transformações indígenas
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Modos de subjetivaçãoTRANSCRIPT
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TRANSFORMAES INDGENAS
os regimes de subjetivao amerndios prova da
histria
PROJETO PRONEX
NUTI
RIO DE JANEIRO / FLORIANPOLISSETEMBRO DE 2003
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TRANSFORMAES INDGENAS
os regimes de subjetivao amerndios prova da
histria
PROJETO PRONEX
La verit est que la diffrence va diffrant, que le changement vachangeant et quen se donnant ainsi pour but eux-mmes, le
changement et la diffrence attestent leur caractre ncessaire etabsolu; mais il nest ni ne saurait tre prouv que la diffrence et le
changement augmentent dans le monde ou diminuent.
Gabriel Tarde
RIO DE JANEIRO / FLORIANPOLISSETEMBRO DE 2003
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SUMRIO
1. METAS E TEMAS ......................................................................................... 5
1.1. Pano de fundo................................................................................. 71.2. Identidade, relao; alteridade, alterao............................................151.3. Agncia, mudana; estrutura, histria ................................................28
2. APROPRIAO E ALTERAO ...................................................................... 40
2.1. Transformaes rituais: a contra-inveno do virtual.............................422.2. Insumos e consumo: dinheiro e mercadoria nas economias indgenas ......442.3. Alm do material e do imaterial: propriedade intelectual........................492.4. Elites e lideranas ...........................................................................51
3. DIFERENCIAO E MEDIAO ..................................................................... 54
3.1. Segmentao: constituio de coletivos singulares e plurais ...................543.2. Formas de aparentamento: relaes intra-especficas e interespecficas....573.3. ndios na cidade e cidades indgenas ..................................................593.4. A purificao do ndio e a proliferao dos genricos .............................62
4. TRADIO E TRADUO............................................................................. 64
4.1. Tradies e tradicionalismo...............................................................644.2. Misses e converses ......................................................................664.3. Escola e modos de transmisso do conhecimento .................................694.4. Escrita e traduo ...........................................................................71
5. AS PESQUISAS UMA A UMA ......................................................................... 75
5.1. Escopo..........................................................................................755.2. Distribuio das pesquisas................................................................79
5.3. Resumo das pesquisas por regio ......................................................80
6. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.................................................................. 99
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1. Introduo: metas e temas
Este um projeto de pesquisa em antropologia fundamental. Ele versa sobre a
dinmica transformacional caracterstica dos coletivos indgenas sul-americanos,
propondo-se a estudar as atualizaes diferenciais desta dinmica em uma
variedade de processos sociais concretos. Nossa ambio estender a novos
objetos as hipteses, conceitos e modelos que temos desenvolvido, em concerto
com pesquisadores de outras instituies no pas e no exterior, no contexto de uma
descrio dos regimes sociocsmicos amerndios. Esses instrumentos intelectuais,
forjados ao longo dos ltimos dez ou doze anos, foram responsveis por avanostericos importantes, que aumentaram significativamente a influncia da etnologia
americanista, em especial aquela feita no Brasil, dentro do campo antropolgico
mundial. Esperamos, com o presente programa, vir a consolidar, atualizar e ampliar
tal presena.
A eleio dos temas de pesquisa, que vo descritos nos captulos seguintes deste
projeto, tem por objetivo no apenas testar a fecundidade heurstica dos referidos
instrumentos na compreenso de novas situaes e novos fenmenos, histrica e
politicamente pregnantes, como tambm o de refletir sobre certas noes que so
hoje aceitas como moeda corrente na antropologia. Assim, nosso intento realizar
uma interveno conceitual sobre as problemticas da identidade, da agnciae
da mudana, a partir, respectivamente, das idias referentes alterao,
subjetivao e transformao pressupostas nas prticas indgenas de sentido.
Trata-se, em outras palavras, de utilizar os conhecimentos j acumulados sobre
trs dimenses bsicas da economia sociocsmica, ou cosmopraxis, nativa as
economias da preenso relacional, da subjetivao perspectivista e da metamorfose
mitopoitica para levar a termo uma crtica etnograficamente motivada de certas
palavras-de-ordem em circulao no campo disciplinar, palavras essas que nos
parecem tributrias de uma concepo formalista, taxonomista e individualista
em suma, modernista da socialidade.
Os resultados j obtidos pelo presente grupo de pesquisadores, no que concerne a
essas trs dimenses mencionadas, esto expostos sucintamente ao longo do texto e
referidos na Bibliografia ao final do projeto. Recordemos apenas, desde j, que a
economia da preenso relacional, fundamento de uma sofisticada sociologia indgena
da alteridade, foi analisada por ns em uma srie de trabalhos sobre seus
esquematismos principais: a afinidade potencial (sistemas de parentesco,
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classificaes sociopolticas) e a predao canibal (prticas guerreiras e xamnicas,
doutrinas escatolgicas). A economia da subjetivao associada a esta sociologia foi
delineada nos estudos sobre a deixiscosmolgica amerndia, em seu duplo aspecto
epistmico (perspectivismo) e ontolgico (multinaturalismo); esses estudos
conduziram, inter alia,a uma redefinio em profundidade das noes de natureza
e cultura no contexto amerndio. O complexo da metamorfose mtico-xamnica, por
fim, comeou a ser explorado em ensaios sobre a transio do virtual ao atual no
cosmos indgena (discretizao extensiva do contnuo intensivo mtico, exteriorizao
e limitao da diferena originria pura), sobre as condies intrapessoais da
metamorfose interespecfica (conceitos de corpo e de alma, carcatersticas de
fractalidade e alteridade internas), e sobre os agentes e mecanismos de traduo-
comutao de perspectivas csmicas (xamanismo, pragmtica ritual). Voltamos a
essas questes mais abaixo.
O escopo temtico do projeto inclui objetos abordados nessas pesquisas anteriores,
como as questes de morfologia social (segmentao e segmentaridade), ou o que
se convencionou chamar de relaes de parentesco, ou ainda a mitologia, o
xamanismo, ou as poticas nativas; mas nossa proposta articula organicamente
esses temas a outros, que foram e so tradicionalmente estudados dentro de
quadros tericos muito diversos do aqui proposto, como a monetarizao das
economias indgenas, a emergncia de formas de chefia associadas aos processos
intertnicos, a migrao selva-cidade, a converso religiosa, a escolarizao, as
polticas metaculturais da identidade, e assim por diante. Nossa convico
fundamental que a abordagem desenvolvida no estudo de temas clssicos como
o parentesco, o ritual ou o xamanismo no s pode, como deve ser aplicada aos
novos temas do dinheiro e do consumo, da escola e da escrita, da misso e da
converso, da poltica e da histria, que tero tudo a ganhar conceitualmente com
tal incorporao. Reciprocamente, essa extenso importante para que possamos
efetivamente superar, no plano dos resultados e no apenas no dos princpios (o
que j no seria pouco), vrias dualidades histrica e teoricamente invalidadas,
como entre outras aquela que divide as relaes sociais constitutivas dos
coletivos indgenas em internas e externas, ou a que classifica esses coletivos em
mais ou menos tradicionais e aculturados, ou a que distingue entre relaes
ecolgicas (natureza) e sociais (cultura), ou ainda aquela que afirma a excluso
mtua entre as perspectivas da agncia (ou do processo) e da estrutura.
O movimento de incluso conceitual aqui proposto consequncia de mudanas
sobrevindas em nosso campo disciplinar nas ltimas dcadas. A seo a seguirdedica-lhes um comentrio.
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1.1. Pano de fundo
Os ltimos trinta e cinco anos, ao mesmo tempo em que assistiram a um enorme
avano quantitativo e qualitativo nos estudos de etnologia indgena, viram tambm
uma diferenciao da linguagem at ento comum aos etnlogos e aos outros
cientistas sociais do pas. Ainda que sendo uma consequncia da institucionalizao
da ps-graduao, da acumulao de conhecimentos e da expanso do contingente
de pesquisadores, fatores que conduzem especializao, esse afastamento foi
sobretudo o resultado de uma mudana de horizonte na etnologia brasileira.
proporo que se comeou a dedicar uma ateno mais detida s instituies e
organizaes sociais indgenas, que se passaram a adotar protocolos mais rigorosos
de pesquisa, com o aprendizado das lnguas nativas e estadas mais prolongadas no
campo, e que o intercmbio acadmico internacional se intensificou, os marcos de
inscrio do objeto se deslocaram. As conexes histricas e estruturais entre os
inmeros coletivos autctones, assim como as relaes entre estes e seus anlogos
morfolgicos de outras partes do mundo, passaram a ocupar um lugar de destaque
na reflexo etnolgica, reduzindo em muito a hegemonia das abordagens histrico-
sociolgicas que viam os ndios essencialmente como um captulo, findo ou menor,
da epopia da nacionalidade, isto , como populaes cujo interesse antropolgico
se resumia s suas contribuies cultura brasileira ou a seu papel de smbolo,
passado ou perene, dos processos de sujeio poltico-econmica que se
exprimiriam de modo mais moderno na dinmica da luta de classes de nosso
capitalismo autoritrio.
Se o deslocamento acima mencionado, que comeou no final dos anos 60,
desembocou em um modo de investigao distante das preocupaes
caractersticas da ideologia do nation-building e com isso afastou boa parte da
etnologia das demais cincias sociais, quase sempre entretidas com temas
brasileiros , contribuiu tambm para um divrcio entre duas linhas de pesquisapresentes na etnologia universitria das dcadas anteriores, e que at ento
haviam convivido em harmonia, praticadas sucessiva ou simultaneamente pelos
mesmos pesquisadores: a linha dos estudos preocupados em descrever
etnograficamente as formas socioculturais nativas, que mais tarde seria rotulada de
etnologia clssica; e a linha dos estudos de aculturao ou mudana social, mais
tarde associada noo-emblema de contato intertnico e a seus muitos
derivados e sucedneos. Essa fratura, que chegou, entre 1975 e 1985
aproximadamente, a definir algo como linhagens antagonistas os etnlogos dos
ndios puros ou isolados versus os dos ndios aculturados ou camponeses ,
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continua em vigor em alguns centros do pas, embora com sua significncia terica
completamente esvaziada, em vista das mudanas ocorridas a partir dos anos 80,
tanto na teoria e na prtica antropolgicas como na condio poltica dos povos
indgenas nos cenrios nacional e internacional, mudanas que dissolveram asoposies entre tradio e mudana, ndios puros e ndios aculturados.
