tese - futebol e torcidas
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Alexandre Nicolau Luccas
FUTEBOL E TORCIDAS: UM ESTUDO
PSICANALTICO SOBRE O VNCULO
SOCIAL
Mestrado Psicologia Social
PUC/So Paulo
1998
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Breve Histria do Futebol 13
NDICE
Apresentao ....................................................................................................................
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Captulo I: Breve Histria do Futebol ........................................................................... O Futebol Moderno ..................................................................................................... Origens do Futebol ...................................................................................................... O Futebol no Brasil .....................................................................................................
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Captulo II: As Torcidas Organizadas de Futebol ....................................................... A Concepo Unilateral: a Torcida Organizada como contexto centralizador de
violncia ...................................................................................................................... Os hooligans ........................................................................................................... A violncia e as Torcidas Organizadas de Futebol no Brasil .................................
A Concepo Ampliada: a Torcida Organizada como contexto de formao de identificaes e laos sociais .......................................................................................
39
404145
51
Captulo III: Delimitao do Objeto de Estudo e Finalidade da Investigao ..........
62
Captulo IV: Metodologia ...............................................................................................
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Captulo V: Referencial Terico .................................................................................... A Constituio do Espao Psicolgico na Modernidade ............................................. As Matrizes do Pensamento Psicolgico: breve histrico ........................................... A Psicanlise ............................................................................................................... Psicanlise e Vnculo Social ........................................................................................
Totem e Tabu .......................................................................................................... Psicologia de Grupo e Anlise do Ego ................................................................... O Futuro de Uma Iluso ......................................................................................... O Mal-Estar na Civilizao ....................................................................................
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Captulo VI: Entrevistas ................................................................................................. Entrevista 1 .................................................................................................................. Entrevista 2 .................................................................................................................. Entrevista 3 .................................................................................................................. Entrevista 4 ..................................................................................................................
141142150165177
Captulo VII: Concluses ...............................................................................................
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Bibliografia ......................................................................................................................
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Breve Histria do Futebol 14
Apresentao
Desde a poca da graduao comecei a me interessar por elaborar um trabalho no qual
pudesse pensar, de maneira a articular, duas reas de grande interesse pessoal: o futebol e a
psicanlise. A primeira rea de interesse, o futebol, uma paixo. No s para mim como
tambm para grande parte da populao brasileira e, por que no dizer, mundial. O futebol
entra em nossas vidas de maneira, muitas vezes, desconhecida. Participa daquele grupo de
fenmenos, junto com a opo religiosa, a opo amorosa e a opo poltica, que no requer
maiores interrogaes. Basta, e isso que a cultura espera de cada um de ns, que tenhamos
um time para o qual torcer ao longo do ano. requisito fundamental na constituio da
subjetividade do brasileiro, uma identidade no campo esportivo, algo que nos apresenta
perante os outros de um grupo de relaes significativas e nos inscreve de uma determinada
maneira neste mesmo grupo.
O corinthiano, o so-paulino, o palmeirense, o santista e o ponte-pretano, entre outros,
so identidades bastante especficas. Esta simples identificao com uma histria do clube,
suas conquistas e suas caractersticas particulares, falam muito sobre o sujeito em nossa
cultura. O futebol , enfim, um universo extremamente amplo e complexo de relaes sociais.
Estud-lo, significou ir em direo contrria a grande parte da recomendao de nossa
sociedade. uma rea de interesse que carecia, e ainda carece, de maiores e mais
aprofundados estudos. A pesquisa bibliogrfica realizada por ocasio deste trabalho nos
mostra esse quadro de maneira bastante explcita. Algumas reas de conhecimento, como a
Sociologia e a Antropologia, vm, nestes ltimos anos, estabelecendo uma determinada
pensabilidade sobre o fenmeno. No entanto, existe pouqussimo estudo produzido pela rea
da Psicologia.
A segunda rea de interesse, a psicanlise, guardava maiores dificuldades ainda do que
a primeira. Procurei a Psicologia Social acreditando ser o campo onde melhor pudesse estudar
o futebol, pela tradio que ela possui no estudo dos fenmenos psicossociais. No entanto,
pretendia realizar o trabalho atravs de um referencial terico psicanaltico. Tal pretenso
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Breve Histria do Futebol 15
levou-me a me deparar com questes extremamente importantes que necessitavam de uma
resposta: de que forma a psicanlise poderia apresentar uma contribuio ao campo da
Psicologia Social?; como estabelecer um dilogo possvel entre estas duas reas,
aparentemente to distintas?; entre outras.
A tarefa de responder a estes questionamentos tornou-se um pouco mais facilitada pela
criao do Ncleo de Pesquisa em Psicanlise e Sociedade do Programa de Estudos Ps-
Graduados em Psicologia Social da PUC/SP. Ingressei no referido Ncleo desde seu incio e
l encontrei outros pesquisadores que, apesar da diversidade temtica, possuam uma
preocupao comum: estabelecer uma dialogia possvel entre a Psicanlise e a Psicologia
Social. Os estudos realizados no Ncleo, sob a coordenao do Prof. Dr. Raul Albino Pacheco
Filho e da Prof. Dra. Miriam Debieux, contriburam de maneira decisiva para este trabalho.
Desta forma, restava ainda encontrar um objeto de estudo para que pudesse delimitar
melhor um campo de investigao pertinente ao Mestrado. Enquanto estava s voltas com este
problema, aconteceu a famosa batalha campal do Pacaemb, uma guerra entre duas torcidas
organizadas de futebol, a Mancha Verde e a Independente. As propores que tal
acontecimento assumiu na mdia especializada e na opinio pblica, motivaram diversos
trabalhos nas reas da Sociologia e da Antropologia. Passei a estudar tais trabalhos e a me
interessar profundamente em desenvolver uma compreenso, no campo da Psicologia, para
este fenmeno das torcidas organizadas de futebol, de forma a contribuir com as referidas
reas de conhecimento.
Foi assim, portanto, que o tema surgiu para este trabalho. Procurei delimit-lo no
sentido de me aprofundar em alguns de seus aspectos, mais precisamente em relao aos
determinantes da insero dos sujeitos em um grupo com tais caractersticas. O cumprimento
dessa tarefa tornaria possvel uma posterior retomada do fenmeno sob outros aspectos, tais
como: o universo do futebol e suas funes dentro da cultura brasileira, e outras anlises mais
amplas. Tenho bastante claro que tal delimitao, alm de necessria, est ainda longe de
esgotar o fenmeno.
Procurei neste estudo compreender os fatores envolvidos e os elementos determinantes
das escolhas que os sujeitos realizam quando se associam s torcidas organizadas de futebol.
A compreenso foi construda atravs do referencial terico, fornecido exclusivamente por
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Breve Histria do Futebol 16
Freud, sobre o vnculo social. importante ressaltar ainda que, devido ao acontecimento
motivador deste estudo comportar em si a problemtica da violncia, tivemos que dedicar
algum espao do presente trabalho para pensar este problema.
Isto posto, essencial elucidar os momentos e os procedimentos, atravs dos quais
desenvolvi esse trabalho de dissertao. Quanto sua estruturao, foram produzidos os
seguintes captulos e contedos:
1. o primeiro captulo Breve Histrico do Futebol rene uma apresentao das
discusses existentes sobre a histria do futebol: a diversidade de origens atribudas ao
futebol, por vrios estudiosos, anteriores a fundao da Football Association; a
institucionalizao do futebol como esporte pelos ingleses e seu desenvolvimento nesta
sociedade; e a histria deste esporte no Brasil, nas suas diferentes fases de evoluo;
2. o segundo captulo As Torcidas Organizadas de Futebol um relato sobre a histria
da prtica torcedora no mundo, atravs de uma caracterizao histrica e social do
fenmeno. Apresento, neste captulo, a discusso de alguns aspectos fundamentais que
envolvem as torcidas organizadas: uma caracterizao do hooliganismo ingls, fenmeno
que tm sido utilizado como adjetivo da prtica de torcidas organizadas; e uma reflexo
sobre o fenmeno da violncia associada tambm a um nico grupo dentro da sociedade,
quais os usos ideolgicos de tal relao. Aps estas discusses, apresento a histria da
evoluo das torcidas organizadas no Brasil e uma caracterizao antropolgica de seu
instrumental simblico;
3. no terceiro captulo Delimitao do Objeto de Estudo e Finalidade da Investigao
apresento os princpios norteadores desta dissertao e os objetivos pretendidos com a
pesquisa;
4. no quarto captulo Metodologia procuro explicitar os fundamentos metodolgicos nos
quais se apia a presente pesquisa e os procedimentos que foram utilizados para a coleta
de dados e, posteriormente, para a anlise;
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5. no quinto captulo Referencial Terico apresento uma discusso acerca do espao que
a Psicanlise ocupa entre as psicologias objetivando delimitar e inscrever este trabalho no
campo das preocupaes sociais. Em seguida, desenvolvo uma apresentao dos trabalhos
sociais de Freud, procurando explicitar seu mtodo de investigao e sua compreenso do
vnculo social, que ser a referncia terica para a anlise das entrevistas.
6. no sexto captulo Entrevistas apresentamos as entrevistas, de forma a fundamentar a
anlise e as concluses do captulo seguinte.
7. O stimo e ltimo captulo Concluses traz algumas concluses, a partir de todo o
material coletado durante a dissertao. Estas concluses abrangem o universo de relaes
que o futebol mantm com as torcidas e com a sociedade mais ampla. Incluem tambm
uma anlise das representaes que os sujeitos entrevistados possuem sobre a torcida, o
futebol e a sociedade.
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Captulo I
Breve Histria
do Futebol
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O Futebol Moderno
Quando pensamos em futebol a primeira imagem que nos vem cabea a de uma
poca romntica e inocente, um tempo em que grandes jogadores tais como: Pel, Tosto,
Grson, Coutinho, Pepe, Garrincha e Jairzinho entre tantos outros podiam desfilar
absolutos, com toda sua classe, elegncia e inteligncia, pelos gramados. poca na qual a
prtica do futebol se encontra associada beleza esttica presente em verdadeiros
espetculos para o deleite de um pblico familiar e tradicional.
