo veio de Geraldo Vandré. Segundo ela, o

Quarteto deveria trabalhar exclusivamente com a música brasileira. Segundo Hermeto, a

proposta nacionalista de Vandré foi um dos motivos para que o Quarteto durasse tão pouco

tempo: “Quando eu dava um acorde bem moderno, as pessoas falavam criticando: acorde

de jazz não pode. Mas não era acorde de jazz, era minha cabeça que estava querendo. A

música é do mundo. Nós não somos donos dela. Querer que a música do Brasil seja só do

Brasil, é como ensacar o vento e ninguém consegue ensacar o som”. (Lima Neto 1999: 44)

Até então, Nenê vinha da escola da bossa nova, junto com Paulo Braga e

Robertinho Silva, segundo ele, todos seguidores do estilo do baterista Edson Machado. A

partir do Quarteto Novo, Nenê foi sendo influenciado pelo estilo de Airto Moreira, que

acabara de sair do grupo, mas deixava suas composições e idéias. Hermeto também já

atuava como o mestre que ele se tornaria anos mais tarde: “ele dizia: Você conhece

maracatu, esses ritmos brasileiros? Então você vai aprender comigo... Agora eu vou te

passar essa batida e você faz a seu modo...” (Nenê 2005).

Maracatu, caboclinhos, baião, xote, coco, xaxado... Nenê nos lembra que “o

Hermeto, além de ser pianista, flautista, arranjador, é também um ótimo percussionista”

(Nenê 2005). Ao adaptar os ritmos que aprendia com Hermeto para a bateria, Nenê foi aos

poucos criando um estilo próprio de tocar:

Uma bateria brasileira: o estilo que eu criei, que eu toco hoje, veio dessa época porque ali

eu fui obrigado a tocar de uma maneira que ninguém tocava. Ele [Hermeto] tinha músicas

já, ele tinha a parte composicional toda sofisticada e toda vinda da música de base, da

45 Embora Lima Neto (1999) afirme ser no Quarteto Novo a primeira experiência de Hermeto como

compositor e arranjador, ele já compunha e arranjava com o Sambrasa Trio, com o qual gravou um disco, em

1965, do qual participaram, além de Hermeto, Humberto Clayber (baixo) e Airto Moreira (bateria).

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música popular, ele precisava também modificar o ritmo, foi o que ele me passou. (Nenê

2005)

“Modificar o ritmo” não era apenas aprender os ritmos brasileiros que Hermeto o

ensinava e adaptá-los para a bateria, era também aprender a tocá-los em compassos os

mais variados...

No Quarteto Novo, tinha um samba em sete. Eles tocavam garota de Ipanema em 7/4, na

boate... Pegavam qualquer música e faziam em sete. Eu nunca tinha tocado em 7/4. Eu

sabia que existia, mas não era comum. Era chato de tocar. Quando eu entrei no Quarteto

Novo, tinha uma música... (era uma música do Airto), qualquer coisa que eu fizesse, eu me

perdia. Eles dominavam esse negócio e na hora do improviso era pior... eles não davam

nenhum acento no tempo forte, eu tinha que me concentrar. Tocar com compasso composto

no começo é assim, depois você vai dominando e é igual a um dois. Tocar solto sem ficar

marcando o tempo, porque antes eu tocava compasso composto marcando o tempo. Fica

feio quando você faz os acentos, não pode ter o acento pra ficar flutuando... Tocar aberto...

(Nenê 2005)

Nenê chama os compassos de cinco e sete tempos de compassos compostos. Nesse

caso, o termo não tem o mesmo significado da teoria musical clássica européia, onde

compasso composto é aquele cuja pulsação mínima (ou subdivisão) é três. Aqui Nenê está

se referindo aos compassos que apresentam um número de pulsações (unitárias ou

metronômicas) ímpar maior do que 3, geralmente formado pela soma de 3+2 ou 3+2+2, ou

seja, apresentam 5 ou 7 pulsações, dentre outras possibilidades.

Apesar desse procedimento adotado pelo Quarteto Novo não ser tão comum na

época, Nenê cita alguns compositores que se aventuraram a explorar compassos diferentes:

Luiz Eça, Edu Lobo. Segundo ele, na Bossa Nova, o samba em três já foi uma inovação.

“Depois, teve uma época que o Ciro Pereira tocava tudo em 5/4, samba em cinco” (Nenê:

2005).

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10.2. Coalhada de ritmos

A música de Hermeto, desde a primeira composição gravada, “Coalhada” (em 1965,

no disco Sambrasa Trio em Som Maior), apresenta compassos variados. Particularmente,

sobre os compassos de 5 e 7 tempos (que Nenê chama de compostos), Hermeto comenta:

Essa idéia eu só vim descobrir quando aprendi teoria com 42 para 43 anos. Na verdade eu

já fazia isso, assim como os africanos, o pessoal do interior, que faz isso e nem sabe.(...) E

até hoje eu só percebo em que compasso eu compus uma música, quando eu escrevo ela. E

tocando, eu nunca quero saber em que compasso está a música. Eu sinto e toco. Isso me dá

mais liberdade. (Hermeto 2006)

Como vimos, para Hermeto, o som vem sempre antes da teorização. E, de fato,

quando gravou a música “Coalhada” (faixa 7, CD em anexo) pela primeira vez,46 em 1965,

com o Sambrasa Trio, Hermeto ainda não dominava bem a escrita musical. Coincidência ou

não, essa composição já está “coalhada” de inúmeras características rítmicas que vão

identificar a música de Hermeto:

• material rítmico que mistura elementos de várias tradições: choro, forró,

samba, bandas de pífanos, bandas de jazz; convenções rítmicas baseadas no

padrão do tresillo, ou seja, a imparidade rítmica impera numa rítmica

predominantemente contramétrica;

• simultaneidade de pulsações diversas, não apenas os níveis já identificados

(pulsação métrica, unitária e mínima), mas também a coexistência de

pulsações que ora subdividem o pulso intermediário em duas ou quatro

pulsações mínimas, ora em três pulsações mínimas;

• a partir desse tecido de pulsações diversas, o “chão” muda constantemente,

conforme o ciclo de pulsações que está em evidência, ou seja, a percepção

das acentuações fortes e fracas varia, de modo que a percepção da

metricidade torna-se relativa. Por exemplo: uma mesma pulsação mínima

46 Em 1971, Hermeto gravou novamente a música “Coalhada” no disco Brazilian Adventure, nos EUA.

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pode ser agrupada de 3 em 3 ou de 4 em 4, o que resultaria em 3 ou 4

pulsações unitárias a cada ciclo de 12 pulsações mínimas. Se consideramos

as pulsações unitárias subdivididas em 4, evidencia-se um “chão”, mas se

consideramos aquelas subdividas em 3, temos outro “chão”.

chão 1 • • • (pulsação unitária quaternária)

(pulsação mínima) chão 2 • • • • (pulsação unitária ternária)

• a pulsação métrica, por sua vez, nem sempre é constante, uma vez que o

compasso não precisa se manter como um ciclo estável;

• no entanto, em meio à irregularidade, há momentos em que uma “levada” ou

base rítmica constante é repetida.