Mas essa dissoluo no tomou a direo que se poderia imaginar porque o que
se dissolveu era, justamente, imaginrio. Assim, depois de anos de polmicas
candentes, em que os partidrios da sociologia do contato insistiam que a
condio camponesa (com opo de proletarizao) era o devir histrico inexorvel
e portanto a verdade das sociedades indgenas, e que a descrio destas
sociedades como entidades socioculturais autnomas derivava de uma postura
naturalizada e a-histrica, eis que de repente os ndios comeam a reivindicar, e
terminam por obter, o reconhecimento constitucional de um estatuto diferenciado
permanente dentro da chamada comunho nacional; eis que eles implementam
ambiciosos projetos de retradicionalizao marcados por um autonomismo
culturalista que, por instrumentalista e etnicizante, no menos primordialista
nem menos naturalizante; eis, por fim, que algumas comunidades rurais situadas
nas reas mais arquetipicamente camponesas do pas se pem a reassumir sua
condio indgena, em um processo de transfigurao tnicaque o exato inverso
daquele anunciado por Darcy Ribeiro (1970) em profecia acreditada, com um
retoque ou outro, pelas geraes subsequentes de tericos do contato.
At a dcada de 1970, os sistemas sociais e cosmolgicos da Amrica do Sul
tropical eram mal conhecidos e pior descritos. Este estado de coisas resultava da
insuficincia de etnografias confiveis, e da conseqente ausncia de modelos
analticos adequados compreenso da realidade indgena.1O instrumental terico
da disciplina havia sido, no essencial, forjado em dilogo com outras provncias
etnogrficas como a frica e a Austrlia , adequando-se mal descrio dassociedades amerndias.
Dentre as questes cruciais para a etnologia da regio, encontrava-se a prpria
definio das unidades sociais relevantes para a anlise sociolgica. Formadas por
1Para se ter uma idia, at a publicao da monografia de Maybury-Lewis sobre os Xavante(1967), a descrio teoricamente mais sofisticada que se dispunha sobre uma sociedadeindgena situada no Brasil consistia nas duas magistrais teses de Florestan Fernandes sobreos Tupinamb, baseadas em uma etnografia velha de quatro sculos e vazadas em umalinguagem analtica de difcil deglutio nos anos 70. Do ponto de vista descritivo, os tra-balhos de Nimuendaju eram evidentemente um marco, mas justamente por serem anmalosem sua alta qualidade etnogrfica. Sua influncia sobre Lvi-Strauss e mais tarde sobre ogrupo de Maybury-Lewis do conhecimento geral.
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uma multiplicidade de comunidades locais instveis e fluidas, tecendo relaes
multifacetadas entre si e inseridos em sistemas abertos, sem fronteiras tnicas
claramente demarcadas, as socialidades amaznicas resistiam s interpretaes
situadas no marco funcionalista, que pressupe unidades sociais discretas,totalidades orgnicas internamente articuladas, depositrias de necessidades e
funes que em ltima instncia visam a autoperpetuao do grupo. Tal
paradigma aplicava-se mal ao estudo da realidade etnogrfica sul-americana, e
conduziu a descries pela negativa, pondo em relevo antes as carncias
sobretudo, a falta de uma morfologia de grupos segmentares capazes de organizar
a transmisso de bens e direitos do que seus aspectos positivos. A teoria
fortesiana dos grupos de descendncia unilinear (Fortes 1953, 1969) encontrava
assim um obstculo de monta no cognatismo amaznico, que estaria situado, porassim dizer, aqum do modelo segmentar de organizao social que dominou o
imaginrio antropolgico sobre as sociedades primitivas.
Boa parte do esforo terico na etnologia americanista, entre os anos 70 e meados
dos 80, concentrou-se na construo de uma linguagem descritiva e de
instrumentos analticos que pudessem servir caracterizao dos princpios
organizacionais vigentes na Amrica tropical. Ora, tais princpios no se
encontravam apenas na sociologia, mas, sobretudo, na cosmologia. Ou antes, eles
s eram discernveis a partir de uma concepo segundo a qual sociologia e
cosmologia seriam dimenses inseparveis de uma mesma realidade, e, portanto,
passveis de uma descrio uniforme. Isso conduziu a um notvel salto quantitativo
e qualitativo na anlise do que se convencionou chamar sociocosmologiasnativas
(por exemplo, entre muitas, as etnografias de C. Hugh-Jones 1979, Seeger 1981,
Albert 1985, Crocker 1985, Viveiros de Castro 1986, e Descola 1986).
Tal avano foi precedido e possibilitado pela consolidao de uma abordagem
estruturalista ou mais exatamente, britnico-estruturalista das sociologiasnativas. A obra de Lvi-Strauss est na origem das questes formuladas tanto
pelos pesquisadores do projeto HarvardBrasil Central (dedicado aos estudos dos
povos de lngua j-bororo e coordenado por Maybury-Lewis [org. 1979]), como na
obra inaugural de Peter Rivire sobre os Trio (1969). Maybury-Lewis e Rivire
foram, ambos, alunos de Rodney Needham, um dos principais divulgadores de Lvi-
Strauss no cenrio antropolgico britnico. Ainda que de modos diferentes, eles
trouxeram o pensamento lvi-straussiano, aclimatado tradio britnica, para o
primeiro plano da etnologia regional. Juntamente com Joanna Overing Kaplan
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(1975; 1977), Rivire e Maybury-Lewis formularam as questes e definiram o estilo
que iriam dominar o americanismo nos anos seguintes.
A introduo do paradigma estruturalista da aliana na Amaznia e adjacncias
(mais geralmente, nas chamadas terras baixas da Amrica do Sul) implicou,
sobretudo, um novo procedimento metodolgico, atravs da adoo de uma
perspectiva resolutamente relacional. Adotou-se o clebre mote lvi-straussiano,
inspirado na fonologia estrutural, sobre a inverso da dominncia entre termos e
relaes, como forma de escapar s tentaes substantivistas (Taylor 1985) do
funcionalismo. Foi justamente esse deslocamento que permitiu pr em primeiro
plano os espaos de mediao, destacando a complexa dialtica entre exterioridade
e interioridade, alteridade e identidade, que marca as diversas sociocosmologias da
regio. Esta talvez tenha sido a contribuio mais efetiva do pensamento estrutural
compreenso da sociologia amaznica; ela permitiu escapar confuso entre
local e global entenda-se por isso a assimilao redutora das socialidades
indgenas s suas instncias locais, aldeias ou estabelecimentos , pondo em foco
os nexos constitutivos de redes sociais mais amplas. Tais nexos, como j apontara
Lvi-Strauss muito tempo atrs (1943), eram operados na Amrica do Sul tropical
pelas categorias de afinidade, em particular aquelas de afinidade simtrica entre
homens.2
O estruturalismo permitiu, portanto, mais que abrir algumas janelas na mnada
local amaznica, transform-la integralmente, por assim dizer, em um sistema de
janelas, ao deslocar a perspectiva para as interfaces e mediaes entre planos
sociocsmicos distintos. Certas evidncias empricas, ademais, colocaram em xeque
o privilgio das instncias locais para a comprenso da forma social amerndia. As
objees surgiram, em primeiro lugar, a partir de anlises diacrnicas dos mecanis-
mos de constituio e fragmentao das aldeias, que punham em relevo seu
carter provisrio e instvel, bem como sua dinmica poltica multifacetada(Overing Kaplan 1975). Em segundo lugar, elas resultaram de uma maior ateno
aos sistemas regionais e s redes de relaes supralocais. significativo que
muitas das evidncias contrrias ao entendimento anterior emergiram de estudos
sobre povos e regies onde esses sistemas ainda esto operantes Alto Rio Negro,
Jvaro, Yanomami ou onde h informaes histricas sobre como operavam
Tupinamb, Munduruku. Esses casos privilegiados conduziram a um terceiro
2Para uma elaborao desse tema, ver Viveiros de Castro (1993b, 1995 e 1998a), Viveirosde Castro & Fausto 1993, e Taylor 1998, entre outros. Sobre a contribuio doestruturalismo ao americanismo, ver Coelho de Souza e Fausto no prelo.
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movimento: como a maioria dos sistemas locais e regionais se articulavam no
apenas atravs de relaes de aliana e troca de bens, mas por meio de prticas
guerreiras, envolvendo canibalismo e captura de trofus (caa de cabeas, p.ex.),
ps-se a questo terica intrigante como dar conta de sistemas que pareciam seestruturar atravs de uma relao que, aos nossos olhos, era a prpria negao da
socialidade? Em outras palavras, como pensar a guerra como uma relao positiva,
sociogentica, e no como fruto de uma decomposio do vnculo social?
Uma vez que a guerra aparecia, assim, ao lado do idioma da afinidade, como um
dispositivo crucial na estruturao dos nexos sociais mais amplos dos sistemas
nativos, ela foi objeto de intenso investimento descritivo (Menget 1985; Albert
1985; Taylor 1985, 1993a, 2000; Chaumeil 1985; Viveiros de Castro 1986, 1993a,
1996a; Combs & Saignes 1991; Vilaa 1992; Verswijver 1992; Descola 1993a,
1993b; Lima 1995; Teixeira-Pinto 1997; Karadimas 1997; Surrals 1999; Fausto
1997; 1999a, 1999b, 2001a). Ao mesmo tempo, o foco sobre a guerra como
dispositivo permitiu sua abstrao enquanto prtica emprica e a tematizao da
predao como uma forma relacional extremamente produtiva em diversos
contextos da vida nativa.
O foco analtico recaiu tambm sobre outro dispositivo de articulao entre interior
e exterior: o xamanismo, instrumento de mediao entre humanos e no-humanosenquanto, ambos, sujeitos dotados de perspectiva. Essa temtica trouxe para o
primeiro plano as relaes entre os humanos e o mundo natural e sobrenatural,
conduzindo a uma redefinio dessas categorias, em particular da oposio entre
natureza e cultura (Descola 1992, 1996; Viveiros de Castro 1996b, 2002a; Lima
1995, 1999). Trouxe tambm o problema clssico do animismo para o interior da
teoria estrutural, agora com um novo estatuto, pois no se tratava mais de afirmar,
contra Lvi-Bruhl, que a atitude analtico-classificatria caracteriza tambm o
pensamento selvagem (Lvi-Strauss 1962a), mas sim de apontar as diferenasentre duas ontologias: uma fundada na oposio estanque e definitiva entre sujeito
e objeto, e outra na qual sujeito e objeto so posies relacionais e, portanto,
intercambiveis (ver Viveiros de Castro 1996a,b; Vilaa 1992, 1996a, 1996b, 1998,
1999, 2000; Fausto 1999, 2001a, 2002b).