Um tempo que passou e deixou os amantes deste esporte com muitas saudades. O
passado sempre belo. No raro ouvirmos ou vermos nos comentrios esportivos esta
referncia ao passado como um tempo absolutamente idneo, isento de qualquer mcula. A
referncia , por assim dizer, sempre muito saudosista. Um saudosismo que busca expresso
atravs de um apelo esttico e romntico. Mesmo os momentos de maior tenso, como por
exemplo a tradicional rivalidade e as consequentes brigas homricas entre os brasileiros e os
argentinos, so lembrados como eventos isolados e permeados por um romantismo. O futebol
era exatamente assim: um esporte romntico!
Era; no mais. O presente e a realidade nos apresentam diversos problemas. Esta
constatao nos entristece e voltamos nossos entristecidos olhos em direo ao cenrio atual
deste esporte. Vamos nos deparar com uma cena composta de transaes comerciais de
jogadores (os escravos do sculo XX) envolvendo grandes volumes de dinheiro, escndalos
polticos, corrupo em todos os nveis, tentativas de moralizao do esporte esbarrando em
intensas manobras polticas e lobbistas, desmandos e muita violncia, dentro e fora de campo.
Diante de um sentimento inevitvel de tristeza por uma beleza perdida no passado,
procuramos um refgio. Pensamos em nosso time de corao, nas suas glrias e nas suas
derrotas. Todos temos que possuir um time para o qual torcemos. um imperativo social
mais forte at mesmo do que as opes polticas. Somos praticamente induzidos a escolher
algum time para que possamos nos apresentar perante a sociedade. uma identidade que
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todos os brasileiros normais devem possuir. Desde o seu nascimento o brasileiro est sujeito
a esta impostura social.
Pensamos nas Copas do Mundo, e comeamos a nos dar conta da imensa popularidade
deste esporte. Podemos perceber a popularidade mundial deste esporte. Quase todos os pases
do globo terrestre, com pouqussimas excees, possuem seu selecionado nacional e esto
inscritos na FIFA (Federation International Football Association). Existem mais pases
filiados esta entidade que dirige e organiza o futebol no mundo, do que filiados prpria
ONU (Organizao das Naes Unidas). O futebol , sem sombra de dvida, o desporto mais popular em todo o mundo. , como o afirmou Lawrence Kitchin no distante ano de 1966, o nico idioma global para alm da cincia. Para fazermos uma idia do que levou este desporto a ocupar a primazia no panorama mundial, basta vermos que quando a FIFA iniciou as suas actividades em 1904, o fez graas adeso de somente sete associaes nacionais, todas elas europias. Contudo, em 1986 o nmero de membros ascendia j a 150, originrios de todas as partes do globo. Podemos pois concluir que o futebol, enquanto desporto organizado hoje jogado na grande maioria das naes do planeta, e -o a um nvel suficientemente elevado para que as equipes nacionais sejam reconhecidas pela FIFA como qualificadas para poderem disputar o Campeonato do Mundo1
Passados mais de dez anos da constatao acima sobre o nmero de selecionados
nacionais inscritos FIFA, vamos encontrar muitas alteraes neste nmero. Algumas
incluses e excluses foram originadas pelas transformaes na geopoltica mundial. Este
perodo foi decisivo no panorama mundial. Nele assistimos ao desmembramento da Unio das
Repblicas Socialistas Soviticas em diversas repblicas, como tambm unificao das
Alemanhas Oriental e Ocidental.
Alm destas mudanas, outras ocorreram no mbito das tentativas de popularizao do
futebol em pases de extrema importncia poltica e econmica no mundo. O Japo resolveu
aderir ao futebol e o fez de uma forma bastante profissional e empresarial. O investimento foi
massivo e a popularidade do futebol em terras nipnicas logo atingiu nveis extraordinrios. A
importao dos maiores nomes do futebol mundial com a promessa de grandes retornos
financeiros atraiu a ateno da sociedade e, logo, os japoneses ficaram extremamente atrados
pelo esporte. O retorno de grande parte deste investimento acontecer na Copa do Mundo de
2002, em que eles dividiro a tarefa de sediar a Copa em conjunto com a Coria.
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A prpria Copa do Mundo de 1994, vencida pelo Brasil, foi uma tentativa de
popularizar o futebol nos Estados Unidos da Amrica, talvez o nico dos poucos pases de
Primeiro Mundo em que o esporte no bem visto. Isto , o futebol no o principal esporte
para a sociedade norte-americana. Eles valorizam muito mais o basketball, o baseball e uma
verso de football. a segunda tentativa que se faz no sentido de popularizar a prtica do
soccer, mas eles ainda esto engatinhando. O campeonato nacional deles tem poucas equipes,
pouco pblico, pouca popularidade e poucos investimentos. A expectativa ainda de
crescimento.
A atual geopoltica do futebol no mundo, sob o comando da Federation International
Football Association FIFA , est dividida por seis associaes de dimenses continentais,
que respondem por 182 pases. So elas:
Conmebol, integra 10 pases da Amrica do Sul e foi fundada em 1916; UEFA (Union Europene de Football Association), integra 49 pases da Europa e foi
fundada em 1954;
Asian Football Confederation, integra 39 pases da sia e foi fundada tambm em 1954; Confdration Africaine de Football, integra 50 pases da frica e foi fundada em 1957; Concacaf (Confederacin Norte-Centroamericana y del Caribe de Ftbol), integra 29
pases da Amrica Central, Caribe e Amrica do Norte e foi fundada em 1961; e
Oceania Football Confederation, integra 8 pases e foi fundada em 1966.
Este futebol, acima caracterizado, tem sua origem localizada (pelos mais diversos
historiadores) na Inglaterra de 1863, ano em que foi fundada a Federao Inglesa de Futebol,
o primeiro rgo dirigente e responsvel pela elaborao das primeiras regras do jogo. No
entanto, estes apenas 134 anos no do conta de explicar a paixo mundial exercida pelo
futebol, teremos que nos aprofundar em sua histria.
1 MURPHY, P., WILLIAMS, J. & DUNNING, E. O futebol do banco dos rus. Violncia dos espectadores num desporto em mudana. Lous / Portugal: Celta Editora, 1994, p. 5.
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Origens do Futebol
A histria da origem do futebol, na verdade, muito mais antiga e diversa. Ela to
antiga e diversa quanto a histria do esporte que, por sua vez, to antiga quanto a presena
do homem no planeta. A histria do esporte ntima da cultura humana, pois por meio dela se compreendem pocas e povos, j que cada perodo histrico tem o seu esporte e a essncia de cada povo nele se reflete.2
Em um breve sobrevo nos estudos de antroplogos, socilogos e historiadores,
poderemos encontrar vrios relatos que atestam a antiguidade da relao entre o homem e
uma bola. Alm disso, tais relatos apontam para uma diversidade, algumas vezes conflitante,
de origens atribudas ao futebol moderno. Apesar desta diversidade vamos poder descobrir
que desde o princpio da civilizao, localizando aqui os primeiros agrupamentos humanos, os
homens desenvolveram o hbito de chutar um objeto arredondado. O antroplogo Johan
Jakobs3 encontrou vestgios, em uma gruta na Nova Guin, de que o homem das cavernas j
possua este hbito.
Neste mesmo lugar, territrio africano, descobriu-se uma evoluo para a prtica de
um jogo semelhante ao futebol. O jogo de futebol na Nova Guin comea com uma das
equipes em desvantagem no placar e o objetivo da disputa empatar o jogo. Quando isto
ocorre o jogo termina e o conflito entre as tribos se encerra.4 O jogo, portanto, aqui,
realizado com o objetivo de eliminar as diferenas, exclui-se atravs dele a existncia de
vencedores ou vencidos entre as tribos que concorrem.
Outros registros do esporte, em diversos lugares do mundo, apontam para uma
diversidade de caractersticas que esta prtica assume. Relatos que so, algumas das vezes,
conflitantes. Vamos poder encontrar, por exemplo, na China e no Japo, dois registros da
prtica de um jogo com bola muito semelhantes em alguns aspectos e muito diferentes em
outros mais importantes.
2 TUBINO, M. O que esporte. So Paulo: Brasiliense, 1993, p. 12. 3 Veja-se RAMOS, Roberto. Futebol: ideologia do poder. Petrpolis/RJ: Ed. Vozes, 1984, p. 25. 4 HELAL, Ronaldo. O que sociologia do esporte. So Paulo: Brasiliense, 1990, pp. 67/68.
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Breve Histria do Futebol 23
Entre os sculos XXVI a.C. e XXV a.C. os chineses praticavam um jogo de bola com
os ps nomeado de Tsu-Chu ou Ts Ts, que significa golpe na bola com o p. A bola era
feita a partir da bexiga ou da pele de algum animal e depois era recheada com crinas de
cavalo, serragem ou algum vegetal mais resistente.
Em um dos trabalhos5 que historia a prtica do Ts Ts, afirma-se que era praticado
como um ritual de guerra. Aps os combates, a tribo que havia vencido praticava um jogo
ritual onde a cabea do chefe inimigo ou as cabeas dos seis guerreiros mais valentes da
aldeia derrotada eram chutadas. Este ritual sagrado era praticado a partir da crena de que
haveria a assimilao pelos ps (base do corpo, lugar da vida) das caractersticas dos
guerreiros derrotados. Alm desta assimilao, o ritual era uma forma de absoluto respeito e
reverncia s vtimas, j que lhes era vedada a vergonhosa condio de prisioneiros. As
caractersticas assimiladas eram as que estavam presentes nas cabeas dos escolhidos como
mais valentes ou do chefe da tribo: inteligncia, coragem, fora, habilidade, liderana e
respeitabilidade.
