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GOVERNO DO PARANÁ SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO DO PARANÁ
DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO BÁSICA
TEXTOS DE FUNDAMENTAÇÃO BIOLOGIA
1. OLIVEIRA, O. B. Em defesa da leitura de textos históricos na formação de professores de ciências. Pro-Posições, Campinas, v. 22, n. 1 (64), p. 71-82, jan./abr. 2011. Disponível em: www.scielo.br/pdf/pp/v22n1/07.pdf. Acesso em: 26 out/2012.
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Em defesa da leitura de textos históricos na formação deprofessores de ciências
Odisséa Boaventura de Oliveira*
Resumo: Analisa-se neste artigo o trabalho com um texto que relata o histórico da construçãodo conceito “fotossíntese”, lido por alunos do curso de Ciências Biológicas, em que se solicitouo destaque daquilo que julgaram mais interessante no texto. Tomando a leitura como práticadiscursiva e mediante as respostas fornecidas, foi possível observar manifestações em relação aodesenvolvimento da ciência, no que se refere ao tempo para sua construção, à interação entre osconhecimentos, à relação com a tecnologia, à simplicidade do pensamento.
Palavras-chave: fotossíntese; prática discursiva; construção científica
In defence of historical texts reading in science teacher education
Abstract: It is analyzed in this article the work with a text which describes the construction ofthe concept “photosynthesis”, read by students from the Biological Sciences course, who wererequested to highlight what they deemed more interesting in the text. The reading is taken asa discursive practice and through the answers given by the students it was possible to observeevents in relation to the development of science, in what regards to the time needed for itsconstruction, the interaction of different knowledges, the relationship with technology, thesimplicity of thought.
Key words: photosynthesis; discursive practice; scientific construction.
Partindo do princípio descrito por Foucault (2004) de que as práticas soci-ais são produzidas discursivamente e, ao mesmo tempo, são produtoras dediscursos e saberes, e que os discursos formam os objetos de que falam, propo-nho a ciência e a leitura como práticas discursivas. Para este autor, a práticadiscursiva vincula-se a um conjunto de regras anônimas determinadas no tem-po e no espaço, definidas em determinada época para determinada área (social,linguística, econômica, etc.). São regras sociais construídas nas instituições (es-cola, hospital, prisão, família, etc.) que expressam os procedimentos teóricosaos quais o sujeito obedece, quando participa do discurso.
* Professora do Programa de Pós–Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná(UFPR), Brasil. [email protected]
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Levar em conta a ciência como prática discursiva significa considerá-la comoprodutora de conhecimentos, imersa em regras que definem seu discurso.Coracini (2003) complementa essa ideia, apontando que há um discurso pú-blico de que a ciência desloca o conhecimento produzido para fora do sujeito,que a realiza visando garantir objetividade e, consequentemente, confiabilidade.A ausência do sujeito garantiria a presença do objeto, cuja construção se dásobre “modelos racionais universalmente aplicáveis, funcionando segundo umcerto número de esquemas, modelos, valorização e códigos que se acredita in-dependentes de qualquer subjetividade” (idem, p. 320). Esse uso da razão tema expectativa de mostrar que o objeto não sofre interferência de crenças, vonta-des, interesses pessoais ou institucionais.
De outra forma, buscando expor o sujeito que produz ciência é que se deua escolha do texto histórico, objeto deste estudo. Neste são destacados trechosdos diários redigidos pelos próprios cientistas envolvidos com a explicação dafotossíntese.
Na mesma direção, a leitura, como prática social, mobiliza a memóriadiscursiva do sujeito-leitor, isto é, o interdiscurso, conduzindo-o a inscrever-senuma rede de interpretações e fazendo emergir diferentes sentidos. Equivale aconsiderá-la como uma atividade produzida sob determinadas condições —por exemplo, os tipos de discurso que se apresentam no texto, a relevânciaatribuída pelo leitor a certos fatores em detrimento de outros, a história deleitura do leitor, a harmonia ou a incompatibilidade ideológica entre leitor eautor do texto.
Coracini (1991) trata do discurso científico e do uso de textos científicosnos cursos de graduação, destacando a oposição subjetividade versus objetivida-de na ciência. A autora adota a perspectiva de que o texto não pode ser vistocomo objeto autônomo, como se tivesse uma realidade própria, isolada dosujeito leitor; mas, ao contrário, concebe-o como incapaz de reter sentido forado sujeito. Assim, em seu projeto de leitura, defende que o aluno tenha algo afazer ou a dizer relativamente àquilo que lê, para que produza sentido. A abor-dagem do texto científico em sala de aula deve criar condições para que o alunoperceba a subjetividade na ciência, pois ler esse tipo de texto pressupõe cons-truir sentido a partir de um contexto sociopolítico-ideológico.
Assim, o objetivo deste estudo é observar a produção de sentidos a partir daleitura de um texto histórico sobre o fenômeno “fotossíntese” por alunos docurso de ciências biológicas.
Quadro teórico-metodológico
Busco em Canguilhem algumas noções para apoiar-me na interpretação dasrespostas produzidas pelos estudantes-leitores às questões propostas. Para ele,
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“o objeto na história das ciências nada tem de comum com o objeto da ciência.O objeto científico é constituído pelo discurso metódico [...] O objeto dodiscurso histórico é, com efeito, a historicidade do discurso científico”(Canguilhem, 1994, p. 17, tradução minha).
Tendo em vista esta definição do objeto discursivo da ciência e da história daciência, é que optei por abordar um texto que retrata o discurso científico. ParaCanguilhem (1994), a história da ciência deve ser a história conceitual; no en-tanto, ele não restringe a ciência ao conceito, mas sua posição é a de que não sepode compreender a caminhada da ciência, se não se privilegiar a análise daformação do conceito. Este é considerado a expressão da norma da verdade dodiscurso científico, e privilegiá-lo significa valorizar a ciência como processo.
Para este filósofo, toda teoria científica é constituída por um feixe de concei-tos, ou seja, um sistema conceitual, segundo o qual apresenta respostas e suge-re soluções. Por conta disso ela é produto e não processo, assinala as respostasem detrimento dos problemas. Diferentemente, privilegiar o conceito implicadestacar a existência de uma questão, isto é, da própria formulação de umproblema. Machado (1981) destaca que Canguilhem procurou, em seus estu-dos, apontar a influência que a gênese de um conceito científico sofre, a partirde diferentes esferas teóricas. Por exemplo, ele relacionou o conceito de “célula”às várias teorias (biológica, física, social) ou o conceito de “normal” aos camposda fisiologia, da patologia, da sociologia e da clínica, pois um conceito nãoconhece fronteiras epistemológicas.
Canguilhem (1994) vê a história epistemológica como história conceitualque se realiza pela relação de um conceito com outros de uma mesma teoria, damesma ciência ou de ciências diferentes, inclusive com as práticas sociais epolíticas.
Segundo Machado (1981), Canguilhem não se interessa em analisar omomento em que um conceito começa a fazer parte de uma teoria científica,mas preocupa-se em estabelecer as filiações descontínuas que constituem ahistória do conceito, desde a sua produção teórica (fenomenológica) até suaexperimentação (fenomenotécnica), passando pelas etapas mais comuns ou pré-científicas, até chegar às mais científicas.
Outro aspecto destacado por Canguilhem (1994) é o caráter normativoque deve possuir a história das ciências, ou seja, ela tem por principal objetivojulgar o passado da ciência a partir da atualidade científica, distinguindo o erroe a verdade, o inerte e o ativo, o nocivo e o fecundo. No entanto, a históriarecorrente deve analisar o passado enquanto passado, respeitando sua lógicaconceitual e observando o que havia de positivo em suas formulações.
Apresentado esse quadro, informo que o texto indicado para leitura possuias seguintes características: retrata o histórico do conceito de fotossíntese; traz
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citações dos diários dos cientistas; destaca seus experimentos, apresentandoimagens; faz uma síntese das ideias, desde Aristóteles. Evidencia fatos históri-cos em que ocorreram mudanças de pensamento, erros conceituais e experi-mentais, divergências entre cientistas envolvidos nas pesquisas e dificuldadeem achar respostas e conclusões. Retrata a formulação do pensamento em cadamomento histórico, enfatizando ideias reinantes na época, influência entrepesquisadores e a perpetuação de experimentos.
