tese fernanda figurelli

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Museu Nacional Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social Família, escravidão, luta: histórias contadas de uma antiga fazenda Mónica Fernanda Figurelli Rio de Janeiro 2011

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Page 1: Tese Fernanda Figurelli

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Museu Nacional

Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

Família, escravidão, luta:

histórias contadas de uma antiga fazenda

Mónica Fernanda Figurelli

Rio de Janeiro

2011

Page 2: Tese Fernanda Figurelli

II

Família, escravidão, luta:

histórias contadas de uma antiga fazenda

Mónica Fernanda Figurelli

Tese de Doutorado apresentada ao Programa

de Pós-Graduação em Antropologia Social,

Museu Nacional, Universidade Federal do

Rio de Janeiro, como parte dos requisitos

necessários à obtenção do título de Doutora

em Antropologia Social.

Orientador: Moacir Gracindo Soares

Palmeira

Rio de Janeiro

Abril de 2011

Page 3: Tese Fernanda Figurelli

III

Família, escravidão, luta:

histórias contadas de uma antiga fazenda

Mónica Fernanda Figurelli

Orientador: Moacir Gracindo Soares Palmeira

Tese de Doutorado submetida ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em

Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte

dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em Antropologia Social.

Aprovada por:

_________________________________________________

Prof. Moacir Gracindo Soares Palmeira (Orientador)

PPGAS/MN/UFRJ

_________________________________________________

Profª. Adriana de Resende Barreto Vianna

PPGAS/MN/UFRJ

_________________________________________________

Profª. Beatriz María Alasia de Heredia

IFCS/UFRJ

_________________________________________________

Prof. John Cunha Comerford

PPGAS/MN/UFRJ

_________________________________________________

Prof. José Sérgio Leite Lopes

PPGAS/MN/UFRJ

_________________________________________________

Profª. Mariza Gomes e Souza Peirano

UNB

_________________________________________________

Profª. Ana Claudia Duarte Rocha Marques (Suplente)

USP

_________________________________________________

Profª. Renata de Castro Menezes (Suplente)

PPGAS/MN/UFRJ

Rio de Janeiro

Abril de 2011

Page 4: Tese Fernanda Figurelli

IV

FIGURELLI, Mónica Fernanda

Família, escravidão, luta: histórias contadas de uma antiga fazenda / Mónica Fernanda

Figurelli. Rio de Janeiro: UFRJ/Museu Nacional/PPGAS, 2011.

256 p. 21 X 29,7 cm.

Tese (Doutorado) – UFRJ/Museu Nacional / Programa de Pós-Graduação em

Antropologia Social, 2011.

Orientador: Moacir Gracindo Soares Palmeira.

1. História-histórias. 2. Memória. 3. Rio Grande do Norte. 4. Fazenda. 5.

Proprietários/moradores/sindicalistas. 6. Etnografia multissituada. I. Palmeira, Moacir

Gracindo Soares. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Programa de

Pós-Graduação em Antropologia Social. III. Título.

Page 5: Tese Fernanda Figurelli

V

RESUMO

Família, escravidão, luta:

histórias contadas de uma antiga fazenda

Mónica Fernanda Figurelli

Orientador: Moacir Gracindo Soares Palmeira

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação

em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como

parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em Antropologia Social.

Nesta tese, parto de um episódio destacado na memória elaborada pelas organizações

sindicais sobre as lutas camponesas no Brasil, ocorridas durante a ditadura militar e nos anos

imediatamente anteriores a ela. Tal episódio narra a atividade sindical que, no começo da

década de 1960, pôs fim ao trabalho gratuito que os moradores de uma grande fazenda

deviam realizar para o dono da mesma. Tal fazenda, que já não mais existe, se situava no

estado do Rio Grande do Norte e, nela, se criava gado e se produzia algodão. A partir desse

episódio, indago a respeito das reconstruções que pessoas posicionadas em lugares diferentes

elaboram sobre isto. Realizo uma etnografia multissituada na qual analiso as narrativas dos

antigos proprietários, dos antigos moradores e dos antigos empregados da fazenda, bem como

as dos atuais habitantes dessas terras e as daqueles que participaram da organização sindical

no lugar.

O trabalho põe em evidência diversas histórias, categoria da qual as pessoas se servem

para denominar o que me contam. Tais histórias revelam novos episódios e iluminam

questões distintas àquelas postas em jogo pelo episódio do qual parti. Ao mesmo tempo,

algumas regularidades permitem apreciar que, de pessoas posicionadas em lugares

semelhantes e relacionadas entre si de um modo mais intenso, tendem a surgir histórias

semelhantes, o que deixa entrever que o que se conta revela tanto um conteúdo quanto o

universo social do qual tal conteúdo nasce. Na tese, enfoco a construção social das entidades

que emergiram em cada contar, centrando-me nas situações que as recriam. Indago essas

histórias que as pessoas narram e, a partir delas, destaco o lugar prioritário que as relações

sociais assumem em sua composição. O trabalho pretende ser uma etnografia das histórias

narradas e, talvez, da própria construção histórica, na qual cada história é remetida à vida

social que a constitui.

Palavras-chave: História/histórias; memória, Rio Grande do Norte; fazenda;

proprietários/moradores/sindicalistas; etnografia multissituada.

Rio de Janeiro

Abril de 2011

Page 6: Tese Fernanda Figurelli

VI

ABSTRACT

Family, slavery, struggle: stories about an old fazenda

Mónica Fernanda Figurelli

Orientador: Moacir Gracindo Soares Palmeira

Abstract da Tese de Doutorado submetida ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação

em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como

parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em Antropologia Social.

In this thesis I start from an incident that has been highlighted in the memory that

Unions make about the peasant struggles in Brazil during and before the military dictatorship.

This incident tells about the union activity in the early sixties and about the end of unpaid

work that the moradores of a large fazenda had to do to the owner of that property. This

fazenda, now defunct, was located in the State of Rio Grande do Norte and it raised cattle and

produced cotton. Based on this incident I explore reconstructions that differently positioned

people elaborate. I make a multi-sited ethnography in which I analyze narratives of the former

owners, former residents and former employees of the fazenda, as well as those of the present

inhabitants of these lands and those of Union members.

The thesis researches several stories, the category used by people interviewee for me.

Such stories reveal new incidents and highlight issues that are differents than those

highlighted by the original incident. At the same time, some regularities show that people

positioned in similar social places and related each other tell similar stories. In this way, we

can see these narratives reveal both a content and a social universe from which this content is

born. The thesis focused the social construction of entities in the stories. I inquiere into these

stories underlining the importance that social relations have in their composition. My work is

an ethnography of stories told by people and, perhaps, of the historical narrative itself, and an

attempt to return each story to their social life.

Keywords: History-histories; memory; Rio Grande do Norte; fazenda;

landowners/moradores/trade unionists; Multi-sited ethnography.

Rio de Janeiro

Abril de 2011

Page 7: Tese Fernanda Figurelli

VII

RESUMEN

Familia, esclavitud, lucha:

historias contadas de una antigua fazenda

Mónica Fernanda Figurelli

Orientador: Moacir Gracindo Soares Palmeira

Resumen da Tese de Doutorado submetida ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação

em Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como

parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em Antropologia Social.

En esta tesis parto de un episodio destacado en la memoria que organizaciones

sindicales elaboran sobre las luchas campesinas en Brasil ocurridas durante la dictadura

militar y en los años previos a ésta. Dicho episodio narra la actividad sindical que a

comienzos de la década del sesenta puso fin al trabajo gratuito que los moradores de una gran

fazenda debían realizar para el dueño de esa propiedad. Esa fazenda, ya desaparecida, se

encontraba localizada en el Estado de Rio Grande do Norte y en ella se criaba ganado y se

producía algodón. A partir de ese episodio indago las reconstrucciones que personas

posicionadas en lugares diferentes elaboran al respecto. Realizo una etnografía multisituada

en la que analizo las narrativas de los antiguos propietarios, de los antiguos moradores y de

los antiguos empleados de la fazenda, así como las de los actuales habitantes de esas tierras y

las de quienes participaron de la organización sindical en el lugar.

El trabajo pone de relieve diversas historias, categoría con la que las personas

denominan lo que me cuentan. Tales historias revelan nuevos episodios e iluminan cuestiones

distintas a las que pone en juego el episodio del cual partí. Al mismo tiempo, algunas

regularidades permiten apreciar que de personas posicionadas en lugares semejantes y

relacionadas entre sí de un modo más intenso tienden a surgir historias semejantes, dejando

ver que lo que se cuenta abre tanto un contenido como el universo social del cual dicho

contenido nace. En la tesis enfoco la construcción social de las entidades que emergieron en

cada contar centrándome en las situaciones que las recrean. Indago esas historias que las

personas narran y mediante ellas destaco el lugar prioritario que las relaciones sociales toman

en su composición. El trabajo se plantea como una etnografía de las historias narradas y, tal

vez, de la propia construcción histórica, en la cual cada historia es devuelta a la vida social

que la constituye.

Palabras clave: Historia-historias; memoria; Rio Grande do Norte; fazenda;

propietarios/moradores/sindicalistas; etnografia multisituada.

Rio de Janeiro

Abril de 2011

Page 8: Tese Fernanda Figurelli

VIII

Para Norma Beatriz Gutiérrez, minha mãe

Para meu pai, Pedro Figurelli

Page 9: Tese Fernanda Figurelli

IX

AGRADECIMENTOS

Uma tese encerra um longo tempo de preparação que envolve diálogos e colaborações

de outras pessoas. Estes são os meus agradecimentos àqueles que me acompanharam nesta

tarefa.

Moacir Palmeira orientou tanto esta tese quanto a minha dissertação e se converteu em

meu grande mestre. Agradeço-lhe seu tempo, sua dedicação generosa, sua leitura, suas

sugestões e as reuniões e discussões que são parte deste trabalho. Também lhe agradeço a

motivação que nunca se esgota, seus ensinamentos de percursos inalcançáveis, esses

ensinamentos que, agora sei, ganham com o passar do tempo dimensões cada vez maiores.

Obrigada por fazer com que a antropologia seja, a cada momento, um novo desafio e por me

deixar a sensação de que a reflexão não tem limites. Por escorar meu pensamento e levá-lo

sempre além. E pelo gosto com que fiz este trabalho durante estes anos de tão grata e

inspiradora associação.

Às pessoas que me acompanharam no trabalho de campo no Rio Grande do Norte.

Seus nomes e seus lugares foram mudados, pelo que aqui lhes agradeço com essas novas

denominações. Aos/às moradores(as) do assentamento Jorge Fernandes, das comunidades

vizinhas, da cidade de Bom Jesus e de Trindade, que compartilharam comigo seu tempo e

suas histórias. Quero agradecer especialmente a Teresinha, a Marcela e a Consolação, minhas

companheiras nessa vasta terra, pelo presente de sua companhia e pela ajuda a todo momento.

Teresinha e Gregório me brindaram com sua casa e suas atenções. Também lhes agradeço por

sua fundamental colaboração com a minha pesquisa.

Nesta tese, não contemplei meu trabalho de campo no estado do Rio de Janeiro.

Apesar disso, queria agradecer às pessoas da cidade do Rio, de Cabo Frio e de São Pedro da

Aldeia, que amavelmente contribuíram com a minha pesquisa, sobre a qual espero escrever

mais adiante. Agradeço especialmente aos moradores da região de Campos Novos. Também

àqueles que me atenderam no sindicato de trabalhadores rurais de Cabo Frio. Quero destacar

de modo particular a generosidade de Dona Elicia e de seu marido, seu Celmo, que me

ajudaram em cada passo deste trabalho.

A pesquisa contou com a cooperação de pessoas de diversas instituições. Entre elas

encontram-se, em Trindade, a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Rio

Grande do Norte (FETARN), o Centro de Direitos Humanos e Memória Popular, o Arquivo

Público Estadual do Rio Grande do Norte, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma

Page 10: Tese Fernanda Figurelli

X

Agrária (Superintendência Regional de Rio Grande do Norte) e a Arquidiocese (Pastoral da

Comunicação). Em Bom Jesus, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais, a Casa de Cultura, o

Primeiro Cartório, a Vara Cível, a Prefeitura Municipal e a Secretaria de Saúde. Em Cabo

Frio, Rio de Janeiro, me ajudaram pessoas do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, da

Secretaria Municipal de Agricultura e Abastecimento, da Biblioteca Municipal, do Cartório

do 1º Ofício e do Arquivo Histórico da Câmara Municipal. Finalmente, na capital deste

estado, cabe mencionar o Núcleo de Pesquisa, Documentação e Referência sobre Movimentos

Sociais e Políticas Públicas no âmbito do Curso de Pós-Graduação em Desenvolvimento,

Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA-UFRRJ), a

Koinonia (RJ), o Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (INEPAC), o Instituto de Terras e

Cartografia do Estado do Rio de Janeiro e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma

Agrária (Superintendência Regional de Rio de Janeiro).

Ao longo do trabalho de campo, também recebi a colaboração de Leonilde Medeiros,

Marcelo Ernandez, Juvenal Boller, Angélica Gentilli, Eraldo Lírio de Azevedo e Sebastião

Menezes, a quem agradeço por suas importantes contribuições.

Para além do âmbito da tese, Mirta Ramírez demonstrou um grande gesto de

profissionalismo pelo qual estou agradecida.

Minha gratidão às pessoas do Departamento de Antropologia da Universidade Federal

do Rio Grande do Norte, pela amabilidade com que me receberam. Obrigada especialmente a

Gretel Echazú e aos/às colegas que me proporcionaram um espaço de amizade em minha

estada nesta cidade.

À Silvanice Santos, por sua gentileza e boa energia. Às pessoas do Museu Nacional,

que tornam tudo mais prático: aos/às funcionários(as) da secretaria do PPGAS, da xerox e da

biblioteca e, especialmente, à Carla, por seu trato agradável e atento.

A realização do meu doutorado foi possibilitada por uma bolsa do Conselho Nacional

de Desenvolvimento Científico e Tecnológico-CNPq. Minha estada no Rio Grande do Norte

contou com o apoio do convênio entre o Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

do Museu Nacional (PPGAS/MN/UFRJ) e o Programa de Pós-Graduação em Antropologia

Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGAS-UFRN), realizado no marco

do Programa Nacional de Cooperação Acadêmica (PROCAD) e coordenado por Luiz

Fernando Dias Duarte e Carlos Guilherme do Valle.

Na longa carreira na qual me formei como antropóloga, tive o privilégio de conviver e

trocar com professores/as da mais alta excelência no Museu Nacional e no departamento de

antropologia da Universidad Nacional de Misiones (Argentina). Agradeço-lhes por terem sido

Page 11: Tese Fernanda Figurelli

XI

e continuarem sendo parte dessa formação. Gostaria de mencionar Leopoldo Bartolomé, que

esteve presente desde o início deste longo caminho.

Minha gratidão a Adriana Vianna, Ana Claudia Marques, Beatriz Heredia, John

Comerford, José Sérgio Leite Lopes, Mariza Peirano e Renata Menezes, que gentilmente

aceitaram integrar a banca examinadora desta tese. José Sérgio Leite Lopes e Beatriz Heredia

me concederam a oportunidade de contar com as suas sugestões, críticas e comentários nas

duas instâncias de qualificação do doutorado. Agradeço-lhes por esses momentos

estimulantes, úteis e esclarecedores. Beatriz Heredia teve a generosidade de estender essa

oportunidade para além dessas instâncias, pelo que lhe agradeço duplamente.

Estes anos de doutorado também incluíram a produção de artigos baseados em minha

dissertação. Gostaria de agradecer novamente a José Sérgio Leite Lopes e a John Comerford

porque suas refinadas argumentações na defesa de mestrado foram muito importantes para

este trabalho.

Vários/as colegas estiveram comigo neste tempo e também vários/as amigos/as. Entre

eles, gostaria de mencionar Marta Cioccari, cuja amizade foi uma constante desde a minha

chegada no Brasil. A Graziele Dainese com quem, nestes últimos anos, compartilhei

conversas significativas e momentos imprescindíveis de capuccino, suco de laranja e cerveja

e, às vezes, carne seca com aipim. Também agradeço a Ricardo Cruz. E a Martiniano Neto,

que deixou uma profunda marca de amizade.

A Letícia Carvalho e a Julia O’Donnell lhes agradeço por todos os dias deste encontro.

Elas são a minha alegria carioca, meu lugarzinho nesta grande cidade e uma doce sensação de

lar. Por me proporcionarem uma família no Brasil, lhes sou imensamente grata.

E, a partir daqui, os agradecimentos são para as minhas pessoas mais queridas, que

tornam difícil escrever estas linhas sem que me escape alguma lágrima. À minha tia Lucía,

que fez com que, ao longo da vida, eu pudesse levar adiante as decisões mais importantes, por

estar sempre aí e por toda a beleza que nasce da sua pessoa. A meu irmão Pablo, se certa vez

lhe agradeci pelo pedaço de céu, agora o faço pelo raio de sol e pela profunda cumplicidade

com a qual olhamos o mundo. A meu pai, Pedro, por sua imensa presença, por seu apoio,

pelas piadas e pelo grande guiño que compartilhamos. E à minha mãe, Norma, por me dar o

sorriso mais lindo da vida, por ser meu todo e meu tanto, pelo amor que me anima a cada

momento.

Ao Sergio, meu companheiro de vida, por me mostrar o quão linda ela pode ser. Pela

liberdade que a todo tempo me permite desejar a sua companhia. E por essa combinação de

Page 12: Tese Fernanda Figurelli

XII

papos, conversas, diversão, risos e ilusões que me enchem de amor, de vontade e de

felicidade.

Page 13: Tese Fernanda Figurelli

XIII

SUMÁRIO

Introdução

ERRANTE POR BELÉM...........................................................................................................1

Construir o objeto........................................................................................................................1

O campo, o objeto e a percepção de suas brechas......................................................................6

Capítulo I

TERRA, PRESTÍGIO E PESSOAS: UMA HISTÓRIA DE REUNIÕES, UMA HISTÓRIA

DE FAMÍLIA............................................................................................................................25

“O casamento não é bom e desmantela tudo”...........................................................................28

A grande fazenda......................................................................................................................38

Figura I...................................................................................................................................53

Figura II....................................................................................................................................54

Capítulo II

CONTORNOS IMPRECISOS..................................................................................................55

“Mas pode fazer outra pergunta, que o que eu não queria dizer tive que dizer”......................55

Histórias que os empregados contam........................................................................................63

Quem conta, o que conta...........................................................................................................71

Morar em Belém: o foro e a diária...........................................................................................76

O patrão e outras relações........................................................................................................81

Capítulo III

A HISTÓRIA DE BELÉM E O TEMPO DOS ESCRAVOS..................................................90

Belém era (de) Nossa Senhora..................................................................................................93

Sobre brabos e bandidos e sobre morrer em Belém...............................................................100

El grito del capanga va resonando.........................................................................................105

A colheita vai ao armazém......................................................................................................115

Tempo dos escravos..............................................................................................................123

Capítulo IV

A SILENCIOSA PERMANÊNCIA SEM TEMPO................................................................129

Mais além da história.............................................................................................................129

Trabalhar.................................................................................................................................132

A permanência sem tempo......................................................................................................142

Trabalha(mos): contar no invisível.........................................................................................147

A mãe de Jesus....................................................................................................................155

Figura III.................................................................................................................................166

Capítulo V

UMA LUTA MAIS ANTIGA................................................................................................167

O cambão e a sua derrubada..................................................................................................173

O começo do fim da escravidão: entrar para a luta e liberar com os direitos.........................190

Versus proprietários................................................................................................................199

Page 14: Tese Fernanda Figurelli

XIV

“Vai embora que vão te pegar também”.................................................................................205

Uma narrativa sindical quando o tempo já não é de Belém....................................................213

Capítulo final

SOBRE HISTÓRIAS CONTADAS E SOBRE CONTAR HISTÓRIAS..............................220

Histórias de família? De escravidão? De luta?.......................................................................220

Vozes em circulação...............................................................................................................236

Referências bibliográficas....................................................................................................247

Anexo......................................................................................................................................255

Page 15: Tese Fernanda Figurelli

Família, escravidão, luta 1

Introdução

ERRANTE POR BELÉM1

Construir o objeto

Uma história contada nos fala sobre aquilo que é suscetível de ser contado, sobre

aquilo que, em um emaranhado incompreensível de vivências, se torna um tema que poder ser

dito, que pode ser perguntado, que pode ser indagado. Uma história contada nos fala também

que não há história desligada de seu contar e que, mais que a um referente fixo e acabado, o

que se conta alude a uma criação dinâmica que não se separa da situação em que se conta.

Uma vez que colocar em situação aquilo que se narra permite ganhar distância do

referente, as histórias contadas se tornaram uma forma de me aproximar da motivação que

constituiu o ponto de partida desta tese. Essa motivação buscava indagar os critérios que,

entre a complexidade das vivências cotidianas, permitem classificar e delimitar determinados

aspectos dessas vivências como um evento com nome próprio, como um ―aspecto

sobressalente da realidade‖ (Coser, 1961: 7). A intenção era a de colocar em questão esse

―aspecto sobressalente‖, indagando as construções sociais do relevante. Essa ampla e enorme

motivação associava-se, no entanto, a uma questão mais concreta e tangível que havia surgido

de minha dissertação de mestrado. Nesse estudo, eu me havia proposto a indagar os diversos

registros que pessoas em distintas posições tinham sobre um ―conflito de terra‖ em torno do

qual interagiam. Havia identificado esse conflito com uma ocupação realizada nas terras de

uma usina abandonada no Nordeste do Brasil. A etnografia realizada no ano de 2006 em um

acampamento sem terra, situado na Zona da Mata pernambucana e vinculado à Comissão

Pastoral da Terra (CPT), na Superintendência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma

1 Nesta tese foram mudados todos os nomes de pessoas. Assim também é fictícia a maioria das denominações de

lugares e empresas, mesmo quando citados por outras fontes.

Page 16: Tese Fernanda Figurelli

Família, escravidão, luta 2

Agrária (INCRA), no qual ocorria seu processo de desapropriação e, nos arquivos da CPT, me

mostrou que o conflito delimitado como um momento específico das relações sociais nem

sempre tinha sentido. Nas conversas com os acampados, o conflito deixava de ser uma

contenda demarcada e se incorporava à totalidade da vida social, ao cotidiano das pessoas e às

suas histórias e à reificação da categoria. A arbitrariedade de delimitá-lo como tal se deixava

entrever, a partir do relato de meus interlocutores/as no trabalho de campo (Figurelli, 2007).

Deste modo, a etnografia me conduziu à desnaturalização dessa categoria que havia sido

constituída no ponto de partida do trabalho. A categoria já não podia ser vislumbrada como

um dado, e dali surgiu este interesse por observá-la como uma construção, como um recorte

que permite ordenar uma ―experiência essencialmente desordenada‖ (Douglas, 1991).

Naquele momento, aprendi a não tomar as entidades como dadas, essas entidades com

as quais, não somente a partir de um sentido comum, mas também a partir das ciências

sociais, pensamos ―o mundo‖. Eu o havia feito a partir ―do conflito‖, esse ―evento‖ com início

e resolução, com participantes delimitados, com tempo e espaço delimitados, com contendas

delimitadas. Essa entidade com limites precisos tão pouco questionados, tão dados, tão

carentes de reflexão. Já não podia ver o conflito social como aquilo que existia sem

questionamentos e que, em sua existência previamente delimitada, serviu para os estudos que

refletiram sobre a integração, a ruptura, a unidade, o equilíbrio, a manutenção ou a dinâmica.

Meu olhar se colocava, agora, sobre a construção das entidades, nos interstícios do conflito,

nos trabalhos de construção e de significação da categoria, nas condições e práticas sociais

que lhe outorgam ou retiram sentido. Comecei meu trabalho de campo com essa motivação e,

em seu desenvolvimento, fui ouvindo histórias que me ajudaram a pensar essa

inseparabilidade entre as entidades que são construídas e as relações sociais. Contarei, então,

com cheguei a elas.

Para indagar sobre aquela construção, decidi partir, nesta tese, de dois episódios de

conflito claramente reconhecidos e delimitados como tais por integrantes de organizações

neles envolvidas. Me propus a observar a dinâmica que era posta em jogo no reconhecimento

desses episódios, a partir de uma abordagem comparativa entre ambos. Por outro lado, minha

aproximação aos estudos de memória me incentivara a me situar nos eventos da lembrança,

naqueles eventos destacados no plano da memória. Indagaria as reconstruções, essas

operações que nos mostram que a lembrança não é uma substância inalterável que existe por

si mesma e que, em algum momento, é reencontrada por quem recorda, e sim um exercício

dinâmico que une o passado às categorias sociais do presente. Deste modo, indagaria um

passado atual, um passado vivo e dinâmico que não se desliga das relações que, em seu

Page 17: Tese Fernanda Figurelli

Família, escravidão, luta 3

presente, as pessoas entretêm entre ci (Halbwachs, 2004a, 2004b; Nora, 1984; Pollak &

Heinich, 1986; Jelin, 2002). Os episódios de conflito a ser analisados se localizariam, então,

no âmbito dessas reconstruções. Por outro lado, tais episódios seriam selecionados entre

aqueles que se faziam presentes na memória recriada pelas organizações de luta camponesa

no Brasil.O interesse por essa memória não tinha mais (ou menos) base que o que ela

conseguia motivar. Não se tratava de outra coisa senão de trabalhar sobre um material que me

afetava. Tive acesso direto a ela a partir do projeto ―Memória Camponesa e Cultura

Popular‖,2 quando a minha participação no seminário sobre Ligas Camponesas na Paraíba, no

ano de 2006, me permitiu escutar os camponeses das Ligas sem outra intermediação que a do

microfone, e me deixou ouvir as sua vozes, observar seus gestos, seus movimentos e ser parte

desse âmbito de trocas e de encontros que dificilmente o vento levaria. Esse foi o primeiro

contato direto com as narrativas referentes ao tipo de episódio que abordo neste trabalho. A

partir dali, participaria de outros encontros organizados pelo prometo e teria acesso a diversos

registros produzidos nesse âmbito, como entrevistas e vídeos dos vários seminários realizados

em diferentes regiões do Brasil. Assim, a partir de meu lugar na universidade me aproximaria

tanto das memórias das lutas camponesas como dos momentos-chave de atualização dessas

memórias. Teria acesso a um dos tantos espaços que franqueiam a recriação de tais

lembranças, e isso, para mim, não seria pouco.

Como assinalei anteriormente, para trabalhar em minha tese, selecionei dois dos vários

episódios que essas narrativas destacavam. Entre outras coisas, em tal seleção, privilegiei a

presença de alguns elementos que me ajudaram a pensar sobre a configuração de eventos.

Além disso, o interesse que eles me despertaram não ficou fora dos critérios. Os dois

episódios de conflito que selecionei haviam tido lugar nas terras ocupadas por duas antigas

fazendas (que atualmente não mais existem). Também haviam sido de longa duração,

iniciados antes do Golpe Militar de 1964 e prolongados por todo esse período. A indefinição

que ambos deixavam entrever na delimitação de seus inícios e/ ou fins perfilava-se como um

material interessante para o que eu me propunha a pensar. Um deles, o ―conflito de Campos

Novos‖, havia ocorrido (e, para algumas pessoas, ainda continuava) ao norte do estado do Rio

de Janeiro, na chamada Região dos Lagos, onde os posseiros das terras de uma antiga fazenda

2 O projeto tem a sua sede no Núcleo de Antropologia da Política-NuAP, Museu Nacional, Universidade Federal

do Rio de Janeiro e dele participam diversas instituições de pesquisa, organizações e movimentos sociais e

organismos estatais. Entre outros trabalhos, dentro de seu âmbito, foram produzidos seminários em diferentes

estados do Brasil, com líderes de lutas camponesas e foram realizadas entrevistas com alguns desses líderes com

o objetivo de registrar, difundir e refletir sobre as lutas camponesas anteriores a 1964 e durante o período de

resistência à ditadura. O seminário da Paraíba teve lugar em João Pessoa, nos dias 28 e 29 de abril de 2006 (ver:

Projeto Memória Camponesa e Cultura Popular, http://nuap.ppgasmuseu.etc.br/MCCP/index.php).

Page 18: Tese Fernanda Figurelli

Família, escravidão, luta 4

(Campos Novos) tinham se enfrentado com ameaças e ataques de grileiros, desde a década de

1950. Esses ataques haviam conduzido à criação, na década de 1970, de um sindicato de

trabalhadores rurais que apoiou, de modo importante, a resistência dos posseiros para se

manterem nas terras que habitavam. Anos mais tarde, os integrantes do sindicato e os

posseiros conseguiram que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

desapropriasse grande parte dessa fazenda. Outra parte dela obteve o certificado de

―remanescente das comunidades dos quilombos‖ da Fundação Cultural Palmares e encontra-

se, atualmente, no processo de titulação e regularização fundiária no INCRA. As perseguições

realizadas pelos grileiros e o assassinato de um dirigente sindical são episódios renomados na

história desse conflito, do qual soube a partir do relato de Dona Rosa, uma antiga habitante do

lugar. Tive acesso, pela primeira vez, a tal relato, por meio de uma gravação audiovisual do

seminário realizado pelo projeto anteriormente citado, em 2005, no Rio de Janeiro. O que

Dona Rosa contava me atraiu para esse episódio, mas também sua forma de relatar, e todo o

encanto que gerava com a sua performance cativou meu interesse.

O outro evento selecionado ocorreu ao sul do Rio Grande do Norte, na região agreste.

Sobre este, me advertiu meu orientador, que havia estado naquele lugar entrevistando velhos

participantes do sindicato sobre os episódios ocorridos durante a ditadura militar e nos anos

anteriores a esta. Nas entrevistas que ele realizou, era possível apreciar de que modo o grande

conflito formulado por um líder sindical parecia ganhar novas formas no relato dos outros

participantes, o que fazia com que o evento se tornasse um bom material para pensar os temas

que minha dissertação de mestrado colocava. Nas reconstruções sindicais, esse evento é

conhecido como ―a derrubada do cambão‖. Integrantes e ex-integrantes da Federação dos

Trabalhadores na Agricultura do Estado do Rio Grande do Norte (FETARN) destacam, em

suas narrativas, a intensa atividade sindical ocorrida entre os moradores de uma grande e já

desaparecida fazenda, chamada ―Belém‖, situada ao sul daquele estado, na qual se criava

gado e se produzia algodão. Os moradores da fazenda trabalhavam em tal produção, e o

algodão que plantavam era depois obrigatoriamente vendido ao dono da propriedade. Belém

se apresenta, nessas narrativas, como um sustentáculo do sindicalismo rural em todo o Brasil.

A atividade sindical começou nos primeiros anos da década de 1960, período em que foi

fundado o sindicato dos trabalhadores rurais na cidade de Bom Jesus (um dos municípios em

que se situava a fazenda) e, em seguida, a delegacia sindical de Belém. O sindicato é um dos

primeiros surgidos a partir do trabalho de sindicalização rural empreendido por pessoas

vinculadas à Igreja Católica do Rio Grande do Norte.

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Família, escravidão, luta 5

Quando os integrantes da federação se referem a essas experiências sindicais, um

episódio sobressai de modo marcado: o fim do cambão, o fim do trabalho gratuito que os

moradores da fazenda realizavam para o proprietário. Essa derrubada é narrada como um

momento concreto que teve lugar em um dia específico, o dia em que os trabalhadores de

Belém acabaram com o cambão. Como Belém era uma das maiores fazendas nesse Estado

que ainda mantinha o sistema do cambão, esse dia é simbolicamente aquele a partir do qual o

trabalho gratuito foi expulso do Rio Grande do Norte. O evento chegou a mim através do

relato de Jorge Fernandes, o primeiro presidente daquela federação de trabalhadores, que

havia participado da organização sindical naquela região. Pude conhecer seu relato mediante

as entrevistas realizadas por meu orientador e mediante o vídeo do seminário realizado no Rio

Grande do Norte pelo projeto Memória Camponesa. De acordo com Jorge Fernandes, a

derrubada ocorreu uma terça-feira, dia de cambão, quando vários trabalhadores

sindicalizados rechaçaram o peixe seco, o almoço que todas as terças era distribuído aos

moradores como ―gratificação‖ pelo trabalho gratuito que realizavam para o proprietário. A

recusa do peixe seco, também chamado de cambão por Jorge Fernandes, também significava

a recusa daquele trabalho que, naquele dia, deixou de existir em Belém de uma vez por todas.

Apesar de o sindicato ter continuado aberto durante a ditadura militar, as atividades da

organização se viram fortemente limitadas, nesse período, e seus integrantes foram

perseguidos, levados presos e muitos deles tiveram de se exilar. No entanto, o fim do trabalho

gratuito, obtido antes da ditadura e a partir da luta sindical contra os proprietários, constituiu

um marco na história da federação.

Belém delineava-se sobre um território que atualmente se encontra delimitado pelos

municípios de Bom Jesus, São Sebastião, Serras, São Francisco, Aparecida, Bacia e Salvador.

Atualmente, grande parte das terras que a conformavam se encontra dividida em várias

comunidades habitadas por um número importante de ex-moradores da fazenda que ali

compraram pequenas porções de terra. Um fragmento dela também é, atualmente, um

assentamento de reforma agrária, que resultou de uma ocupação de terras organizada pelo

sindicato de trabalhadores rurais de Bom Jesus e que recebeu o nome ―Jorge Fernandes‖, em

homenagem ao líder sindical.

Havia, então, construído meu objeto. Empreenderia meu trabalho de campo sobre a

configuração dos conflitos de Belém e de Campos Novos e abordaria as reconstruções que as

pessoas envolvidas nesses conflitos elaboravam a respeito. Me interessava trabalhar as

reconstruções de pessoas que se posicionavam em lugares distintos, continuando assim aquela

abordagem que, em minha dissertação de mestrado, havia se revelado fecunda e que consistia

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Família, escravidão, luta 6

em considerar os diversos registros em torno de uma questão. Partiria de um desses registros,

daquele que havia chegado a mim a partir de meu lugar na universidade, e que era constituído

pelas perspectivas dos integrantes das organizações sindicais. Os demais registros a

considerar, ainda que já intuídos e antecipados, iriam se definindo mais claramente ao longo

do trabalho de campo.

O campo, o objeto e a percepção de suas brechas

Após a construção de meu objeto, a partir de uma indagação prévia em fontes

secundárias, comecei, desde os últimos meses de 2008, a entrar de maneira sistemática e

contínua em nosso apreciado e imprevisível trabalho de campo, o qual concluí nos primeiros

meses de 2010. Alternaria esse tempo entre o Rio Grande do Norte e o Rio de Janeiro, entre

as comunidades e os arquivos urbanos, entre as organizações sindicais e as casas das pessoas,

entre o aqui e o lá, construindo uma etnografia multissituada. O material produzido nesse

trabalho revelou-se voluminoso e, na tese, me restringi a contemplar os dados que elaborei a

partir de minha investigação no Rio Grande do Norte, de modo que, a partir de agora, me

referirei exclusivamente a esta experiência.

Os múltiplos sítios da etnografia foram sendo desenhados, no trabalho de campo, a

partir dos diversos circuitos que se configuraram em torno das recomendações de pessoas com

quem conversar sobre as questões que eu perguntava. De fato, durante este período, fui

encontrando determinadas pessoas que, por sua vez, sugeriram que eu falasse com outras

tantas. À medida que o trabalho se desenvolvia, tais sugestões (e não sugestões) iam

conformando circuitos específicos de investigação e ganhando importância na reflexão. As

recomendações das pessoas no campo não somente mapearam os diversos lugares sobre os

quais eu realizaria meu trabalho, como também reconfiguraram meu objeto, desagregando-o

como tal e reagregando-o em temas distintos que também implicariam perguntas distintas.