Numa breve análise rítmica da música “Coalhada”, podemos reconhecer muitas das

características pertinentes para a compreensão da linguagem rítmica de Hermeto. A música

começa com convenções quebradas” de baixo, piano e bateria, baseadas no padrão do

tresillo e figuras contramétricas, o garfinho (ou síncope). A parte A aparece em seguida,

com um uma frase tocada no tempo e depois a mesma frase deslocada. Em seguida, o tema

é atravessado em swingue de jazz, alterando o fluxo binário que predominava até então e

sugerindo outro “chão”, baseado nas pontuadas (ε. ε. ε. ε. ε. ε. ε. ε. ), que evidenciam a

pulsação ternária. A bateria faz uma cadência, trazendo de volta o compasso binário. A

parte B surge atravessando a levada, dessa vez dando lugar a uma melodia em 5/8, ou seja,

uma nova pulsação métrica se apresenta. Toda essa estrutura (A e B) é repetida mais uma

vez e, em seguida, volta uma levada de samba-jazz, em 2/4, base para os improvisos de

baixo, piano e bateria. Após os improvisos, a estrutura descrita (A e B) é repetida mais uma

vez e o final do último B desemboca numa levada de samba rápido que é, em seguida,

desdobrada: a pulsação métrica passa a evidenciar um ciclo maior, enquanto os acentos da

pulsação intermediária evidenciam uma melodia em ostinato. Coexistem, até o final, a

marcação do samba lento em 2/4, com o surdo no segundo tempo, e as pulsações

intermediárias caracterizando, um “samba de teleco-teco” estilizado.

Se um casal se aventurasse a dançar essa música, teria que inventar passos nada

ortodoxos para conseguir seguir as pulsações e os compassos sugeridos. Isso porque a

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linguagem rítmica aqui não realiza um discurso linear, mas um caminho quebrado por

convenções e mudanças de pulsação, de acentuação. Um discurso musical que instiga mais

à audição e à percepção do que ao movimento coordenando e cadenciado de uma dança a

dois.

10.3. Aqui não é baile

Desenvolvendo a linguagem rítmica iniciada por Airto Moreira, no Quarteto Novo,

além do aprendizado de ritmos próprios das tradições populares nordestinas e da adoção de

compassos os mais variados, Nenê passou também a desenvolver um estilo de tocar bateria

em contraponto e em diálogo com os outros instrumentos, e não apenas mantendo uma base

regular. Sobre esse estilo, agora já no grupo de Hermeto, Nenê destaca o disco Zabumbê-

bum-á.

A partir do Zabumbê-bum-á, a bateria passou a ser um instrumento atuante não só como

instrumento de base, até esse momento acompanhava o pianista e o baixista, mas a partir

daí a bateria tocava com todo mundo, interferindo, sugerindo coisas... (Nenê 2005)

Ora, se estamos falando de bateria brasileira e vamos analisar (no tópico 10.5)

justamente uma música dedicada ao Radamés, a fala de Nenê nos remete diretamente a

outro baterista que não podemos esquecer, Luciano Perrone, companheiro inseparável do

maestro. Oscar Bolão47 é quem o apresenta:

Um dos expoentes da percussão no Brasil, considerado por muitos o pai da bateria

brasileira. [...] Nascido no Rio de Janeiro em 1908, aos 14 anos começou a tocar

profissionalmente no antigo cinema Odeon. Nessa época, a bateria ainda não era como hoje

a conhecemos: resumia-se a uma caixa colocada sobre uma cadeira e um prato pendurado

na grade que separava os músicos da platéia. (Bolão 2003: 135)

47 Oscar Bolão é baterista e percussionista, seguidor do estilo de Luciano Perrone. Além de tocar nos grupos

Pife Moderno, Coreto Urbano e no Sexteto Maurício Carrilho, Bolão ministra aulas de percussão na Escola

Portátil de Música. Fiz uma oficina de percussão com ele no já citado segundo Festival de Choro, em Mendes.

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Nem tão rudimentar assim, a bateria não deixa de ser hoje um set organizado de

instrumentos de percussão, onde constam os instrumentos básicos citados: a caixa, os

pratos, além dos outros instrumentos típicos de banda: o bumbo, os pratos de choque ou

contratempos, o surdo, os tons. Além desses, o set da bateria admite inúmeras outras

possibilidades, conforme os instrumentos e técnicas utilizadas (com as mãos, com baquetas

diferentes), a criatividade do músico e a linguagem musical que ele desenvolve.

Como ele [Perrone] disse uma vez, o baterista tem que contar uma história, tem que saber

abrir e fechar na hora certa, tem que participar da melodia, preenchendo os espaços por ela

oferecidos e usando toda a bateria. O Perrone solava acompanhando. Ora tirava a esteira,

ora tocava com a mão, ora fechava nos pratos de choque para abrir no prato e voltar depois

tocando os tambores, ora tocava a caixeta, ora o agogô, e assim ele passeava pelo

instrumento (...). Como dizia Radamés Gnattali: “O Luciano toca com a música, não faz

ritmo de base simplesmente”. (Bolão 2003)

No livro Batuque é um privilégio, Bolão ensina algumas técnicas utilizadas por

Perrone, ao tocar samba, por exemplo: abafar com a mão a pele da caixa (sem esteiras)

enquanto percute com a outra baqueta, fazer o mesmo com um prato splash de 10

polegadas, tocando ora na borda ora no topo do prato, etc.

Airto Moreira, por sua vez, também faz uma mistura entre a percussão do choro, do

samba e do forró e a bateria. Nenê, ao entrar no lugar de Airto, diz ter aprendido no

Quarteto Novo a “usar a percussão junto com a bateria: caxixi, triângulo, pandeiro” (Nenê

2005).

No caso de Perrone, nas orquestras de rádio, o desenvolvimento de seu estilo de

tocar era também uma necessidade da orquestração, pois na Rádio Nacional não havia

tantos percussionistas como na gravadora RCA, onde ele estava acostumado a tocar:

Radamés fazia os arranjos para Orlando Silva, por exemplo, e quando este estava cantando,

a orquestra fazia a harmonia, e o ritmo era todo na percussão. Quando fomos para a Rádio

Nacional, o cantor trouxe da gravadora o mesmo arranjo, mas, como na rádio nessa época

só tinha eu na bateria e mais um outro na percussão, ficava um vazio enorme. E eu me

desdobrando na bateria para suprir a falta dos outros instrumentos! (Luciano Perrone apud

Barbosa e Devos 1985: 45)

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Ao sentir falta dos outros instrumentos de percussão, Luciano sugere a Radamés

escrever os arranjos de samba com a mesma divisão rítmica dos tamborins. Uma música do

maestro em parceria com Perrone, o “Ritmo do samba na cidade”, foi uma das primeiras

em que Radamés experimentou o procedimento, que depois passou a ser característico de

seus arranjos e composições.