Outro referencial adotado é o da Análise de Discurso (AD), segundo o qualo texto é constituído de enunciados heterogêneos, em relação tanto às posiçõesdo sujeito quanto à natureza das linguagens (científica, literária, descritiva,narrativa, etc.). Contudo, apresenta-se como uma unidade constituída por certadominância discursiva, e a leitura é um momento de constituição do texto,porque é neste que se desencadeia o processo de significação. As condições deprodução dessa leitura envolvem os sujeitos (o autor do texto e o leitor), aideologia (os sentidos que serão produzidos), a história de vida e de leitura doleitor. Interessam os sujeitos envolvidos e os diferentes gêneros de discursos;por exemplo, um livro de literatura, um texto bíblico, um artigo científico,produzirão diferentes modos de interação na leitura.
O estudo empírico
A pesquisa foi desenvolvida com 26 alunos do 3º ano do curso de ciênciasbiológicas da UFPR, matriculados na disciplina Metodologia de Ensino deCiências e Biologia. Foi solicitada a leitura do texto histórico “Fotossíntese: ahistória da construção de um conhecimento”, adaptado de Souza (2000). Asolicitação foi feita logo após a abordagem do conteúdo Epistemologia daCiência.
Após a leitura, os alunos responderam questões sobre o que acharam maisinteressante no texto; aquilo que previamente sabiam dessa temática; o fatomais marcante para a consolidação desse conhecimento; as influências desseconhecimento para a sociedade e, por fim, foi solicitado que organizassem umaproposta pedagógica, com o tema fotossíntese, para o Ensino Médio. Depoisque as respostas escritas foram entregues, foi realizada uma discussão sobre aprodução histórica do conceito “fotossíntese” e sua relação com a continuidadeou a ruptura no desenvolvimento do conhecimento científico.
Na análise a seguir, enfatizo apenas as respostas sobre o que os alunos julga-ram mais interessante no texto, articuladas à proposta pedagógica que desen-volveriam sobre essa temática. Por questão de espaço, apresento apenas umexemplo da proposta.
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A leitura no processo de produção do conhecimento científico
Apresento, por meio de recortes, os sentidos manifestados por, pelo menos,três alunos. Grifei em itálico expressões que justificam a inserção da resposta noreferido recorte.
Recorte 1: Tempo para essa produção – a temporalidade na ciência:
“O mais interessante é saber como aos poucos os conceitos consi-derados ‘básicos’ atualmente foram desenvolvidos.” (André)“O que mais me chamou a atenção foi ver como foi longo ocaminho para a construção do conhecimento sobre fotossínteseque se tem hoje.” (Simone)“O interessante no texto é que mostra a idéia de como tudo oque se sabe hoje e o que temos como verdade é resultado deuma construção que leva muito tempo e que se baseia em erros eacertos.” (Soraia)
As respostas selecionadas indicam que a leitura do texto proporcionou aesses estudantes a compreensão sobre como se dá o processo de construção deum conceito; no caso, a fotossíntese. Todos relacionaram o tempo com a con-cepção aceita atualmente, como se fizessem uma comparação entre o hoje e opassado, fato que os fez mencionar a ciência como “construção”, desfazendouma imagem dela como “descoberta”, concepção ainda fortemente presenteentre alunos dos cursos de ciências naturais. A meu ver, ocorreu, de certa for-ma, a compreensão de que o conhecimento científico se desenvolve em funçãode um problema e que leva tempo para consolidar-se, em função dasinadequações de pensamento.
Como exemplo de proposta pedagógica que esses estudantes desenvolveri-am no Ensino Médio, temos:
“Eu selecionaria dentro do histórico os estudiosos e experimen-tos mais importantes para a visão que se tem hoje, distribuiriatextos relacionados para grupos de alunos e posteriormente fa-ria um debate sobre os erros e acertos do passado de acordo como que se sabe hoje.” (Soraia)
As propostas de ensino estiveram intimamente relacionadas às percepçõescitadas como mais interessantes; eles realizariam os experimentos marcantesem cada período. Vejo nessa perspectiva uma preocupação desses futuros pro-fessores em promover em seus alunos a compreensão do “fazer” ciência.
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Recorte 2: Interação entre conhecimentos – interação entre pessoas, pensamentos, teorias eáreas de conhecimento
“Me interessou como a evolução do conhecimento em outrasáreas como Química, Física etc., por exemplo a invenção domicroscópio influenciou no desenvolvimento do conhecimentobiológico.” (Guilherme)“Fica bem claro como as idéias vão se modificando com o passardo tempo e como uma idéia ou um pensamento acaba influenci-ando a maneira com que o conhecimento se desenvolve. A cons-trução da ciência se dá a partir de experimentos, idéias,sobreposição de idéias, erros e acertos que acabam despertandoa curiosidade e o interesse de diferentes estudiosos.” (Claudia)“Saber que todos os métodos e teorias estão fortemente ligados aosconceitos e métodos vigentes na época de cada estudioso.” (Breno)“O modo como a cada conclusão obtida, mesmo que depois demuitos anos levava a questionamentos mais intrigantes, propor-cionando novas pesquisas e conclusões, chegando cada vez maispróximos da realidade.” (Carolina)
É possível observar nessas respostas que os alunos destacaram o processo deconstrução do conhecimento científico, de modo semelhante ao que apontouCanguilhem sobre as influências de diferentes esferas teóricas que sofre a gêne-se de um conceito. Esta compreensão surgiu a partir da percepção de queocorre um processo de continuidade-ruptura, ou seja, há umacomplementaridade entre os estudos, e não uma negação conclusiva, desper-tando para novas pesquisas e novas explicações, já que as últimas formulaçõesabrem espaços para novos problemas.
Como exemplo de proposta pedagógica, esses estudantes sugeriram:
“Cada grupo seria responsável por um vaso de planta e cadaplanta sofreria diferentes tipos de estresse (ambiente total escu-ridão, outra não receberia água, outra teria um solo pobre eoutra ficaria num ambiente com total condições), no final deum tempo as plantas seriam medidas e comparadas e o grupofaria um trabalho e apresentaria para a sala sobre a importânciadessa substância na fotossíntese.” (Guilherme)
As propostas de ensino desses futuros professores expressaram a interaçãoentre pessoas e entre conhecimentos, pois os grupos de alunos deveriam reali-zar experimentos diferenciados para que, ao final, se fizesse uma síntese sobre oque cada equipe estudou sobre os diferentes fatores que interferem na fotossíntese.
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Recorte 3: Relação com a tecnologia – inter-relação entre o desenvolvimento da ciência e osaparelhos e as técnicas disponíveis em cada momento histórico:
“O quanto o desenvolvimento de um conceito que expliqueum processo natural depende da evolução tecnológica.” (Liana)“Como o advento de novas técnicas mais específicas para resolu-ção dos problemas foi crucial.” (Léia)“Cada cientista estudou algo para tentar desvendar como umvegetal se desenvolvia. Isto dependia muito da época em que ocientista vivia e que tecnologias utilizava a fim de concluir comouma planta se desenvolvia.” (Tania)“Enfoca as curiosidades do homem em cada época e relacionacom a evolução da tecnologia na mesma época.” (Andreia)“É interessante ver a transformação do pensamento e a evoluçãoda aparelhagem técnica que claramente permitiu a evolução doconhecimento [...] Por exemplo com a descoberta do microscó-pio foi possível a observação dos estômatos, levantando a hipó-tese de que a atmosfera (o ar) também seria importante [...]posteriormente com a possibilidade da marcação das moléculasde oxigênio foi possível finalmente demonstrar que a água ab-sorvida pelas plantas dariam origem ao oxigênio atmosférico.”(Leila)
Pode-se observar, nesses fragmentos, que os estudantes destacaram a íntimarelação entre a ciência e a tecnologia disponível em cada momento histórico,contribuindo para as mudanças na elaboração conceitual. Esta visão, de certomodo, remete às filiações descontínuas que constituem a história do conceito,como aponta Canguilhem, desde sua produção teórica até a suafenomenotécnica1. Ou seja, o modelo teórico tem sua capacidade aprimoradacom a ajuda de instrumentos, pois os dados apreendidos pela percepção nãooferecem informações seguras; há, assim, a necessidade de utilização de umaaparelhagem que renova o processo de racionalização. Dessa forma, a configu-ração do fenômeno depende da postura do observador, do modelo teórico e doaparelho que forja a experiência.
