tornar-se outro o topos canibal na liter
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OCCIDE E MANDUCA
INTRODUÇÃO
INTRODUÇÃO
Quem somos canibais?
Somos os que fomos desfeitos no que éramos, sem jamais chegar a ser o que formos ou quiséramos.
Não sabendo quem éramos quando demorávamos inocentes neles, inscientes de nós, menos sabemos quem seremos.
Darcy Ribeiro – Utopia Selvagem: saudades da inocência perdida
Quando Pedro Álvares Cabral chegou às terras que viriam a se chamar Brasil, encontrou
apenas as respostas que tinha vindo procurar; sendo, naquele primeiro momento, incapaz de
perceber, como ficou registrado nas palavras de Caminha, quão diferentes eram seus habitantes e
que não se tratava de uma ilha. Três anos depois, Américo Vespúcio fez uma viagem pela costa
da Ilha de Santa Cruz e escreveu a carta que ficou conhecida como Mundus Novus. Essa carta
fornecia uma clara noção da contigüidade daquelas terras e Vespúcio, além de dar um nome ao
novo mundo, configurou-o como a quarta parte da terra conhecida, adicionando-o àquelas já
conhecidas – África, Europa e Ásia.
Oswald de Andrade, em seu texto denominado “Antropófago”, comparou os escritos dos
dois missivistas – Caminha e Vespúcio – segundo o modernista:
(e)nquanto o cristão reacionário e pouco culto Pero Vaz de Caminha chamava D. Manoel puritanamente: – Senhor, a primeira coisa a fazer é salvar essa gente!, os documentos sensacionais do literato italiano Vespúcio, que se pode colocar cronologicamente como o primeiro humanista surgido na Europa, traziam a marca sensacional da descoberta do novo homem na face da terra. Por isso mesmo o relato de Caminha ficou sendo apenas pitoresca digressão sobre a terra achada, enquanto as cartas de Vespúcio se tornaram um documento essencial das transformações do mundo1.
Para Oswald, a carta de Vespúcio foi a “base das promessas de uma humanidade feliz,
sem peias, explorações ou recalques”, datando um novo ciclo da história que se abria para a
1 ANDRADE, O. Esté t i ca e Po l í t i ca , p.253
humanidade. Também, segundo Oswald de Andrade, “(f)oi tão importante a atuação do
intelectual, do geógrafo viajante, que o novo continente se chamou América e não Colômbia.”2
Principalmente, foi graças a Vespúcio que essa região ficou conhecida como uma terra de
antropófagos: “E um conheci eu, a quem falei, que se gabava de haver saboreado trezentos
corpos humanos”.3
Este trabalho nasce da pretenção de “reabilitar o primitivo”, como queria Oswald de
Andrade4, ao examinar a imagem do brasileiro como canibal na literatura brasileira através de
diferentes momentos de sua História literária. Com o passar do tempo, a antropofagia apresenta-
se como um motivo que se repete e fixou-se na tradição literária, podendo ser definida como um
topos que faz emergir no texto, a cada momento diferente, uma representação partícipe da
construção de uma das muitas faces da identidade brasileira.
A retomada da antropofagia como uma possibilidade para a abordagem do problema da
identidade revela-se muito importante por constituir um conceito cujo inacabável lhe é próprio,
como era interminável a guerra por vingança dos tupinambás. Desde o princípio da ocupação
européia no Novo Mundo, o ritual antropofágico foi utilizado para definir, qualificar, nomear e
classificar os habitantes das terras até então ignotas, mais especificamente, os do Caribe e os do
Brasil. Incorporado ao imaginário brasileiro, o canibalismo passa a ser um problema sempre
retomado e sempre polêmico, pois sua utilização como elemento de auto-identificação traz a
marca da barbárie que toda nação ocidental deseja desvincular de seu povo.
2 Ibid.p.253.3 In: RIBEIRO. A Fundação do Bras i l , p.104.4 ”A Reabilitação do Primitivo”, comunicação escrita para o Encontro dos Intelectuais, realizado no Rio de Janeiro em 1954, e enviada a Di Cavalcanti para ser lida. (IEL - Unicamp) In: ANDRADE, O op. cit:p.231/232.
Há algo de visceral no canibalismo que falou ao imaginário das culturas européias. O
choque entre as culturas do Novo Mundo e aquelas do velho, delineado pelo ritual antropofágico,
marcou o olhar do “civilizado” sobre o “bárbaro”, especialmente sobre o brasileiro, e o olhar
deste sobre si mesmo. Este trabalho busca apresentar um duplo movimento: o da construção da
imagem do brasileiro-canibal pelo olhar estrangeiro e o da elaboração do olhar do brasileiro
sobre si mesmo, a partir da apropriação daquele olhar e da própria antropofagia.
Do encontro do europeu com os povos do Novo Mundo, tomei o canibalismo, não como
um conceito abstrato, mas como uma encenação presente nos textos literários que descrevem atos
antropofágicos. A leitura dessas descrições forneceu-me clavis interpretandi para apreender o
imaginário elaborado no Brasil, a partir das imagens de seu “descobrimento”.