Essas diversas recomendações feitas por diversas pessoas mostraram determinadas redes de

relações sociais e, em tais redes, se deixaram entrever algumas regularidades que estruturaram

de maneiras distintas as referências à questão que me ocupava.

Meu objeto se transmutava. Os narradores posicionados nos diferentes circuitos de

investigação me mostravam que ―Belém‖ era algo sobre o que se podia contar, mas que, no

entanto, esse algo não era o mesmo em cada uma das redes de recomendações que foram

sendo configuradas. Quando comecei o campo nas terras da antiga fazenda, me dei conta que

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Família, escravidão, luta 7

―Belém‖ seria a referência mais pertinente de minhas perguntas. Não cabia perguntar sobre o

cambão e sua derrubada ou sobre o conflito de Belém, a não ser para os integrantes e ex-

integrantes da federação, que viviam na capital do estado. Era possível perguntar pela luta de

Belém. No entanto, a luta não se estendia a todas as redes de recomendações. ―Belém‖, em

troca‖, se desfraldava sem modéstia com todas as suas letras pelos diferentes circuitos. As

pessoas mais antigas do lugar tinham todo um mundo para contar junto com ela, mais

especificamente, tinham uma história.

Ao longo do trabalho de campo, fui percebendo que uma das melhores formas de

iniciar as conversas seria dizendo algo como: ―Eu queria saber sobre a sua vivência aqui, em

Belém, como é que era tudo‖. A partir dali, a história começava a se descortinar. Ampliei,

com isto, minhas primeiras indagações que começavam com a menção às experiências

sindicais, já que observei que não muitas pessoas identificavam esse tema. Deixei de

perguntar sobre o sindicato para perguntar sobre Belém e, com isso, consegui que, com

exceção dos mais jovens, meus interlocutores/as soubessem ao que eu estava fazendo

referência. Passei a perguntar sobre as experiências em Belém. Entretanto, mais tarde, vi que

―experiências‖ não era a melhor palavra e acabei por direcionar as minhas perguntas à

vivência em Belém ou, simplesmente, à Belém.

―Eu vou te contar a história‖, me diziam, então. Ou ―eu nasci e me criei em Belém‖ e,

a parti dali, prosseguiam. Ou ―sobre Belém, quem pode te contar é fulano‖ e, em seguida,

tinham alguma referência para fazer sobre ela. Perguntar sobre Belém era abrir histórias.

Histórias que, no entanto, não me falavam sobre a mesma coisa. Como assinalei

anteriormente, foi possível apreciar regularidades entre os relatos dos diversos contadores,

situados, em geral, em um mesmo circuito de recomendações, o que me permitiu pensar que,

quando estes falavam sobre Belém, estavam construindo a mesma questão, diferente daquela

construída por outros contadores recomendados a partir de outras redes. Assim começavam a

se revelar uma, duas, três, quatro ou cinco ―Beléns‖, e as pessoas começavam a associar a

minha pesquisa com objetos distintos.

A derrubada do cambão me fez chegar às terras de Belém. O episódio e as instituições

que o recriavam teceram meu caminho em direção ao agreste norte-riograndense. Meus

primeiros contatos foram com a federação de trabalhadores, localizada na capital do estado,

cujo vice-presidente, Jorge Alves, me ajudou a estabelecer o vínculo com o presidente do

sindicato de trabalhadores rurais de Bom Jesus. Estevão, outra pessoa ligada à organização,

também me ajudou a forjar esse laço. Quando cheguei a Bom Jesus, me dirigi, então, ao

sindicato. Gregório, o presidente, já estava me esperando e, nessa ocasião, tivemos uma

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Família, escravidão, luta 8

conversa gravada sobre a história de Belém e da luta. Diante da minha pergunta sobre um

lugar onde pudesse me hospedar com a finalidade de dar prosseguimento à pesquisa, ele me

ofereceu gentilmente a sua casa no assentamento ―Jorge Fernandes‖ e também a de seu filho,

que vivia com sua jovem esposa no próprio sindicato.

Recebi o convite do assentamento com grande entusiasmo. Tinha expectativas de

poder alojar-me de tarde ou de manhã cedo e foi um alento ver que isso era possível. De modo

que, na hora do almoço, subimos em sua caminhonete e nos dirigimos ao assentamento. No

caminho, a cidade mostrava suas casas e nos aproximava do lugar onde antigamente se

localizava a porteira da fazenda que, hoje em dia, já não se deixa observar àqueles que a

viram anteriormente. Havíamos entrado nas terras de Belém pelo caminho que une o

município de Bom Jesus ao município de Serras. Árvores esparsas e casas dispersas nas

margens do caminho nos recebiam e, de repente, o ―armazém‖ e a antiga ―casa grande‖ da

fazenda saltaram aos olhos com a ajuda das palavras de Gregório, que apontavam para

aquelas edificações. Poucos minutos depois, estávamos no assentamento.

Teresinha, a esposa de Gregório, estava me esperando. Ela irradiava energia e

simpatia e aquilo foi outro alento para enfrentar os meses de campo que se aproximavam.

Naquele momento, me preocupou, contudo, que eu não conseguisse entender o que ela dizia.

Meu português se viu desafiado com as tonalidades que desafiavam as estandardizações do

idioma. Somente podia responder seus comentários com um ―como?‖ e, quando me cansava

de perguntar, fazia um simples gesto de afirmação, acompanhado de um ―hum, hum‖, ou com

um sorriso que sua amabilidade me despertava. Mas ali estava Marcela, sua neta de 18 anos, a

quem eu conseguia entender perfeitamente. Gentil e solícita, Marcela me ajudava a resolver

minhas carências do idioma, esclarecendo-me algumas frases de Teresinha. Além disso, a

situação era facilitada pelo fato de Teresinha, sim, entender o que eu dizia. A dificuldade não

durou muito. Pouco a pouco tive de acostumar meu ouvido a seu sotaque.

Não era a primeira pessoa de fora que se hospedava ali. Teresinha me contou que já

haviam chegado outras visitas por intermédio do sindicato, que se alojavam no lugar ao longo

de uma semana, aproximadamente, e depois iam embora. ―Faziam pesquisa também?‖,

perguntei a ela e à sua neta, mas nenhuma conhecia o motivo de suas presenças, e somente me

respondiam que chegavam do sindicato. Lembravam-se, sim, do que comiam. Marcela

observou que, certa vez, uma delas havia feito um almoço com folhas de árvores e elementos

do lugar pouco usados pelos vizinhos dali. Outro, acrescentou, era um hindu que não comia

carne, nem sal e que usava condimentos que substituíam este último. A diferença na

alimentação ajudava Marcela a definir a distância dessas visitas, que foram caracterizadas

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Família, escravidão, luta 9

pelo que comiam e não pelo trabalho, como eu tendi a fazer. Tampouco comigo este último

constituiu o parâmetro mais importante para me localizarem. Uma vez esclarecido que eu era

da universidade e que realizava um trabalho sobre a sua história, as perguntas que me faziam

tendiam a se voltar mais para a minha família, meus pais, meu irmão ou se eu era ou não

casada. Também me perguntavam o que eu comia, de onde vinha, onde ficava a Argentina,

que religião eu tinha e que língua era essa que eu falava — se era inglês ou o quê. Lhes

interessava como era o clima do lugar de onde eu vinha e voltavam a se interessar pela minha

família, por como eu conseguia ficar sozinha, longe deles e como, em meu idioma, eram

denominadas as relações familiares. ―Abuelo‖, ―abuela‖, ―padre‖, ―madre‖, ―hermano‖,

―hermana‖, ―tía‖, ―tío‖, ―sobrina‖, ―sobrino‖, ―hija‖, ―hijo‖, lhes respondia. Por fim, o

trabalho que eu realizava somente me caracterizava em um nível superficial e lhes informava

por que eu estava ali. Em troca, minha família, minha língua, meu lugar, meu clima, minha

comida e minha religião, entre outros dados, lhes permitia melhor entender quem eu era e de

onde vinha, conhecimento que, para eles, se tornava relevante devido à minha condição de

visita do lugar.

Ao me hospedar na casa de Teresinha e Gregório, me converti em sua visita. Nessa

experiência, Teresinha foi a relação mais importante que estabeleci no campo. Uma vez ali, eu

ficava à sua mercê, e comecei a adequar meus movimentos ao modo apropriado para a

organização do lugar. Assim, eu realizava meu trabalho e, para tanto, devia circular não

somente pelo assentamento, mas também pelas comunidades do entorno. Isso não causava

inconveniente se alguém me acompanhasse para tanto. Todas as vezes que eu quis sair para

entrevistar, Teresinha chamou um de seus netos pequenos ou Marcela para que fossem

comigo. Não importava que tivesse chegado sozinha de Trindade (cidade significativa do Rio

Grande do Norte), do Rio de Janeiro ou da Argentina; quando entrava no assentamento, as

regras de circulação transformavam-se e, desde os primeiros momentos, ficou bastante claro

que eu não poderia andar sozinha por aquele lugar. Aquilo não era tão estrito em minhas idas

à cidade de Bom Jesus. Que Gregório me levasse até ali era o que deixaria Teresinha mais

satisfeita. Em sua ausência, era suficiente que Marcela ou outra pessoa me acompanhasse até

o ponto de ônibus, e o mesmo ocorria cada vez que eu voltava a Trindade, ocasião que acabou

gerando um pequeno passeio rotineiro para aqueles que íamos costumeiramente, semana após

semana, até o ponto. Consolação (a filha de Teresinha e mãe de Marcela), seu filho Edmundo,

de oito anos, as vizinhas que tinham a idade de seu filho, Marcela, Renatinho (o neto de

Teresinha, de três anos) costumavam compor o grupo de acompanhantes desse passeio,

sempre secundados pelo cachorro de Gregório.

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Família, escravidão, luta 10

Por outro lado, durante os momentos em que, para eles, eu não estava trabalhando, ou

seja, momentos em que conversava com as pessoas sobre a história e gravava essas

conversas, o mais apropriado era permanecer com as mulheres, tanto com as da família, como

com as vizinhas que costumavam se aproximar da casa de Teresinha. De modo que passei

muito de meu tempo naquele lugar junto a Teresinha, a Marcela, que vivia com ela, e a

Consolação, cuja casa ficava ao lado, e que vivia com seu filho, Edmundo, e seu marido,

Henrique. Mariana, a nora de Teresinha, e Alice, a nora de Consolação, também costumavam

freqüentar a casa. Ambas viviam no assentamento. Mariana era a mãe de Renatinho e morava

com seu marido, Evandro, ao lado da casa de Teresinha. Alice vivia atrás da casa de seus pais,

a uma distância um pouco maior da de Teresinha, junto com seu esposo, Joel, filho de

Consolação. Finalmente, Daniela, Doralice e Edna eram vizinhas que costumavam passar por

ali com freqüência, e também o faziam, ainda que com menos assiduidade, Dona Lurdes,

Débora e Paula. Elas e seus/suas filhos/as pequenos/as (quando tinham filhos) seriam assim

minha companhia mais freqüente no assentamento.

Cada vez que eu chegava de alguma entrevista, Teresinha me recebia e me perguntava

como havia sido. Lhe interessava o que eu trazia com minhas andanças, entre outras coisas

porque estas lhe proporcionavam notícias de velhos vizinhos que viviam em outras

comunidades, que há bastante tempo não via, ou com os quais há bastante tempo não se

relacionava. Minha pesquisa roçava seus espaços, os lugares por onde passou sua vida, as

pessoas que conheceu desde que era pequena, e tudo aquilo a mobilizava. Ela gostava de ter

notícias e de fazer uma pausa para recordar e conversar. Às vezes, me contava velhas histórias

que a ligavam com a pessoa que eu havia entrevistado, velhas histórias que lhe faziam

lembrar sua infância e juventude. Quando era ela que me acompanhava para entrevistar,

procurava, depois disso, compartilhar a experiência com alguém, contar que viu e que esteve

conversando com determinada pessoa também conhecida de seu interlocutor daquele

momento. Para ela, se tratava de criar um espaço de encontro.

Antes de conhecer Teresinha, Gregório me levou na casa de Luis Cardoso, o

presidente da associação do assentamento. Me apresentei e lhe disse que em breve eu

conversaria com ele sobre a luta pela desapropriação das terras que hoje compõem tal

assentamento. Este começou a ser erigido a partir de 2001, e constitui uma área de 1.937 ha,

dividida entre 60 famílias que receberam 20 ha cada. Atualmente, a quantidade de famílias

que ali vive é maior, a partir dos novos núcleos criados pelos filhos dos assentados. O

assentamento também possui mais de 100 ha de área comunitária. As casas respondem a um

mesmo padrão de construção, apesar de os agregados edificados sobre elas que diferenciam

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Família, escravidão, luta 11

uma e outra (geralmente galerias que as contornam ou varandas localizadas na parte da

frente). Estas se encontram agrupadas no que constitui a sede do assentamento, onde também

há uma igreja, uma escola, uma casa de farinha e um galpão que contém máquinas de

tratamento de algodão, um arado e uma sala com computadores que não funcionam.

Em meu primeiro dia no assentamento, vi minha listagem de entrevistas ser guiada por

Gregório e por seu filho, Evandro, que também trabalha no sindicato e que fora presidente da

associação do assentamento antes de Luis Cardoso. Evandro me acompanhou nesse dia para

fazer minhas primeiras entrevistas, aquelas sobre a luta. A princípio, iríamos à casa de um

antigo morador de Belém que, durante a década de 1960, participou das atividades sindicais e,

na ditadura, foi perseguido e teve de fugir para São Paulo para só voltar depois de um bocado

de tempo.

As pessoas recomendadas para falar sobre as experiências sindicais da década de 1960

repetiram-se nas diversas sugestões. Era possível ver uma definição bastante clara de quem

eram os contadores privilegiados. Estas recomendações partiram principalmente de Jorge

Alves e de Gregório, mas também de alguns vizinhos do assentamento e de outras

comunidades. Além disso, as próprias pessoas que eram recomendadas, algumas vezes, se

indicaram mutuamente. A rede que me franqueava a história vinculada a essas experiências

sindicais era constituída por poucas pessoas, já que seus protagonistas não eram muitos, e

alguns deles estavam mortos ou já não sabiam contar a história. Entre eles, Jorge Fernandes,

Gregório, Antônio de Ribeiro, o velho Manoel de Bete — que foi um dos primeiros delegados

sindicais de Belém — e Zé Silva, ainda estavam vivos para contar. Zé Silva, no entanto, já

não estava capacitado para fazê-lo. Durante a ditadura, tinha sido preso, haviam raspado a sua

cabeça, dado um tiro em seu pé e aquilo havia deixado seqüelas. Seu medo não lhe permitia

receber gente em sua casa e o levava a correr ou a se esconder cada vez que algum

desconhecido chegava. E Cacá Jundiá já estava morto.

Após ter ido na casa de Antônio de Ribeiro, nesse primeiro dia, me dirigi com

Evandro à casa de Luis Cardoso. Até aqui, um novo dado parecia vislumbrar-se e tinha a ver

com a inclusão de Luis na lista de entrevistas que eu empreenderia a partir das recomendações

feitas por pessoas que participavam das atividades sindicais. Luis era um homem de 52 anos,

que nascera em um município vizinho a Bom Jesus, São Francisco, e vivera em duas

comunidades do interior desse município. Não havia sido morador da fazenda Belém nem

havia participado das experiências de organização sindical da década de 1960. No entanto,

Gregório o incluiu em meio às pessoas que me recomendou entrevistar. Além de ser o

presidente da associação, Luis se destacara nas atividades relacionadas à desapropriação das

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Família, escravidão, luta 12

terras do atual assentamento e esse foi o critério que o incorporou ao circuito de entrevistas

sugeridas. De modo que Belém e sua história também pareciam incluir a desapropriação de

um fragmento do que fora a antiga fazenda, já que aquilo era parte da luta sindical naquele

lugar.

Entretanto, mais tarde vi que aquilo não era tão simples e que, entre as pessoas

recomendadas a partir das relações sindicais, Belém e sua história, ao mesmo tempo que se

uniam com a luta pelo assentamento, também se desligavam dela. De tardezinha, parti com

Evandro em direção à casa de Antônio de Ribeiro. No caminho, ele me apresentou a um

homem jovem que era nascido no lugar. Após tê-lo feito, me esclareceu que, apesar de ter

nascido ali, esse homem não sabia sobre a história de Belém, como tampouco sabia sobre ela

qualquer das pessoas jovens do lugar. Se ele, que tinha 40 anos, havia escutado muito pouco

dessa história, quem tinha 20 anos ou menos não a conhecia, disse. Quem sabia daquilo era ―o

pessoal mais velho‖, acrescentou.

Mais tarde, quando fomos para a casa de Antônio de Ribeiro, pudemos ver que, em

uma vivenda situada de forma perpendicular à de Antônio, estava sentada uma velhinha.

Evandro me advertiu que ela havia nascido e vivido ali a vida toda, e esse critério foi

suficiente para que o gesto de nos aproximarmos dela para falar sobre Belém fosse pertinente.

Seu marido sabia muito da história, me disse Evandro, não obstante, já estava morto.

Uma vez na casa de Luis, ele e Evandro observaram que os que sabiam da história de

Belém eram os mais velhos:

- ―Eu ouvi os caras contando. Eu conheço um cara que conhecia a história de Belém todinha

porque, até aquele cabra que mataram aqui, aquele Zé Jacó, era genro dele, um cara que mora

lá em Bom Jesus, o Manoel David‖, disse Luis.

- ―Belém é uma historia antiga, dos coronéis‖, acrescentou Evandro, e Luis reiterou:

- ―O Manoel David conhece tudo aqui, sabe como era o cambão daqui, sabe tudo‖.

Nesse percurso junto a Evandro, meu primeiro pelo assentamento, percebi então que,

nesse lugar, meu objeto se associava com algo mais que a luta e as experiências sindicais.

Belém tinha uma história que também era antiga. A história podia se vincular à luta, mas

também à antiguidade e se, ao falar da primeira, cabiam os relatos sobre o assentamento, em

troca, estes não tinham lugar quando a antiguidade era uma referência. As ambigüidades

começavam a aparecer, e meu objeto começava a se desdobrar. Ter nascido e vivido toda a

vida ou muito tempo no lugar também pareciam constituir critérios pertinentes na hora de

legitimar as vozes que podiam narrar sobre Belém, uma Belém que, agora, se referia tanto aos

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Família, escravidão, luta 13

episódios de luta sindical quanto à história antiga, aquela que os velhos moradores do lugar

saberiam contar.

No primeiro dia em Belém, percebi que a imprecisão acompanharia meu trabalho de

campo. Belém remetia a questões diversas que me levariam a empreender uma busca pouco

definida. Se o primeiro circuito de conversas a seguir estava guiado pelos participantes das

experiências sindicais da década de 1970, este começou a se abrir para incorporar os demais

moradores antigos e, talvez, os participantes da luta pela desapropriação do assentamento,

apesar de que, ao perguntar sobre Belém, estes últimos ganhassem menos importância que os

moradores. No encontro com a velhinha e na entrevista com Luis, me deparei pela primeira

vez com esse novo critério de busca. A velhinha foi um encontro casual que me mostrou a

relevância de conversar com os antigos do lugar. O velho Manoel David, por sua vez, que

havia vivido toda a sua vida em Belém, foi o primeiro a ser recomendado de uma maneira

manifesta em função desse novo critério que eu começava a conhecer e que me mostrava uma

Belém diferente. Por outro lado, ao me permitir tecer um circuito de entrevistas com as

pessoas que participaram da desapropriação do assentamento, a entrevista com Luis também

me ajudou a continuar indagando sobre uma Belém que se associava com as experiências

sindicais. Pedi a recomendação dessas pessoas não tanto porque se evidenciasse que, para

meu objeto, era importante indagar sobre aquilo — o que não parecia ser o caso — mas,

sobretudo, como uma estratégia para iniciar a investigação, já que essas sugestões me

proporcionariam uma maneira de começar meu contato com as pessoas do assentamento.

De modo que a investigação me levaria a perguntar pelas pessoas que participaram da

luta sindical e por aquelas que haviam nascido naquela região ou que para ela tinham mudado

desde pequenas, os antigos moradores. Minha busca abria, assim, um vasto campo, já que

grande parte desse lugar abrigava velhos moradores. No entanto, novos critérios entrariam em

jogo, aqui, e delimitariam minha andança etnográfica.

O primeiro percurso pelo assentamento me brindaria com outra experiência que seria

importante em meu trabalho, a qual seria reiterada depois. Quando cheguei com Evandro à

casa de Antônio de Ribeiro, ele não estava. Nos atendeu sua esposa Fátima e, diante de sua

ausência, sugeriu que voltássemos mais tarde para encontrá-lo. Soube nesse momento que,

além de ser a antiga companheira de Antônio, Fátima era do lugar, e esses dados se somaram

ao interesse que tive em conversar com ela. No entanto, minha proposta encontrou algumas

reticências por parte de Fátima, assim como de Evandro. Este último não via a relevância de

entrevistá-la e lhe parecia melhor que falasse mais tarde com Antônio, que me daria um relato

mais completo. Fátima, por sua vez, me disse que ela não se lembrava daquilo que eu

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Família, escravidão, luta 14

perguntava e que era Antônio quem sabia do tema, devido ao fato de estar vinculado ao

sindicato. Minhas perguntas relacionavam-se com o fim do trabalho gratuito e com as

perseguições durante a ditadura. Fátima deixou entrever, em seus comentários, que ela era a

namorada de Antônio na época em que ele teve de partir para São Paulo por causa das

perseguições, e me pareceu fundamental conversar com ela. Disse a ela, então, que além da

experiência de seu esposo, o que ela vivera com a partida do namorado também era

importante para meu trabalho e voltei a lhe pedir que me contasse sobre isso. Respondendo

que ela não sabia contar muito bem esse assunto e que não se lembrava direito, Fátima, no

entanto, aceitou meu pedido. Nos fez passar para a sua sala e começou a narrar.

Seu relato me impressionou pela quantidade de detalhes e lembranças. Contou

longamente sobre as suas vivências com a fuga do marido, como também sobre as

experiências que, desde pequena, teve nas terras de Belém. Diante daquele vasto relato,

evidenciou-se que a recomendação de Antônio não se referia tanto ao que um ou outro

recordasse ou soubesse sobre o tema que minhas perguntas traziam, mas a posições sociais, de

um lugar que devia ocupar Antônio e não Fátima. Antônio era considerado o contador dessa

história, que já havia sido passada anteriormente a outras pessoas. De acordo com eles, ele

não somente a havia vivido, mas também possuía a arte necessária para narrá-la. Por outro

lado, além de ocupar o lugar do contador, Antônio era também um homem, e eram os homens

que, de preferência, tomavam a palavra em situações públicas como as que se constituíam

durante a situação de entrevista, na qual alguém de fora fazia perguntas que seriam

conhecidas fora dali.

A história de Belém trazia, assim, não somente um conteúdo, mas também as

dinâmicas sociais que legitimavam seus narradores. Trazia, além disso, a arte de saber narrá-

la, a partir da qual o saber não se separava do saber contar. Se não se possuía essa arte, então a

história não tinha como existir, já que ela se conformava quando era narrada. Uma história

mal contada não chegaria ao outro como deveria chegar, seria algo mal formado que

precisaria de uma nova constituição, de um novo contar.

De modo que a minha busca não somente envolvia aqueles que podiam narrar a luta,

como também os antigos. Além disso, estava entremeada com considerações sobre os bons

contadores e sobre os ideais morais e as regras de comportamento que faziam com que os

homens estivessem acostumados a falar em situações formais com gente de fora. Entre os

antigos, se contemplava tanto os homens como as mulheres, no entanto, eram geralmente os

homens os que acabavam sendo privilegiados nas recomendações. A posição secundária na

qual Fátima se colocou foi atualizada também em outras situações que envolveram as

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Família, escravidão, luta 15

mulheres. Assim, por exemplo, Evandro enfatizou que quem sabia a história era o marido da

velhinha. Como ele já estava morto, restaria então conversar com ela. Algo semelhante

ocorreu com a esposa de Ivaldo. Este foi um dos primeiros assentados que tentei entrevistar e

o fiz a partir da lista do assentamento que Luis me fornecera. Fui em sua casa com Marcela, e

Vilma, sua esposa, nos atendeu. Em uma pequena troca que tivemos, pude saber que ela havia

vivido muito tempo nas terras de Belém, tal como Ivaldo. Me pareceu, então, pertinente pedir

para conversar com ele. Ela entrou em sua casa e logo voltou com duas cadeiras dobráveis. As

colocou na galeria da varanda da frente e, na ausência de seu esposo, começou a narrar. No

entanto, insistiu repetidamente que voltasse para conversar com seu marido, que me contaria

sobre tudo aquilo do sindicato que eu queria saber. Vilma não falou sobre esse tema na

primeira entrevista. Me disse que não se lembrava daquilo. No entanto, no dia em que

entrevistei seu marido, ela foi eloqüente a esse respeito. Entendi, tempos depois, que o lugar

que lhe pedi para ocupar, no dia em que a entrevistei, correspondia, de preferência, a seu

marido, de modo que, uma vez que a entrevista se dirigiu a ele, ela se sentiu legítima para

somar a sua voz, ao fazê-lo em uma situação que era protagonizada por Ivaldo.

Os exemplos a esse respeito são numerosos. A maioria das conversas gravadas com

mulheres pode ser realizada porque seus maridos estavam ausentes. Quando ambos estavam

na casa, o homem falava e a mulher acompanhava e acrescentava ao relato de seu marido. No

entanto, tive um importante acesso às mulheres e, apesar das situações de entrevista me

ajudarem nessa aproximação, as relações mais informais que estabeleci com elas durante o

meu trabalho de campo foram fundamentais para isso. Como observei anteriormente,

correspondia que compartilhasse com elas e seus/suas filhos/as pequenos/as os momentos que

não me dedicava a entrevistar, momento nos quais, de acordo com a sua opinião, eu não

estava trabalhando. Nesses momentos, Teresinha me enchia de atenções que giravam em

torno da comida e do descanso. Cada vez que eu voltava de uma entrevista, tentava com suas

cortesias fazer um lugar em minha pausa, então, eu começava a escutar frases como: ―Agora

vai comer alguma coisa, não vai fazer nada…‖. Esses momentos de ―não fazer nada‖ me

revelariam, no entanto, um mundo de sociabilidade feminina que me abriria os olhos para

uma parte importante das experiências das mulheres de Belém.

Edna, a vizinha de Teresinha, por exemplo, foi pouco loquaz na primeira vez em que

fui à sua casa, e conversei com ela com o gravador ligado. Fora ali para entrevistar seu

marido, recomendado por Luis e Vilma, mas ele estava ausente. Quando soube que ela havia

passado toda a sua vida nessa região, me pareceu pertinente entrevistá-la. À medida que o

trabalho de campo foi avançando — e como ela costumava visitar regularmente Teresinha —

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Família, escravidão, luta 16

começamos a nos conhecer melhor. Nesse percurso, fui uma segunda vez em sua casa e,

novamente, o fiz para entrevistar seu companheiro. Ele não estava e Edna insistiu para que eu

ficasse esperando. Nessa espera, tivemos uma conversa muito mais fluida que a primeira.

Como o mostra o exemplo de Edna, era geralmente nos espaços informais da minha pesquisa

que as vozes femininas podiam ressoar.

Além de me guiar pela referência à luta, à antiguidade, por envolver posições sociais,

regras de comportamento e a arte de contar, minha busca também se entremeou às relações de

parentesco, de vizinhança e de amizade. Quando eu seguia o critério da antiguidade para

realizar minhas entrevistas e perguntava pelas pessoas que haviam nascido e/ou vivido muito

tempo na região, tais relações se constituíram na base das sugestões. Aqueles que

recomendavam, nomeavam seu vizinho/a ou ex-vizinho/a, seu pai ou sua mãe, seu tio/a, seu

avô/ó ou seu amigo/a. Como assinalei, anteriormente, geralmente predominava o pai à mãe, o

vizinho à vizinha e o avô à avó etc. Tais relações tampouco estiveram ausentes das

recomendações para entrevistar sobre a luta de Belém, nas quais os sugeridos, além de terem

sido protagonistas dessa luta, também eram amigos, compadres ou vizinhos daqueles que os

recomendavam.

Deste modo, Alice, a jovem nora de Consolação, havia falado com seu pai, antigo

habitante do lugar e participante da luta pela desapropriação, para que conversasse comigo.

Ele respondeu que eu podia passar um final de semana para fazê-lo. Ela também me sugeriu

falar com Margarete, a vizinha que havia vivido toda a sua vida nas terras e que, atualmente,

tinha sua casa no assentamento, ao lado da dos pais de Alice. Margarete, por sua vez, me

sugeriu falar com seu pai, Tião, que vivia na comunidade de Boa Fé, igualmente localizada

nas terras que pertenciam à fazenda. Nessa comunidade, entrevistei Antônio, que depois me

disse que também podia falar com seus vizinhos, que eram antigos habitantes do lugar. Dona

Guida, vizinha de Antônio, que era uma das antigas moradoras, chamou à sua casa outros

velhos vizinhos de Boa Fé, Tião e Júlio, para que me contassem sobre o que perguntava e me

disse que passasse mais tarde para entrevistar seu marido, Zé.

A Antônio (da comunidade de Boa Fé) havia chegado a partir de sua filha, Célia,

habitante do assentamento e ex-moradora da Fazenda Laranjeira (que depois se transformou

no assentamento Jorge Fernandes). A Célia, por sua vez, cheguei a partir da recomendação de

Consolação, que me indicou que entrevistasse seu vizinho, Zé da Virada, o marido de Célia, já

que ele havia sido morador da fazenda, antes que esta se transformasse em assentamento. Zé

não estava, e entrevistei sua esposa. Ela me dirigiu para seu cunhado, que vive no

assentamento, João Vitor, o irmão de seu marido. Também me franqueou o acesso a Boa Fé,

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Família, escravidão, luta 17

ao me sugerir vários/as de seus velhos/as vizinhos/as e familiares da Fazenda Laranjeira, que

hoje viviam naquela comunidade, entre eles, seu pai, Antônio.

Além de me recomendar seu marido, Vilma me disse que eu podia entrevistar seus

dois vizinhos do assentamento que vivem do lado e em frente à sua casa, e que também

haviam sido vizinhos de Lagoa da Montanha, outra comunidade da região, compreendida

entre os limites da antiga fazenda na qual Vilma vivera antes de se mudar ao assentamento.

Luis, por sua vez, me sugeriu Manoel David, que fora um antigo vizinho. De modo análogo,

o filho de Teresinha que vive em Trindade me recomendou que falasse com seu sogro,

Antônio, que hoje vive no município de Serras e, com seus mais antigos vizinhos de Lagoa do

Gibão, outra das comunidades localizadas no que antes era a fazenda. Moreno também era

uma destas comunidades, à qual cheguei com Teresinha, que ali me indicou seu velho tio,

Joca, para me falar sobre Belém. Entre outras pessoas, incluída ela própria, seus antigos

vizinhos de Lagoa do Gibão e seu atual e velho vizinho, Antônio de Ribeiro, também foram

recomendados por Teresinha.

Umas amigas desta última me convidaram à comunidade de Manaus, próxima a Boa

Fé. De acordo com uma delas, ali eu poderia entrevistar seus parentes e vizinhos idosos.

Maria Clara, a outra amiga de Teresinha, me sugeriu que seria pertinente conversar com seu

pai e com seu avô, que viviam na cidade de Bom Jesus. Também Helena, a professora do

assentamento, me falou sobre sua avó de Moreno, com quem eu poderia falar num domingo, e

a filha de Maria Clara me sugeriu sua avó, Jacinta de Manaus. Enfim, esta série somente traz

alguns exemplos que põem em evidência a centralidade dos laços de parentesco, de

vizinhança e de amizade nas recomendações que os habitantes das terras da antiga fazenda

faziam em relação às pessoas que podiam me falar sobre Belém.

À medida que iam sendo consumadas as conversas com os habitantes dessas terras, fui

me deparando com questões que também tornaram pertinente meu percurso por outros

lugares. Não somente em direção a Trindade, onde encontraria arquivos e pessoas que me

falariam das experiências sindicais, mas também em direção a Bom Jesus, a cidade referente

do que fora a fazenda Belém. A família Melo, que havia sido proprietária da desaparecida

fazenda, ao longo de três gerações, foi reiteradamente evocada pelos habitantes do lugar.

Nomes diferentes, seguidos por esse mesmo sobrenome, começavam a aparecer nos relatos e,

junto com eles, os laços de parentesco que os uniam. Tozé, Josias, Zé, Toninho, Eli eram

palavras que se repetiam e que sugeriam um novo tipo de busca. Os habitantes das terras de

Belém referiam-se à família proprietária, e eu devia saber quem haviam sido esses nomes

novos que ganhavam visibilidade. Era uma busca que eu não havia previsto.

Page 32: Tese Fernanda Figurelli

Família, escravidão, luta 18

Como faria para saber sobre os Melo e do modo como foram distribuídas as terras de

Belém entre eles? O cartório parecia ser um lugar plausível para me proporcionar algumas

pistas, ao menos sobre aquisições e transferências de propriedade. Perguntei a Gregório se ele

sabia qual cartório abrigava os registros referentes à propriedade de Belém, e ele me orientou

a me dirigir ao Primeiro Cartório de Bom Jesus. De fato, era ali que estavam localizados todos

os registros. Em uma manhã de segunda-feira, Gregório me conduziu para perto daquele

lugar, antes de deixar Teresinha, Consolação, Estela (a filha de Teresinha que vive em Lagoa

do Gibão e tinha ido visitar a mãe no final de semana), as filhas pequenas de Estela e Mariana

na feira, realizada todas as segundas-feiras na zona conhecida, naquela cidade, como alto

Santa Irene. No cartório, uma escrivã me confirmou a existência dos registros sobre Belém e

me direcionou ao titular para que eu pedisse sua autorização visando consultar os livros dessa

instituição. Em sua ausência, a opção seria conferir-me uma certidão. Eduardo, o titular do

cartório, tinha seu escritório de advocacia em Trindade, para onde me dirigi, com o intuito de

lhe pedir a autorização.

Teria eu algum parentesco com os proprietários, o que me levava a investigar sobre a

história de Belém? Essa foi a primeira pergunta que Eduardo me fez diante do meu pedido, a

qual começaria mais tarde a se repetir entre as pessoas da cidade. Que algum laço familiar

pudesse constituir o motivo que me levava a esta pesquisa, parecia indicar uma mudança de

referência. Continuávamos falando sobre Belém? Se era assim, então o que Belém evocava

remetia a questões distintas das que me contavam os habitantes do lugar. Para pedir a

autorização ao titular do cartório, usei a minha credencial da universidade, que solicitava a

colaboração das autoridades competentes para a realização de minha pesquisa sobre ―conflitos

de terra e delimitações‖. ―Mas em Belém não há conflitos de terra‖, comentou Eduardo ao ler

a credencial. Belém já não fazia lembrar uma luta sindical. Naquela conversa sobre Belém,

falamos da conformação e da história do patrimônio, da origem eclesiástica das terras e de sua

decadência, de como uma enorme propriedade foi pouco a pouco se desintegrando nas mãos

de seus herdeiros. A Eduardo, pareceu interessante que a história e a origem da fazenda

fossem resgatadas e se dispôs a colaborar com a minha pesquisa, franqueando o meu acesso

aos livros do cartório. De modo análogo, me orientou, mais tarde, sobre os critérios para

realizar buscas naquela documentação e o fez juntamente com a sua mãe, que também dirigia

essa instituição.

Além de autorizar o meu pedido, Eduardo me ajudou a entrar em contato com aqueles

que, de acordo com ele, poderiam me contar sobre Belém: um dos antigos proprietários e o

atual arcebispo da arquidiocese de Trindade, que fora padre da paróquia de Bom Jesus. Belém

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Família, escravidão, luta 19

mudava, assim, seu referente e também seus possíveis contadores. Eduardo conhecia os dois e

me forneceu seus contatos a partir de uns telefonemas que fez quando eu ainda estava por ali.

