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TRABALHO E SADE:A PRECARIZAO DO TRABALHO E A SADE DO TRABALHADOR NO SCULO XXI

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EDITH SELIGMANN-SILVA Universidade de So Paulo (USP) MANUEL CARVALHO DA SILVA Universidade de Coimbra (UC-Portugal) Confederao Geral dos Trabalhadores Portugueses Intersindical Nacional (CGTP-IN) GIOVANNI ALVES Universidade Estadual Paulista (UNESP) Rede de Estudos do Trabalho (RET) ANDR LUS VIZZACCARO-AMARAL Universidade Estadual de Londrina (UEL) Rede de Estudos do Trabalho (RET) SERGIO AUGUSTO VIZZACCARO-AMARAL Grupo de Pesquisa Estudos da Globalizao (GPEG-UNESP/CNPq) Rede de Estudos do Trabalho (RET) MARIA ELIZABETH ANTUNES LIMA Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) MARIA MAENO Fundao Jorge Duprat Figueiredo de Segurana e Medicina do Trabalho (FUNDACENTRO/MTE-Brasil) MARGARIDA MARIA SILVEIRA BARRETO Ncleo de Estudos Psicossociais da Dialtica Excluso/Incluso Social da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (NEXIN/PUC-SP) Faculdade de Cincias Mdicas da Santa Casa de So Paulo (FCM-Santa Casa-SP) JOS ROBERTO MONTES HELOANI Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) Fundao Getlio Vargas (FGV-SP) LUIZ SALVADOR Asociacin Latinoamericana de Abogados Laboralistas (ALAL) Ordem dos Advogados do Brasil (OAB Conselho Federal) OLMPIO PAULO FILHO Advocacia Trabalhista e Previdenciria DANIEL PESTANA MOTA Associao para a Defesa da Sade no Trabalho (ADESAT) Rede de Estudos do Trabalho (RET) JORGE LUIZ SOUTO MAIOR Juiz Titular da 3 Vara do Trabalho de Jundia-SP Universidade de So Paulo (USP)

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ANDR LUS VIZZACCARO-AMARAL DANIEL PESTANA MOTA GIOVANNI ALVESOrganizadores

TRABALHO E SADE:A PRECARIZAO DO TRABALHO E A SADE DO TRABALHADOR NO SCULO XXI

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EDITORA LTDA.

Todos os direitos reservados

Rua Jaguaribe, 571 CEP 01224-001 So Paulo, SP Brasil Fone (11) 2167-1101 LTr 4467.2 Agosto, 2011

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Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Trabalho e sade : a precarizao do trabalho e a sade do trabalhador no Sculo XXI / Andr Lus Vizzaccaro-Amaral, Daniel Pestana Mota, Giovanni Alves , (organizadores) . So Paulo : LTr, 2011. Bibliografia. ISBN 978-85-3611. Ambiente de trabalho 2. Danos (Direito civil) Brasil 3. Direito do trabalho - Brasil 4. Precarizao do trabalho 5. Trabalhadores Sade I. Vizzaccaro-Amaral, Andr Lus. II. Mota, Daniel Pestana. III. Alves, Giovanni. 11-06977 ndice para catlogo sistemtico: 1. Brasil : Precarizao do trabalho e sade do trabalhador : Direito do trabalho 34:331.822(81) CDU-34:331.822(81)

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Sobre os autores

ANDR LUS VIZZACCARO-AMARAL Graduado e Mestre em Psicologia pela Faculdade de Cincias e Letras de Assis da Universidade Estadual Paulista (FCLAs-UNESP: ) e Doutorando em Cincias Sociais pela Faculdade de Filosofia e Cincias de Marlia da UNESP (FFC-UNESP: ). Atualmente, Professor Assistente junto ao Departamento de Psicologia Social e Institucional da Universidade Estadual de Londrina (DEPSI-UEL: ), Membro Colaborador da Rede de Estudos do Trabalho (RET: ) e Pesquisador do Grupo de Pesquisa Estudos da Globalizao (GPEG-FFC-UNESP/ CNPq), atuando nas reas temticas da Psicologia Social do Trabalho, Sociologia do Trabalho, Sade Mental do Trabalhador, Subjetividade e Desemprego. [email protected] DANIEL PESTANA MOTA Graduado em Direito pela Universidade de Marlia (UNIMAR: ) e Mestre em Cincias Sociais pela Faculdade de Filosofia e Cincias de Marlia da Universidade Estadual Paulista (FFC-UNESP: ). Atualmente, Advogado Trabalhista, Assessor Jurdico da Associao para a Defesa da Sade no Trabalho (ADESAT: ) e Membro Colaborador da Rede de Estudos do Trabalho (RET: ), atuando nas reas de Direito do Trabalho e Processual do Trabalho, Direito Social e aspectos jurdicos relativos Sade do Trabalhador. [email protected] EDITH SELIGMANN-SILVA Mdica psiquiatra e especialista em Sade Pblica. Graduada em Medicina pela Universidade Federal do Par (UFPA: ). Doutoramento em Medicina Preventiva e especializao em Sade Pblica pela Universidade de So Paulo (USP: ). Docente aposentada da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP). Foi livre-docente na Universidade Federal do Par e professora adjunta na Escola de Administrao de Empresas de So Paulo da Fundao Getlio Vargas (EAESP-FGV: ). Atividade profissional e pesquisas referentes a Organizao de Servios de Sade Mental (anos 70). Vem desenvolvendo pesquisas em Sade Mental Relacionada ao Trabalho (SMRT) desde 1980, abrangendo a temtica do desemprego. Entre outras publicaes no Brasil e no exterior, autora dos livros Desgaste Mental no Trabalho Dominado (Ed. UFRJ/Cortez Ed., 1994) e Desgaste Mental e Trabalho (Cortez Editora, 2011). GIOVANNI ALVES Graduado em Cincias Sociais pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR: ), Mestre em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP: ), Doutor em Cincias Sociais pela UNICAMP e Livre-Docente em Teoria Sociolgica pela Universidade Estadual Paulista (UNESP: ). Atualmente, Professor Adjunto na Faculdade de Filosofia e Cincias de Marlia-SP da UNESP (FFC-UNESP: ), Bolsista Produtividade Nvel II pelo Conselho 5

Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq), Coordenador Geral da Rede de Estudos do Trabalho (RET: ) e autor de vrios livros e artigos na rea de Trabalho, Sindicalismo e Reestruturao Produtiva. [email protected] JORGE LUIZ SOUTO MAIOR Graduado em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas (FDSM: ), Mestre, Doutor e Livre-Docente em Direito pela Universidade de So Paulo (FD-USP: ) e Ps-Doutor em Direito pela Universit Panthon-Assas (Paris II: ). Atualmente Juiz Titular na 3 Vara do Trabalho de Jundia-SP e Professor Associado Livre-Docente no Departamento de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo. Tem experincia na rea de Direito, com nfase em Direito do Trabalho, atuando principalmente nas temticas do Direito do Trabalho, Processo do Trabalho, Justia do Trabalho, Procedimento Sumarssimo e Cooperativa de Trabalho. [email protected] JOS ROBERTO MONTES HELOANI Graduado em Direito pela Universidade de So Paulo (USP: ) e em Psicologia pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP: ), Mestre em Administrao pela Fundao Getlio Vargas de So Paulo (FGV-SP: ), Doutor em Psicologia pela PUC-SP, Ps-Doutor em Comunicao pela USP e Livre-Docente pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP: ). Atualmente Professor Titular na UNICAMP, Professor na FGV-SP e Professor Conveniado junto Universit de Nanterre (Paris X: ), atuando nas reas temticas de Violncia no Trabalho (Assdio Moral e Sexual) e na rea da Gesto Pblica em Sade e Educao. [email protected] LUIZ SALVADOR Advogado Trabalhista e Previdenciarista em Curitiba-PR, Ex-Presidente da Associao Brasileira de Advogados Trabalhistas (ABRAT: ), Presidente da Asociacin Latinoamericana de Abogados Laboralistas (ALAL: ), Representante Brasileiro no Departamento de Sade do Trabalhador da Associao Luso-Brasileira de Juristas do Trabalho (JUTRA: ), Assessor Jurdico de entidades de trabalhadores, Membro Integrante da Comisso de Juristas responsvel pela elaborao de propostas de aprimoramento e modernizao da legislao trabalhista no Brasil, Membro do Corpo de Jurados do Tribunal Internacional de Liberdade Sindical (TILS/Mxico) e do Corpo Tcnico do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP: ). [email protected] MANUEL CARVALHO DA SILVA Licenciado e Doutor em Sociologia pelo Instituto Universitrio de Lisboa (ISCTE-IUL, Instituto Superior de Cincias do Trabalho e da Empresa Instituto Universitrio de Lisboa: ). Atualmente, Coordenador do polo de Lisboa do Centro de Estudos Sociais da 6

Universidade de Coimbra (CES/UC: ), Professor Catedrtico convidado da Universidade Lusfona de Humanidades e Tecnologias (ULUSFONA: ) e tem atuado em cargos e funes sindicais, em particular, na Confederao Geral dos Trabalhadores Portugueses Intersindical Nacional (CGTP-IN: ), onde Secretrio-Geral, e na Confederao Europeia de Sindicatos (CES/ETUC, European Trade Union Confederation: ). Desenvolve uma interveno social e sociopoltica na sociedade portuguesa, e na comunidade europeia em geral, e seus trabalhos permeiam as reas temticas relacionadas com Sindicalismo, Trabalho, Emprego, Economia e Desenvolvimento. [email protected] MARGARIDA MARIA SILVEIRA BARRETO Graduada em Medicina pela Escola Bahiana de Medicina e Sade Pblica (BAHIANA: ), Especialista em Obstetrcia pela Associao Maternidade So Paulo (Residncia Mdica), em Homeopatia pelo Instituto Brasileiro de Estudos e Pesquisas em Homeopatia, em Medicina do Trabalho pela Faculdade de Cincias Mdicas da Santa Casa de So Paulo (FCM-Santa Casa: ) e em Higiene Industrial pela Faculdade SENAC de Educao em Sade (SENAC: ) e Mestre e Doutora em Psicologia pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP: ). Atualmente Pesquisadora do Ncleo de Estudos Psicossociais da Dialtica Excluso/Incluso Social da PUC-SP (NEXIN/PUC-SP: ) e Professora na FCM-Santa Casa, desenvolvendo as temticas de Assdio Moral e Violncia Moral no Trabalho, Sade do Trabalhador e Trabalho e Suicdio. [email protected] MARIA ELIZABETH ANTUNES LIMA Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG: ), Mestre em Administrao pela UFMG e Doutora em Sociologia do Trabalho pela Universit de Paris Dauphine (Paris IX: ). Atualmente, Professora Associada na Universidade Federal de Minas Gerais, atuando junto ao Laboratrio de Estudos, Pesquisa e Extenso em Psicologia do Trabalho (LABTRAB: ), e nas reas de Psicologia do Trabalho, com nfase em Sade Mental no Trabalho. Vem pesquisando as temticas dos Transtornos Mentais no Trabalho, Segurana no Trabalho, Leses por Esforos Repetitivos, Alcoolismo no Trabalho e Ergoterapia. [email protected] MARIA MAENO Graduada em Medicina, Especialista em Molstias Infecciosas (Residncia Mdica) e Mestre em Sade Pblica pela Faculdade de Medicina da Universidade de So Paulo (FM-USP: ). Foi do Centro de Referncia em Sade do Trabalhador do Estado de So Paulo de 1987 a 2006, sendo Coordenadora por 16 anos. Coordenadora do grupo que elaborou o Protocolo de LER/DORT do Ministrio da Sade. Representante da FUNDACENTRO na Comisso de Acompanhamento do Nexo Tcnico Epidemiolgico do Ministrio da Previdncia Social. Atualmente Mdica e Pesquisadora da Fundao Jorge Duprat Figueiredo de Segurana e Medicina do Trabalho (FUNDACENTRO: ), do Ministrio 7