Outro estudo6 conta que o Tsu-Chu era praticado por soldados do imperador Xeng-Ti
(sculo XXV a.C.). A relevncia, neste estudo, do jogo de bola como uma prtica militar e
disciplinar, caracterstica do esporte que tambm aparecer em outros momentos e lugares. A
prtica consistia em conduzir a bola com os ps ou mos at uma meta. Os soldados
organizavam-se em dois grupos opostos e para atingir o objetivo usavam de violncia. Os atos
de violncia aparecem aqui como sendo inerentes ao jogo e, talvez, pelo seu uso constante
entre os dois grupos de jogadores adversrios, ele servia de preparao blica.
Neste mesmo perodo, no Japo, era praticado um jogo de bola com os ps, o Kemary
ou Kemari. Aqui, tambm, os relatos que encontramos apontam para diferenas e
semelhanas. Em um dos trabalhos a relevncia dada ao aspecto cerimonial e no outro o
Kemari apontado como uma prtica de lazer; em ambos os casos, no entanto, guardam-se
algumas semelhanas.
5 MURAD, Mauricio. Dos ps cabea. Elementos bsicos de Sociologia do Futebol. Rio de Janeiro: Irradiao Cultural, 1996, p. 84. 6 RAMOS, Roberto. Futebol: ideologia do poder. Petrpolis / RJ: Editora Vozes, 1984, p 26.
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Breve Histria do Futebol 24
O Kemary (Ke = jogo e Mary = ps) apresentado como um cerimonial de forte teor
pedaggico e intensa e reconhecida qualidade esttica7, praticado desde o sculo XXVI a.C.
at os dias de hoje. Um cerimonial que consiste numa espcie de controle da bola; na
realizao de, para traduzir por um termo bem prximo a nossa cultura, embaixadinhas.
um ritual de autoconhecimento, automeditao, autocontrole e auto-aprendizagem. Todos
estes domnios servindo para a autodisciplina. De extrema delicadeza, sua plasticidade elegante, a indumentria refinadamente nobre e a marcao de seu ritmo acompanha as melodias tpicas do folclore japons que, discreta e suavemente ao fundo, ambientam a coreografia.8
Em outro trabalho, o Kemari apresentado com uma caracterstica mais ldica. No existia nenhuma manifestao de violncia nem preparao para a guerra. Predominava um clima de lazer. Ocorriam inmeras interrupes para a confraternizao dos jogadores durante os jogos. As regras, tambm, permitiam o uso indiscriminado dos ps e mos. O campo era bem amplo. Media, aproximadamente, 20 metros de comprimento. Cada ngulo recebia uma rgida demarcao, feita atravs de uma variedade de tipos de rvores9
Outra forma ancestral de futebol encontrada na Amrica pr-hispnica. Desde o
sculo XVI a.C. h registros da prtica do Tlachtli. O jogo era um espetculo sagrado: uma
cerimnia que transcendia em seu significado e representava a atualizao do combate
cosmolgico fundamental para a sobrevivncia da humanidade10. Para o povo asteca, o cu
noturno representava o cenrio da eterna guerra entre a luz e a escurido. Em sua cosmoviso,
eles compreendiam que o Sol se alimentava das estrelas, a partir do que, poderia iluminar o
mundo. O campo de bola era o cu, e os anis (local onde a bola deveria entrar) representavam os lugares de onde sai e se pe o Sol. A marca onde se assinala o centro do campo de bola simbolizava o lugar do cu onde o Sol sacrificava diariamente a Lua e as estrelas, chamado de Itzompan (lugar dos crnios), representado por uma caveira. A linha central que divide o campo do jogo de bola representava o limite que separava as foras opostas em luta: a luz e a escurido, o dia e a noite.11
Os jogadores utilizavam-se de todas as partes do corpo, principalmente os quadris,
para golpear a bola em direo dos anis. Duas equipes competiam: uma representava o sol (a
luz, o dia) e a outra representava a lua (a noite, a escurido). Ao final da cerimnia, um dos
jogadores era decapitado como oferenda aos deuses.
7 MURAD, Mauricio. Dos ps cabea. Elementos bsicos de Sociologia do Futebol. Rio de Janeiro: Irradiao Cultural, 1996, p. 85. 8 Ibid. 9 RAMOS, Roberto. Futebol: ideologia do poder. Petrpolis / RJ: Editora Vozes, 1984, p. 26. 10 LEMOS, M. T. T. B. Tlachtli, o jogo de bola na Mesoamrica. In Pesquisa de Campo, Revista do Ncleo de Sociologia do Futebol, UERJ, n 1, junho de 1995. APUD MURAD, Mauricio. Dos ps cabea. Elementos bsicos de Sociologia do Futebol. Rio de Janeiro: Irradiao Cultural, 1996, pp. 85/86. 11 Id. p. 86.
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Breve Histria do Futebol 25
... Ainda h dvidas se o jogador decapitado era da equipe vencedora ou perdedora. No final do jogo, o jogador, diante do juiz (sacerdote), ajoelhava-se e tinha a cabea decapitada. O sangue escorria como serpente pelo seu corpo, oferta divina aos deuses. Seu corpo era puxado, dando voltas no campo, ensanguentando o espao para diviniz-lo.12
Ao longo do tempo o Tlachtli perde este carter sagrado, cosmognico e ritual. ... os mexicanos dessacralizam o espetculo do sagrado e o jogo de bola chegou a ter um carter decisivo para as resolues de problemas polticos, militares e econmicos que surgiam nos diversos calpullis ou senhorios.13
Aproximando-nos agora do continente europeu, onde hoje localizamos o bero da
modernidade no apenas a do futebol , vamos encontrar tambm diversos registros de
formas ancestrais de futebol nas civilizaes clssicas da Antiguidade Ocidental. Os registros
vo apontar para duas direes principais: o jogo de bola como atividade ldica que evolui
para uma prtica militar e disciplinar e o jogo de bola como atividade ritualizada e sagrada.
Num dos estudos vamos encontrar o relato de que os soldados romanos de Csar
adaptaram um jogo de bola que era praticado pelo gregos o Epyskiros. Originalmente este
tido como prtica ldica da nobreza e aristocracia gregas, mas a adaptao pelos soldados
invasores o torna uma prtica militar. Os soldados de Csar jogavam o Harpastum.
Adaptaram este jogo de uma forma bastante interessante. Alguns pesquisadores vo nos
apontar que (...) os romanos se aproximaram do esporte moderno, na medida em que os jogadores se posicionavam dentro do espao de jogo, como defensores, meias de ligao e atacantes. Sabe-se que os romanos dominaram a Bretanha. Por este fato, alguns pesquisadores afirmam que eles introduziram o jogo na Inglaterra, que considerada o bero do futebol moderno.14
Em outro trabalho, o Epyskiros e o Harpastum so apresentados como formas
ancestrais de futebol, que visavam integrar a tica (ethos) e a moral (mores) tanto da
sociedade grega como da sociedade romana. O Epyskiros aparece na Grcia do sculo IV a.C.
e o Harpastum aparece em Roma quase trs sculos depois. Ambos eram jogados de forma
mais ou menos equivalente. Uma bola de couro cru tinha que ser conduzida principalmente
com os ps e, eventualmente, com o auxlio das mos pelos jogadores at a cidade do
oponente. Quem alcanava esta meta era declarado vencedor. Era praticado, quase que
exclusivamente, pela nobreza e pelas aristocracias das emergentes culturas grega e romana.
12 LEMOS, M. T. T. B. Tlachtli, o jogo de bola na Mesoamrica. In Pesquisa de Campo, Revista do Ncleo de Sociologia do Futebol, UERJ, n 1, junho de 1995. APUD MURAD, Mauricio. Dos ps cabea. Elementos bsicos de Sociologia do Futebol. Rio de Janeiro: Irradiao Cultural, 1996, pp. 86/87. 13 Id., p. 87. 14 PIMENTA, Carlos Alberto Mximo. Torcidas Organizadas de Futebol. Violncia e auto-afirmao. Aspectos da construo de novas relaes sociais. Taubat / SP: Vogal Editora, 1997, p. 32.
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Ao longo do tempo foi ganhando contornos mais populares e tornou-se parte integrante das
festividades. Na Grcia, o Epyskiros foi modalidade olmpica e, nas ocasies das festas (bacanais) em homenagem ao deus do vinho, Baco, podia ser praticado pela gente do povo. Por esta razo, o jogo, agora dionisaco (Dionsio Baco), torna-se livre, solto, espontneo e belo Baco Lber, tambm, e assim conhecido, porque, pelo vinho, torna-se livre de preocupaes, de amarras racionais. Mas, praticado pela gente do povo, o jogo torna-se, por outro lado, bem mais vigoroso e, s vezes, at mesmo violento. Isto porque simbolizava a glorificao bquica, celebrada por Jpiter: sob a forma de leo. Baco lutou contra os gigantes que tentaram escalar o cu e, por isso, recebeu de Jpiter a torcida incomparvel Evoh! Evoh! Valor, filho meu, valor!.15
Da Grcia ele transferido para a civilizao romana. Esta transferncia, segundo
MURAD, de carter cultural. Teria ocorrido atravs dos Bacanais. Os Bacanais tambm
teriam acontecido em Roma e com eles o jogo de bola ganhou novos contornos. No entanto,
por seu carter liberador, ele logo foi alvo de sanes e proibies pelo Senado romano. Vai
ressurgir apenas no sculo XIV atravs da nobreza italiana e ser conhecido como gioco del
calcio. Ressuscitado como ritual de lazer para a nobreza, ganha os contornos de uma
organizao mnima, que nos lembra a modernidade do esporte. O gioco del calcio, na Idade Mdia, era jogado por dezenas de pessoas, em cada um dos lados. Quando se queria organizar melhor a atividade, dando traos mais finos competio, o nmero de atletas era limitado entre 25 e 30 nobres por equipe. Havia, portanto, uma depurao quantitativa e, ao mesmo tempo, uma seleo por classe social. O nmero de jogadores considerado ideal era o de 27, assim distribudos: 15 corredores, 5 sacadores, 4 dianteiros e 3 zagueiros. (...) O gioco del calcio jogado num campo de 120m por 180m, com duas balizas de madeira em cada extremidade. A meta a de fazer a bola (de couro e cheia de ar) passar por cima das traves.16
Com relao s razes britnicas da origem do futebol, os pontos de vista dos
investigadores sobre o assunto no so inteiramente condizentes. Alguns propem que o
futebol teria se originado da prtica do gioco del calcio italiano. No sculo XVII, bem mais
popular e agressivo, foi levado para a Inglaterra pelos partidrios de Carlos II, exilados na
Itlia, quando houve a restaurao do trono.17 Outros historiadores vo propor que formas
diversas de jogo de bola eram praticadas na Inglaterra muito antes do sculo XVII. No
apenas na Inglaterra, mas tambm em quase todo o continente europeu.