Um deles foi para o genro de Antônio Melo Neto (para que soubesse sobre mim) e o outro,

para conseguir o telefone da secretária do arcebispo. Após essas chamadas, eu tinha contatos e

números de telefone de um novo caminho de investigação que meu objeto começava a

franquear. Eduardo também me sugeriu outro ex-proprietário de Belém que vive em Bom

Jesus, com quem eu entraria em contato, uma vez nessa cidade.

Assim começaria o meu questionamento no cartório, que me reenviaria a novos

destinos. O nome ―Antônio José Melo‖ dava início à busca que depois prosseguiria em outras

instituições: o cartório de Uruá e a Vara Cível de Bom Jesus, aos quais tive acesso a partir dos

contatos que me foram proporcionados no primeiro cartório. Por sua vez, as relações pessoais

e familiares daqueles que trabalhavam nesse lugar me mostrariam novos rumos. Como

assinalei no parágrafo anterior, Eduardo me franqueou seus contatos. Também o fez Glaucia,

uma das secretárias desse lugar, que era filha de criação de Josias Melo, o ex-proprietário de

Belém, que vive em Bom Jesus e que Eduardo havia mencionado em nossa primeira conversa.

―Meu pai é um desses herdeiros de Belém, que hoje não têm terra‖, me disse ao me ver

pesquisando sobre o tema nos livros do cartório. Em seguida, lhe expliquei que me

interessaria entrevistá-lo, e ela se encarregou de dizer a ele. Josias ―ficou se achando‖, me

disse Glaucia, quando ela comentou que alguém da Argentina queria entrevistá-lo. Ele aceitou

a minha proposta e, alguns dias mais tarde, passaria no cartório para conversar comigo sobre a

história de Belém.

Para além das pessoas do cartório, outros funcionários de classe média da cidade de

Bom Jesus me levavam a me deslocar por um mesmo circuito de pesquisa, cujos contornos

eram dados pelas instituições da cidade e a família proprietária. Por motivos distintos aos que

me conduziram ao cartório, havia chegado à Prefeitura de Bom Jesus. Nesse lugar, me

interessava buscar mapas e dados das comunidades pelas quais eu transitava. Após me

fornecer alguns dados — que consegui rapidamente porque ali encontrei o vereador que, em

certa ocasião, também tinha estado presente em um churrasco na casa de Gregório — me

recomendaram seguir a busca na Secretaria da Saúde. Por sua vez, outras pessoas da

instituição sugeriram que eu me dirigisse à Casa de Cultura onde talvez achasse alguns livros

que poderiam me ajudar. Devido ao contato que o vereador me forneceu na Secretaria da

Saúde, fui atendida pelo Secretário, que me facilitou os dados que eu buscava. Quando

comentei com ele a respeito da minha pesquisa, o funcionário fez alguns comentários sobre

Belém, que voltaram a evocar aquelas questões que, desde a minha chegada ao cartório,

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Família, escravidão, luta 20

começaram a ser vislumbradas, as quais punham em foco a grande fazenda e aqueles que

haviam sido seus donos. Ele também fez recomendações para a minha busca, e essas

recomendações apontaram, principalmente, para os membros vivos da Família Melo. A casa

onde funcionava a Secretaria de Saúde era de propriedade de Antônio Melo Neto, de cuja

esposa o Secretário me forneceu o número de celular. Além disso, também me indicou o

endereço de Josias Melo.

Na Casa de Cultura, voltei a tropeçar em uma presença de Belém que me remetia à

fazenda e à família que havia sido proprietária. A diretora daquela instituição me atendeu

aberta e amavelmente e, com sua conversa e com alguns livros que me passou, pôs diante de

mim uma grande quantidade de dados que me falavam sobre os herdeiros que não souberam

manter o patrimônio em pé, da história de Bom Jesus, dos antigos dessa cidade e de sua avó,

que era prima legítima de Antônio José Melo, da escritura de Belém, do bispo de Pernambuco

que cedeu o domínio útil da propriedade (o direito de usar as terras) à família Melo, da

questão de ―como começou a fazenda‖ e também de como terminou e dos laços familiares que

os proprietários teceram. A Casa de Cultura, à qual eu havia chegado sem muitas expectativas

de encontrar dados a respeito de Belém, foi um lugar ao qual recorri mais de uma vez.

Finalmente, a minha busca sobre Belém também me levou aos velhos empregados da

fazenda. Um deles foi Manoel David, um antigo vaqueiro de Belém a quem, como observei

anteriormente, cheguei por recomendação do presidente da associação do assentamento Jorge

Fernandes. Como vimos, sua antiguidade em Belém e seu bom contar faziam de Manoel, o

ex-vizinho de Luis do assentamento, um narrador autorizado dessa história. O mesmo ocorreu

com Serafim que, em épocas anteriores, pesava o algodão no armazém da fazenda e cuja neta

o recomendou por motivos semelhantes aos de Luis, ao recomendar seu vizinho. No entanto, a

este último também cheguei por sugestão de Manoel, de quem Serafim era amigo, além de

viver próximo à sua casa na cidade de Bom Jesus. Ao recomendar Serafim, Manoel

recomendou seu amigo, um dos mais antigos habitantes de Belém que permanecia vivo, que

sabia contar a história e que, além disso, havia tido um contato próximo com o mais

importante proprietário da fazenda.

Minha chegada aos empregados pôs em jogo os critérios de busca que defini junto aos

moradores, mas também um novo critério que se definia a partir da proximidade com o

proprietário. De fato, os relatos dos empregados, bem como os dos funcionários da cidade de

Bom Jesus, me situaram diante dessa Belém antiga na qual os temas alusivos à origem da

fazenda e à família proprietária ganharam um lugar principal, apesar de que com os

empregados Belém não acabava ali. Esses temas foram tratados por outro ex-vaqueiro da

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Família, escravidão, luta 21

fazenda, Antônio, que era mais jovem que os anteriores e que, de modo curioso, foi

recomendado por um dos antigos proprietários (os quais, em geral, não forneceram sugestões

de outros narradores possíveis). Tal recomendação foi para que o vaqueiro me falasse de um

tema específico sobre o qual eu lhe havia perguntado e sobre o qual o proprietário afirmou

pouco saber. Em minha chegada aos antigos empregados, entremearam-se, deste modo, vários

critérios de recomendação vindos de pessoas posicionadas em lugares distintos em relação a

Belém.

Assim, Belém tinha uma história que podia ser contada. No entanto, quando Belém

era contada, nem sempre evocava a mesma referência. Belém se transfigurava e, com ela, meu

objeto de estudo, e essas transformações vinham junto com minhas mudanças de percurso,

com minhas andanças por diversos sítios etnográficos configurados a partir das diversas redes

que as recomendações das pessoas teceram. Essas redes mostraram uma tendência a enlaçar

um morador com outro, um sindicalista a outro, um funcionário da cidade com outro e

também com os ex-proprietários da fazenda, apesar de, cabe recordar, as recomendações que

cruzaram esses circuitos de entrelaçamento não estivessem ausentes. Quando mencionava

Belém, esses laços sociais se ativavam e me mostravam que não existia uma única Belém,

mas várias; que as histórias que ela franqueava não eram separáveis dessas redes de relações

que se mobilizaram para que estas fossem contadas. Não eram separáveis dos laços de

parentesco, de vizinhança e de amizade, nem dos laços estabelecidos na luta ou dos que, na

cidade, faziam com que duas pessoas de uma mesma classe social se conhecessem. Não eram

separáveis das normas e dos ideais morais que estabeleciam um comportamento masculino e

outro feminino, nem das hierarquias e posições sociais que legitimavam os narradores.

Tampouco eram separáveis da arte de saber contar, da arte de construir um momento narrativo

no qual a história se edifica.

Contar fazia a história, que existia somente quando era passada, que não existia sem

seu contar nem sem tudo aquilo que poder contar implicava. ―Ele vai te passar a história‖ era

uma frase recorrente entre as pessoas, que me dizia que, para chegar ao outro, a história

precisava de alguém que a narrasse. Assim, o narrador e toda essa dinâmica social que o

constituiria como tal vinham junto com o que me contariam.

E essa é a história de como cheguei às histórias que indago neste trabalho. Histórias

que constituiriam referentes, mas também trariam posições e hierarquias, sociabilidades,

moralidades, encontros, artes e momentos de contar. Estes envolveriam, por sua vez, a pausa,

o descanso, as emoções, o prazer, a possibilidade de por em prática essa habilidade de seduzir

e de entreter quem escuta, os talentos e as lágrimas, os cantos e as vozes, velhas vozes que

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Família, escravidão, luta 22

trazem o eco dos anos. Nada disso se desligará do referente, daquilo que a história conta,

dessas entidades a partir das quais olhamos o mundo. Através das histórias, abordarei, nesta

tese, a inquietude que a motivou, aquela que, numa tentativa de ligar etnograficamente as

categorias com as quais pensamos e intervimos em nosso universo às relações sociais que lhe

conferem sentido, me levou a indagar sobre as construções sociais dos episódios memoráveis

de conflito. Mais do que elaborar uma reconstrução histórica desses eventos, me interessa

colocar a ênfase nas complexidades que essa reconstrução não poderia abarcar, nos problemas

que tal tarefa deveria deixar de lado para ser realizada.

As páginas que se seguem dividem-se em seis capítulos. Neles, indago sobre as

diversas narrativas sobre Belém e os diversos objetos que tais narrativas colocaram. Cada

capítulo agrupa os relatos que tenderam a construir um mesmo objeto, os relatos que, em

relação a Belém, se orientaram para narrar uma mesma história. No capítulo 1, parto do

circuito de recomendações tecido na cidade de Bom Jesus e indago sobre uma história que nos

remete a um patrimônio familiar. Nela, é possível ver em Belém uma grande fazenda

produtiva que sustentou as cidades vizinhas, permitindo seu desenvolvimento, uma grande

fazenda que assim se configura a partir de um olhar no qual a urbanização e os traços

distintivos da alta hierarquia urbana se entrelaçam com o prestigioso. Essa grande fazenda,

por outro lado, não se desliga da família proprietária. As narrativas sobre a propriedade giram

em torno dos laços de parentesco de tal família, cujas figuras centrais coincidem com os

principais fazendeiros da história de Belém. Os relatos nos permitem observar uma construção

permanente da família na qual os laços de parentesco vão se configurando de modo

inseparável ao patrimônio. Assim como este se revela central na conformação dos laços

familiares, também a dinâmica desses laços se torna parte da conformação do patrimônio. O

capítulo percorre este processo permanente de formação, que mais do que de entidades

completas e independentes nos fala de uma relação mutuamente constitutiva da ―família‖ e do

―patrimônio‖.

No segundo capítulo, trabalho os descontornos dessa primeira história, as vozes e os

temas que esta relegou a um lugar secundário. Me centro no relato que os velhos empregados

e em dos antigos proprietários fazem sobre as ―mortes de Belém‖ e exploro a presença das

hierarquias sociais na configuração das narrativas. Além disso, nesse capítulo, dou

continuidade aos relatos dos empregados para além das mortes e dos temas contidos na

primeira história (também enfatizados por eles). Ao acompanhar tais relatos, analiso o modo

como tal história amplia seus contornos para se impregnar de elementos alheios ao patrimônio

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Família, escravidão, luta 23

familiar e reflito, com isso, sobre as posições dos narradores, sobre os limites que as histórias

tomam e a relação entre ambas as questões.

No terceiro capítulo, abordo uma nova história. Me localizo no circuito de

recomendações lavrado entre os habitantes das terras da antiga fazenda e nele encontro a

história dos escravos ou a dos cativos. Analiso a conformação de Belém a partir dessas

categorias e de outras, que chegam junto com elas, como a sujeição, a obrigação, a liberdade

e o tempo. As experiências que tais categorias evocam estão centradas na relação dos

moradores com os patrões e estabelecem uma ruptura com a história familiar, apesar de os

relatos também conservarem alguns elementos de tal história. Neste capítulo, indago sobre

uma Belém que fala das experiências dos moradores, que deixa de contar a história da

fazenda de outros para contar sobre um tempo de escravos, um tempo não cronológico a partir

do qual os moradores fazem de Belém sua própria história.

No quarto capítulo, volto a sair dos contornos da história para entrar nos relatos que as

mulheres de Belém fazem sobre a sua vida. Continuo aqui entre os habitantes das terras de

Belém. No entanto, dou um passo para fora do circuito de recomendações para atender

igualmente às relações mais informais que, em meu trabalho de campo, estabeleci com as

mulheres. Essas relações me permitem ver os limites da Belém dos escravos e refletir a

respeito da configuração dessa história. Além disso, trazem novas vivências da época em que

a fazenda pertencia a outros, as quais se centram em torno das experiências de trabalho e

religiosas. Estas não são narradas como parte do tempo dos escravos, nem como parte de um

tempo. Tais vivências contadas e recriadas dia a dia pelas mulheres que viveram e vivem nas

terras de Belém aludem a uma permanência e revelam, além disso, seus espaços públicos, os

espaços de sociabilidade que elas achavam dignos de ser contados e que, no entanto, eram

contados em voz baixa, fora da narração da história de Belém.

Finalmente, antes de entrar no capítulo final, no qual estabeleço relações entre os

diversos capítulos e destaco certos lugares de reflexão que esta tese motiva com suas histórias

contadas, me deparo, no capítulo 5, com a história da luta que surge do meu percurso pelo

circuito conformado a partir das recomendações dos habitantes de Belém e daqueles que

participaram das experiências sindicais no lugar. Vozes diferentes confluem para falar de uma

luta ambígua que é uma só, mas também mais de uma. Neste capítulo, é possível apreciar a

interlocução entre os habitantes e não habitantes do lugar, que participaram tanto do

movimento sindical que ocorreu na fazenda, no início da década de 1960, como de

experiências sindicais mais recentes. No capítulo, enfoco a construção de um marco na luta

sindical com base no episódio da ―derrubada do cambão‖ e exploro o modo como os ex-

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Família, escravidão, luta 24

moradores sindicalizados reinterpretam aquilo. Além disso, analiso os significados que o

―tempo em que começou o sindicato‖ traz e sua relação com o tempo dos escravos e indago a

respeito das narrativas mais cotidianas da luta, as quais se mostram inseparáveis das relações

vicinais e familiares tecidas no lugar.

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Família, escravidão, luta 25

Capítulo I

TERRA, PRESTÍGIO E PESSOAS: UMA HISTÓRIA DE REUNIÕES,

UMA HISTÓRIA DE FAMÍLIA

[...] O domínio útil da propriedade [...] denominada ―Belém‖, situada em

grande parte neste município de Bom Jesus e estendendo-se ao de São

Sebastião e Aparecida, com casas, açudes e cascatas, tendo três léguas em

quadro de superfície as terras que comprehende, limitando-se dita

propriedade: ao poente com os herdeiros do lugar ―Tapir Cinza‖, ao Norte

com a Iguatama; ao Sul com a linha divisória de Paraíba, e ao nascente com

a Barra de Mirí [...].

Por sessenta contos de reis, João Pedro Melo, o ―finado Juca‖, adquire o domínio útil

de ―Belém‖. Seu irmão, Miguel José Melo, a esposa e os filhos de seu irmão, bem como

outros membros da família Melo: Paulo José Melo, José G. Carvalho e sua esposa, D. Anna

Severina Melo, transmitem o domínio da propriedade por intermédio de uma carta de

adjudicação, registrada no Livro 3 do Primeiro Cartório de Bom Jesus, em 19 de outubro de

1920.

O que me levou a investigar os livros do Cartório? Como foi que as perguntas feitas

por ocasião do término do cambão, em Belém, me conduziram até ali? Nas conversas que

mantive com os moradores da antiga fazenda, foram apresentadas de forma recorrente alusões

à propriedade de Belém que remetiam à família proprietária e à sua genealogia, ao tamanho

do patrimônio, à divisão das terras entre os herdeiros e questões afins. Apesar de não

ocuparem um lugar central no relato dos moradores, tais alusões eram parte integrante de suas

narrativas e foram gerando perguntas que fizeram do Cartório um lugar apropriado para a

pesquisa.

Com o intuito de responder a tais questões, descobri uma história diferente da que

contavam os moradores. Os trechos que, no relato destes últimos, apareciam de forma

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Família, escravidão, luta 26

secundária, passaram a constituir o eixo de uma nova narrativa sobre Belém. Família e

propriedade se misturaram, configurando outras relevâncias e outra forma de narrar as

questões consideradas relacionadas com a fazenda.

Como assinalei na introdução, esta nova narrativa se tornou visível em um circuito

―urbano‖ de pesquisa; somente à medida que fui percorrendo algumas instituições da cidade

de Bom Jesus, pude delimitar esta história. De fato, Belém tinha uma presença na cidade, e

visualizar tal presença me permitiu captar novos contornos que governavam as referências à

fazenda. Os comentários informais das pessoas com as quais eu esbarrava em tal circuito e as

entrevistas feitas com outras, por elas recomendadas, davam vida a estes contornos, diferentes

dos que, até então, eu havia perseguido nas entrevistas com antigos moradores e pessoas

vinculadas ao sindicato de trabalhadores rurais.

As recomendações feitas dentro deste circuito freqüentemente recaíram sobre os

membros da família Melo, ex-proprietários de Belém, ainda vivos, a quem eu não teria

chegado, se não fosse por minha visita às instituições de Bom Jesus, que me forneceram seus

contatos. Como veremos mais adiante, mais do que proprietários ou donos, estes membros da

família assumiram o lugar de herdeiros na história. Suas vozes foram centrais na delimitação

da história da qual tratará este capítulo. No entanto, também foi possível incorporar outras

vozes aqui, semelhantes ou diferentes das dos herdeiros, mas coerentes com esta abordagem

de Belém, as quais, em geral, foram contempladas a partir de uma mesma rede de sugestões.

Aqui são mencionados funcionários/as e dados de instituições como a Vara Cível ou a Casa

de Cultura Popular de Bom Jesus. Apesar de os funcionários/as também terem assinalado

antigos moradores de Belém, os destinos centrais de suas recomendações foram os herdeiros

e as instituições do município.

Os velhos empregados da fazenda também ajudam a traçar a linha de pontos que

permite demarcar este capítulo (isto não impede que seus relatos contribuam igualmente aos

dos moradores, que tratarei no terceiro capítulo, mas a valorização positiva que fazem de

Belém introduz uma diferença fundamental entre uns e outros). Destaca-se um trabalhador do

armazém e dos antigos vaqueiros, o que não passa despercebido se considerarmos o status

diferencial dos vaqueiros, em comparação com os demais trabalhadores (Johnson, 1971) e a

proximidade, há muito tecida, entre os donos das fazendas e os vaqueiros, anteriormente

escravos (Cascudo, 1956).3

3 Entre os empregados encontram-se três entrevistados cujos trabalhos em nada se assemelham ao de um

empregado no sentido que comumente atribuímos ao termo. Estes entrevistados são dois ex-vaqueiros da

Fazenda Belém e um balanceiro (tal como foi chamado por um desses vaqueiros) que trabalhava no armazém do

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Família, escravidão, luta 27

Foi um herdeiro que me levou até um antigo vaqueiro da fazenda, que me falaria sobre

temas que o primeiro não negava como parte da ―história de Belém‖, ainda que os

considerasse marginais ao que ele desejava me transmitir. ―Temas marginais‖ que foram

enfatizados por outro vaqueiro, com quem realizei a única entrevista passível de ser incluída

nesta história, que não foi indicada dentro da mesma rede de sugestões. Pelo contrário, um

dirigente importante do assentamento Jorge Fernandes, me recomendou a este homem velho,

um antigo vizinho, para que me contasse ―a história‖ de Belém. Dessa forma, as conversas

com os proprietários (os chamados herdeiros), com alguns funcionários de Bom Jesus, os

dados do Cartório, a Vara Cível e também um fragmento importante das entrevistas com

velhos empregados da fazenda, são reunidos aqui para contar uma história polifônica,

composta de trechos heterogêneos, mas compatíveis, com ênfases hierarquizadas, mas não

contraditórias.

dono da fazenda, pesando o algodão que os moradores vendiam. Além do dono (o fazendeiro) e de sua família,

Belém (como outras grandes fazendas) encontrava-se habitada por moradores, definidos como tais em função do

vínculo particular com a propriedade (Palmeira, 1977). Ali recebiam casa e terra para fazer seu roçado, no qual

plantavam milho, feijão branco, feijão preto, batata doce, batata, macaxeira, mandioca e nhame, entre outros

cultivos destinados à subsistência familiar. Também plantavam algodão, que era o cultivo comercial e que devia

ser vendido ao fazendeiro. Ainda que em escassa quantidade, os moradores criavam animais, tais como galinhas,

perus e guinés, às vezes cabras, ovelhas, porcos e bodes e, mais raramente, gado bovino. Em contrapartida, toda

semana deviam dar ao proprietário um dia de trabalho gratuito (a diária) e, anualmente, deviam pagar um foro,

tema que será tratado ao longo do trabalho. Por outro lado, na fazenda existiam trabalhos que posicionavam em

uma mais alta hierarquia aqueles que os desempenhavam. O de vaqueiro era um deles. Aqueles que exerciam

este trabalho também eram considerados moradores de Belém. No entanto, ligavam-se ao patrão por um

mecanismo diferente dos demais. Como assinala Johnson (1971), o vaqueiro não devia nenhum tipo de

contribuição ao proprietário e era o mais endinheirado dos moradores. Cuidava do gado do fazendeiro e recebia

sorte como forma de pagamento, o que lhe conferia a possibilidade de ter seu próprio gado. Outro lugar de mais

alto escalão era o de quem administrava os armazéns do proprietário, como em Belém o fez Serafim, o

balanceiro. De acordo com o autor citado, tanto este como os vaqueiros e outros trabalhadores versados em

determinada especialidade (carpinteiros, ferreiros etc.) ocupam uma posição diferente e de maior hierarquia na

estrutura da fazenda, mas ao mesmo tempo, não deixam de ser moradores. Como os demais, têm uma casa nessa

propriedade e exercem a atividade agrícola (se bem que a oportunidade de dispor de mais dinheiro lhes permite

pagar trabalhadores para tanto). Tal como Johnson observa na fazenda de Ceará, no caso de Belém, nenhuma

dessas especialidades de mais alta hierarquia excluía a atividade agrícola. Finalmente, outra figura central na

estrutura da fazenda é o administrador do proprietário, que já não é considerado morador. Entre outras tarefas,

este se encarregava de supervisionar os moradores. Em Belém, menciona-se um administrador geral — o famoso

Zé Jacó — e outros capangas que se distribuíam ao longo da fazenda (o administrador Zé Jacó também era

considerado capanga). Ao longo do trabalho, iremos abordando mais detalhadamente cada uma destas figuras.

Para fazendas de gado no Nordeste do Brasil, ver, entre outros, Cascudo (1956), Johnson (1971), Bastos (s/d),

Almeida e Esterci (1977a) (1977b). Para uma análise do sistema de morada em sistemas de plantation

canavieira, ver, entre outros, Sigaud (1971, 1979), Palmeira (1977), Heredia (1986).

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Família, escravidão, luta 28

“O casamento não é bom e desmantela tudo”

Por que Belém? Você tem algum parente da fazenda? De maneira recorrente, ouvi

estas perguntas ao conversar com diferentes funcionários/as das instituições a respeito do meu

tema de pesquisa. As tentativas das pessoas para me localizar e localizar o meu interesse por

Belém constituíram-se em um dado importante na hora de visualizar os significados que a

fazenda adquiria em suas perspectivas: quem mais adequado que alguém da família para se

interessar pela ―história da família‖?

Esperava por novas delimitações, mas nunca imaginei que meus interesses pelos

―conflitos‖ pudessem ser demarcados sob este rótulo, quando empreendi meu trabalho de

campo. Nada me soava mais distante e menos atrativo que perguntar sobre os laços de

parentesco dos Melo cada vez que os moradores faziam menções a este respeito. Em

detrimento de meus interesses, a genealogia da família poderosa impôs-se nas entrevistas, e

me vi obrigada a ir em sua procura. Entrei, deste modo, em um circuito no qual, para além da

minha vontade, vi se redefinir a identidade de minha pesquisa. Entre fotos de família,

registros notariais e testamentos, passei a investigar a história de Belém que, neste contexto,

remetia à grandeza e à decadência do patrimônio territorial da família Melo.

―Belém era uma grande fazenda e, hoje, os herdeiros não têm nada deste território‖.

Esta era a frase por excelência com a qual me respondiam diversas pessoas da cidade, quando

lhes falava que estava pesquisando sobre Belém. A ouvi de Eduardo e Glaucia, do Cartório de

Bom Jesus, de Alícia, da Casa de Cultura, de Edson, da Secretaria de Saúde, de Eva, do

Cartório de Uruá e foi sua importância e repetição que me fizeram perceber que ali estava em

jogo um olhar sobre Belém que dava lugar a uma nova história. Apresentarei, assim, a história

da família e de seu patrimônio; a família de muito dinheiro e poder que vivenciou um

processo de decadência quando Belém, um dos maiores e mais importantes latifúndios da

região, foi sendo dissolvida entre vários donos, dos quais quase nenhum é um herdeiro da

família.

A grande extensão é uma característica distintiva daquele patrimônio. As pessoas

contam que Belém abarcava um considerável território, conformado pelos atuais municípios

de Bom Jesus, São Sebastião, Serras, São Francisco, Aparecida, Bacia e Salvador. Em geral,

diz-se que a fazenda fazia fronteira com alguns destes municípios e se estendia sobre outros,

sendo o de Bom Jesus o mais importante entre os últimos.4

4 No final da década de 50, no processo de inventário de Antônio José Melo e nos livros do Primeiro Cartório, a

extensão geográfica de Belém é descrita do seguinte modo: ―Propriedade Belém […] sita neste município e nos

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Família, escravidão, luta 29

―Primeiro tem que saber a procedência de Belém, onde foi que Belém foi criada‖, me

disse Josias Melo, um dos herdeiros de Belém, que já não possui aquele território. A origem

eclesiástica das terras é, de forma geral, o primeiro tema com o qual as pessoas começam a

história. As terras eram de uma santa chamada Nossa Senhora de Belém.5 Segundo o

assinalado por dados do Primeiro Cartório de Bom Jesus (e, como veremos mais adiante,

também por vários moradores), aquelas terras haviam sido doadas à Igreja desde ―tempos

imemoriais‖. A maioria das versões nos diz que os Melo as adquiriram por cessão do bispo de

Gaivota, em Pernambuco, que administrava aquele território da Igreja católica.6 Um membro

da família pediu ao bispo a cessão. De acordo com Serafim,7 o balanceiro, que viveu em

Belém desde 1919, o bispo de Pernambuco arrendou a propriedade para três vidas: pai, filho e

neto. Deste modo, os Melo adquiriram o domínio da propriedade e, como contrapartida,

começaram a pagar um dízimo à Igreja. Maria Lúcia, a dona do Primeiro Cartório de Bom

Jesus, me remeteu ao Primeiro Cartório de Canguaterama para localizar o registro anterior de

Belém, que data de dois de dezembro de 1817 e no qual figura como proprietária a Paróquia

Imaculada Conceição de Bom Jesus. Apesar daquele registro não ter podido ser localizado no

Cartório de Canguaterama, somente a sua citação já nos presenteia com um dado sobre a

propriedade das terras.

Pouco a pouco, a presença da Igreja se dissipa nos relatos, e começamos a entrar em

terreno familiar. Depois da cessão de Belém por parte de tal instituição, as aquisições das

de São Sebastião e Aparecida deste Estado e com os seguintes limites: ao Norte confronta-se com os senhores de

terras que contestam com a cerca de arame que corre em direção Nascente Poente, nos municípios de São

Sebastião e Aparecida deste Estado, ao Nascente pela cerca de arame farpado a começar da Vila de Lagoa de

Serras do município de São Sebastião, e por esta cerca em direção sul, margeando a linha férrea Souza Lima até

o ângulo da linha sul, daí seguindo rumo poente pela cerca de arame farpado através do rio Gameleira até o

ângulo onde começa a linha Poente da estrada de rodagem de Bom Jesus a Padre Joãozinho, hoje São Francisco,

sempre pela cerca de arame farpado até encontrar o ângulo da linha Norte no município de Aparecida deste

Estado‖. Cabe esclarecer que Serras somente se constituiu como município em 1962, quando se emancipou de

São Sebastião, município do qual era distrito desde 1938. Também é recente a conformação de Bacia e Salvador,

antes pertencentes a Aparecida. Bacia desmembrou-se em 1959 e, mais tarde, o distrito de Salvador

desmembrou-se de Bacia, em 1962. 5 Em termos gerais, as terras de santo são constituídas a partir de extensos territórios pertencentes à Igreja, por

ela abandonados, entregues ou cedidos para utilização como contrapartida de uma renda ou foro (os quais

costumam operar como contribuição simbólica) (Almeida, 1993; Meyer, 1979). Como mostra Meyer (1979),

para além de seu reconhecimento jurídico, o reconhecimento da propriedade do santo por parte dos povoadores é

um ponto central na hora de se pensar este conceito. 6 De 1676 a 1892, a Diocese de Olinda foi a sede eclesiástica do território que, mais tarde, se converteu no Rio

Grande do Norte. A freguesia de Bom Jesus, criada em 1868, dependia daquela administração. Somente em

1910, um ano após a separação do Rio Grande do Norte da Paraíba, criou-se a Diocese de Trindade, que

outorgou ao Estado autonomia eclesiástica (Cascudo, 1955 e Lira, 1988 apud Azevedo, 2005). 7 Serafim é um morador de Belém que trabalhou vários anos para Tozé Melo, um dos mais importantes

proprietários da fazenda. Atuava no armazém, onde, entre outras tarefas, pesava o algodão que os moradores

vendiam. Quando o proprietário de Belém morreu, Serafim continuou realizando o mesmo trabalho para Márcio

Araújo, o marido de uma das herdeiras de Tozé.

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Família, escravidão, luta 30

quais nos falam as pessoas e os registros do Cartório se efetuam principalmente dentro da

família.

As disputas entre os Melo não tardam e desde então começam a se perfilar os

protagonistas da história de Belém. Um deles, já citado no começo do capítulo, é João Pedro

Melo, conhecido como ―finado Juca‖ entre os moradores, os empregados da fazenda e às

vezes também entre os ex-proprietários que entrevistei, de quem Juca foi o pai de seu pai de

criação. Tanto Josias como Serafim mencionaram que Juca tinha vindo de Pernambuco. ―Era

um povo pobre naquele tempo, lá não tinha nada não, tudo era pobre, aí pagaram os direitos

ao bispo e foram trabalhando‖, mencionou Serafim. João Pedro Melo se converteu depois no

único dono de Belém. Isto se deu mediante um arremate que, de acordo com Alícia, uma

funcionária de Bom Jesus,8 se produziu a partir da morte do membro da família que tinha a

seu cargo o domínio da propriedade cedida pela Igreja. O domínio teve de ser dividido entre

os irmãos e, por falta de acordo entre eles, terminou em um arremate. ―O leilão não foi muito

correto‖ e gerou ressentimentos dentro da família, assinalou Alícia. Miguel, o irmão de Juca,

foi um dos prejudicados. Manoel, um antigo vaqueiro da fazenda, descreveu o evento do

seguinte modo: ―Miguel botou 50 contos, aí o outro disse não, o Juca disse não, aí botou 60

contos na rematação, aí não tinha quem mais falasse. O velho Juca rematou‖.

Criou uma questão entre os dois irmãos, Miguel e o Juca, aí lá vai a questão,

lá vai, lá vai, e foi para leilão, Belém foi leiloada [...] O doutor Thiago

Almeida, que era um advogado disse: ―Juca, Belém vai entrar em leilão e

você vai comprar Belém‖ [...] Ele disse: ―Mas eu não tenho dinheiro, doutor

Thiago‖. ―Mas eu vou tirar para você Belém‖. Aí entrou em leilão e tirou, e

o finado Juca ficou pagando a ele depois, que era advogado [...] Miguel

perdeu a questão. Então, o tio Miguel, com raiva, nunca deu os papéis de

Belém, Belém foi determinada assim a olho, pelo que eu posso dizer, sabe?

Mas não foi legalizada [...] Miguel morreu e não entregou os papéis. Aí,

pronto, o finado Juca tomou conta. O doutor Thiago Almeida era o pai do

doutor (Caio)9 Almeida que foi juiz aqui, de direito (Josias Melo).

Belém passou, assim, às mãos de um ―único dono‖, o finado Juca, que mais adiante foi

substituído por seu filho, Antônio José Melo, mais conhecido como ―Tozé Melo‖. ―O velho

Juca rematou e passou para o finado Tozé‖, prosseguiu o antigo vaqueiro. Meus entrevistados,

Josias e Antônio Melo Neto, os herdeiros ainda vivos de Belém (os ex-proprietários da

terceira geração da fazenda), assinalaram por sua vez que, quando o pai de Tozé morreu, este

último teve de comprar a parte de seus irmãos, que viviam em distintos rincões da fazenda:

8 Alícia é a atual diretora da Casa de Cultura de Bom Jesus, cujo bisavô viu-se afetado pelo arremate.

9 Nas citações, as palavras entre parênteses são aquelas que não ficaram suficientemente claras na audição e

transcrição das entrevistas. As que figuram entre colchetes são esclarecimentos meus.

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Família, escravidão, luta 31

Serras, Rocas, Lagoa da Montanha. Juca ―deixou em cada canto um filho [...] espalhou o

pessoal na propriedade, que era grande, para ter informação como é que estava a propriedade,

tá entendendo?‖, observou Antônio Melo Neto. Tozé vivia na margem do rio com seu pai,

Juca, local este onde se localizava a sede da fazenda. Ao se casar, mudou-se para Taipal, no

caminho entre Bom Jesus e Serras, próximo à primeira cidade, lugar este que, mais tarde, se

transformaria na nova sede.

FF:

10 E os irmãos do Tozé, eram quem?

Antônio Melo: Era João Pedro Melo Filho [silêncio], quer anotar?

FF: Está gravando.

AM: João Pedro Melo, Osvaldo Melo, que é Vado Melo, aí Josefa Melo, que

era a esposa de seu Josué, e a mulher de Zé Medina era Francisca Melo

Medina, né?