do Trabalho e Emprego do Brasil (MTE: ), atuando junto ao Grupo Temtico Organizao do Trabalho e Adoecimento, e Assessora da Diretoria do Centro Colaborador da Organizao Mundial de Sade no Brasil em Sade Ocupacional. [email protected] OLMPIO PAULO FILHO Graduado em Direito pela Universidade Federal do Paran (UFPR: ), em Letras pela Pontifcia Universidade Catlica do Paran (PUC-PR: ) e Ps-Graduado em Docncia do Ensino Superior pela Faculdade Leocdio Jos Correia (). Atualmente Assessor Jurdico de entidades de trabalhadores, com atuao centrada no Direito do Trabalho e Previdencirio. [email protected] SERGIO AUGUSTO VIZZACCARO-AMARAL Licenciado em Histria pela Faculdade de Cincias e Letras de Assis da Universidade Estadual Paulista (FCLAs-UNESP: ), Mestre em Psicologia Clnica pela Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP: ) e Doutor em Sade Coletiva pela Faculdade de Cincias Mdicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM-UNICAMP: ). Atualmente Professor de Ensino Superior, Pesquisador junto ao Grupo de Pesquisa Estudos da Globalizao (GPEG-FFC-UNESP/CNPq) e Membro Colaborador da Rede de Estudos do Trabalho (RET: ), desenvolvendo trabalhos de pesquisa, ensino e extenso nas reas de Sade Pblica e Coletiva, Cincias Sociais, Subjetividade, Filosofia Contempornea, Psicologia Institucional, Histria do Brasil e da Arte, Cidadania e tica e Metodologia de Pesquisa. [email protected]

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Sumrio

Apresentao ........................................................................................................................ Giovanni Alves Andr Lus Vizzaccaro-Amaral Daniel Pestana Mota Prefcio A convergncia dos olhares ........................................................................... Edith Seligmann-Silva Conferncia Introdutria Trabalho, globalizao e sade do trabalhador: promoo da sade e da qualidade de vida ........................................................................................... Manuel Carvalho da Silva SEO 1 CRISE CAPITALISTA, PRECARIZAO DO TRABALHO E SADE DO TRABALHADOR NO SCULO XXI Captulo 1 Trabalho flexvel, vida reduzida e precarizao do homem-que-trabalha: perspectivas do capitalismo global no sculo XXI ............................................................... Giovanni Alves Captulo 2 Da polissemia conceptual crise categorial do desemprego: novas formas de estranhamento no capitalismo do sculo XXI ................................................................ Andr Lus Vizzaccaro-Amaral Captulo 3 O aparato tcnico da epidemiologia: do mostrar ao governar ............... Sergio Augusto Vizzaccaro-Amaral SEO 2 TRABALHO E SADE DO TRABALHADOR NO SCULO XXI

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Captulo 4 Ser mdico ..................................................................................................... 127 Maria Maeno Captulo 5 Trabalho e sade mental no contexto contemporneo de trabalho: possibilidades e limites de ao ........................................................................................................ 161 Maria Elizabeth Antunes Lima Captulo 6 Da violncia moral no trabalho rota das doenas e morte por suicdio ..... 173 Margarida Maria Silveira Barreto Jos Roberto Montes Heloani Seo 3 DIREITO DO TRABALHO E VIOLAO DA SADE DO TRABALHADOR NO SCULO XXI Captulo 7 Direito, trabalho e sade: uma equao possvel? ....................................... 187 Daniel Pestana Mota 9

Captulo 8 Higidez fsica e mental a efetividade das leis da infortunstica como instrumento de dignificao do trabalhador: mens sana in corpore sano ..................................... 201 Luiz Salvador Olmpio Paulo Filho Captulo 9 Efeitos horizontais das agresses aos direitos de personalidade: estudo de caso ................................................................................................................................... 218 Jorge Luiz Souto Maior

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Apresentao

Esta obra resulta dos esforos realizados pelo Frum Trabalho e Sade (FTS), um coletivo composto por pesquisadores, professores, estudantes, operadores, gestores e tcnicos que possuem relao direta e indireta com a temtica Trabalho e Sade, multidisciplinar em sua estrutura e interdisciplinar em relao a seus objetivos. Sua concepo surgiu ao longo dos trabalhos de planejamento e de organizao do II FRUM TRABALHO E SADE: A PRECARIZAO DO TRABALHO E A SADE DO TRABALHADOR NO SCULO XXI, evento de natureza tcnico-cientfica, de periodicidade anual e de amplitude nacional realizado nos dias 12 e 13 de agosto de 2010, em Marlia-SP, promovido pela Rede de Estudos do Trabalho (RET), pelo Grupo de Pesquisa Estudos da Globalizao (GPEG-FFC-Unesp/ CNPq), pertencente ao Diretrio dos Grupos de Pesquisa no Brasil do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq), do Ministrio da Cincia e Tecnologia (MCT), pelo Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais da Faculdade de Filosofia e Cincias, Campus da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho (PGCS-FFC-Unesp) no municpio de Marlia, Estado de So Paulo, e pela Associao para a Defesa da Sade no Trabalho (ADESAT). O FTS vem preocupando-se com o notrio impacto que o trabalho e o desemprego vm promovendo na sade fsica e mental do homem que trabalha(1). Em pesquisas epidemiolgicas, tanto o trabalho precrio quanto o desemprego tm se tornado fatores de risco para inmeros problemas psiquitricos e psicolgicos que sobrecarregam os servios pblicos de sade(2)(3). Tais implicaes atingem o processo produtivo da vida material e as representaes culturais e ideolgicas que embasam os movimentos sociais(4) e(1) CINCIA & SADE COLETIVA. Rio de Janeiro: ABRASCO (Associao Brasileira de Ps-Graduao em Sade Coletiva), v. 10, n. 4, out./dez. de 2005. [Sade dos Trabalhadores: velhas e novas questes]. (2) COUTINHO, Evandro da Silva Freire; ALMEIDA-FILHO, Naomar; MARI, Jair de Jesus. Fatores de risco para morbidade psiquitrica menor: resultados de um estudo transversal em trs reas urbanas no Brasil. Revista de Psiquiatria Clnica. ISSN 0101-6083, v. 26, n. 5, set/out. 1999, Edio Internet. Disponvel em: . Acesso em 26 maio 2006. (3) GIATTI, Luana; BARRETO, Sandhi Maria; CSAR, Cibele Comini. Informal work, unemployment and health in Brazilian metropolitan areas,1998 and 2003. Caderno de Sade Pblica. Rio de Janeiro, 24(10): 2396-2406, out. 2008. (4) GUIMARES, Nadya Araujo; HIRATA, Helena (Orgs.). Desemprego. Trajetrias, identidades, mobilizaes. So Paulo: Senac, 2006. [Srie Trabalho e Sociedade].

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polticos(5), resultando em transformaes sociais, culturais, polticas e econmicas importantes para a sociedade-que-vive-do-trabalho. As presses jurdico-institucionais decorrentes de tais transformaes vm denunciando marcas profundas nas relaes de trabalho (6) com significativas repercusses para a previdncia e seguridade social pblica do Brasil(7). Assim, o FTS se prope a congregar as reas de atuao e de produo de conhecimento relativas s cincias sociais, da sade e jurdicas, reunindo pesquisadores, estudantes, tcnicos, operadores, gestores, entidades representativas, associaes civis, organizaes e populao em geral em torno do eixo temtico Trabalho e Sade. O objetivo do FTS consolidar-se, nacional e internacionalmente, como um vetor de discusso e de difuso de conhecimentos relacionados sade do trabalhador e, assim, organizar uma interlocuo entre pesquisadores das reas de cincias sociais, da sade e jurdicas, aproximando-os, tambm, aos estudantes, aos tcnicos, aos operadores e gestores da sade e do direito e sociedade, de maneira geral, de modo a contribuir com (e para) aes pblicas e privadas de melhorias nas condies, processos, organizao e relaes de trabalho. Este livro foi organizado em trs sees, precedidas por um prefcio expositivo sobre o seu conjunto em relao Temtica Trabalho e Sade, elaborado por Edith Seligmann-Silva (Universidade de So Paulo), e por uma conferncia introdutria que trata tanto da relao entre globalizao, trabalho e sade do trabalhador quanto do contexto europeu e sindical no atual momento socioeconmico mundial, sob a perspectiva de Manuel Carvalho da Silva (Universidade de Coimbra, Confederao Geral dos Trabalhadores Portugueses Intersindical Nacional, Confederao Europeia de Sindicatos). A primeira seo, com os captulos de Giovanni Alves (Universidade Estadual Paulista), Andr Lus Vizzaccaro-Amaral (Universidade Estadual de Londrina) e Sergio Augusto Vizzaccaro-Amaral (Grupo de Pesquisa Estudos da Globalizao, da Universidade Estadual Paulista e da Rede de Estudos do Trabalho), promove uma reflexo crtica acerca das dimenses sociais, econmicas e polticas da precarizao do Trabalho e da sade do trabalhador no sculo XXI, bem como dos instrumentos de monitoramento empregados na gesto de questes sociais(8) envolvidas nesse contexto.(5) ALVES, Giovanni. O novo (e precrio) mundo do trabalho. Reestruturao produtiva e crise do sindicalismo. So Paulo: Boitempo Editorial, 2000. [Coleo Mundo do Trabalho]. (6) SILVA, Alessandro da; SEMER, Marcelo; MAIOR, Jorge Luiz Souto. Direitos humanos essncia do direito do trabalho. So Paulo: LTr, 2007. (7) MACHADO, Jorge; SORATTO, Lcia; CODO, Wanderley (Orgs.). Sade e trabalho no Brasil. Uma revoluo silenciosa: o NTEP e a previdncia social. Petrpolis-RJ: Vozes, 2010. (8) GAUTI, J. Da inveno do desemprego sua descontruo. In: Mana: Estudos de Antropologia Social. Rio de Janeiro: Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social Museu Nacional da Universidade Federal do Rio Janeiro. v. 4, n. 2, 1998.