Reconhecidamente, o futebol moderno tem origem na Inglaterra; a prtica do jogo do
qual ele teria se originado, contudo, parece no ser exclusiva deste pas. Na Idade Mdia
encontram-se registros de jogos de bola populares muito semelhantes ao futebol, com uma
15 MURAD, Mauricio. Dos ps cabea. Elementos bsicos de Sociologia do Futebol. Rio de Janeiro: Irradiao Cultural, 1996, p. 89. 16 Id., pp. 90/91. 17 Id., p. 90.
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Breve Histria do Futebol 27
diversidade de nomes, que eram praticados no apenas na Inglaterra, como tambm nos pases
continentais europeus.
Eram jogos populares extremamente violentos que aconteciam junto s festividades
religiosas. Por sua popularidade, capacidade de aglutinar grande nmero de pessoas e pela
violncia que os marcavam foram alvo de diversas proibies por parte dos vrios
governantes reais ao longo de toda Idade a Medieval. Na Idade Mdia, porm, o futebol era um dentre uma variedade de nomes usados na Gr-Bretanha para se designar uma classe de jogos populares jogos de gente comum que eram, se quisermos estabelecer uma comparao, sem regras, rudes e selvagens. Outros nomes por que era designado eram o camp ball, o hurling e o knappan. Entre as variantes continentais incluam-se o la soule em Frana, o rouler la boule e o la souile na Blgica e o gioco della pugna em Itlia.18
A diversidade de pases praticantes do futebol atesta o fato de sua origem ser muito
mais ampla do que a crena do senso comum e tambm aponta direes possveis para
explicar a popularidade do esporte no mundo. No entanto, para podermos acompanhar o
desenvolvimento do futebol de sua antiguidade at a modernidade, precisamos circunscrever
um determinado local, onde possamos focalizar o desenvolvimento das relaes sociais,
polticas e culturais humanas, enfim que esto envolvidas em tal atividade.
Este local, porque tambm possui, segundo os estudiosos, maior quantidade e
qualidade de registros sobre este esporte, a Inglaterra. Dizem alguns que a primeira bola
chutada na Inglaterra foi a cabea de um odiado invasor dans19.20
A verso moderna do futebol, portanto, vai encontrar a sua origem na Inglaterra. Era
um esporte praticado por grupos sociais completamente despossudos de qualquer
organizao formal. Era um esporte popular, no sentido que a palavra povo adquire na Idade
Mdia. Apresenta-se como uma tradio inventada possuindo as caractersticas de um
momento de pura expresso de violncia interna e externa aos grupos sociais e tambm
caractersticas educativas e recreativas.
18MURPHY, P., WILLIAMS, J. & DUNNING, E. O futebol do banco dos rus. Violncia dos espectadores num desporto em mudana. Lous / Portugal: Celta Editora, 1994, p. 9. 19 Dans o termo em francs utilizado para designar os brbaros originrios da atual Dinamarca. 20 SANTOS, Joel Rufino dos. Histria poltica do futebol brasileiro. So Paulo: Brasiliense, 1981, p. 12.
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Breve Histria do Futebol 28
O jogo vai aparecer nos festivais religiosos, de uma forma dbia. Aparece tanto como
um ritual religioso quanto como um esporte. Apesar disso, a sua prtica tinha um componente
fundamental na violncia entre as faces em disputa. Participavam desta disputa as crianas,
os jovens, os adultos, os homens e as mulheres.
Em vrias de suas verses medievais football, campball, hurling e knappan a
bola era movimentada, atirada e dominada com os ps e tambm com o auxlio de outros
instrumentos, tais como mos e tacos. O nmero de jogadores participantes era extremamente
varivel, dependendo de regras que eram definidas por cada grupamento social, podendo, em
alguns locais, ultrapassar at mesmo o nmero de mil jogadores de cada lado.
A igualdade entre os lados em disputa no parecia ser um fator importante e as regras
no existiam na forma escrita. Sua transmisso era oral e, alm disso, eram especficas a cada
lugar. Os jogos eram disputados tanto nas ruas das cidades quanto em campo aberto. Apesar
das variaes locais, todos estes jogos populares tinham uma caracterstica em comum: eram
jogos-luta em que se permitiam e/ou toleravam as vrias formas de violncia fsica tpicas da
poca medieval. Neste jogo vingam-se disputas privadas, de modo que todos, at os mais humildes, tiram partido. Ningum fica de fora, todos apoiam um ou outro lado, e assim podemos s vezes ver quinhentos ou seiscentos homens nus a baterem-se no meio dum pasto, ... ningum deixa de alinhar por um dos lados, pelo que podemos ver irmo a bater em irmo, amigo contra amigo, armados de bastes, pedras e punhos para baterem nos companheiros, os cavaleiros irrompem por entre as tropas apeadas, cada um armado com o maior cacete que conseguiu encontrar, mais prprio para o abate de bois e cavalos do que para um jogo de homens ... depois de desferido o golpe, todos se juntam em molhada, atacando-se com os desmedidos bastes sem pouparem cabeas, rostos nem qualquer outra parte do corpo. Os homens apeados juntam-se refrega, vibrando de fria a ponto de esquecerem de que tudo isto um jogo, e combatem at ficarem sem flego. ... um jogo em que no pode haver espectadores, todos tm de ser actores, pois assim manda o costume e a cortesia do jogo, pois se aparecer algum tendo como nica finalidade assistir disputa ... se der consigo no meio das tropas feito jogador, apanha com uma ou duas Gastonadas se estiver a cavalo ou uma boa dzia de murros se estiver a p, sendo esta a cortesia oferecida aos estranhos, apesar destes nada poderem esperar daqueles homens.21
Por sua extrema violncia e capacidade de aglomerar as pessoas, o jogo, durante a
Idade Mdia, foi alvo de diversas proibies por parte das autoridades. Existem muitos
documentos atestando mortes ocorridas durante estes jogos ao longo dos anos medievais. De
1314 at 1615 foram publicados os mais variados decretos reais de proibio ao jogo que, no
entanto, continuava a ser disputado. Algumas pessoas foram aprisionadas por sua prtica. A
21 MURPHY, P., WILLIAMS, J. & DUNNING, E. O futebol do banco dos rus. Violncia dos espectadores num desporto em mudana. Lous / Portugal: Celta Editora, 1994, p. 31.
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Breve Histria do Futebol 29
ttulo de ilustrao, em 1314, em Londres, uma proibio, elaborada pelo interino do rei
Eduardo II, foi publicada visando impedir a realizao dos jogos de futebol dentro das
cidades. Manifesto para a Preservao da Paz... Atendendo a que o nosso Senhor o Rei se dirige s regies da Esccia, na sua guerra contra os inimigos e nos ordenou em especial que mantivssemos estritamente a paz... E atendendo a que existe grande tumulto na cidade por motivo de certas desordens que ocorrem em grandes jogos de futebol realizados nos espaos do domnio pblico, dos quais muitos males podem eventualmente surgir Deus nos defenda ordenamos e proibimos, em nome do Rei, sob pena de priso, que tal jogo daqui e diante seja praticado dentro da cidade.22
Por estas razes, s vezes, o futebol entra para a clandestinidade. Torna-se
eventualmente um esporte marginalizado diante da impossibilidade legal da bola rolar durante
os festivais religiosos e nos terrenos urbanos. No entanto, apesar de sua ilegalidade eventual,
o futebol sobrevive. Comear a ser jogado dentro das escolas e universidades. Para poder ser
praticado no interior do ambiente educacional ele, necessariamente, sofrer um refinamento e
ganhar contornos diferenciados, assumindo uma postura cuja prtica requer o respeito s
regras e aos cdigos. , assim, apropriado pelo Estado de maneira militar e disciplinar.
conferido aos praticantes do futebol o mesmo status que possuam os militares da poca:
gentleman. O futebol se torna, assim, um esporte de gentlemen.
Neste momento que o futebol, a partir de uma aceitao social mais ampla das regras
definidas nos interiores das escolas e universidades, transforma-se em um esporte de elite.
Inmeras e diferentes regras foram surgindo nas vrias instituies de ensino.
Entre 1810 e 1840, a multiplicao das instituies de ensino que aderiram ao novo
jogo, bem como a consequente proliferao de regras, impuseram a necessidade de
regulamentao. Universitrios de Cambridge, aps uma srie de reunies realizadas na Old
Freemansons Tavern, fundam no histrico ano de 1863, a Football Association. Definem um
pequeno cdigo de regras bsicas para o esporte, que ir sofrendo alteraes ao longo dos
anos, e definem as formas de disputa do jogo. A delimitao de onze jogadores em campo
surge em decorrncia da quantidade de escolas e universidades que tinham este esporte sendo
praticado em seu interior.
22 RILEY, H. T. (ed.) Munimenta Gildhallae Londoniensis, Rolls Ser., n 12, Londres, 1859-62, Vol. III, Apndice II, excertos do Liber Memorandum, pp. 439-41, texto latino e anglo-francs, com traduo inglesa do anglo-francs. APUD ELIAS, Norbert. A busca da excitao. Lisboa/Portugal: Difuso Editorial, 1985, p. 258.