Assim como Radamés, Hermeto também valorizava um baterista que “não faz ritmo

de base simplesmente”, conforme testemunho de Nenê:

Quando a gente fazia ritmo, o Hermeto falava: aqui não é baile. Se você for tocar no baile,

você faz assim na bateria. Mas aqui tem que ser uma bateria diferente, participando, tem

que sugerir coisas... (Nenê 2005)

“Aqui não é baile”, ou seja, não é ritmo pra se dançar. O compasso não precisa ser

tradicional (de 2,3,4 tempos), o ritmo não precisa estabelecer um padrão, o andamento é

livre. Quem se diverte agora não são os dançarinos, são os músicos!

10.4. Siga o chefe

A alternância de compassos diferentes, pulsações diversas e a mudança do chão, ou

seja, da referência de metricidade, dentre outras características que começamos a descobrir,

também são, mais do que procedimentos composicionais, jogos, maneiras de brincar com o

ritmo. Nenê explica uma dessas brincadeiras, que ele chama de “Siga o chefe”:

Intuição, você tem que ter uma gama de ritmos que você conheça, de base. Uma “reserva”

de ritmos. E trabalhar com a polirritmia, saber como que você vai fazer. Além de entrar em

outra divisão, entra já com um ritmo em outra divisão. [Ele canta um samba, que depois

vira uma espécie de frevo atravessado.] É uma vertente da música do Hermeto, isso precisa

ser intuitivo... Quando você conhece um monte de ritmos, você enche aquele acento de

ritmos... Isso pode ser qualquer ritmo... Ele tá tocando, se eu fizer isso, ele vai naquele

ritmo, depois ele volta. É uma coisa intuitiva. Ou então é você que segue ele. É uma

brincadeira de “siga o chefe”. (Nenê 2005)

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A intuição, a comunicação por som, tato e olhar, própria da música, é a que

predomina. A mesma intuição que faz com que um “baque de maracatu” não perca o ritmo;

a mesma intuição que move uma banda de pífanos ao realizar um “trancelim”, um trançado

sem fim, cantando e dançando; a mesma intuição que move um desafio de repentistas, o

que importa é o instante, o momento presente.

O Hermeto tem uma expressão, quando ele franze aqui a testa, é porque ele tá ficando

enjoado daquela música... Ele vai mudar pra alguma coisa, eu já sabia que ia mudar... vai

rolar um lance esquisito, eu já ficava ligado. E mudava mesmo. E o Arismar, que é muito

intuitivo, também entendeu esse lance, então a gente fazia tudo na hora. (Nenê 2005)

Além de ter tocado no grupo de Hermeto durante dez anos, mais recentemente,

Nenê tocou com ele em trio (piano, baixo e bateria), com o Arismar do Espírito Santo no

baixo.

Esse trio era assim, ele levou as partituras pra gente tocar, ficamos três dias ensaiando no

estúdio, uns negócios dificílimos para tocar... no dia da estréia, nós não tocamos nada

daquilo. Tocou só música conhecida, ninguém entendeu nada. Ele é assim, ele toca essas

músicas mais “batidas” de um jeito diferente. Ele faz [cantarola a primeira frase do

“Desafinado”], se eu fizesse “pa tsch bum”, ele esperava. Ele espera você tocar, não precisa

ser na métrica da música também não. Ele vai indo, muda a harmonia daquela parte, vai pra

outro lado, então fica uma música estranha. Uma música conhecida vira outra música.

(Nenê 2005)

Hermeto guarda das festas e brincadeiras de rua o gosto pelo inusitado, pela

surpresa, e por isso é avesso a premeditações. Seus shows não são sequer programados, ele

define as músicas que vai tocar na hora, em cima do palco, e está sempre de ouvidos

abertos para as interferências do momento. O inesperado e o erro para ele não são

problemas, são novos motivos para criar.

O Hermeto é um cara corajoso, que não tem medo de arriscar. Quando ele errava um

negócio, ele insistia no erro, é o contrário. Se ele esbarra numa nota que não era pra tocar, é

aquela que ele toca mais, vai mudando a harmonia, vai pra outro tom. Ele é muito criativo.

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[...] Fizemos quarenta e sete concertos na Europa, nunca era igual, a gente não sabia nem o

que ia tocar. Começava num tema de jazz e acabava num forró... (Nenê 2005)

10.5. Mestre Radamés

Além das gravações e dos relatos em entrevistas, os procedimentos rítmicos de

Hermeto podem ser investigados também através de partituras, particularmente as partes de

bateria que ele escreveu para Márcio Bahia. Dentre essas, Márcio considera a partitura da

música “Mestre Radamés”48 uma das mais interessantes (faixa 8, CD em anexo). O

baterista chega a tocá-la como um solo de bateria quando ministra workshops.

Márcio Bahia entrou no grupo de Hermeto em 1981, pouco depois da saída de

Nenê.49 Sua formação era bem diferente. Ele havia estudado percussão orquestral na Escola

de Música Villa-Lobos, com o mestre Bituca. De 1977 a 1980, tocou na Orquestra do

Teatro Municipal do Rio de Janeiro e atuou também no grupo de percussão da Escola de

Música Villa-Lobos em concertos e como solista em concursos.

Quando se desliga da Orquestra do Teatro Municipal, Márcio pretendia justamente

dedicar-se mais à bateria e à música popular, cuja linguagem ele ainda não dominava.

Eu tive que, por uns tempos, esquecer muitas daquelas coisas que eu aprendi na orquestra e no Villa-

Lobos pra pegar o sotaque regional de se tocar, o tambor regional... mas a orquestra foi o passaporte

que eu tive pra entrar no grupo porque eu tinha uma boa leitura. O que ele [Hermeto] escrevia pra

mim eu tocava, até o ponto dele não precisar mais escrever. Eu tive que deixar um pouco o

aprendizado da orquestra de lado pra entrar nessa onda do Brasil de rua, que era o que eu queria,

desenvolver não só a técnica, mas a intuição, a emoção, a musicalidade que eu desenvolvo no grupo

a cada dia. (Bahia 2005)

Essa “inexperiência” inicial de Márcio incentivou a criatividade de Hermeto num

domínio até então pouco explorado por ele: a escrita. Graças à habilidade de leitura de

48 Embora o título que aparece na partitura seja “Radamés”, no disco Lagoa da Canoa – município de

Arapiraca, a música foi registrada com o título “Mestre Radamés”. 49 Nesse meio tempo, entre a saída de Nenê e a entrada de Márcio, o baterista Alfredo Dias Gomes participou

durante cerca de onze meses do grupo, chegando a gravar o LP Cérebro magnético.

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Márcio, Hermeto passou a escrever os ritmos que pensava para a bateria, tomando esta

como o que ela é de fato: um set organizado de instrumentos de percussão. O que ele já

havia desenvolvido com Nenê, ou seja, uma linguagem de bateria que extrapola os padrões

de base, ele passou a registrar em papel.