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A seo seguinte busca analisar suas reverberaes e ressonncias no campo da sade, com os captulos de Maria Maeno (Fundao Jorge Duprat Figueiredo de Segurana e Medicina do Trabalho), de Maria Elizabeth Antunes Lima (Universidade Federal de Minas Gerais) e de Margarida Maria Silveira Barreto (Ncleo de Estudos Psicossociais da Dialtica Excluso/Incluso Social da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo e Faculdade de Cincias Mdicas da Santa Casa de So Paulo) em parceria com Jos Roberto Montes Heloani (Universidade Estadual de Campinas e Fundao Getlio Vargas de So Paulo). A ltima seo discute as dimenses jurdico-institucionais da precarizao do Trabalho e da sade do trabalhador, por meio dos captulos de Daniel Pestana Mota (Associao para a Defesa da Sade no Trabalho), de Luiz Salvador (Asociacin Latinoamericana de Abogados Laboristas) em parceria com Olmpio Paulo Filho (Advocacia Trabalhista e Previdenciria em Entidades Trabalhistas) e de Jorge Luiz Souto Maior (Universidade de So Paulo e Justia do Trabalho). Esperamos, assim, contribuir para o debate acerca de um tema to caro sociedade neste incio de milnio e agradecemos, profundamente, todo o empenho e colaborao por parte daqueles que participaram, direta e indiretamente, da realizao deste importante registro documental. Giovanni Alves Andr Lus Vizzaccaro-Amaral Daniel Pestana Mota

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Prefcio

A CONVERGNCIA DOS OLHARESEdith Seligmann-Silva

Este livro traz textos gerados por olhares distintos e, ao mesmo tempo, convergentes. Temos aqui uma confluncia de perspectivas e de saberes. Um encontro significativo neste pas e neste tempo em que tanto os seres humanos quanto os conhecimentos tm estado to desencontrados. Deslocamentos constantes; conhecimentos em mutao, vises de mundo cambiantes e conflitantes. E, aqui, uma busca de encontro e quem sabe de consenso para a inveno da forma de superar os males que se alastram. O desafio o enfrentamento da onipotncia cega, arrogante e impiedosa que impulsionou a invaso do neoliberalismo que se apossou do mundo do trabalho. Um enfrentamento que necessariamente precisa comear a partir do desmascaramento da retirada de todos os disfarces enganosos e discursos sedutores dos donos do mundo que encarnam o poder mundializado do capital na contemporaneidade. De acordo com as inseres dos autores em diferentes reas de conhecimento, enfoques especficos tambm so assumidos. Alguns autores contemplam mais a natureza humana, outros, o trabalho e suas mutaes; existe quem dirija um olhar crtico cincia, ao passo que outros se concentram na poltica e em como ela se corrompeu ao ser penetrada por um outro poder o do dinheiro para analisar como ambos se entranharam no mundo do trabalho e nas subjetividades. Enquanto isso, outro olhar rev a epidemiologia sob a luz da filosofia e outros enfocam a cultura em transformao tambm sob um olhar filosfico. A situao de desrespeito aos direitos humanos e, em especial, aos direitos sociais de cidadania, perscrutada mais centradamente pelos olhares dos juristas. Tentemos ver ento o que marca as confluncias entre os olhares destes profissionais e estudiosos que se inserem em campos aparentemente to diversos. O foco que no primeiro momento surge explicitado como relao existente entre trabalho e sade logo revela sua complexidade. Assim, o alvo central das indagaes no simplesmente o da sade encarada como questo vinculada proteo do organismo humano nos ambientes fsico, qumico e biolgico do trabalho e o atendimento s necessidades do funcionamento (fisiologia) deste organismo. Pois o que se evidencia como questo central de outra15

ordem de ordem tica e poltica. Trata-se de algo que perpassa todos os nveis do macrossocial internacional ao microssocial e micropoltico nas situaes concretas de trabalho. E tudo o que para os indivduos ressoa no apenas na sade do corpo, mas atinge a subjetividade e se torna existencial. Sem que sejam esquecidas as questes concernentes, de modo mais imediatamente visvel ao corpo e ao respeito que lhe devido no interior das condies concretas do ambiente de trabalho como ressalta o texto de Luiz Salvador, quando evoca a corporeidade do trabalhador e os direitos que ela suscita. O foco destes olhares foi tambm explicitado como sendo, em princpio, o trabalho humano em processo de desumanizao e seus impactos negativos na sade humana. O objetivo se duplica. Primeiro: a busca de um entendimento da atual escalada de impactos do trabalho sobre a sade dos trabalhadores, de modo a contribuir para a superao dos processos que a originam e a alimentam. O desenvolvimento dos textos desvela a impossibilidade de manter o reducionismo que restringe a relao trabalho sade ao higienismo, s aes pontuais contra fatores de risco que so contabilizados e transformados em cifras, sem entendimento dos processos de desgaste humano que tem como cenrio as situaes concretas e o contexto do mundo do trabalho. Segundo: a busca de sadas para essa escalada de danos, que se estendem subjetividade e sociabilidade dos trabalhadores subjacentes intensificao da dominao no mundo do trabalho.(1) As convergncias referentes ao entendimento dessa problemtica iluminam vrias questes complexas que se apresentam entrelaadas sob um mesmo tema integrador: a tica sob presso. Ou melhor: precisamos compreender as metamorfoses contemporneas que pressionam a tica. Os desdobramentos temticos que podemos delinear nesta metamorfose, entre outros, so: as crises; a desumanizao; a disseminao da incerteza; as resistncias. Os estudos sobre a desumanizao se desdobraram e vm atualmente encontrando uma convergncia na temtica da precarizao convergncia tambm assumida, de forma unnime, pelos autores deste livro. Fadiga A fadiga parece ter sido reconhecida por vrios dos autores como mediador poderoso nos processos de adoecimento que atingem a sade geral e a mental. Algo que gostaramos de examinar aqui, para mais alm do que o espao deste prefcio nos permite. Pois, como j refletimos antes: A explorao produz a exausto e a exausto obscurece a conscincia, abrindo caminho alienao. Os meandros desse processo, para serem desvendados, necessitam da abordagem interdisciplinar, que ainda se(1) Mundo do trabalho: a expresso foi utilizada para referir-se a um contexto mais amplo que alm de considerar as situaes de trabalho tambm engloba as correlaes de foras presentes no mercado de trabalho em seus diversos mbitos: internacional, nacional e local.

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constitui em desafio terico-metodolgico, dentro do novo campo da Sade Mental Relacionada ao Trabalho. (SELIGMANN-SILVA, 2011) A desconsiderao da dimenso humana percorre tambm sob outros aspectos os textos deste livro. Esse obscurecimento do humano se respalda na onipotncia dos que parecem decretar uma falcia: para garantir maximizao da competitividade, pensar em limites humanos contraproducente. A decretao de falsas verdades originou-se de teorias organizacionais marcadas pela onipotncia e desenvolvidas a partir da ideologia neoliberal. Um texto brasileiro bastante recente examina a questo: Faria e Meneghetti (2011), em profundo estudo de slido embasamento filosfico, lanam grave advertncia sobre os riscos de teorias totalizantes que absolutizam conceitos e estabelecem princpios (e valores) que passam a assumir feio de verdadeiros dogmas. O texto destes dois autores desvela a onipotncia contida nas teorias assim construdas. Ao mostrar o equvoco de construes tericas que tm a pretenso de incluir toda a realidade, Faria e Meneghetti nos permitem descortinar razes da grave ausncia da dimenso humana e da sade biopsicossocial dos assalariados nas teorias organizacionais voltadas excelncia e maximizao de competitividade. Ajudam-nos, tambm, a constatar a infinidade de outros equvocos de entendimento da realidade, decorrentes da absoro destas teorias onipotentes que funcionam como ideologias ocultadoras promovendo cegueira ante as prprias mutaes histricas alm da negao dos conhecimentos que esclarecem as dinmicas do psiquismo humano. (FARIA e MENEGHETTI, 2011) Andr Lus Vizzaccaro-Amaral, em artigo de densidade terica, alm de estimular a reflexo analtica e compreensiva de aspectos sociais e subjetivos, deixa implcitas algumas diretrizes para as prticas. Ao remeter noo de hybris, remetenos tambm ideia da arrogncia impiedosa que alguns psicanalistas tm identificado na esfera psquica de importantes dirigentes empresariais que os elegeram como consultores. (ARMSTRONG; LAWRENCE e YOUNG, 1997) O desafio imenso. Pois o processo de desumanizao do trabalho pode ser reconhecido como manifestao do processo mais amplo que vem sendo denominado precarizao e que tem tantas faces: precarizao das relaes contratuais, das relaes interpessoais e inter-hierrquicas, das condies do ambiente interno de trabalho, das formas de gerenciamento e da organizao do trabalho. So lesados ainda, de modo interrelacionado, os direitos e a sade dos trabalhadores e, no final, a prpria vida mental destes. O livro expe essa precarizao multiforme e sua ntima relao com o neoliberalismo e com uma crise social, que ao mesmo tempo cultural. Aps ter explodido sob a forma de crise financeira, agora tornou-se a crise econmica mundializada que ainda perdura e no estranha s crises polticas que se multiplicam mundo afora.17

As repercusses humanas destas crises, entrelaadas, vieram desafiar os profissionais da rea da sade e os da rea jurdica. Nessa dinmica, tanto a dimenso pessoal da identidade quanto a coletiva vem sendo esvaziadas e deformadas, instigando a reflexo de psiclogos clnicos e psiclogos sociais. A perda de autonomia pessoal e profissional dos assalariados vem sendo reconhecida como uma das mais graves decorrncias da escalada da dominao. Os aspectos existenciais desta perda recebem, no livro, ateno especial por parte de Srgio Augusto Vizzaccaro-Amaral, quando o autor mostra o desaparecimento do ser nas abordagens epidemiolgicas de cunho racionalista. Sobre os males do racionalismo, vale lembrar aqui o que foi escrito por Maria Ceclia Minayo: Fundada numa tica positivista, a cincia mdica, me e matriz de todo pensamento e ao das Cincias da Sade, como prtica terica e social, no s tende a cortar os laos entre os sujeitos, mas, de forma naturalizada e em nome da racionalidade, fragmenta-o, divide-o, parcela-o e o transforma em rgos e funes. (MINAYO, 2001, p. 4) A ideia de despossesso de si mesmo faz parte de uma perda mais ampla a dos laos coletivos e do pertencimento a uma comunidade na qual a vida compartilhada e de um ambiente no qual uma experincia de trabalho tece laos humanos e permite o autorreconhecimento. (SELIGMANN-SILVA, 2011) Existe um discurso, que se tornou amplamente presente nas empresas modernas, geis e enxutas, que cultiva uma excelncia idealizada na qual inexistem a noo de limites e necessidades humanas. Esse discurso enfatiza a valorizao dos colaboradores, que devem ser donos da liberdade e da responsabilidade de encontrar meios para atingir as metas fixadas pela empresa. Essa liberdade apregoada contrasta com uma concreta e extremada perda de liberdade resultante daquilo que pode ser chamado autonomia controlada (APPAY, 2005) ou, como talvez corresponda melhor a muitas situaes, autonomia aprisionada. O desenraizamento da natureza e uma atitude estranha, como que um desprendimento, da prpria espcie humana, tambm vm sendo apontados na contemporaneidade. Este ltimo significaria um despertencimento em relao humanidade. Talvez algo que est subjacente indiferena e mesmo a algumas formas extremas de crueldade. (FRANCO, 2011) A crise da tica preside, por assim dizer, o conjunto das outras crises que tomaram conta do mundo e desvelada nos trs conjuntos de textos que constituem este livro: os textos dos cientistas sociais, os dos especialistas da sade e os jurdicos. A profunda associao existente entre as questes de precarizao do trabalho e da sade dos trabalhadores, no bojo da grande crise tica, possui uma outra vertente que requer urgente ateno a que se projeta sobre o meio ambiente. Portanto, a18