A maioria dos pesquisadores-doutores do presente projeto iniciou sua participao
nesse esforo emprico e terico no quadro de um projeto do PPGAS/Museu Nacional
intitulado Etnografia e Modelos Analticos: Tipos de estrutura Social na Amaznia
Meridional, coordenado por E. Viveiros de Castro e financiado pela FINEP de 1985 aaproximadamente 1992. Este projeto resultou em um nmero de dissertaes de
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mestrado e teses de doutorado, seguidas sem interrupo por outras, conduzidas ou
finalizadas aps o trmino do apoio direto da FINEP. Entre outros, cabe mencionar os
trabalhos (vrios deles premiados pela ANPOCS ou ABA) de: Coelho de Souza 1992,
2002; Fausto 1991, 1997; Gonalves 1988, 2001; Gordon 2003; Lasmar 1996,
2002; Lima 1986, 1995; Silva 1993; Teixeira-Pinto 1989, 1997; Vilaa 1992, 1996b.
O projeto Etnografia e Modelos Analticos visava a ampliao do corpusetnogrfico
sul-americano por meio da descrio de sociedades pouco conhecidas da Amaznia,
dentre as quais os Juruna (Tupi), Wari (Txapakura), Arara (Carib), Parakan (Tupi-
Guarani), Waimiri-Atroari (Carib) e Mura-Pirah (Mura). A formulao dos problemas
de pesquisa inspirava-se em etnografias paradigmticas, ento recm-produzidas,
que definiam um novo horizonte terico-analtico para a etnologia sul-americana, por
meio da nfase na aliana matrimonial e na afinidade como articuladores de amplos
sistemas sociocosmolgicos. Os dois principais focos temticos do projeto eram asestruturas de parentesco e os regimes cosmolgicos globais das sociedades
indgenas. No se tratava, como dissemos, de tomar estas dimenses
separadamente, mas de inseri-las em uma mesma descrio. A essncia do
problema era como construir um modelo terico capaz de operar sem a separao
entre o simblico e o real, permitindo que se descrevessem as redes sociais
empricas juntamente com o conjunto de relaes cosmolgicas.
Os resultados tericos do projeto, que se somaram contribuio propriamente
descritiva e etnogrfica, foram muito significativos. Em primeiro lugar, produziu-seuma nova conceitualizao do parentesco amerndio, que aliava rigor formal
sensibilidade etnogrfica. Os estudos sobre os sistemas dravidianos amaznicos, que
levaram a uma reavaliao do papel poltico e simblico da afinidade como categoria-
chave das sociocosmologias nativas, foram aqui de particular importncia (ver
Viveiros de Castro 1993b, 1998a, 2001; Viveiros de Castro e Fausto 1993; Silva
1995; Fausto 1995; Coelho de Souza 1995).
Em segundo lugar, o projeto produziu uma srie de novas formulaes sobre os
fenmenos da guerra e do canibalismo, tomados como fatos sociais positivos que
articulam, emprica e simbolicamente, unidades sociais e categorias cosmolgicas.
Tais resultados foram elaborados nas teses de Vilaa (1992; 1996b), Lima (1995),
Teixeira-Pinto (1997) e Fausto (1997), bem como em artigos em livros e revistas
especializadas (Viveiros de Castro 1996a; Fausto 1992, 1999a, 1999b e 2001a;
Vilaa 1998, 2000e, 2000b).
Por fim, o projeto permitiu a elaborao de uma nova teoria sobre a filosofia
xamnica, conhecida por perspectivismo, com considervel impacto sobre a
produo internacional, e que abriu novas possibilidades de comparao continental
(Lima 1996, 1999, 2002; Viveiros de Castro 1996a, 1998b, 2002a; Vilaa 1998,1999, 2000, 2002; Fausto 2002a).
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Quando o processo de expanso da etnologia americanista j se encontrava
razoavelmente consolidado, comeou a ser possvel uma retomada do tema da
mudana e da histria em novas bases, deixando para trs os paradigmas daaculturao ou do contato intertnico. Um dos trabalhos mais importantes neste
sentido foi a monografia de Peter Gow (1991) sobre os Piro da Amaznia peruana,
que marcou o fim da distino entre os ndios puros e seus etnlogos puristas, de
um lado, e os ndios misturados e seus etnlogos radicais, de outro. Escrevendo
sobre um grupo indgena que parecia um caso terminal de aculturao,
acamponesamento e sujeio aos poderes estatais, Gow mostrou como s se
poderia atingir uma compreenso adequada do mundo vivido piro atravs de sua
insero no panorama construdo pela etnologia dos ndios puros. Lanando modos trabalhos de Overing e de Viveiros de Castro sobre as filosofias sociais
amaznicas (1991: 27581, 290ss), o autor argumentou que o estado aculturado
dos Piro era uma transformao histrica e estrutural dos regimes nativos
tradicionais, e mais que isso, que a transformao, enquanto tal, era um processo
inerente ao funcionamento destes regimes regimes que sempre tiveram a
aculturao por origem e fundamento da cultura, e a exterioridade social por plo
em perptuo movimento de interiorizao.3
A etnologia dita clssica, assim, incorporou a questo do contato intertnico como
parte da questo geral, e indgena, da transformao, valendo-se dos
conhecimentos que viera acumulando desde as dcadas anteriores. Esse
movimento pode ser observado em trabalhos mais recentes de membros do
presente projeto, os quais j vm enfrentando a questo por meio de pesquisas
sobre escola, oralidade e escrita (Franchetto 1994a, 1994b, 2002); missionarismo e
converso (Vilaa 1997, 2002, 2003; Viveiros de Castro 1993a; Fausto no prelo a);
novas formas de consumo (Gordon 2003); a implantao citadina de famlias
indgenas (Lasmar 2002); problemas relativos histria e historicidade (Franchetto
e Heckenberger 2001, Fausto e Heckenberger no prelo, Fausto 2002a, 2002b); as
relaes entre mito, histria e etnicidade (Calavia Saz 1995, 2000, 2001).
Essas contribuies tornaram-se possveis medida em que o tema e o conceito da
transformao foram liberados da teoria do acamponesamento e de outras
objetivaes igualmente redutoras, passando a se inscrever no plano mesmo dos
pressupostos cosmoprticos dos regimes nativos. Recusando-se a tomar o mundo
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indgena como simples palco de manifestao de uma estrutura de dominao
algena, como um arbitrrio cultural que apenas particularizaria uma dinmica
geral de sujeio, a etnologia clssica estendeu sua prpria visada terica de um
modo que lhe permitiu redefinir os brancos, o estado ou o capitalismo como outrostantos daqueles arbitrrios histricoscom que sempre se houveram e havero os
sistemas nativos (ver, p.ex., Albert 1988, 1993; Gallois 1993; Gow 2001; S. Hugh-
Jones 1988; Turner 1991a, 1993; Calavia Saz 1995; Vilaa 1996a; Wright (org.)
1999; Albert & Ramos (orgs.) 2000).
No estamos aqui, sublinhe-se, opondo uma Essncia cultural ao Acidente histrico,
isto , no estamos simplesmente invertendo o determinismo que v na Histria o
avatar eminente da transcendncia e colocando a Cultura indgena no lugar daquela.
(No foi para isso que a antropologia fez sua revoluo). Parafraseando Benveniste,
argumentaramos que tanto a cultura como a histria so arbitrrias a priori, mas
motivadas (ou seja, necessrias) a posteriori. Trata-se, em suma, de reconhecer que
o que conta como arbitrrio depende exclusivamente do ponto de vista analtico e
da hierarquia explicativa que se escolheu adotar. Tudo se resume em saber onde se
decide fixar o foco, isto , a necessidade no aparelho de dominao colonial, ou
na cosmopraxis nativa? Questo terico-poltica.
Em outras palavras, privilegiar a agncia histrica nativa entenda-se, o modo
pelo qual os dispositivos indgenas de subjetivao digerem o evento em geral nada tem a ver com uma busca de ndios isolados ou de reas preservadas da vida
social indgena, e menos ainda com uma celebrao da resistncia das culturas
nativas face aos processos histricos de espoliao e dominao. Parafraseando a
observao de Lvi-Strauss (1958: 17) sobre o funcionalismo: dizer que no h
sociedade indgena fora de uma situao de contato com a sociedade nacional um
trusmo; dizer, porm, que tudonessa sociedade se explica pela situao de contato
com a sociedade nacional um absurdo. Ora, esse tudo no deve evidentemente
ser tomado em extenso, isto , como se uma sociedade fra um objeto composto
de partes. O que estamos dizendo que impossvel que um coletivo humano sejaconstitudo seno pelo que ele prprio constitui. (O que no quer dizer, bem
entendido, que ele controleo que constitui; tudo o que fazemos no cessa de nos
escapar, por todos os lados. E no obstante s o que fazemos pode nos escapar.)
Estamos dizendo, em suma, que o que a histria fez dos povos indgenas
inseparvel do que estes povos fizeram da histria. Fizeram-na, antes de mais nada,
sua; e se no a fizeram como lhes aprouve pois ningum o faz , nem por isso
deixaram de faz-la a seu modo pois ningum pode faz-lo de outro.
3 Essa idia de uma tradio da transformao na Amaznia indgena foi retomada eaprofundada por Gow em trabalho posterior (Gow 2001).
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Para que tudo isso fosse possvel, foi necessrio etnologia abrir os sistemas
nativos, abandonando as imagens conceituais de sociedade e de cultura legadas
pelo funcionalismo britnico e o culturalismo americano. Embora inspirada na crtica
estruturalista s concepes totalizantes do objeto vigentes nos paradigmas
anteriores, semelhante abertura foi acima de tudo o resultado e este um
detalhe absolutamente fundamental de uma anlise mais fina das premissas
socioculturais nativas. A nova sociologia indgena que emergiu dos anos 70 teve
como instrumento e objetivo uma indigenizao da sociologia e foi isto que lhe
deu seu carter propriamente antropolgico.
Tal sociologia indgena e entendemos por isso a imagem do nexo social imanente
s formas e prticas indgenas , como os trabalhos que nosso grupo realizou nadcada de 90 vieram a demonstrar, uma sociologia da relao, daperspectivae
da metamorfose. As sees seguintes desenvolvem essa afirmao.