A partir de então, Hermeto passou também a escrever peças para grupo de

percussão, como a “Música para caçarolas”, para panelas cheias de arroz, sementes e

contas; ou a “Queputamancada”, para tamancos de madeira de tamanhos diferentes; e a

“Entrando pelo cano”, para tubos de metal afinados. Nessa última, os tubos realizam uma

melodia no modo lídio, com a harmonia sendo tocada em ostinatos nos tubos graves. Quem

toca as peças é o próprio grupo, assumindo a faceta multi-instrumentista do compositor.

De um lado, a experiência de Márcio na música de concerto, de outro, a

inventividade rítmica de Hermeto. Essa combinação deu origem a partituras para bateria e

percussão que valorizam a sonoridade de cada tambor, de cada prato, além de incorporar

outros instrumentos, convencionais ou não.

Particularmente na música “Mestre Radamés”, Hermeto registra em partitura muitas

das características rítmicas que vimos permear sua música. Essa “partitura-desenho”

merece ser investigada. Aqui a bateria de fato não é apenas um instrumento de base. Além

de realizar frases (melodias de timbre) a todo momento, ela conduz a polirritmia entre

baixo e piano. Explicando melhor: enquanto o baixo toca junto com os tambores graves da

bateria, o piano segue os tambores agudos. Paralelamente a todo esse movimento,

transcorre uma melodia ligada e constante. Nesse caso, a melodia é que dá a referência

rítmica para bateria, baixo e piano “quebrarem tudo”, a melodia de pulsação constante

assume o papel de base.

Para seguir a partitura e participar da música, é preciso escutar cada pulsação

unitária da melodia em relação ao que acontece na bateria, conforme a legenda dos timbres:

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Na introdução da música, é tocado o trecho abaixo (que será repetido na terceira folha):

Em seguida, a partitura pode ser acompanhada do começo ao fim:

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Alguns procedimentos rítmicos de Hermeto podem ser aqui destacados:

• a utilização da bateria como um instrumento rítmico-melódico, que realiza melodias

de timbres e variações dessas mesmas melodias;

• a realização de frases rítmico-melódicas deslocadas, que atravessam a pulsação-

base;

• a coexistência de diferentes pulsações: intermediárias e mínimas, que por sua vez

podem ser binárias, ternárias ou quaternárias; além disso, as pulsações tornam-se

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relativas a todo momento, são híbridas, em um momento a pulsação mínima vira a

intermediária e vice-versa;

• não há uma pulsação métrica definida, não há sequer barras de compasso na

partitura de bateria; as poucas barras de compasso que às vezes se apresentam

servem sobretudo para separar frases distintas ou delimitar a repetição de frases;

• a fusão e alternância de células rítmicas próprias aos ritmos tradicionais brasileiros:

maracatu, maxixe, forró, afoxé, frevo, marcha, dentre outros;

• na concepção da partitura como um desenho, muitas vezes, ao acabar a linha, acaba

também a frase musical. Em meio às quiálteras de seis, surge o desenho de um

baterista... ou seria um maestro?

Seguindo a concepção de bateria que não atua simplesmente na base, eis uma

bateria-solista que não apenas sugere, mas realiza melodias, numa homenagem indireta a

Luciano Perrone. Em meio a tantas colcheias, semicolcheias, fusas e pontuadas, as frases se

destacam, como procuro demonstrar a seguir.

Já na primeira linha, Hermeto sugere uma melodia de bumbo e caixa em que alterna

as células rítmicas típicas do maracatu e da marcha, mas essas referências se dissolvem nas

mudanças de timbres. No maracatu tradicional, a segunda nota é mais grave e mais forte, o

que não acontece aqui. No entanto, esses ritmos já aparecem na primeira frase e vão

aparecer em diversos outros momentos, assim como a alternância entre grave e agudo

(bumbo e caixa), com os pratos dando a “liga”.

De uma pulsação arejada, clara, as frases vão ficando mais densas, evidenciando

cada vez mais pulsações internas. As primeiras figuras ainda apresentam apenas colcheias,

colcheias pontuadas e poucas semi-colcheias, mas aos poucos vão surgindo outras

pulsações possíveis, ainda como variações da frase inicial de caixa e bumbo.

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A mesma alternância bumbo-caixa/caixa-bumbo toma várias formas rítmicas nesse

trecho. Logo após a quiáltera de seis, surge uma levada de afoxé,50 dobrada em relação à

pulsação inicial, um outro tempo que aos poucos se manifesta, em meio à calmaria. Na

segunda linha do trecho acima, a levada aparece maior e deslocada, cada levada com a

duração de uma semínima pontuada. São duas levadas durante o ciclo de duas pulsações.

Todas essas variantes estão brincando com a frase inicial grave-agudo/agudo-grave. A

mesma idéia que aparece a seguir e será constantemente retomada, já em outra pulsação:

As idéias vão se somando e adensando. As melodias incorporam os timbres dos tons

médio e agudo, que preenchem as frases iniciais criando outras figuras rítmicas: os

garfinhos. Ao final do trecho que se segue, surge mais uma frase atravessada, que se repete

duas vezes e meia, pois a terceira é interrompida por outra idéia.

50 Sobre o ritmo de afoxé na bateria, ver Nenê (1999).

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No próximo trecho, em meio às frases melódicas (bumbo-caixa e vice-versa),

destacam-se os acentos típicos do maracatu – o bumbo na segunda pulsação mínima – e,

logo em seguida, outros acentos típicos que lembram o ritmo de afoxé.

No início do trecho a seguir, a melodia (bumbo-caixa/caixa-bumbo) toma a forma

do padrão rítmico do frevo de uma forma interessante: metade da melodia está numa

pulsação e a outra metade em outra. É como se o frevo, cuja frase dura dois compassos,

ficasse subitamente em “câmera lenta” no segundo compasso. Nessa música, é difícil

definir o que seja uma pulsação métrica ou uma pulsação unitária e mais difícil ainda o que

seja uma pulsação mínima... Isso porque as pulsações são híbridas, relativas ao que

acontece a todo momento. Aqui, por exemplo, até os timbres e o andamento lembram uma

levada de frevo no primeiro desenho. Nesse caso seria um compasso da levada, ou seja,

uma pulsação métrica. No entanto, o desenho seguinte já sugere outra interpretação, seria

uma pulsação unitária dentro de um compasso binário? Não importa, o que interessa é que

o fluxo da melodia continua e dá a direção e a pulsação necessárias.

No trecho a seguir, Hermeto brinca com o deslocamento de uma frase e, em

seguida, dobra a mesma frase, ainda deslocando-a. Os pratos que estavam sobrepostos aos

tambores, ou seja, em harmonia, passam a fazer parte da melodia dobrada.