Há ainda uma outra bifurcação no cendero literário, formando dois eixos principais: o
do canibalismo por contingência e o do canibalismo ritual. Essas duas linhas voltam-se,
entrecruzam-se e compõem duas trajetórias, mas um único problema: quem somos? Ao refazer
essa pergunta-síntese, restringi as possibilidades para a resposta: “Quem somos canibais?” A
recorrência da antropofagia por toda a Literatura Brasileira tornou possível refazê-la e propiciou
um corpus consistente que deu visibilidade aos diferentes momentos do processo de
estabelecimento de uma cultura brasileira.
No elenco de textos escolhidos, nos quais se encontra os dois tipos diferentes de
canibalismo, percebe-se que essa diferenciação não poderia jamais ser ignorada pois determina
uma diversidade de posturas diante da própria produção da cultura brasileira. Pois se o
canibalismo ritual e o canibalismo por contingência apresentam a mesma devoração da carne
humana, enquanto o canibalismo ritual se mostra como um devir, um tornar-se outro a partir de
matrizes consideradas primitivas, ou seja, a ameríndia e a africana; o canibalismo por
contingência é o devir entendido a partir da repetição da origem, seja ela cultural – representada
na tradição européia –, ou corporal, advinda da reiteração de uma humanidade ideal inacessível,
posto que o corpo humano se prende em uma animalidade que se apresenta como um devir-
animal.
No canibalismo pontual, aqueles que estão em uma situação de extrema penúria, sem
outra alternativa alimentar, recorrem ao ato extremo de ingestão da carne humana. Isto é o que
chamo de canibalismo por contingência, que acontece numa situação de exceção para um ou
para um grupo de indivíduos. A “contingência” se contrapõe ao que é necessário, indicando o
que pode ocorrer ou não; assim, por vezes, exclui e outra vezes supõe a necessidade. A
devoração da carne humana nessas condições não é em si fruto de uma necessidade específica de
se comer tão somente carne humana, mas está submetida à precisão imperiosa de alimentar-se de
toda e qualquer substância digerível para sobreviver.
Já no canibalismo ritual, como o praticado por grupos ameríndios, predomina uma
diversidade de práticas para as quais seria difícil encontrar uma única explicação. Existem
aqueles grupos que praticam endo-canibalismo, ou seja, devoram os membros da própria família
ou grupo; e existem outros que praticam o exo-canibalismo, isto é, o inimigo, aquele que está
fora do grupo, é quem é devorado. A prática do endo-canibalismo pode consistir da ingestão das
cinzas dos familiares mortos, como ocorre entre os Yanomami. Mas não serão essas as únicas
nuanças. Há que se pensar em quais os inimigos que serão comidos, em quais situações, quem
participará dos festins, quem comerá tal parte. Cada elemento do ritual é próprio a cada grupo e,
uma vez que a prática canibal recobre quase a extensão do planeta, sua pesquisa aponta para uma
multiplicidade de aspectos que deverão ser considerados cuidadosamente pelo pesquisador.
Aqui, a leitura desse tipo de canibalismo será auxiliada pelo olhar antropológico,
apreendido de pesquisadores que vêm estudando o ritual nas populações indígenas da América do
Sul. Esse olhar antropologizado será nuançado pela perspectiva histórica que recoloca cada texto
em seu contexto particular. Em muitas das obras literárias, a visão do canibalismo não é de forma
alguma positiva, ele aparece como marca de barbárie dos costumes indígenas, como no poema
Caramuru, de Santa Rita Durão, que faz a apologia da cristianização dos povos ameríndios e do
abandono de seus costumes como parte essencial do processo de formação do Brasil.
A perspectiva que subsidia essa pesquisa – o canibalismo sul-americano – é,
felizmente, uma das práticas mais bem documentadas. A riqueza dos relatos daqueles que
conviveram com os povo de língua Tupi-Guaranis na costa do Brasil fornece um material
consistente que, desde sua sistematização por Alfred Métraux, no começo do século, até os dias
de hoje.
A variedade de autores, por exemplo, é um dos fatores de qualidade dos relatos, pois
permite visões diferenciadas do mesmo problema. Contei com os escritos do protestante Jean de
Léry, um autor erudito e interessado; do geógrafo católico André Thevet; do padre capuchinho
Claude Abbeville; do mercenário Hans Staden; do latinista Pero de Magalhães Gândavo; do
colono Gabriel Soares de Souza; do catequista Anchieta, dentre outros. Com interesses e motivos
diversos, eles produzem relatos que se completam e compõem um olhar exterior sobre o
canibalismo.
Os autores brasileiros ou da História da Literatura Brasileira, que dialogaram com os
relatos quinhentistas, se apropriaram de maneira diversa das imagens do canibalismo. Além das
divisões em canibalismo ritual e por contingência, que encontram-se em diferentes textos, existe
ainda a atitude antropofágica proposta por Oswald de Andrade, que preconiza um modelo de
produção da cultura brasileira. Na minha perspectiva, um e outro canibalismo não se separam,
pois, ao retomar os relatos quinhentistas, mesmo para desqualificar a cultura indígena, autores
como Santa Rita Durão estão devorando o texto informativo e digerindo-o produtivamente.