1.2. Identidade, relao; alteridade, alterao
Os novos temas que tencionamos abordar nesse projeto so, via de regra,
conceitualizados pela antropologia dentro de um paradigma interpretativo que tem
a identidade por categoria-mestra. Por isso mesmo, essa noo desempenhar afuno de anti-conceito focal do projeto, isto , ela ser seu principal alvo
polmico. Entendemos que as ditas teorias relacionais da identidade hoje em voga
na disciplina em particular aquelas tributrias do texto seminal de Fredrik Barth
(1969) , so, na verdade e muito pelo contrrio, apenas teorias identitrias da
relao, escapando da posio substancialista clssica que vieram a deslocar, onde
a identidade est na origem e no fundamento do vnculo social, apenas para carem
em uma posio formalista e teleolgica, onde ela a finalidade e razo da relao.
Em suma, as relaes sociais continuam sendo vistas essencialmente comorelaes de identificao. O fato da identificao ser contrastiva ou relacional no
muda nada; pois se a identidade suposta ser criada pela relao, resta que a
relao est postaparaa identidade: a causa final da relao revela-se sua causa
formal. A diferena admitida em cena na funo exclusiva de parteira do Mesmo.
Eis como se fecha o crculo vicioso identitrio, e sua langue de bois, sobre a
conceitualidade antropolgica.
Pois bem, para diz-lo breve e brusco, acreditamos que o conceito de identidade,
pelo menos no que concerne antropologia, est teoricamente obsoleto. To
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obsoleto, alis, como o conceito de sociedade (Ingold [org.] 1996) pelas mesmas
exatas razes, e a fortiori. Em vista do que nossas pesquisas anteriores nos
ensinaram sobre as ontologias indgenas, cuidamos que imperativo comear a
imaginar teoricamente um conceito de relao que no tenha a identidade (a auto-relao) como seu prottipo, sua origem ou sua finalidade. Trata-se, em suma, de
tentar realizar efetivamenteo desiderato universalmente expresso de uma teoria
relacional da identidade com a ajuda decisiva das concepes amerndias.
Apressemo-nos a evocar, para revocar, o falso dilema: estaramos talvez em busca
de uma teoria antropolgica alternativa da (ou ) identidade em geral (ou em
universal), ou estaramos nos propondo ao contrrio a reconstituir etnograficamente
uma teoria indgena particular, um modelo nativo da identidade? A resposta :
ambas as coisas, e nenhuma delas. Eis porque o dilema se nos afigura sem sentido.Pois trata-se, apenas e sempre, de examinar os efeitostericospossveis de certas
idias e prticas indgenas (aquelas que se deixam construir como projetando uma
teoria ou anti-teoria virtual da identidade) sobre certas idias e prticas ocidentais,
assumidas (ou quase) pela antropologia como matria conceitual universal. Trata-se,
enfim e simplesmente, nem mais, nem menos, de tentarpr em relaouma certa
imagem da relao, aquela que se exprime no longo discurso ocidental, ao mesmo
tempo montono e polifnico, sobre a identidade, com certa outra imagem da
relao, a imagem indgena cuja forma cannica, como veremos, um discurso
sobre a alteridade.
O que estamos sugerindo, na verdade, a incompatibilidade entre duas concepes
da antropologia, e a necessidade de escolher entre elas. De um lado, temos uma
imagem do conhecimento antropolgico como resultando da aplicao de conceitos
extrnsecos ao objeto: sabemos de antemo o que so as relaes sociais, ou a
cognio, o parentesco, a religio, a poltica etc., e vamos ver como tais entidades se
realizam neste ou naquele contexto etnogrfico como elas se realizam, claro,
pelas costas dos interessados. De outro lado, est uma idia do conhecimento
antropolgico como envolvendo a pressuposio fundamental de que os
procedimentos que caracterizam a investigao so conceitualmente de mesma
ordem que os procedimentos investigados. Tal equivalncia no plano dos
procedimentos, sublinhe-se, supe e produz uma no-equivalncia radical de tudo o
mais. Pois, se a primeira concepo de antropologia imagina cada cultura ou
sociedade como encarnando uma soluo especfica de um problema genrico ou
como preenchendo uma forma universal (o conceito antropolgico) com um contedo
particular (a representao nativa) , a segunda, ao contrrio, suspeita que os
problemas eles mesmos so radicalmente diversos; sobretudo, ela parte do princpio
de que o antroplogo no sabe de antemo quais so eles. O que a antropologia,
nesse caso, pe em relao so problemas diferentes, no um problema nico
(natural) e suas diferentes solues (culturais). A arte da antropologia a arte de
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determinar os problemas postos por cada cultura, no a de achar solues para os
problemas postos pela nossa (essa foi uma das lies mais importantes que
aprendemos com Marilyn Strathern [1988]). E exatamente por isso que o
postulado da continuidade dos procedimentos , para ns, um imperativo categrico
epistemolgico.
Qual, afinal, o objeto da nossa disciplina? A sociedade, a cultura, a natureza
humana? Admitamos, pois se h de comear por algum lugar, que a matria
privilegiada da antropologia seja a socialidade humana, isto , o que chamamos de
relaes sociais; e aceitemos a ponderao (de Gell 1998: 4) de que a cultura, por
exemplo, no tem existncia independente de sua atualizao nessas relaes (o
mesmo se poderia dizer, alis, da natureza humana: que ela no existe fora da
matriz relacional). Resta, ponto importante, que tais relaes variam no espao e no
tempo; e se a cultura no existe fora de sua expresso relacional, ento a variaorelacional tambm variao cultural, ou, dito de outro modo, cultura o nome
que a antropologia d variao relacional.
Mas essa variao relacional no nos obrigaria ela a supormos um sujeito, um
substrato invariante do qual ela se predica? Questo sempre latente, e insistente em
sua suposta evidncia; questo, sobretudo, mal formulada. Pois o que varia
crucialmente no o contedo das relaes, mas sua idia mesma: o que conta
como relao nesta ou naquela cultura. No so as relaes que variam, so as
variaes que relacionam.E se assim , ento o substrato imaginado das variaes,a natureza humana para passarmos ao terceiro conceito central da tradio
antropolgica , mudaria completamente de funo, ou melhor, deixaria de ser uma
substncia e se tornaria uma verdadeira funo. A natureza deixaria de ser uma
espcie de mximo denominadorcomum das culturas (mximo que um mnimo,
uma humanitas minima), uma sorte de fundo de semelhana obtido por
cancelamento das diferenas entre elas. Ela passaria a ser algo como um mnimo
mltiplo comum das diferenas, ou algo como a integral parcial das diferentes
configuraes relacionais que chamamos culturas. O mnimo , nesse caso, a
multiplicidade comum ao humano humanitas multiplex. A dita natureza deixariaassim de ser uma substncia auto-semelhante situada em algum lugar natural
privilegiado (o crebro, por exemplo), e assumiria ela prpria o estatuto de uma
relao diferencial, disposta entre os termos que ela naturaliza: tornar-se-ia o
conjunto de transformaes requeridas para se descreverem as variaes entre as
diferentes configuraes relacionais conhecidas.
O objeto da antropologia, assim, seria a variao das relaes sociais. No das
relaes sociais tomadas como uma provncia ontolgica distinta, mas de todos os
fenmenos possveis enquanto relaes sociais, enquanto implicam relaes sociais:
de todas as relaes como sociais. Mas isso de uma perspectiva que no seja
totalmente dominada pela doutrina ocidental das relaes sociais; uma perspectiva,
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portanto, pronta a admitir que o tratamento de todas as relaes como sociais pode
levar a uma reconceituao radical do que seja o social. Digamos ento que a
antropologia se distinga dos outros discursos sobre a socialidade humana no por
dispor de uma doutrina particularmente slida sobre a natureza das relaes sociais,
mas, ao contrrio, por ter apenas uma vaga idia inicial do que seja uma relao.
Pois seu problema caracterstico consiste menos em determinar quais so as relaes
sociais que constituem seu objeto, e muito mais em se perguntar o que seu objeto
constitui como relao social, o que uma relao social nos termos de seu objeto,
ou melhor, nos termos formulveis pela relao entre o antroplogo e o nativo.4
Em outras palavras e em suma, a categoria-mestra do presente projeto a idia de
relao, que define no s nosso problema como nosso mtodo. Entendemos que
identidade o nome de umadas formas assumidas pelo fato absoluto da relao
a forma culturalmente privilegiada na tradio ocidental. A forma prototpica da
relao na tradio amerndia, por seu lado, o que chamamos de alteridade.
Detalhemos.
Um modo de definir nosso projeto dizer que seu foco a imaginao conceitual
das culturas nativas da Amaznia, e que sua abordagem antropolgica, pois
descreve tal imaginao do ponto de vista das relaes sociais que ela implica. Os
pargrafos a seguir tentam precisar os termos as palavras e os limites de
semelhante declarao de intenes, a natureza do experimento intelectual que elaprope, e o campo de problemas em que ela se situa.
O projeto no trata as relaes sociais como causa ou sujeito da imaginao
amaznica, menos ainda como seu objeto ou efeito; isto , ele no distingue entre
sociedade e cultura, e assim no as ordena causalmente. As relaes sociais so
tomadas como dimenso intrnseca ao exerccio dessa imaginao, o espao
implcito que ela percorre. Dito de outro modo, elas no so uma ordem
transcendente ao pensamento, mas seu elemento imanente: nem contexto, nem
texto, formam a contextura prpria da cosmopraxis indgena.
Em seguida, tais relaes vo qualificadas de sociais somente em ateno
preliminar s nossas convenes cosmolgicas, pois o que se tenciona apreender
o conceito geral de relao imaginado pelo pensamento indgena, e a constituio
deste pensamento como imaginao relacional. O esquema ou figura de tal conceito
radica-se, decerto, em uma intuio da socialidade como implicada na prpria
4Para uma exposio dessa concepo relacionalista do conhecimento antropolgico, veja-seViveiros de Castro 2002b.
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trama do cosmos; mas por isso mesmo que a expresso relao social , a rigor,
um pleonasmo, de utilidade apenas temporria. As concepes indgenas sugerem,
alm disso, uma idia da relao como consistindo em um tipo de dinamismo mais
que em um tipo de atributo. As relaes so aqui virtualidades relacionantes,relaes que acionam e diferenciam relaes; mais precisamente, elas envolvem a
existncia de uma diferena de potencial que se atualiza em seus termos, ou
relaes relacionadas (Simondon 1995). Os termos substncias, propriedades e
identidades devem ser interpretados como resduos das relaes que os
constituem, aquilo que surge e sobra quando estas se consumam e se consomem.
(Mas resta sempre, ponto crucial, uma virtualidade relacional irredutvel nesse
resduo, algo que ele no pde atualizar. A mquina ritual amerndia depende disso,
e serve para isso.)