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Breve Histria do Futebol 30
O momento da apropriao disciplinar, estatal e da oficializao do futebol o mesmo
momento de vrias das transformaes polticas, sociais e econmicas no mundo. Mudanas
ocasionadas por acontecimentos tais como a Revoluo Francesa e a Revoluo Industrial. A
Europa sai da Idade Mdia e entra na modernidade. O fim da sociedade de organizao
feudal, abrindo espao uma sociedade de organizao capitalista, fez surgir profundas
transformaes na economia, na poltica, na cultura e, principalmente, nas estruturas da
sociedade. A institucionalizao de uma nova estrutura significou muito mais do que uma
simples mudana no modo de produo. Trouxe consigo, tambm, uma desenfreada
acelerao da concentrao da massa humana nos centros urbanos e uma busca pelas benesses
materiais trazidas pela industrializao. Todas as instituies sociais transformam-se de
acordo com as necessidades de produo impostas pelo novo regime econmico e poltico.
Aprisionado no interior dos colgios e das universidades, o futebol adapta-se aos
novos sistemas. Torna-se, assim, um esporte organizado e codificado por regras que visavam
coibir a sua violncia original e se firma como um esporte terminantemente burgus. Ele
surgiu na sociedade completamente despido de artifcios institucionais e, medida que
ganhou popularidade, tornou-se vulnervel s articulaes polticas, econmicas e sociais, que
as novas ordens mundiais exigiram. O futebol passa por mutaes: de jogo muitas vezes
proibido na Idade Mdia passa a diverso burguesa, no incio do capitalismo e,
posteriormente, ... transforma-se, por fora dos interesses do Estado ingls sabedor do xtase da massa , na maior tradio popular da Inglaterra que passa a definir cada vez mais um palco maior em que se representam as atividades fundamentais das vidas dos sditos e cidados.23
No momento em que o futebol oficializado pela Football Association, ganha outros
contornos sociais, diferentes daqueles que o caracterizavam como prtica de elite ou como
prtica popular. No entanto, no fcil estabelecer o momento preciso em que o futebol
adotado pela massa na Inglaterra. Segregado que foi nas escolas e nas universidades,
desenvolveu-se primeiramente como um esporte amador, moderador de carter, disciplinador,
burgus e de classe mdia. Na medida em que o futebol atinge a profissionalizao,
rapidamente adequa-se novamente ao gosto popular.
23 PIMENTA, Carlos Alberto Mximo. Torcidas Organizadas de Futebol. Violncia e auto-afirmao. Aspectos da construo de novas relaes sociais. Taubat / SP: Vogal Editora, 1997, p. 37.
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Breve Histria do Futebol 31
A popularizao do esporte vai acontecer aproximadamente a partir de 1870. A
Football Association a responsvel direta pela codificao das regras do esporte e, assim, ele
assume uma linguagem fcil e universal. O futebol vai ganhando contornos prprios para se
tornar parte importante da cultura de massa popular.
O futebol se transforma, aos poucos, numa instituio social slida, que se baseia em
regras e ritualizaes tornadas universais. Como tal, foi capaz de aglutinar no mundo um
grande nmero de adeptos aficcionados e apaixonados. Vejamos, por exemplo, o nmero de
espectadores de uma Copa do Mundo. Segundo os clculos da FIFA, uma platia global acumulada de 31 bilhes de pessoas assistiu aos 52 jogos da Copa 5 milhes a mais que o Mundial da Itlia, em 1990. Foi a primeira vez, por exemplo, que o Vietn viu a Copa ao vivo.24
O futebol, enquanto instituio social, adquire uma caracterstica extremamente
interessante e que podemos encontrar denunciada nos mais diversos trabalhos dos
pesquisadores consultados. O futebol apresenta-se como elemento independente das relaes
nas sociedades onde se desenvolveu, a ponto de ser considerado, simplesmente, um esporte.
Esta independncia estrutural esconde a histria de seu prprio desenvolvimento e procura, de
certa forma, retomar a ancestralidade e presena do jogo em todas as culturas, apelando para
um saudosismo e romantismo. Mas, procedendo desta forma, oculta e aliena as relaes
sociais, polticas e econmicas que determinam o fenmeno.
Por outro lado, a estrutura do futebol apresenta algo bastante incomum que o
transforma num grande atrativo mundial. Uma atrao que se mostra relativamente
independente do nvel do desenvolvimento dos pases e das caractersticas scio-polticas dos
respectivos governos. Tal atrao deve ser buscada na incorporao de prticas fsicas
burguesas e aristocrticas, de respeitabilidade s regras, aos adversrios, rbitros e cdigos.
Na medida em que o futebol impe aos seus praticantes a iluso de igualdade, ele ultrapassa
as fronteiras do esporte e ganha as massas populares, perpetuando-se definitivamente entre
elas como o grande fenmeno do sculo.
Sua estrutura, que determina uma linguagem universal e civilizada, escora-se nos
seguintes aspectos:
24 DUARTE, Marcelo. O guia dos curiosos. Esportes. So Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 259.
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Breve Histria do Futebol 32
1. igualdade numrica entre os adversrios e restrio para ambos os lados, do nmero de jogadores onze presentes no campo em qualquer momento do jogo; 2. estrita e clara demarcao do papel a desempenhar por jogadores e espectadores; 3. especializao no domnio da bola com os ps, peito e cabea e, no caso do guarda-redes, ainda com as mos. (...); 4. regulamentao e rgos dirigentes centralizados, as Federaes de Futebol dos diferentes pases (...); 5. um conjunto de regras escritas que exigem dos jogadores o auto-domnio em matria de contactos fsicos e uso da fora fsica e que probem o uso desta sob certas formas; 6. sanes claramente definidas, como por exemplo os livres e grandes penalidades aplicadas queles que violam as regras, e uma forma de punio mxima para graves e persistentes violaes das regras: a possibilidade de expulso de jogadores, a que se podem juntar perodos de suspenso e/ou multas em dinheiro; e 7. a institucionalizao de papis especficos sobre quem compete o controlo e a fiscalizao do jogo, isto , os papis de rbitro e fiscal de linha.25
Dentro da moderna sociedade competitiva tal estrutura, como quaisquer outras,
adquire um vis poltico e, desta forma, o futebol tambm dinamiza os conflitos sociais,
escorado na aceitabilidade das regras do jogo e no esprito da competio esportiva.
Fenmeno scio-cultural de grande importncia neste final de sculo, firma-se como uma das
instituies sociais mais slidas do mundo.
A aceitabilidade das regras, que tm incio com a fundao da Federao Inglesa de
Futebol e continuidade com as transformaes sociais e econmicas, expande-se na medida
em que o futebol comea a ser praticado no interior das fbricas inglesas. Praticado
inicialmente pelo operrios como atividade de lazer, rapidamente apropriado pelo sistema
que passa a incentiv-los e organizar, desta forma, os espaos. Na medida em que o futebol transpe os limites da exclusividade e da vaidade fsica burguesa, ultrapassando os muros das escolas pblicas e das universidades, rapidamente deixa de ser uma atividade amadora. O futebol profissionalizado atinge o corao das massas proletrias e o marco fundamental da popularizao do jogo foi o deslocamento de uma brincadeira amadora burguesa para uma atividade ldica proletarizada de reivindicaes econmicas.26
As fbricas inglesas passam a incentivar o esporte, contribuindo para sua
profissionalizao, abrem espao para que seus operrios joguem, utilizam o jogo, inclusive,
como doutrina no espao de lazer. Abrem, assim, dentre outras possibilidades, perspectivas
para a melhoria da qualidade de vida do jogador / trabalhador, proporcionando-lhe
respeitabilidade, em razo de sua habilidade fsica. A indstria se torna a mola propulsora na
popularizao do futebol. altamente provvel que os jogadores de futebol tendessem a ser
recrutados entre os operrios habilidosos.27 O futebol, na sua verso moderna, foi criado,
mantido e incentivado pelas fbricas e indstrias do mundo inteiro.
25 MURPHY, P., WILLIAMS, J. & DUNNING, E. O futebol do banco dos rus. Violncia dos espectadores num desporto em mudana. Lous / Portugal: Celta Editora, 1994, pp. 32/33. 26 PIMENTA, Carlos Alberto Mximo. Torcidas Organizadas de Futebol. Violncia e auto-afirmao. Aspectos da construo de novas relaes sociais. Taubat / SP: Vogal Editora, 1997, p. 38. 27 Ibid.
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Breve Histria do Futebol 33
Os britnicos criaram a tradio de construir, nos arredores e at mesmo no espao
interno das fbricas, campos para a prtica de futebol. Na exata medida em que os Grmios
dos trabalhadores se organizavam, crescia o interesse, de ambas as partes proprietrios e
trabalhadores , no incentivo do esporte. Associando esta prtica poltica proliferao das
indstrias britnicas e, tambm, europias, no mundo inteiro, vamos ter a forma precisa como
o futebol, em sua verso moderna, se propagou pelos quatro cantos do planeta. O futebol neste contexto histrico de grandes transformaes recebe caractersticas prprias e universais, gerenciadas por lgicas racionais, regras e cdigos, de modo que sua introduo em territrios fronteirios ou nas demais sociedades, se fez, na maioria das vezes, por expatriados ingleses e at por intermdio de fbricas de administrao britnica. O esporte breto entra na cultura brasileira atravs de um filho de britnicos Charles Miller que estudou na Europa e trouxe o jogo para o Brasil e, em terra frtil, proliferou entre as massas populares.28
O futebol, portanto, apesar da variedade presente nas verses sobre a sua origem e
apesar, tambm, do saudosismo com o qual fazem-se as referncias a ele, um esporte
extremamente representativo e ilustrativo das formas pelas quais as relaes sociais se
estabelecem. As sociabilidades possveis aos sujeitos numa sociedade esto todas elas
expressas atravs dos mais diversos significados que a prtica do jogo possui.