O ensino desta temática esteve relacionado à possibilidade de debater mu-danças de pensamento nos modelos teóricos propostos, como segue o exemploabaixo:
“1ª. etapa: alunos escreveriam um texto sobre suas idéias, supo-sições e hipóteses sobre o tema; 2ª. etapa: alunos pesquisariam e
1. Relação entre teoria e instrumento, sendo este considerado uma teoria materializada, comodefende Bachelard (1996, p. 297): “o instrumento de medida acaba sempre sendo uma teoria, eé preciso compreender que o microscópio é um prolongamento mais do espírito que do olho”.
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apresentariam um teatro; 3ª. etapa: professor apresentaria asidéias iniciais dos alunos promovendo uma discussão sobre quehá de errado e de correto e como teria sido a evolução do pensa-mento dos alunos.” (Leila)
Leila sugeriu o confronto das ideias de alunos com as dos pesquisadores,numa tentativa de promover uma comparação entre seus processos de mudan-ça de pensamento. Liana, por outro lado, propôs a elaboração de uma série deexperimentos em que se controla uma variável (luz, no primeiro; água, nosegundo; ar, no terceiro), o que, além de complicado, requer explicações porparte dos alunos sobre as consequências estruturais e moleculares. Assim, pare-ce que essas futuras professoras incorporaram, a partir da leitura do texto, aimportância de desenvolver nos alunos do Ensino Médio diferentes elabora-ções teóricas para que percebam possibilidades diversas de explicação científicapara um mesmo fenômeno.
Recorte 4: Simplicidade de pensamento – relação do pensamento dos estudiosos com suaépoca, o que foi interpretado pelos alunos como um movimento do simples ao complexo:
“Como um fenômeno tão complexo foi sendo descoberto porraciocínios simples, de certa forma ingênuos, mas que foramindispensáveis.” (Carol)“Ao vermos as explicações simplistas e intuitivas, nos instigamosem refletir se teríamos criatividade e/ou capacidade de sugeriralgo mais próximo da realidade, dentro das condições e limita-ções nos quais os estudiosos estavam inseridos. Mais interessan-te ainda são os experimentos. É muito inteligente e simples ofeito por van Helmont [...] de ‘uma hora para outra’ com umsimples experimento, foi mudada a concepção tida durante sécu-los, mostrando não que Aristóteles estava errado (como vanHelmont pensara), mas que havia outros fatores envolvidos.”(Júlia)“É admirável a simplicidade da maioria dos experimentos e comocada um teve sua importância, mesmo quando equivocado.”(André)“É interessante ver como no início a ciência era pouco científica,por exemplo, van Helmont com pouco conhecimento teóricoacerca do assunto ele teve um sacada e com um experimentosimples pode provar uma idéia que serviu de ponto de origempara quem veio depois.” (Léia)“O fato de que os experimentos realizados são relativamente sim-ples [...] mas pode-se perceber que a forma de raciocínio não éalgo fora do normal, que seria praticamente impossível de serpensado.” (Ari)
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Observa-se, nesses fragmentos, que os alunos realizaram aquilo queCanguilhem denomina de recorrência histórica, ou seja, julgar o passado daciência a partir da atualidade, distinguindo erro de verdade, analisando e res-peitando a lógica do passado, observando o que havia de positivo nessas formu-lações. Tal fato levou os alunos Julia e Ari a colocarem-se no papel dos cientistasdo passado. Julia questionou se haveria a possibilidade de desenvolver o mesmoraciocínio diante das limitações do passado e Ari julgou que, apesar de bemelaborado, tal raciocínio provavelmente seria desenvolvido por ele e por outroscientistas.
As propostas para o Ensino Médio enfocaram a atualidade em função dopassado, por exemplo:
“Os alunos teriam que provar através da experimentação comoos pesquisadores chegaram no que se conhece sobre fotossíntesehoje. Um grupo faria um experimento e o divulgaria, a partirdisso os outros grupos aceitariam ou, ao fazer críticas, tentariamprovar através de experimentos que sua crítica faz sentido. Elessempre tentariam achar falhas no experimento alheio para indi-car outros caminhos ou outras interpretações. Se não fosse pos-sível chegar ao que hoje se conhece a turma apresentaria suasconclusões a partir dos experimentos. Isso é o que ocorre nacomunidade científica, não existe verdade absoluta, os alunossó estariam um pouco atrasados em relação ao conceito atual,como se fossem pesquisadores de algumas décadas atrás.” (Ari)
Há, implicitamente, nas propostas de ensino, o pensamento de que é afinalidade do presente que esclarece a história científica. Todas elas destacaramo conhecimento atual sobre fotossíntese como condição para uma releitura dopassado, no sentido de que o reconhecimento de uma teoria que se tornouultrapassada auxiliaria no entendimento do progresso do pensamento. Issoporque o conhecimento atual ampliou a compreensão de determinado fenô-meno por um processo de racionalização mais abrangente.
Tratou-se de um trabalho pedagógico que propiciou o fortalecimento dopensamento como decorrência de seus avanços, o que pode levar os alunos aconstruírem uma visão mais consistente sobre a fotossíntese, não correndo orisco de regredirem ou reincidirem nos erros, nos equívocos e nas incompletudesanteriormente cometidas pelos pesquisadores.
A leitura do texto histórico: uma prática discursiva na formação docente
Declarei, no início deste artigo, que a leitura é uma prática discursiva, jáque me interessava apreender os modos de interpretação dos alunos leitores
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enquanto gestos, isto é, atos que propiciam uma intervenção no mundo. Nocaso, como futuros professores, foi possível observar a influência do texto lidono planejamento da proposta pedagógica. Assim, os leitores manifestaram umamovimentação e uma relação de saberes entre o que apontaram como foco deinteresse no texto e o foco da ação didática.
Quando o tempo na construção do conhecimento científico foi o destaque,a proposta de ensino enfatizou os experimentos marcantes de cada momentodessa construção. Quando a ênfase recaiu na interação entre conhecimentos, oensino priorizou grupos diferenciados de experimentos, visando uma integraçãode informações. Se a questão de interesse centrou na relação da ciência com atecnologia, a sugestão para o ensino da fotossíntese foi de obter diferentes ela-borações teóricas por parte dos alunos, para que percebessem as várias possibi-lidades de explicação para o mesmo fenômeno. Já, se o interesse no texto foidespertado pela simplicidade das ideias anteriores à atual conceitualização, aproposta privilegiou o conhecimento atual como condição para a releitura dopassado.
Também destaquei que a leitura possibilitou a emergência de sentidos jáexistentes nos estudantes, no âmbito do interdiscurso (a memória discursiva),em relação à produção do conhecimento na ciência. Assim, ao ler o texto,foram mobilizados pensamentos duais, como processo-produto, continuida-de-ruptura, presente-passado, teoria-técnica. É como se os leitores realizassemo papel que Canguilhem destaca aos epistemólogos: o de percorrer o progressoda ciência, a dinâmica da cultura científica, o que implicou perceber o conhe-cimento científico desenvolvendo-se a caminho de uma maior racionalidade,por meio de uma descontinuidade, por um movimento de reformulação emque ocorre uma reorganização incessante do saber.
Portanto, para que a leitura funcione como um processo de produção desentidos, segundo a AD, ou seja, como um gesto de interpretação do sujeitoque lê, é importante permitir ao leitor inscrever-se em uma disputa de inter-pretações; no caso, as questões propostas tinham esse objetivo. Elas solicitaramque os alunos destacassem o que foi mais interessante no texto; aquilo que jásabiam; o fato mais marcante para a consolidação do conhecimento sobre afotossíntese; as influências desse conhecimento para a sociedade. E que organi-zassem uma proposta pedagógica com o tema fotossíntese para o Ensino Mé-dio, como dito acima. Posteriormente, ocorreu a discussão em sala de aulasobre este conceito em relação à epistemologia da ciência. Acredito, como de-monstrado nos recortes acima, que esse mecanismo didático tenha proporcio-nado a desestabilização de sentidos prévios e que, ao construírem um possíveltrabalho pedagógico com a temática, emergiram saberes inscritos no sujeito-leitor.