Uma relao, em particular talvez porque ela no seja uma relao particular
, funciona como fio condutor de nossa reflexo. Um dos temas centrais do
projeto, e a isso que nos referamos ao falar na intuio de uma socialidade
csmica, o sentido da relao dealteridadeno pensamento amerndio. H muito
que os etnlogos interessados na Amrica tropical vm insistindo sobre a
importncia da alteridade, em seu duplo aspecto de forma e de processo, na
economia simblica dos povos dessa regio. Essa importncia foi por vezes
atribuda a um certo estilo cognitivo panamericano (qui primitivo em geral), que
privilegiaria as classificaes dualistas e as oposies binrias. Temos que
semelhante propenso, se o caso realmente de cham-la assim, antes um
fenmeno derivado, uma repercusso abstrata de algo que pouco tem de cognitivo,
de classificatrio, ou de simplesmente binrio algo de que os dualismos
indgenas so o limite inferior ou a verso reduzida, e que lhes imprime um vis
caracterstico (Lvi-Strauss 1991). As dualidades to frequentes nas cosmologias
amaznicas formam apenas as margens, incessantemente desfeitas e refeitas,
entre as quais flui o pensamento nativo. Longe de ser o avatar de um Dois aobcecar a razo indgena, a alteridade est situada, como diria Guimares Rosa, na
terceira margem desse rio.
Em outras palavras, a alteridade se inscreve nos pressupostos da imaginao
indgena como o campo prprio do pensvel. Ela a marca da presena de Outrem
(Deleuze 1969a; ver abaixo) enquanto relao a priori ou condio geral de
atualizao dos estados de coisas e corpos que constituem o mundo. Tal condio
se reflete na cosmopraxis nativa sob a forma de um esquema conceitual virtual,
que Viveiros de Castro (1996b) e Lima (1996) vieram a chamar deperspectivismo,
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devido a algumas analogias com as orientaes filosficas assim denominadas.5A
idia bsica (que no uma idia simples) do perspectivismo, tanto o indgena
como seu anlogo ocidental, que toda posio de realidade especifica um ponto
de vista, e que todo ponto de vista especifica um sujeito nessa ordem. No casoindgena, tal especificao em primeiro lugar uma especiao, pois a diferena de
ponto de vista entre humanos e no-humanos ali uma questo fundamental, e a
realidade assim posta compreende a realidade reflexiva do sujeito, individual ou
coletivo, uma vez que toda posio de identidade envolve a perspectiva do Outro
(Taylor 1993b: 673) como um momento constitutivo. O perspectivismo implica
portanto a alteridade: a diferena como ponto de vista, o ponto de vista como
diferena e a diferena comopositiva, nos dois sentidos da palavra.
Nesse sentido, o perspectivismo amaznico poderia ser descrito como uma
ontologia relacional, isto , como uma imagem do ser na qual a relao ocupa o
lugar da substncia enquanto categoria primeira. Uma ontologia relacional,
ademais, onde a relao primeira o nexo de alteridade, a diferena ou ponto de
vista implicado em Outrem. No bastaria dizer ento, com Gilbert Simondon (1995:
30, 126), que a relao tem o estatuto de ser, uma modalidade do ser, uma
relao no ser. Aqui, o ser que teria o estatuto de relao: a substncia uma
modalidade da relao, os termos so a relao em seu estado explicado, e a
relao a diferena ou disparidade entre os termos em que ela se desenvolve.6
Dissemos acima que h um razovel consenso do discurso americanista no tocante
importncia do vnculo de alteridade. Como todo consenso, altamente provvel
que este tambm repouse sobre um mal-entendido, e envolva um processo de
esvaziamento semntico. Um dos objetivos do presente projeto tentar uma
tematizao mais rigorosa do estatuto da alteridade na cosmopraxis indgena, tanto
por via de novas pesquisas empricas de campo como por um esforo de lhe dar
5 O perspectivismo filosfico a que nos referimos est associado originalmente ao nome deLeibniz, mas se acha tambm presente em pensadores como, entre outros, Nietzsche, Tarde,Whitehead ou Deleuze.6 Formulao que leva adiante uma sugesto do mesmo Simondon, quando recomendavauma apreenso realista das relaes e nominalista dos termos (op.cit.: 82), de modo acompensar o vis inverso de nossa metafisica. A tese de Simondon sobre o processo deindividuao forneceu vrios dos instrumentos utilizados neste projeto. Observe-se que, seo ser uma modalidade da relao e existir habitar uma perspectiva (como sugereWhitehead), o processo de constituio recproco, e mais ainda, reflexivo: cadaperspectiva cada ser ao mesmo tempo constitutivo de suas relaes de seuponto devista, portanto definindo uma relao vetorial, e constitudo pelas suas relaes (Ross1983:6). Em outras palavras, e como foi ponderado mais acima, s podemos serconstitudos pelo que constitumos, mas isso no nos torna menosconstitudos. (Essa idia central para o construtivismo realista de Bruno Latour, por exemplo, e que outra balizaimportante para nosso projeto.)
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consistncia conceitual, isto , de situ-lo em um campo problemtico bem
definido.
Para tanto, faz-se necessrio desenvolver a mtua implicao dos conceitos de
perspectivismo e de alteridade, e distingui-los inequivocamente de dois falsos
amigos com os quais costumam ser confundidos. Trata-se de mostrar, de um lado,
como o perspectivismo indgena (uma ontologia da relao) pouco tem a ver com o
relativismo moderno (uma epistemologia do relativo), e, de outro, como a
alteridade amaznica (o Eu e o Outro como efeitos da relao-Outrem) resiste a
uma traduo no vocabulrio da intersubjetividade (o Eu e o Outro como
contedos da forma-Sujeito), empregado pelos simpatizantes das abordagens neo-
fenomenolgica atualmente difundidas na antropologia.7
A distino entre perspectivismo e relativismo j foi esboada em textos anteriores
de membros do presente grupo (Lima 1996, Viveiros de Castro 1996b); mas a
irreduo do regime de alteridade amaznico a um tipo de intersubjetivismo algo
cuja necessidade s se nos tornou bvia recentemente, obrigando-nos a rever
algumas formulaes, e mesmo, como logo veremos, o prprio nome dessa relao
que vamos chamando alteridade. Tal reviso tem consequncias para o conceito
de perspectivismo, pois permite evitar sua trivializao em uma forma de idealismo
intersubjetivo ou de construcionismo social. Mas ela se imps, em primeiro lugar,em vista de um melhor entendimento dos dispositivos de subjetivao indgena, e
de uma imaginao mais precisa das relaes ou melhor, da relao referidas
pela etnologia americanista pelos nomes de troca e reciprocidade, predao e
inimizade.
A reviso se mostrou necessria, acima de tudo, para dissipar qualquer conotao
de transcendncia que possa alguma vez ter sido dada idia de Outro no mundo
indgena: que os deuses arawet sejam outros, por exemplo (Viveiros de Castro
1986), no significa que o Outro arawet seja Deus. A alteridade
indubitavelmente um dispositivo transcendental da cosmopraxis nativa, mas no
projeta nenhuma imagem do transcendente; trata-se, ao contrrio, da modalidade
7Estamos cientes de que mais de um dentre os colaboradores potenciais de nosso projetojuram por algum tipo de credo fenomenolgico. No sofremos de nenhuma antipatia visceralpor tais abordagens, mas no pensamos que elas constituam a melhor sada. O problemacom o dispositivo conceitual da intersubjetividade que ele est seguro de antemo sobre oque (e quem ) um sujeito. Ora, que o nativo estudado pelo antroplogo seja um sujeito,no h a menor dvida; mas o que pode ser um sujeito, eis precisamente o que o nativo
obriga o antroplogo a pr em dvida. Tal a cogitao especificamente antropolgica; sela permite antropologia assumir completamente a presena virtual de Outrem que sua
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mesma de imanncia desse pensamento.8Ela a verso amerndia daquilo que Roy
Wagner, em um contexto melansio, chamou de mundo da humanidade imanente
(1981: 86-89), onde a cultura da ordem do fato, e a natureza, do feito. Este
mundo da humanidade imanente, escusado advertir, est nas antpodas dequalquer forma de humanismo, assim como o mundo da alteridade imanente est
nas antpodas de qualquer forma de altrusmo. H bem mais sujeitos, no mundo
indgena, que os sujeitos humanos; em certo sentido, h mais humanos nesse
mundo que os membros da espcie epnima; mas isso s faz tornar as concepes
nativas de sujeito e de humanidade ainda mais irredutveis, se isso possvel,
nossa vulgata modernista.
No se trata, insistimos, de propugnar uma forma de idealismo intersubjetivo, nem
de fazer valer os direitos supremos da razo comunicacional ou do consenso
dialgico. Nosso ponto de apoio aqui o conceito de Outremcomo estrutura a priori,
proposto no conhecido comentrio de Gilles Deleuze ao Vendredide Michel Tournier.9
Lendo o livro de Tournier como a descrio ficcional de uma experincia metafsica
o que um mundo sem outrem? , Deleuze procede a uma induo dos efeitos da
presena desse outrem a partir dos efeitos causados por sua ausncia. Outrem
aparece, assim, como a condio do campo perceptivo: o mundo fora do alcance da
percepo atual tem sua possibilidade de existncia garantida pela presena virtual
de um outrem por quem ele percebido; o invisvel para mim subsiste como real por
sua visibilidade para outrem.10 Outrem, porm, no ningum, nem sujeito nem
objeto, mas uma estrutura ou relao, a relao absoluta que determina a ocupao
das posies relativas de sujeito e de objeto por personagens concretos, bem como
sua alternncia: outrem designa a mim para o outro Eu e o outro eu para mim.
Outrem no um elementodo campo perceptivo; oprincpioque o constitui, a ele
e a seus contedos. Outrem no , portanto, um ponto de vista particular, relativo
ao sujeito (o ponto de vista do outro em relao ao meu ponto de vista ou vice-
versa), mas a possibilidade de que haja ponto de vista ou seja, o conceito de
ponto de vista. Ele oponto de vista que permite que o Eu e o Outro acedam a um
ponto de vista.
condio a condio de passagem de um mundo possvel a outro , e que determina asposies derivadas e permutveis de sujeito e de objeto.8 Recordemos a diferena, de origem kantiana, entre o transcendental (cujo antnimo emprico), que remete s condies de possibilidade da experincia, situando-se aqumdesta, e o transcendente (cujo antnimo imanente), que se refere ao que est almdatoda experincia possvel, isto , ao supra-sensvel ou s coisas-em-si.9Publicado em apndice a Logique du sens (Deleuze 1969a: 35072). Ele retomado, emtermos praticamente idnticos, em Quest-ce que la philosophie?(Deleuze & Guattari 1991:2124, 49).10 [O]utrem para mim introduz o signo do no-percebido naquilo que percebo,determinando-me a apreender o que no percebo como perceptvel para outrem (Deleuze1969a: 355).