Explorando a diversidade de verses sobre sua origem foi possvel perceber aspectos
do esporte futebol como um ritual sagrado, ou como uma diverso medieval e, logo,
violenta, ou como uma prtica disciplinar, entre tantos outros antes escondidos por trs de
mscaras saudosistas. Aspectos que nos possibilitam repensar o tom romntico e saudosista
com o qual, atualmente neste momento de novas transformaes nas relaes estabelecidas
dentro do futebol o esporte significado pelos cronistas esportivos, dirigentes e esportistas.
Assim sendo, da mesma forma como fizemos em relao Inglaterra, vamos proceder em
relao ao Brasil.
28 PIMENTA, Carlos Alberto Mximo. Torcidas Organizadas de Futebol. Violncia e auto-afirmao. Aspectos da construo de novas relaes sociais. Taubat / SP: Vogal Editora, 1997, p. 39.
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Breve Histria do Futebol 34
O Futebol no Brasil
necessrio fazer uma considerao antes de relatarmos as verses conflitantes sobre
a origem do futebol no Brasil. Quando se estuda o tema futebol encontra-se um material
extremamente vasto e abrangente produzido no meio acadmico, no mbito especfico deste
esporte, apenas na Europa. H grande quantidade e qualidade de material sobre o futebol nos
pases e culturas europias. No entanto, quando queremos pensar este esporte no Brasil, suas
influncias dentro da cultura, economia, poltica e sociedade brasileira, ou mesmo sua
histria, iremos encontrar, comparativamente, um nmero reduzido de estudos e trabalhos
acadmicos. As cincias humanas brasileiras, apenas muito recentemente, tm voltado suas
preocupaes em direo ao futebol. Por estas razes, o exame que se segue sobre a histria
dele em nosso pas se apresenta, como toda a histria, com algumas lacunas. No entanto,
objetivo aqui preencher algumas das lacunas deixadas pela histria oficial ou, pelo menos, a
que aceita como tal do futebol em terras brasileiras. O esporte contribui para desvendar as facetas histricas, sociolgicas, psicolgicas, antropolgicas e polticas de uma sociedade, abrindo-se possibilidade de caminhar, simultaneamente, na descoberta de segredos diversos. (...) Ele envolve inmeros interesses de cunhos ideolgicos, econmicos, religiosos, entre outros.29
A histria oficial da origem do futebol no Brasil nos conta que o paulistano do Brs,
Charles Miller, o responsvel direto pela introduo da instituio do futebol. Nascido em
1874 e filho de ingleses e escoceses, foi, aos nove anos de idade, estudar na Inglaterra.
Retornou ao Brasil em 1894 trazendo em sua bagagem duas bolas para a prtica de futebol, de
fabricao inglesa, da marca Shoot, dois uniformes completos, uma bomba de ar, uma agulha
e um pequeno livro contendo as regras bsicas tais como haviam sido definidas poucos anos
antes pela Federao Inglesa de Futebol alm das experincias que teve como jogador de
futebol nas escolas inglesas pelas quais passou. Excelente jogador, habilidoso no trato da bola e artilheiro implacvel. Em 25 partidas oficiais de seu colgio, na Inglaterra, marcou 41 gols, uma admirvel mdia de 1,64 gol por jogo. Foi convocado entre os melhores atletas para jogar no time do Southampton, uma espcie de seleo regional. Chegou a disputar, tambm, uma partida, na qual teve brilhante atuao, contra a famosa equipe do Corinthian, que, anos depois, inspirou a criao do Corinthians Paulista.30
29 PIMENTA, Carlos Alberto Mximo. Torcidas Organizadas de Futebol. Violncia e auto-afirmao. Aspectos da construo de novas relaes sociais. Taubat / SP: Vogal Editora, 1997, p. 39. 30 MURAD, Mauricio. Dos ps cabea. Elementos bsicos de Sociologia do Futebol. Rio de Janeiro: Irradiao Cultural, 1996, p. 95.
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Breve Histria do Futebol 35
De volta ao Brasil, aos 20 anos de idade, com os instrumentos necessrios para a
prtica do jogo e o gosto por ele adquirido durante sua estada na Inglaterra, comeou a formar
amizades e abrir caminhos para a prtica do esporte nos tradicionais clubes dos ingleses que
haviam na cidade de So Paulo. Rapidamente, o esporte ganhou alguma popularidade entre a
elite da poca.
Charles Miller organizou e participou do primeiro jogo, vencido pelo seu time, o
So Paulo Railway. Trabalhou incansavelmente, como um verdadeiro apaixonado, pela
implantao, difuso e estruturao do futebol. Primeiro, atuou durante muito tempo como
jogador. Depois atuou como rbitro por mais alguns anos at falecer em 1953, aos 79 anos de
idade. Uma vida inteiramente dedicada ao esporte.
A histria acima no est completa e tampouco a nica verso sobre a origem do
futebol em nosso pas. certo que Charles Miller atribuda a responsabilidade direta pela
introduo do futebol no pas, ao menos no que concerne s verses oficializadas e
institucionalizadas deste esporte. No entanto, existem outras verses que nos falam da
influncia que os ndios tiveram no esporte, de um desenvolvimento marginal do futebol nas
grandes cidades e que nos fornecem concepes alternativas sobre qual teria sido realmente o
primeiro jogo de futebol realizado em terras brasileiras. Histrias que no podem ser
minimamente negligenciadas devido ao seu carter explicativo da influncia que o futebol
exerce na cultura e das prprias transformaes que ele sofreu ao longo de pouco mais de cem
anos em terras brasileiras.
muito conhecido o fato mais amplo de que os ndios brasileiros influenciaram muito
a cultura brasileira no que se refere ao gosto, extremamente popular, pelos jogos e brinquedos
infantis de arremedo de animais. A popularidade destes jogos, s vezes no to infantis, como
o jogo do bicho, atesta esta afirmao. O jogo do bicho, como conhecido, consiste em
apostar dinheiro em nmeros que, cada grupo de quatro, correspondem a animais,
predominantemente da fauna brasileira. Este jogo de azar, entranhado que est na cultura,
encontra razes para sua imensa popularidade, entre outros fatores, nos resduos animistas e
totmicos das culturas indgenas brasileiras, e ganha um grande reforo com os resduos
animistas e totmicos das culturas indgenas africanas.
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Breve Histria do Futebol 36
No entanto, o que pouco conhecido o fato de que estes mesmos ndios
influenciaram sobremaneira o mais legtimo esporte breto exatamente no instrumento que o
principal objeto de toda a disputa a bola. Pode-se praticar o futebol e quaisquer condies
climticas, geogrficas e espaciais e com qualquer quantidade de pessoas, mas nunca sem a
bola. H ... uma contribuio ainda mais positiva do menino amerndio aos jogos infantis e esportes europeus: a bola de borracha por ele usada num jogo de cabeada. Este jogo brincavam-no os ndios com uma bola, provavelmente revestida de caucho, que aos primeiros europeus pareceu de um pau muito leve; rebatiam-na com as costas, s vezes deitando-se de borco para faz-lo.31
Todas as bolas que apareceram nos diversos relatos sobre as origens do futebol eram
feitas de pele animal e recheadas com algum material vegetal ou animal. As bolas utilizadas
pelos ndios brasileiros era feita de borracha e era muito leve em comparao com as outras.
Desta forma, no de se estranhar que a bola confeccionada pelos ndios tenha percorrido,
atravs dos portugueses, toda a Europa. As prprias bolas que Charles Miller trouxe ao pas j
possuam a borracha como um dos materiais utilizados em sua confeco. Eram bolas de
couro, costuradas por fora, que tinham uma cmara de ar, feita de borracha, por dentro.
Existem ainda registros mostrando a presena desta bola ou de alguma bola que deriva sua
tecnologia desta nas prticas do futebol no oficial, em terrenos de vrzea e nas ruas das
grandes cidades, quando o futebol j era prtica oficializada no Brasil.
Alm da influncia dos ndios, outro ponto que merece destaque uma certa
impreciso no que diz respeito a data e a quem trouxe o futebol para o Brasil. Talvez
possamos acompanhar os estudiosos que designam Charles Miller como o responsvel por
este feito, mas apenas no que tange introduo de uma instituio: algo muito mais amplo e
abrangente do que a simples prtica do jogo de futebol. No entanto, antes de ele retornar ao
Brasil, vindo da Inglaterra, j se encontram relatos de ocorrncias de jogos de futebol. A introduo do futebol no Brasil polmica. H inmeras verses. Alguns sustentam que os marinheiros ingleses chegaram ao Rio de Janeiro em 1872, com uma bola. L, teriam realizado as primeiras partidas. Outros insistem que o primeiro jogo ocorreu em So Paulo, em 1894. Ele teria reunido os operrios da Companhia de Gs e os ferrovirios da So Paulo Railway. Os ferrovirios venceram por 4 a 2.32
31 FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala. Braslia: Editora Universidade de Braslia, 1963. APUD MURAD, Mauricio. Dos ps cabea. Elementos bsicos de Sociologia do Futebol. Rio de Janeiro: Irradiao Cultural, 1996, p. 92. 32 RAMOS, Roberto. Futebol: ideologia do poder. Petrpolis / RJ: Editora Vozes, 1984, pp. 26/27.
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Breve Histria do Futebol 37
Sempre que aportavam, os marinheiros ingleses, em seus momentos de folga,
praticavam o futebol. H registros de alguns jogos realizados por eles no ano de 1878 nos
jardins da residncia da Princesa Isabel, a pedido dela que, segundo consta, adorava esportes.