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O processo que seguiu o projeto filosófico defendido por Canguilhem, queune a epistemologia à história da ciência, centralizou-se em dois pontos: oconceito científico e a descontinuidade histórica, trabalho que cooperou paracolocar o discurso científico dentro do contexto social, aproximando-o do estu-dante. Segundo Orlandi (2003), ao refletir sobre os fatos científicos e as dife-rentes formulações, passa-se a conhecer a história dos conceitos, ou melhor,que os conceitos têm uma história.
Além disso, este estudo permitiu questionar a verdade do conhecimentocientífico e resgatar o lugar da subjetividade de quem faz a ciência. Aspectosque, ao que parece, apontaram uma outra possibilidade ao futuro professor: ade adotar uma postura de não tratar seu aluno como recipiente de verdades, oque foi observado nas atividades por eles propostas para o ensino da fotossíntese.
É preciso reconhecer também a relevância do texto utilizado, em especialsuas características linguísticas, como a citação de trechos dos diários dos cien-tistas que estudaram a fotossíntese e a utilização, por parte da autora (Souza,2000), de expressões como “quando olhamos”, “ficamos tentados”, “a maneiracomo conhecemos”. A meu ver, a primeira característica aproxima o estudantede biologia do “fazer ciência”, pois, ao relatar as palavras dos próprios pesquisa-dores, a autora expõe os leitores à presença do cientista, às suas dúvidas, às suasdecisões, aos seus problemas. Já a segunda marca do texto permite à autoraenvolver o leitor, ao compartilhar com ele a caminhada nessa construção cien-tífica.
Assim, a natureza da linguagem textual foi outro elemento que, associadoàs atividades solicitadas aos alunos quando efetuaram a leitura do texto, contri-buiu para fazer emergir a subjetividade na ciência. Tenho defendido, em ou-tros estudos que desenvolvi, a utilização de diferentes gêneros textuais na for-mação do professor, seja nas atividades de leitura ou de escrita, pois o contatocom uma linguagem menos acadêmica deve levar o estudante a produzir iden-tificações com o “eu professor” ou, neste caso, com o “eu da ciência”.
Para finalizar, reafirmo que a leitura e a ciência são práticas discursivas, jáque, mesmo estando sujeitas às regras sociais que lhes são impostas, “como emtoda relação de poder, vez por outra, pululam pontos de resistência, que apon-tam para a constatação de que essa homogeneidade é inevitavelmente ilusória”(Coracini, 2003, p. 326). Conforme apontei neste artigo, o papel do textohistórico escolhido foi o de trazer à tona a subjetividade da e na ciência, pois,como comenta Coracini (2003, p. 335), “o que um homem vê depende tantodaquilo que ele olha como daquilo que sua experiência visual-conceitual ensi-nou a ver”. Eis aí a função da leitura na formação do professor de ciências.
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Recebido em 15 de outubro de 2010 e aprovado em 10 de dezembro de 2010.
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Ciências – Volume 18
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102
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Ciências – Volume 18
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110
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Ciências – Volume 18
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Coleção Explorando o Ensino
112
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113
Ciências – Volume 18
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ão 7
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ão 9
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007.
20 Jan/Fev/Mar/Abr 2002 Nº 19
Notas sobre a experiência e o saber deexperiência*
Jorge Larrosa BondíaUniversidade de Barcelona, Espanha
Tradução de João Wanderley GeraldiUniversidade Estadual de Campinas, Departamento de Lingüística
No combate entre você e o mundo, prefira o mundo.
Franz Kafka
Costuma-se pensar a educação do ponto de vista
da relação entre a ciência e a técnica ou, às vezes, do
ponto de vista da relação entre teoria e prática. Se o
par ciência/técnica remete a uma perspectiva positiva
e retificadora, o par teoria/prática remete sobretudo a
uma perspectiva política e crítica. De fato, somente
nesta última perspectiva tem sentido a palavra “refle-
xão” e expressões como “reflexão crítica”, “reflexão
sobre prática ou não prática”, “reflexão emancipado-
ra” etc. Se na primeira alternativa as pessoas que tra-
balham em educação são concebidas como sujeitos
técnicos que aplicam com maior ou menor eficácia as
diversas tecnologias pedagógicas produzidas pelos
cientistas, pelos técnicos e pelos especialistas, na se-
gunda alternativa estas mesmas pessoas aparecem
como sujeitos críticos que, armados de distintas estra-
tégias reflexivas, se comprometem, com maior ou
menor êxito, com práticas educativas concebidas na
maioria das vezes sob uma perspectiva política. Tudo
isso é suficientemente conhecido, posto que nas últi-
mas décadas o campo pedagógico tem estado separa-
do entre os chamados técnicos e os chamados críti-
cos, entre os partidários da educação como ciência
aplicada e os partidários da educação como práxis
política, e não vou retomar a discussão.
O que vou lhes propor aqui é que exploremos
juntos outra possibilidade, digamos que mais existen-
cial (sem ser existencialista) e mais estética (sem ser
esteticista), a saber, pensar a educação a partir do par
experiência/sentido. O que vou fazer em seguida é
sugerir certo significado para estas duas palavras em
distintos contextos, e depois vocês me dirão como isto
lhes soa. O que vou fazer é, simplesmente, explorar
algumas palavras e tratar de compartilhá-las.
E isto a partir da convicção de que as palavras
* Conferência proferida no I Seminário Internacional de
Educação de Campinas, traduzida e publicada, em julho de 2001,
por Leituras SME; Textos-subsídios ao trabalho pedagógico das
unidades da Rede Municipal de Educação de Campinas/FUMEC.
A Comissão Editorial agradece Corinta Grisolia Geraldi, respon-
sável por Leituras SME, a autorização para sua publicação na Re-
vista Brasileira de Educação.
Notas sobre a experiência e o saber de experiência
Revista Brasileira de Educação 21
produzem sentido, criam realidades e, às vezes, fun-
cionam como potentes mecanismos de subjetivação.
Eu creio no poder das palavras, na força das palavras,
creio que fazemos coisas com as palavras e, também,
que as palavras fazem coisas conosco. As palavras
determinam nosso pensamento porque não pensamos
com pensamentos, mas com palavras, não pensamos a
partir de uma suposta genialidade ou inteligência, mas
a partir de nossas palavras. E pensar não é somente
“raciocinar” ou “calcular” ou “argumentar”, como nos
tem sido ensinado algumas vezes, mas é sobretudo dar
sentido ao que somos e ao que nos acontece. E isto, o
sentido ou o sem-sentido, é algo que tem a ver com as
palavras. E, portanto, também tem a ver com as pala-
vras o modo como nos colocamos diante de nós mes-
mos, diante dos outros e diante do mundo em que vi-
vemos. E o modo como agimos em relação a tudo isso.
Todo mundo sabe que Aristóteles definiu o homem
como zôon lógon échon. A tradução desta expressão,
porém, é muito mais “vivente dotado de palavra” do
que “animal dotado de razão” ou “animal racional”.
Se há uma tradução que realmente trai, no pior sentido
da palavra, é justamente essa de traduzir logos por
ratio. E a transformação de zôon, vivente, em animal.
O homem é um vivente com palavra. E isto não signi-
fica que o homem tenha a palavra ou a linguagem como
uma coisa, ou uma faculdade, ou uma ferramenta, mas
que o homem é palavra, que o homem é enquanto pa-
lavra, que todo humano tem a ver com a palavra, se dá
em palavra, está tecido de palavras, que o modo de
viver próprio desse vivente, que é o homem, se dá na
palavra e como palavra. Por isso, atividades como con-
siderar as palavras, criticar as palavras, eleger as pala-
vras, cuidar das palavras, inventar palavras, jogar com
as palavras, impor palavras, proibir palavras, transfor-
mar palavras etc. não são atividades ocas ou vazias,
não são mero palavrório. Quando fazemos coisas com
as palavras, do que se trata é de como damos sentido
ao que somos e ao que nos acontece, de como
correlacionamos as palavras e as coisas, de como no-
meamos o que vemos ou o que sentimos e de como
vemos ou sentimos o que nomeamos.
Nomear o que fazemos, em educação ou em qual-
quer outro lugar, como técnica aplicada, como práxis
reflexiva ou como experiência dotada de sentido, não
é somente uma questão terminológica. As palavras
com que nomeamos o que somos, o que fazemos, o
que pensamos, o que percebemos ou o que sentimos
são mais do que simplesmente palavras. E, por isso,
as lutas pelas palavras, pelo significado e pelo contro-
le das palavras, pela imposição de certas palavras e
pelo silenciamento ou desativação de outras palavras
são lutas em que se joga algo mais do que simples-
mente palavras, algo mais que somente palavras.