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Deleuze prolonga aqui criticamente a famosa anlise de Sartre sobre o olhar,
afirmando a existncia de uma estrutura anterior reciprocidade de perspectivas do
regardsartriano. O que essa estrutura? Ela a estrutura do possvel: Outrem a
expresso de um mundo possvel.Um possvel que existe realmente, mas que no
existe atualmente fora de sua expresso em outrem. O possvel exprimido est
envolvido ou implicado no exprimente (que lhe permanece entretanto heterogneo),
e se acha efetuado na linguagem ou no signo, que a realidade do possvel
enquanto tal o sentido. O Eu surge ento como explicao desse implicado,
atualizao desse possvel, ao tomar o lugar que lhe cabe (o de eu) no jogo de
linguagem. O sujeito assim efeito, no causa; ele o resultado da interiorizao de
uma relao que lhe exterior ou antes, de uma relao qual ele interior: as
relaes so originariamente exteriores aos termos, porque os termos so interiores
s relaes. H vrios sujeitos porque h outrem, e no o contrrio (Deleuze &
Guattari 1991: 22).
O conceito de Outrem, em suma, parece-nos fornecer um instrumento interessante
de traduo do regime de alteridade amaznico; mais interessante, queremos dizer,
que as hermenuticas intersubjetivas visadas pela antropologia contempornea como
alternativa aos positivismos disponveis no mercado. Mais adequado tambm, talvez,
que as interpretaes dialticas da alteridade como trabalho do negativo no sujeito.
Pois Outrem no , enquanto tal, o Outro, isto , o outro (alter) doSujeito; ele
um outro (aliud) queo sujeito, uma multiplicidade virtual de onde emergem todo Eu
e qualquer Outro. Outrem a diferena relacional pura ou molecular, anterior suamolarizao no par opositivo e relativo Eu/Outro. A oposio, como j ensinava
Tarde, a verso macroscpica, simplificada e normalizada da diferena, no o seu
modelo; ela o primeiro compromisso entre a diferena e a identidade.
Aqui se comea a poder perceber, enfim, o que h de equvoco, ou pelo menos de
impreciso, na noo de alteridade: ela no permite distinguir entre o outro e
Outrem, o termo alterno ao sujeito e a relao que os altera a ambos. A noo
sugere, sobretudo, uma extrinsicidade ou transcendncia do Outro face ao Eu, ao
passo que no regime amerndio, como se depreende mais ou menos claramente daetnografia, a perspectiva do Outro uma determinao imanente dos dispositivos
de subjetivao nativos: trata-se de uma alteridade interna. Com seu sufixo de
estado ou de atributo, a forma alteridade sugere ainda uma imagem finalizada
literalmente, terminada da relao, que a toma a partir de seus termos, como
relao relacionada e no como relao relacionante: oposio extensiva antes que
diferena intensiva.11
11 Se h uma insuficincia importante na metodologia antropolgica que mais fez paraafirmar o primado da relao diferencial o estruturalismo , esta reside em suaconcepo exclusivamente extensivista da diferena; ver as discusses em Lvi-Strauss (org.
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Seria preciso achar uma outra palavra. O termo que melhor caberia est,
infelizmente, ocupado h muito tempo, e por um locatrio conceitual que no
poderia ser mais antagnico ao sentido aqui visado: alienao, que tem a tripla
vantagem de ser um nome de ao e no de estado, de estar mais prximo do
aliud latino e no do alter, e de designar uma diferena interna ao sistema da
subjetividade. Mas intil insistir por a, sob pena de criar toda sorte de mal-
entendidos. Assim, propomos que se distinga entre a alteridade, oposio extensiva
entre Eu e no-Eu, e a alterao, diferenciao intensiva caracterstica da
estrutura-Outrem. A alteridade procede da alterao, a alterao se resolve ou
desenvolve em alteridade, mas no se confunde com esta: Outrem sempre
percebido como outro, mas em seu conceito ele a condio de toda percepo,
para os outros como para ns (Deleuze & Guattari 1991: 24). A alterao est
para a alteridade como uma relao virtual implicada est para os termos atuais
em que ela se explica. A alterao no dada; o dado a alteridade: mas a
alterao aquilo pelo qual o dado se d como alteridade.
No h alteridade sem alterao. Abstrada da potncia de alterao de que
procede, a alteridade se congela em uma relao meramente formal, e
frequentemente degenera em uma taxonomia de oposies diacrticas entre
posies constitudas. No caso da antropologia amaznica, isso muitas vezes setraduziu em uma sociologia verbal (como um de ns diagnosticou, cf. Calavia
Saz 1995: 249) de categorias de identidade e de autodesignaes coletivas
uma timo-sociologia da identificao antes que uma etno-sociologia da alterao
, e em uma cartografia esttica de crculos de distncia social, quando no em
anlises cognitivas que reduziam toda diferena a uma classificao, todo
pensamento a um reconhecimento, todo conceito a um taxon: triunfo do extensivo,
anulao total das diferenas de intensidade portadas pela alterao.
Alterao, ento, designaria o processo de atualizao da alteridade que o efeito
prprio de Outrem como relao a priori. A palavra processo vai entre aspas
porque no se trata, a rigor, de um processo, ou melhor, no se trata apenas disso:
o processo de atualizao da alteridade se dobra de um contra-processo involutivo,
um devir, que contra-inventa ou contra-efetua a alterao por outros caminhos.
Essas idias de uma contra-inveno do dado (Wagner 1981) ou de uma contra-
1977), e a retomada anunciada do problema em Viveiros de Castro (2002c). Para uma
explorao e generalizao do contraste kantiano entre grandezas extensivas e intensivas,ver Deleuze (1969b). A questo da intensi(vi)dade liga-se diretamente problemtica do
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efetuao do virtual (Deleuze & Guattari 1991) comearam a ser testadas em um
trabalho recente de Viveiros de Castro (2001, 2002a) sobre a construo do
parentesco amaznico. Mas seu rendimento mais promissor parece-nos estar na
formulao de uma teoria sobre a forma e funo dos rituais no mundo amerndio(ver adiante, item 2.1, Transformaes rituais).
Alterao, enfim, porque essa palavra evoca uma noo capital da metafsica
amerndia, a de transformao intensiva ou metamorfose, comentada na seo
seguinte. A real relao entre Eu e Outro, no mundo indgena, no a oposio
analtica ou a negao dialtica, mas a metamorfose como alterao ontolgica.
Tenso, preenso, alterao.
Mas o conceito de Outrem como relao a priori serve-nos aqui, sobretudo, paraformular de modo mais claro a conexo entre duas idias centrais deste projeto, a
alterao-alteridade e o perspectivismo.
Uma expresso prototpica de Outrem na tradio ocidental a figura do Amigo. O
Amigo outrem, mas outrem como momento do Eu. Se me determino como
amigo do amigo, apenas porque o amigo, na conhecida definio de Aristteles,
um outro Eu (tica a Nicmaco,1170b6).O Eu est l desde o incio: o amigo a
condio-Outrem pensada retroprojetivamente sob a forma condicionada do
sujeito. Como observa F. Wolff (2000: 169), a definio aristotlica implica uma
teoria segundo a qual toda relao com outrem, e por conseguinte toda forma de
amizade, encontra seu fundamento na relao do homem consigo mesmo. O
vnculo social pressupe a auto-relao como origem e modelo.
Mas o Amigo no funda somente uma antropologia. Dadas as condies histrico-
polticas de constituio da filosofia grega, o Amigo emerge como indissocivel de
uma certa relao com a verdade: ele uma condio de possibilidade do
pensamento em geral, uma presena intrnseca uma categoria viva, um vividotranscendental (Deleuze & Guattari 1991: 9). O Amigo , em suma, o que os
autores citados chamam de umpersonagem conceitual, o esquematismo de Outrem
prprio ao conceito. A filosofia exige o Amigo, a philia a relao constitutiva do
saber.
Pois bem. O problema que nos interessa, do ponto de vista do pensamento
indgena, : como funciona a estrutura-Outrem em um mundo onde o Inimigo,
contnuo e do discreto, a que Lvi-Strauss, como se sabe, deu um valor central em suainterpretao das mitocosmologias indgenas.
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no o Amigo, que faz as vezes de vivido transcendental ou de protagonista
conceitual?Onde outrem no concebido como um outro Eu, mas como um eu
Outro?12 Onde, em suma, no a semelhana que funda a relao, e onde a
relao consigo mesmo no primeira mas onde a diferena que liga, e onde a relao com o outro que permite a relao consigo mesmo? Esta indagao
atravessa vrias, talvez todas, as pesquisas reunidas sob os temas Apropriao e
alterao e Diferenciao e mediao (ver abaixo).
A questo do perspectivismo j se encontra formulada no problema acima. Se
Outrem o conceito de ponto de vista, o que um mundo constitudo pelo ponto
de vista do inimigo(Viveiros de Castro 1992) como determinao transcendental?
Um mundo onde a inimizade no um mero complemento privativo da amizade,
nem uma simples facticidade negativa, mas uma estrutura de direito do
pensamento, e uma positividade? E por fim que relao com o saber, que regime
de verdade pode-se constituir nesse elemento da diferena ou distncia positivas?
Concretizando a pergunta, e por exemplo: a figura do xam amerndio
essencialmente semelhante do mestre da verdade da Grcia pr-poltica, como
intimam os trabalhos clssicos de Detienne e Vernant? Tratar-se-ia, l como c, da
mesma enunciao monolgica, do mesmo logos (ou muthos) monrquico que
afirma a mesma velha participao primitiva, o mesmo embutimento indicial,
mgico, da linguagem no Ser? Suspeitamos que no, e este um problema que
ter lugar importante em algumas das pesquisas ligadas ao tema Tradio e
traduo (ver infra).