Irmãos, irmãs e maridos das irmãs, não há menção às esposas dos irmãos. O finado

Juca morreu em outubro de 1926 e, entre 1928 e 1948, registraram-se, nos livros do Cartório,

várias aquisições do imóvel denominado ―Belém‖, efetuadas por Antônio José Melo. Para

além da herança de uma parte do território que recebe de seu pai e de várias compras a

membros da família Melo, também se encontra um pagamento de dez contos de réis a Don

João Rocha de Ferreira, ―domiciliado na cidade de Conceição, estado de Pernambuco, na

qualidade de administrador dos patrimônios da sua diocese‖. Por meio deste pagamento,

Antônio José Melo adquiriu a ―escritura de linha de domínio direto‖ das três léguas quadradas

de Belém, propriedade ―havida por doação desde tempos imemoriais‖ e cujos limites

imprecisos foram descritos no começo do capítulo. A aquisição é registrada em 10 de abril de

1937. Talvez tenha sido esta a operação que Antônio Melo Neto descreveu quando contou que

seu avô comprou as terras de Belém por recomendação de Domingo Azevedo, dono do Banco

Azevedo de João Pessoa, amigo e posterior sócio de Tozé Melo, a quem este último vendia

gado. Diferentemente do cartório, Antônio estima a que propriedade tenha uma dimensão de

sete léguas quadradas. Segundo ele, Belém havia sido uma sesmaria.11

10

A sigla alude às iniciais do meu nome. 11

Com base em Monteiro (2007), podemos assinalar que, de 1530 a 1822, o acesso à terra foi feito por meio do

sistema sesmarial, no qual a Coroa Portuguesa doava grandes extensões de terra (as sesmarias) que depois eram

transmitidas por herança. Durante o período colonial, ocorria também a ocupação de grandes áreas por parte de

senhores rurais, à qual se tornou, a partir da Independência e com a extinção do sistema sesmarial, a forma

predominante de aquisição até 1850, quando se decretou a Lei de Terras (a mesma determinava que as terras do

Estado somente poderiam ser adquiridas pela compra; além disso, elevava o preço das mesmas e dispunha que as

terras já adquiridas por doação e ocupação somente poderiam ser legalizadas se fossem exploradas). O sistema

sesmarial permitiu que toda a caatinga, tanto no Agreste como no Sertão, fosse apropriada, desde a época

colonial, por grandes latifúndios, cuja ocupação econômica somente ocorreu em épocas posteriores (Furtado,

1964). Segundo Andrade (1998), as sesmarias tiveram dimensões limitadas inicialmente. Em 1695, estabeleceu-

se uma extensão máxima de quatro léguas por uma, a qual foi reduzida a três léguas por uma, em 1729 (o que

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Família, escravidão, luta 32

―Quando foi depois que o finado Juca morre, fica o finado Tozé, ele foi lá [em

Pernambuco] e comprou o domínio ao bispo, da propriedade [...] O bispo recebeu 60 contos,

acabou, ficou a Belém toda da família dos Melo‖, explicou Serafim. O ex-vaqueiro de

Antônio Melo Neto em Belém, Antônio Mendes, cujo pai havia sido vaqueiro de Tozé Melo,

mencionou por sua vez:

Na época que eu escutava dizer, que nesse tempo era muito novo, eu

perguntava para meu pai: ―Oh pai, como é que seu Tozé comprou essa terra

toda?‖ Ele dizia, assim: ―Não, ele não comprou essa terra, ele comprou o

domínio ao bispo‖, que chamava a terra de Nossa Senhora de Belém; disse

que essa terra, antigamente, era dessa Nossa Senhora de Belém, era da

Igreja, né?

A compra do domínio feita ao bispo indica que, até a entrada em cena de Tozé Melo, a

Igreja não deixou de ter a propriedade formal dessas terras. Tanto Serafim quanto Antônio

Melo Neto observaram que o finado Juca sempre pagou um dízimo a essa entidade. Como

observamos no registro do Cartório anteriormente citado, bem como na seguinte citação de

Serafim, mediante aquela compra, Tozé adquiriu a escritura de Belém: ―a segunda geração foi

quem comprou, foi lá e comprou o domínio ao bispo e ele deu a escritura‖.

Tozé era, a partir de então, o único dono de Belém e seria a figura mais lembrada nesta

história. ―Seu Tozé é esse aí, oh!‖ Antônio Melo pronunciava essas palavras enquanto

mostrava o retrato que tinha pendurado na sala, em sua casa ―…Tá entendendo? Depois vou

lhe mostrar os retratos‖. Segundo o próprio entrevistado, seu avô foi a Gaivota para conversar

com o bispo, e este se interessou pela venda porque o dízimo que recebia era ―um negócio

simbólico‖.

No entanto, para Serafim e, como veremos no terceiro capítulo, para outros moradores

de Belém, a propriedade das terras por parte de Tozé Melo não é totalmente legítima, já que

as terras são da santa e, como tais, jamais podem ser vendidas: ―a Igreja e o bispo era quem

resolvia tudo, foi quem vendeu o patrimônio da santa para a família Melo [...] O finado Tozé

comprou o domínio do bispo e ficou para ele de uma vez, mas eu não sei como, que

patrimônio da santa não pode ser vendido nunca, isso aqui é patrimônio de uma santa!‖

Tozé e sua esposa, Maria Josefina Melo que, segundo Alícia, fora uma moradora,

tendo a sua ―cor morena‖ mencionada no Inventário, foram pais de criação e, mais tarde, pais

adotivos de seus sobrinhos, de um neto e do pai deste neto; os filhos que, nesta história,

superaria os 10 mil ha) e a uma légua ao quadrado, no século XIX. No caso que nos interessa aqui, é possível

supor que Belém tenha sido uma sesmaria que foi depois doada à Igreja.

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Família, escravidão, luta 33

seriam recordados não como donos, mas como ―herdeiros‖, com quem se associa a

decadência de Belém.

Josias: O homem rico daqui era ele, então ele não tinha família. Aí, um dia,

passando lá na casa do meu pai legítimo, João Pedro Melo Filho, chamava

João Melo, aí ele viu um meninozinho assim, meu irmão, um galeguinho

assim:

- ―Vou levar esse menino para eu criar‖ [...] Aí, o menino disse:

- ―Eu só vou se esse aqui vai, se o Josias for, eu não vou sozinho não, eu vou

com ele‖.

FF: E seu irmão como chamava?

Josias: Luis Duarte Melo. Então, aí, veio eu e ele, mas ele já criava também

uma irmã minha que chamava Eli, que já morreu, e criava outro que era o

finado Zé Duarte, que era tio legítimo meu, era irmão de minha (mãe). Ele

criou eu, Luis, Eli e o finado Zé Duarte, e Toninho que foi prefeito aqui, era

neto e ele criou também, criou cinco pessoas, o finado Tozé, que não tinha

família ele, sabe? Não construiu família de jeito nenhum, aí criou esse povo

todinho.

Assim surgia a terceira geração Melo de Belém. Tozé e Maria foram construindo o

traçado genealógico da família por meio da criação de alguns de seus parentes legítimos,

assim referidos pelos entrevistados, os parentescos construídos a partir do nascimento (os

comumente designados ―parentes de sangue‖) (Ver figuras I e II). Apesar de alguns destes

laços legítimos de parentesco serem esclarecidos pelos herdeiros que entrevistei, em geral,

seus relatos privilegiam os laços construídos por Tozé por meio da criação, de modo que

existem dados referentes aos vínculos de parentesco legítimo que permanecem obscuros. Tozé

criou Josias Duarte Melo, Maria Duarte Melo, mais conhecida como Eli, Luis Duarte Melo e

José Duarte Melo,12

que eram os filhos legítimos de seu irmão legítimo: João Pedro Melo

Filho. Além disso, criou José Duarte Melo, pai legítimo de Antônio Melo Neto, este último

também criado por Tozé e, mais tarde, por Eli. O parentesco destes últimos com Tozé Melo,

anterior à criação, não foi suficientemente esclarecido. Josias assinalou que José Duarte Melo

era seu tio legítimo, irmão de sua mãe. Por sua vez, no Processo de Inventário de Antônio

José Melo, um dos José Duarte Melo é descrito como ―primo legítimo‖ do primeiro e Antônio

Melo Neto como ―primo em segundo grau‖.

Os filhos de criação de Tozé foram, então, seus sobrinhos e primos legítimos. E

seriam eles, além de seu irmão, que receberiam sua herança/legado. Segundo o mostra o

Processo de Inventário, poucos meses antes de morrer, Tozé Melo realizou uma ―escritura

12

Este era chamado de Zé Melo ou de José Duarte Melo Sobrinho para distingui-lo de seu homônimo, o pai

legítimo de Antônio Melo Neto. Apesar de, em vários momentos, Zé Melo ter sido mencionado como um filho

de criação de Tozé Melo, os relatos dos herdeiros também deixaram entrever certa ambigüidade nesta relação, já

que sua idade era avançada (17 ou 18 anos) quando chegou para ser criado por Tozé.

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Família, escravidão, luta 34

pública de adoção‖ de seus seis filhos de criação (incluindo José Duarte Melo Sobrinho, cujo

lugar como filho de criação não é de todo preciso). Alguns dias antes, forjou seu testamento

para a metade de seus bens. Em abril de 1957, Tozé morreu em sua casa, em João Pessoa,

onde estava realizando um tratamento de saúde. Seu corpo foi trasladado até Bom Jesus, lugar

em que foi sepultado. No Processo de Inventário e Partilha de seus bens, Belém foi calculada

em 16.439,9080 metros quadrados, e descrita como constituída de caatinga e, em grande

parte, de arisco, contando aproximadamente com 400 casas de taipa e quatro de tijolos, sendo

cultivada em uma área de cerca de mil hectares. Maria Josefina Melo, viúva e meeira de

Antônio José Melo, com quem era casada com ―regime de comunhão de bens‖, recebeu a

metade da propriedade, 8.219,9540 metros quadrados e, de acordo com o disposto no

testamento, o restante foi subdividido em partes iguais entre seus seis herdeiros filhos

adotivos (Josias Duarte Melo, Luis Duarte Melo, Maria Duarte Melo, José Duarte Melo, José

Duarte Melo e Antônio Melo Neto) e seu legatário colateral (João Pedro Melo Filho).

Naquela época, segundo o inventário, Josias (de 25 anos), Maria (de 35), Luis (de 22), José

Duarte Melo Sobrinho (de 31) e João Pedro residiam todos na fazenda Belém. Por sua vez,

José Duarte Melo (de 40 anos) e Antônio Melo Neto (de 13) tinham residência em João

Pessoa.

Além da fazenda, foram divididas 500 cabeças de gado bovino, dez cavalos, um

automóvel Ford modelo 1955, um Jeep Willys modelo 1951 em mau estado de conservação,

uma casa residencial em João Pessoa e depósitos bancários. Não vem ao caso descrever aqui a

repartição exata destes bens, que foi realizada em partes mais ou menos iguais, excluindo o

recebido pela esposa, que obteve a maior parcela.

Quase dois anos e meio mais tarde, em sete de outubro de 1959, morreria Maria

Josefina Melo, ocasião em que uma nova divisão seria feita. De acordo com o Processo de

Inventário, os herdeiros seriam os mesmos que os de Tozé, com exceção de João Pedro Melo

Filho e de José Duarte Melo Sobrinho (o que poderia ser pensado como outro dado relativo ao

caráter incerto de sua criação por parte de Tozé e Maria). Em relação a José Duarte Melo

(primo), o legado foi dado para seus filhos. A eles se somariam Maria Pinto de Oliveira, filha

do irmão de Maria Josefina Melo e filha adotiva desta última. De modo que a metade de

Belém, estimada em 8.220 hectares, onde se incluía a região denominada Taipal, na qual

existia um açude, a casa sede da fazenda, currais, armazéns e outras construções, foi

distribuída do seguinte modo: 1.500 hectares foram dados a Antônio Melo Neto; Maria

Duarte Melo (nessa época, já casada com Márcio Araújo, passando a assinar como Maria

Melo Araújo) obteve 2.000 ha., Josias Duarte Melo, 1.180, o mesmo que Luis Duarte Melo,

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Família, escravidão, luta 35

Maria Pinto de Oliveira (que se casou com Luis Rodrigues de Oliveira, o chofer de Tozé,

muito apreciado por este último, segundo Antônio Melo Neto) e os nove filhos do casamento

de José Duarte Melo e Ivone Souza Melo (com exceção de Antônio Melo Neto), cujas idades

variavam dos primeiros meses aos 15 anos. Além da metade de Belém, Maria legou suas

jóias, o automóvel Ford e 250 cabeças de gado bovino. Tudo isto foi cedido por testamento

realizado em setembro de 1958.

Segundo Antônio Melo Neto, Zé Melo recebeu a zona da fazenda denominada Boa Fé,

José Duarte Melo obteve a região de Curral e Manaus, Luis Melo ficou com Água Branca,

Josias Melo recebeu uma parcela próxima a Água Branca, para o lado de Serras e, por fim, a

fazenda em seus limites com Serras foi dada a João Pedro Melo Filho. Laranjeira (região do

atual assentamento) havia ficado distribuída entre ele e Eli. Além disso, recebera a zona de

Olaria, que depois permutou com Eli, ficando esta última com aquela região, e Antônio com

os lugares chamados Lagoa da Montanha e Sítio Novo, que antes pertenciam a Eli (permuta

que se registra no Cartório, em 1963).

E depois, como foi? Perguntei.

Josias: E aí, cada um ficou com sua parte. Foram divididas as partes, aí cada

um foi tomar conta do que é seu. Mas houve muita família desunida, se fosse

família unida, ainda hoje, era um patrimônio muito grande, mas você sabe, aí

vieram as desavenças, os discordos, essas coisas todas, sabe?

Nas palavras de Manoel, o vaqueiro, ―aí acabou-se, o velho Tozé morreu e partiu

todinha para os sobrinhos‖. Os relatos localizam na morte de Tozé Melo o ―começo do fim‖

da grande Belém, o latifúndio empreendia a queda. Convertida em herança a partir desta

morte, a fazenda começaria a se desagregar e, junto com seu patrimônio, também a família. A

primeira a vender foi Maria Pinto de Oliveira, cujas operações se destinaram a vários

compradores. A partir de então, os registros de Belém que se encontram nos livros do cartório

começam a ser numerosos.

Anos atrás, não sei se foi em 58, parece que foi em 57, ele faleceu. Aí, foi

dividida para os herdeiros e foi ficando pequena, um pedaço para um, outro

pedaço para outro, tinha muitos herdeiros, aí o pessoal uns foi saindo, outros

daqueles herdeiros foram vendendo, e as pessoas foram comprando, os que

moravam. Foi comprando, foi comprando, e terminou. Hoje, da família que

era dono de lá, não tem mais quase ninguém. (Antônio, o vaqueiro).

Com a venda dos herdeiros, a grande Belém acabou. Não obstante, se voltarmos à

última citação de Josias, visualizamos que a divisão do patrimônio não se esgota com a venda

de terras por parte dos herdeiros e sim, e fundamentalmente, a divisão se refere aos vínculos

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Família, escravidão, luta 36

―familiares‖, questão central nesta história, que os proprietários e as instituições da cidade

transmitem. ―Cada um foi tomar conta do seu pedaço‖, voltou a dizer Josias, ―aí vendeu-se,

desunião e essas coisas assim, casamento mal casado, você sabe, o casamento não é bom e

desmantela tudo‖. O fim de Belém se entrelaça com as relações entre os/dos herdeiros daquele

patrimônio que não souberam mantê-lo unido. Josias não foi específico em sua alusão aos

casamentos; Belém se desagregou por ―negócio mal feito, briga de família, essas coisas,

sabe?‖. Por sua vez, quando perguntei a Alícia sobre o fim da fazenda, ela me falou

especificamente do casamento de Eli, o qual me surpreendeu, já que os herdeiros foram

vários. No entanto, Eli era a única mulher entre os que haviam recebido uma herança

importante, e seu casamento traria herdeiros com outro sobrenome ou, poderíamos dizer aqui,

de outra ―família‖ que, para prejuízo do patrimônio, era incompatível com o processo de

concentração que Tozé havia empreendido.

Foi o seguinte: quando o Tozé morreu [...] Eli vai e casa com uma pessoa

que já era casada, já tinha filhos, o Márcio Araújo. E ela se envolveu, que ela

era noiva de um rapaz solteiro, de um primo que a família queria e tudo. E

ele veio para trabalhar na fazenda, já com mulher carregada de filhos, casado

(em) religioso, então eu não sei bem como foi que ela entrou nessa onda, de

um homem casado, cheio de filhos, sem eira nem beira [...] Aí, ele foge com

ela e casam. Aí quando (vêm), ele dominando, né? Ele estava interessado

nisso, o pai já tinha morrido, que (ela) só fez isso porque o Antônio Melo já

tinha morrido. Em seguida, a mãe morre, aí ele toma conta [...] Então, tem a

questão dos filhos dele, que herdaram.

Manoel também enfatizou o casamento de Eli, ao falar sobre a decadência de Belém e

o final dos Melo. ―Depois do Tozé veio quem?‖, lhe perguntei:

Depois do Tozé, ficou a sobrinha dele, a filha do João Melo que criava,

chamava-se Eli, que tomava conta tudinho dessa fazenda, criada em casa,

né? Quando o velho Tozé morreu, ela botou o empregado e o empregado foi

morar com ela, o Márcio Araújo. Já era administrador de Belém, quando

mataram meu sogro, aí botaram esse administrador. Se casou com a filha de

criação do velho Tozé, aí ficou com a riqueza toda.

Seja porque Eva come a maça e comete o pecado original que, nesse contexto,

significa unir Belém e os Melo a um sobrenome sem patrimônio (e que trazia consigo

herdeiros alheios à família), seja por uma desunião familiar (o que se pode ler como uma

desunião entre os herdeiros, que compartilhavam o sobrenome Melo), na qual ―cada um ficou

com o seu pedaço‖, a história da fazenda experimenta uma ruptura com a morte de Tozé e

esta última se associa, entre outros fatores, com relações que não podem ser separadas dos

vínculos familiares. Com a morte de Tozé, o latifúndio dividia-se entre os herdeiros. No

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Família, escravidão, luta 37

entanto, a verdadeira divisão ocorreu depois, com a ―desunião familiar‖ e os ―casamentos mal

casados‖: ao fim e a cabo, os herdeiros tinham todos o sobrenome Melo. O patrimônio se

dividia e os Melo junto com ele; por sua vez, enquanto a família se dividia, o patrimônio se

desagregava, e tal ruptura colocava em evidência a interpenetração de ambos. Belém

significava Melo, um proprietário concentrado. Ao mesmo tempo, a família significava um

sobrenome e seu patrimônio, um patrimônio concentrado. Nenhum deles pode ser

mencionado sem o outro, a idéia de família se entrelaça com a de patrimônio.

Em seu trabalho sobre sindicalismo rural, Comerford (2003) dá conta dos limites

imprecisos e flexíveis das famílias, as quais, mais do que a uma entidade, aludem a processos

permanentes de composição e decomposição, regidos em função de um público e nos quais se

constroem reputações. Valendo-me dos conceitos que o autor utiliza para essa análise, é

possível observar, no caso de Belém, os processos de familiarização e desfamiliarização em

que ―os Melo‖ se fazem e desfazem. ―Aí ele disse: ‗vou levando os meninos‘, aí ele ia

levando os meninos para criar, tá entendendo?‖. Assistimos, por um lado, ao processo de

familiarização no qual Tozé levou para casa filhos legítimos de seu irmão e primos legítimos

para criá-los e convertê-los nos posteriores herdeiros de suas terras. Meus interlocutores

consideraram que somente com herdeiros, Tozé e sua esposa tiveram uma família. Antes,

vimos a familiarização para a qual contribuíram, paradoxalmente, as disputas familiares que

criaram a grandeza dos Melo, quando o finado Juca brigou com seus irmãos e passou a ser o

único dono de Belém, um processo em que a grandeza familiar se sustentou sobre as rupturas

familiares que possibilitaram a concentração do patrimônio. Por fim, este caminho

familiarizador desandou, culminando com o desenlace de Belém, com a desfamiliarização

que ocorre com as ―desuniões‖ entre irmãos de criação e ―casamentos errados‖, posteriores à

divisão formal do patrimônio. Não houve um novo movimento familiarizador; as porções

foram sendo vendidas. Tampouco houve uma concentração de território; os Melo foram se

dissolvendo em uma trama de sobrenomes sem patrimônio.

Estes processos permitem dar conta de uma incessante fabricação da ―família Melo‖

que é indissociável da construção de poder do fazendeiro. Observamos aqui que a ―família‖ se

constrói em torno das relações que contribuem para a concentração do patrimônio. A família

Melo se faz e desfaz e os parâmetros que conferem significado a esse fazer-se e desfazer-se se

encontram ligados à fazenda. As relações que concentram o patrimônio familiarizam e, ao

contrário, as relações que o desfazem implicam uma dissolução da família. O finado Juca

rompe com seus irmãos e concentra o patrimônio que continua com seus herdeiros. Tozé, por

sua vez, adquire o patrimônio de seus irmãos e concentra a herança de seu pai. No entanto,

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Família, escravidão, luta 38

sem herdeiros, aquela concentração perde sentido. Para a construção de uma hegemonia

precisa-se de uma família, no caso os filhos que outorgaram sentido à herança, ao poder de

legar adquirido por este fazendeiro. É somente através da incorporação de filhos que Tozé terá

uma família ou, se pode dizer, que consolidará sua hegemonia.

A história da fazenda mostra-se inseparável da história da família. Esta, por sua vez,

nos remete ao processo de agregação e desagregação que se erige em torno da fazenda e, deste

modo, vemos uma constituição mútua e dinâmica entre ambos. O patrimônio nos envia a

relações entre pessoas, neste caso, a familiarizações e desfamiliarizações que, por sua vez, são

inseparáveis de ações de compra, venda, arremate e herança. Os laços parentais resgatados

nesta história e o traçado da árvore genealógica da família Melo conformam-se juntamente

com a história de seu patrimônio.

A grande fazenda

Antônio Melo: ―Quando foi em 57, um dia, 9 de abril de 57, ele faleceu [...]

Ele nasceu dia 18 de agosto de 1888 e faleceu dia 9 de abril de 1957, Seu

Antônio José Melo, Seu Tozé Melo; tinha 68 anos de idade, 69, ia fazer 70

em 58.

Nelo (genro de AM): Era muito novo.

AM: Eu também quero morrer nessa idade; não quero ficar dando trabalho.

Teté (esposa de AM): Tá muito bem [risos].

Nelo: E a mulher dele, também quer saber o nascimento da mulher?

FF: Sim.

AM: Ela nasceu ... agora pegou...

Teté: Não sabe o ano, mas a data você sabe.

AM: Que ela morreu, sei: 7 de outubro de 59.

Teté: Ela morreu com quantos anos?

AM: Ela nasceu em 89, agora eu não sei... 889, Maria Josefina Melo, que era

a mulher de Seu Tozé.

Meus interesses de ―parente da família‖, tal como foram classificados nas observações

de meus interlocutores da cidade de Bom Jesus, me conduziram à entrevista acima

mencionada. Eu me encontrava na casa de um dos proprietários, sentada na sala junto a ele,

sua esposa Teté, sua filha, seu neto e seu genro, Nelo, olhando fotos, reconstruindo traçados

genealógicos e datas de morte e nascimento das figuras centrais desta história. Nos relatos dos

herdeiros, estas figuras foram basicamente duas pessoas: o finado Juca e o finado Tozé Melo,

os familiarizadores dos Melo, os donos mais importantes da fazenda. Através de seus nomes,

os entrevistados refizeram a ―grandeza‖ de Belém, convertendo-os nos ícones de seu capital

simbólico. Diferentemente do que ocorria com ―os herdeiros‖, Tozé e Juca não foram

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Família, escravidão, luta 39

agrupados em nenhuma categoria. Belém não se associava unicamente aos Melo, mas

sobretudo com Tozé e com Juca Melo, o que tornava legítimo que as características pessoais

destes proprietários ganhassem um lugar central na história. Se Belém era grande é porque

seus proprietários o eram. O finado Juca remete aos tempos antigos, ao início da grande

fazenda. Mas é com o finado Tozé, o comprador que me recomendaram procurar no Cartório,

que Belém desenvolveria seu potencial.

―Olha, meu avô se chamava Antônio José Melo, conhecido por Tozé Melo, já está

gravando, né?‖ Antônio Melo Neto pronunciava as primeiras palavras durante a entrevista

gravada. Continuou dizendo que seu avô criava muito gado, cabras, ovelhas e que viajava

para negociar. Seu avô vendia em João Pessoa e nas localidades de Gaivota e Nordestina, no

Estado de Pernambuco. ―No Rio Grande do Norte, a pecuária é a própria história econômica

até os primeiros anos do século XX. Quase todos os seus municípios nasceram nos pátios da

fazenda de criar‖ (Cascudo, 1956: 23). Com o relato de Antônio, um dos antigos vaqueiros de

Belém, assistimos à recordação de um gado criado solto no monte, já inexistente, e de um

vaqueiro que se deslocava ―no galope árduo do seu cavalo de fábrica, caçando as reses

tresmalhadas ou ariscas‖ (Cascudo, 1956: 27). Antônio descreveu com detalhes como, no

início de seu trabalho e com seu pai chamado Efraim, que havia sido vaqueiro de Tozé Melo,

caçaram um ―barbatão‖, um touro nascido e criado no monte, no monte antigo, entre os

arbustos espinhosos, sem contato com as pessoas. E como este, houve outros casos. Com o

velho Tozé Melo, e ainda após a sua morte, ―teve uma época que a gente pegou muito gado

sem ferro, sem ser marcado, chamava ‗barbatão‘ na época; antigamente, quando o bicho era

assim que a gente não encontrava ele para ferrar quando era novo, se criava no mato‖,

observou Antônio.

Manoel nasceu em 1928 e também teve antecedentes familiares vaqueiros; como ele,

seus tios também haviam trabalhado para Tozé Melo. O vaqueiro comentou que, na época de

Tozé, Belém se dividia em doze fazendas de gado:

Eu era vaqueiro de uma fazenda. Cem vacas, duzentas, era uma fazenda, né?

Eu tomava conta de cem vacas dele, cem novilhos, era uma fazenda, já outra

dava para outro vaqueiro. As fazendas, a primeira era aqui, o Açude, era

onde ele morava, a sede da fazenda. Laranjeira era outra fazenda; na frente

era o Tauá, outra fazenda, aí na frente o Antonio Luis era outro vaqueiro que

administrava Rocas, outra fazenda, essa outra era o Efraim... Tudo fazenda

de gado dele, do velho Tozé.

Manoel recebia ―sorte‖, tal como Efraim, o pai de Antônio Mendes. ―O vaqueiro que

era responsável pela fazenda não recebia salário em dinheiro. Sua remuneração correspondia a

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Família, escravidão, luta 40

um quarto da produção da fazenda, pois em cada quatro bezerros que nasciam, um lhe

pertencia e os outros três eram do proprietário‖. A citação de Andrade (1998: 140) generaliza

o relato de Antônio sobre o trabalho de seu pai, o qual não era pago com dinheiro, e sim com

um bezerro que Tozé lhe dava a cada quatro que nasciam: ―Vamos supor, se nascesse oitenta

bezerros num ano, no correr do ano, o pai tinha vinte dos oitenta, mas só criava dez; dez tinha

que vender na fazenda‖. E Manoel acrescentou: ―O velho Tozé comprava ao vaqueiro a

100.000 réis o bezerro‖.

Além disso, Belém era produtora de algodão. Desde finais do século XVIII, este

cultivo tinha se somado à atividade pecuária no agreste nordestino e, a partir desse momento,

adquiria grande importância nessa região. Entre os séculos XIX e XX, a agricultura avançou e

―(a) pecuária vai perdendo cada vez maiores áreas, entretanto, vai-se tornando uma atividade

econômica altamente compensadora‖ (Andrade, 1998: 151). No século XX, o algodão

modifica a paisagem e, ao Rio Grande do Norte, chegam as divisões de arame e as mangas,

terrenos cercados onde se criava o gado de engorda para a venda (Cascudo, 1956).13

A

pecuária se combinou com tal cultivo, permitindo ao gado alimentar-se das sobras da colheita

nos meses mais secos (janeiro e fevereiro), combinação igualmente observada em Belém.14

Por recomendação de seu já mencionado sócio e amigo, Domingo Azevedo, Tozé

Melo montou em Taipal uma usina na qual o algodão era descaroçado. Como não dispunha de

máquina para moer o caroço e extrair seu óleo, e como a falta de caminhos dificultava sua

venda, o caroço se destinava ao gado nas cocheiras. Mais tarde, com a maior industrialização

do processo, Tozé Melo deixou de descaroçar e começou a vender o algodão ao moageiro.

Este último descaroçava, vendia a fibra do algodão e extraía o óleo do caroço.

FF: E o Tozé, vendia para quem?

AM: Ele vendia para Sousa Santos, que era muito amigo dele, que ele

morava em João Pessoa na Rua Nascimento, e esse outro também morava na

Rua Nascimento frente à casa dele, que o negócio dele era mais em João

Pessoa por conta desse amigo dele, Domingo Azevedo, que tinha negócio de

banco lá com ele.

13

Como assinala Monteiro (2007), o crescimento da exportação de café, monocultura que tinha se desenvolvido

na região Sudeste do Brasil, especialmente no Oeste de São Paulo, criou as condições necessárias para um

processo de industrialização que começaria em 1880 e se concentraria naquela região. Resultantes deste

crescimento cafeeiro, a formação de um mercado interno e o desenvolvimento da atividade fabril, na qual se

destacava a indústria têxtil, deram um novo impulso ao cultivo do algodão na região Nordeste, que sofria uma

relativa estagnação desde 1860. Durante a Primeira Guerra Mundial, a dificuldade de importar tecidos

impulsionou a produção nordestina de algodão, que se configurava como uma das regiões produtoras de

matérias-primas na Divisão Internacional do Trabalho. Neste processo, a elite agrária norte-riograndense ligada à

produção de algodão foi tomando o poder político do estado. 14

O algodão permitia não somente alimentar o gado do fazendeiro, como também conferia ao pequeno produtor

a vantagem de produzir, em uma mesma área e com um único trabalho de preparação da terra, o algodão e os

demais cultivos de subsistência (Andrade, 1998).

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Família, escravidão, luta 41

A safra do algodão era depositada em diferentes armazéns distribuídos ao longo da

fazenda: um em Serras, outro em Bacia e um terceiro em Taipal. ―Ele juntava por lá, pegava,

botava lona no chão e cobria o algodão com a lona; só vendia a safra de uma vez‖ (AM).

Segundo o neto de Tozé Melo, seu avô encontrava-se em excelente situação financeira e

somente vendia para seu amigo em João Pessoa, apesar de também existirem usinas em Bom

Jesus. Manoel nos fala de duas usinas de algodão e Josias, de três: duas de algodão e uma de

óleo (fabricado com caroço de algodão). Uma destas fábricas era o Consórcio Algodoeiro de

Bom Jesus, criada na mesma cidade, a qual, segundo Josias, pertencia a dez sócios.

Diferentemente de Antônio Melo Neto, este herdeiro observou que o algodão era, sim,

vendido em Bom Jesus e depois exportado. No Processo de Inventário, por sua vez, alguns

documentos deixam ver a venda de algodão e lenha que Tozé Melo fazia a Brito Indústria e

Comércio S/A, por intermédio da filial em Bom Jesus desta firma comercial estabelecida em

Trindade. Por ocasião da morte de Tozé, Belém continuou produzindo algodão. Na década de

80, a praga do bicudo deu fim a este cultivo na região, fato este mencionado por Josias. De

acordo com Serafim, contudo, nessa época havia em Belém uma produção importante.15

Mas ao falar sobre estas questões, meu interesse deslocava as conversas de seu eixo e

me levava a gerar perguntas secundárias no relato de meus interlocutores:

FF: Eram os moradores que produziam o algodão?

J: E vendiam, a região toda, essa região toda aqui, de São Francisco, de todo

canto, botava algodão aqui, que onde tinha usina era aqui, aí essa região

Belo Campo, que depois ficou Belo Campo, tinha uma usina lá, mas não

tinha antigamente... Aí, Belo Campo, Serras, Bom Jesus, São Sebastião, esse

canto todo, essa região, vinha para aqui.

Até aqui, chegou a resposta de Josias. Mais adiante na entrevista, me contou que, por

ocasião de seu casamento, deixou de viver com Tozé em Taipal, já que este o colocou em

Serras, também dentro de Belém, onde existia um grande armazém de algodão que seu pai de

criação havia construído, ―o povo ia tudo vender lá no armazém, eles mesmos iam levar lá‖.

Como bom futuro herdeiro, Josias assumiu o destino atribuído por Tozé e seria o encarregado

de administrar o movimento do produto naquele setor da fazenda, onde o algodão era

comprado dos moradores e depois transportado pelos caminhões da usina: ―Eu comprava para

papai, sabe? O morador entregava, e eu pesava, pagava aquela quantidade e vinha para aqui

15

Sobre a importância que a produção de algodão tomou para a cidade de Bom Jesus em meados do século XX,

ver Azevedo (2005).

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Família, escravidão, luta 42

[Bom Jesus], era tudo para ele‖. Não há mais referências aos produtores de algodão por parte

de Josias.

No caso de Antônio Melo Neto, que também continuou com o negócio de seu pai de

criação, a questão nos conduz a uma anedota que se localiza na margens da história que os

herdeiros quiseram me transmitir e que, por isso, situarei no capítulo seguinte. O tema

levantava pontos cujo enlace traçava uma linha fora dos contornos permitidos nesta

reconstrução, de modo que a produção de algodão pelos moradores, tão central no relato

destes últimos e tão marginal aqui, fará parte dos próximos capítulos.

(Dava lavoura demais nessa Belém. As usinas compravam todinho. O velho

Tozé comprava e vendia para eles. O velho tomava algodão da gente: se era

100, só dava 60, comia 40 quilos; comprava no preço que quisesse. Tinha

que vender a ele. Se vendesse a outro, ele botava para fora da terra. Tinha

um vigia, e se vendesse o algodão fora, botava para fora da terra. Era ruim,

num ponto, ele era ruim. Os moradores tinham que vender a ele, não traziam

para aqui para a usina não. Ele comprava barato lá e vendia para a usina

aqui.

Somente entre parênteses, filtro a antecipação que nos é fornecida por Manoel ao

introduzir em seu relato um elemento incompatível com esta história).

Além da pecuária e do algodão, houve um período em que Belém abasteceu as

estradas de ferro com madeira, quando as máquinas por ali se deslocavam movidas à lenha.16

Tozé viajava para Recife, onde lavrava os contratos de venda de lenha a metro. A madeira era

entregue em duas estações de trem: em Bom Jesus e em Serras. Segundo Josias, a venda

terminou devido à chegada da máquina a diesel. Tampouco existem aqui referências aos

cortadores de lenha. Consta somente uma menção de Antônio Melo Neto sobre um morador

que vendia lenha para seu avô.

Falemos agora do finado Tozé e do finado Juca, os pioneiros desta história que,

derrubando montes, instalando a atividade agropecuária e abrindo caminhos, conduziram o

Agreste nordestino às vias do progresso. Nas entrevistas com os herdeiros, foi possível

visualizar tal intento de ressaltar a glória destas figuras, particularmente a de Tozé Melo,

tornando-as um ponto obrigatório do relato, um lugar de Belém nos termos de Nora (1984).

16

A Great Western of Brazil Railway foi uma companhia britânica que instalou algumas das mais antigas

ferrovias no Nordeste com o objetivo de transportar cana de açúcar e algodão, este último cultivado no litoral e

no Agreste. No início do século XX, a Great Western dispunha de caminhos sobre a Paraíba, Pernambuco e

Alagoas. Em 1880, esta companhia deu início às obras da primeira linha de trem implantada no Rio Grande do

Norte, que ligava Trindade a Bom Jesus (Trindade and Bom Jesus Railway Company) (Monteiro, 2007). Em

1939, o trecho passou a ser incorporado à Estrada de Ferro Central do Rio Grande do Norte, mais tarde chamada

de Souza Lima, incorporada à Rede Ferroviária Federal em 1957.

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Família, escravidão, luta 43

―Frente à prefeitura tem um busto. Fui eu que fiz. Chama Praça Antônio José Melo, Tozé

Melo‖. Durante seu mandato como prefeito de Bom Jesus, o neto de Tozé faz da recordação

de seu pai de criação um dever, uma recordação deliberada e agora materializada.

Tozé era matuto, mas de grande visão, nos disse Josias; adquiria o melhor do mercado,

sabia fazer do luxo seu companheiro e se moldava com facilidade às regras da distinção:

―Carro, só comprava do bom, de primeira; o motorista dele não vestia camisa assim, era

camisa de manga aqui, gravata, botava boné. Ele só se sentava atrás no carro, nunca se sentou

igual que o motorista; o canto dele, ele não dava nem ao presidente da República‖. Sempre

que voltava de suas viagens às Estações das Águas de Minas Gerais, como Caxambu e

Lambari, trazia jóias de primeira qualidade à sua esposa, agradando-a com colares de

brilhantes.

Era um homem com uma visão grande. Papai era uma coisa impressionante!