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Esse recurso de deslocar uma mesma frase é muito utilizado por ele, em diferentes

andamentos. É que acontece no trecho final, por exemplo, frases em fusas deslocadas que

vão se somando criando um adensamento de informações sonoras. Nas duas penúltimas

linhas, o bumbo faz um padrão em 5, completado ora por caixa, ora pelos tons, que

atravessa a pulsação da melodia. Antes da convenção final, a última divisão tem o bumbo

do forró. O último prato (seco) caracteriza um final “pendurado” no linguajar da Orquestra

do Itiberê.

Durante a peça, outro elemento que vai se adensando são os acentos típicos do

maracatu. Como vimos, eles vão aparecendo aos poucos, tímidos, deslocados de seu

contexto, mas vão ganhando forma (e cor) e finalmente se afirmam como um maracatu,

que aparece no trecho a seguir, a partir da barra de compasso:

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Em outra passagem, dessa vez mais curta e súbita, os acentos graves do bumbo e

agudos da caixa, todos fora do “chão” lembram, num relance, um baque de maracatu

frenético a repicar.

No trecho abaixo, acontecem três passagens bem interessantes. Primeiro: uma

levada de forró, bem rápido, pode ser um “baião com bumbo diferente” do Márcio

Bahia. Em seguida, outra característica marcante da linguagem rítmica de Hermeto: a

acentuação do tresillo que antes estava nos tambores graves vai para a caixa, com rulo.

Enquanto isso, bumbo e pratos realizam uma quiáltera de seis, ou seja, pulsações

binárias e ternárias simultâneas. Por último, uma melodia que passa pelo bumbo, pelos

tons, pela caixa e pelos pratos e, ainda por cima, deslocada. Ela se organiza em grupos

de 4+6 pulsações mínimas (fusas).

E o maestro-baterista, afinal, rege em seis? Em três? Ou seria em quatro? Acho que

o maestro rege em dois, guiado pela melodia, que organiza tamanha fusão rítmica.

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Sempre dentro de um mesmo chão, dado pela melodia, Hermeto brinca com as

divisões, dobrando e desdobrando as pulsações. Podemos imaginar uma cena: o maestro

Radamés está regendo a orquestra – uma melodia lenta, toda ligada – mas, enquanto isso,

na Rádio, passa um baque de maracatu ou atravessa o estúdio uma banda de frevo que,

repentinamente, se dá conta da algazarra e diminui o andamento. E o maestro continua

regendo e incorporando à sua orquestra todos os sons que escuta, tudo o que passa vira

música. É esse o tacho de sons do maestro Hermeto, pelas mãos do baterista Márcio Bahia.

Lá na frente as coisas se juntaram... o Hermeto começou a escrever pra sinfônica e me

levava junto, eu tenho essa onda de tocar na mão do maestro, eu sei, o maestro ralenta,

corre, então eu ia com o Hermeto, ajudava ele a ensaiar o naipe de percussão. Eu sou um

baterista que tem o conhecimento popular e o conhecimento erudito, eu uso as duas

coisas no que eu faço, o conhecimento erudito faz parte da minha formação, da minha

sonoridade, do meu toque, da minha maneira de encarar o instrumento, tudo é válido e se

completa. As duas coisas se encontraram lá na frente, tudo tem seu tempo e sua hora.

(Bahia 2005)

A sua hora, o seu tempo é o momento presente, é tudo isso junto de uma vez só: a

simultaneidade e a integração sonora que caracterizam a “Escola Jabour”. Se os regionais,

as bandas e as festas de rua foram algumas das escolas de Hermeto, ele, por sua vez, ao

criar o seu grupo, criou sua própria escola, desenvolvendo uma linguagem musical que se

perpetua no trabalho dos músicos que passaram por lá, como veremos a seguir.

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11. Escola Jabour

11.1. Só não toca quem não quer?

Durante a gravação do disco Só não toca quem não quer, o flautista Mauro

Rodrigues teve a experiência de tocar (e aprender) com Hermeto:

Ele [Hermeto] é muito exigente com ele mesmo. Isso impõe um nível de exigência muito

alto pra todo mundo que está com ele. Mas ao mesmo tempo ele é muito amoroso, então

você acaba fazendo coisas que se pensar, por exemplo “eu não dou conta de fazer isso...” E

acaba fazendo, um pouco empurrado pela exigência dele e, ao mesmo tempo, ele é muito

amoroso, muito amigo... (Rodrigues 2006)

O carisma de Hermeto e seu talento em compartilhar idéias e conhecimentos

musicais, como relata Mauro Rodrigues (e como vimos no capítulo anterior), fizeram com

que seu grupo passasse a ser considerado uma escola de música, chamada Escola Jabour,

visto a quantidade de músicos criativos e competentes que saíram de lá. O baixista Itiberê

Zwarg é um desses músicos que, além de toda a experiência vivida no grupo, resolveu

efetivamente dar continuidade à ação educadora do mestre Hermeto. Para isso, Itiberê

começou a ministrar oficinas abertas para músicos jovens, com diferentes graus de fluência

em seus instrumentos. A primeira dessas oficinas, realizada em 1999, deu origem à Itiberê

Orquestra Família, um grupo de jovens instrumentistas que, desde então, aprende música

segundo o método desenvolvido na “escola Hermeto”.51

Em um concerto da Itiberê Orquestra Família, apresentam-se aproximadamente 20

músicos de 15 a 30 anos, que tocam juntos composições cheias de harmonias e polirritmias,

com um detalhe: não há sequer uma partitura no palco. Todos sabem suas partes de cor. O

aprendizado da improvisação também é desenvolvido no grupo, muitos deles fazem solos

criativos durante as músicas. Os instrumentos são os mais variados: sopros (flautas, flautim,

51 Tive a oportunidade de participar de uma oficina realizada por Jovino Santos Neto no Festival de Inverno

da UFMG, em 2000; em seguida participei das duas oficinas realizadas por Itiberê Zwarg durante as Semanas

da Música da Escola de Música da UFMG, em 2002 e 2003.

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clarinetas, clarone, sax, trompete, trombone, gaita), cordas (violino, viola, cello,

contrabaixo, violão, guitarra), percussão, bateria, vozes e piano. Alguns começaram do zero

e outros saíram de bandas ou conservatórios. O que mais chama a atenção no conjunto são

a fluência rítmica dos músicos, a consciência harmônica e, sem dúvida, a aparente

satisfação em tocar em grupo.

Seguindo a genealogia musical de Hermeto Pascoal, a música e a educação musical

de Itiberê são necessariamente arraigadas na tradição musical brasileira. Desenvolvendo a

pedagogia criada intuitivamente por Hermeto, o método de Itiberê valoriza sobretudo uma

vivência rítmica intensa e a consciência harmônica, tudo isso aprendido oralmente. Na

maioria das vezes, Itiberê cria músicas e arranjos in loco, no momento, e passa oralmente a

parte de cada músico, que deve aprendê-la, tirando-a no instrumento para, em seguida,

registrá-la no caderno. Esse procedimento não só valoriza a expressão do intérprete, como

também aguça sua audição e a atenção na dinâmica de trabalhar em grupo. A improvisação

é desenvolvida focalizando também a experiência presente, sem a necessidade de

parâmetros racionais, o solista deve se guiar pelo som e pela intuição. O método, que ele

chama de corpo-presente, desenvolve a liberdade e a intuição musical com limites bem

definidos, de uma forma integradora.