Tambm existem relatos mostrando a prtica de futebol por funcionrios das fbricas de
origem britnica, que aqui existiam. Podemos inferir, portanto, que para alm da histria
oficial, o futebol no Brasil apresenta uma histria marginal, que vai sendo construda pelas
mais diversas influncias. Assim, poderemos inferir tambm que esta histria oficial
fundamenta-se em alguns valores que precisam ser explicitados. uma histria que justifica o
atual momento poltico do futebol onde se formam verdadeiros lobbies nacionais para
defender um sistema e uma estrutura fracassadas33. Mas todo lado tem dois lados, e, paralelamente, a esta histria oficial, elitista e racista, vinha sendo gestado, no seio das camadas populares, um processo subterrneo, clandestino, de paixo, divulgao e prtica futebolsticas. Driblando com engenho e arte todas as interdies, por meio da vrzea, das peladas e da periferia, pretos, mulatos e brancos, pobres engendraram uma posio firme e marcante historicamente: a da apropriao e inverso do cdigo vigente, isto , a popularizao e democratizao do futebol. Este processo, entranhado na realidade brasileira, atravessar os anos da Belle poque, mais ou menos no anonimato (destaque para a fundao do Corinthians, em 1910, de origem realmente popular), e ver instalada e reconhecida sua vigncia, a partir da dcada de 20, mais precisamente, 1923, quando o Vasco da Gama foi campeo carioca campanha extraordinria, quase invicta, perdeu somente uma partida para o Flamengo, por 3x2, no chamado Jogo das Ps de Remo, onde os robustos remadores rubro-negros agrediam com as ps de remo os torcedores vascanos.34
O futebol nasce elitista e racista em 1894, seis anos aps a Abolio da Escravatura.
Praticado apenas pelos ingleses e seus descendentes, estudantes brasileiros do College
Mackenzie, logo foi sendo praticado tambm por outros membros da elite. Em 1897, o alemo
Hans Nobiling organiza um time e rompe com a exclusividade dos britnicos. Aos poucos
foram se organizando os primeiros clubes e em 1902 aconteceu o primeiro Campeonato
Paulista, com a participao de apenas cinco clubes. Todos eles formados apenas por
jogadores amadores originrios da elite paulistana da poca. Nenhum jogador negro ou
mesmo pobre atuava em algum clube.
Esta situao que caracteriza o futebol como esporte elitista e racista permanece ao
longo de mais de trs dcadas. Aos poucos, neste perodo, com o crescimento dos
campeonatos, com a competitividade dos times e a criao de alguns outros times
(Corinthians e Vasco, por exemplo) de origem popular, o futebol ganha outros contornos.
33 Veja-se a este respeito o debate, na sociedade brasileira e, principalmente, no Congresso Nacional, que se prolongou por mais de um ano, em torno das proposies de modernizao do esporte contidas no que ficou conhecido como Lei Pel. 34 MURAD, Mauricio. Dos ps cabea. Elementos bsicos de Sociologia do Futebol. Rio de Janeiro: Irradiao Cultural, 1996, p. 97.
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Breve Histria do Futebol 38
Depois que o Vasco da Gama, do Rio de Janeiro, ganha o campeonato estadual, em
1923, com um time formado por negros, mulatos e pobres, se inicia a fase mais clandestina do
futebol. Os negros e os pobres, os trabalhadores das fbricas e outras pessoas do povo
comeam a ser includos nos times para dar-lhes mais competitividade. Uma incluso, nesta
poca, ainda bastante estigmatizada.
Nestas trs dcadas o futebol acompanhou bastante de perto o crescimento urbano das
cidades. medida que as vilas operrias iam se criando, times eram formados em centenas de
pequenos campos de vrzea. Alheios aos campeonatos oficiais dos grandes clubes, foram
conquistando a simpatia da sociedade e a admirao do pblico. Organizavam seus prprios
campeonatos e da surgiram vrios times de origem mais popular. Jogadores eram formados
nos campos de vrzea e eram chamados para atuar nos grandes clubes.
Em 1933, o futebol profissionalizado. Isto precisou ser feito para conter o xodo de
jogadores brasileiros para o exterior e para oficializar, atravs do vnculo empregatcio, a
situao dos jogadores negros e pobres. Neste momento, a maior parte das figuras
filantrpicas da elite nacional, que habitavam o comando do esporte, afasta-se. Deixam a
administrao dos clubes nas mos dos industriais e comerciantes emergentes da poca. Com o surgimento do profissionalismo, o capitalismo industrial, tanto na Gr-bretanha quanto no Brasil, passou a atuar nas relaes sociais e o futebol penetrou nas culturas urbanas e industriais. (...) Desta forma, a administrao dos clubes por negociantes e industriais gerava a possibilidade do atleta habilidoso na arte da bola, trabalhar numa indstria e receber altos salrios, obter ganhos extras com os chamados bichos e, acima de tudo, adquirir prestgio.35
A profissionalizao das relaes no futebol inaugura uma fase de transio em
direo popularidade do esporte. Fase esta marcada por relaes extremamente paradoxais
entre uma prtica elitista e racista e outra extremamente negra e popular. nesta fase,
principalmente com o governo populista o Estado Novo de Getlio Vargas, que estas
relaes paradoxais atingem o seu apogeu.
Os jogadores negros e os de origem humilde passam, aos poucos, a serem aceitos nas
equipes. Aceitao esta muito condicionada s suas habilidades e capacidades de contribuir
para a competitividade de cada equipe. O investimento estatal, neste sentido, o da incluso das
35 PIMENTA, Carlos Alberto Mximo. Torcidas Organizadas de Futebol. Violncia e auto-afirmao. Aspectos da construo de novas relaes sociais. Taubat / SP: Vogal Editora, 1997.
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Breve Histria do Futebol 39
diferenas sociais no esporte e consequente popularizao deste, toma um corpo ainda maior
com a construo de estdios e a promoo da Copa do Mundo de 1950.
Os maiores marcos deste perodo so as construes do Estdio Municipal Paulo
Machado de Carvalho, o Pacaemb, no incio da dcada de 40 e do Maracan, o maior estdio
do mundo, no final da mesma dcada, objetivando sediar o jogo final da Copa do Mundo de
1950. A popularidade do futebol se propaga muito nesta poca, tambm por causa das
transmisses radiofnicas. Este momento de transio vai ter seu fim marcado pela derrota
brasileira na Copa do Mundo de 1950, atribuda natural inferioridade da mestiagem
brasileira.
Depois da Copa, com a popularidade j bastante estabelecida dentro da sociedade, o
futebol vive um perodo de grandes revolues, que o projetam em nvel internacional. Tal
feito acompanhado tambm da projeo de uma imagem do povo brasileiro, de nossa
cultura, enfim, para o mundo. Entre 1950 e 1970 foram trs conquistas de Copa de Mundo,
feito indito at aquele momento. Neste perodo tambm foram conquistados alguns
campeonatos mundiais interclubes. O Santos Futebol Clube, de Pel e companhia, ganhou
dois destes torneios na dcada de 60.
Assim, o Estado, que j vinha investindo no esporte como um dos instrumentos que
pudesse transmitir suas mensagens por todo o territrio nacional, aumenta sua participao. O
futebol, como elemento aglutinador de paixes, foi objeto de altssimos investimentos por
parte do Estado. A construo dos estdios continua em todos os importantes pontos do
territrio nacional. O bicampeonato mundial, conquistado nas Copas de 1958 e 1962,
confirma esta idia.
Neste perodo ainda, mas j sob os mantos da ditadura militar, a partir de 1964, que o
futebol vai encontrar outras formas de expressar sua sociabilidade. Torna-se um dos principais
instrumentos ideolgicos do Estado. durante o governo militar que se desenvolvem idias
que associam a imagem do brasileiro diretamente ao universo do futebol. O Brasil ser, por
exemplo, concebido como o pas da bola e a ptria de chuteiras. Foi a poca da criao de
alguns slogans, bastante denotativos da relao entre o brasileiro e o futebol e do uso
ideolgico que o Estado fez desta relao. Slogans, tais como: A Taa do Mundo nossa,
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Breve Histria do Futebol 40
com brasileiro no h quem possa!, 120 milhes em ao, pr frente Brasil, do meu
corao! e Ningum segura mais este pas!.
Durante o final dos anos sessenta e os anos setenta, quando o Brasil conquista o
tricampeonato mundial, o governo construiu estdios de grande porte em todos os pontos
estratgicos do territrio nacional. Todos os Estados da Unio receberam seus estdios e a
visita promocional dos diversos selecionados brasileiros para jogos internacionais. A antiga
CBD Confederao Brasileira de Desportes recebe a misso de expandir o futebol e o
poder poltico do governo militar. Para tanto, assume para si a organizao do calendrio dos
campeonatos estaduais e a criao do Campeonato Brasileiro. Para contribuir com este projeto
tambm criada a Loteria Esportiva, com o objetivo de arrecadar dinheiro para as despesas
dos clubes e da prpria CBD com os campeonatos.
Durante toda a dcada de 70, juntamente com os sucessivos fracassos brasileiros no
futebol mundial, o calendrio dos campeonatos de futebol promovidos pela CBD sofreu
inmeras e incontveis alteraes. suficiente referir que as regras das competies e o
nmero de equipes participantes no se repetiram de um ano para o outro durante este
perodo. Tais alteraes transformaram o campeonato nacional em um verdadeiro instrumento
de manobras com finalidades polticas. A oposio ao governo criou, inclusive, um slogan
bastante ilustrativo desta situao: Onde a ARENA vai mal, um time no Nacional! No
campeonato de 1979 chegamos a ter a participao de 96 clubes de 70 municpios brasileiros.
As frmulas de disputa dos campeonatos eram criadas, ano aps ano, muito mais a partir das
necessidades polticas do que de outras. Esta situao sustenta-se por uma dcada e, no incio
dos anos 80, comea a sofrer com as transformaes polticas da sociedade.
A dcada de 80 marca a pior fase do futebol brasileiro, tanto no plano interno quanto
em nvel internacional. No perodo da abertura poltica, as discusses, que antes eram
proibidas de ir a campo ou mesmo de sair s ruas, tomam exatamente estes espaos. Ganham
um determinado corpo justamente dentro das quatro linhas que demarcam o campo de futebol.