Quem falar de Tozé Melo aqui, só vê um homem que só andava de terno, só

vestia roupa boa, era muito exigente, ele [...] Nunca vi um homem matuto,

criado no interior, com a visão daquela do papai. Tudo dele era bom: sapato

bom, meia boa, lenço, camisa de primeira linha. Só vestia bom. Hoje, o povo

mais ou menos rico, que se chama rico, com uma roupinha... mas ele não,

era aquela linha total, era só você ver, precisava ver para crer. Ele era alto, só

andava bem vestido. Papai não andava de camisa, assim, só andava de paletó

e gravata. Naquele tempo, usava chapéu, só do bom, só comprava do bom, o

melhor que tivesse era o que ele comprava. Eu aprendi a fumar por causa

dele (Josias).

Tozé era um homem de posição. Todos os dias seu chofer o levava à cidade para se

encontrar com seus amigos:

―Seu Tozé, o senhor vai para Bom Jesus?‖ Que ele vinha de manhã aqui, ou

de tarde, sabe? E se ele vinha de manhã para aqui, à tarde, ele ia andar na

fazenda, e se ele fosse andar na fazenda de manhã, ele vinha de tarde. Tinha

aquela mania de vir para ver os amigos dele, como era muito importante

aqui, ele vinha para fazer uma reunião, bater papo e tudo, aqui na cidade.

O chofer sempre estava à sua disposição, prosseguiu Josias. Quando não conduzia,

guardava o automóvel na garagem e permanecia recostado em sua de rede, esperando o

chamado de Tozé. ―Ele era considerado o mais rico daqui; era o maior latifundiário, né?

Então, ele tinha certo domínio político e social aqui na cidade, todos recorriam a ele, todos

pediam a ele‖, observou a diretora da Casa de Cultura, sem utilizar a categoria amizade na

descrição dessas relações: ―As autoridades vinham, vinham para a casa dele por conta do

poder aquisitivo que ele tinha, né? Jantares, banquetes, tudo era lá na fazenda‖. Seu

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Família, escravidão, luta 44

reconhecimento não terminava em Bom Jesus, como já vimos com o dono do Banco de João

Pessoa, Tozé tinha amigos naquela cidade e também nas demais cidades vizinhas: ―Tinha

aquela posição em João Pessoa, em Trindade, em Recife, com esses grandes ricos:

desembargador, juiz, promotor, esses homens milionários‖ (Josias).17

Tampouco aqui se

fechava seu círculo. Coerente com a transcendência que os herdeiros atribuíam ao capital

social de Tozé, Antônio Melo Neto me contou uma anedota. ―Mas tem outras coisas mais

importantes de eu contar a você‖, me disse, interrompendo uma conversa que tecia uma

Belém de moradores, sindicato e crimes:

[...] Para você saber que meu avô tinha tanto prestígio no Brasil, Tozé Melo,

quando Getúlio Vargas deu um tiro na cabeça, o João Café Filho veio para o

Rio Grande do Norte para fazer uma visita, que ele morava num bairro

chamado Rocas. O João Café Filho, presidente da República! Aí, ele foi lá

para a fazenda, para Belém, onde é Belém mesmo hoje, a sede da fazenda lá.

Teté: Na casa de Tozé.

AM: Na casa do Seu Tozé, pronto. Hospedou-se lá, passou lá dois dias.

Nelo: Porque Café Filho era vice-presidente da República, mas era daqui, do

Rio Grande do Norte, ele conhecia ele, tinha ajudado... Ele era daqui de

Trindade, por isso que ele foi para Belém, já conhecia.

Tozé era coronel.18

―Naquela época, tinha um apelidão, aquelas coisas, ‗coronel Tozé

Melo‘, ‗coronel Juca‘... O finado Juca, o pai dele, era muito enérgico. Na Belém daquele

tempo, polícia não entrava lá, não‖ (Josias). A polícia tampouco entrava na fazenda no tempo

de Tozé. Alícia comentou a este respeito: ―O cara cometia um delito, corria, passava da

porteira da fazenda, podia ter cometido o crime que fosse, a polícia não entrava sem o

consentimento dele [...] Ele ajudava quem queria ajudar, ele perseguia quem ele queria

perseguir‖. Uma pessoa podia matar outra, mas ao passar pela porteira da terra de Tozé, a

polícia retrocedia: ―A polícia não mandava nele, pronto, fazia o que queria‖, observou

Manoel. Segundo o vaqueiro, o velho Tozé comprou do governo uma força, comprou o título

do coronel e mudou: ―Começou mandar matar gente, depois que comprou essa patente, esses

ricos tudo têm patente, né? Compravam uma patente dessas para fazer mal ao povo [...] Mas

17

Ao se considerar os laços sociais que tanto os proprietários como os trabalhadores mantêm para além da

fazenda, considerá-la como unidade é em grande medida um recurso artificial (Johnson, 1971). 18

Os grandes proprietários rurais foram figuras poderosas do sistema militar, tanto no período colonial,

ocupando postos de comando nas Forças Armadas, como por ocasião da Proclamação da Independência. A

reorganização militar que se seguiu a este acontecimento criou, em 1831, a Guarda Nacional, cujos postos

hierárquicos foram reservados àqueles que possuíam certa renda mínima anual e que estavam habilitados a votar.

A Guarda Nacional deu origem ao título de coronel, signo de prestígio e poder econômico e político, concedido

a (ou comprado por) chefes locais de grande reputação, grandes proprietários rurais, sendo depois herdado por

seus descendentes. No entanto, a denominação coronel sobreviveu à decadência da Guarda Nacional após a

Proclamação da República, sendo usada pela população para designar aqueles que detinham poder político e

econômico (Nunes Leal, 1975; Queiroz, 1976; Monteiro, 2007). Para uma análise do coronelismo, ver Nunes

Leal (1975); Queiroz (1976).

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Família, escravidão, luta 45

antes disso era bom, depois que ficou rico virou a cabeça, né? Mas para a minha família ele

foi bom‖.19

Os herdeiros não avançam sobre a patente de Tozé, motivo pelo qual ficaremos

por aqui. Como nos mostra o relato de Manoel, ela nos pode conduzir a lugares escabrosos.

Prossigamos, então.

Tozé era um homem ―de sociedade‖, mas também era generoso e ensinava o respeito,

observaram os herdeiros. Do mesmo modo como se destacava nas festas de Bom Jesus, sabia

homenagear em sua fazenda, não somente as grandes autoridades políticas mas também seus

vaqueiros e seus moradores privilegiados, oferecendo banquetes e fazendo-se credor de uma

gratidão inelutável. Sua presença era notada nas celebrações católicas da cidade. ―No mês de

maio, todo o dia tem um noitero da Nossa Senhora da Conceição em Bom Jesus e todo dia 31

de maio era a noite dele, do Seu Tozé‖, contou seu neto. Nesse dia, Tozé oferecia uma festa.

O mesmo herdeiro também recordou o protagonismo de Antônio José Melo nos festejos de

ano novo na cidade de Bom Jesus e descreveu uma noite de missa, arrecadações e política,

com gado a ser arrematado e eleição de uma rainha:

Quando era no dia 31, tinha a festa da virada do ano, que vocês chamam de

Réveillon. Essa noite do dia 31, era a festa que ele fazia também. Tinha

barraca; nessa barraca tinha umas prendas que eram leiloadas, tinha a rainha:

pegavam duas moças da sociedade... Tinha o cordão vermelho e o azul; uma

moça representava o azul e a outra o vermelho, mas naquela época, a política

em Bom Jesus era muito acirrada, então, para ganhar mais dinheiro,

colocava uma moça de um partido e a outra do outro, tá entendendo? Aí,

aquele pessoal que tinha dinheiro, que era de um partido, votava em uma e

outro pessoal botava na outra. Pronto, a festa do ano novo era assim. Aí,

tinha leilão de garrote, tinha leilão de carneiro, não era Teté?

Teté, a esposa de Antônio Melo Neto, acrescentou na resposta que todo o dinheiro

arrecadado era para a Igreja. Os moradores participavam, me responderam. Do sítio à cidade,

iam caminhando pela estrada que atualmente une os municípios de Bom Jesus e Serras, a qual

era mantida por Tozé Melo, proprietário de um dos três carros existentes naquela época em

Bom Jesus. Às duas da madrugada, havia uma missa, ―o povo do sítio só ia embora depois

dessa missa, e a festa continuava‖, observou Teté; a hora festiva dos moradores terminava ali.

Brandão (1973) assinala que no ―Pastoril‖, como o autor denomina a festa em Alagoas, eram

19

Como Manoel, outros entrevistados também se referiram à compra de uma patente por parte de Tozé. A

compra de patentes tinha lugar durante o funcionamento da Guarda Nacional. A diretora da Casa de Cultura de

Bom Jesus, por sua vez, mencionou o pertencimento de Tozé a esta entidade. Apesar de não dispor de dados

suficientes para saber se a denominação ―coronel‖ dada a Tozé tem origem em seu pertencimento a esta

instituição, me parece importante a sinalização que vários entrevistados fazem deste pertencimento porque, para

além da veracidade histórica do fato, a indicação poderia ser lida como um dado a mais na construção da

magnificência de sua figura.

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Família, escravidão, luta 46

entoadas diversas canções – ou mais precisamente ―jornadas‖ – referidas tanto a eventos

religiosos – entre os quais se destacava, por exemplo, o nascimento de Jesus na gruta de

Belém, na Lapa –20

como a disputas partidárias representadas na adesão aos cordões azul e

vermelho. Tais cordões conformavam-se em dois grupos de ―pastoras‖, jovens mulheres que

se dispunham em filas. Tal como explicou Antônio Melo Neto, os partidos opositores

identificavam-se com um ou outro dos cordões, para os quais votavam. Brandão (1973)

menciona a este respeito os votos de brindes e dinheiro. Como o texto do autor deixa ver,

eventos tais como o nascimento de Jesus na Lapinha são celebrados no ―Pastoril‖ juntamente

com disputas partidárias tecidas em uma região. Neste sentido é interessante observar que, no

caso de Bom Jesus, o dono de Belém, o proprietário da fazenda de nome sagrado, era uma

figura destacada daquelas festas anuais e adquiria um lugar central nas lutas políticas que se

atualizavam em tal festejo. Josias assinalou que seu pai gastou muito na política ao longo de

sua vida: ―Belém aqui... toda a vida era política‖. Além da participação de Tozé apoiando

determinados candidatos, Antônio Melo Neto foi prefeito de Bom Jesus, e a família teve, além

disso, três vereadores: Luis, Maria Leonardo e Dona Ivone Souza (mãe de Antônio Melo

Neto).

Na fazenda, Tozé exibia sua generosidade e a hierarquia que a habilitava. Josias o

descreveu:

Era gente demais, minha filha, para se comer lá em casa. Ele não comprava

carne na feira, mandava matar um boi. Ele dizia assim ao vaqueiro: ―Escolha

um boi lá no cercado e traga aqui para matar, amanhã‖ [...] Aí, ele matava

aquele boi, tratava, fazia carne de sol... Naquele tempo, não tinha geladeira,

e a gente fazia carne salgada para comer lá em casa. Era empregado demais,

vaqueiro demais, era uma mesa com muita gente, todo dia, para tomar café,

almoçar e jantar; aí tinha que ter muita carne. Quando acabava, dizia:

―Maria, está bom de mandar matar outro boi, que a carne está se acabando‖,

aí mandava matar outro.

FF: Quem comia lá?

J: Vaqueiro. Tinha dez, 15 ou 20 vaqueiros. Aí comia oito, dez vaqueiros,

empregado de cozinha, de tratar cavalo, essas coisas, sabe? Toda qualidade

de gente, e outras pessoas que apareciam ali, que moravam perto da gente,

também comiam. Ele não tinha esse negócio, não, era para comer tudo

mundo. Quando botava aquela mesa que estava cheia de gente, aí ele ia lá:

―Está comendo? Está gostando? Bote mais‖ [risos].

20

A seguinte estrofe constitui um exemplo de tais jornadas: Aurora de hoje / Já amanheceu / O belo menino / Na

Lapa nasceu (Brandão, 1973: 142). Para uma descrição detalhada destes festejos, ver Brandão (1973).

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Família, escravidão, luta 47

O leite era à vontade, naquele tempo não se vendia. Se faziam potes de coalhada que o

povo comia à noite. Depois da coalhada, vinha a carne. Na fazenda, tudo era respeito e

abundância. Josias destacou a façanha: nunca fizeram uso dos direitos do poder.

Eu respeitei tudo mundo e lá, a gente tinha que respeitar tudo mundo: filha

de morador, essas coisas, a gente tinha de respeitar total, nunca ouvi um caso

de um filho do finado Tozé com morador, porque ele não aceitava, apesar do

poder que a gente tinha — que quem tinha dinheiro aqui era ele — mas

ninguém fazia essas coisas, aqui ninguém tinha problemas [...] O respeito era

total, fui criado assim, na fartura, no respeito.

―Vou lhe contar agora a história dele, do Juca‖, disse Josias. Ainda que se

construíssem com menos palavras que as de Tozé, as maneiras do finado Juca também faziam

a história de Belém. Como o primeiro único dono da fazenda, sua figura era digna de

adjetivação. ―O finado Juca era muito enérgico‖. As anedotas que seu neto nos conta

remetem, como no caso de Tozé, a seus gostos pretensiosos, distintivos, no sentido de

Bourdieu (1998), mas também à sua capacidade agressiva de fazê-los cumprir. Se Tozé era

―água vai, água leva‖, Juca, em termos de Josias, ―era violento, era um homem de coração

bom, mas era violento‖. Esta violência não leva o herdeiro a formular acusações: como dono

de propriedade, seu avô fazia cumprir o respeito que lhe deviam.

O poder de Juca permitia que todos os seus caprichos se realizassem. Para se dirigir

com seu carro da fazenda a Serras, Juca ordenou que fosse aberta a estrada que une tal

município a Bom Jesus. O modo como o fez constitui uma anedota que já me havia sido

contada por Glaucia, a filha de criação de Josias, que trabalha no cartório de Bom Jesus. Ao

comentar meu estudo sobre Belém com ela, ela se lembrou da anedota que seu pai sempre

contava e, risonha e distante daquelas recordações, a repetiu brevemente para mim. Quando

entrevistei Josias, ele me contou a história em detalhes.

O finado Juca tinha um carro, ―um 29‖ (Ford A),21

o primeiro carro que chegou a Bom

Jesus. A isto se somava seu gosto pelas festas e pela dança que, naquela época, podia

satisfazer em Serras, onde se faria a tradicional festa de reis. ―Eu comprei esse carrinho e vou

para a festa de Serras nesse carro‖. Decidiu, assim, transformar o caminho pelo qual passavam

unicamente cavalos em um caminho de carros. Seu genro foi o primeiro encarregado daquela

missão, o finado Zé Medina, casado com uma de suas filhas: ―Zé, eu quero fazer essa estrada,

você chama aí um pessoal, chama o que puder de gente com enxada, com foice, com xibanca

21

De acordo com a época em que viveu Juca, talvez o modelo do automóvel seja um Ford T. Para além disso, o

importante é destacar o prestígio que Josias tenta outorgar a seu avô, ao enfatizar a posse desse bem.

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Família, escravidão, luta 48

com essas coisas‖. Contudo, o genro não cumpriu os desejos do sogro; a lição do herdeiro não

tinha sido aprendida. Quando Juca foi ver o desenvolvimento da missão que havia

encomendado, encontrou, com desgosto, somente três pessoas trabalhando. ―Como é que eu

tenho um genro, dono de Belém, com o poder que eu tenho, e ele é um vagabundo, não

chamou ninguém, ninguém atendeu a ele!‖ O finado Juca ficou indignado. Imediatamente,

disse a seu filho Vado, irmão mais novo do finado Tozé, que fosse buscar o finado Zezé, ―um

velho forte, de qualidade, que ele queria muito bem‖. O velho se veria obrigado a tornar

realidade os desejos do finado Juca.

―Dona Joana, cadê seu Zezé?!‖, perguntou Vado à esposa do velho quando chegou à

sua casa. Zezé havia ido ao rio dar banho em seu cavalo. Vado o esperou e quando ele voltou,

deu a ordem: ―Seu Zezé, papai quer que o senhor vá imediatamente lá!‖. Cada um em seu

cavalo, Zezé e Vado foram encontrar Juca; quando lá chegaram, este último disse: ―Zezé, eu

quero que você vá chamar um povo e fazer aquela estrada para Serras, que eu mandei meu

genro chamar, e é um genro sem futuro, para mim não vale nada e eu confio em você‖. A

confiança havia sido depositada, a ordem estava dada: ―Tá certo, seu Juca, vou chamar‖.

Dessa vez, o finado Juca foi olhar e viu o que devia: havia mais de 300 homens trabalhando

em sua missão. ―Em dois dias fizeram a estrada para Serras, quando foi festa de reis, estava

no carrinho, estava lá à vontade‖.

Finado Juca gostava do baile, e este desejo era realizado pelas filhas dos moradores.

Tanto seu bisneto como seu neto me contaram sobre o grupo de garotas ―escolhidas‖ para

compor seu grupo de dança. Ele comprava o vestido de festa, e elas tinham que comparecer.

Somente era preciso enviar um recado: ―Fulana, avisa à menina que nós vamos a um baile em

Serras‖. Rouge, vestido, sapatos: ―Dava todinho, para quando ele chamasse para um canto,

não dizer: ‗Eu não vou porque não tenho roupa, não tenho sapatos‘‖. Segundo Josias, não

havia desculpa para que a jovem dissesse ―não‖ ao finado Juca. Ainda que este fosse viúvo,

com o grupo de garotas, não se tratava desse ―negócio de namorar‖, esclareceram ambos os

herdeiros: tudo era com respeito. Sem mais, as jovens não podiam negar. Juca lhes dava a

roupa, e elas tinham que dançar, mas ―somente‖ dançar, enfatizaram os herdeiros. E os pais?

―Os pais as entregavam porque sabiam a quem estavam entregando‖. E assim partiam, sem

outra opção, rumo ao baião e ao forró, ao som da sanfona — naquele tempo chamada de

concertina.

Contemos uma última anedota sobre Juca, igualmente transmitida por Josias. O finado

gostava muito de carne de bode. Uma 2ª feira, dia de feira em Bom Jesus, um morador passou

caminhando pela sua casa, carregando um bode nas costas:

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Família, escravidão, luta 49

- ―Oh, fulano, esse bodezinho é bom?‖, perguntou Juca.

- ―É, seu Juca, é de primeira‖, respondeu o morador.

- ―Então, deixa uma banda aqui em casa‖. Já com a carne em sua casa, Juca encarregou

―fulana‖ de cozinhá-la. Juca tinha ficado viúvo jovem e, nos relatos dos herdeiros, não há

menção a nenhuma mulher que tivesse sido sua companheira. A mulher dedicou-se então à

tarefa e, após cortar a carne, colocou-a no fogo. Quando começou a fazer espuma, descobriu

que ela não podia ser comida. Juca tinha ido à feira e, na volta, chegaria com várias pessoas

que tinha convidado para almoçar: ―Ele era assim, tinha a mania de dar de comer ao povo‖.

- ―E o que era para torrar?‖ perguntou na volta.

- ―Torrei não‖, disse Fulana.

- ―Por quê?‖

- ―Não prestava‖. De alguma forma, o finado Juca soube que a carne era de um animal que

havia sido encontrado morto. Então, preparou sua vingança. Na 2ª feira seguinte, o morador

passou novamente.

- ―Fulano, esse bichinho é bom como aquele outro?‖, lhe perguntou.

- ―É bom, seu Juca‖. Foi quando se aproximou e lhe deu uma ―surra‖: ―Foi pedaço de bode

para todo canto‖. Depois da surra, o expulsou de Belém: ―E suma-se daqui. Amanhã, não o

quero ver dentro de Belém; amanhã pode desocupar a casa e sair!‖ Josias concluiu: ―Não

tinha respeito, um dono de uma propriedade, como é que vai vender uma coisa que não

presta?‖.

E até aqui chegamos com o pioneiro Juca que, segundo Josias, soube usar seu poder

para fazer valer o respeito que lhe deviam e para impor seus gostos refinados na região. Os

herdeiros reconstruíram uma Belém cuja existência se associa basicamente a dois

proprietários, as figuras mais representativas da família: as figuras que concentraram o

patrimônio, as figuras ―familiarizadoras‖. Os herdeiros emergem como personagens

secundários da história da fazenda. A partir deles ocorreu a divisão da propriedade e a

―divisão da família‖. A fazenda e suas figuras centrais, por sua vez, são apresentadas de uma

perspectiva que enfatiza a tendência urbanizadora tanto de Belém como de seus

representantes.

Os herdeiros de Tozé cresceram e passaram uma parte importante de seu tempo na

fazenda, mas também o fizeram na cidade. Tozé os enviou a colégios de centros importantes

da região, como Recife e João Pessoa. De acordo com Josias, a esposa de Tozé gozava ali de

um grande reconhecimento, agradava a todos os diretores cada vez que ia buscar seus filhos,

apesar de ser semianalfabeta. O grande proprietário tinha uma casa em João Pessoa (como

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Família, escravidão, luta 50

também em Bom Jesus, segundo mostram os registros do Cartório), cidade onde, até os 18

anos, estudou e viveu Antônio Melo Neto. Este assinalou que sua família de orientação se

encontrava mais ligada às cidades acima citadas que a Trindade; apesar de seu pai ter

automóvel, os caminhos para estes veículos não eram aptos, sendo mais fácil chegar de trem a

João Pessoa. Como Tozé tinha condições financeiras, enviou seus filhos a estudar nos

melhores lugares. Antônio Melo Neto mencionou que Luis, Josias, Zé Duarte (seu pai

legítimo) e Eli estudaram em Recife. Antônio e Eli formaram-se em contabilidade. Não

obstante ter tido a oportunidade de estudar onde quisesse, opinou Josias, ele não se graduou,

de forma que seu pai o colocou para trabalhar na fazenda. Antônio Melo Neto, por sua vez,

foi prefeito de Bom Jesus de 1977 a 1983. Durante um ano e quatro meses, de 9 de março de

1963 a 18 de junho de 1964, dedicou-se ao serviço militar em Trindade, que se estendeu mais

do que o previsto pelo golpe militar de 64. Até 1967, viveu em Belém, depois se mudou para

o Recife e desde 1973 foi chefe de gabinete do prefeito de Bom Jesus, onde se estabeleceu.

Uma vez em Bom Jesus, dirigiu-se constantemente para a fazenda, mas já não vivia ali: em

1967, havia vendido a porção do latifúndio que lhe correspondia e somente voltava na fazenda

para visitar Eli em Taipal, mulher que o criou quando Tozé morreu.

Os herdeiros não somente se formaram em colégios urbanos, mas também — segundo

Josias me contou — iam à cidade para ficarem noivos. Além disso, tal como seu pai de

criação, continuavam participando dos festejos de Bom Jesus. No clube da sociedade,

dançava-se agora o tango, contou Antônio Melo Neto, acrescentando que sua esposa sabia

dançar. Quando jovenzinha, acrescentou ela. Poucas pessoas do lugar sabiam fazê-lo, talvez

umas cinco, mas não mais do que isso. O aprendiam nas cidades maiores: Rio de Janeiro,

Trindade, Recife, João Pessoa e depois dançavam a novidade em Bom Jesus. Como

Raimundo, o marinheiro que viveu por muito tempo no Rio de Janeiro, os bailarinos partiam,

estudavam, chegavam e dançavam a vanguarda.

Com os olhos dos herdeiros, observamos em Belém uma fazenda produtiva e orientada

para o mercado, uma fazenda que abastece de algodão, carne e madeira à metrópole. Nos

proprietários (Tozé e Juca), por sua vez, vemos dois produtores agropecuários com os

sentidos na cidade. Dois pioneiros de costumes, gostos estéticos e com um capital social que

não somente os tornava compatíveis com as formas de sociabilidade mantidas nas cidades do

Nordeste brasileiro, mas também, como no caso de Tozé, lhes conferia alcance nacional,

chegando às capitais mais importantes do país. Os herdeiros nos mostram dois ―visionários‖

que, a partir do campo, olhavam a cidade e que, ainda que se estivessem ali, assumiam os

níveis hierárquicos da ―sociedade‖.

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Família, escravidão, luta 51

Nos contornos deste capítulo, a fazenda Belém tem seu auge na época daqueles

proprietários, uma época em que a cidade de Bom Jesus se apresenta como ainda incipiente.

Trata-se de uma Belém que sustentou a urbanização: ―A propriedade que sustentou Bom Jesus

aqui foi Belém, o finado Juca, meu avô, e o finado Tozé, que foi meu pai que me criou‖,

observou Josias. E por várias vezes reiterou a idéia:

A cidade era muito pequena, e Belém foi quem sustentou aqui tudo, de tudo,

de alimentação, produção de algodão, madeira... Belém foi o suporte de Bom

Jesus [...] Hoje, está tudo mais moderno, mas a cidade foi tudo com madeira

tirada de Belém. O negócio de linha férrea, essas coisas, tudo foi tirado de

Belém.

O suporte não foi somente para a cidade de Bom Jesus, insistiu Josias: ―Muito

produtiva Belém, deu suporte a Bom Jesus, a Serras também. Deu suporte a todas essas

cidades: São Sebastião, Bacia, Salvador, São Francisco, tudo convergia em Belém. Madeira,

algodão, lenha para queimar, vara, tudo o que precisasse‖. Enfim, no discurso dos herdeiros, a

família de latifundiários adquire com Belém a reputação de precursora do progresso.

Reconstrói-se um passado de pioneiros: Tozé e Juca foram dois homens de grande visão. Não

foram homens do campo, mas pioneiros urbanos. Assim como as aldeãs francesas que entram

em contato com o mundo dos burgos e já não desejam se casar com os aldeães (Bourdieu,

1962), a condição de matuto observada pelos herdeiros a partir de certos valores urbanos, os

leva a se esforçarem em apresentar seus antecessores — e sobretudo Tozé, que é o mais

recente — não como homens ―do interior‖, mas como homens ―de sociedade‖, reconhecidos

nos círculos mais prestigiosos das cidades locais e de importantes metrópoles brasileiras. Se,

aos olhos contemporâneos dos herdeiros, Tozé e seu próprio passado comprometem uma

imagem deles mesmos baseada na visão urbana do prestigioso, seu relato evita este abismo

genealógico e traça uma identidade com um passado que não se apresenta como matuto, mas

como precursor. Mais do que um olhar que folcloriza o passado familiar, os herdeiros tentam

mostrar o papel que este passado desempenhou no desenvolvimento urbano da região onde

hoje vivem. Seus ascendentes familiares são assim matutos, mas visionários, sua ruralidade

construindo-se a partir de sua urbanidade. A família se descobre a partir de um passado rural

que sustentou a urbanização de Bom Jesus em um período no qual tal urbe se apresenta em

um processo de formação. E, assim, a partir da narrativa dos herdeiros, a fazenda se torna

grande, estendendo-se para além de seus limites rurais: no olhar dos visionários de Belém,

estava contida na cidade.

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―Então, a história de Belém é mais ou menos essa‖. Concluímos este capítulo com as

palavras de Antônio Melo. No próximo, nos centraremos nas fronteiras indefinidas desta

história.

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Capítulo II

CONTORNOS IMPRECISOS

“Mas pode fazer outra pergunta, que o que eu não queria dizer, tive que dizer”

A primeira entrevista com Antônio Melo havia terminado. Não a fiz nos termos que

meu interlocutor de campo teria preferido, uma vez que, um pouco adiantada a entrevista, e já

sem medo de gerar moderação em suas respostas, me atrevi a perguntar sobre termas alusivos

ao sindicato que os trabalhadores rurais formaram na década de 60. As perguntas

incomodaram o entrevistado e, ainda que tenha percorrido outros temas, em diversas ocasiões

deixou transparecer sua curiosidade sobre o que ―haviam me contado‖, sobre o que eu

―sabia‖: ―Mas, conta aí! Conta o que é que você sabe. Desligue esse negócio [o gravador] pra

gente conversar‖. Os momentos finais do primeiro encontro foram marcados por temas que

estas perguntas haviam gerado.

Na segunda-feira seguinte àquela entrevista (realizada na sexta-feira), recebi uma

chamada: Antônio Melo Neto havia pedido a seu genro que me contatasse para que eu fosse

novamente conversar com ele. O entrevistado queria me contar mais coisas sobre Belém, das

quais havia se lembrado após a minha partida, me informou o genro. Você poderia voltar a

entrevistá-lo? O trabalho de campo abria suas portas para além de minhas expectativas.

A questão a ser tratada tinha a ver com ―o negócio das mortes‖. Era preciso refazer os

contornos da história. O que, a princípio, me pareceu um tema intocável com os proprietários,

já que imaginava que a morte em Belém somente poderia ser associada às perseguições que

eles haviam cometido contra os moradores que se opunham ao regime de trabalho imposto, se

transformou, durante a entrevista com Antônio Melo, em mortes que ocorriam por vinganças

familiares ou por defesa pessoal. Crimes, sindicato de trabalhadores, Ligas Camponesas,

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Família, escravidão, luta 56

assassinatos com facas, pistoleiros… tudo se misturava no agora amplo e polissêmico rótulo

de ―a morte‖. E assim, minhas perguntas sobre o sindicato dos trabalhadores rurais e sobre

algumas das figuras mais renomadas nesta organização foram agrupadas às brigas de faca,

protagonizadas muitas vezes pelos pistoleiros, sobre as quais já me haviam falado vários dos

ex-moradores.

Em conjunto, as mortes de pistoleiros e moradores e os castigos a moradores

sindicalizados agrupam-se então para descrever os contornos mal definidos da história dos

proprietários, os temas marginais que estes não quiseram me transmitir, mas que tampouco

puderam negar; os temas que tiveram de ser apropriados, despojados de alguns aspectos mais

espinhosos e neutralizados em mortes e flagelos apresentados como um costume da época ou

como circunstanciais. As agressões que Antônio Melo se dispunha a contar se tornavam

episódicas e justificadas; as outras tornavam-se rudimentares e marginais à Belém que na

verdade importava — era um assunto dos empregados. As duas entrevistas terminaram com

uma recomendação: entrevistar Antônio Mendes. Antônio Melo, sua esposa e seu genro me

sugeriram seu empregado de confiança que sabia mais do que eles deste distante e rústico

assunto e, por tanto, me forneceria um relato mais detalhado.

Genro: Mas esse Mendes, se você perguntar a ele, ele sabe tudo [...].

Antônio Melo: Ele sabe mais do que eu. Tudo o que perguntar, ele

sabe; ele explica melhor do que eu o negócio das mortes.

Teté: Que o Toninho estudava em João Pessoa.

Genro: Era novo, era menino.

Teté: Só vinha nas férias, e esse Mendes morava direto...

Contarei, então, algumas anedotas de Antônio Melo Neto relativas ―ao negócio das

mortes‖ e a todos estes temas sobre os quais não era adequado falar dentro da história que me

era narrada: ―Que esse negócio, eu não gosto de conversar, que é um negócio muito ruim para

estar conversando assim, né?‖ Como assinalei anteriormente, as mortes, costumeiras ou

episódicas e justificadas constituem um tema de tal modo amplo que é capaz de agrupar tanto

as mortes por vendetta — como a que ocorreu com Zé Jacó, um antigo administrador de Tozé

Melo — como os ataques dos proprietários aos moradores, realizados em ―legítima defesa‖.

Antônio Melo me contou vários desses ataques, sempre argumentados do ângulo da defesa

pessoal, que surge por vários motivos, dentre eles, a invasão dos camponeses. O ex-

proprietário afirmou defender-se legalmente dos ilegais, e seu genro reforçou esta alegação:

―Porque na época desse João Goulart, o comunismo queria se implantar aqui no Brasil. Então,

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Família, escravidão, luta 57

o comunismo era isso: era o pessoal invadir e tomar de quem tinha. Incentivava e invadia as

propriedades rurais‖.

No relato de Antônio Melo Neto, as Ligas Camponesas são utilizadas como um dos

bodes expiatórios das agressões cometidas pelos proprietários contra os moradores. As Ligas

confundem-se aqui com os sindicatos e ambas as organizações aludem a um mesmo

significado: todos são camponeses rebeldes e invasores da propriedade privada, todos são

comunistas ilegais.22

Em prol de seu ataque ao comunismo e usando neste último os mesmos

parâmetros que, anteriormente a 1950 e por ocasião do Golpe Militar, conferiram ao

comunismo o atributo de ilegal, Antônio Melo Neto funde, em seu relato, as Ligas

Camponesas e a ala da Igreja Católica norte riograndense que teve uma participação

importante na construção dos sindicatos de trabalhadores rurais daquele estado. Figuras da

Igreja opostas às Ligas são assim incluídas em tal organização.23

O conflito foi em Sapé,24

me disseram Antônio Melo Neto e sua esposa, na primeira

entrevista: ―Em Belém, não houve conflito, não houve morte, não houve nada disso, não

22

As primeiras Ligas Camponesas das quais se têm registro no Brasil datam de meados da década de 1940. Estas

encontravam-se ligadas ao Partido Comunista Brasileiro, e a repressão aos militantes do Partido, em 1947,

impediu que vigorassem por mais tempo. Em 1955, as Ligas Camponesas teriam outra origem. Neste ano, surgiu

no município de Vitoria de Santo Antão, no engenho Galileia, a ―Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores

de Pernambuco‖, que depois passou a se chamar ―Liga Camponesa da Galileia‖. A partir daí, as Ligas

começariam a se expandir por todo este estado, chegando, depois, aos demais estados do Nordeste do Brasil (ver

Julião, 1962, 1968; Azevedo, 1982). Em 1960, as Ligas cresciam rapidamente na Paraíba, onde desenvolveram

núcleos importantes como Santa Rita, Sapé, Mamanguape, Guarabira, Pirpirituba e Espírito Santo (Andrade,

1998). Por outro lado, no que diz respeito ao Rio Grande do Norte, na década de 60, teve início um movimento

de sindicalização rural que cresceu no seio de uma ala da Igreja Católica deste estado. Tal sindicalização

conformava-se como uma força contraposta às Ligas Camponesas. De acordo com pessoas vinculadas a esta

entidade eclesiástica, a região do Rio Grande do Norte limítrofe à Paraíba (onde se localizava a fazenda Belém)

tornava-se uma zona ameaçada pelo avanço das Ligas, que chegavam de Sapé e tentavam se desenvolver em

alguns municípios dessa região (Cruz, 2000). No entanto, o crescimento das Ligas não chegou a obter uma

dimensão importante nesta região, onde, ao contrário, a sindicalização rural empreendida pela Igreja predominou

na organização política dos trabalhadores rurais. 23

As oposições entre as Ligas Camponesas no Rio Grande do Norte e a ala da Igreja Católica que trabalhava na

construção de sindicatos de trabalhadores rurais podem ser percebidas no relato de alguns de seus dirigentes. Por

exemplo, em uma entrevista que realizei com Roberto Medeiros de Santos, ex-líder sindical, ex-deputado

estadual no Rio Grande do Norte, cassado pelo golpe militar e participante da fundação das Ligas, ele explicitou

esta disputa. O fez ao contar sobre a fundação, em 1960, do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da

Extração da Cera de Carnaúba, no Vale Grande, e do Sindicato dos Trabalhadores Rurais do município de

Meireles: ―Dom Carlos [foi] ao Rio e trouxe uma carta sindical [...] e cobriu com essa carta os dois sindicatos

que eu tinha fundado. A idéia era desestabilizar minha luta, minha penetração nos campos. Então, aí, tiraram de

mim os dois sindicatos, e ficaram os sindicatos como sendo da Igreja‖. Por sua vez, no jornal A Ordem,

periódico da diocese norte riograndense, fundado em 1935, encontram-se entre 1962 e 1964 (anos considerados

em minha revisão), várias alusões contrárias às Ligas Camponesas, as quais são apelidadas, em tom pejorativo,

de comunistas. Uma destas notícias desclassifica o convite feito por Roberto Medeiros ao líder Francisco Julião e

ao padre Alípio de Freitas — ―suspenso de ordens por rebeldia à hierarquia eclesiástica‖ (31 de agosto de 1963,

pág. 3) — para ir ao Rio Grande do Norte. 24

Sapé, na Paraíba, foi um lugar destacado na organização das Ligas Camponesas onde ocorreram episódios de

grande violência. Aludindo a 1963, Azevedo (1982) assinala: ―Na Paraíba, além do assassinato de João Pedro

Teixeira, que teve repercussão nacional, ocorreram vários choques entre capangas e camponeses na área de Sapé

e Mari, com várias vítimas fatais‖ (Azevedo, Op. Cit.: 108).