ideia de crise e a temtica que se desdobra a partir desta ideia constitui um verdadeiro territrio de confluncia destes autores e de seus textos. Sade como questo tica o tema central do livro, que emerge a partir da questo mais ampla da crise da tica na contemporaneidade. O menosprezo pela sade mostrado em sua relao com o desmonte da tica poltica, e, de modo especial, com o da degradao dos valores ticos universais nos espaos do mundo do trabalho e da vida. Vrios dos textos que apontam para a vida mental revelam que esta tambm o lugar em que os valores sofreram transformaes negativas e mesmo inverses. A alterao profunda das resultantes do processo de subjetivao, no qual o social penetra o mundo psquico, apontada. Pois, na atualidade, ao invs de valores, so os desvalores que passam a habitar muitas subjetividades. No centro da questo tica que atinge a subjetividade podemos reconhecer um outro foco de ateno dos autores a dignidade. Questo essencial nos processos de sade mental relacionada ao trabalho, o esmagamento da dignidade situa-se tambm no mago dos chamados traumas ticos que emergem nas situaes precrias de trabalho e nos imensos conflitos polticos em que novos genocdios foram efetuados no sculo XX. (DORAY, 2006) Resistncias importante ponto de convergncia certamente a crena na busca de sadas para o esmagamento da subjetividade no mundo contemporneo do trabalho. A ideia da persistncia de uma resistncia que pode ser manifesta ou latente parece significar, para todos os autores, a grande esperana de que haver luz no fim do tnel. Caminham, assim, ao lado do pensamento de um filsofo francs que tem analisado o tema a partir de algumas constataes feitas em estudos empricos: ric Hamaroui (2001) v a resistncia dominao como algo que assume existncia e concretude enquanto ao de crescer junto com o mundo, distncia da exterioridade caracterstica da relao de objetivao ou de controle. Um questionamento importante feito pelo mesmo autor se vincula a essa ideia: o filsofo assinala que uma utilizao generalizante dos conceitos de servido e alienao voluntria impede a caracterizao da singularidade da relao do indivduo com o poder e com as novas organizaes do trabalho e da sociedade, admitindo, entretanto, que o fenmeno da servido voluntria pode ser verificado em algumas situaes. (HAMAROUI, 2005) No plano da busca de entendimento, possvel identificar nesta coletnea tambm uma convergncia nem sempre explicitada, mas que pode ser percebida como subjacente em todos os textos: a percepo do espraiamento de uma imensa incerteza. Pois a incerteza continuada tambm se mundializou, ao acompanhar a imposio do paradigma neoliberal de flexibilizao. Foi da presso angustiante advinda desta disseminao da incerteza, inicialmente paralisante, que mais adiante emergiu fortemente uma necessidade de procurar opes capazes de iluminar perspectivas novas. Necessidade que fertilizou19

a resistncia que mencionamos acima. Essa busca agora felizmente cada vez mais compartilhada em tantas partes do mundo certamente valer o esforo. Pois, como Balandier escreveu: em um mundo onde o imprevisvel domina amplamente sobre o provvel, ns (os seres humanos) no cessamos de desenvolver nosso poder transformador. (BALANDIER, 2000) REFERNCIAS BIBLIOGRFICASARMSTRONG, D.; LAWRENCE, W.G.; YOUNG, R.M. Group Relations: an introduction. Londres: Process Press, 1997. BALANDIER, G. Le grande Systme. Paris: Fayard, 2000. BEAUVOIS, J.L. Trait de la servitude librale analyse de la soumission. Paris: Dunod, 1994. BRAVERMAN, H. Trabalho e capital monopolista. Rio de Janeiro: Zahar, 1974. DORAY, B. La Dignit. Paris, 2006. FARIA, J. H. de e MENEGHETTI, F. K. Dialtica Negativa e a tradio epistemolgicas nos Estudos Organizacionais. Organizaes e Sociedade; v. 18, n. 56; p. 119-137 ; janeiro/maro, 2011. FRANCO, T. O direito ao trabalho e ao ambiente. 2011; (no prelo). FURTOS, J. Introduction. Souffrir sans disparaitre (pour dfiir La sant mentale au dela de La psychiatrie). In: FURTOS, J.; LAVAL, C. La Sant Mentale em Actes: De la clinique au politique. Ramonville Saint-Agne, 2005. p. 8-38. HAMAROUI, E. Servitude volontaire: lanalyse philosophique peut-elle clairer la recherche pratique du clinicien? Travailler, 13, ?35-53. MINAYO, M. C. Editorial. Cincia & Sade Coletiva, v. 6, n. 1, 2001. SELIGMANN-SILVA, E. Trabalho e desgaste mental: O direito de ser dono de si mesmo. So Paulo: Cortez, 2011.

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Conferncia introdutria

TRABALHO, GLOBALIZAO E SADE DO TRABALHADOR: PROMOO DA SADE E DA QUALIDADE DE VIDA(1)(2)Manuel Carvalho da Silva

Na minha qualidade de investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES-UC), tenho estado esta semana a trabalhar aqui na UNESP, a convite do professor Giovanni Alves, ministrando um minicurso no mbito do Programa de Ps-graduao em Cincias Sociais, intitulado Tpicos Especiais Trabalho e Sindicalismo em tempos de Globalizao e, desde ontem, assisti abertura e acompanhei parte dos trabalhos deste II Frum Trabalho e Sade: a precarizao do trabalho e a sade do trabalhador no sculo XXI. Agradeo o convite que me fizeram para integrar esta mesa de encerramento do Frum e sado, com muito entusiasmo, a amplitude temtica, a extraordinria dimenso disciplinar das diversas mesas e a grande qualidade das comunicaes e debates at agora produzidos. Os organizadores esto de parabns, tanto mais que o tema central de enorme actualidade. Sado todos e todas as pessoas presentes e em particular o Presidente desta mesa, bem como minha companheira conferencista, a Dr. Maria Maeno, de quem j me deram referncias muito elogiosas. Como foi dito pelo Giovanni, na apresentao inicial, a minha actividade fundamental a de sindicalista, enquanto Secretrio-Geral da Confederao Geral dos Trabalhadores Portugueses Intersindical Nacional (CGTP-IN). A actividade de investigador complementar. Fao-a em tempo extra, mas com muito interesse. A conferncia que vou proferir ter, no contedo e na forma de apresentao, traos relevantes dessa mescla de dirigente sindical componente que naturalmente emergir com fora e investigador social. claro que um dirigente sindical com(1) Este texto, para efeitos de publicao, integra todo o contedo apresentado na Conferncia em causa, completado pontualmente, com aprofundamentos das ideias expostas. (2) A transcrio da conferncia do Dr. Manuel Carvalho da Silva foi realizada por Thayse Palmela Nogueira.

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muito tempo de actividade e com funes de direco de uma Central Sindical , obrigatoriamente, um actor social e sociopoltico com experincia e aprendizagens amplas na sociedade. A apresentao da Conferncia est dividida em duas partes: na primeira, intitulada A Centralidade do Trabalho em Tempos de Globalizao, tratarei o lugar e o valor do trabalho no contexto da globalizao, o que me leva tambm a uma abordagem, embora sinttica, de alguns aspectos fundamentais desse processo em curso; na segunda, procurarei produzir uma reflexo especfica sobre as questes da Promoo da Sade e da Qualidade de Vida no trabalho. I) A CENTRALIDADE DO TRABALHO EM TEMPOS DE GLOBALIZAO Na formao acadmica (j tardia)(3) que tive e, em particular, na investigao com vista minha teses de doutoramento trabalho realizado entre 2002 e o final de 2006 , debrucei-me sobre questes do trabalho e do sindicalismo, partindo do pressuposto da centralidade do trabalho, mas procurando sempre confirmar esse lugar central e construir uma proposta especfica de arrumao/organizao dessa centralidade. Decorreu da uma leitura assente em nove (9) componentes, que sintetizo da seguinte forma: (i) o trabalho como factor de produo, pois o trabalho uma actividade produtiva de criao de valores de uso e de troca; (ii) o trabalho enquanto actividade socialmente til, pois ele contribui, nomeadamente, para a estruturao e organizao da sociedade, para o fornecimento de bens e servios que harmonizam e qualificam o seu funcionamento; (iii) o trabalho como factor essencial de socializao, sendo que a grande presena das pessoas no trabalho produz experincias, vivncias e processos de socializao e, por outro lado, o trabalho surge na sociedade actual como o primeiro factor de incluso; (iv) o trabalho enquanto expresso de qualificaes, observando-se que as confirmaes e infirmaes desta potencial possibilidade esto profundamente ligadas valorizao do trabalho, das profisses, das trajectrias e das carreiras profissionais e, ainda, s componentes mais positivas da evoluo das formas de prestao do trabalho; (v) o trabalho enquanto fonte de emanao de direitos sociais e de direitos de cidadania, estando plenamente confirmado que a valorizao e dignificao(3) Entrei para a Universidade aos 45 anos (em 1995), depois de longa experincia como sindicalista, tendo-me licenciado e doutorado em Sociologia respectivamente em 2000 e em 2007.

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do trabalho constituram, desde h muito, uma base fundamental da afirmao dos direitos sociais e das melhores dimenses do conceito de cidadania; (vi) o trabalho como direito universal, fonte e espao de dignidade e valorizao humana, numa perspectiva de criao e partilha feitas a partir da capacidade racional, material, tcnica e cientfica do conjunto dos trabalhadores, e no respeito entre o individual e o colectivo, entre o direito jurdico e a prtica; (vii) o trabalho (em certas condies) como factor de alienao econmica, ideolgico-poltica e at religiosa, pois o trabalhador no senhor de participao activa e decisiva no processo produtivo e no produto, nem na articulao entre produo e produto e, entretanto, acumula dependncias face ao poder patronal pontenciadoras do tolhimento dos seus horizontes de vida e geradoras de factores de alienao; (viii) o trabalho como condio de acesso aos padres de consumo e aos estilos de vida, factores que reciprocamente influenciam os comportamentos dos trabalhadores, quer individual quer colectivamente, sendo de observar, nesta componente, o importante lugar do salrio no patamar de socializao que cada indivduo consegue; (ix) o trabalho como actividade humana que se adapta e valoriza numa sociedade crescentemente chamada a cuidar do ambiente e dos valores ecolgicos, observando-se, por exemplo, a crescente importncia da valorizao da Sade e Segurana no Trabalho (SST) e do significado dos contextos ambientais e ecolgicos internos e externos s empresas. Em relao a esta componente, permitam-me expressar um tpico que escrevi para a minha tese de doutoramento: a sociedade est crescentemente a ser chamada a cuidar do ambiente e dos valores ecolgicos, mas no responde com eficcia. Vimos que a concorrncia intracapitais destri emprego e faz proliferar precariedades, ao mesmo tempo que degrada aceleradamente o meio ambiente. Os trabalhadores valorizam muito, quer a defesa e promoo da sade, higiene e segurana no trabalho, quer as questes mais amplas do ambiente no trabalho. Por outro lado, pudemos constatar, por um dos estudos de caso, que os indicadores provenientes da forma como o contexto geogrfico das empresas apresenta as condies estruturais e ambientais, se constituem como dos mais seguros para se saber se essas mesmas empresas tm futuro. Em concluso, poder dizer-se que, em geral, h valorizao do ambiente por parte dos trabalhadores no espao de trabalho, que existe uma conscincia crescente da sociedade (que sociedade do trabalho) quanto s questes do ambiente e a valores ecolgicos, mas no h empenho poltico e mobilizao social correspondentes. Nestas matrias, como noutras, os sindicatos tm excelentes condies, possibilidades e necessidade de convergncia de aco com outros movimentos sociais.(4)(4) SILVA, Manuel Carvalho. Trabalho e sindicalismo em tempo de globalizao: reflexes e propostas. Lisboa: Crculo de Leitores, Temas e Debates, 2007.