A primeira oficina do Itiberê realizada na Escola de Música da UFMG, em 2002,

teve duração de três dias, de manhã e à tarde. Durante esses três dias, um grupo de músicos

dos mais variados instrumentos (clarinetas, flautas, trombones, trompetes, saxofones, piano,

teclado, percussão, violão, baixo, vozes, viola) se reuniu na sala 3003. Foi uma experiência

intensa, Itiberê, atuando ao mesmo tempo como um maestro-educador-compositor, passava

as partes oralmente para cada músico, que deveria tirá-la no instrumento. Espontaneamente,

as funções de cada um foram surgindo, como em uma família. Alguns tomaram a iniciativa

de registrar em caderno as partes, outros ajudavam aqueles que tinham dificuldade em tirar

as notas ou memorizá-las. As harmonias e polirritmias realizadas não eram nada fáceis.

Todos vibravam juntos ao ver a música sendo criada, cada um como uma parte essencial de

uma orquestra que estava sendo formada. Foi uma experiência singular para muitos,

acostumados a ler partituras. Nessa oficina, muitos músicos tiveram oportunidade não só de

tocar de cor, como também de tocar ritmos complicados, mas dançantes e animados. Ao

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final de três dias, apresentamos uma rapsódia elaborada, que surpreendeu a todos, público e

intérpretes.

A oficina realizada em dezembro de 2003, seguiu a mesma linha, com o acréscimo

de alguns instrumentos: clarone, trompa, acordeom, bateria, flautim, violino, violoncelo.

Mais uma vez foi uma experiência intensa de realização e aprendizagem, direcionada para

músicos de diversos níveis. Os mais iniciantes tem a oportunidade de tocar em grupo, ao

lado de outros mais experientes. Os de nível intermediário e avançado tem a oportunidade

de desenvolver a audição atenta e presente, a intuição e criatividade em improvisos e a

percepção e realização de ritmos complexos e com swingue. O método corpo-presente

abrange:

• a consciência harmônica, ao trabalhar progressões harmônicas diversas e

enfatizar em cada músico a audição da harmonia ao tocar, improvisando ou

não;

• a sensação rítmica, ao exigir de todos a realização de ritmos e polirritmias,

baseados nos ritmos brasileiros;

• a ênfase na oralidade: os músicos devem tocar efetivamente em grupo se

olhando e se comunicando, a partitura deixa de ser uma muleta para assumir

sua principal função – o registro;

• o prazer de tocar, de corpo-presente, ou seja, consciente do que está tocando

e fruindo cada momento intensamente, nos gestos que estão livres para a

realização musical.

A Escola Jabour, através do trabalho de Itiberê, enfatiza os princípios da linguagem

musical desenvolvida por Hermeto, ou seja, a criatividade, o prazer e a intuição. Além

desses princípios, as características da linguagem rítmica de Hermeto aqui enfocadas

também estão presentes, como veremos a seguir.

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11.2. 21 de junho de 1997

Em 2005, a Itiberê Orquestra Família gravou um disco com 27 arranjos de músicas

do Calendário do som, sugestão do próprio Hermeto, cada música escolhida corresponde ao

dia do aniversário de cada integrante da orquestra.

Como vimos, a proposta musical e pedagógica de Itiberê é um desdobramento dos

seus 30 anos de convivência musical com Hermeto. O mais interessante dessa história é que

todas as características que estamos descobrindo na música de Hermeto tanto definem uma

linguagem musical própria que já configuram uma escola. Na Orquestra, a linguagem de

Hermeto já está de tal forma incorporada que alguns de seus procedimentos recebem nomes

próprios, como já vimos: a síncope é “garfinho”, a polirritmia “três contra quatro” é

representada pelas “pontuadas”, a última pulsação contramétrica é uma nota “pendurada”,

dentre outras expressões que revelam ao mesmo tempo espírito de brincadeira e a

intimidade ao lidar com a música, num processo em que prática e teoria não se dissociam.

Ao conversar com o violoncelista Felipe José Abreu, ex-integrante da Orquestra,

pude confirmar muitas das questões rítmicas aqui elaboradas. A linha de triângulo exposta a

seguir, por exemplo, demonstra o deslocamento da célula rítmica típica do forró e sua

realização em outra pulsação, no caso, dividindo o compasso binário em três pulsações:

Diante das questões rítmicas aqui enfocadas, Felipe José me sugeriu analisar a

música “21 de junho de 1997” (faixa 9, CD em anexo), de Hermeto, gravada com arranjo

de Itiberê no disco Calendário do som, da Orquestra. Nesta gravação, a melodia é a base,

como também acontece na música “Mestre Radamés”. Lembrando as definições propostas

por Hermeto, o pai-ritmo e a mãe-harmonia ficam por conta da filha-melodia. No entanto,

paralela a essa primeira instância, podem surgir outros temas, os filhos-mais-novos, quando

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pai e mãe precisam se desdobrar para dividir a atenção. As reflexões de Hermeto assim

elaboradas interpretam muito bem o que acontece nessa música, definindo também mais

uma característica da linguagem de Hermeto. Na música “Mestre Radamés”, por exemplo,

a melodia é filha única. Já a concepção de Itiberê, frente à multiplicidade instrumental de

uma orquestra, evidencia a simultaneidade sonora, também característica da Escola Jabour.

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O arranjo da música “21 de junho de 1997” apresenta a melodia três vezes. Na

primeira apresentação, o andamento é muito lento, “para trás”; nas duas últimas, o

andamento inicial é dobrado, mas a melodia continua lenta. Nessa melodia, alternam-se

colcheias e tercinas, que sugerem pulsações mínimas binárias e ternárias. No 9º compasso

aparece uma figura híbrida, que soma as anteriores, nesse caso dobradas, ou seja, duas

semicolcheias e uma tercina de semicolcheia.

Apesar de apresentar o compasso ¾, a melodia ora segue a divisão ternária, ora

apresenta-se nas pontuadas, ou seja, sugerindo então outra pulsação, outro chão. A

simultaneidade de pulsações binárias e ternárias predomina durante todo o arranjo, sendo

evidenciada ao final. A base ternária proposta pela melodia é atravessada pelas pontuadas

que, aos poucos vão evidenciando esse outro chão. Ao final, o chão de fato muda, as

pontuadas transformam-se na pulsação de referência, de onde emerge uma banda de

pífanos, tocando um xote. Aqui já não é apenas outro chão, é outra casa e outra família

musical com pai-ritmo, mãe-harmonia e filho-tema. A melodia-base escrita por Hermeto e

o tema final dos pífanos, do arranjo de Itiberê, sugerem duas famílias musicais, amigas, que

se relacionam.