Para poder comear a dizer algo sobre este ltimo ponto, a saber, qual o regime de
verdade possvel em um mundo da diferena inimiga, preciso percorrer uma
outra dimenso da cosmopraxis indgena, formulvel igualmente por contraste com
nossa imaginao identitria da relao. Pois Outrem no se manifestou na tradio
ocidental apenas na figura grega do Amigo que continua bem viva entre ns,apenas no mais como mediao maiutica (o dilogo antigo conduzia a uma
essncia transcendente), mas como condio hermenutica (a verdade moderna se
tornou imanente ao dilogo). Outrem tambm consubstancial a uma outra figura,
esta um pouco mais recente, um personagem conceitual completamente singular
Deus. difcil no ver neste personagem a forma por excelncia de Outrem em
nossa tradio: Deus ao mesmo tempo o grande Outro, garantia da realidade
12 Esta formulao tomada de Carneiro da Cunha (1978: 93-94), que a utiliza paracaracterizar a diferena entre o companheiro (um outro Eu) e o amigo formal (um eu-Outro) dos Timbira, figuras que so os esquematismos rituais, respectivamente, dasposies de irmo e de cunhado.
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absoluta (o Dado) face ao solipsismo da conscincia, e o grande Eu, garantia da
inteligibilidade relativa (o Construdo) do que o sujeito v em torno de si. Com
efeito, a funo maior de Deus, no que concerne ao destino do pensamento
moderno, foi a de demarcar a linha fundamental entre o dado e o construdo, ao seinstituir, enquanto Criador, como seu horizonte de indiferenciao.
verdade que Deus foi saindo aos poucos de nossa cena histrica, mas antes de
morrer ele tomou duas medidas propriamente providenciais: interiorizou-se no foro
ntimo dos homens como forma inteligvel do Sujeito (a lei moral), e exteriorizou-se
em um Objeto sensvel infinito, a natureza como campo total da realidade
substantiva (o cu estrelado). A Cultura e a Natureza, em suma, os dois mundos
(Ingold 2000: 1), o subjetivo e o objetivo, em que se dividiu a Sobrenatureza como
Outrem originrio. Deus, portanto, tambm continuou entre ns, na forma
duplamente eficaz da ausncia e da diviso.
Pois bem. Essas consideraes muito ligeiras13 visam apenas introduzir nosso
segundo problema. Como funciona a relao-Outrem em um mundo radicalmente
no-monotesta, e que sempre passou ao largo de uma teologia da criao?
Problema ligeiramente diferente daquele que Deleuze lia em Tournier: no se trata
aqui de saber o que um mundo sem outrem, mas o que outrem em um mundo
sem Deus. No, note-se, um mundo criado pela retirada de Deus, como nossomundo moderno, mas um mundo incriado, onde tudo manifesta, por assim dizer, a
inexistncia de uma divindade transcendente.14Em tal regime de alterao, o que
garante a realidade para os sujeitos, que percipiente virtual pressuposto para
assegurar a transio entre os possveis? Onde est Outrem, como se distribuem
alteram-se e alternam-se as posies do sujeito e do objeto, do dado e do
construdo, da forma e do fundo? Nesses termos, uma questo premente que se
pe a de saber o que acontece quando o Deus ocidental entra em cena, isto ,
quando os dispositivos de catequese e converso introduzem essa forma indita deOutrem em um mundo que se constituiu em e por sua ausncia. Este um dos
problemas, por suposto, do tema Misses e converses (ver infra, capitulo
Traduo e tradio).
13Consideraes em parte inspiradas na histria contada por Latour (1991: 50-53, passim)sobre a Constituio dos modernos, e, pela mesma via, no livro de Funkenstein (1986)sobre as relaes entre teologia e imaginao cientfica na transio para a modernidade.14 Sobre as relaes histricas entre o recuo (ou barramento, cf. Latour) de Deus e aemergncia, nos dois sentidos da palavra, da questo de Outrem na filosofia contempornea,ver as sugestivas indicaes de Szymkowiak (1999: 44-45).
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Para responder a tais questes, ser preciso rediscutir os termos da oposio
clssica entre Natureza e Cultura, regio objetiva e regio subjetiva do existente,
de modo a discernir a diferena propriamente ontolgica da cosmopraxis indgena
face nossa. Este um tema central para as pesquisas reunidas sob a rubricaFormas de aparentamento: relaes intra-especificas e interespecficas, do
capitulo 3 do projeto: a disseminao de Outrem pelas dobras do mundo, sua
manifestao sob a forma de uma infinidade potencial de sujeitos no-humanos, e,
reciprocamente, a presena do humano como imanncia absoluta. Em outras
palavras, estaremos discutindo mais uma variante do que Latour (1991) chamou de
velha matriz antropolgica da humanidade, a matriz que a velha antropologia
chamava, como se sabe, de animismo. Pode-se dizer que o animismo, para defini-
lo sucintamente mediante os conceitos de uma tradio que se imaginadesanimista, uma imagem do mundo onde o objeto um caso particular do
sujeito, isto , onde todo objeto um sujeito em potncia: o cogito indgena no
tem a forma solipsista do penso, logo existo, mas a forma animista do existe,
logo pensa. O animismo de que se tratar aqui, entretanto, conhece uma inflexo
crucial. No mundo amerndio, o Eu um caso particular do Outro, pois ali a relao
com o outro, o inimigo, funda a relao consigo mesmo. Um animismo, portanto,
alterado, uma alteridade que se animiza na medida exata em que se inimiza
alterao. Um inimismo, ento: o perspectivismo indgena, ou o mundo por
outrem.
1.3. Agncia, mudana; estrutura, histria
A extenso do instrumental analtico desenvolvido em nossas pesquisas anteriores
para o conjunto de temas deste projeto co-dependente de uma interveno
crtica, etnograficamente motivada, sobre os conceitos de mudana social, de
agncia e de histria, o quais, tal como geralmente utilizados na antropologia
contempornea, assentam sobre, ou produzem, um certo nmero de equvocos
importantes.
Os povos indgenas das chamadas terras baixas do continente foram por vezes
concebidos como estando fora do tempo, seja porque teriam permanecido, at a
conquista europia, congelados no neoltico inferior (quando no no paleoltico),
seja porque seriam supostamente incapazes de conceitualizar a prpria mudana
histrica. H pelo menos duas dcadas, antroplogos e historiadores vm criticando
duramente essa viso, insistindo no apenas sobre o fato de que preciso estudaresses povos na histria, como tambm sobre a necessidade de incorporar a ao
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indgena nesses estudos. Tal mudana de perspectiva foi um passo fundamental
para uma reconsiderao da histria colonial e ps-colonial americana, bem como
das dinmicas sociais contemporneas (ver, entre muitos, Carneiro da Cunha 1992,
Hill 1988, Salomon & Schwartz 1999).
Ainda que partilhemos dessa mesma preocupao em tematizar a mudana, a ao
e a histria dos povos sul-americanos, tendo alis j contribudo nessa direo,15
nosso caminho diverso daquele da maioria dos autores que procuram aproximar
etnologia e histria, uma vez que o fazem por meio de uma nfase na segunda
antes que na primeira. A despeito da contribuio significativa que os estudos etno-
histricos tm dado compreenso das realidades indgenas do continente, tal
nfase tende a obscurecer as prticas e concepes indgenas e a projetar os
modelos ocidentais de ao, conscincia e mudana histricas sobre os esquemas
cosmoprticos nativos. Essa tendncia no especfica da etnologia regional, antes
caracterstica da antropologia contempornea como um todo, constituindo a face
positiva de uma recusa em exotizar o nativo, pecado de que hoje se inculpa
severamente a antropologia modernista (p.ex. Fabian 1983, Trouillot 1991, Fox
1991).
No vemos nessa recusa uma atitude realmente radical. Pelo contrrio, detectamos
nela uma transformao obsessional (permita-se-nos o trocadilho freudiano) docolonialismo, que, ao rejeitar a diferena como exotismo, pensa elevar moralmente
outros povos ao conceder-lhes aquilo que a metrpole valoriza em si mesma.
(Viveiros de Castro 1993c; Fausto & Heckenberger em preparao). No por
acaso, assim, que hoje se queira atribuir aos povos autctones uma historicidade
quente e linear, assim como uma poltica fundada na identidade e na ao
reflexiva de indivduos conscientes de seu passado e portadores de um projeto de
futuro justamente as qualidades que nossa tradio valoriza. Essa projeo de
noes ocidentais modernas de tempo e pessoa sobre outros universossocioculturais faz-se acompanhar por outra tendncia contempornea, que consiste
em converter qualquer forma de pensamento ou prtica que no satisfaa os
padres morais ou as exigncias de racionalidade da cultura anglo-americana, em
mera fico da imaginao ocidental (Viveiros de Castro 1993a, 1996c;
Obeyesekere 1992; Sahlins 1995, 2003; Fausto 2002a). A antropologia
pretensamente anti-exotista (uma sorte de teoria aplicada da mauvaise conscience
15Vejam-se, entre outros, Franchetto & Heckenberger 2001, Franchetto 1992, Vilaa 1996a,1996b, Fausto 2000, 2001, no prelo a, no prelo b, no prelo c, Teixeira-Pinto 2000, CalaviaSaz2000, Lasmar 2002, Gordon 2003.
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europia) responsvel por esta desrealizao reflexiva realiza conceitualmente
aquilo que o colonialismo pretendeu realizar politicamente: assimilar e identificar.
Ao tomar a alteridade como mais uma inveno do Ocidente, abre-se o caminho
para uma pasteurizao generalizada da diferena, e para a consequente reduoda antropologia a um guia prtico de mesmificao conceitual.
Outros modos, outros mundos. Nosso projeto funda-se, muito ao contrrio, na idia
de que possvel (e portanto necessrio) relacionar-se com modos diversos de
pensar a temporalidade, a agncia e a transformao. Relacionarnossa imaginao
conceitual imaginao indgena exige que se adote uma perspectiva onde a
relao, como dissemos, seja tanto nosso objeto como nosso instrumento. Em vez
de identificar e assimilar, em suma, queremos alterar e diferenciar, e isso inclui
nosso prprio movimento conceitual: a preenso relacional no apenas a
economia do outro, mas tambm do mtodo de aproximao ao outro.
Tal convico implica que devemos comear por colocar nossas perguntas no plano
dos princpios. preciso comear, a rigor, por duvidar: duvidar que os conceitos de
identidade, agncia, histria e mudana, tal como utlizados pela antropologia de
hoje, guardem a mais mnima relao com as tradies cosmoprticas que
tencionamos estudar. Isso no significa que estejamos supondo a existncia de dois
mundos estanques o nosso e o deles , ou que no reconheamos que umapoltica ocidentalista da identidade parte da vida atual dos povos indgenas. A
hegemonia do Ocidente universalizou a linguagem da identidade e organizou a
prtica poltica de muitos povos do mundo segundo sua lgica. Contudo, analisar
esse fato de uma perspectiva externalista s nos devolver o trivial e o j sabido.