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Da afirmao de centralidade ampla do trabalho, que aqui apresento, decorrem reflexes e questionamentos a considerar: desde logo, as caractersticas e significados objectivos do enunciado desta centralidade fornecem-nos indicadores para a aco geral do movimento sindical; revelam-nos indicadores de fragmentaes a ter em conta para a construo de identidades colectivas; sugerem-nos contedos para formular e estruturar reivindicaes e propostas mais imediatas e pontuais (conjunturais), quer de carcter socioprofissional, quer sociolaboral, quer ainda de maior amplitude temtica; indicam-nos dimenses de participao de actores sociais e polticos, para alm dos sindicatos, com vista a assegurar uma aco de alcance e dimenso estratgicas potenciadoras da obteno de resultados; confirmam-nos a existncia de uma relao profunda entre os direitos no trabalho, os direitos sociais, a cidadania, o tipo de Estado e o modelo de sociedade. Nesta centralidade que enunciei considero o sindicalismo com um espao e movimento social especfico, que no se deve deixar diluir, mas assumo que a sua interveno eficaz passa, tambm, por articulao da sua aco com a de outros movimentos sociais e de outros actores sociais e polticos. O movimento sindical, embora com aquela especificidade, movimento social, e um movimento social extraordinariamente importante. Mas ele tem de estar aberto observao da existncia de contedos e condies que surgem, dentro do espao do trabalho ou em conexo com ele, que do origem a outros movimentos sociais. Daqui decorre a confirmao do interesse de articulao de aco de movimentos sociais, que preciso considerar quando olhamos esta centralidade. Surge ali, ainda, a necessidade de uma ateno de grande exigncia s Cincias Sociais na anlise do processo de transformao da sociedade observar o trabalho com mltiplos olhares e com cruzamentos multidisciplinares cada vez mais exigentes. Se fosse assumida a centralidade do trabalho com aquelas componentes, poderia assegurar-se a valorizao do trabalho ao servio do desenvolvimento efectivo da sociedade humana. Com a utilizao de uma pequena parte da riqueza existente poderiam criar-se milhes e milhes de empregos dignos e altamente teis a toda a sociedade. Nesta perspectiva, relevo a importncia do combate pelo emprego decente, tema to caro ao actual Director Geral da Organizao Internacional do Trabalho (OIT). Mas tambm meu entendimento que este combate pelo emprego decente ter de implicar um questionamento poltico profundo, sobre o modelo de organizao da sociedade e o estilo de vida que se pretendem para o futuro. As teorias que atacam a centralidade do trabalho, expressa ou implicitamente, procuram acantonar o trabalho debaixo dos paradigmas dominantes da economia e estabelecer cortes ou distanciamentos entre contedos de algumas das componentes que aqui afirmei. Uma abordagem sria sobre o trabalho, bem como sobre as relaes de trabalho, impe que se situem e tratem, concomitantemente, as suas dimenses econmica, social, cultural e poltica(5).(5) As respostas a muitos dos problemas com que os trabalhadores e os seus sindicatos se deparam no so da ordem do econmico como nos querem convencer, mas sim da ordem do poltico e da prpria democracia.

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O fundamental das justificaes, apresentadas pelo poder poltico e pelo poder econmico dominantes, para as revises laborais que vm sendo feitas nas ltimas dcadas, submete-se a argumentos da produtividade e da competitividade crescentemente centrados nesta, porque discutir a produtividade j pode implicar alguma discusso sobre a partilha dos ganhos obtidos. Estas imposies de quadros de relaes de trabalho absolutamente debaixo dos paradigmas da economia, ainda por cima, numa concepo neoliberal, constituem um grave retrocesso civilizacional e so geradoras de perigosas instabilidades e inseguranas. O ataque aos conceitos de contrato de trabalho ou de retribuio do trabalho, consolidados depois da II Guerra Mundial, e a pretenso de dar a mesma dignidade jurdica aos vnculos de trabalho precrios, que historicamente dada ao trabalho sem fim determinado e com direitos, constitui uma alterao radical ao Direito do Trabalho, passando-o caricatura do que positivamente foi. O Direito do Trabalho tem de afirmar-se e renovar-se tendo presente a amplitude da centralidade do trabalho e salvaguardando fundamentos que esto na sua gnese. O Sindicalismo e o Direito do Trabalho foram-se afirmando e obtendo o seu reconhecimento universal ao longo do tempo e sempre sustentados por duras lutas sindicais, constituindo as Normas da OIT conquistas fundamentais que ancoram e estabilizam princpios e prticas estruturantes. Essas normas no sobrevivero a uma desestruturao ou hipottico desaparecimento do Direito do Trabalho, nem ao definhamento ou subverso da negociao colectiva a que hoje assistimos, quando os patres a procuram reduzir cartilha de deveres dos trabalhadores para servir os objectivos financeiros gananciosos dos accionistas das empresas, sempre na imposio de uma espiral regressiva dos direitos de quem trabalha. A criao e a afirmao do Direito do Trabalho foram-se estruturando tendo como pressupostos fundamentais nomeadamente: a) que o trabalhador, individualmente considerado, est na relao de trabalho em posio de fragilidade perante o patro; b) para equilibrar essa relao foi reconhecido o direito de representao e de aco colectiva dos trabalhadores e foram consagrados o Direito de Trabalho e a Contratao Colectiva; c) decorre da a existncia do objectivo geral de harmonizao no progresso nos processos de regulao e regulamentao nas relaes de trabalho; d) este objectivo sustenta-se no pressuposto de que o trabalho e as relaes de trabalho tm, como j referi, dimenses simultaneamente econmicas, sociais, culturais e polticas. A nossa luta de sindicalistas, de acadmicos e de outros actores sociais e polticos para situar e fazer vingar o verdadeiro lugar e valor do trabalho, e tambm do Direito do Trabalho, ou para revitalizar o significado e a aplicao das Normas e Recomendaes da Organizao Internacional do Trabalho, obriga-nos a um olhar muito crtico sobre o processo de globalizao em curso.25

Nas ltimas dcadas temos vivido submetidos a determinismos expandidos por uma globalizao capitalista neoliberal e marcadamente belicista que, em diversos planos, coloca a maioria dos seres humanos debaixo de mltiplas instabilidades e inseguranas. A globalizao, como entidade suprema que tudo justifica, surge no senso comum como uma falsa ideia clara, uma espcie de palavra feitio, uma entidade distante e incontestvel que tudo justifica. O pontuar da globalizao marcado por concepes em que muitas vezes se fala do global para enfraquecer o universalismo, a multiculturalidade e a multilateralidade, valores indispensveis a uma considerao efectiva desse global. Os poderes dominantes e os seus executores no plano econmico, social, cultural e poltico vm utilizando o conceito de globalizao de forma amputada e manipulada, ignorando uma grande parte dos povos, as suas condies e naturais anseios. Mas esse processo est definitivamente em causa e a esto os grandes pases emergentes com as suas posies e estratgias a dar-lhe outros sentidos, fazendo emergir contradies que vo ter de ser resolvidas. No sabemos como se resolvero, mas sabemos que uma aco humana consciente e com valores poder evitar desastres. O modelo de sociedade em que vivemos est carregado de individualismo e de apelos ao consumo, tendo associado um estilo de vida instabilizador dos valores e das formas de organizao e prestao do trabalho, que no vivel no plano universal. O individualismo institucionalizado que vivemos isola os cidados para os responsabilizar pelas formas mais pervertidas. A convergncia deste individualismo com um consumismo alienante em que nos movemos, aprisiona os cidados e as condies das famlias, desde logo os trabalhadores, para quem a sustentao desta convergncia assegurada por uma sujeio a condies de trabalho mais instveis, inseguras e mal pagas. Dispomos hoje de mais capacidades e meios econmicos, tecnolgicos, cientficos e culturais que em qualquer outro perodo da histria da humanidade, mas o sistema capitalista, que tem sido (em condies concretas que aqui no analiso) potenciador da criao daqueles meios e recursos, tambm nega a sua utilizao para todos, e por todos os indivduos, no permitindo que se potenciem a criao e valorizao de emprego capazes de responder aos desafios que emanam dessa grande evoluo. Este processo secundariza os desafios da inovao social que a mais determinante e aquela que pode ajudar a boas opes na inovao tecnolgica, impondo valores e dando dimenso e qualidade poltica e s prticas sociais a todos os nveis, nomeadamente nas formas de organizao e prestao do trabalho. Relembremos que a sociedade moderna foi muito marcada pela conjugao de impactos do avano da cincia e da tcnica, com as dinmicas resultantes do confronto de projectos polticos de estruturao e de organizao da sociedade, em26

contextos de intensas lutas sociais que sustentaram as condies para as transformaes e mudanas e lhe deram sentido. Os trabalhadores e os seus sindicatos precisam de reforar as suas reivindicaes e a luta social, mas so precisos projectos polticos que as enquadrem e potenciem a favor da transformao social e do progresso. O fundamentalismo monetarista e essencialmente financeiro que tem imperado gera uma perigosa desvalorizao do trabalho, bem como de muitas das actividades de produo de bens e servios teis sociedade. O objectivo da obteno de chorudos ganhos imediatos para os grandes accionistas e gestores de servio, subverte os melhores objectivos da gesto e sacrifica tudo, incluindo o valor produtivo do trabalho. As precariedades e inseguranas no trabalho resultam essencialmente daqui, ou seja, da subjugao das formas de organizao e de prestao do trabalho obteno imediata daqueles lucros. Afirmo-o sem, contudo, negar a influncia e significado das mudanas tecnolgicas, informacionais, comunicacionais e outras que marcam o caminhar da sociedade nas ltimas dcadas. Esta especulao financeira desmedida num quadro de trocas comerciais vergonhoso e humilhante para os mais pobres, com uma desregulao perigosa e uma governao sem moralizao vem impondo instabilizao/retrocesso do papel do Estado ou at de blocos de Estado, como se est a observar na Unio Europeia. Assim no possvel construir a governabilidade necessria e sustentar uma eficaz regulao e regulamentao do trabalho. Neste contexto o capital financeiro autodispensou-se de contribuir com significado para os oramentos colectivos (Oramentos de Estado) e o capital produtivo procura seguir-lhe as peugadas, colocando em causa a efectividade do compromisso capital/trabalho quer na distribuio primria, quer nos outros nveis de distribuio dos ganhos do trabalho, para a sustentao do que na Europa tanto referenciamos como Estado Social. A ausncia de estabilidade e segurana dentro e fora do trabalho, a violao sistemtica dos direitos no trabalho e a ausncia de uma retribuio minimamente justa constituem-se como causas directas e fundamentais das desigualdades. Em conexo com aquelas prticas, surgem rupturas de relaes em diversos outros planos, designadamente roturas de laos indispensveis entre geraes, afectando violentamente clulas ou instituies fundamentais da sociedade, como a famlia. As multinacionais constituem a entidade mais determinante no s na economia, como tambm na prpria estruturao e funcionamento das instituies (desde o Estado s instituies mundiais). Em 2010, cerca de 50.000 empresas comandam directa ou indirectamente mais de 2/3 da economia global, sob forte influncia do jogo de especulao financeira em que cada uma delas uma autntica plataforma desse jogo. A partir dessa posio, influenciam todo o resto da economia e o poder poltico. Por outro lado, elas procuram impor uma diviso social e27