1. Começarei com a palavra experiência. Pode-
ríamos dizer, de início, que a experiência é, em espa-
nhol, “o que nos passa”. Em português se diria que a
experiência é “o que nos acontece”; em francês a ex-
periência seria “ce que nous arrive”; em italiano,
“quello che nos succede” ou “quello che nos accade”;
em inglês, “that what is happening to us”; em alemão,
“was mir passiert”.
A experiência é o que nos passa, o que nos acon-
tece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que
acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas
coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acon-
tece. Dir-se-ia que tudo o que se passa está organizado
para que nada nos aconteça.1 Walter Benjamin, em um
texto célebre, já observava a pobreza de experiências
que caracteriza o nosso mundo. Nunca se passaram
tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara.
Em primeiro lugar pelo excesso de informação.
A informação não é experiência. E mais, a informação
não deixa lugar para a experiência, ela é quase o con-
trário da experiência, quase uma antiexperiência. Por
isso a ênfase contemporânea na informação, em estar
informados, e toda a retórica destinada a constituir-
nos como sujeitos informantes e informados; a infor-
mação não faz outra coisa que cancelar nossas possi-
1 Em espanhol, o autor faz um jogo de palavras impossível
no português: “Se diria que todo lo que pasa está organizado para
que nada nos pase”, exceto se optássemos por uma tradução como
“Dir-se-ia que tudo que se passa está organizado para que nada se
nos passe” (Nota do tradutor).
Jorge Larrosa Bondía
22 Jan/Fev/Mar/Abr 2002 Nº 19
bilidades de experiência. O sujeito da informação sabe
muitas coisas, passa seu tempo buscando informação,
o que mais o preocupa é não ter bastante informação;
cada vez sabe mais, cada vez está melhor informado,
porém, com essa obsessão pela informação e pelo sa-
ber (mas saber não no sentido de “sabedoria”, mas no
sentido de “estar informado”), o que consegue é que
nada lhe aconteça. A primeira coisa que gostaria de
dizer sobre a experiência é que é necessário separá-la
da informação. E o que gostaria de dizer sobre o saber
de experiência é que é necessário separá-lo de saber
coisas, tal como se sabe quando se tem informação
sobre as coisas, quando se está informado. É a língua
mesma que nos dá essa possibilidade. Depois de assis-
tir a uma aula ou a uma conferência, depois de ter lido
um livro ou uma informação, depois de ter feito uma
viagem ou de ter visitado uma escola, podemos dizer
que sabemos coisas que antes não sabíamos, que te-
mos mais informação sobre alguma coisa; mas, ao
mesmo tempo, podemos dizer também que nada nos
aconteceu, que nada nos tocou, que com tudo o que
aprendemos nada nos sucedeu ou nos aconteceu.
Além disso, seguramente todos já ouvimos que
vivemos numa “sociedade de informação”. E já nos
demos conta de que esta estranha expressão funciona
às vezes como sinônima de “sociedade do conhecimen-
to” ou até mesmo de “sociedade de aprendizagem”.
Não deixa de ser curiosa a troca, a intercambialidade
entre os termos “informação”, “conhecimento” e
“aprendizagem”. Como se o conhecimento se desse sob
a forma de informação, e como se aprender não fosse
outra coisa que não adquirir e processar informação.
E não deixa de ser interessante também que as velhas
metáforas organicistas do social, que tantos jogos per-
mitiram aos totalitarismos do século passado, estejam
sendo substituídas por metáforas cognitivistas, segu-
ramente também totalitárias, ainda que revestidas agora
de um look liberal democrático. Independentemente de
que seja urgente problematizar esse discurso que se
está instalando sem crítica, a cada dia mais profunda-
mente, e que pensa a sociedade como um mecanismo
de processamento de informação, o que eu quero apon-
tar aqui é que uma sociedade constituída sob o signo
da informação é uma sociedade na qual a experiência
é impossível.
Em segundo lugar, a experiência é cada vez mais
rara por excesso de opinião. O sujeito moderno é um
sujeito informado que, além disso, opina. É alguém
que tem uma opinião supostamente pessoal e supos-
tamente própria e, às vezes, supostamente crítica so-
bre tudo o que se passa, sobre tudo aquilo de que tem
informação. Para nós, a opinião, como a informação,
converteu-se em um imperativo. Em nossa arrogân-
cia, passamos a vida opinando sobre qualquer coisa
sobre que nos sentimos informados. E se alguém não
tem opinião, se não tem uma posição própria sobre o
que se passa, se não tem um julgamento preparado
sobre qualquer coisa que se lhe apresente, sente-se em
falso, como se lhe faltasse algo essencial. E pensa que
tem de ter uma opinião. Depois da informação, vem a
opinião. No entanto, a obsessão pela opinião também
anula nossas possibilidades de experiência, também
faz com que nada nos aconteça.
Benjamin dizia que o periodismo é o grande dis-
positivo moderno para a destruição generalizada da
experiência.2 O periodismo destrói a experiência, so-
bre isso não há dúvida, e o periodismo não é outra
coisa que a aliança perversa entre informação e opi-
nião. O periodismo é a fabricação da informação e a
fabricação da opinião. E quando a informação e a opi-
nião se sacralizam, quando ocupam todo o espaço do
acontecer, então o sujeito individual não é outra coisa
que o suporte informado da opinião individual, e o
sujeito coletivo, esse que teria de fazer a história se-
gundo os velhos marxistas, não é outra coisa que o
suporte informado da opinião pública. Quer dizer, um
sujeito fabricado e manipulado pelos aparatos da in-
formação e da opinião, um sujeito incapaz de expe-
riência. E o fato de o periodismo destruir a experiên-
cia é algo mais profundo e mais geral do que aquilo
que derivaria do efeito dos meios de comunicação de
massas sobre a conformação de nossas consciências.
O par informação/opinião é muito geral e permeia
2 Benjamin problematiza o periodismo em várias de suas
obras; ver, por exemplo, Benjamim, 1991, p. 111 e ss.
Notas sobre a experiência e o saber de experiência
Revista Brasileira de Educação 23
também, por exemplo, nossa idéia de aprendizagem,
inclusive do que os pedagogos e psicopedagogos cha-
mam de “aprendizagem significativa”. Desde peque-
nos até a universidade, ao largo de toda nossa traves-
sia pelos aparatos educacionais, estamos submetidos
a um dispositivo que funciona da seguinte maneira:
primeiro é preciso informar-se e, depois, há de opi-
nar, há que dar uma opinião obviamente própria, críti-
ca e pessoal sobre o que quer que seja. A opinião seria
como a dimensão “significativa” da assim chamada
“aprendizagem significativa”. A informação seria o
objetivo, a opinião seria o subjetivo, ela seria nossa
reação subjetiva ao objetivo. Além disso, como rea-
ção subjetiva, é uma reação que se tornou para nós
automática, quase reflexa: informados sobre qualquer
coisa, nós opinamos. Esse “opinar” se reduz, na maio-
ria das ocasiões, em estar a favor ou contra. Com isso,
nos convertemos em sujeitos competentes para res-
ponder como Deus manda as perguntas dos professo-
res que, cada vez mais, se assemelham a comprova-
ções de informações e a pesquisas de opinião. Diga-me
o que você sabe, diga-me com que informação conta
e exponha, em continuação, a sua opinião: esse o dis-
positivo periodístico do saber e da aprendizagem, o
dispositivo que torna impossível a experiência.
Em terceiro lugar, a experiência é cada vez mais
rara, por falta de tempo. Tudo o que se passa passa
demasiadamente depressa, cada vez mais depressa. E
com isso se reduz o estímulo fugaz e instantâneo, ime-
diatamente substituído por outro estímulo ou por ou-
tra excitação igualmente fugaz e efêmera. O aconteci-
mento nos é dado na forma de choque, do estímulo,
da sensação pura, na forma da vivência instantânea,
pontual e fragmentada. A velocidade com que nos são
dados os acontecimentos e a obsessão pela novidade,
pelo novo, que caracteriza o mundo moderno, impe-
dem a conexão significativa entre acontecimentos.