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Família, escravidão, luta 58

houve nada, não‖. Apesar de este assunto da invasão de terras ter ameaçado Belém, o

latifúndio resistiu de pé: ―Que eu me armei e me preparei para não ser invadido, que eu não

podia entregar o que era meu para os outros; porque quem invadia não era o morador, não, os

morador [sic] da gente não queria invadir, não. Quem queria invadir era gente que vinha de

fora‖. Mais adiante na entrevista, perguntei por Manoel de Bete, de quem tanto me haviam

falado as pessoas ligadas ao movimento sindical: ―Ele foi administrador do senhor?‖. ―Agora

você vai chegar num negócio que eu sou obrigado a dizer‖, me respondeu. E me contou que

Manoel era um morador de Belém ligado ao sindicato através de um advogado que, por sua

vez, era ligado a Carlos Neves, naquela época, administrador apostólico da Arquidiocese de

Trindade. Segundo Antônio Melo, o advogado falava na rádio, ―incitando o povo‖, e aquilo

era comandado por Carlos Neves: ―Ele era quem fazia o negócio da Liga Camponesa para

invadir a terra do povo‖. Manoel de Bete que, para Antônio Melo, já morrera alguns anos

atrás, estava contra os proprietários de Belém: ―Ele entendeu de que ia fazer umas casas na

minha propriedade‖. Nesse tempo, Melo estava ―servindo o Exército‖:

Aí eu já sabia que ia a haver a revolução porque, dentro do quartel, eu

tinha certa influência, tinha umas amizades lá. Aí, falei com o coronel

e o coronel disse: ―Toninho, quem levantar uma casa na fazenda, bota

abaixo! Só se você quiser, mas pode botar abaixo que eu garanto o

negócio‖.

Sob esta proteção, Antônio Melo demoliu a casa e, quando a revolução ocorreu,

Manoel de Bete ―não foi morar mais na minha terra, foi morar para o lado de São Sebastião,

não sei aonde foi‖, concluiu. No começo, não pareceu pertinente a meu interlocutor que eu

colocasse tais questões em meu relato, ainda que, transcorridas algumas palavras, ele tenha se

retratado, dizendo que, se meu desejo era escrevê-lo, eu poderia fazê-lo. Contudo, aquilo seria

infrutífero, já que ―para o negócio de Belém, isso não vale, não, que Belém não foi invadida‖.

De acordo com Antônio, ele e seus irmãos fizeram a primeira reforma agrária no Rio Grande

do Norte: ―Eu vendi várias (quadras) de terra, Josias vendeu, Luis vendeu. Foi uma reforma

agrária de terra feita consensual, sem haver problemas nem nada‖.

Deste modo, íamos e vínhamos de um lado a outro da margem, fazíamos e

desfazíamos os contornos agora imprecisos da história de Belém, do que ―valia‖ e do que não

valia introduzir no relato. Apesar da confusão, uma coisa parecia ficar clara: para os

herdeiros, a invasão, os camponeses e as mortes deviam ser mostrados como marginais à

história. Com Josias, o tema não foi abordado; com Antônio Melo, a questão somente foi

induzida a partir das minhas perguntas. Na primeira entrevista, os camponeses de Belém e as

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mortes quase foram negados. Somente se falou de Manoel de Bete e de Zé Jacó — um tema

que, para os entrevistados, pertencia mais a Mendes do que a eles. No segundo encontro, estas

questões se fizeram visíveis, mas foram reduzidas ao relato de episódios circunstanciais de

defesa pessoal contra o ataque de moradores ou a invasão dos camponeses.

Seguramente, havia assuntos sobre os que eu já tinha informações, mas sobre os quais

não me havia animado a perguntar mais profundamente, opinaram Antônio Melo e seu genro.

Por isso, voltaram a me chamar, para que eu não ficasse com uma visão ―errônea‖ daqueles

assuntos. Nada disto era o que Antônio Melo queria me transmitir a respeito de Belém, mas

diante da irrupção inesperada daqueles temas, decidiu me ceder sua versão.

Na segunda entrevista, começamos, então, a olhar fotografias que não estavam

penduradas na parede. Algumas delas, dignas desse lugar, lembravam a história da família ou

o fato de Antônio Melo Neto ter sido prefeito. Outras, por sua vez, estavam distantes da

possibilidade de glorificação naquele cimento. ―Os camponeses‖ eram parte deste acervo. Em

preto e branco posavam um ao lado do outro ou caminhavam sobre uma estrada de terra,

mostrando suas foices e enxadas. Este foi o incidente do agave. Transcreverei o relato que

Antônio Melo elaborou a este respeito.

Os camponeses da imagem estavam indo embora de Bom Jesus e chegando a Belém.

Era janeiro ou fevereiro de 1964. O fotógrafo era um amigo de Antônio Melo. Este o havia

encarregado do trabalho de documentar o que estava ocorrendo em Bom Jesus e, em seguida,

transmiti-lo ao quartel do Exército, em Trindade. A foto mostrava a Liga Camponesa

―comandada por Maria das Dores Meireles e Carlos Neves‖. De acordo com Antônio Melo,

Maria das Dores era uma funcionária do Ministério do Trabalho que se encarregava de

entregar a carteira de trabalho aos trabalhadores rurais. Além disso, era ligada à Igreja

Católica e seguia a orientação de Carlos Neves. ―Nesse tempo, foi quando começaram a criar

carteira profissional, do trabalhador. Eles se achavam que, com aquele documento e com o

sindicato, podiam tomar conta da minha terra, da sua e de qualquer outra pessoa‖.25

As pessoas da fotografia não eram moradores de Belém, eram ―de fora‖. Em um

primeiro momento, Antônio Melo afirmou não reconhecer ninguém na foto. Mais tarde,

decidiu ―contar a história verdadeira, contar até o papo‖. ―Vamos olhar a cara dele, mostrar

25

Com o Estatuto do Trabalhador Rural, de 1963, os direitos concedidos ao assalariado urbano, desde o Estado

Novo, estenderam-se ao assalariado do campo (Andrade apud Azevedo, 1982). O Estatuto garantiu salário

mínimo, férias, repouso semanal e 13º salário. Mais tarde, a Lei Complementar n. 11 acrescentou os direitos à

aposentadoria por velhice e invalidez e à pensão e auxílio funeral (Andrade, 1998). Como assinala Palmeira

(1989: 101), tal Estatuto ―reconheceu a existência do trabalhador rural como categoria profissional, vale dizer,

como parte do mundo do trabalho‖.

Page 74: Tese Fernanda Figurelli

Família, escravidão, luta 60

aqui a você quem era ele. Pronto, ele está aqui de chapéu, esse daqui, oh [mostra uma foto], e

ele é esse daqui também, tá vendo? [mostra outra foto]. O nome dele é Celso Pereira‖.

Era domingo de manhã. Antônio Melo ainda era solteiro. Rodearam a casa, e duas

pessoas foram falar com Márcio Araújo. ―Tá certo, pode arrancar o agave‖, disse muito

calmamente Márcio. O agave havia sido plantado na Fazenda Laranjeira, que era de Dona Eli,

as terras do atual assentamento Jorge Fernandes. As plantações de agave eram financiadas

pelo Banco do Nordeste para a elaboração de fibras, com as quais se fabricava principalmente

cordas para atar os barcos e fazer almofadas. ―Mandadas invadir‖, as pessoas arrancaram

aquele agave para plantar em seu lugar mandioca, milho e feijão, para ―fazer o mal‖, já que,

em Belém, existiam vários hectares de terra sem serem trabalhados, opinou Melo.

Pereira era de Lagoa Verde, fora de Belém. ―Ele invadia Belém e não tinha nada a ver

com a história, era um oportunista, pronto‖. Os contornos tentavam ser reforçados, Celso

Pereira não podia se infiltrar na história de Belém. Quando foi de noite, na noite desse mesmo

domingo, os fazendeiros (que, no relato de Antônio Melo, são mencionados na primeira

pessoa do plural) e, principalmente, Márcio Araújo, ordenaram que a casa do camponês fosse

cercada e que ele fosse castigado: ―A gente deu uma pisa nele muito grande, grande, bem

grande, menino, mulher e toda qualidade de gente. Deu uma pisa nele e, de repente, não

invadiu terra, não arrancou agave, não fez nada‖. Para Antônio Melo, o ataque que Márcio

Araújo havia encomendado não foi suficiente, ―era para ter dado mais‖. ―Quem invadia a terra

dos outros não valia nada, como esse cabra aqui de chapéu‖. Transcorrido o tempo, terminou

morto por uma punhalada de seu cunhado, na porta de sua própria casa, assinalou Antônio

Melo em tom desmoralizante. Aquilo ocorreu na época em que este último era prefeito.

Celso Pereira desapareceu de Belém e, por ocasião do Golpe Militar, tentaram

eliminar os demais: ―Depois de 64, ficaram todos mansos, todos mansinhos, não falavam de

invadir mais nada, a história é essa‖, observou Antônio. O Exército ―chutou os comunistas do

Brasil, e ainda hoje, a gente está satisfeito com esse ato do exército. Por quê? Porque não

deixou que o comunismo esteja se afundando‖, insistiu seu genro. Apesar da tentativa, os

camponeses continuaram se infiltrando e desfazendo os limites dos relatos familiares.

―A história que eu estou contando a você agora, eu me abri para contar a você, que

você me perguntou todo o negócio de briga, de morte, não sei o que, eu estou contando para

você agora, pronto‖: Antônio Melo narrou mais episódios. Mais do que a camponeses, ele se

refere, nos casos seguintes, a moradores e vaqueiros.

Page 75: Tese Fernanda Figurelli

Família, escravidão, luta 61

Você perguntou das mortes, as mortes que teve lá e assim, assim,

assim, que mataram Zé Jacó, não foi assim? Mataram na feira, não

foi?26

Com meu irmão, Zé Melo, também aconteceu um negócio, bem

pertinho da casa do Gregório. Já ta sabendo disso, não tá?

Este é o primeiro ―acidente‖ dos três que Antônio Melo decidiu me contar. Seu irmão

―foi chamar os trabalhador para a diária, que você perguntava‖, me disse o entrevistado. O

que morreria era um morador que se negava a trabalhar sob aquele regime, de modo que

foram em sua casa buscá-lo. Foi na época de Getúlio Vargas: ―Quando começou aquela

revolução, o negócio do trabalhador, o negócio da CLT, da lei do trabalho e começou a ter

carteira assinada, e ele se achava que mandava no vazio‖. O morador pegou uma estaca da

cerca e, como havia feito anteriormente com outras pessoas da família, tentou agredir Zé

Melo. ―Está querendo me desmoralizar?‖, reagiu este último, ―comigo a conversa é

diferente‖.

Disparou e o matou. Aquilo ocorreu muito perto da casa onde morava Gregório. ―Aí,

voltei para aquela casa grande que se chamava Belém, voltei para lá correndo no cavalo‖.

Naquele tempo, o narrador tinha nove anos.

Dez ou 15 anos mais tarde, José Duarte Melo, o pai legítimo de Antônio ―também se

viu obrigado‖ a disparar em uma pessoa que quis atacá-lo. Era seu vaqueiro e havia começado

a lhe roubar. José Duarte viajava muito e deixava a venda de gado a cargo deste vaqueiro. Um

dia, foi avisado que seu encarregado vendia mais do que devia. Aquilo provocou uma

discussão entre ambos e enquanto o vaqueiro levantou uma foice com a intenção de

arremessá-la, José Duarte acabou a discussão com um tiro. ―A história foi assim‖.

E a terceira e mais extensa história contada por Antônio Melo é em primeira pessoa.

―Quando foi no dia 11 de novembro de 66, eu, Antônio Melo Neto, fui obrigado a atirar em

outro também‖. Benedito Aguiar era ―primo legítimo‖ de Manoel de Bete. ―Eu fui obrigado a

atirar nele também para não morrer‖, observou o entrevistado. Antônio Melo era um grande

produtor de algodão, o segundo maior produtor do Rio Grande do Norte. A lista era

encabeçada por seu cunhado, o irmão de sua esposa. Em sua fazenda, chamada Olaria, dentro

de Belém, Melo possuía 350ha de algodão.

Antônio Melo: Você perguntou o que era diária, não foi? A diária era

a pessoa dar um dia de serviço na fazenda durante a semana. Só que

meu tempo já era mais evoluído, e não tinha mais diária, a gente tinha

meeiro, eu dava o algodão, dava o feijão, dava a fava para a pessoa

plantar...

26

Farei referência e este episódio mais adiante.

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Família, escravidão, luta 62

Teté: Dava a terra.

Antônio Melo: É, dava a terra e o boi de capinadeira, que a gente

trabalhava com boi de capinadeira.

De acordo com o narrador, sua esposa e seu genro, Aguiar era um morador de Belém

que trabalhou de meia para Melo de seis a oito anos. Este lhe oferecia a semente, os

inseticidas, os bois, o dinheiro e todo o necessário para a produção de algodão. ―A terra era

minha, e ele era meeiro meu‖. Como meeiro de Melo, Aguiar estava comprometido a lhe

vender sua produção, enfatizou o genro. O proprietário era financiado pela usina em que o

algodão era tratado.

Em uma ocasião, Melo foi a uma exposição de animais na cidade de Iguatu, no Ceará.

Ao voltar, de noite, um empregado lhe contou que Aguiar havia vendido o algodão. Todo

mundo já sabia daquilo, mas ninguém lhe tinha avisado. Ele era muito trabalhador, mas

―botaram na cabeça dele que eu estava rico‖, observou meu interlocutor. Quando Melo viu

Aguiar, parou e disse:

- ―Benedito Aguiar, rapaz, tu vendeu o seu algodão fora?‖.

- ―Eu nem vendi o algodão ao senhor, nem vendo mais; vou vender o algodão fora‖.

- ―Mas, Benedito Aguiar, esse dinheiro que eu dei do algodão não é meu, não, eu não tenho

dinheiro para produzir esse algodão. Eu tomo prestado do dono da usina e minha obrigação é

vender o algodão a ele‖.

Melo me apresentou seu marco familiar: sua filha tinha três ou quatro anos, sua esposa

estava cozinhando purê, e ele ainda estava de luto pela morte de seu pai. O enfrentamento foi

no caminho, quando estava indo juntar o algodão de um caminhão que tinha capotado. Era

quase de madrugada, e vestia um pijama. Encontrou Aguiar que estava com a sua família.

Melo reproduziu novamente o diálogo anterior, mas modificou um dado: ainda não sabia que

Aguiar tinha vendido o algodão por fora.

- ―Benedito, vem cá, que horas vamos pegar teu algodão?‖.

-―Nem agora, nem ao meio dia, que eu não vou vender mais algodão ao senhor. Eu já vendi ao

senhor Bráulio e vou vender a ele‖.

Aguiar agrediu Melo e cortou seu pijama. Melo teve, então, de disparar contra ele.

Aguiar não sabia que ele estava armado. Mas, naquela época, depois da Revolução, Antônio

Melo tinha sempre consigo uma arma. Se não tivesse sido assim, reforçou o genro, Aguiar o

teria matado. ―Eu passei um bocado de tempo assombrado com ele, com medo‖, observou

Melo, opinando que, naquele momento, deveria ter acabado com a vida de Aguiar: ―Que tudo

o que eu fiz com ele, que naquele tempo ele tinha boi de capinadeira, vaca, cavalo, burro,

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Família, escravidão, luta 63

jumento, tinha toda qualidade, e morreu na miséria, eu fui obrigado a dar uma casa a ele‖.

Aquele ―acidente‖ depois foi esclarecido pela justiça. Se voltasse a acontecer, disse Melo,

faria o mesmo. E assim termina a história.

O ―assunto das brigas e das mortes‖ adquire, com este relato, um começo e um fim;

seus limites ficam claramente demarcados. Seu significado restringe-se para aludir a

determinados episódios ou ―acidentes‖ que possam ser contados (ou justificados) pelo

fazendeiro e outros episódios que ele não pode contar, e sim delegar. Seu antigo empregado

será o indicado para me transmitir as várias mortes que ocorreram em Belém e que,

injustificadamente, lhe valeram o ―prestígio negativo‖,27

já que, em Belém, ―um mandava a

matar e aquele já mandava a matar outro [sic]‖. Este era um assunto que escapava do alcance

dos proprietários — que configuram as associações centrais de Belém na narrativa

apresentada no primeiro capítulo.

O tema, por sua vez, para além de atribuir ao ―assunto das mortes‖ um começo e um

final, restringe-se a um período que fica fora da Belém de Tozé, da grande fazenda, da

―fazenda familiar‖. Dando contornos nítidos ao tema e circunscrevendo-o em um lugar

marginal da história, Antônio Melo e seu genro me esclareceram que tudo ocorreu após a

morte de Tozé. Deste modo, o prestígio dos Melo e de sua grande fazenda ressurge, e a

história da família volta a colocar-se de pé: ―Quando aconteceu esses problemas, seu Tozé já

tinha falecido‖. O símbolo da família, a figura que concentrou o patrimônio e familiarizou os

Melo fica assim isento de culpas.

Histórias que os empregados contam28

Os pistoleiros de Belém, os homens de Tozé e Juca, não somente são reconhecidos

pelos herdeiros, como também conformam uma característica bem conhecida da fazenda.

Suas histórias foram mencionadas pelos ex-moradores, pelos velhos vaqueiros e empregados

e pelas pessoas da cidade. Belém era o refúgio dos criminosos, Belém era Braba, fala-se

muito sobre isto.

O povo respeitava tanto a gente que, se um cabra brigasse com a polícia e

pegasse na porteira aqui, o soldado não entrava na fazenda Belém; a polícia

vinha e voltava. Aí, quando batia lá dentro, tinha 50 homens, tudo armado.

27

Tendo em conta a análise de Marques (2002) sobre o prestígio que, de modo distinto à fama, implica uma

posição social que supõe certo poder, é interessante notar que quem utiliza a categoria aqui é um herdeiro Melo,

e que o faz para se referir à Belém. 28

O subtítulo tem como inspiração o capítulo I de Darnton (1986).

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Família, escravidão, luta 64

Não tinha forma de resolver com 50 homens armado. Pronto, a história é

essa [...] Naquela época, 60 anos atrás, 70 — eu acho que na Argentina

também era desse jeito, há 50 anos atrás, 70 anos atrás, não era assim? Era

ou não era, nesse tempo? O que acontecia lá, acontecia aqui também.

(Antônio Melo).

Os fazendeiros, por sua vez, se valiam dos criminosos. Quem se colocava contra Tozé,

contou Alícia, quem quisesse roubar alguns de seus pertences tinha seu castigo que, no

melhor dos casos, se limitava a uma surra: ―Existem boatos de que, em Belém, tem muita

gente enterrado por conta disso, tem desaparecidos. Além do mais, [Tozé] era coronel da

Guarda Nacional, aí o pessoal não se metia contra ele‖.

Tal como o neto de Tozé Melo, com Serafim Ramos, o empregado que pesava algodão

no armazém, aquele rumor acerca de Tozé era posto em dúvida. Um dos primeiros assuntos

que Serafim mencionou, quando me falou sobre Belém, fazia referência aos brabos: ―E,

então, a propriedade de Belém, o povo falava que tinha muito brabo, mas no tempo que eu

morei lá, não vi brabo não, não vi nenhum‖. Foi difícil entender o que Serafim estava dizendo

quando mencionava aquilo. Em seguida, me contou um episódio, depois outro, e o panorama

começou a ficar mais claro.

Quando Juca Melo estava vivo, ―tinha um delegado aqui [em Bom Jesus] e tinha um

velho, um senhor na propriedade de Belém, que dizem que era brabo, tinha um morador de

Belém que era brabo, que dava no povo‖. O velho, que era um capanga chamado Tomé, dava

com a macaca29

por qualquer coisa, me explicou, em seguida, Serafim. Por isso, deram parte

dele na polícia de Bom Jesus. No caminho para tal cidade, o velho passou pela casa de Juca e

lhe disse:

- ―Seu Juca, eu fui intimado pelo delegado lá em Bom Jesus‖.

- ―Vai atender‖, sugeriu Juca.

- ―E se ele me prender?‖, perguntou Tomé, e Juca lhe assegurou:

- ―Não prende, não‖. Inseguro, o velho insistiu:

- ―Coronel, ele não vai me prender, não?‖ [―O povo velho, antigo, chamava coronel, né?‖, me

explicou Serafim].

- ―Se prender, eu solto‖, concluiu Juca.

O velho chegou então ao xadrez, a unidade de polícia. O delegado o fez entrar, Tomé

se sentou. Eles eram três: ele, o delegado e um soldado.

29

―No Brasil é vulgar a macaca, chicote de couro entrançado, com o cabo curto, destinado aos animais de tração

e outrora aos escravos-de-eito, nos serviços rurais‖ (Cascudo, 1970: 205).

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Família, escravidão, luta 65

- ―O senhor tem dado em muita gente?‖, perguntou-lhe o delegado.

- ―Nunca dei em ninguém. Eu dou em cabra safado, em homem nunca dei, agora, cabra

safado, eu tenho dado‖, respondeu Tomé.

O delegado ordenou sua prisão. O velho pulou a janela na tentativa de escapar. O

soldado dirigiu-se até a porta tentando persegui-lo, mas caiu. Serafim riu e me disse: ―Aí,

dessa vez, deu sorte, desceu, só tinha o delegado, não tinha outro para mandar‖. Tomé

conseguiu escapar e voltou à Belém. Quando passou pela casa do finado, lhe disse:

- ―Mandou prender‖.

- ―Mandou prender?‖, interrogou Juca.

- ―Mandou‖, confirmou Tomé.

- ―E que foi que você fez?‖, perguntou Juca, e Tomé respondeu:

- ―Bati no pé do (velho), ele caiu, vim embora‖.

Serafim riu novamente ao concluir a anedota e me disse: ―Fazia isso porque tinha

apoio do proprietário, viu?‖.

No relato de Serafim, pode-se observar um vínculo entre o brabo e o fazendeiro: ser

brabo em Belém implicava uma relação com o fazendeiro que permitia ao primeiro dar em

gente e burlar a autoridade judicial.30

Mais adiante no relato de Serafim, é possível observar

que a idéia de ser brabo não terminava aqui, associando-se também à morte e à briga, mas

não a qualquer morte, nem a qualquer briga. Em Belém, surgiam muitos mortos, mas não era

devido à ação dos brabos, me explicou Serafim e, de modo distinto ao que ocorria na maioria

das outras fazendas, essas mortes tampouco tinham a ver com o proprietário: ―O proprietário

mesmo [Serafim se refere a Tozé Melo] nunca ligou nisso não, de mandar a matar essas

coisas, não. Sempre é o proprietário que paga para matar outro, né? Mas ele lá, não, não

gostava disso, não‖. De acordo com Serafim, as mortes ocorriam por brigas de trabalhadores:

―Antigamente, o povo tinha uma ignorância de brigar para matar um ao outro por causa de

cachaça‖. Aquilo costumava acontecer na diária, quando se reunia uma turma de gente para

trabalhar para o proprietário:

Terminava brigando, aparecia todo cortado depois [...] Nesse tempo (dava

isso muito), cansei de ver passar todo dia ensangüentado, mas desapareceu

toda essa valentia do povo. O povo, naquela época, tinha sangue quente,

sangue quente é que não agüenta desaforo, pisava no pé para brigar,

brigavam uns com os outros, mesmo.

30

Para uma análise da categoria e de outras associadas, assim como das moralidades que estas colocam em jogo,

ver Marques (2002). Em comparação com este trabalho, é interessante observar uma particularidade em Belém

que se refere à importância que ganha o fazendeiro no uso dessas categorias, bem como os vínculos que com ele

se estabelecem. No entanto, não deterei minha análise neste aspecto.

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Família, escravidão, luta 66

Briga de trabalhador não é para Serafim briga de brabo. Além disso, os mortos de

Belém, de acordo com ele, não foram por ordem do proprietário e, por fim, tampouco foram

cometidas por brabos, já que, em Belém, o brabo não podia ir adiante sem o consentimento

do fazendeiro: ―Teve [...] gente que matava outro, mas não era nem por conta do proprietário.

Foi um dos melhores proprietários, eu sei que eu me criei em Belém. Antônio José Melo,

chamava Seu Tozé, ele era boa pessoa‖.

Para Serafim, na Belém de Tozé não havia brabos. No entanto, relativizou meu

interlocutor, houve uma grande briga que ocorreu entre a polícia e o povo de Belém e que

ocasionou duas mortes: ―O povo falava que tinha muito brabo, mas não tinha, mas assim

mesmo, no dia 13 de fevereiro de 28, houve uma briga aqui com o povo de Belém, com a

polícia, aqui na rua [cidade de Bom Jesus]‖. Serafim me contou a história com detalhes e

também a escutei de Antônio de Serras, um antigo morador de Belém.

O episódio ocorreu no mesmo dia em que nasceu a irmã de Serafim. Na época

posterior à morte do finado Juca, a polícia deu uma ordem para desarmar o povo de Belém. Do

pessoal da fazenda, Serafim mencionou um homem da casa do proprietário, ―que chamava

capanga, né? Que fazia os mandados, que ia dar surra‖, e a Cícero ―um negão alto, raça forte‖.

Cícero ―deu uns tapas‖ no carro da polícia de Bom Jesus e foi aquilo que despertou a reação

desta última. Um domingo, o dia anterior à briga, chegou em Bom Jesus um automóvel

carregado de policiais — tenente, sargento, cabo e uma equipe de soldados — e se dirigiram à

Belém para avisar do desarme. O dia seguinte era uma segunda-feira, dia de feira. ―Como o

finado Tozé era vivo, avisou ao povo que não levasse armas‖, observou Serafim. De modo

que muita gente guardou seus revólveres, facões e facas que era corriqueiro carregar nos dias

de feira. Não foi assim com Vado Melo, um dos irmãos de Tozé: ―Chamava Osvaldo, mas

chamava Vado, Vado Melo‖, me esclareceu Serafim. Vado levou um pequeno punhal. De

acordo com meu interlocutor, ―os soldados andavam fazendo a corrida dentro da rua, tomando

as armas de quem tinha‖ e o viram:

- ―O senhor está armado‖, perguntou um dos policiais.

- ―Tô‖, respondeu Vado.

- ―Me dá a arma‖, ordenou o policial.

Nesse momento, estavam presentes o sargento e o soldado. Vado entregou a arma ao

sargento e este a passou ao soldado. Melo reagiu:

- ―Não, estou dando para o senhor, que é a autoridade maior‖ (―O sargento é mais do que um

soldado, né?‖, me explicou Serafim). ―Entrega a ele‖, disse Vado ao soldado.

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Família, escravidão, luta 67

Em seguida, os policiais viram um conjunto de pessoas agrupar-se em torno de Vado

Melo. Tinham começado a arrancar as varas que sustentavam a carne seca que se vendia na

feira. ―Aí mataram dois, a polícia matou‖, disse Serafim. ―Do lado de cá, do lado de Belém‖

matou o finado Ferretti, que era avô de Gregório do sindicato, pai de sua mãe. Dentro de uma

casa de comércio, um homem gritava: ―Errou, cabra malvado?!‖ — dizia isto ao soldado que,

nervoso, errava todos os disparos. Uma dessas balas acabou indo se alojar na virilha de um tal

Luismar, que não estava brigando, estava se resguardando — ―Foi má sorte, e morreu‖.

Depois daquilo, se escutou, vindo da casa de comércio: ―Acertou, cabra malvado!‖. Por obra

do sargento, quem pronunciou a frase acabou com a cara arrebentada, mas conseguiu escapar.

Os demais foram todos presos.

―Venha, entra logo em Belém para matar todo mundo‖, exclamou o policial. ―E o

povo dormindo nos matos‖, me disse Serafim. Nessa época, ele era muito jovem e ainda

morava na casa de seu pai na fazenda, em uma zona próxima à rua, em Bom Jesus. Recordou

que, naquela ocasião, seu pai disse: ―Eu não saio de casa‖ e não saiu até que a calma fosse

restabelecida. ―O finado Tozé para acabar essa questão gastou quinhentos mil réis com um

advogado do Rio de Janeiro‖.

―No dia 13 de fevereiro de 28‖, concluiu meu interlocutor. ―Só por causa do punhal‖.

De modo distinto a Serafim, quando o velho vaqueiro Manoel David se refere às

mortes, Tozé e seus empregados ganham uma responsabilidade destacada. As mortes já não

sublinham o papel dos trabalhadores que brigavam entre si, nem do povo que brigava com a

polícia. Elas agora enfatizam o papel central que os proprietários e seus homens adquiriam

nesses acontecimentos, como também introduzem os camponeses.

Uma das figuras mais renomadas no que diz respeito a este tema é o finado Zé Jacó, o

mais temido e lembrado capanga de Belém. Das tantas versões que ouvi sobre sua morte

(entre as quais a de Antônio Melo que, diante da minha pergunta, me ofereceu um relato), me

valerei principalmente da que me contou Manoel, genro do capanga.

―A mí, tan luego, hablarme del finado Francisco Real. Yo lo conocí, y eso que éstos no

eran sus barrios porque él sabía tallar más bien por el Norte, por esos lados de la laguna de

Guadalupe y la Batería‖. O finado não seria um forasteiro, como no conto de Borges (1972),

nem tampouco o episódio ocorria de noite. Em plena luz do dia e plena feira, morreria numa

segunda-feira o malvado Zé Jacó. ―Esse Zé Jacó tinha um bocado de mortos‖ contou Manoel.

Havia trabalhado para Chico Heráclio, um coronel muito rico de Limoeiro, em Pernambuco.

Uma ―morte perigosa‖, das tantas que houve durante seu exercício com aquele coronel, o

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Família, escravidão, luta 68

trouxe para Belém, a fazenda de Tozé que administraria durante 20 anos. Ali, casaria todas as

suas filhas. Uma delas seria a esposa de nosso principal relator.

- ―Esse homem já era costumado a matar gente‖, observou a esposa de Antônio Melo em

relação a Zé Jacó.

- ―Matar gente e dar pisa em gente, trazer o cabra amarrado pelo rabo de burra‖, concluiu o

esposo.

Tudo começou com um encontro entre um filho de Zé Jacó e a filha de um morador,

criada na sede da fazenda. Ela era a jovem irmã de dois empregados de Tozé Melo. Quando se

soube do encontro, tanto os irmãos da jovem como Tozé Melo tentaram encaminhar o filho de

Zé Jacó ao casamento. A resposta veio de seu pai:

- ―Não quero que meu filho case com a menina‖. O velho Tozé respondeu:

- ―Não, Zé Jacó, faz o casamento‖.

―Aí meu sogro disse que, embora puxasse a vida dele, o filho dele não casava com a

menina‖. A morte se anunciava. ―Não quis fazer o casamento da menina, aí o homem tinha

que vingar a irmã, né?‖, observou Manoel. Diante do plano concebido por alguns dos irmãos

da jovem de matar o filho do administrador, Tozé aconselhou que o futuro morto fosse Zé

Jacó, no lugar de seu filho: ―Mata o velho, se matar o menino, o Zé Jacó não deixa nenhum

vivo‖. Manoel me esclareceu que seu sogro era malvado, ―ligeiro de matar gente‖.

Fez-se como Tozé ordenou. Ao despertar, os dois empregados tomaram o café da

manhã em Taipal e afiaram a faca em uma pedra, detalhou Antônio Melo. Zé Jacó foi morto

numa segunda-feira. Apunhalaram o velho e deixaram o jovem. Na rua, em frente à igreja

Matriz onde antigamente era realizada a feira, jazia o corpo do capanga.

Novamente, a feira revela-se como cenário das mortes. De mortes que se revelam mais

do que episódios excepcionais. De mortes que revelam uma ética do matar e do morrer, assim

como uma formalização do modo como o crime deve ser realizado. De mortes que põem em

jogo a produção de reputações (Marques, 2002). Isto pode ser apreciado tanto na briga

narrada por Serafim, como na morte de Zé Jacó e, inclusive, no acidente que ocorreu com Zé

Melo, cujo disparo não é relatado por Antônio Melo Neto sem as palavras que este último

mencionou previamente: ―Está querendo me desmoralizar? Comigo, a conversa é diferente‖.

Essas ocasiões revelavam-se cruciais na construção da reputação da família daqueles que

mataram Zé Jacó, da reputação de um proprietário que de nenhum modo se desmoralizaria

diante da ameaça de um morador, da reputação do povo de Belém que teve de enfrentar a

polícia para se defender de um membro do povo, que era nada mais, nada menos que um

Melo. Os episódios narrados revelam, assim, os laços sociais que tais mortes implicavam.

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Família, escravidão, luta 69

Não é casual que dois deles tenham ocorrido na feira. Lugar público onde ―se propicia o

encontro e a confraternização, acaba também sendo lugar de brigas e ajuste de contas‖,

assinalam Palmeira e Heredia (2009: 61), referindo-se a atos políticos etnografados no interior

do Rio Grande do Sul e de Pernambuco e observando que as disputas cotidianas se

manifestam em eventos socialmente importantes como são tais atos, as feiras ou as festas.

Marques (2002), por sua vez, adverte que é nas disputas e nas oposições ao outro que se

estabelecem as reputações. Contudo, estas não se completam sem a intervenção da

comunidade que se apropria ou não de determinada reputação. Daí que os espaços públicos se

tornem os cenários mais comuns nos quais as oposições se explicitam (Marques, 2002).

Consumada a morte de Zé Jacó, Manoel rumou para o terreno de seu sogro em

Pernambuco, onde foi depois abandonado por sua primeira esposa. ―Quando fui para

Pernambuco, eu podia ter vinte anos‖, observou. De acordo com esse dado, a morte de Zé

Jacó ocorreu no final da década de 40. ―Ése jué el primer sucedido de tantos que hubo, pero

recién después lo supimos‖. A frase de Borges (1972) serve como prelúdio: segundo Manoel,

os mortos de Tozé começaram com esse episódio. De modo distinto ao ocorrido com Zé Jacó,

as mortes que Manoel continuou contando se referiam a eventos consumados por pistoleiros

enviados pelo proprietário, que já não se vinculavam a vinganças familiares.

Uma vez morto, Zé Jacó foi substituído por Márcio Araújo. Este seria o novo

administrador de Tozé e, mais tarde, um herdeiro de Belém, o casamento desfamiliarizador de

Eli ao qual fiz referência no capítulo anterior. Seu tempo como administrador de Tozé e como

proprietário de uma parte da fazenda também se veria apinhado de mortes. Manoel me contou

três. Depois de seu sogro, foi a vez do ―neguinho‖ Lula, um vaqueiro criado por Tozé que

também foi quem ordenou a sua morte, quando descobriu que lhe roubava gado: ―Começou a

vender bois escondido dele. Quer dizer que estava errado, não estava?‖. A vez seguinte foi a

de um pobre velho, disse Manoel, que foi confundido com um integrante das Ligas

Camponesas que haviam ido matar. Mais adiante, o criminoso daquele episódio foi o defunto

do outro, quando Márcio Araújo ordenou que liquidassem com ele, diante das suspeitas de

que ele se encarregaria da sua morte. Naquela época, Tozé já estava morto, e Márcio Araújo

assumira a propriedade das terras. Por último, Manoel aludiu brevemente ao incidente do

agave, ao qual me referi anteriormente. Aqui, somente retomarei o crime do ―pobre velho‖.