internacional do trabalho adequada sua estrutura e aos seus objectivos, assente no desenvolvimento duma espiral regressiva que surge a estruturar os mercados de trabalho, provocando aprofundamento da segmentao e das precarizaes, enfraquecendo e desestruturando a legislao de trabalho e as relaes laborais estabilizadas pelos Estados e acantonando fortemente os sindicatos. Os argumentos com que as multinacionais se apresentam, face possibilidade de deslocalizaes de estruturas produtivas ou de servios, so fortssimos e procuram conduzir os trabalhadores e os sindicatos para discusses limitadas ao campo da realidade consubstanciada nos interesses econmicos e financeiros dos accionistas das empresas, discutidos e tratados de forma absolutamente fechada dentro do espao das respectivas empresas. Alguma nova contratao colectiva j bem a expresso deste acantonamento para onde esto empurrados os trabalhadores. A imposio de tais prticas, que outras empresas procuram seguir, pode acelerar a destruio de solidariedades e de factores de coeso social e poltica que se construram progressivamente ao longo de quase um sculo e meio. Essas prticas fundamentam e concretizam uma espcie de harmonizao no retrocesso que se vai impondo na regulamentao do trabalho e, em particular, na contratao colectiva, tanto no sector privado como no sector pblico. Os trabalhadores e as suas organizaes, para terem eficcia na sua aco, tm de confrontar a profunda manipulao de conceitos que vem sendo feita pelo neoliberalismo. So manipulados os conceitos de mudana, de conservao, de competitividade e tratam-se de forma atrofiada, por exemplo, os de empresa de qualidade ou o de produtividade. Estes so contedos concretos de um debate ideolgico muito mais amplo para o qual tem de ser convocada e mobilizada a sociedade no seu todo. Assistimos cada vez mais a situaes em que as elites polticas (executando os interesses do poder financeiro e econmico) fazem opes de governao com profundo carcter poltico (sob um argumentrio pretensamente tcnico) e com duras implicaes para os trabalhadores e para o desenvolvimento da sociedade, depois convidam os sindicatos e outros actores sociais e econmicos para se comprometerem na sua aplicao como se essas opes fossem inevitveis e tudo se reduzisse a um mero processo tcnico. Perante estas constataes, reforo a seguinte ideia: h confrontos que nos surgem (no senso comum) situados apenas no espao do trabalho e da actuao dos sindicatos, a que estes por si s j no podem responder, pois os problemas em causa, tendo dimenses laborais e sociais genunas, so j da ordem da poltica (no seu todo) e da prpria democracia. Mas no percamos a esperana e tomemos em mos as conquistas, mesmo que frgeis e at contraditrias, que se vo conseguindo. Por exemplo, o facto de, entretanto, haver muitos milhes de seres humanos a usufruir pela primeira vez de trabalho remunerado, embora para muitos deles mal pago e sem decncia, constitui-se como elemento muito positivo para olharmos o futuro. A dinmica28

social e poltica deste facto propiciar uma melhoria progressiva das suas condies de vida e vai contribuir para se criarem perspectivas e projectos de sociedade inovadores e mais solidrios. A concepo de centralidade de trabalho que aqui vos apresentei e a afirmao de que o trabalho e a regulamentao do trabalho tm, como j repeti, dimenses econmicas, sociais, culturais e polticas a assumir, em simultneo e de forma equilibrada, colocam-nos, no imediato, seis velhos temas do sindicalismo em destaque, para se trabalharem no mundo do trabalho actual e moderno: (i) a exigncia de novos paradigmas para as polticas de emprego. O emprego tem de se afirmar como trabalho til na produo material de bens e servios, incluindo muitos novos servios e actividades que sirvam o desenvolvimento humano e social das sociedades. Um novo conceito de emprego deve responder aos grandes avanos consubstanciados no aumento da esperana de vida, no aumento quantitativo e qualitativo das mulheres no trabalho, nos processos migratrios crescentes incorporados por algumas novas caractersticas, nos quadros da aquisio e gesto de novos saberes e qualificaes que se exigiro ao longo da vida. Esse novo conceito de emprego indispensvel para responder a algumas dimenses da actual crise que se continuam a secundarizar: a energtica, a climtica, a ambiental, a ecolgica, a das trocas comerciais subvertidas. (ii) combater a precariedade no trabalho e criar novos factores de estabilidade e segurana. A precariedade do trabalho, sendo um problema laboral, social e sociopoltico, tambm de modelo de sociedade e de estilo de vida. O combate tem de ser feito nos diversos campos: no da legislao, travando a atribuio da mesma dignidade jurdica a todo tipo de vnculo de trabalho, salvaguardando direitos efectivos para todos os trabalhadores, nas prticas e nas formas de organizao do trabalho. A crise que vivemos mostra-nos que no h emprego que se sustente sem direitos, sem factores de segurana e estabilidade para o trabalhador que o presta. A agenda da Organizao Internacional do Trabalho relativa ao trabalho digno , como disse, um importante instrumento que importa ter presente nestes combates. Ela deve ser tomada numa perspectiva de harmonizao no progresso e ser sustentada por uma luta sindical que, sem secundarizar a perspectiva reformista, tenha um forte sentido de classe e afirme rupturas. Numa agenda poltica de busca de caminhos alternativos a este capitalismo neoliberal, preciso questionar e desarmar a convergncia demolidora do consumismo/individualismo (de uma parte significativa da sociedade) que marcou a parte final do sc. XX, que continua a condicionar-nos e a colocar milhes e milhes de seres humanos nas mais profundas instabilidades e inseguranas. (iii) actualizar e defender o valor do salrio. O salrio j foi, mas no deve voltar a ser, um mero subsdio de subsistncia. Ele uma parte da riqueza produzida pelo trabalhador e a luta a desenvolver deve ser, justamente, a de29

propiciar que a riqueza produzida seja mais bem distribuda. Por outro lado, o salrio no substituvel por sistemas de crdito, como vem sendo feito em muitos pases, processo esse que aprisiona (de forma quase absoluta) o trabalhador nos seus direitos laborais e de cidadania. (iv) inovar e revitalizar o papel da contratao colectiva. Esta foi, na segunda metade do sculo XX, o instrumento de polticas mais eficaz e positivo na distribuio da riqueza, no conjunto dos pases e com governos de diversas coloraes. Deixo-vos trs afirmaes quanto a caminhos para ressituar o seu papel, os seus contedos e uma aco eficaz das estruturas sindicais: primeiro, os contratos colectivos de trabalho no podem ser cartilhas de compromissos para servir a acumulao da riqueza dos accionistas das empresas ou para organizar a Administrao Pblica meramente com objectivos economicistas; segundo, os sindicatos, em particular o sindicalismo de classe, tm de intensificar a sua aco e o seu afrontamento ao capital para se criarem novas relaes de foras que lhes sejam mais favorveis; terceiro, para isso imperioso que, a partir daquela perspectiva ampla da centralidade do trabalho e da anlise dos seus contedos, se desbravem caminhos tendo em vista a construo de novas identidades colectivas. (v) o direito ao controle do tempo de trabalho. O tempo um bem social fundamental, o mais importante depois da sade. A gesto unilateral do tempo de trabalho por parte da entidade patronal infernaliza a vida do trabalhador/ cidado e da sua famlia. Essa gesto unilateral e violenta est a desorganizar a sociedade, a destruir referncias culturais e valores fundamentais sem os quais no existem sociedades verdadeiramente democrticas. Sendo o tempo um bem social fundamental, a sua gesto tem de servir as dimenses todas da vida: a social, a econmica, a cultural, a do exerccio de cidadania, a poltica. (vi) afirmar proteco social e os sistemas pblicos, solidrios e universais de Segurana Social como elementos estruturantes de uma sociedade democrtica desenvolvida. H, com certeza, grande conjunto de problemas a analisar e a considerar: problemas decorrentes da evoluo da economia; dos objectivos dominantes no plano poltico, cultural, social; da organizao da sociedade; da organizao e papel da famlia; da diviso social e internacional do trabalho; das condies de funcionamento do mercado de trabalho e das suas formas de organizao e prestao; das questes demogrficas; das polticas de sade no trabalho que preciso garantir, tendo presente que o trabalho que realiza as pessoas e lhes garante sade, o que, no plano social e cultural, melhor serve a sociedade e aquele que, a prazo, se torna economicamente mais vantajoso para o colectivo da sociedade. Os Sistemas de Segurana Social que temos, por exemplo na Europa, foram sustentados por opes polticas e culturais, e no apenas por meros objectivos econmicos. A contribuio patronal para a Segurana Social, feita a partir da efectivao da remunerao do trabalhador, constitui uma das garantias-base do30

funcionamento dos sistemas que conhecemos na Unio Europeia. As discusses feitas sobre o financiamento dos sistemas de Segurana Social tm mostrado que este compromisso patronal indispensvel e que, se for deslocalizado do ponto da sua efectividade dificilmente ser exequvel, pois o capital encontra manipulaes no campo fiscal e noutros que lhe permite fugir a essas responsabilidades. Por outro lado, para haver um sistema de Segurana Social com estabilidade e sustentado preciso termos emprego com direitos (incluindo salrio justo) e estabilidade no emprego. A precariedade um grande inimigo da Segurana Social. II) PROMOO DA SADE E DA QUALIDADE DE VIDA O conceito de Sade e Segurana no Trabalho integra a promoo da sade e da qualidade de vida, dentro e fora do espao da prestao do trabalho. A articulao entre os conceitos de promoo da sade, de bem-estar e qualidade de vida constituem sem dvida uma forte exigncia actual. O ambiente no trabalho (em termos gerais) e o respeito pelos direitos no trabalho so factores de sade. Entretanto, a sade fundamental para o ambiente de trabalho e para os objectivos de produtividade. Como sabemos existe uma evoluo contnua nos objectivos da promoo da sade no trabalho, que na actualidade se podem situar nos seguintes campos primordiais: (i) preveno de acidentes de trabalho e das doenas profissionais o nmero de mortos e incapacitados por acidente bem mais grave escala mundial do que o nmero de mortos e de feridos em guerras; por outro lado, os organismos oficiais demoram imenso tempo a confirmar uma doena como doena profissional; (ii) adaptao do trabalho aos trabalhadores, pois o trabalho tem direitos e deveres que jamais podem permitir transformar o trabalhador em mquina e necessrio afirmar que o trabalho no uma mercadoria; (iii) cuidados de sade primrios, que podem ser mais eficazes se presentes (e efectivados) no local de trabalho; (iv) promover sade, bem-estar e capacidade funcional no trabalho; (v) prevenir doena evitvel, leso e incapacidade nas mais diversas reas; (vi) prevenir situaes geradoras de absentismo e de perda de produtividade e de competitividade nas empresas e nos mais diversos servios pblicos; (vii) antecipar ganhos em sade (p. ex., eliminar risco cardiovascular, reduo de lombalgias, etc.); (viii) reduzir custos humanos, actuando sobre o custo inerente efectividade do direito sade, bem como sobre o custo relativo ao benefcio obtido. Um olhar de carcter geral sobre as polticas para a Sade e Segurana no Trabalho, a partir da situao concreta que observo em Portugal, conduz-me a expor quatro consideraes fundamentais. Primeira, as polticas e as prticas seguidas privilegiam a dimenso securitria, embora venham progressivamente a penalizar de forma crescente os acidentados do trabalho e as vtimas de doenas profissionais. Contudo tarda, quase em absoluto,31