A abordagem teórica
A seleção inicial dos textos definiu o percurso que se pretendia traçar: seria um discernir
histórico da antropofagia através da literatura. Contudo, a leitura das obras redirecionou a feitura
do texto final, porque indicou outras possibilidades de trajetória, diferente da ordem cronológica
encetada, dentro da qual os dois tipos de canibalismo apareceriam, por vezes, simultaneamente.
Para além de um método que tomasse os textos apenas diacronicamente, foi necessário que se
lançasse mão de uma bibliografia interdisciplinar que desse conta das distinções e das
semelhanças existentes entre os dois tipos de canibalismos. Leituras filológicas, antropológicas,
filosóficas e históricas vieram corroborar as conclusões advindas da crítica literária e
aprofundaram o trabalho comparatista empreendido.
Ler a cultura brasileira à luz da antropofagia é expor os momentos de emergência dos
conflitos advindos do contato entre as culturas formadoras, do qual se serviram os textos
literários, as artes plásticas e o cinema. Mais do que oposições dicotômicas do tipo
cultura/natureza, civilizado/selvagem, tecnologia/sobrenatureza, a dialética da identidade
brasileira requer a multiplicidade, para o que, contribuíram para essa reflexão a Filologia, a
Filosofia, a Antropologia e a própria História.
A eleição dos textos literários se pautou exclusivamente pela presença da encenação da
antropofagia ou, em alguns casos, por uma ausência/presença, como na obra de José de Alencar.
A partir desse ponto, a organização das obras foi orientada pelos problemas suscitados pela
antropofagia; assim, questões como a prática da antropofagia no mundo ameríndio, sua
apropriação encetada pela crítica literária, seu significado filológico e seu desdobramento nas
produções literárias brasileiras vão servir de roteiros para a abordagem dos textos literários. Esses
pontos de partida conferirão ao trabalho uma estrutura móbile, na qual cada linha poderia agregar
diferentes textos com referências ao canibalismo. A escolha de quais textos serviram para quais
problemas foi discernida pela intensidade com que a obra desenvolveu a questão e foi limitada
pela dificuldade causada pela presença de muitas simultaneidades no texto escrito. Contudo, cada
parte apresenta uma relação de dependência das demais. A estrutura do texto pode ser pensada
como fios que amarram um objeto, permitindo que ele seja tomado em sua individualidade, mas
também, será como um móbile mais complexo, pois os fios interligam todas as diferentes partes.
A pesquisa filológica dos vocábulos canibal e antropófago propicia a visão do
surgimento e do enraizamento da associação entre canibalismo/antropofagia e os americanos.
Percebe-se que, no nosso vernáculo, essas palavras aparecem com definições limitadas à noção
de barbárie e devoração da carne humana, enquanto que em outras línguas, a associação entre
canibais e americanos é freqüente.
A antropofagia, na perspectiva da Filosofia, pode ser apreendida através da prospecção
da questão na Antigüidade grega e através da leitura de autores contemporâneos, como Gilles
Deleuze e Félix Guattari, que vasculham a ação do devir na projeção do humano. Subjacente à
leitura do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, para quem o devir é implícito ao canibalismo
das culturas ameríndias, situa-se a abordagem do tema na literatura brasileira, que é apresentada
neste trabalho e que reencontra essa possibilidade de leitura em muitos dos textos, especialmente,
nos mais contemporâneos.
A partir da Antropologia, são abordados os estudos sobre o canibalismo nos
grupos étnicos que o praticavam, de acordo com os textos fundamentais de etnografia que tratam
da antropofagia dos índios tupinambá: A Religião dos Tupinambás, de Alfred Métraux; A
Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá, de Florestan Fernandes; e Araweté: os
Deuses Canibais, de Eduardo Viveiros de Castro. Reencontrei esse discurso em textos ficcionais,
como na novela de Guimarães Rosa “Meu tio o Iauaretê” e nos romances indianistas de Alencar;
uma vez que os textos literários que trazem referências ao canibalismo podem ser tomados como
releituras da cosmologia ameríndia. A abordagem da Antropologia contemporânea é necessária
para demonstrar que a noção que divide bárbaro/civilizado é fruto do mais profundo preconceito,
enraizado no cientificismo do século XIX, nascido na sacralização da razão ocidental de
Descartes a Hegel. Quando o Iluminismo cria o “bom selvagem”, sua motivação está na ênfase
da cultura ocidental, no seu aprimoramento, não na positivação da diferença.
Além disso, a informação antropológica permitiu desfazer mitos recorrentes na tradição
da crítica historiográfica brasileira, tais como o de que os índios criados por José de Alencar não
passam de “cavaleiros medievais”. Acredito que a ignorância do perfil cultural do ameríndio
propiciou tal equívoco, assim como o da idéia de que se devoravam somente os guerreiros
valentes, a fim de apropriar-se de suas forças.