Manoel contou que, antes do sindicato de trabalhadores rurais, os camponeses das

Ligas atuaram em Belém, em um tempo que ainda era o de Tozé. Para Manoel, como para

Antônio Melo, os camponeses queriam apropriar-se do alheio: ―O povo pobre queria ter o

direito do rico, queria mandar‖, observou o vaqueiro, naturalizando a legitimidade do poder

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Família, escravidão, luta 70

latifundiário. Naquela guerra, naquela greve, prosseguiu Manoel, morreram e foram presas

muitas pessoas das Ligas. O coronel Tozé ordenava a execução dos camponeses. E, do mesmo

modo, o faziam outros coronéis, entre eles Getúlio Vilela, do município de Aparecida, que

também protegia criminosos e deles de valia na hora de agredir os trabalhadores. Uma

daquelas mortes começou com uma questão, quando um morador de Belém, um camponês,

quis se apoderar de um terreno que pertencia à fazenda. O assunto foi para o juiz e também

para os pistoleiros, quando Tozé enviou um deles para matar o morador. Ao chegar, o

pistoleiro disparou em uma pessoa que estava no roçado. O homem não era quem buscavam,

quem morreu não era um camponês. O criminoso foi preso e, depois, liberado.

O velho Tozé mandava matar o morador que quisesse se apoderar do terreno. ―Matava

e enterrava dentro de Belém, mesmo‖. Na mata ou na margem do rio era cavado um buraco e

ali o morto era enterrado. ―Um cunhado do velho Tozé fazia isso, um tal de Josué, casado

com uma irmã do velho Tozé. Quando tinha raiva de um, levava o cabra para cavar o buraco

na beira do rio, terminava de matar e enterrava ele lá‖.

Em Pernambuco, a agitação foi grande, observou Manoel. Em Belém, não

conseguiram se organizar, e a Liga durou pouco tempo. Mais tarde, foi criado o sindicato, que

obteve uma qualificação positiva por parte do vaqueiro: ―Essa Liga só procurava fazenda

grande, a fazenda que tinha morador. Era o morador quem fazia a Liga, quem queria se

apossar do local que eles ocupavam, pensava que era dono‖. No sindicato, por sua vez, cada

um ―paga seu direito‖, concluiu Manoel, o que faz lembrar a observação de Sigaud (2005) a

respeito do ―horizonte de possibilidades‖ que amparava as reivindicações dos trabalhadores

rurais da Zona da Mata pernambucana, para os quais não havia lugar para a idéia de se

apropriar das terras do patrão sem autorização.31

A Liga aqui no Rio Grande do Norte, ela nasceu no dia 26 de

setembro de 63, portanto, sete meses antes do Golpe. Então, teve uma

vida curta, mas ela foi muito profícua, muito atuante. Ela tinha o

objetivo de congregar os camponeses, no sentido de defender o direito

da posse, o direito do homem camponês, a posse da sua terra, ter a sua

terra para plantar e ter seus direitos assegurados pela lei (Entrevista

com Gil Ribeiro, que participou da fundação das Ligas Camponesas

no Rio Grande do Norte, 18/08/09).

31

―Eles só acediam a um engenho após terem sido aceitos para prestar serviços e se estabeleciam em locais

designados pelo patrão e seus prepostos. Havia a utopia do engenho liberto (cf. Sigaud, 1979, pp. 205-222), no

qual poderiam cultivar seus sítios e roçados, criar tantos animais quanto desejassem e trabalhar para o patrão

apenas quando necessitassem de dinheiro. Tudo isso pressupunha a presença do dono e não implicava a idéia da

propriedade para o trabalhador‖ (Sigaud, 2005: 262-263). O que estava em jogo naquela utopia não era a

propriedade do sítio de um engenho em um sentido jurídico, mas o acesso a essa terra, a liberdade de dela se

servir como bem entendesse o morador (Sigaud, 1979).

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Família, escravidão, luta 71

A morte de Tozé ocorreu anteriormente à organização das Ligas e dos sindicatos de

trabalhadores rurais no Rio Grande do Norte, o que ocorreu no início da década de 60. Apesar

da possibilidade de que as Ligas às quais Manoel se refere viessem da Paraíba, tampouco

desse modo chegamos ao período de Tozé, já que foi no final da década de 50 que estas se

estabeleceram naquele estado. A associação realizada por Manoel entre as Ligas Camponesas

e as pessoas que Tozé ordenava matar torna-se, assim, um dado interessante que mostra não

somente a possibilidade de se usar as Ligas como argumento para explicar as mortes na

fazenda — em um período no qual estas não existiam — como também, observando de outro

ponto de vista, de dizer algo sobre Belém e sobre a figura de Tozé Melo. Ao se falar de

Belém, a presença de Tozé é de tal modo importante que sua pessoa muitas vezes se funde

com a fazenda, e seu tempo simbólico é capaz de se estender a outros proprietários, anteriores

e posteriores a ele. Como Tozé, as mortes da fazenda também são centrais para Manoel, de

modo que não é improvável que o tempo de Tozé se estenda para abarcar esses episódios que

constituem Belém, a qual, por sua vez, se faz em muito por Tozé Melo. Finalmente, para

encerrar esta questão, cabe ressaltar aqui a distinção que no relato de Manoel se estabelece

entre Liga e Sindicato, o que não ocorria com Antônio Melo Neto. A este respeito, é

interessante reparar em seu ordenamento cronológico que, em relação às Ligas, situa os

sindicatos em um momento posterior e mais institucionalizado das lutas dos trabalhadores.

Quem conta, o que conta

Assim descortinava-se o ―negócio das mortes‖, assim me era descortinada a Belém

braba na qual os policiais não podiam entrar. A história que os proprietários se esforçaram

para me passar começava a ganhar outros contornos. Era ―ruim falar desse negócio‖, havia

dito Antônio Melo Neto, mas não foi capaz de negá-lo. Belém tinha um certo prestígio que o

impedia de fazê-lo. No entanto, mais do que verdades ou mentiras, sua conclusão do assunto

revelava, uma vez mais, os laços sociais que conformavam as histórias.

Como vimos, a história de Belém que circulava na cidade era, principalmente, uma

história de família, conformada por dois donos que forjaram um grande patrimônio e vários

herdeiros que não foram capazes de mantê-lo. Contudo, apesar do predomínio que a aquisição

do patrimônio e os agregados e desagregados familiares dos Melo obtinham, as referências

sobre Belém que escutei na cidade (e não somente na cidade), também me falavam de uma

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Família, escravidão, luta 72

Belém perigosa, de mortes e pistoleiros e de sua famosa porteira, que significava uma barreira

para a polícia. Este prestígio (nas palavras de um dos Melo) não foi enfatizado pelos herdeiros

— que apontavam para a conquista de um prestígio diferente — mas tampouco pode ser

negado. Foi a partir das perguntas que fiz a Antônio Melo Neto sobre o sindicato de

trabalhadores rurais e sobre os enfrentamentos entre proprietários e moradores que o assunto

ganhou força. Com isso, a narrativa dos herdeiros sobre a grande fazenda desviava-se e era

necessário voltar a conduzi-la.

Observamos de que modo Melo havia conseguido aquilo. Justificou os acidentes que

ocorreram em Belém com ele e seus familiares, marcou seus limites e, com isso, os expulsou

da história. Tratavam-se, agora, de episódios circunstanciais, separados uns dos outros, nos

quais os proprietários precisaram se defender dos ataques dos moradores, vaqueiros e

camponeses. Contudo, o que se dizia acerca das mortes de Belém excedia aqueles episódios e,

apesar de Melo ter preferido ignorá-los, como o fez seu irmão Josias, o assunto já havia vindo

à baila. Os cabras armados e a polícia que não entrava na fazenda foram apresentados por

Melo como um costume da época, ―seguramente ocorria o mesmo na Argentina‖. Mas não se

deteve ali. Melo foi mais além e teceu um contorno sutil. Nada daquilo estava associado à sua

família e à Belém que ele queria me transmitir: sobre mortes e facadas era melhor falar com

seu empregado.

Meu interlocutor inaugurou assim o circuito de recomendações e autorizou outro

narrador a falar sobre Belém. Mas de qual Belém? Como herdeiro da fazenda e filho de

criação de Tozé, ele já tinha me contado o mais importante. Sua própria posição atribuía essa

importância. Ao me direcionar para um antigo vaqueiro, a um narrador de hierarquia mais

baixa, para que me falasse de determinado tema, Melo conseguia dar a esse tema um lugar

secundário e controlá-lo. Deste modo, meu interlocutor estava construindo uma Belém

marginal: pessoas de menor hierarquia me falariam de assuntos de menor hierarquia.

Dar voz ao empregado no ―negócio das mortes‖ permitia, então, conferir

marginalidade a essa questão, sem necessidade de negá-la. Melo construía com isso uma

hierarquia no sentido que Dumont (1999, 2000) confere ao termo. A Belém familiar e

empreendedora englobava o seu contrário, a Belém violenta; a história combinava e distinguia

dois níveis distintos, um superior e o outro inferior, sendo este último a contradição do

primeiro. O prestígio negativo de Belém não se fundamentava mais do que em uma questão

marginal, em um elemento da história que se colocava em um nível inferior e se subordinava

ao todo.

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Família, escravidão, luta 73

A construção das margens da história por parte do herdeiro se torna ainda mais

evidente quando consideramos que os velhos empregados contavam mais do que ficava

rotulado como o ―negócio das mortes‖. A Belém apresentada no primeiro capítulo não era

unicamente a Belém dos proprietários, mas uma Belém vista de um certo registro

compartilhado por vários atores, entre os quais, funcionários da cidade, empregados e

vaqueiros, proprietários e também, como veremos no próximo capítulo, moradores, mas só

parcialmente. Os herdeiros configuraram-se nos narradores mais recomendados para falar

sobre essa história de Belém. A maioria das sugestões que recebi do circuito de entrevistas

que reconstruiu esta história recaiu sobre eles, que explanaram sobre a totalidade dos assuntos

produzidos por aquela Belém, com exceção das mortes. Sobre elas, um dos herdeiros assumiu

em parte a palavra e a cedeu majoritariamente a um vaqueiro que trabalhava para ele,

relegando ao tema um lugar marginal.

No entanto, como assinalamos, os vaqueiros e empregados não somente me falaram

sobre as mortes (e o vaqueiro recomendado por Antônio Melo Neto nem sequer abordou o

tema), como também se estenderam amplamente sobre os outros assuntos que essa Belém

permitia entrever. Apesar de ter acrescentado suas vozes — no que diz respeito a estes

assuntos — no primeiro capítulo, não foi isto que me foi recomendado. A voz não lhes foi

cedida pelos proprietários (nem pelos funcionários) que seriam aqueles que me falariam sobre

isto, estabelecendo assim os temas centrais da história. A aquisição das terras da Igreja pelo

finado Juca e, mais tarde, por seu filho Tozé, o destaque dessas duas figuras, os

reordenamentos dos laços familiares dos Melo, a produção econômica de Belém e a

exportação de algodão, entre outros temas mencionados no capítulo 1, conformariam a Belém

da história que os proprietários me contariam. Se estes narravam estes temas e somente davam

voz aos vaqueiros nas mortes, então, os episódios que constituíam Belém assumiam pesos

diferentes. Desta forma, a construção da história, do que era central e do que não o era,

revelava também as hierarquias sociais.

Por outro lado, os vaqueiros discorreram além disso sobre outros assuntos, muito

distanciados da Belém dos Melo. Suas palavras iam daquela história consagrada na cidade e

pelos proprietários, passavam pelas ―mortes‖, por seu trabalho como vaqueiros ou

empregados, pela menção a questões como o foro e a diária e chegavam ao roçado que

tinham nas terras de Belém, à descrição do trabalho na casa de farinha e, inclusive, à pobreza

que enfrentaram em suas vidas. Deste modo, nos introduziam gradualmente em um mundo de

moradores que ficava muito distante da narrativa ―urbana‖ sobre Belém.

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Família, escravidão, luta 74

É sugestivo, neste sentido, sublinhar o modo como cheguei aos dois antigos vaqueiros

e ao antigo empregado do armazém, o que se deu a partir de recomendações de diversas

pessoas que os indicavam para falar de questões igualmente variadas. Suas vozes foram

autorizadas tanto a partir da rede mais urbana que construía a Belém do primeiro capítulo,

como a partir da rede dos atuais habitantes das terras de Belém. A primeira destas redes, por

intermédio da remissão de Antônio Melo Neto, me conduziu a seu antigo vaqueiro, Antônio

Mendes. Ele seria o encarregado de me falar sobre ―as mortes‖. A segunda das redes me

conduziu a Manoel David, o antigo vaqueiro de Tozé e genro de Zé Jacó. Neste caso, a

sugestão veio de Luis Cardoso, o atual presidente da associação do assentamento Jorge

Fernandes. De acordo com ele, Manoel me contaria ―a historia de Belém todinha‖, desde a

morte de seu sogro, Zé Jacó, passando por ―esse cambão sobre o qual eu estava perguntando‖,

até chegar à venda do algodão produzido pelos moradores nos armazéns da fazenda. Para ele,

Manoel era uma das pessoas mais antigas de Belém e, por isso, sabia contar tudo sobre ela, ao

que se somava um parentesco com Zé Jacó. Finalmente, a Serafim, o empregado do armazém,

cheguei a partir da sugestão de Manoel David. Para Manoel, com seu próprio relato e com o

relato de Serafim, eu conseguiria ―tirar a história de Belém todinha‖. Serafim e sua esposa,

Julieta, explicou Manoel, nasceram e se criaram em Belém junto com o velho Tozé Melo.

Além disso, ele havia sido empregado deste fazendeiro. Para Manoel, a antiguidade de

Serafim juntamente com a proximidade que manteve com Tozé Melo faziam dele o narrador

mais autorizado da ―história de Belém‖. Mais tarde, Serafim foi recomendado por Maria

Clara, sua neta de pouco mais de 40 anos, nascida e criada nas terras da antiga fazenda, para

que me falasse da história de Belém, das terras e da santa à qual essas terras pertenciam.

Sobre isto faço referência no próximo capítulo.

Deste modo, se o proprietário deu a voz a seu vaqueiro somente para que este se

referisse ao assunto das mortes, englobando assim seu contrário, no caso das demais

recomendações, as de Manoel e as dos habitantes atuais das terras de Belém, o vaqueiro e o

empregado poderiam falar da ―história de Belém todinha‖, que ia desde a santa e os Melo,

passando pela morte de Zé Jacó, até chegar ao cambão sobre o qual eu perguntava.

Ao somar-se à rede dos antigos e atuais habitantes das terras da desaparecida fazenda,

era reforçada a autoridade dos velhos empregados para falar sobre Belém. Se, na primeira

rede, eles não se configuravam como a voz mais autorizada para contar o que contavam,

quando se considerava a rede dos habitantes, eram postos em jogo outros critérios que os

ajudavam a reforçar seu lugar de contadores. Para além destas sugestões, as remissões que

fizeram entre e em direção deles mesmos foi o que mais consagrou este lugar. Refiro-me,

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Família, escravidão, luta 75

principalmente, a Manoel David e a Serafim. Antônio Mendes não assumiu tal lugar. Vale

esclarecer que ele nasceu em 1941 e tinha vários anos menos que os outros empregados.

Manoel nunca se surpreendeu com a recomendação de Luis Cardoso. Luis tinha me

acompanhado à casa de Manoel, em Bom Jesus, para que eu pudesse entrevistá-lo. Haviam

sido vizinhos, há muito tempo, e Luis o havia escutado contar a história. Ele e Gregório me

conduziram a Manoel, num dia em que ambos iriam a Bom Jesus e, mais tarde, a Trindade.

Em Bom Jesus, em frente à casa do vaqueiro, Luis o chamou da calçada. A esposa de Manoel

nos recebeu e, em seguida, Manoel apareceu. Luis me apresentou e disse ao vaqueiro que me

constasse a história de Belém desde o começo. Depois, se dirigiu a mim e me disse para ficar

ali: ―Ele vai começar a história, tem 81 anos de Belém‖. Aquilo foi recebido com naturalidade

tanto por Manoel quanto por sua esposa, que me disse que Manoel me explicaria tudo. Nos

sentamos na sala, e ela foi na cozinha para preparar o almoço. O lugar que a situação conferia

a Manoel era um lugar conhecido por ele e sua esposa. Um lugar que lhe pertencia e que não

requeria maiores esclarecimentos. Manoel começou então a história. Após falar por um

momento, me disse: ―Pela fala que eu já lhe dei, você já tirou a história de Belém todinha‖ e

continuou contando. Com ele, eu tinha assim a história completa. No entanto, como observei

anteriormente, também havia outra pessoa que, de acordo com Manoel, me ajudaria com

aquilo: Serafim, o balanceiro. O velho vaqueiro desejou, naquele momento, que fôssemos à

casa de Serafim para conversar, mas por devido à sua saúde frágil, isto não foi possível.

Recomendou-me, então, que o fizesse. Deste modo, antes de ir embora, a esposa de Manoel

me indicou como chegar àquela casa e me disse que voltasse à sua quando quisesse para

continuar conversando.

Foi por aquelas indicações que cheguei outro dia na casa de Serafim, a quem falei

sobre a recomendação de Manoel. Apesar de ter ido sozinha, já que não me restavam muitas

opções, ele e sua esposa, Julieta, que viviam em Bom Jesus, me brindaram com uma recepção

bastante aberta. Como no caso de Manoel, tampouco era novidade que alguém quisesse falar

com Serafim para escutar suas histórias — nem para ele, nem para a sua família. ―Eu sei um

bocado de Belém‖, foi a primeira coisa que Serafim me disse e, em seguida, continuou:

―Belém, em 1919, faz muito anos, eu vim da Paraíba morar aqui em Bom Jesus. Eu vinha

com seis anos de idade. Alcancei ver o primeiro dono dela chamado-se Juca, quer dizer, Juca

não sei se era o nome legitimo, ele era o proprietário‖. Serafim sabia de Belém tudo o que o

tempo lhe havia dito desde os seis aos 96 anos. Além disso, era a única pessoa viva que era

capaz de contar ―a história do velho‖, de Juca, que havia morrido em 1926, já que ―não tem

nem neto para contar a historia da vida, de como foi acontecido‖. Sua palavra se antepunha

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Família, escravidão, luta 76

aqui à dos herdeiros. Serafim era o único velho de Belém que permanecia vivo: ―Aí, morreu o

finado Juca, morreu o finado Tozé, morreu o Márcio Araújo, que casou-se com a menina aqui

que o finado Tozé criou e, finalmente, os velhos morreu tudo, e eu ainda estou para contar a

história‖.

Morar em Belém: o foro e a diária

A Belém de Manoel, de Serafim e de Antônio Mendes era, em muitos aspectos, a

Belém que narrei no capítulo anterior. Era a história que se construía em seus relatos, no

relato dos proprietários e no de vários funcionários e documentos de instituições da cidade de

Bom Jesus. Não todos contavam a mesma coisa. No entanto, era possível observar que

aqueles relatos compartilhavam um registro de Belém que, dito em traços gerais, falava do

grande patrimônio produtivo de Tozé e de Juca, de sua conformação a partir da cessão da

Igreja, do dinheiro que essa conformação requereu, de sua decadência e das relações

familiares que se associavam àquilo. Ali também eram filtradas algumas questões referentes

às mortes e aos pistoleiros de Belém. Minha intenção, agora, é a de explorar um pouco mais

as diferenças nas narrativas desses atores posicionados em lugares distintos em relação à

fazenda, particularmente as que se dão entre os empregados e os proprietários. Continuarei

assim o relato dos vaqueiros e do balanceiro e reunirei os aspectos que não tinham lugar na

primeira história. Curiosamente, pouco a pouco, irei me afastando da Belém enfatizada no

primeiro capítulo para aproximar-me de alguns aspectos da Belém enfatizada pelos ex-

moradores.

―Ainda me lembro da renda que meu pai pagou do ano que trabalhou: vinte mil réis, o

dinheiro antigo, mil réis, se lembra do dinheiro antigo?‖, me disse Serafim quando me falava

de seus seis anos de idade e havia chegado à Belém, em 1919. Seu pai havia pago esse

dinheiro ao finado Juca.

Longe do que significava para Serafim, o foro que os moradores pagavam ao dono da

fazenda não constituiu um tema importante no relato dos herdeiros. No entanto, de modo

distinto ao que eu havia imaginado, tampouco representou um assunto que eles

desconhecessem: falar do foro não estava em desacordo com a narrativa dos proprietários, já

que se fazia sempre dentro dos termos de que ―Belém era boa‖. E, nesta perspectiva que

sublinhava a bondade de Belém, são introduzidas tanto as vozes dos proprietários como as

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Família, escravidão, luta 77

dos empregados; os relatos dos funcionários da cidade são, em geral, alheios às relações

tecidas na fazenda.

A bondade de Belém é atribuída à sua abundância e fertilidade sem fim; uma terra

imensa e produtiva na qual as pessoas podiam morar, plantar e criar à vontade. Na época de

Tozé, todos os moradores criavam gado, cabras e ovelhas; ―era quase que proprietário‖,

observou Antônio Melo. Josias também observou que Tozé não se incomodava que as pessoas

tivessem criações. Belém estava repleta de gado que pertencia tanto ao proprietário como aos

moradores. Estes últimos também tinham seus roçados. A produtividade da fazenda ia assim

abrindo e abrindo matas e, já mais tardiamente, o surgimento do trator acelerou este processo.

―Era muito bom‖, opinou Antônio, um dos antigos vaqueiros:

Todo mundo criava, os morador tinha chiqueiro de miunsa, miunsa é

cabra, ovelha... Criava gado, o pessoal criava gado à vontade também.

Botava chocalho nos bichos porque tinha muito mato, que era para a

gente encontrar os animais. E era gado, era ovelha, era cabra, era uma

beleza, era muito bom nessa época, sabe? Eu gostava daquela época

mais do que hoje, eu pelo menos via o pessoal com barriga mais cheia

do que hoje. Tinha muito morador lá, tinha muita gente, Belém era

grande.

A possibilidade de dispor da grandeza daquela terra justificava que os moradores

pagassem o foro. Água, lenha, terra para trabalhar e criar: ―Tinha que pagar alguma coisa ao

dono, né? É como uma casa alugada‖. Segundo Josias, o herdeiro, o que se pagava era um

―forozinho‖. O foro foi explicado pelos entrevistados como uma forma de arrendamento, uma

renda dada uma vez por ano, quando este terminava. Era em dinheiro e era proporcional ao

que cada morador tinha, ou seja, à quantidade de gado e de produção agrícola. De modo que

o que se pagava variava de uma pessoa para outra. Tozé ―tinha aquele empregado para tomar

conta. Ia olhar lá, olhar como era que se podia pagar‖, observou Antônio Mendes. ―Quantos

bichos você tem, quantas vacas, quantos animais?‖: o velho Tozé mandava cobrar, e seu

administrador, que ―tomava nota do povo todinho‖, participava de dez por cento daquela

renda de Belém, contou Manoel, que era genro do administrador. Este último ia fazenda por

fazenda, na casa dos vaqueiros que administravam cada uma das 12 fazendas de gado que

existiam em Belém, já que os moradores se agrupavam em torno destas últimas. O

administrador de cada fazenda era, geralmente, o vaqueiro que estava encarregado da mesma,

me explicou Manoel. Ali ―ajuntava todo esse morador todinho‖: os moradores dirigiam-se

para a casa desse vaqueiro e faziam o foro. E assim iam fazendo foro de fazenda em fazenda.

Para quem não tinha nada, o foro era pouco, para os demais, era mais alto. Por sua vez, todos

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Família, escravidão, luta 78

os anos aumentava: ―Subia uma coisinha, um ano era 30, outro 40‖, e se somasse o foro de

todos os moradores, juntava-se muito dinheiro, concluiu o vaqueiro.

À medida que o foro aumentava, observou Serafim, os moradores iam embora. Meu

interlocutor realizou uma ligação explícita entre ter e trabalhar: quem trabalhasse mais, teria

mais e pagaria mais foro; quem trabalhasse menos, teria menos e pagaria menos foro. De

acordo com Serafim, aqueles que podiam comprar terra iam embora de Belém quando viam

aumentar seu foro. Adquiriam um solo fora da fazenda e saíam dali. Assim ocorreu com o

padrinho de sua esposa, que possuía muito gado: ―Em 1922, faz muitos anos, o velho Juca

botou para 50 mil réis, e ele achou que era muito dinheiro. Vendeu bois e comprou a

propriedade da beira do rio [...] eu era garoto pequeno, devia ter uns dez anos‖.

Quem fazia foro em uma casa era o pai. Se este morria, o filho primogênito devia se

encarregar disto. Assim ocorreu com Manoel: ―Quando meu pai morreu, em 41, pagava 40

mil réis de foro‖. Manoel tinha nascido em Belém, no sítio Vazante, era o filho mais velho de

doze irmãos. Com a morte de seu pai, teve de se encarregar do foro: ―Primeiro ano, eu paguei

40 mil réis. Em 1941, eu era o filho mais velho de meu pai e fui fazer foro quando morreu; era

dinheiro demais quarenta mil réis‖. Por ocasião da morte de seu pai, foi para o sítio Jucá

morar com seu avô e ali pagou 30 mil réis ―era dinheirão, mas o sítio dava para pagar todinho,

era bom, cercado de arame‖.

Nessa época, Manoel ainda não era vaqueiro. Estes não pagavam foro. Após ter me

falado sobre a sorte que seu pai, Efraim, vaqueiro de Tozé Melo, recebia, Antônio Mendes me

falou da ajuda em dinheiro que o velho Tozé dava para que Efraim botasse seu roçado:

- ―E ele ajudava também se a pessoa, vamos supor, se meu pai botasse um roçado, precisasse

de trabalhador, aí ele fornecia um dinheiro pra meu pai pagar os trabalhador e, no fim do ano,

quando meu pai apanhava o algodão, aí pagava a ele aquele dinheiro‖.32

- ―Era o foro isso?‖, lhe perguntei.

- ―Não, o foro era outra coisa‖, me respondeu.

- ―Dos moradores, vaqueiro não pagava foro‖, me esclareceu Gregório, o presidente do

sindicato de trabalhadores rurais de Bom Jesus, que tinha me acompanhado para realizar

aquela entrevista.

- ―Seu Tozé emprestava o dinheiro, e meu pai pagava aquele dinheiro a ele sem juro, não

tinha juro, no final do ano. Aí o morador é que pagava aquele foro no final do ano [...] O que

32

Observam-se aqui mecanismos de fornecimento do patrão sobre os quais me deterei brevemente no capítulo

III. A este respeito, ver, entre outros, Bastos (s/d), Palmeira (s/d).

Page 93: Tese Fernanda Figurelli

Família, escravidão, luta 79

fosse de mais condição pagava um foro mais alto, e aquele que fosse mais fraco pagava um

foro mais barato‖, me explicou Antônio.

- ―E o vaqueiro pagava diária?‖, perguntei.

- ―Não, o vaqueiro não dava diária‖, observou Antônio.

Eram somente os moradores que davam a diária e pagavam o foro. Os vaqueiros

ficavam isentos destas obrigações. Na narrativa dos herdeiros, tampouco era incompatível

falar em diária, mas neste caso os relatos eram menos eloqüentes. De modo distinto ao foro, a

diária foi explicada por eles depois da minha pergunta.

Fernanda: E a diária?

Antônio Melo: A diária era obrigado. Era o seguinte: em Belém devia

ter uns 1.500 moradores, então, para você fazer cerca, arrancar mato,

botar mata abaixo, você tinha que contratar alguém, e a pessoa que

contratava era a pessoa que trabalhava com você, que morava com

você, a pessoa dava um dia de diária por semana, mas era pago, não

era de graça, não, pagava, tá entendendo?

Quando o dono queria realizar algum trabalho em sua fazenda: roçado, cerca,

desmonte, os fazendeiros ―mandavam chamar‖ os moradores para que ―pagassem um dia de

diária‖, me respondeu Josias, quando lhe perguntei o que significava este termo. E prosseguiu.

Os moradores iam e realizavam o trabalho que deviam realizar. Este ―dever realizar‖ não se

fez objeto de nenhuma reflexão por parte do entrevistado. Era somente um dia de diária, uma

vez por semana; era a obrigação do morador. Se o trabalho era maior do ―que se devia‖, ou

seja, se a sua realização ocupava um tempo maior do dia da diária, os proprietários pagavam

aos moradores o que ―estava correndo no comércio‖. Do contrário e de modo distinto ao que

expressou Antônio Melo, o pagamento era inexistente. Josias acrescentou que, durante o dia

de diária, os moradores recebiam alimentação: ―A gente mandava chamar, dez, 20, 30. Aí

vinha, passava aquele dia ali, se dava alimentação, almoçava, de tarde tinha um lanche e

pronto‖ e, a partir disto concluiu: ―Era um povo bem tratado‖.

De acordo com Serafim, quando os moradores trabalhavam fazendo cercas para o

fazendeiro, aquilo costumava ocupar dois, três ou quatro dias de trabalho. Os moradores

costumavam receber um pequeno pagamento por esses dias: ―Eu trabalhei por tostões,33

era

uma pratinha amarela, era o dia de serviço‖, mencionou Serafim. Outras vezes, os moradores

33

O tostão era uma moeda de pouco valor: ―Entre 1918 e 1935, com a finalidade de facilitar o troco, foi cunhada

uma nova série de moedas [...] que substituiu cédulas de valores pequenos e moedas antigas. A moeda de 100

réis, dessa série, ficou conhecida como tostão‖ (Banco Central do Brasil, 2004).

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Família, escravidão, luta 80

trabalhavam no roçado do fazendeiro. Aquilo ocupava um dia por semana e nenhum

pagamento referente a essas ocasiões foi mencionado por Serafim.

No final do ano, as cercas do roçado do proprietário abriam-se, e o gado entrava para

pastar. Antônio Mendes enfatizou que aquilo beneficiava todo mundo. Não era unicamente o

gado do fazendeiro que se beneficiava com o trabalho na diária, mas também o gado dos

moradores:

Só tinha um dia para dar uma diária, chamava diária: dava um dia de

serviço e aí a pessoa trabalhava, botava roçado, cercava; naquele

tempo, era todo solto, aí a pessoa cercava, de madeira, cortava pau lá

mesmo no mato, fazia cerca, no fim do ano. Aí abria para o gado do

patrão, do patrão e do morador, quase todo mundo tinha barriga muito

cheia, só aquele que era preguiçoso, mas o que não era, tinha barriga

cheia.

Manoel, por sua vez, que passou grande parte de sua vida em Pernambuco, introduziu

uma sinonímia nova na região estudada que, ao longo do trabalho de campo, não escutei de

outra pessoa senão dele. Ao falar de diária, ele se referiu a eito:

Aí mandava chamar o morador para trabalhar no eito, chamava se

eito, ia um bocado de gente. O velho Tozé botava um roçado grande e

mandava juntar aquele morador todinho para limpar. Cem, duzentas

pessoas que vinham para o roçado, mas não vinha quase ninguém,

eram mil e tantos morador [sic].

Manoel indicou que o eito era um dia que os moradores davam uma vez por semana:

―Hoje chamava um povo de uma região, amanhã, já chamava de outra‖. Tanto ele como

Serafim me esclareceram que aquilo não ocorria todo ano. A menção ao eito antecipa uma

questão que trataremos mais adiante. Palmeira (1977) observa que, entre os trabalhadores da

plantation canavieira do Nordeste do Brasil, o eito, o trabalho na diária alude a uma forma de

trabalho na qual a remuneração é estabelecida por dia de trabalho e na qual os trabalhadores

se dividem em grupos que executam sua atividade sob a supervisão de um cabo. De modo

distinto à diária à qual nos referimos anteriormente, o eito entre os trabalhadores da cana se

refere a uma forma de trabalho pago. Contudo, existe um ponto fundamental a ser

mencionado aqui: a associação que os trabalhadores estabelecem entre o eito e o cativeiro: o

cabo fiscaliza o ritmo das atividades ―interferindo nos próprios movimentos físicos do

trabalhador‖, o que faz com que esta forma de trabalho seja ―percebida como uma forma de

cativeiro, de invasão da esfera privada do trabalhador‖ (Palmeira, 1977: 110). A centralidade

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Família, escravidão, luta 81

que a categoria cativeiro adquire (mais precisamente, a categoria escravidão) quando os ex-

moradores se referem à diária em Belém é tema do próximo capítulo, ainda assim me parece

importante mencionar aqui a associação feita por Manoel.

O patrão e outras relações

À medida que a alusão ao dono da fazenda se apagava, os dois vaqueiros e o

empregado do armazém iam abrindo seu relato a experiências muito diferentes das contadas

na Belém do primeiro capítulo. No entanto, quando se referiam a essas questões, as alusões à

Belém se dissipavam. Sem proprietários, as experiências dos empregados na fazenda já não

constituíam a história de Belém, a qual implicava alguma presença daqueles. Neste sentido, é

bastante sugestiva a resposta que me deu Antônio Mendes. Quando lhe disse que estava

fazendo um estudo sobre Belém e que, para mim, seria pertinente que me contasse sobre suas

vivências ali, ele me respondeu: ―A minha convivência com o patrão lá? Lá, na Belém onde

eu nasci, que eu conheci, o dono era seu Tozé Melo, chamava Tozé Melo, mas o nome dele

mesmo era Antônio José Melo, né?‖. Quanto mais os relatos se afastavam dos donos, mais

parecíamos estar nos afastando de Belém. Como vimos no primeiro capítulo, Belém não

existia sem a família Melo. As perspectivas dos vaqueiros e do balanceiro não são diferentes

neste sentido.

Contudo, eles me falaram sobre Belém não somente deste ângulo, também o fizeram a

partir das relações mantidas pelos que ali viviam com o patrão. Já não eram somente as

exportações de algodão ou as relações ―intra-Melo‖ que ocupavam a totalidade da história. O

foro e a diária dos moradores também tiveram sua presença e, de modo análogo, a relação de

Tomé com o finado Juca, ou os diálogos de Tozé com Zé Jacó. A essas relações que, de

acordo com os empregados, podiam dizer algo sobre Belém, se somava sua experiência na

fazenda. É interessante perceber a este respeito que, ao falar dessas experiências, os

empregados costumam centrar-se no vínculo que eles, ou seus pais, mantiveram com o patrão.

Não obstante, tal vínculo nem sempre impregnava aquelas vivências e, à medida que sua

influência diminuía, também o faziam as alusões à Belém. Me deterei, então, em algumas

dessas vivências, muitas delas vistas como parte de Belém e outras nem tanto.

A relação dos vaqueiros com os proprietários foi mencionada em diferentes trechos

desse trabalho a partir de referências feitas por Manoel e Antônio Mendes. Vimos que os

vaqueiros eram responsáveis por cada uma das fazendas de gado existentes em Belém, que

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Família, escravidão, luta 82

recebiam sorte como remuneração, que não pagavam diária nem foro e que ocupavam um

lugar central no consumo deste último, agrupando os moradores. Também vimos a ajuda em

dinheiro que o pai de Antônio Mendes recebia do proprietário para montar seu roçado,

dinheiro que seria devolvido sem juros. De acordo com Antônio, o proprietário também lhe

fornecia leite da fazenda, e seu pai encarregava sua mãe de fazer queijo de coalho para

vender. ―Seu Tozé facilitava para ele arranjar alguma coisa, né? Aí ele arranjou alguma coisa

desse jeito‖.