um investimento srio na dimenso sade voltada para o objectivo preventivo. Direi, ento, ser preciso resolver as insuficincias da dimenso securitria, mas ser imperioso assumir-se a necessidade de emergncia da dimenso sade. Segunda, indispensvel a existncia de servios de sade/mdico do trabalho nas empresas, trabalhar regularmente a informao e a comunicao junto dos trabalhadores, dar-lhes formao e induzir-lhe responsabilizao sobre os riscos profissionais. A palavra de ordem a sustentar todo esse trabalho deve ser, pois, prevenir. Para se alcanarem xitos indispensvel estudar o meio ambiente e os riscos profissionais nos locais de trabalho, articulando esse trabalho com a aco das Administraes de Sade locais. Terceira, no espao do trabalho cabe, em primeiro lugar, ao patro (empregador) a responsabilidade de promover as condies de trabalho saudveis e prevenir as doenas profissionais e os acidentes de trabalho. As normas da OIT e a legislao especfica so muito claras nesta matria, mas os objectivos do fundamentalismo econmico e financeiro imediatista criam prticas de sinal oposto. Quarta, uma poltica que vise cuidar da sade das pessoas, fora e dentro do trabalho, uma obrigao em sociedade democrtica: o indivduo trabalhador tem de ser cidado pleno, fora e dentro do espao de trabalho. Dados o valor e o significado do trabalho, os cuidados de sade devem ser reforados no espao do trabalho, sendo certo poder resultar da vantagens para a produtividade numa perspectiva estratgica, bem como significativos ganhos para a sociedade, designadamente, em custos econmicos, muitas vezes at num espao temporal muito curto. No contexto actual h que colocar as questes relativas SST numa perspectiva integrada com os desafios ambientais e ecolgicos. A problemtica da relao entre a SHST e o ambiente em geral pode ser vista a partir de diferentes perspectivas mas, no fundamental, mostra-se ampla e com profundas conexes. Em grande medida, a abordagem tanto da SST como do Ambientalismo ou da Ecologia se dirige em relao ao problema da sustentabilidade do actual modelo (dominante) de desenvolvimento da sociedade. Por um lado, a problemtica da sustentabilidade humana, inserida nos contextos estruturais e organizacionais da sociedade, das empresas e da regulao e funcionamento dos sistemas laborais; por outro, o problema da sustentabilidade da sobrevivncia e desenvolvimento humanos, na relao metablica com a natureza e o meio ambiente. Isto quer dizer que, tanto o respeito pelo ser humano enquanto trabalhador como o respeito pelo meio ambiente em que este vive contm temticas e possuem linguagens e objectivos fortemente relacionados e, em muitos casos, comuns. Podemos dizer que o comportamento cultural que leva as actuais correntes dominantes na gesto e na organizao do trabalho, ao desrespeito pelo trabalhador e pela sua sade do mesmo tipo do comportamento cultural que conduz ao32

desrespeito pelo ambiente. No fundo, as duas formas de comportamento revelam um desrespeito grande pelas condies do meio envolvente, seja o social/humano, seja o meio natural. Elas situam a actividade econmica estreitada no objectivo da rapidssima obteno de lucro, muitas vezes cilindrando a dimenso social humana e do meio ambiente. Perante esta anlise mais se refora a necessidade de considerarmos, nas nossas propostas, os sistemas integrados de segurana, ambiente, qualidade e responsabilidade social, pois numa empresa ou servio, pblico ou privado, todos estes campos ou factores tm uma relao efectiva e vrios aspectos em comum. No plano terico, a empresa com qualidade aquela que produz em segurana, com respeito pela sade do trabalhador, pelo meio ambiente e pela sociedade onde se insere. Mas, como j vimos atrs, um dos conceitos hoje muito manipulado o de empresa de qualidade. Quantas vezes grandes empresas desenvolvem campanhas de grande impacto pblico no campo da responsabilidade social, que at as prestigiam, e, quando se vo analisar as suas prticas, observa-se que no cumprem direitos fundamentais dos trabalhadores ou responsabilidades perante o Estado. Outra perspectiva de reflexo que quero partilhar convosco a que tem a ver com a agresso ao meio ambiente. O risco laboral que sujeita o trabalhador a um acidente ou a uma doena profissional sempre relacionado com o meio ambiente onde este se insere, como o caso das actividades ligadas a contaminantes do meio ambiente, utilizados ou produzidos potencialmente nocivo para a comunidade onde a empresa se insere. Em ltima instncia, poder dizer-se que, a partir do momento em que o risco de contaminao ambiental transpe o ambiente de trabalho e se integra no meio ambiente da comunidade, passa a ser um risco ambiental da sociedade no seu todo. Direi assim que, no plano conceptual (tambm deve ser prtica), a empresa no pode ser um agente nocivo para o ser humano, para a comunidade e para a natureza em geral. A empresa dever ser um agente ao servio do progresso e do desenvolvimento social, ambiental e cultural. Isto s ser possvel atravs da educao e, fundamentalmente, da informao e da formao dos trabalhadores em geral e dos prprios empresrios ou gestores, impondo-se, por outro lado, o cumprimento da lei e a certificao das empresas em normas tcnicas que as levem a adoptar prticas organizacionais saudveis, para os e as trabalhadoras e para o meio ambiente. Tomando observaes e anlise feitas na primeira parte da conferncia, considero que aqui se apresenta a confirmao de os actuais conceitos de produtividade e competitividade terem de ser postos em causa, pois eles, em grande escala, no se mostram compatveis com estes objectivos. Tambm se confirma estarmos desafiados a trazer para o debate novos paradigmas para a economia e para a concepo estrutural das empresas e, ainda, novos conceitos para o emprego.33

A viso economicista dominante acaba por transformar as empresas, muitas vezes, em parasitas sociais e ambientais. Elas obtm vantagens materiais imediatas, que acarretam um conjunto de prejuzos muito pesados para as comunidades envolventes. Vejamos o caso das empresas que poluem os rios, o ar, os solos e, ao mesmo tempo, destroem a vida dos seus trabalhadores. Aps explorao intensiva, quantas vezes fecham e deixam atrs de si um rasto de destruio. Alguns desses prejuzos ou so irreparveis, luz dos meios hoje disponveis, ou sero muito onerosos para vrias geraes. Permitam-me agora colocar alguma reflexo sobre a relao entre a SST e a produtividade. O primeiro aspecto desta relao a que dou enfoque muito simples: uma pessoa num bom estado de sade (fsico, mental e social) produz em maior quantidade e com maior qualidade. Est profundamente comprovado que boas polticas de SST no significam somente mais sade e mais motivao. Um trabalhador mais motivado no s produz bem, como inova e atribui mais valor acrescentado ao que produz. Tenha-se por isso presente a centralidade do trabalho na vida das pessoas, analise-se essa centralidade nas suas mltiplas componentes e, a partir da, trabalhemos as alianas de mobilizao social necessrias para criarmos perspectivas novas de valorizar o trabalho. Tais objectivos so possveis atravs da integrao da cultura para a sade (e para sua promoo), dando prioridade preveno em todas as fases e em todos os patamares de organizao do trabalho de uma empresa ou servio pblico. No vale a pena ter um sistema de preveno muito bem delineado, se depois lhe falta a indispensvel participao dos trabalhadores, ou se os critrios de gesto utilizados so os primeiros a colocar o sistema em causa. Assegurando, nas empresas e nos servios pblicos, articulao das polticas e prticas entre as reas do trabalho e da sade, com os objectivos econmicos a alcanar, indispensvel garantir: o estabelecimento e efectividade de sistemas de participao nas empresas, pois so os trabalhadores os que conhecem melhor o seu metier e que podem influenciar positivamente as mudanas comportamentais; o efectivo cumprimento da legislao; uma boa poltica nacional de preveno da sade trabalhada na escola, na empresa, na formao contnua dos trabalhadores e patres e/ou gestores; eficincia na aco da Inspeco do Trabalho; um funcionamento efectivo da justia do trabalho e do sistema de justia em geral. Tendo presentes as reflexes e posies que expus, termino esta Conferncia com onze reivindicaes/propostas do movimento sindical, no quadro da realidade poltica, econmica, social e laboral do meu pas: (i) o local de trabalho, por ser um espao social por excelncia, deve ser privilegiado em relao ao desenvolvimento das estratgias e das prticas das polticas de preveno e, em particular, promoo da sade, tendo presente a centralidade do trabalho, que expus. nele que se faz a parte mais significativa34

da vida activa dos e das trabalhadoras. O local de trabalho propicia uma oportunidade nica para integrar programas de proteco e promoo da sade e para modificar a estrutura e o ambiente de trabalho, pois a que as evidncias surgem em primeiro lugar e podem ter resposta mais eficaz; (ii) o trabalhador deve promover a sua Sade (tem esse dever) no seu todo, tambm dentro e fora do local de trabalho. preciso assegurar ao cidado trabalhador capacidades para o trabalho e para a vida. Existem os meios tcnicos e cientficos necessrios e a riqueza produzida pelo trabalho suficiente para, entre outros direitos do trabalho, assegurar o direito sade, e o trabalhador deve estar consciente do seu direito/responsabilidade nesta importante rea. (iii) as precariedades, mobilidades e flexibilidades que na actualidade marcam as prestaes de trabalho reclamam (exigem) fornecimento de competncias para garantir a sade de quem trabalha. As entidades empregadoras e o Estado tm de agir com princpios ticos que valorizem e promovam a sade e a segurana no trabalho. Os impactos e caractersticas da globalizao sobre os quais reflecti na primeira parte, o trabalho precrio, as alteraes demogrficas, os efeitos das novas tecnologias, as mobilidades, o desenvolvimento de novos servios versus trabalho industrial (uns e outros carregados de riscos tradicionais) apontam para a necessidade de um acrscimo de investimento na reduo dos riscos na origem. A Carta de OTTAWA, de 1985, entre muitos outros alertas, refere-nos o peso de novas exigncias mentais no trabalho que provocam stress, ou ritmos de trabalho que se tornam humanamente insustentveis. preciso habilitar as pessoas (trabalhadores) para terem recursos, poderem tomar opes em tempo til e fazerem as suas escolhas; (iv) elevar a cultura para a sade implica que a abordagem da poltica de sade esteja presente em todos os patamares de deciso estratgica, estrutural e organizacional, nas empresas e servios pblicos, bem como a efectivao do dever colectivo das instituies na promoo da Sade; (v) as polticas de sade no trabalho esto no centro dos elementos estruturantes de uma estratgia sindical. Os contedos relativos a essas polticas necessitam de estar presentes na aco sindical geral que desenvolvida nas empresas e servios pblicos, nos processos de negociao colectiva e no dilogo social mais amplo, espao este em que os actores sociais no so apenas os sindicatos; (vi) muito grande a importncia de haver trabalhadores eleitos e funcionamento regular das comisses para a SST, bem como a existncia de uma aco sindical estruturada neste campo especfico na generalidade dos locais de trabalho. Os programas de trabalho sindical na base devem incluir os objectivos de qualidade de vida e de bem-estar. No que se refere sade ocupacional, existem objectivos muito concretos a atingir por parte dos sindicatos: proteger a sade dos trabalhadores; promover ambiente e prticas35