Impedem também a memória, já que cada aconteci-
mento é imediatamente substituído por outro que igual-
mente nos excita por um momento, mas sem deixar
qualquer vestígio. O sujeito moderno não só está in-
formado e opina, mas também é um consumidor vo-
raz e insaciável de notícias, de novidades, um curioso
impenitente, eternamente insatisfeito. Quer estar per-
manentemente excitado e já se tornou incapaz de si-
lêncio. Ao sujeito do estímulo, da vivência pontual,
tudo o atravessa, tudo o excita, tudo o agita, tudo o
choca, mas nada lhe acontece. Por isso, a velocidade
e o que ela provoca, a falta de silêncio e de memória,
são também inimigas mortais da experiência.
Nessa lógica de destruição generalizada da expe-
riência, estou cada vez mais convencido de que os apa-
ratos educacionais também funcionam cada vez mais
no sentido de tornar impossível que alguma coisa nos
aconteça. Não somente, como já disse, pelo funciona-
mento perverso e generalizado do par informação/
opinão, mas também pela velocidade. Cada vez esta-
mos mais tempo na escola (e a universidade e os cur-
sos de formação do professorado são parte da escola),
mas cada vez temos menos tempo. Esse sujeito da for-
mação permanente e acelerada, da constante atualiza-
ção, da reciclagem sem fim, é um sujeito que usa o
tempo como um valor ou como uma mercadoria, um
sujeito que não pode perder tempo, que tem sempre de
aproveitar o tempo, que não pode protelar qualquer
coisa, que tem de seguir o passo veloz do que se passa,
que não pode ficar para trás, por isso mesmo, por essa
obsessão por seguir o curso acelerado do tempo, este
sujeito já não tem tempo. E na escola o currículo se
organiza em pacotes cada vez mais numerosos e cada
vez mais curtos. Com isso, também em educação esta-
mos sempre acelerados e nada nos acontece.
Em quarto lugar, a experiência é cada vez mais
rara por excesso de trabalho. Esse ponto me parece
importante porque às vezes se confunde experiência
com trabalho. Existe um clichê segundo o qual nos li-
vros e nos centros de ensino se aprende a teoria, o sa-
ber que vem dos livros e das palavras, e no trabalho se
adquire a experiência, o saber que vem do fazer ou da
prática, como se diz atualmente. Quando se redige o
currículo, distingue-se formação acadêmica e expe-
riência de trabalho. Tenho ouvido falar de certa ten-
dência aparentemente progressista no campo educa-
cional que, depois de criticar o modo como nossa
sociedade privilegia as aprendizagens acadêmicas, pre-
tende implantar e homologar formas de contagem de
Jorge Larrosa Bondía
24 Jan/Fev/Mar/Abr 2002 Nº 19
créditos para a experiência e para o saber de experiên-
cia adquirido no trabalho. Por isso estou muito inte-
ressado em distinguir entre experiência e trabalho e,
além disso, em criticar qualquer contagem de créditos
para a experiência, qualquer conversão da experiência
em créditos, em mercadoria, em valor de troca. Minha
tese não é somente porque a experiência não tem nada
a ver com o trabalho, mas, ainda mais fortemente, que
o trabalho, essa modalidade de relação com as pes-
soas, com as palavras e com as coisas que chamamos
trabalho, é também inimiga mortal da experiência.
O sujeito moderno, além de ser um sujeito infor-
mado que opina, além de estar permanentemente agi-
tado e em movimento, é um ser que trabalha, quer di-
zer, que pretende conformar o mundo, tanto o mundo
“natural” quanto o mundo “social” e “humano”, tanto
a “natureza externa” quanto a “natureza interna”, se-
gundo seu saber, seu poder e sua vontade. O trabalho
é esta atividade que deriva desta pretensão. O sujeito
moderno é animado por portentosa mescla de otimis-
mo, de progressismo e de agressividade: crê que pode
fazer tudo o que se propõe (e se hoje não pode, algum
dia poderá) e para isso não duvida em destruir tudo o
que percebe como um obstáculo à sua onipotência. O
sujeito moderno se relaciona com o acontecimento do
ponto de vista da ação. Tudo é pretexto para sua ativi-
dade. Sempre está a se perguntar sobre o que pode
fazer. Sempre está desejando fazer algo, produzir algo,
regular algo. Independentemente de este desejo estar
motivado por uma boa vontade ou uma má vontade, o
sujeito moderno está atravessado por um afã de mu-
dar as coisas. E nisso coincidem os engenheiros, os
políticos, os industrialistas, os médicos, os arquitetos,
os sindicalistas, os jornalistas, os cientistas, os peda-
gogos e todos aqueles que põem no fazer coisas a sua
existência. Nós somos sujeitos ultra-informados, trans-
bordantes de opiniões e superestimulados, mas tam-
bém sujeitos cheios de vontade e hiperativos. E por
isso, porque sempre estamos querendo o que não é,
porque estamos sempre em atividade, porque estamos
sempre mobilizados, não podemos parar. E, por não
podermos parar, nada nos acontece.
A experiência, a possibilidade de que algo nos
aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrup-
ção, um gesto que é quase impossível nos tempos que
correm: requer parar para pensar, parar para olhar,
parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais
devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sen-
tir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender
a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade,
suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção
e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre
o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos
outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter
paciência e dar-se tempo e espaço.
2. Até aqui, a experiência e a destruição da expe-
riência. Vamos agora ao sujeito da experiência. Esse
sujeito que não é o sujeito da informação, da opinião,
do trabalho, que não é o sujeito do saber, do julgar, do
fazer, do poder, do querer. Se escutamos em espanhol,
nessa língua em que a experiência é “o que nos pas-
sa”, o sujeito da experiência seria algo como um terri-
tório de passagem, algo como uma superfície sensível
que aquilo que acontece afeta de algum modo, produz
alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns
vestígios, alguns efeitos. Se escutamos em francês, em
que a experiência é “ce que nous arrive”, o sujeito da
experiência é um ponto de chegada, um lugar a que
chegam as coisas, como um lugar que recebe o que
chega e que, ao receber, lhe dá lugar. E em português,
em italiano e em inglês, em que a experiência soa como
“aquilo que nos acontece, nos sucede”, ou “happen to
us”, o sujeito da experiência é sobretudo um espaço
onde têm lugar os acontecimentos.
Em qualquer caso, seja como território de passa-
gem, seja como lugar de chegada ou como espaço do
acontecer, o sujeito da experiência se define não por
sua atividade, mas por sua passividade, por sua recep-
tividade, por sua disponibilidade, por sua abertura.
Trata-se, porém, de uma passividade anterior à oposi-
ção entre ativo e passivo, de uma passividade feita de
paixão, de padecimento, de paciência, de atenção,
como uma receptividade primeira, como uma disponi-
bilidade fundamental, como uma abertura essencial.
O sujeito da experiência é um sujeito “ex-pos-
Notas sobre a experiência e o saber de experiência
Revista Brasileira de Educação 25
to”. Do ponto de vista da experiência, o importante
não é nem a posição (nossa maneira de pormos), nem
a “o-posição” (nossa maneira de opormos), nem a “im-
posição” (nossa maneira de impormos), nem a “pro-
posição” (nossa maneira de propormos), mas a “ex-
posição”, nossa maneira de “ex-pormos”, com tudo o
que isso tem de vulnerabilidade e de risco. Por isso é
incapaz de experiência aquele que se põe, ou se opõe,
ou se impõe, ou se propõe, mas não se “ex-põe”. É
incapaz de experiência aquele a quem nada lhe passa,
a quem nada lhe acontece, a quem nada lhe sucede, a
quem nada o toca, nada lhe chega, nada o afeta, a quem
nada o ameaça, a quem nada ocorre.