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Conclusões A trajetória desse estudo não esteve delineada desde o início, ela foi sendo criada e

recriada a partir das idéias suscitadas pela leitura da bibliografia, pela escuta da discografia

e, principalmente, a partir dos depoimentos dos entrevistados. A metodologia seguiu os

princípios formulados por Geertz (1989), os diferentes “fios” de informação e experiência

foram sendo tecidos, equilibrando diferentes processos – a abordagem interpretativa da

bibliografia e dos depoimentos, as análises musicais, a observação-participante, tudo isso à

luz da experiência musical – de modo a encontrar um percurso ao mesmo tempo criativo e

fundamentado.

Seguindo a trajetória musical de Hermeto Pascoal, conhecemos o forró, o choro e as

bandas de pífanos. Essas três formações instrumentais foram aqui relacionadas de modo a

entendê-las como formações musicais tradicionais no Brasil, pelas quais passaram gêneros

musicais diversos. Foi necessário então compreender o paradigma do tresillo para, num

primeiro momento, apreender a rítmica tradicional do choro e do forró e, num segundo

momento, incorporá-lo à multiplicação de pulsações proposta pela rítmica de Hermeto.

As formações instrumentais estudadas foram identificadas como bases para o

desenvolvimento da música instrumental no Brasil e particularmente da música de Hermeto

Pascoal. Nesse percurso, descobrimos a orquestra de Guerra-Peixe, em Recife, e o regional

de Pernambuco do Pandeiro, no Rio de Janeiro, como escolas de Hermeto nos arranjos, no

choro e no forró. As bandas de pífano foram destacadas como fonte inesgotável de

brincadeiras, a “Briga do cachorro com a onça”, por exemplo, sendo uma referência

importante em suas experimentações com sons de animais.

Investigando mais de perto a música de Hermeto, foi possível compreender alguns

dos jogos e brincadeiras rítmicas que ele realiza tanto em composições como em

improvisos. Vimos também que a música desenvolvida por ele permite questionar

categorias musicais estabelecidas – música popular, folclórica, erudita – tanto por

apresentar elementos de todas essas categorias como também por não se ater a nenhuma

delas. Como definir sua música afinal?

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Numa última entrevista com Hermeto, mergulhada em seus sons e minhas idéias, foi

ele que, mais uma vez, me deu a resposta, ao falar sobre as brincadeiras populares de que

mais gostava:

A feira lá em Lagoa da Canoa é que era uma grande diversão para mim. Pois haviam os

cantadores de embolada,os vendedores anunciando, discos do Luiz Gonzaga tocando no

megafone... e era tudo isso junto, de uma vez só [grifo meu]. Eu também gostava de tocar

no circo e antes disso eu adorava acompanhar os palhaços com perna de pau anunciando

o circo. Eu tenho muita influência disso. Naquela época havia muito mais amor em tudo

o que se fazia. (Pascoal 2006)

A paisagem sonora da feira onde tudo se mistura nos remete ao tacho de sons –

“tudo junto de uma vez só” – definindo uma das características mais marcantes da música

de Hermeto, ou seja, a simultaneidade, a sobreposição de sons diversos. A coexistência de

sons de instrumentos, vozes, objetos e animais em sua música revela a escuta de Hermeto:

uma escuta musical permanente.

Se em determinado momento, a música de Hermeto toca a realidade que lhe deu

origem, em outros momentos ela parte desse chão para outras experimentações e

brincadeiras. Além da simultaneidade de sons da feira e do circo, Hermeto lembra também

das festas:

Gostava também da festa da padroeira, Nossa Senhora da Conceição. Lá eu subia em pau

de sebo, melando a mão na areia para escorregar menos. Ficava também esperando o sete

de setembro porque eu tocava tambor na bandinha da escola. E tocava atravessado de

propósito para ver a marcha ficar trocada [grifo meu]. Era uma grande festa! (Pascoal

2006)

O melhor da festa para ele era “tocar atravessado de propósito”, uma brincadeira

que ele também incorporou a seu discurso musical, como tantas outras que vimos permear

suas músicas. Hermeto passou por várias formações musicais e inúmeras paisagens

sonoras, dentre as quais me propus destacar as bandas de pífanos, os trios de forró e os

regionais de choro. Nessas três formações, Hermeto incorporou as linguagens musicais

tradicionais, mas é preciso dizer que, para além de suas escolas, ele passou por todas essas

paisagens com uma intenção musical muito própria:

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O Hermeto não tem som de flautista, como não tem som de pianista, de saxofonista, mas

ele tem som de Hermeto em tudo. Qualquer coisa que ele toca, desde a flauta até a

chaleira, tem um som hermético, vamos dizer assim,e esse som a gente identifica. Ele

molda a música com a intenção dele. (Rodrigues 2006)

E a intenção dele é sempre criativa, ou seja, misturar, experimentar, transformando

processos de composição em jogos e brincadeiras, ou vice-versa. Ao focalizar a rítmica

brasileira desenvolvida por Hermeto, foi possível identificar alguns procedimentos:

• a multiplicação de pulsações - binárias, ternárias, quaternárias – que são

constantemente dobradas e desdobradas, ou seja, uma mesma levada rítmica pode

aparecer em diferentes andamentos;

• a sobreposição de pulsações pares e ímpares como um recurso de polirritmia, 3x2

ou 3x4; a adição de pulsações pares e ímpares transformando a métrica tradicional,

3+2, 3+4;

• a mistura de células rítmicas dos ritmos tradicionais;

• denominações próprias para as figuras rítmicas mais recorrentes: o “garfinho”, as

“pontuadas” e as “penduradas”;

• a mudança de chão, ou seja, a referência métrica torna-se relativa, principalmente

com o recurso das pontuadas, provocando modulações métricas;

• a criação de melodias de timbre, entendendo a bateria como um set de instrumentos

de percussão e esses, por sua vez, como instrumentos rítmico-melódicos;

• a criação de frases ou ostinatos rítmico-melódicos que atravessam a música,

deslocando a pulsação.

Todas as características destacadas podem aparecer tanto em composições escritas,

como vimos na análise da música “Mestre Radamés”, quanto em improvisações livres,

como foi descrito pelo baterista Nenê. Mais do que características da música de Hermeto,

esses procedimentos já constituem uma linguagem musical desenvolvida por ele e praticada

pelos músicos que tocam e tocaram na Escola Jabour. Dentre eles, destaca-se o trabalho

educativo desenvolvido pelo baixista Itiberê Zwarg.

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Como já foi dito, a aproximação à música de Hermeto aqui desenvolvida partiu da

vontade de compreender uma linguagem musical que me cativou ao abrir minha escuta para

sons e experiências musicais diversas. Antes da pesquisa, mesmo sem entender o que

acontecia, a música de Hermeto tinha para mim uma presença semelhante a um baque de

maracatu, uma banda de pífanos, uma roda de choro, uma guarda de congado, possuindo a

mesma energia e vitalidade que integram arte e tradição. Nesse processo foi necessário

entender e explicar em palavras um outro discurso que chega mais ao corpo e à intuição do

que à razão. Para minha surpresa, as questões investigadas passaram a ficar cada vez mais

interessantes, enriquecendo também meu discurso musical. Se escutar a música de Hermeto

já é uma experiência prazerosa e instigante, mergulhar nesse universo, escutando também

suas palavras, conversando e conhecendo o próprio Hermeto e os músicos que trabalharam

com ele, foi uma oportunidade única.