de trabalho sadias e seguras; garantir formas de organizao de trabalho favorveis sade e qualidade de vida; manter e promover a capacidade para o trabalho, tendo em vista no apenas o posto de trabalho de momento, mas tambm condies indispensveis para toda a vida activa; (vii) a abordagem do alcoolismo, do HIV, do tabagismo, da obesidade e de outros tipos de doenas deve ser conjugada com os planos de reparao das mesmas, e constituir reas de trabalho em que as prticas mostram ser possvel estabelecer parcerias de aco dos sindicatos com organizaes empresariais e outras entidades com muito bons resultados; (viii) manifesta-se uma grande importncia e existem possibilidades concretas de articulao de objectivos e de aces centradas em programas na rea da sade e outras dos amplos espaos do trabalho entre a Autoridade para as Condies de Trabalho, a Direco-Geral de Sade e os Servios Hospitalares. Pelas prticas desenvolvidas pela CGTP-IN, confirma-se a existncia de vantagens e possibilidades concretas para estabelecer parcerias de xito entre a Autoridade para as Condies de Trabalho, as Empresas, as Autarquias, os Sindicatos, com vista ao desenvolvimento de planos de trabalho de boas prticas em todas as reas mencionadas no ponto anterior; (ix) os mdicos de famlia (sade familiar) e os de cuidados de sade primrios devem ter conhecimento e dar ateno aos riscos profissionais e s condies do ambiente de trabalho e assegurar uma articulao regular com a aco dos mdicos do trabalho, o que na maior parte das vezes no acontece. O cidado/ trabalhador no pode nem deve ser tratado aos bocadinhos. O corpo um s e a sade constitui elemento total da sua existncia e actividade, pois ela o bem social de maior importncia; (x) de grande significado trabalhar bem as competncias e exigncias que se colocam s Equipas de Sade Ocupacional: terem lideranas capazes; saberem definir prioridades de organizao, de planeamento e calendarizao de tarefas que so imprescindveis; assegurar o desenvolvimento dos processos de aco e condies para se proceder anlise e avaliao de resultados; cumprirem princpios ticos que garantam aos trabalhadores privacidade e confidencialidade sobre as suas situaes de sade. Entretanto, as equipas tm de assegurar para si prprias autonomia, consentimento esclarecido, equidade e independncia face s entidades patronais; (xi) existe uma necessidade de avaliao regular e tambm de aco inspectiva desenvolvidas sobre as prticas seguidas nas empresas e na Administrao Pblica. Com a estrutura e instituies que temos em Portugal, essas funes devem ser feitas com meios e objectivos bem definidos por parte de organismos pblicos a quem esto atribudas essas funes, com realce para o trabalho da Autoridade para as Condies de Trabalho.36

Seo 1

CRISE CAPITALISTA, PRECARIZAO DO TRABALHO E SADE DO TRABALHADOR NO SCULO XXI

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Captulo 1

TRABALHO FLEXVEL, VIDA REDUZIDA E PRECARIZAO DO HOMEM-QUE-TRABALHA: PERSPECTIVAS DO CAPITALISMO GLOBAL NO SCULO XXIGiovanni Alves Voc no seu emprego David Fincher, Fight Club, 1999

A vigncia das relaes de trabalho flexveis instaura uma nova condio salarial caracterizada pela mudana abrupta da relao tempo de vida/tempo de trabalho (jornada de trabalho flexvel); relao tempo presente/tempo futuro com a ascenso das incertezas pessoais (novas formas de contratao flexvel) e estratgias de envolvimento do self (remunerao flexvel). Este novo metabolismo social do trabalho transfigura a troca metablica entre o homem e outros homens (relaes sociais de trabalho e sociabilidade) e entre o homem e ele mesmo (autoestima e autorreferncia pessoal). Podemos identificar alguns traos cruciais da nova morfologia social do trabalho que surge sob o capitalismo global e que implica o que denominamos de precarizao do homem-que-trabalha(1). Eles constituem um processo de conformao do sujeito humano, caracterizado pela quebra dos coletivos de trabalho, captura da subjetividade do homem-que-trabalha e reduo do trabalho vivo fora de trabalho como mercadoria. Portanto, podemos dizer que a nova morfologia social do trabalho que emerge com o capitalismo global caracteriza-se por dinmicas psicossociais que implicam a (1) dessubjetivao de classe, (2) a captura da subjetividade do trabalhador assalariado e (3) reduo do trabalho vivo fora de trabalho como mercadoria.

(1) A precarizao do trabalho que ocorre hoje, sob o capitalismo global, seria no apenas precarizao do trabalho no sentido de precarizao da mera fora de trabalho como mercadoria; mas seria, tambm, precarizao do homem que trabalha, no sentido de desefetivao do homem como ser genrico.

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I) DESSUBJETIVAO DE CLASSE Os processos de dessubjetivao de classe implicam dinmicas sociais, polticas, ideolgicas e culturais que levam a dissoluo de coletivos do trabalho impregnados da memria pblica da luta de classe. Eles so produtos de ofensivas do capital na produo, como, por exemplo, os intensos processo de reestruturao produtiva que ocorreram nas grandes empresas capitalistas, principalmente a partir de meados da dcada de 1970; ou na poltica, com as experincias histricas de derrotas sindicais e polticas da classe operria nos ltimos trinta anos. Por exemplo, as derrotas eleitorais que levaram a eleio de Margaret Thatcher, no Reino Unido, em 1979 e Ronald Reagan nos EUA, em 1980; ou, no caso da Amrica Latina, os golpes militares que ocorreram nas dcadas de 1960 e 1970, como a derrubada do governo socialista de Salvador Allende no Chile, em 1973; ou ainda, no caso do Brasil em 1989, a derrota eleitoral da Frente Brasil Popular e a eleio do candidato Fernando Collor de Melo, que implementou polticas neoliberais. Enfim, derrotas histricas do trabalho no processo de luta de classes levaram, como resultado irremedivel, a intensos processos sociais de dessubjetivao de classe. Ao mesmo tempo, a ofensiva do capital significou a vigncia da ideologia do individualismo na vida social. Desvalorizam-se prticas coletivistas e os ideais de solidarismo coletivo no qual se baseavam os sindicatos e os partidos do trabalho e disseminam-se na cultura cotidiana, influenciada pela mdia, publicidade e consumo, os ideais de bem-estar individual, interesse pelo corpo e os valores individualistas do sucesso pessoal e do dinheiro. nesse mesmo contexto histrico-cultural que ocorrem a degradao da poltica, no sentido clssico, e a corroso dos espaos pblicos enquanto campo de formao da conscincia de classe contingente e necessria, e, portanto, do em si e para si da classe social como sujeito histrico. Nos ltimos trinta anos, o neoliberalismo tornou-se a forma histrica dominante dos processos de dessubjetivao de classe no capitalismo global. No contexto histrico da economia, poltica e cultura neoliberal, buscou-se restringir e eliminar o desenvolvimento da conscincia de classe e da luta de classes. No habitat da conscincia social, a conscincia de classe uma espcie em extino. Nos locais de trabalho reestruturados, salienta-se a presena da individualizao das relaes de trabalho e a descoletivizao das relaes salariais. A crise do Direito do Trabalho, que se interverte em Direito Civil, um exemplo da individualizao e descoletivizao das relaes de trabalho na sociedade salarial. importante salientar que os processos de dessubjetivao de classe implicam desmontes de coletivos laborais como trao intrnseco das dinmicas reestruturativas do capital nas ltimas dcadas. O desmonte de coletivos de trabalho, constitudos por operrios e empregados vinculados ao ethos da solidariedade de classe, o desmonte da memria pblica de organizao e luta de classe. Os novos coletivos laborais, constitudos por jovens operrios e empregados, tendem a destilar o ethos do individualismo que impregna a sociedade civil neoliberal.40

O processo de dessubjetivao de classe produto da destruio do passado. Como observou Eric Hobsbawn, a destruio do passado ou melhor, dos mecanismos que vinculam nossa experincia pessoal das geraes passadas um dos fenmenos mais caractersticos e lgubres do final do sculo XX. Na verdade, a reestruturao capitalista, ocorrida no bojo da crise estrutural do capital, operou a destruio do passado, implodindo os locis de memria coletiva e diga-se de passagem: coletivos sociais constitudos no decorrer das lutas de classes do tempo passado. Prossegue Hobsbawn: Quase todos os jovens de hoje crescem numa espcie de presente contnuo, sem qualquer relao orgnica com o passado pblico da poca e que vivem. (HOBSBAWN, 1995). Por isso, a luta contra o capital a luta contra o esquecimento. No capitalismo global, o coletivo de trabalho reconstitudo segundo o esprito do toyotismo, cuja regulao salarial baseada na captura da subjetividade do homem-que-trabalha, com a constituio das equipes de trabalho, a adoo da remunerao flexvel e a perseguio de metas de trabalho. Ora, cada dispositivo organizacional da gesto toyotista possui um sentido de dessubjetivao das individualidades pessoais de classe. Na verdade, trata-se de uma operao contnua de quebra da subjetividade de classe, para que possa envolv-la nos requisitos do novo produtivismo e, deste modo, operar a reduo do trabalho vivo fora de trabalho como mercadoria. Por exemplo, a adoo da lean production ou empresa enxuta significa a obnubilizao do trabalhador social no plano da conscincia contingente de operrios e empregados por meio da reestruturao do trabalhador coletivo do capital. A fragmentao da classe dos trabalhadores assalariados, no sentido da fragilizao (ou flexibilizao) dos laos contratuais, opera um processo de dessolidarizao com impactos diruptivo na formao da conscincia de classe contingente e necessria. A lgica da reduo de custos, que atinge principalmente os recursos da fora de trabalho, , na verdade, uma forma de produo artificial da escassez que possui um significado simblico: constranger (e emular) a fora de trabalho. Com a adoo da remunerao flexvel ligada ao plano de metas, o trabalhador assalariado torna-se carrasco de si mesmo. A quebra da autoestima como pessoa humana e a administrao pelo medo estilhaam a personalidade autnoma do trabalho vivo, reconstruindo-se uma individualidade pessoal mais susceptvel s demandas sistmicas do capital. A corroso da personalidade pessoal leva construo de personalidades-simulacro, tipos de personalidades mais particulares, imersas no particularismo estranhado de mercado. Desmontam-se os nexos sociometablicos do sujeito coletivo de classe para que possam se reconstituir (ou reordenar) as novas formas de consentimento esprio nos locais de trabalho reestruturados. Por isso, a dessubjetivao de classe como alfa e mega do novo metabolismo social do trabalho nas empresas reestruturadas o pressuposto essencial dos no