A apropriação da atitude antropofágica inaugurada por Oswald de Andrade pela
Literatura Comparada apresenta-se como uma proposição privilegiada pois incorpora em suas
questões o problema da influência sem subterfúgios. A atitude antropofágica, que marcou a
produção literária brasileira, será contextualizada para lermos o primeiro romance antropofágico,
Macunaíma, de Mário de Andrade e farei uma leitura do conto “Nau Catrineta” de Rubem
Fonseca tendo como referência a concepção de atitude antropofágica de Lauro B. Mendes do
romance de Oswald de Andrade, Serafim Ponte Grande.
Canibalismo, crítica literária e identidade nacional
Três trabalhos de crítica literária que vão tomar o constante reaparecimento de
referências ao canibalismo na literatura brasileira como índice de identidade: o livro de Zilá
Bernd, Literatura e Identidade Nacional (1992) a tese de doutoramento de Eneida Leal Cunha,
Estampas do Imaginário: literatura, cultura, história e identidade (1992), e o seu artigo “A
Antropofagia, antes e depois de Oswald”(1995) são fundamentais na orientação de todo o meu
percurso. Em seu livro, Zilá Bernd trata da identidade como um processo em permanente
movimento de construção/desconstrução, no qual espaços dialógicos são criados pela literatura e
integram a trama discursiva sem paralisá-la. A partir dos textos fundadores dos cronistas, Bernd
vai tramando um texto que aponta os processos de inclusão/exclusão das alteridades na literatura
brasileira. A representação de índios e negros compõe essa trajetória e lhe dá sustentação.
O artigo de Eneida Leal Cunha desenvolve uma aproximação entre o Caramuru, de
Santa Rita Durão e Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, tendo em vista “o lugar de
Oswald entre outras emergências da antropofagia”. A autora apresenta um quadro “no qual
saltem aos olhos o diálogo e as divergências entre esses três e diversos antropófagos, que
transformaram a antropofagia em traço de identidade”5que possibilita pensar Oswald de Andrade
a partir do problema da construção do nacional.
Na tese, Eneida Leal Cunha propõe a retomada dos textos coloniais como um
“contraponto” para o estudo da identidade cultural, buscando traçar a “força das significações
imaginárias instituinte e a assimilação diferencial e corretiva do imaginário colonizador através
5 CUNHA, Ibid.: p49
das repetições da epopéia camoniana operadas pelos autores da colônia”, como também, examina
a obra de João Ubaldo Ribeiro, Viva o povo brasileiro, tomando nela “as emergências do
imaginário instituído”6.
Na poesia atribuída a Gregório de Matos, os versos que falam de canibalismo expressam
uma rejeição ao outro, seja ele índio ou negro, e uma repreensão àqueles que fogem ao rígido
decoro barroco; nos romances indianistas, José de Alencar, prefere dissimular o canibalismo,
tentando, por sua vez, incluir o índio na identidade brasileira. Já em Guimarães Rosa e em João
Ubaldo Ribeiro, encontram-se personagens mestiços de branco, índio e negro que, envolvidos em
atos de canibalismo, celebram uma outra identidade, mais ampla que aquela rejeitada por
Gregório de Matos e programada por Alencar. Nesses e em outros autores distingui um
canibalismo a serviço de um devir-brasileiro, irrealizável, posto que nossa identidade está em
constante movimento de construção/desconstrução, inclusão/exclusão e ainda em
formação/deformação.
Os textos fundadores
Após delinear a perspectiva teórica sobre a qual este trabalho se projeta, delimitarei os
textos e imagens, que expõem o ponto de vista europeu, produzidos nos primórdios da
colonização e fundamentais para a elaboração da imagem do canibalismo como algo próprio dos
brasis e, mais tarde, dos brasileiros. Também aqui são trabalhados os textos da tradição oral que
se fundiram ao imaginário europeu e se manifestam na cultura popular e erudita. Textos e
imagens serão dispostos em quatro grupos: primeiro, o dos relatos de viagem, principal fonte de
apropriação do canibalismo pelos autores da literatura brasileira; segundo, o das ilustrações
6 CUNHA, Estampas do Imaginário (resumo)
presentes nas diferentes edições do relato de Hans Staden; terceiro, o das narrativas míticas
indígenas e da tradição oral; e, quarto, o do relato factual da história trágico-marítima.
Para compor o primeiro grupo, retomei o momento primevo da produção discursiva
colonial, especificamente o impacto do encontro do europeu com o Novo Mundo, registrado nos
relatos dos viajantes. Os relatos de viagem privilegiaram a descrição dos rituais de canibalismo
dos habitantes do Novo Mundo para os habitantes do Velho, definindo-os a partir dele.