Aprendi com Hermeto que para a música acontecer o importante é saber escutá-la, e

ela pode estar em qualquer lugar. Para ele, não há que se falar em regras, mas em jogos e

brincadeiras que fazem da experiência musical “uma grande festa!”.

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Escola Portátil de Música, (apostila).

PASCOAL, Hermeto. 2006. Curitiba, PR, 01/03/2006. Entrevista concedida a Lúcia

Pompeu de Freitas Campos por correio eletrônico.

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PASCOAL, Hermeto. 1999. Rio de Janeiro, 10/08/1999. Transcrição de entrevista

concedida a Rafael Soares, Pablo Pires e Carlos Figueiredo.

PITOCO, José Alves. 1998. Curso de Zabumba. São Paulo: Encontro com a Dança e a

Música Brasileira, (apostila).

Entrevistas à autora:

BAHIA, Márcio Villa. 2005. Rio de Janeiro, 25/03/2005.

JOÃO DO PIFE. 2005. Belo Horizonte, MG, 10/06/2005.

NENÊ. 2005. Belo Horizonte, MG, 20/08/2005.

PASCOAL, Hermeto. 2005. Belo Horizonte, MG, 10/09/2005.

PERNAMBUCO DO PANDEIRO. 2006. Uberaba, MG, 10/04/2006.

RODRIGUES, Mauro. 2006. Belo Horizonte, MG, 05/05/2006.

Discografia consultada:

• Discos de Hermeto Pascoal:

Hermeto Pascoal: Brazilian Adventure. CD. Muse Records, 1971.

A música livre de Hermeto Pascoal. LP. Polygram, 1973.

Slaves Mass (Missa dos Escravos). CD. WEA, 1977.

Zabumbê-bum-á. CD. Warner, 1979.

Hermeto Pascoal ao vivo em Montreux. CD. Warner, 1979.

Cérebro Magnético. CD. Warner, 1980.

Hermeto Pascoal e grupo. CD. Som da gente, 1982.

Lagoa da Canoa – Município de Arapiraca. CD. Som da Gente, 1984.

Brasil Universo. CD. Som da gente, 1985.

Só não toca quem não quer. CD. Som da Gente, 1987.

Mundo verde esperança. Som da Gente, não lançado comercialmente, 1989.

Festa dos deuses. CD. Polygram, 1992.

Por diferentes caminhos. LP. Som da Gente, 1994.

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Eu e eles. CD. Rádio Mec, 1999.

Mundo Verde Esperança. CD. Rádio Mec, 2002.

• Hermeto Pascoal com os grupos dos quais participou:

Pernambuco do Pandeiro e seu regional. No meu Brasil é Assim. LP. Copacabana, 1954.

Pernambuco do Pandeiro e seu regional. Batucando no Morro. LP. Tiger, 1954.

Pernambuco do Pandeiro e seu regional. No Arraial de Santo Antônio. LP. Tropicana,

1958.

Sambrasa trio. Sambrasa trio em som maior. CD. Som Livre, 1965. (reedição 2006)

Quarteto Novo. Quarteto Novo. CD. EMI, 1967 (reedição 1993).

Brazilian Octopus. Brazilian Octopus. CD. Som Livre, 1970. (reedição 2006)

• Hermeto Pascoal participando de discos de cantores, instrumentistas e/ou

compositores:

Edu Lobo. Cantiga de Longe. LP.

Tom Jobim. Tide. LP. A&M, 1970.

Airto Moreira e Flora Purim. Seeds on the ground. CD. One way records,1971.

Miles Davis. Live Evil. CD. Sony, 1972.

Galo Preto. Galo Preto. LP. Independente, 1981.

Galo Preto. Bem te vi. CD. Leblon records, 1992.

Joaquim Callado. O pai dos chorões. v.4. CD. Acari records, 2002.

Itiberê Orquestra Família. Calendário do Som. CD. Maritaca, 2005.

• Outros:

Responde a roda outra vez, música tradicional de Pernambuco e da Paraíba no trajeto da

Missão de 1938. CD. UFPE, UFPB, 2004.

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Repertório do CD (anexo 1)

1. “Santo Antônio” (Hermeto Pascoal) CD: Zabumbe-bum-á

Hermeto (piano), Zabelê (improviso de palavras, chocalhada), Nenê

(bateria, percussão), Itiberê (contrabaixo), Jovino (clavinete), Cacau

(flauta), Pernambuco (palavras improvisadas, triângulo). Convidada

especial: Divina Eulália de Oliveira (história, improviso)

2. “Procissão de Santo Antônio” (Festa de Santo Antônio no Brejo

dos Padres, Tacaratu –PE) CD: Responde a roda outra vez: música tradicional de Pernambuco e

da Paraíba no trajeto da missão de 1938

Com Quitéria Binga (Maria Quitéria de Jesus), voz principal,

penitentes da aldeia Pankararu do Brejo dos Padres e a banda de

pífanos de Zé Branco: Ângelo e Zé Roló (pífanos), Antônio José da

Silva (zabumba) e Irami José da Silva (caixa).

3. “Dinorah” (Benedito Lacerda-José Ferreira Ramos)52

LP: No meu Brasil é Assim

Pernambuco do Pandeiro e seu Regional

4. “Deixando Saudades” (P. Sobrinho e M. Rodrigues)

LP: Batucando no morro

Pernambuco do Pandeiro e seu Regional

5. “Polquinha Mineira” (Abel Ferreira)

LP: No arraial de Santo Antônio

Pernambuco do Pandeiro e seu Regional 52 Coloquei o título e os compositores da música conforme está escrito no encarte do disco.

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6. “Salve Copinha” (Hermeto Pascoal)

CD: Brasil Universo

Hermeto Pascoal e grupo

7. “Coalhada” (Hermeto Pascoal)

CD: Sambrasa Trio em Som Maior

Sambrasa Trio

8. “Mestre Radamés” (Hermeto Pascoal)

CD: Lagoa da Canoa – Município de Arapiraca

Hermeto (bombardino), Heraldo do Monte (guitarra), Jovino Santos

(piano CP-80, harmônio), Carlos Malta (sax soprano), Itiberê Zwarg

(contrabaixo), Márcio Bahia (bateria), Pernambuco (triângulo)

9. “21 de junho de 1997” (Hermeto Pascoal)

CD: Calendário do Som

Itiberê Orquestra Família

Créditos do DVD (anexo 2):

Depoimento: Pernambuco do Pandeiro

Direção e roteiro de entrevista: Lúcia Campos

Imagens: Byron O’Neill

Filmagem realizada no dia 13/04/2006

Local: casa de Pernambuco do Pandeiro, Uberaba (MG)

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