3. Vamos agora ao que nos ensina a própria pala-
vra experiência. A palavra experiência vem do latim
experiri, provar (experimentar). A experiência é em
primeiro lugar um encontro ou uma relação com algo
que se experimenta, que se prova. O radical é periri,
que se encontra também em periculum, perigo. A raiz
indo-européia é per, com a qual se relaciona antes de
tudo a idéia de travessia, e secundariamente a idéia de
prova. Em grego há numerosos derivados dessa raiz
que marcam a travessia, o percorrido, a passagem:
peirô, atravessar; pera, mais além; peraô, passar atra-
vés, perainô, ir até o fim; peras, limite. Em nossas
línguas há uma bela palavra que tem esse per grego
de travessia: a palavra peiratês, pirata. O sujeito da
experiência tem algo desse ser fascinante que se ex-
põe atravessando um espaço indeterminado e perigo-
so, pondo-se nele à prova e buscando nele sua oportu-
nidade, sua ocasião. A palavra experiência tem o ex
de exterior, de estrangeiro,3 de exílio, de estranho
4 e
também o ex de existência. A experiência é a passa-
gem da existência, a passagem de um ser que não tem
essência ou razão ou fundamento, mas que simples-
mente “ex-iste” de uma forma sempre singular, finita,
imanente, contingente. Em alemão, experiência é
Erfahrung, que contém o fahren de viajar. E do antigo
alto-alemão fara também deriva Gefahr, perigo, e
gefährden, pôr em perigo. Tanto nas línguas germâni-
cas como nas latinas, a palavra experiência contém
inseparavelmente a dimensão de travessia e perigo.
4. Em Heidegger (1987) encontramos uma defi-
nição de experiência em que soam muito bem essa
exposição, essa receptividade, essa abertura, assim
como essas duas dimensões de travessia e perigo que
acabamos de destacar:
[...] fazer uma experiência com algo significa que algo
nos acontece, nos alcança; que se apodera de nós, que nos
tomba e nos transforma. Quando falamos em “fazer” uma
experiência, isso não significa precisamente que nós a fa-
çamos acontecer, “fazer” significa aqui: sofrer, padecer, to-
mar o que nos alcança receptivamente, aceitar, à medida
que nos submetemos a algo. Fazer uma experiência quer
dizer, portanto, deixar-nos abordar em nós próprios pelo
que nos interpela, entrando e submetendo-nos a isso. Pode-
mos ser assim transformados por tais experiências, de um
dia para o outro ou no transcurso do tempo. (p. 143)
O sujeito da experiência, se repassarmos pelos
verbos que Heidegger usa neste parágrafo, é um su-
jeito alcançado, tombado, derrubado. Não um sujeito
que permanece sempre em pé, ereto, erguido e seguro
de si mesmo; não um sujeito que alcança aquilo que
se propõe ou que se apodera daquilo que quer; não
um sujeito definido por seus sucessos ou por seus po-
deres, mas um sujeito que perde seus poderes precisa-
mente porque aquilo de que faz experiência dele se
apodera. Em contrapartida, o sujeito da experiência é
também um sujeito sofredor, padecente, receptivo,
aceitante, interpelado, submetido. Seu contrário, o su-
jeito incapaz de experiência, seria um sujeito firme,
forte, impávido, inatingível, erguido, anestesiado, apá-
tico, autodeterminado, definido por seu saber, por seu
poder e por sua vontade.
Nas duas últimas linhas do parágrafo, “Podemos
ser assim transformados por tais experiências, de um
dia para o outro ou no transcurso do tempo”, pode ler-
se outro componente fundamental da experiência: sua
capacidade de formação ou de transformação. É ex-
3 Em espanhol, escreve-se extranjero. (Nota do tradutor)
4 Em espanhol, extraño. (Nota do tradutor)
Jorge Larrosa Bondía
26 Jan/Fev/Mar/Abr 2002 Nº 19
periência aquilo que “nos passa”, ou que nos toca, ou
que nos acontece, e ao nos passar nos forma e nos
transforma. Somente o sujeito da experiência está,
portanto, aberto à sua própria transformação.
5. Se a experiência é o que nos acontece, e se o
sujeito da experiência é um território de passagem,
então a experiência é uma paixão. Não se pode captar
a experiência a partir de uma lógica da ação, a partir
de uma reflexão do sujeito sobre si mesmo enquanto
sujeito agente, a partir de uma teoria das condições de
possibilidade da ação, mas a partir de uma lógica da
paixão, uma reflexão do sujeito sobre si mesmo en-
quanto sujeito passional. E a palavra paixão pode re-
ferir-se a várias coisas.
Primeiro, a um sofrimento ou um padecimento.
No padecer não se é ativo, porém, tampouco se é sim-
plesmente passivo. O sujeito passional não é agente,
mas paciente, mas há na paixão um assumir os pade-
cimentos, como um viver, ou experimentar, ou supor-
tar, ou aceitar, ou assumir o padecer que não tem nada
que ver com a mera passividade, como se o sujeito
passional fizesse algo ao assumir sua paixão. Às ve-
zes, inclusive, algo público, ou político, ou social,
como um testemunho público de algo, ou uma prova
pública de algo, ou um martírio público em nome de
algo, ainda que esse “público” se dê na mais estrita
solidão, no mais completo anonimato.
“Paixão” pode referir-se também a certa hetero-
nomia, ou a certa responsabilidade em relação com o
outro que, no entanto, não é incompatível com a liber-
dade ou a autonomia. Ainda que se trate, naturalmen-
te, de outra liberdade e de outra autonomia diferente
daquela do sujeito que se determina por si mesmo. A
paixão funda sobretudo uma liberdade dependente,
determinada, vinculada, obrigada, inclusa, fundada não
nela mesma mas numa aceitação primeira de algo que
está fora de mim, de algo que não sou eu e que por
isso, justamente, é capaz de me apaixonar.
E “paixão” pode referir-se, por fim, a uma expe-
riência do amor, o amor-paixão ocidental, cortesão,
cavalheiresco, cristão, pensado como posse e feito de
um desejo que permanece desejo e que quer permane-
cer desejo, pura tensão insatisfeita, pura orientação
para um objeto sempre inatingível. Na paixão, o su-
jeito apaixonado não possui o objeto amado, mas é
possuído por ele. Por isso, o sujeito apaixonado não
está em si próprio, na posse de si mesmo, no autodo-
mínio, mas está fora de si, dominado pelo outro, cati-
vado pelo alheio, alienado, alucinado.
Na paixão se dá uma tensão entre liberdade e es-
cravidão, no sentido de que o que quer o sujeito é,
precisamente, permanecer cativo, viver seu cativeiro,
sua dependência daquele por quem está apaixonado.
Ocorre também uma tensão entre prazer e dor, entre
felicidade e sofrimento, no sentido de que o sujeito apai-
xonado encontra sua felicidade ou ao menos o
cumprimento de seu destino no padecimento que sua
paixão lhe proporciona. O que o sujeito ama é preci-
samente sua própria paixão. Mas ainda: o sujeito
apaixonado não é outra coisa e não quer ser outra coi-
sa que não a paixão. Daí, talvez, a tensão que a paixão
extrema suporta entre vida e morte. A paixão tem uma
relação intrínseca com a morte, ela se desenvolve no
horizonte da morte, mas de uma morte que é querida e
desejada como verdadeira vida, como a única coisa
que vale a pena viver, e às vezes como condição de
possibilidade de todo renascimento.
6. Até aqui vimos algumas explorações sobre o
que poderia ser a experiência e o sujeito da experiên-
cia. Algo que vimos sob o ponto de vista da travessia
e do perigo, da abertura e da exposição, da receptivi-
dade e da transformação, e da paixão. Vamos agora ao
saber da experiência. Definir o sujeito da experiência
como sujeito passional não significa pensá-lo como
incapaz de conhecimento, de compromisso ou ação.
A experiência funda também uma ordem epistemoló-
gica e uma ordem ética. O sujeito passional tem tam-
bém sua própria força, e essa força se expressa produ-
tivamente em forma de saber e em forma de práxis. O
que ocorre é que se trata de um saber distinto do saber
científico e do saber da informação, e de uma práxis
distinta daquela da técnica e do trabalho.
O saber de experiência se dá na relação entre o
conhecimento e a vida humana. De fato, a experiên-
Notas sobre a experiência e o saber de experiência
Revista Brasileira de Educação 27
cia é uma espécie de mediação entre ambos. É impor-
tante, porém, ter presente que, do ponto de vista da
experiência, nem “conhecimento” nem “vida” signi-
ficam o que significam habitualmente.