A iconografia que acomapanha esses textos oferece um desdobramento de significados
para os relatos de viagem, aos quais servia de ilustração. As imagens pictóricas da primeira
edição do livro de Hans Staden e, posteriormente, aquelas feitas por Theodor De Bry constituem
uma importante referência para a compreensão da imagem do canibal, pois foi através das
imagens largamente difundidas que os europeus expressaram sua visão do outro com maior
liberdade7. Essas ilustrações tornaram-se objeto deste estudo por fornecerem um significado
suplementar ao texto. Destacarei a desigualdade que existe entre elas, para, em seguida,
percebermos a apropriação dessas imagens pela literatura e outras artes no momento
contemporâneo. A presença freqüente de representações iconográficas da antropofagia vai
requerer uma reflexão mais detida sobre o encontro da literatura com as artes plásticas e também
com o cinema. Partirei de uma discussão sobre o diálogo entre a literatura e as artes plásticas,
para, em outros momentos deste trabalho, produzir um paralelo entre literatura e iconografia,
dando uma maior visibilidade para o problema da antropofagia e sua interpenetração na cultura
brasileira.
7 Cf. RAMINELLI. Imagens da Colonização (1996), texto em que o autor analisa a representação do índio na iconografia do período colonial, demonstrando a sua transformação de habitante do paraíso terreal em ser demoníaco.
A representação do canibalismo nas linguagens visuais merecerá um trabalho mais
detido, pois elas desenvolvem mais uma face do mesmo e sempre problema – a construção da
identidade canibal do brasileiro – o qual, posso afiançar, não é uma face menos importante. A
pintura de Tarsila do Amaral forneceu o gesto inicial para o Movimento Antropófago; o filme
Como era gostoso meu francês, de Nelson Pereira dos Santos, é um momento importante do
cinema nacional, pois encena a história da origem bárbara em um período de apologia do
desenvolvimento, no chamado “Milagre Brasileiro”; a obra do quase desconhecido Nilson
Pimenta, artista plástico mato-grossense, traz o canibalismo presente na cultura popular e produz
um profícuo diálogo com a cultura erudita expressa na obra de Guimarães Rosa.
A tradição oral dos contos populares e dos mitos indígenas vão propulsar uma vertente
da construção da representação da antropofagia. Nela, o devorador erudito volta-se para a cultura
ágrafa, produzindo um gesto endocanibal, pois o devorado é a própria vertente popular da cultura
brasileira, cuja elaboração simbólica é mais sofisticada e menos prestigiada pela cultura letrada.
A onça, o mais poderoso animal da fauna brasileira, adquire um caráter totêmico no texto
literário, respondendo ao apelo de Oswald de Andrade para que transformemos o “tabu em
totem”. Com ela, a animalidade repudiada passa a ocupar o centro do discurso em textos
fundamentais da literatura roseana.
A devoração na literatura
Ao abordar o século XIX, especificamente, José de Alencar e Machado de Assis
procurei retratar a antropofagia no momento da afirmação da literatura brasileira definida como
tal. O pensamento totalizador, que contaminou o século XIX, retirou o canibalismo de seu tempo
mítico, no qual o ritual encena passado-presente-futuro, simultaneamente, e produziu um canibal
“historicizado”, ou seja, situado no passado da região cuja nacionalidade estava se formando,
superado pelo presente do encontro com as povos europeus e sem lugar no futuro da nação, posto
que sua identidade indígena desapareceria pelo branqueamento empreendido pelo contato com a
cultura européia. A leitura do tema na produção canônica, propiciada por autores como José de
Alencar e Machado de Assis, permitirá vislumbrar a visão do imaginário institucional sobre as
origens, pois os textos desses autores são referência para a construção de um discurso sobre o
nacional. Essa leitura contemplará um olhar sobre a obra de Santa Rita Durão, Caramuru,
tomando-a, como fizera Machado de Assis, como um texto que apontava os novos rumos para a
literatura brasileira oitocentista. Proponho uma leitura dos romances indianistas de José de
Alencar, tendo em vista as leituras antropológicas, colocando em discussão a influência de “mão
única” que a crítica lhe tem imputado. Vamos deter-nos, principalmente, em Ubirajara, por ser
esse o romance em que Alencar mais se debruçou sobre a cultura ameríndia e que, portanto, mais
livremente tratou da antropofagia.
Da obra de Machado de Assis, recortei o poema “Potira”, em que é descrito todo um
ritual antropofágico e que nos parece paradigmático para compreender o horizonte histórico
sobre o qual trabalhava o escritor.