Da a necessidade de enfrentar o tema a partir de uma compreenso interna das
ontologias sociais (releve-se-nos, mais uma vez, o pleonasmo) nativas, sem a qual
estaramos reduzidos, como o est boa parte da antropologia, ao debate estril
sobre a autenticidade cultural, conceitualidade suspeita da inveno da tradioe s frmulas to sonoras como vazias a respeito da construo da identidade. Se
a antropologia pretende compreender a indigenizao das tendncias globais (que
nunca nascem globais), ela precisa lanar-se novamente tarefa de relacionar-se
com a diferena para reconhecer osprocessos de diferenciaoque provm no do
centro, mas das assim chamadas periferias (Sahlins 1997a, 1997b). Pois j dizia
Tarde, la diffrence va diffrant, le changement va changeant.
Para que possamos realizar a dita interveno etnograficamente motivada sobre os
conceitos de histria, agncia e mudana, mister precisar o plano terico em que
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queremos nos mover. Rejeitemos de incio um procedimento corrente, que consiste
em passar um julgamento to sumrio como grosseiro sobre o estruturalismo lvi-
straussiano, evocando os lugares-comuns sobre a natureza a-histrica do
estruturalismo e sobre o privilgio por ele conferido sincronia. O pontonormalmente visado a distino entre sociedades frias e quentes (Lvi-Strauss
1973[1961], 1962a; ver tambm 1958, 1983). Esta no uma distino a que
demos muito peso, mas, em vista da freqente incompreenso que a cerca, em
especial na antropologia anglo-americana, cumpre mostrar que o problema no
est, justamente, ali.
Desde 1952, Lvi-Strauss argumentava contra a idia de pudessem existir povos
sem histria, contestando a viso ento comum de que os caadores-coletores sul-
americanos representariam um estrato arcaico da ocupao do subcontinente.
Quando a distino entre sociedades quentes e frias aparece em sua aula inaugural
no Collge de France, o autor comea por lembrar que, apesar de todas as
sociedades estarem na histria (o que um trusmo), as assim chamadas
sociedades primitivas teriam percorrido vias diferentes daquelas que ns
escolhemos (1973[1961]:39-40). deste reconhecimento de que h diferentes
maneiras de lidar com a passagem do tempo e conceber a temporalidade, que Lvi-
Strauss passa distino entre frio e quente, lembrando que se trata antes de
mais nada de uma distino terica, j que nenhuma sociedade corresponde
inteiramente a um ou a outro tipo.16Muitos antroplogos tomaram essa concepo
de que sociedades diferentes possuem diferentes regimes de historicidade como
mais um exemplo de uma Teoria do Grande Divisor e procuraram mostrar, no caso
amaznico, que os ndios tambm possuam ou faziam histria, via de regra
sem se perguntar o que histria, possuir ou fazer poderiam significar em tal
contexto.
Esse o intuito, por exemplo, da coletnea Rethinking History and Myth, devotada,nas palavras de seu editor, a desmontar o mito [sic]das sociedades frias (Hill
1988). O livro revisita a distino entre mito e histria, explorando as maneiras
pelas quais o contato entre ndios e brancos aparece nas narrativas, nos rituais e
na oratria (Hill 1988:1). Quase todos os artigos comeam com uma crtica
distino entre sociedades quentes e frias, mas, ironicamente, terminam por se
16O mesmo argumento ressurge nO Pensamento Selvagem, onde ele se insere na crtica aohistoricismo humanista-transcendental de Sartre: il est aussi fastidieux quinutile dentasser
les arguments pour prouver que toute socit est dans lhistoire et quelle change: cestlvidence mme. Mais, en sacharnant sur une dmonstration superflue, on risque de
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constituir em excelentes exemplos do que Lvi-Strauss tinha em mente ao propor a
distino. Ao mostrar que as relaes entre brancos e ndios so incorporadas e
expressas por meio de performances rituais e narrativas, os artigos do livro
mostram que esses mecanismos culturalmente especficos podem absorver eventose relaes em uma forma que muda para preservar a escala global do mundo vivido
indgena (Gow 2001). Entendemos que esse justamente o argumento de Lvi-
Strauss, que se funda no em alguma estabilidade e fixidez almejadas e (menos
ainda) alcanadas, mas na noo de transformao estrutural, o tipo de
transformao que perpassa as Mitolgicas e que ele anuncia em sua lio
inaugural, quando escreve que, em contraste com a histria, ele adota um modle
plutt de transformationsque de fluxions (1973? [1961]:28).
A nfase do presente projeto, assim e em suma, no recai sobre a distino entre
sociedades ou historicidades quentes e frias, mas sobre as potencialidades
inexploradas do conceito de transformao estrutural, bem como sobre seus
limites.17 Esse conceito fornece um poderoso instrumento analtico para falar ao
mesmo tempo de mudana e continuidade, ambos implicados nos processos de
transformao, sem recorrer a motivos romnticos como essncia, Volkgeist ou
qualquer noo correlata que suponha uma concepo primordialista e
substantivista de identidade (Fausto & Heckenberger em preparao). Uma crtica
produtiva a Lvi-Strauss, capaz de explorar os limites internos do estruturalismo
(Viveiros de Castro 2002d), deve portanto visar os limites desse modelo de
transformao antes que atribuir erroneamente teoria lvi-straussiana uma
impotncia histrica constitutiva. Alguns de ns tm buscado desenvolver
estratgias para estudar etnograficamente a dinmica transformacional dos
coletivos (singulares e plurais) indgenas sem separar a anlise da economia
mitopotica da metamorfose daquilo que se costuma estudar sob o rtulo
tradicional de mudana social (ver, por exemplo, Vilaa 1999, Fausto 2002a;ver
tambm o subtema 2.1., bem como a articulao entre os subtemas 3.2 e 3.3).
mconnatre que les socits humaines ragissent de faons trs diffrentes cettecommune condition (1962a:310).17Desde meados dos anos 80, os trabalhos de nosso grupo vm focalizando os aspectosdinmicos da estrutura e a importncia da transformao, embora no mbito de problemasmais clssicos. Lembremos que nossa contribuio mais tcnica aos estudos dos sistemasde parentesco amerndios inspirava-se na noo de estruturas performativas de Sahlins(1985) e na problemtica estrutural-aliancista do dualismo e do cunhadio (Lvi-Strauss1943, 1958 [1956]), ambas firmemente ancoradas em uma concepo dinmica da estrutura(cf., entre outros, Viveiros de Castro 1986, 1993b, 1998, 2001; Coelho de Souza 2002;Fausto 1991, 1995).
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Um dos limites internos mais interessantes da problemtica lvi-straussiana de
transformao, com implicaes para a trplice relao entre ritual, histria e
mitopoiesis, diz respeito diferena entre as concepes totmica e sacrificial da
diferenciao. Todos se recordam do contraste multidimensional entre totemismo e
sacrifcio desenvolvido em O pensamento selvagem.Utilizando alguns dos termos
de seu autor (Lvi-Strauss 1962b: 295-302), podemos resumi-lo como segue: (1) O
totemismo postula uma homologia entre duas sries paralelas (natural e cultural),
estabelecendo uma correlao formal e reversvel entre dois sistemas de diferenas
globalmente isomrficas; (2) O sacrifcio postula uma s srie, contnua e orientada,
ao longo da qual se efetua uma mediao real e irreversvel entre dois termos
polares e no-homlogos (humanos e divindades), cuja contigidade deve ser
estabelecida por identificaes ou aproximaes sucessivas; (3) Assim, o sacrifcio
metonmico, o totemismo metafrico; o primeiro um sistema tcnico de operaes,
o segundo um sistema interpretativo de referncias; o primeiro da ordem da
parole; o segundo, da langue.
Pode-se concluir, dessa caracterizao, que o sacrifcio envolve princpios de um tipo
inteiramente distinto das equivalncias de proporcionalidade manifestas no
totemismo e nos demais sistemas de transformao analisados em O pensamento
selvagem e nas Mitolgicas. As transformaes lgicas do totemismo (e do mito)
estabelecem-se entre termos que vem suas posies recprocas modificadas por
permutaes, inverses, quiasmas e outras redistribuies combinatrias e
extensivas o totemismo uma tpica da descontinuidade. As transformaessacrificiais, ao contrrio, manifestam relaes intensivas que modificam a natureza
dos termos eles prprios, pois fazem passar algo entre eles: a transformao, aqui,
no permutao dedutiva, mas transmutao indutiva ela lana mo de uma
energtica do contnuo. Se o objetivo do totemismo assemelhar sries de
diferenas dadas cada qual por seu lado, o propsito do sacrifcio diferenciar
semelhanas; mas no no sentido de dessemelhar termos originalmente pensandos
como semelhantes, mas no de diferenciar internamente plos pressupostos como
auto-idnticos, ao induzir uma zona ou momento de indiscernibilidade entre eles.
Recorrendo a uma alegoria matemtica (e leibniziana), diramos que o modelo dastransformaes estruturais do totemismo a anlise combinatria, ao passo que o
instrumento necessrio para explorar o reino da continuidade (id. 1962a: 296)
estabelecido pelas metamorfoses intensivas do sacrifcio remeteria, antes, a algo
como o clculo diferencial. Com efeito, a caracterizao lvi-straussiana do
totemismo o apreende como um puro sistema de formas, ao passo que a do sacrifcio
recorre a formulaes que sugerem a presena de algo como um sistema de foras.
Lvi-Strauss fala, por exemplo, em uma soluo de continuidade entre
reservatrios, em um dficit de contigidade preenchido automaticamente
usa aqui toda uma linguagem de vasos comunicantes que evoca irresistivelmente aidia de uma diferena de potencialenvolvida na estrutura do sacrifcio.
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Duas imagens, em suma, muito diferentes, talvez mesmo incompatveis (id. ibid.:
295), da diferena. Uma imagem extensiva e uma imagem intensiva: a forma e a
fora. Acontece que o mtodo estrutural clssico est muito melhor capacitado a dar
conta da forma que da fora, da combinatria que do diferencial, da langueque daparole, da categorizao que da ao. Conseqentemente talvez devssemos
dizer, infelizmente , esses aspectos que resistem em maior ou menor medida ao
mtodo estrutural foram quase sempre vistos por Lvi-Strauss como
ontologicamente menores, seja porque do testemunho dos limites do pensvel, seja
porque relevam do assignificante, seja, enfim, porque exprimem as potncias da
iluso. Assim, por exemplo, o sacrifcio visto como imaginrio e falso, o totemismo
como objetivo e verdadeiro (id. ibid.: 301-02), juzo que se repete, alis, no
contraste entre mito e