A maior expresso deste momento histrico foi a Democracia Corinthiana, uma gesto na
qual diretores e jogadores do clube participavam ativamente de todas as decises referentes ao
futebol. A Democracia Corinthiana teve como expoentes jogadores do porte de Scrates,
Casagrande e Vladimir, entre outros, alm do dirigente Adilson Monteiro Alves, depois eleito
deputado estadual pelo PMDB. Procurando refazer as relaes sociais dentro da esfera do
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Breve Histria do Futebol 41
futebol, especificamente no interior do Sport Club Corinthians, foi tomada como exemplo
para outros mbitos. Tornou-se modelo de administrao das relaes atravs da prtica de
valores tais como liberdade e democracia. A conquista de diversos campeonatos tambm
colaborou, e muito, para que esta administrao fosse tomada como um modelo.
Ao mesmo tempo estouravam os escndalos em torno do futebol por todo o pas. A
corrupo foi denunciada para a opinio pblica. Os maiores escndalos envolviam a
corrupo de dirigentes e rbitros e jogadores para favorecer resultados polticos e, pior,
manipulao de resultados de jogos da Loteria Esportiva. Foi a poca em que a sociedade
ficou conhecendo a famosa Mfia da Loteria. Juntamente com estes fatos, que denunciaram
as relaes criminosas estabelecidas no interior do futebol para monopolizar ganhos pessoais
e polticos, a dcada de 80 tambm foi marcada pela especulao imobiliria e por um
desenvolvimento urbano desorganizado, o que conduziu ao desaparecimento de
aproximadamente dez mil campos de vrzea. O futebol marginal foi praticamente eliminado
do cenrio urbano.
Todos estes acontecimentos da dcada de 80 determinam novos cenrios para o
futebol dentro da sociedade brasileira. Os grandes craques brasileiros vo para o exterior, os
clubes no tem mais condio de competir com o mercado externo. Reinaugura-se, neste
momento, uma prtica comercial entre clubes que hoje bastante comum, desejada e que
envolve um nmero cada vez maior de atletas em transaes de cifras astronmicas. Toda a
desestruturao vivenciada pelo futebol nesta dcada no conseguiu conter o xodo dos
jogadores, principalmente, para a Europa.
Assim, aos grandes clubes restou a possibilidade de iniciar um investimento massivo
na estruturao e consolidao das categorias de base. A vrzea no revelava mais craques,
mesmo porque havia sido praticamente abolida do cenrio urbano. Foi o perodo de maior
expresso de tcnicos que investiam nos jovens valores e lhes davam oportunidade. O
resultado de tais investimentos mostrou-se bastante satisfatrio e tcnicos como Tel Santana
e Cilinho dominaram o imaginrio futebolstico daquele momento. Ficou muito famoso o
time do So Paulo Futebol Clube formado, em sua maioria, por jogadores muito novos e que,
no entanto, conquistaram vrios ttulos importantes. No tiveram maior expresso pelas
sucessivas eliminaes do Brasil nos torneios mundiais.
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Breve Histria do Futebol 42
Acoplada idia da formao de categorias de base nos clubes, surgem por todo o
espao urbano, dezenas de escolinhas de futebol. Grande parte dos craques do passado
convidada a estruturar essas escolas nas quais possam ensinar as crianas a sua experincia e
as suas concepes tticas e tcnicas. As escolas surgem tambm como alternativa a
inexistncia dos antigos campos de vrzea, de onde eles mesmos haviam sido descobertos
para o futebol. Os convites possuem duas origens distintas. Uma grande parte destes so
originrios da iniciativa privada, independente at mesmo dos clubes de futebol. Alguns
empresrios resolvem investir em grandes nomes do passado com objetivo de atrair a classe
mdia e a alta para o esporte. Outra parte dos convites formulada por algumas prefeituras
municipais que decidem bancar a formao de atletas para o futuro, sendo que este projeto se
insere mais amplamente em alguns outros projetos de educao e de retirada de crianas
carentes das ruas.
No incio dos anos 90, outra revoluo tomou conta do futebol, mais uma vez
expresso das polticas econmicas e sociais mais amplas. Os clubes de futebol deixam de ter
a assistncia do Estado e o calendrio esportivo organizado pela CBF Confederao
Brasileira de Futebol , ainda catalisador de interesses diversos, mostra-se um elemento
impossibilitador do comparecimento do pblico aos estdios. O prejuzo cresce porque os
bons jogadores vo embora e o pblico tambm. Os clubes passam a necessitar de
reformulaes estruturais e inaugura-se a poca das ligas independentes de clubes que fazem
valer o seu potencial poltico. poca, tambm, da entrada de capital privado externo criando
os chamados clubes-empresa. Parcerias so firmadas com grande sucesso e o melhor marco
deste momento histrico o convnio entre a Sociedade Esportiva Palmeiras e a
multinacional Parmalat. Esta ltima traz para o Brasil a experincia bem-sucedida da
administrao de vrios clubes de expresso europeus. Com os resultados regionais e
nacionais que esta parceria obtm, os outros clubes so obrigados a se reformular para
poderem competir e, assim, outras formas de parceria so criadas.
Da competitividade que vai se estabelecendo aos poucos, ao longo dos anos, o melhor
resultado a conquista do tetracampeonato mundial do selecionado brasileiro no ano de 1994.
Conquista esta que nos reconduziu ao topo do ranking futebolstico mundial novamente.
Somos o nico pas com quatro campeonatos mundiais em todo o mundo. O Brasil continua
ocupando o primeiro lugar no ranking da FIFA, mesmo aps ter sido derrotado na final da
Copa da Frana. Permanecemos como o pas do futebol.
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Breve Histria do Futebol 43
O futebol, portanto, participou ativamente, desde os primeiros momentos, da cena
social brasileira. A atual referncia saudosista e romntica que se faz ao passado no se
justifica pela histria deste esporte dentro da sociedade. A sua histria, como pudemos
acompanhar permeada pelas mesmas desigualdades, excluses sociais e polticas diversas
que vem caracterizando a sociedade nestes ltimos cem anos. O objetivo aqui era mostrar o
futebol como um dos possveis elementos da sociabilidade do brasileiro e, como tal, ele no
esconde as ambiguidades deste universo de possibilidades do ser humano.
A referncia saudosista que se faz a uma beleza esttica perdida pura mistificao e
tambm paradigmtica das relaes sociais burocraticamente disciplinadas. O futebol , e
sempre foi, um espelho no qual esto refletidas as formas pelas quais as relaes sociais se
estabelecem. A violncia dentro de campo e fora dele sempre existiu, desde o incio. A
violncia como prtica de excluso e marginalizao social marca o esporte desde o seu
incio, seis anos aps a abolio da escravatura no pas. As desigualdades sociais, diferentes
em cada momento histrico, sempre encontraram reflexos no interior das relaes promovidas
pelo futebol. Cobrir o espelho , portanto, mistificar os aspectos da realidade que ele nos
evidencia.
A independncia estrutural e institucional que est significada no futebol falseadora
e encobridora das relaes de nepotismo, favorecimentos polticos, m administrao do
dinheiro e corrupo que envolvem o esporte, da mesma forma como envolvem outras
instituies sociais. Neste momento de transformaes estruturais pelas quais passa o futebol
bastante paradigmtica a referncia saudosista ao passado.
Analisando as relaes burocrticas, Jurandir Freire Costa, nos prope um olhar para
as formas como elas se estabelecem no interior da sociedade e dominam as relaes, criando
uma cultura cnica e perversa. Acompanhando este seu trabalho, apoiado que est nas anlises
polticas de Hannah Arendt, vamos poder perceber a forma pela qual os burocratas mistificam
o passado e, assim, procuram perpetu-lo e se eximir das responsabilidades que as novas
mudanas impem.
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Breve Histria do Futebol 44
O passado da burocracia sempre um passado cindido em passado remoto e passado prximo. No passado remoto, distanciado do olhar e do testemunho atuais, o burocrata concretiza a fantasia de uma responsabilidade que nunca teve. Tal passado um mero expediente para desmoralizar o que se tenta fazer no presente. (...) Quanto ao passado recente, apenas um argumento retrico, usado para revalorizar o passado mistificado e afirmar a no responsabilidade pelo descalabro presente. De qualquer forma, a falcia passadista resulta em mais acusaes ao perseguidor, desta feita, sob o modo especioso de crtica em nome da tradio ou dos bons hbitos dos velhos tempos.36 A referncia que o autor aponta em relao a forma com que o burocrata lida com o
passado nos serve perfeitamente para pensarmos o que fazem os burocratas do futebol, isto ,
todos os envolvidos com o futebol: os cronistas esportivos, os jornalistas, os especialistas,
comentaristas etc. Estes burocratas do futebol representam a mdia esportiva nacional e,
atravs dela, colaboram na construo da imagem saudosista romntica do esporte.
36 COSTA, Jurandir Freire. Psiquiatria burocrtica: duas ou trs coisas que sei dela. In ARAGO, L.T. (et al.) Clnica do social: ensaios. So Paulo: Escuta, 1991, pp. 56/57.
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Breve Histria do Futebol 45
Captulo II
As Torcidas Organizadas
de Futebol
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Breve Histria do Futebol 46
Pretende-se, nesta parte do trabalho, analisar-se alguns aspectos histricos e sociais
importantes relativos criao e ao desenvolvimento das Torcidas Organizadas de Futebol.
Antes disso, porm, critica-se o enfoque unilateral e restritivo que tem caracterizado muitos
dos estudos sobre esses grupos, pelo fato de os apresentarem tendo, por motivao e
finalidade, unicamente, a prtica da violncia.
A Concepo Unilateral: A Torcida Organizada
como contexto centralizador de violncia
As torcidas de futebol, provavelmente, existem desde que existe o esporte. bastante
pertinen