Contraposto ao texto do século XIX, apresentarei uma posição desconstrutora do
discurso consensual e que pode ser lida a partir de novos paradigmas propostos pela
contemporaneidade. A abordagem limita-se a três imagens da antropofagia na literatura brasileira
contemporânea. A escolha desse textos deveu-se à possibilidade que eles apresentam de enfocar
distintas perspectivas da antropofagia e da identidade brasileira, fugindo do que Moacir Scliar
chamou de “fórmula salada tropical, cujos ingredientes continham futebol, mulatas, café – às
vezes com algum tempero político de denúncia”8. Para Scliar “(a)inda que literariamente essa
8 Entrevista à Ilustrada, Folha de S.Paulo. terça-feira, 2 de junho de 1998.
fórmula tenha dado grandes obras, ela fatalmente se esgotaria, porque o Brasil tornou-se
complexo demais para a ótica simplificadora (às vezes até preconceituosa)”9. Buscando não
escamotear essa complexidade, selecionei três textos que trazem diferentes manifestações do
canibalismo: o da novela “Meu tio Iauaretê”, de João Guimarães Rosa; o do romance Viva o
Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro; e o do também romance A céu aberto, de João Gilberto
Noll. Esses textos propiciam um panorama contemporâneo da antropofagia, mas, principalmente,
do devir brasileiro, expresso pela literatura. Nessa parte, as utopias desenvolvimentistas do século
dezenove desaparecem e, com elas, o futuro. O “aqui e agora” expressa-se como um desejo
constante de tornar-se outro e o movimento de ser o mesmo.
No começo do século XX, a questão da produção de uma identidade nacional
continuou no centro das preocupações em torno da consolidação do Estado brasileiro, uma vez
que era necessário produzir uma noção de totalidade que contivesse e mascarasse a diversidade
intensificada como decorrência das correntes migratórias desde o final do século anterior. As
ideologias que se firmam em torno da concepção de que “todos são iguais perante a lei”
corroboram para que se gere imaginariamente uma sociedade ideal, na qual são minimizadas as
diferenças. Tal visão de mundo estava ainda em consonância com a teoria clássica de Hegel, na
qual a relação eu/outro se expressa como idêntico/diferente e cuja diversidade empírica seria
superada pela distância que definia o próximo como necessário e o distante como diverso e
desigual. Contudo, após a Segunda Guerra Mundial, começou-se a pensar, em decorrência das
idéias advindas dos movimentos de vanguarda estética, da filosofia de Nietszche e da psicanálise
de Freud, entre outros, a partir da diversidade e do conflito. Nas reflexões sobre a identidade,
9 Scliar, não será abordado neste trabalho, mas convém ressaltar que ele também optou por tratar dessa complexidade através da antropofagia que está presente em seu livro A Majestade do Xingu.
começou-se a substituir o potencial da semelhança pelo da diferença, pensado através da
categoria do outro. O distante, o diverso e desigual, passa a ter sua perspectiva reconhecida em
um movimento que fortalece a expressão dos grupos antes chamados de “minorias”. O Estado
Nacional já estava consolidado e podia conviver com a diferença.
A Antropologia, fruto da má-cosnciência colonizadora que vinha atuando, desde o
século XIX, no sentido de gerar um conhecimento sobre os povos excêntricos, segundo
Guillermo Raul Rubem, produziu uma teoria para a identidade que podia ser apropriada por
grupos minoritários uma vez que esses buscavam um reconhecimento legítimo da diferença. Em
um primeiro momento da formulação de uma teoria para a identidade, encontra-se a noção
estruturalista que afirmava existirem nas sociedades humanas elementos estáveis, “universais
irredutíveis”, essenciais para os etnólogos já que permitiriam compreender a sociedade,
classificá-la e organizá-la em oposição a outras sociedades. A passagem dessa teoria para o
âmbito dos movimentos sociais das minorias redundou na concepção de que há algo que
permanece o Mesmo apesar da maioria dos traços culturais terem sido destruídos e quando, até
mesmo a língua, foi esquecida. Desse modo, sempre ficaria alguma coisa da cultura originária,
seja ela material ou espiritual.
Essas reflexões adquiriram cada vez mais importância a partir do final da década de
sessenta do nosso século, frente à relativa perda de confiança nas organizações políticas ligadas
aos pensamentos totalizadores ou internacionalistas. A descrença em partidos políticos, que
privilegiam reivindicações de natureza estritamente econômica, redundou na emergência de
outras estruturas reivindicativas como a das ONG’s (organizações não governamentais), que se
fundam em princípios diferentes, como mais qualidade de vida, respeito às diversidades étnicas,
movimentos de gênero, entre outros. Além desse cenário, há o desenvolvimento e a
reconceituação das idéias relacionadas com os direitos humanos, ao mesmo tempo em que surge
uma nova reivindicação para que se viabilizem práticas culturais, lingüísticas e sociais
anteriormente classificadas de forma pejorativa como primitivas, atrasadas ou, mesmo, contrárias
a uma certa normalidade de valores. Mas, foi principalmente o crescente descrédito “científico
das teorias racistas, assim como o debate e o questionamento das tradições etnocêntricas que
classificavam as sociedades em gradientes, das mais primitivas às mais civilizadas”, como afirma
Ruben, que propiciaram a busca de novos paradigmas, empreendida nas décadas de 80 e 90.
Oposições como centro/periferia e selvagem/civilizado começam a ser desmanteladas em seu
princípio organizador que hierarquiza uma categoria diante da outra.
A falência de um discurso único que desse conta da totalidade da sociedade tornou
cada vez mais patente a necessidade de se pensar a identidade sob uma exterioridade
aparentemente fragmentada, mas, principalmente, pensar a partir do movimento, da
transformação e não da permanência e da estabilidade.