Atualmente, o conhecimento é essencialmente a
ciência e a tecnologia, algo essencialmente infinito,
que somente pode crescer; algo universal e objetivo,
de alguma forma impessoal; algo que está aí, fora de
nós, como algo de que podemos nos apropriar e que
podemos utilizar; e algo que tem que ver fundamen-
talmente com o útil no seu sentido mais estreitamente
pragmático, num sentido estritamente instrumental. O
conhecimento é basicamente mercadoria e, estritamen-
te, dinheiro; tão neutro e intercambiável, tão sujeito à
rentabilidade e à circulação acelerada como o dinhei-
ro. Recordem-se as teorias do capital humano ou es-
sas retóricas contemporâneas sobre a sociedade do
conhecimento, a sociedade da aprendizagem, ou a so-
ciedade da informação.
Em contrapartida, a “vida” se reduz à sua dimen-
são biológica, à satisfação das necessidades (geral-
mente induzidas, sempre incrementadas pela lógica
do consumo), à sobrevivência dos indivíduos e da so-
ciedade. Pense-se no que significa para nós “qualida-
de de vida” ou “nível de vida”: nada mais que a posse
de uma série de cacarecos para uso e desfrute.
Nestas condições, é claro que a mediação entre o
conhecimento e a vida não é outra coisa que a apro-
priação utilitária, a utilidade que se nos apresenta como
“conhecimento” para as necessidades que se nos dão
como “vida” e que são completamente indistintas das
necessidades do Capital e do Estado.
Para entender o que seja a experiência, é necessá-
rio remontar aos tempos anteriores à ciência moderna
(com sua específica definição do conhecimento obje-
tivo) e à sociedade capitalista (na qual se constituiu a
definição moderna de vida como vida burguesa). Du-
rante séculos, o saber humano havia sido entendido
como um páthei máthos, como uma aprendizagem no
e pelo padecer, no e por aquilo que nos acontece. Este
é o saber da experiência: o que se adquire no modo
como alguém vai respondendo ao que vai lhe aconte-
cendo ao longo da vida e no modo como vamos dando
sentido ao acontecer do que nos acontece. No saber da
experiência não se trata da verdade do que são as coi-
sas, mas do sentido ou do sem-sentido do que nos acon-
tece. E esse saber da experiência tem algumas
características essenciais que o opõem, ponto por pon-
to, ao que entendemos como conhecimento.
Se a experiência é o que nos acontece e se o saber
da experiência tem a ver com a elaboração do sentido
ou do sem-sentido do que nos acontece, trata-se de um
saber finito, ligado à existência de um indivíduo ou de
uma comunidade humana particular; ou, de um modo
ainda mais explícito, trata-se de um saber que revela
ao homem concreto e singular, entendido individual
ou coletivamente, o sentido ou o sem-sentido de sua
própria existência, de sua própria finitude. Por isso, o
saber da experiência é um saber particular, subjetivo,
relativo, contingente, pessoal. Se a experiência não é o
que acontece, mas o que nos acontece, duas pessoas,
ainda que enfrentem o mesmo acontecimento, não fa-
zem a mesma experiência. O acontecimento é comum,
mas a experiência é para cada qual sua, singular e de
alguma maneira impossível de ser repetida. O saber da
experiência é um saber que não pode separar-se do in-
divíduo concreto em quem encarna. Não está, como o
conhecimento científico, fora de nós, mas somente tem
sentido no modo como configura uma personalidade,
um caráter, uma sensibilidade ou, em definitivo, uma
forma humana singular de estar no mundo, que é por
sua vez uma ética (um modo de conduzir-se) e uma
estética (um estilo). Por isso, também o saber da expe-
riência não pode beneficiar-se de qualquer alforria,
quer dizer, ninguém pode aprender da experiência de
outro, a menos que essa experiência seja de algum
modo revivida e tornada própria.
A primeira nota sobre o saber da experiência su-
blinha, então, sua qualidade existencial, isto é, sua
relação com a existência, com a vida singular e con-
creta de um existente singular e concreto. A experiên-
cia e o saber que dela deriva são o que nos permite
apropriar-nos de nossa própria vida. Ter uma vida pró-
pria, pessoal, como dizia Rainer Maria Rilke, em Los
Cuadernos de Malthe, é algo cada vez mais raro, qua-
se tão raro quanto uma morte própria. Se chamamos
Jorge Larrosa Bondía
28 Jan/Fev/Mar/Abr 2002 Nº 19
existência a esta vida própria, contingente e finita, a
essa vida que não está determinada por nenhuma es-
sência nem por nenhum destino, a essa vida que não
tem nenhuma razão nem nenhum fundamento fora
dela mesma, a essa vida cujo sentido se vai construin-
do e destruindo no viver mesmo, podemos pensar que
tudo o que faz impossível a experiência faz também
impossível a existência.
7. A ciência moderna, a que se inicia em Bacon e
alcança sua formulação mais elaborada em Descartes,
desconfia da experiência. E trata de convertê-la em
um elemento do método, isto é, do caminho seguro da
ciência. A experiência já não é o meio desse saber que
forma e transforma a vida dos homens em sua singu-
laridade, mas o método da ciência objetiva, da ciência
que se dá como tarefa a apropriação e o domínio do
mundo. Aparece assim a idéia de uma ciência experi-
mental. Mas aí a experiência converteu-se em experi-
mento, isto é, em uma etapa no caminho seguro e pre-
visível da ciência. A experiência já não é o que nos
acontece e o modo como lhe atribuímos ou não um
sentido, mas o modo como o mundo nos mostra sua
cara legível, a série de regularidades a partir das quais
podemos conhecer a verdade do que são as coisas e
dominá-las. A partir daí o conhecimento já não é um
páthei máthos, uma aprendizagem na prova e pela
prova, com toda a incerteza que isso implica, mas um
mathema, uma acumulação progressiva de verdades
objetivas que, no entanto, permanecerão externas ao
homem. Uma vez vencido e abandonado o saber da
experiência e uma vez separado o conhecimento da
existência humana, temos uma situação paradoxal.
Uma enorme inflação de conhecimentos objetivos,
uma enorme abundância de artefatos técnicos e uma
enorme pobreza dessas formas de conhecimento que
atuavam na vida humana, nela inserindo-se e trans-
formando-a. A vida humana se fez pobre e necessita-
da, e o conhecimento moderno já não é o saber ativo
que alimentava, iluminava e guiava a existência dos
homens, mas algo que flutua no ar, estéril e desligado
dessa vida em que já não pode encarnar-se.
A segunda nota sobre o saber da experiência pre-
tende evitar a confusão de experiência com experi-
mento ou, se se quiser, limpar a palavra experiência
de suas contaminações empíricas e experimentais, de
suas conotações metodológicas e metodologizantes.
Se o experimento é genérico, a experiência é singular.
Se a lógica do experimento produz acordo, consenso
ou homogeneidade entre os sujeitos, a lógica da expe-
riência produz diferença, heterogeneidade e plurali-
dade. Por isso, no compartir a experiência, trata-se
mais de uma heterologia do que de uma homologia,
ou melhor, trata-se mais de uma dialogia que funcio-
na heterologicamente do que uma dialogia que fun-
ciona homologicamente. Se o experimento é repetível,
a experiência é irrepetível, sempre há algo como a
primeira vez. Se o experimento é preditível e previsí-
vel, a experiência tem sempre uma dimensão de in-
certeza que não pode ser reduzida. Além disso, posto
que não se pode antecipar o resultado, a experiência
não é o caminho até um objetivo previsto, até uma
meta que se conhece de antemão, mas é uma abertura
para o desconhecido, para o que não se pode anteci-
par nem “pré-ver” nem “pré-dizer”.
JORGE LARROSA BONDÍA é doutor em pedagogia pela
Universidade de Barcelona, Espanha, onde atualmente é profes-
sor titular de filosofia da educação. Publicou diversos artigos em
periódicos brasileiros e tem dois livros traduzidos para o portu-
guês: Imagens do outro (Vozes, 1998) e Pedagogia profana (Au-
têntica, 1999).
Referências Bibliográficas
HEIDEGGER, Martin, (1987). La esencia del habla. In: .
De camino al habla. Barcelona: Edicionaes del Serbal.
BENJAMIN, Walter, (1991). El narrador. In: . Para uma cri-
tica de la violencia y otros ensaios. Madrid: Taurus, p. 111 e ss.
(Ou, na edição brasileira: , (1994). Magia e técnica, arte e
política; ensaios sobre literatura e história da cultura. In: .
Obras escolhidas. 7ª ed., São Paulo: Brasiliense, vol. I).
Recebido em novembro de 2001Aprovado em janeiro de 2002