A antropofagia, signo rejeitado e deslizante, propicia a reflexão sobre essa identidade
em conflito na cultura brasileira. Não é mais possível encontrarmos textos que encenam uma
visão de mundo que se quer totalizadora e que pensavam produzir um devir histórico único para
a nação brasileira. O que se percebe no século XX é uma multiplicidade de “devires” para o
brasileiro, devir-negro, devir-homossexual, devir-animal, devir-civilizado, identidades
escorregadias que indicam um constante “tornar-se outro”, diferente e igual a nós mesmos.
A literatura brasileira contemporânea produziu muitos textos com referências à
antropofagia. Alguns serão trabalhados aqui, outros serão apenas apontados. A seleção final de
três textos, que se desdobram em um quarto, com os diferentes tipos canibalismos, pretende não
escamotear a complexidade que o tema adquiriu na contemporaneidade sob novos paradigmas
que não aquele do discurso histórico. São eles: a novela “Meu tio o Iauaretê”, de João Guimarães
Rosa; o romance Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro; o também romance A céu
aberto, de João Gilberto Noll e as notícias de jornal sobre o “canibal de Camaçari” (BA).
O recorte estabelecido para elencar os textos a serem trabalhados é decorrente da
possibilidade dessas obras de sintetizarem as questões apresentadas pela antropofagia para a
cultura brasileira e, mais especificamente, para o insolúvel dessas questões, já que elas apontam
para o brasileiro como um ser em devir; o tornar-se outro deslizante das identidades que se
articulam e se diluem na contemporanidade.
O primeiro texto, a novela “Meu tio o Iauaretê” de Guimarães Rosa, oferece uma
visão da cosmologia ameríndia apropriada pelo discurso erudito da cultura hegemônica. Mas não
é só a perspectiva indígena que encontramos na novela. O personagem narrador tem ele próprio
uma identidade escorregadia que passa pela indígena, mesclada com a branca e, por fim, afirma-
se negra. Todo o seu movimento o leva a um devir-onça, um devir-animal, inconcretizável.
Guimarães Rosa encena essa animalidade dando-lhe outra perspectiva, invertendo o atravessar
proposto pelo outro escritor maior, Machado de Assis cuja perspectiva caminhava em direção a
uma ordem civilizada, a qual se opõe a uma positivação dos brasis. Guimarães Rosa, em textos
como “Espelho” e “Meu tio o Iauaretê”, acopla à humanidade uma animalidade que lhe é
subjacente e que não a inferioriza. Mais do que um libelo totalizador sobre a nacionalidade, o
escritor mineiro produz uma reflexão sobre a humanidade mesma, sem perder de vista a
perspectiva ameríndia e a multiplicidade constitutiva da identidade brasileira.
Um capítulo será centrado em “Meu tio o Iauaretê”, ele é uma tentativa de apresentar
a cosmologia ameríndia, tal como descrita pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, como
uma possibilidade de apreensão do “devir-animal” representado na novela “Meu tio o Iauaretê”,
de Guimarães Rosa. Além disso, busquei especular como o canibalismo, presente na novela,
participa desse devir, considerando-o como um “processo de predação ontológica” próprio das
cosmologias tupis10 e que se reproduz na literatura roseana, também como uma figuração da
identidade brasileira centrada na animalidade.
O segundo texto, Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, segue pela
vertente da releitura da história das versões da História Oficial pela literatura. No caso, não
deparamos no romance com uma anti-história, mas uma outra história que, diferente da oficial,
aborda também, e preferencialmente, a cultura negra, produzindo um outro olhar sobre os
mesmos fatos que haviam sido apagados. Através da “genealogia” de uma alminha reencarnada
diversas vezes, que Eneida Leal Cunha compara ao Volksgeist hegeliano11, João Ubaldo Ribeiro
vai reconstruindo/desconstruindo uma história para o povo brasileiro. Mesmo negado pelo autor,
a extensão da obra, um calhamaço de 673 páginas, assim como a amplitude temporal que ela
abrange, pois vai do segundo século da colonização, 1647, até 25 de maio de 1972, denunciam a
ambição do projeto: gerar uma imagem ampla da construção da brasilidade. Temos no romance
um devir-brasileiro calcado preferencialmente na cultura negra e, assim, temos um devir-negro
do brasileiro.
Como identidade fundadora, o canibalismo não poderia estar ausente do texto;
contudo, ele não comparece como uma encenação ingênua das origens, mas acirrando a carga
crítica do “mau selvagem” oswaldiano. O caboco Capiroba de Viva o Povo Brasileiro parece ter
nascido do “Manifesto Antropófago”, no qual líamos: “Nunca fomos catequizados. Vivemos
1 0 Cf. VIVEIROS DE CASTRO, Araweté: os deuses e VILAÇA, Comendo como gente .
1 1 Cf. CUNHA, Estampas do Imaginário, p.184.
através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará”.
Capiroba age alucinadamente: toma as palavras dos padres inversamente e os devora.
O topos do canibalismo é central para compreender o romance de João Ubaldo
Ribeiro12, assim como, o romance é determinante para compreendermos a constituição do topos
canibal na literatura brasileira contemporânea, por isso, mesmo que o tema, mesmo já tendo sido
tão largamente explorado, receberá aqui mais uma leitura.
A metaficção historiográfica é uma vertente pródiga da produção contemporânea.
Outros romances que podem ser taxionomizados nessa linha trazem referências à antropofagia,
como o Terra Papagallis de José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta ou A Majestade do
Xingu, de Moacir Scliar.
Os heróis de João Ubaldo Ribeiro são advindos do povo negro anônimo, que, através
de atos de resistência, luta pelo reconhecimento da sua dignidade e vai seguindo sendo o próprio
brasileiro mais uma vez em devir. Esse é um texto que emerge contra a correnteza do imaginário
institucionalizado da “impossibilidade de tolerar o Outro na sua diversidade”13 e inscreve uma
outra possibilidade de se pensar o brasileiro expressa no próprio subtítulo que aparece na capa:
“A saga de um povo em busca de sua afirmação”.
As considerações, apresentadas neste trabalho sobre Viva o povo brasileiro, foram
traçadas a partir da sedimentação na cultura brasileira dos conceitos de direito natural e guerra
justa, desenvolvidos no período colonial e retomados como discurso ideológico que sustenta a
opressão. Buscarei também mostrar como João Ubaldo Ribeiro inverte a misogenia européia,
transformando a figura feminina da bruxa em matriarca fundadora da resistência das culturas 1 2 Como podemos ver nas teses de Maria Nazareth Soares Fonseca e Eneida Leal Cunha (ambas de 1993); na dissertação de Osmar Moreira dos Santos (1996), e em textos como os de Zilá Bern e Simon Harel, (de 1996).
1 3 CUNHA, Estampas do Imaginário, p.212
marginalizadas e fonte de luta e saber, na mais estreita filiação à proposição de Oswald de
Andrade que pregava o retomada do “matriarcado de Pindorama” como expressão
revolucionária.
Abordarei o romance de João Gilberto Noll, A céu aberto (1996), a partir da
perspectiva da crise da produção de uma identidade nacional inclusiva, ou seja, que abarque
todas as diversidade de gênero, de etnia, de estética. O homem à deriva de Noll aporta na
impossibilidade de uma referência estável, única e realmente hegemônica. Sua obra constrói-se
na impossibilidade de se distinguir “um(a)” homem/mulher, de “um(a)” brasileiro(a)
paradigmáticos que sirvam como espectro modelar para todos os brasileiros, a própria identidade
das personagens sofrem mutações constantes dentro de A céu aberto. Em outro livro, no romance
Bandoleiros, Noll fala de nacionalidades substituídas por “migrações” dentro de um livro de
atravessamentos.–O fato de ser brasileira ou americana já não a comovia. Ter nascido aqui ou ali
um mero acidente: “O futuro viveria das migrações.”14
O texto de Noll privilegia a violência da instabilidade do ser alegorizada em uma
guerra indefinida e nos leva à violência real mas midiatizada das sociedades contemporâneas, que
será trabalhada no último capítulo; a violência cotidiana e “romanceada” pelos meios de
comunicação é transformada em um texto. O fato canibal praticado por um homem sem
identidade, que possui apenas uma alcunha, sintetiza a antropofagia da cultura brasileira: sempre
real, pois aponta para a violência das relações inter-étnicas, sempre alegórica, pois não se come
mais carne humana.
Pensar a antropofagia a partir do instável, do movente, de migrações, e não sobre,
especificamente, nacionalidades, torna-se uma necessidade. Temos, portanto, nessas obras,
quatro diferentes abordagens que buscam demonstrar a multiplicidade da cultura brasileira,
1 4 NOLL, Bandoleiros, p.45 (grifo nosso)
reapresentando a famosa idéia de mosaico: partes contrastantes que compõem uma face para o
todo, mas que, ao manter a sua individualidade, explicitam a impossibilidade de uma totalidade
harmônica. Quero, através destes capítulos finais, “amarrar” as muitas linhas da antropofagia,
para além de sua recorrência explícita/implícita/insinuada em todos os textos, mas também como
visões sobre o fato antropofágico na perspectiva do devir, do tornar-se o outro no mesmo da
cultura brasileira.
A dificuldade dos temas moventes, tantas vezes apontada pelos pensadores
contemporâneos, deixa sua marca nessa tentativa de se distinguir o brasileiro como canibal. O
“tornar-se outro” e “ser o mesmo” são identidades forjadas na complexidade e no instável, que
impedem a possibilidade de uso do verbo “ser” e exige o “tornar-se”. Esta trabalho apresenta-se,
portanto, como uma tentativa de captar e discutir uma das faces do inacabável da identidade
brasileira. Occide e manduca, diria o avô antigo da literatura brasileira: Padre Antônio Vieira.