A relação de Tozé Melo com Efraim, seu vaqueiro durante 28 anos, foi enfatizada pelo

filho deste último que, para falar sobre Belém, se referiu mais àquela relação que a que ele

próprio manteve com seu patrão, Toninho Melo. Seu pai lhe havia contado sobre Tozé e sobre

como havia adquirido a propriedade, e tudo o que sabia de Belém havia aprendido com ele. A

presença de Tozé Melo na vida de Efraim e a grande proximidade entre ambos foram

destacadas no relato de Antônio. Quando Efraim era solteiro, me explicou, trabalhou dentro

da casa de Tozé durante três anos. Este trabalho era pago em dinheiro. ―Depois, Seu Tozé

mandou ele casar‖. Foi quando o proprietário ―passou a dar sorte a ele‖.

―Assim que Seu Tozé morreu, no outro ano, ele foi embora de Belém‖, observou

Antônio. A morte do patrão e da patroa foi o motivo que fez Efraim sair dali: ―Porque seu

Tozé morreu, o patrão, aí ele ficou com a patroa, aí a mulher vai e morre também, com um

ano que seu Tozé morreu, a patroa dele morreu também. Ele morreu em 57, e ela morreu em

58, aí em 59 meu pai foi se embora‖. Começaram ali as compras e vendas de terrenos e as

mudanças de Efraim, que somente terminaram com a sua morte.

Contudo, os relatos de Antônio sobre seu pai não somente permitem que nos

aproximemos do vínculo que mantinha com Tozé Melo, mas também das experiências

vivenciadas na fazenda que se distanciam dessa presença. Quando Tozé ―mandou‖ seu pai se

casar, sua mãe teve 25 filhos, e é por aí que Antônio me introduz em um mundo que se

distancia cada vez mais da Belém do primeiro capítulo. Antônio viveu em Belém de 1941 a

1972, ―não estudei, e meu pai botou para trabalhar mais ele‖. Ali, aprendeu a ser vaqueiro,

aprendeu a laçar os touros criados soltos na mata, aprendeu a deslizar pelo arisco, pelo terreno

arenoso e espinhoso e continuou sendo vaqueiro, desde então. Foi vaqueiro de Toninho Melo

e, em 1972, teve de ir embora de Belém. Toninho havia vendido a propriedade a um tal de Zé

de Castro, com quem Antônio continuou trabalhando. No entanto, as terras foram novamente

vendidas. Foi quando Antônio precisou ir embora, já que o novo proprietário trouxe consigo

seu empregado. Hoje, vive em um sítio localizado na entrada da cidade de Bom Jesus.

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Família, escravidão, luta 83

Sua mãe, como já dissemos, teve 25 filhos. Nunca foi a um hospital nem a uma

maternidade para ter os bebês, todos nasceram em casa. Houve vezes em que seu pai ia buscar

alguma assistente. No entanto, quando ele voltava com esta última, sua mãe já havia parido.

Naquela época, não havia assistência de saúde, prosseguiu o entrevistado, opinando que, se

hoje existe algum fator que faz com que estejam melhor, em comparação com aquela época, é

a atenção médica. Eles viviam dentro de Belém, em Rocas. Dos 25 filhos que sua mãe teve,

15 morreram: ―Teve um dia que morreu dois num dia; levaram um para enterrar e quando

chegaram tinha outro morto‖. Havia sido aquela doença da garganta que fazia morrer uma

criança a cada 24h:

- ―Aí os meninos sempre morriam disso, de repente atacava, aí morria. O médico era distante

e era pouco. Às vezes, quando a pessoa chegava aqui [em Bom Jesus], o médico não estava,

estava viajando... Não tinha médico, a verdade é essa, não tinha médico. Quando adoecia um

menino, para vir aqui para Bom Jesus, onde nós morávamos, daqui são três léguas‖, observou

Antônio, e Gregório acrescentou:

- ―E não tinha transporte‖.

- ―Não tinha transporte, era para vir a cavalo, não tinha transporte‖, confirmou o vaqueiro e

prosseguiu com o assunto. Aquela viagem demorava muito, de modo que era muito difícil

contar com um médico. Os remédios que utilizavam, por sua vez, eram preparados com as

plantas do mato que havia em Belém. Assim, assinalou Antônio, seus irmãos foram

morrendo, morrendo, morrendo e somente ficaram dez.

Como Antônio Mendes e vários ex-moradores, Manoel também assinalou que, naquela

época, se nascia em casa: ―Eu nasci numa cama de couro de gado‖. Seu pai havia comprado o

couro, o tinha secado e pego uma estrutura de madeira com quatro pés que ele mesmo havia

armado: ―Doze filhos... Nasceu tudinho nessa cama de couro de gado‖. ―Tinha mil e tanto

morador essa Belém [...] Lá casava um, fazia uma casa, fazia um cercado, nascia um menino,

aí fazia outra casa; nascia em casa mesmo, nessa época‖, prosseguiu Manoel. Seu avô tinha

nascido em Belém. Quando se casou, construiu sua própria casa e ali criou toda a sua família,

que ia aumentando pouco a pouco. Muitos irmãos de Manoel encontram-se em Belém ainda

hoje: ―Todos nasceram dentro de Belém, e mora quase tudo dentro dela ainda, tem terra,

compraram os terreninhos‖.

Manoel enfatizou a pobreza que passou nos tempos que morava com seu pai e sua

mãe: ―A minha vida só foi mesmo agricultura e mais nada, não aprendi a ler, não, nesses

tempos. Meu pai era pobre demais, doze filhos, não podia comprar uma roupa para a gente ir

para a escola, ficou tudo analfabeto‖. Naquele tempo, o sapato que usavam era fabricado por

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Família, escravidão, luta 84

seu pai. Este último matava um animal: ―Tirava a cabeça, aquele couro grosso, e fazia

alpargata para a gente andar, que era daquele couro cru‖. Quando seu pai morreu, foram

―morar em outro canto‖, com sua mãe e irmãos. Ali vivia Nega, uma professora bondosa com

quem suas irmãs aprenderam a ler e a escrever: ―A minha mãe botou as meninas para ir de

noite, eu tinha a cabeça dura demais e não aprendi nada, eu vim aprender a assinar o nome só

depois de casado‖. Isto ocorreu quando teve de assinar um documento com sua primeira

esposa, e o funcionário que se encarregava daquilo lhe explicou como devia fazê-lo.

―Eu sou desses tempos da pobreza‖, prosseguiu Manoel. ―Aqui não tinha quem tivesse

um conto de réis, quem tinha era o velho Tozé, e o pessoal rico igual a ele, mas o resto do

povo era dez mil réis, 20 mil réis, 30 mil réis [...] um conto de reis já era um dinheirão‖. Os

diálogos de Manoel e Serafim sobre o dinheiro e sobre as transformações da moeda brasileira

foram freqüentes. A quantidade que se pagava ou que se adquiria estava presente em cada

uma das descrições que fizeram das transações que ocorriam em Belém ou fora dela. Quanto

se pagava pelo foro, quanto pelos dias de diária que excediam o semanal, quanto se pagava

por cada boi, por quanto se comprou a Fazenda Belém, por quanto determinada pessoa

comprou a sua casa, quanto herdou a outra: a descrição de cada uma dessas operações vinha

acompanhada pela quantidade exata de dinheiro que era posta em jogo. Este se converteu em

um elemento central do relato de ambos. O dinheiro também foi o que definiu a pobreza à

qual Manoel se referiu, à qual se encontrava associada sobretudo à impossibilidade de dispor

de dinheiro. Tê-lo ou não era o que permitia adquirir bens, patrimônios e formação escolar e

era essa aquisição que estabelecia uma divisão entre ricos e pobres. ―Essa Belém tinha muita

gente rica‖, observou Manoel, que passou a enumerar a quantidade de terras que alguns

proprietários de Belém posteriores aos Melo deixaram ao morrer. Como mencionou o

vaqueiro, somente os ricos dispunham de grandes quantidades de dinheiro. O resto era pobre,

ou seja, não tinha a possibilidade de acumular dinheiro para adquirir bens e patrimônios:

―Você sabe que toda a vida a pobreza foi grande, foi mais do que a riqueza, não foi? Hoje

não, tudo mundo é rico, depois desse salário, não tem mais ninguém pobre, não‖. Para nosso

narrador, o fato de receber um salário permitiu às pessoas dispor de um dinheiro próprio e

poder adquirir alguns bens, como roupa para ir à escola.

A pobreza à qual Manoel alude envolve, para além disso, um outro fator: os tempos da

pobreza são também tempos antigos. De acordo com ele, quanto mais longe conseguimos

olhar no passado, mais pobres são as pessoas, já que antes se dispunha de menos bens do que

atualmente:

Page 99: Tese Fernanda Figurelli

Família, escravidão, luta 85

Nesse tempo da pataca, eu não era vivo, não. Era no tempo dos meus avós

[...] Não tinha dinheiro nesse tempo [...] Meus pais era tempo de réis, já.

Nesse tempo, tudo mundo era bonitinho, já andava vestido. No tempo da

pataca, ninguém tinha uma alpargata de couro, ninguém sabia o que era isso

aqui [o narrador aponta para seu calçado]. Vem de muito longe o mundo, né?

Manoel riu e depois me disse: ―Aí passou para o cruzeiro, cruzeiro já foi tudo mundo

rico‖. Este é somente um trecho do amplo relato que Manoel elaborou a respeito, e não

prosseguirei por esta via. Aqui, só me interessa registrar esse tempo de pobreza sobre o qual

Manoel nos fala quando se refere a seus primeiros anos em Belém, um tempo que não era

possível entrever nas narrativas preponderantes no primeiro capítulo. Em comparação com o

tempo de seus avós, que era o tempo da pataca, o tempo de seus pais já não era de pobreza —

mas o era em comparação com tempos mais recentes.34

À medida que Manoel avança

cronologicamente em seu relato e deixa para trás o tempo de seus pais, a alusão à pobreza

começa a desaparecer, e Belém vai se tornando cada vez mais bondosa.

Como assinalei anteriormente, Manoel era o mais velho de seus irmãos. Havia nascido

em Belém, em um sítio chamado Vazante, em 1928. Seu padre morreu quando ele não tinha

mais do que 13 anos, momento em que teve de se encarregar do foro. Sua mãe voltou a se

casar pouco depois e os deixou. Zé Jacó, que administrava Belém em toda a sua extensão,

determinou que os 12 filhos que tinham ficado sem pais — seis mulheres e seis homens —

fossem morar com seu avô. ―Teve pena da gente‖, observou Manoel. Este dirigiu-se, então,

para o sítio Jucá com seu avô, chamado Manoel David: ―Aí, muita gente me conhece como

Manoel David‖. Contudo, seu nome é José Menezes Carvalho, me esclareceu. Viveu com seu

avô até que se casou com a filha de Zé Jacó, o primeiro de seus dois casamentos.

O avô os criou, mas sendo o mais velho, Manoel teve de se encarregar de seus onze

irmãos: ―Fui criar todos no cabo da enxada, botando roçado dentro dessa Belém. Você tinha

que botar seu roçado e cercar, você fazia uma casa onde queria dentro de Belém e fazia um

cercado, era bom‖. Para enfatizar seu próprio esforço, Manoel costuma referir-se a este

trabalho na primeira pessoa do singular. Contudo, outras vezes, utiliza a primeira pessoa do

plural e, ainda que não especifique nada a este respeito, sugere, assim, que aquele trabalho era

feito juntamente com a sua família. ―O sítio era bom‖, observou Manoel. Este era um cercado

onde plantava seu roçado, me disse, mas o que conferia a característica de sítio eram as

árvores que havia ali: ―Um sítio é sítio porque tinha coqueiros, laranjeira, lima, toda a fruteira

tinha dentro desse terreno, desse Jucá‖. ―Nós fomos morar numa casa aí, pagava 30 mil réis

34

As patacas foram moedas de prata que circularam no Brasil de 1695 a 1834. O cruzeiro, por sua vez, se

instituiu como padrão monetário em 1942 (Banco Central do Brasil, 2004). Nesse período do cruzeiro no qual,

de acordo com Manoel, ―já foi todo mundo rico‖, seu pai já tinha morrido.

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Família, escravidão, luta 86

de foro por ano‖, concluiu Manoel.35

Como assinalei, anteriormente, de acordo com Manoel,

as características favoráveis do sítio permitiam pagar um foro mais alto.

Botar roçado em Belém é uma experiência que, tanto os vaqueiros quanto Serafim

compartilham. Todos eles trabalharam na agricultura. Além de ser vaqueiro de Toninho Melo

e criar gado, Antônio Mendes botava seu roçado para comer, tal como seu pai, Efraim. Ele

assinalou que, naquela época, a terra dava muita lavoura:

Quando eu fui me casar, eu fiz muita fava, muita farinha, muito feijão,

muito milho para as galhinhas. Aquilo ali, Virgem Maria! Muito

algodão, no ano que eu fui casar eu fiz [...] 50 braças, chamava 50

braças; hoje, é um hectare e pouco, né? Deu 1.370 quilos de algodão

[...] E eu saí com a criança, com um garoto, que estava para ser

cunhado meu, montado numa burra, e eu, rabiscando a capinadeira, o

cultivador, e fiz muita safra, graças a Deus, muita safra, era muito

bom.

De modo semelhante a Manoel e Antônio, Serafim morava em Belém, criava animais

e trabalhava na agricultura: ―Plantando, feijão, milho, algodão, naquele tempo. Trabalhei lá 80

anos‖. Depois que se casou, se encarregou da casa, o que ocorreu há 73 anos. Além de

trabalhar em seu roçado, Serafim também fazia farinha de mandioca. Muitas pessoas, homens

e mulheres, juntavam-se para fazê-la e trabalhavam a semana inteira, de segunda-feira a

sábado. Quando terminavam, seus corpos ficavam cobertos de farinha, mencionou Serafim,

entre risos.

Era gente muita, e tinha que dar de comer àquele povo, era dar de

comer. Quando ia fazer aquela farinha, era uma festa, era muita gente

trabalhando, raspava até 10 horas da noite, raspando mandioca...

Cheio de gente, tudo raspando; um vinha de graça e o outro, que

trabalhava direto, esse era pago. Mas muita gente, vizinhos, vinha a

raspar mandioca, não pagava nada, não. Fazia o café de noite para

comer com tapioca [...] Quando era festa, (ele) matava porco, peru,

para comer trabalhando, rapadura...

A farinha duraria um ano. Meu interlocutor narrou extensamente aquele processo de

trabalho e a ocasião de festa que significava. Com isso, aproximava-se de uma recordação que

35

Nem todos os moradores dispunham de sítio, observa Palmeira (1977), centrando-se na zona canavieira de

Pernambuco: ―A concessão de sítios representa o mais importante dos prêmios que o senhor de engenho atribui

ao morador, pois significa o morador poder plantar, além do seu roçado, árvores e, portanto, ligar-se

permanentemente à propriedade‖ (Palmeira, 1977: 106). O sítio representa ―um mecanismo central de

diferenciação interna dos moradores de um engenho‖ (idem). De modo distinto ao morador de condição, que

recebe casa de morada e, portanto, trabalho (condição significando a obrigatoriedade do trabalho para o engenho

dois dias por semana como contrapartida da casa que recebe, e casa de morada aludindo não somente à

construção, mas também ao fundo da casa, terreiro ou chão de terra onde o morador bota roçado), o morador

com sítio será o morador-foreiro que, além de receber casa de morada, também receberá terra (Palmeira, 1977).

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Família, escravidão, luta 87

as mulheres que moravam em Belém reconstruíram com bastante freqüência, como veremos

no quarto capítulo.

Contudo, o aspecto que mais sobressai quando Serafim se refere a seu trabalho e à sua

experiência em Belém alude à relação que mantinha com seus patrões. Além de trabalhar na

agricultura e criar animais, Serafim foi empregado do velho Tozé, inicialmente, e de Márcio

Araújo mais tarde. Desde os anos 1950, trabalhou no armazém da fazenda, pesando na

balança o algodão que os moradores levavam, o qual devia ser vendido aos proprietários, já

que fazê-lo de outro modo significava um desafio à sua vontade, explicou Serafim. O

armazém onde trabalhava se situava em Taipal, próximo à casa do velho Tozé.

―Todo ano, a safra de algodão passava nas minhas mãos‖. Serafim contou que, quando

o velho ainda estava vivo, se chegava a obter entre 100 e 300 mil quilos de algodão. ―Fazia

ganhar nada‖, me disse. Ele pesava a quantidade que correspondia e não acrescentava nenhum

grama para os proprietários. A safra era anual, quando era colhida a totalidade do produto e,

mais tarde, Tozé o vendia. Os caminhões chegavam e levavam a colheita completa. Quando o

velho morreu, Márcio Araújo se encarregou da porção de Belém onde meu interlocutor

trabalhava. A safra diminuiu, já que as terras começaram a ser divididas entre os herdeiros.

Contudo, às vezes, conseguia-se obter 150 ou 200 mil quilos de algodão. De acordo com

Serafim, tudo isso acabou em 1985, com a praga do bicudo: ―Deu essa doença que chamava

bicudo, aí acabou com os algodão, aí parou‖. Não obstante, o entrevistado continuou

trabalhando com Márcio Araújo até que saiu de Belém.

Vários anos dos 80 nos quais Serafim viveu ali foram de trabalho para os patrões no

armazém. Sua convivência com eles adquiriu uma presença importante em seu relato e

legitimou seu saber acerca de Belém, da família Melo e do modo como tal família adquiriu o

patrimônio. Além disso, Serafim não somente trabalhou para os patrões, como também morou

durante muitos anos em uma zona muito próxima à sede da fazenda, em Taipal, esta última,

comandada por Tozé e, mais tarde, por Márcio Araújo. Quando se casou, construiu uma casa

na qual morou por cerca de 20 ou 30 anos, casa esta localizada próxima ao açude e da fazenda

de Tozé. Contudo, para aproximar-se de seu trabalho no armazém, algum tempo depois,

Serafim e sua família se mudaram para ainda mais perto da fazenda. Eli, a filha de criação de

Tozé Melo e, mais tarde, esposa de Márcio Araújo, se dava muito com eles, me contou

Serafim, sobretudo com Julieta, sua esposa, que era quase da mesma idade. Eli havia nascido

em 1921, e Julieta em 1918. ―Nós morava bem pertinho, por detrás ela vinha para casa e a

gente ia, e não precisava nem entrar pela porta de tão perto que era‖.

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Família, escravidão, luta 88

Em 1999, Serafim foi embora de Belém. Dirigiu-se para a casa onde atualmente vive

na cidade de Bom Jesus, onde ocorreu nossa conversa. ―Na propriedade, mesmo, morei 80

anos; faltava quatro dias para 80 anos, e vim morar aqui nessa casa‖. Foi em 17 de março de

1999, um dia que marca a vida de Serafim. No relato que faz desse episódio, as reações de Eli

e de seu marido adquirem um lugar central, o qual sugere a importância dos proprietários no

significado que Belém adquire para ele. Nesse dia, Julieta foi para Bom Jesus ao meio-dia, e

Serafim ficou com seu filho. Logo após ter carregado as coisas no caminhão da mudança,

dirigiu-se para a casa do patrão e lhe disse:

- ―Aqui estão as chaves da casa‖.

- ―Tu vai se embora mesmo?‖, perguntou o patrão.

- ―Vou‖, respondeu Serafim.

Eli ficou chorando. Desde esse momento, cada vez que ia na rua, passava pela sua

casa. Não tinha obrigação de fazer aquilo, somente o fazia porque gostava muito de Julieta, já

que ambas haviam sido criadas juntas. Ao meio-dia, ia fazer a sesta com Julieta, às duas ou

três da tarde ia embora. Pouco tempo depois, morreu. O esposo de Eli, por sua vez, somente

foi em sua casa por ocasião da partida, no dia em que o filho de Julieta e de Serafim morreu:

―E eu trabalhei oitenta anos na propriedade de Belém para ele, e no dia que eu saí [...] não

pagou nem o caminhão [ri], não pagou nada, e eu nem fiz questão, morei esse tempo

todinho‖, observou Serafim. Toda a sua família foi para a rua, ninguém ficou em Belém.

***

Os contornos que os relatos dos empregados da fazenda nos mostram expandem os

limites da primeira história. Estes relatos abrem as portas de outra Belém, permitindo abordar

tanto as relações que os patrões mantinham com seus moradores e com seu pessoal, quanto

diferentes aspectos que constituíam a experiência dos moradores do lugar. No entanto, como

observei anteriormente, apesar de abrirmos novas portas, a narrativa que os empregados

construíram sobre Belém não deixou de enfatizar as questões que compunham a primeira

história, não deixou de se centrar nas relações familiares dos Melo e na aquisição e venda de

seu patrimônio. As diferenças que os relatos dos empregados apresentavam em relação com

esta história ampliavam os contornos da mesma, mas não desfaziam seu eixo que, para eles,

continuava sendo o mesmo.

Daí minha opção por somar suas vozes no primeiro capítulo. Com os empregados, não

se iniciava uma nova história. Simplesmente, a narrativa imperante no circuito urbano fazia-se

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Família, escravidão, luta 89

menos precisa, menos conclusiva, mais aberta. Com os empregados, a experiência dos

moradores, a relação dos proprietários com os trabalhadores, as mortes e as brigas

permeavam a família e sua fazenda. São esses contornos imprecisos que quis mostrar neste

capítulo, para deixar mais claros os laços sociais que conformam e desconformam narrativas,

que permitem ver como as histórias que feitas em um circuito de relações se desfazem em

outro.

Contudo, tal desconstrução ainda não ocorreu. É no circuito de entrevistas que se abre

a partir de minha relação com os ex-moradores que os contornos serão refeitos. Veremos que

a história da família não deixará de estar presente. No entanto, serão outros parâmetros que

definirão a história. Parâmetros estes que não são os dos empregados e menos ainda os dos

proprietários e funcionários da cidade. Entraremos com os ex-moradores em um tempo de

escravos que delimitará uma nova história de Belém, um tempo sobre o qual os empregados

não falaram. Ao fim e a cabo, para eles, bem como para os herdeiros, ―Belém era boa‖.

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Família, escravidão, luta 90

Capítulo III

A HISTÓRIA DE BELÉM E O TEMPO DOS ESCRAVOS

Quando fui a Moreno com Teresinha, ficamos conversando por algumas horas na casa

de seu tio Joca, o irmão de seu pai. Não fomos pela estrada, como o faria quem estivesse de

carro, mas por um caminho interno, mais curto e adequado para a caminhada. A vereda é

usada por quem a conhece. Os sulcos abertos entre o pasto e alguns matagais não se

encontram claramente demarcados, de modo que não é difícil errar o caminho, como de fato

nos ocorreu quando tentamos pegar um atalho. Se as pessoas se deslocam em moto ou

caminhado costumam pegar este caminho que une o assentamento Jorge Fernandes, ex

Fazenda Laranjeira com a comunidade (ou Sítio)36

Moreno, lugares que antes pertenciam à

Fazenda Belém.

Caminhamos um longo tempo e, nessa caminhada, atravessamos alguns roçados e

cumprimentamos habitantes de Moreno e do assentamento que cruzávamos de perto ou que

eram reconhecidos por Teresinha de longe. A paisagem em Moreno era diferente daquela do

assentamento. Nesse último lugar, o formato das casas obedecia a um padrão estandardizado

(apesar de as construções posteriores apresentarem diferenças entre si), todas eram

construídas com cimento e se encontravam agrupadas na forma de agrovila; em Moreno, ao

contrário, as casas estavam dispersas pelos vários rincões da comunidade e, apesar de não

apresentarem uma variação importante entre si, algumas eram de tijolo e outras de taipa

cobertas com cimento, algumas mais novas, outras mais antigas.

36

Comunidade e Sítio são os modos mais comuns através dos quais as pessoas do lugar denominam as regiões da

antiga fazenda Belém. Em seu trabalho na zona canavieira de Alagoas, Heredia chama a atenção para diversos

significados da palavra sítio. Quando se refere a pequenos produtores fora do engenho, a autora distingue o Sítio

do sítio, o primeiro aludindo ao conjunto de sítios que, nesse contexto, designa a ―unidade produtora individual,

composta de casa/ roçado e pertencente a um pequeno produtor‖ (Heredia, 1986: 67). Em Belém, tampouco, o

termo sítio denota um único sentido. Como o faz Heredia, utilizarei a maiúscula ao me referir aos diversos

agrupamentos (geralmente de pequenos produtores) que atualmente existem dentro das terras da antiga fazenda.

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Família, escravidão, luta 91

Apesar da chuva que nos acompanhou durante quase todo o dia e das dificuldades e

imprevistos do trajeto — que preocuparam Teresinha e lhe ocasionaram algumas lágrimas —

quando o dia se foi, minha acompanhante afirmou que se pudesse voltar a vivê-lo, o faria.

Apesar de todos os esforços e preocupações, da lama e das mutucas, Teresinha mostrava-se

contente por ter me ajudado em meu trabalho, por ter me apresentado a seus parentes que

vivem em Moreno e ter podido me mostrar coisas importantes de sua vida, à medida que

transitávamos pelo lugar. Mostrando-me seus lugares e me fazendo conhecer seus parentes,

ela me ajudava na pesquisa. E esse encontro nos fazia bem.

Em Moreno, nos detivemos na maioria das casas por onde passávamos, as quais eram

de parentes de Teresinha. Cumprimentamos uma prima, sobrinhos, o tio Joca, o irmão Biu e a

filha da irmã. A irmã de Teresinha vive muito perto de seu irmão Biu, ao lado de onde havia

sido a casa de seus pais, que viveram ali na última fase de suas vidas. ―Papai estava cansado

de pagar aquele foro medonho‖ e, de Monte Bravo, foi até Moreno, onde havia comprado

terras, além de ter comprado em Curral. Teresinha ia visitá-lo. Ela se lembra que chegava

caminhando desde Lagoa do Gibão, carregando um pacote de suspiros. Monte Bravo, Curral e

Lagoa do Gibão também são comunidades ou Sítios que pertenceram à Fazenda Belém.

Na casa de Biu, o irmão mais novo tão querido por Teresinha, estivemos durante

bastante tempo. Almoçamos, conversamos, fomos ao roçado. Teresinha voltou ao

assentamento com um saco de feijão que Biu lhe deu e que colheram juntos no roçado deste

último. Das plantações de feijão, divisamos o cajueiro onde morreu seu pai: estava sentado ali

até que uma trombose o fez tombar. Próximas a esta árvore se encontram as ruínas da casa

onde ele havia vivido com sua esposa, que morreu anos mais tarde. Ao lado daquela casa em

ruínas, a irmã de Teresinha construiu um novo lar onde vive com sua filha. O fez com a ajuda

de Teresinha, de seu esposo e do filho de ambos, que vive em Trindade. Fomos visitá-la, mas

diante de sua ausência, conversamos brevemente com sua filha e voltamos à casa de Biu.

Uma sutil diferença revela-se fundamental atualmente. Com Teresinha, visitei seus

parentes, vários deles. Algumas das visitas foram breves, outras extensas. Contudo, nem todas

as visitas podiam derivar em entrevistas. Havia uma distinção implícita entre conhecer a vida

de Teresinha (e a das outras pessoas que viveram muito tempo no lugar) e fazer uma

entrevista sobre Belém. Teresinha sabia que me interessava tudo aquilo, mas para ela, tudo

aquilo não era a mesma coisa. Guiada por Teresinha em Moreno, somente falei de Belém com

seu tio, Joca Souza. Somente com ele fiz uma entrevista e somente com ele liguei o gravador

(o fiz, além disso, com Dona Antônia, mas isto ocorreu por sugestão de vizinhos mais jovens

do lugar, que me recomendaram uma pessoa de idade). Apesar de também ter querido

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Família, escravidão, luta 92

entrevistar o irmão mais novo de Teresinha, esta idéia não teve grande repercussão, e este

permaneceu no âmbito das visitas. Dois circuitos distinguiam-se pouco a pouco: visitar os

parentes e conhecer a vida de alguém que havia passado muito tempo no lugar ganhava

significado diferente ao de entrevistar os antigos e conhecer a história do lugar.

Joca Souza era o mais velho. Ele saberia falar-me sobre Belém. Apesar de ter sido

comerciante, um ―ladrão‖ nas palavras de Teresinha, seu gênero e sua idade o habilitavam

mais que a outros a transmitir-me aquela história. Quando chegamos, Joca estava sentado em

uma pedra, debaixo do cajueiro do fundo da sua casa. Mais tarde, éramos quatro nesse lugar:

Joca, sua filha que vive em Trindade e estava de visita, Teresinha e eu. Ali estivemos por

algumas horas, ali o entrevistei.

Joca dizia que sabia de tudo: ―Perguntando a eu, eu tô com 87 anos, sei de tudo‖, e

Teresinha dispunha as pautas da entrevista, de acordo ao que deduziu ser do meu interesse. As

perguntas de Teresinha nessa entrevista são de grande valor na hora de entender um sentido

comum sobre Belém atribuído pelos ex-moradores do lugar. E, sobretudo, o é o fato de que,

apesar de a maioria das respostas serem de seu conhecimento, quem as respondia e, em

conseqüência, contava a história de Belém, era seu tio. Mais adiante, quando entrevistei

Teresinha, seu relato não se centrou nessas perguntas.

Belém adquire um registro próprio, há ali uma história que lhe brinda com uma

autonomia, que a converte em uma referência, em um acontecimento. Aquilo permite que se

crie uma distância, que Belém se vincule ao distante, o que torna possível, por sua vez, que as

pessoas se posicionem fora da história e que a ela se remetam como uma referência externa.

Esta espécie de coisificação de Belém autoriza determinados narradores e cria contadores

privilegiados. Falar da Fazenda Belém é falar de uma história antiga. A história ganha sentido

em sua antiguidade e, nesse sentido, os mais antigos e, de preferência, os homens idosos, são

os indicados para contá-la.

Deste modo, Belém remete a determinadas questões que aparecem de maneira

freqüente nas narrativas daqueles que habitam e habitaram como moradores estas terras, e

muitas destas questões também se encontram presentes na história transmitida pelos

proprietários. Não obstante, assim como determinadas questões são reiteradas, existe um

ponto que não se encontra nas últimas narrativas e que, entre os ex-moradores ganha um lugar

predominante: a referência à escravidão, às vezes também denominada cativeiro. Este ponto

abre uma fenda entre os relatos dos proprietários e os dos ex-moradores e permite distinguir

duas histórias. Neste capítulo, me deterei nos elementos que compõem a história de Belém

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Família, escravidão, luta 93

entre os/as habitantes dessas terras que foram antigos moradores, esposas de moradores e

filos/as de moradores.

Belém era (de) Nossa Senhora

Belém era a terra da santa, era de Nossa Senhora de Belém. Maria Clara escutou

aquela história de seu pai e de seu avô. ―O meu pai conta a história que o pai dele já contou,

que está com 96 anos‖, me disse e, em várias ocasiões se esforçou para que alguém a contasse

para mim; alguém que não fosse ela, mas seu pai, seu avô ou, em última instância, sua mãe,

Adelina. Conheci Maria Clara num domingo na casa de Teresinha. Maria tinha ido visitá-la

junto com seu marido, seu filho e sua prima irmã, Celine, filha da irmã de sua mãe. O vínculo

de Maria Clara e Celine com Teresinha foi expresso, pelas três, como uma ―amizade‖; além

disso, alguns comentários deixaram entrever os antigos laços vicinais que uniam Teresinha

aos pais de ambas, que tinham vivido aproximadamente vinte anos menos que Teresinha.

Sentadas na galeria e conversando sobre meu estudo sobre a Fazenda Belém, Maria Clara me

contou a história da santa. ―Eu sei sobre essa Belém que você está pesquisando‖, e me contou

o que sabia. Belém era a terra da santa por uma doação que o verdadeiro dono das terras

realizou. O fez por uma promessa: ele deixava suas terras à santa para que sua filha se curasse

de uma doença no peito. E assim foi. A terra tornou-se sagrada, e é por isso que muitas

pessoas, como seu avô, não quiseram comprá-la. Mas a Maria Clara não lhe satisfazia seu

próprio relato. Ela havia escutado a história de seu pai e de seu avô e dizia não conhecê-la tão

bem quanto eles, que eram os indicados para me contar. Me propôs acompanhar-me para que

os entrevistasse — ambos viviam na cidade de Bom Jesus — e aceitei aquela oferta com

muita vontade.

Celine, por sua vez, me convidou a Manaus, comunidade ou Sítio onde ela e Maria

Clara moram e que também se localiza dentro da antiga fazenda. Assinalou que ali vivem seus

pais e muitos idosos, familiares seus, com quem eu poderia conversar. Passado um tempo

após aquele domingo, cheguei então a Manaus. O fiz com a companhia e a ajuda de Marcela,

a neta adolescente de Teresinha e Gregório, que vivia com ambos. Com Celine, eu tinha

combinado que, quando quisesse ir, deixaria com Marcela um recado para a filha de Maria

Clara; elas eram amigas, companheiras de escola e se viam ali. No entanto, no dia anterior à

minha visita a Manaus, por iniciativa própria e diante da vontade de cumprimentar sua amiga,

Marcela tinha passado de moto pela casa de Celine com o objetivo de avisá-la que iria no dia

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Família, escravidão, luta 94

seguinte. Quando chegamos, Celine já estava me esperando. Uma vez ali, passamos pela casa

dos pais desta última, a quem me apresentou e, depois, pela casa de outros familiares seus que

vivem muito perto de sua casa. Marcela foi para a casa de sua amiga. Dali, nos dirigimos para

a de Maria Clara, cuja casa tampouco ficava distante, apesar de estar mais próxima da estrada.

Quando me viu no caminho, Maria Clara saiu apressada para me avisar que seu pai estava no

ponto de ônibus (próximo à sua casa) e que fôssemos conversar com ele.

Naquela breve conversa, o pai de Maria Clara falou com gosto sobre a Fazenda Belém,

sobre a grande extensão das terras que faziam fronteira com as linhas da estrada de ferro em

vários municípios. Em seguida, Maria Clara introduziu o tema da santa e narrou a história que

já tinha contado na casa de Teresinha. Seu pai seguiu com seu relato, enfatizando que,

naquela ocasião, a terra foi tomada:

Quase que um posseiro hoje, que hoje se apossa da terra dos outros. Foi

quase assim nesse tempo, né? [...] A terra foi doada para a santa. Os mais

velhos contavam que o papel dessa terra foi para outro país, falam que ainda

vai aparecer o papel dessa terra, o verdadeiro dono. Que o papel dela estava

não sei para onde... O povo fala assim, né? Ninguém sabe. Se era de uma

santa, deve estar para lá.

Maria Clara prossegue: ―Os Melo se apossaram da terra, né pai? O Tozé Juca, que era

pai deste Tozé, se apossou da terra todinha, e foram vendendo, aí muita gente ficou com

receio e não quis comprar essa terra aqui‖. O ônibus chegou e a conversa terminou ali. Ao me

apresentar a seu pai e pedir a ele que me contasse sobre a santa, Maria Clara tinha dado um

grande passo em sua intenção de me transmitir a história que ela havia escutado de seus

antepassados: a história havia sido contada por quem sabia contá-la, agora só faltava que

escutasse seu avô.

Fomos na casa de Adelina, sua mãe, cuja casa está mais próxima do ponto de ônibus e,

portanto, da casa de Maria Clara. Fomos de visita para que eu a conhecesse. Ali soube que

Adelina tinha nascido e passado toda a sua vida em Belém, de modo que propus entrevistá-la.

Me surpreendeu que não a tivessem recomendado para a entrevista, sabendo que a minha

busca se relacionava a pessoas que viveram por muito tempo no lugar. Tal como o irmão de

Teresinha, Adelina ficava na esfera das visitas. As posições relativas de cada um atuaram para

que fosse assim: Biu era mais jovem que Teresinha, e Adelina era a mãe que existia junto a

um pai que sabia contar histórias (e, este último, por sua vez, ficava ofuscado diante do avô).

Celine também sugeriu entrevistar seu pai e não sua mãe.

Como ocorreu com Teresinha, no momento em que nos encontrávamos com seu tio

Joca, quando entrevistei Adelina, Maria Clara também fez muitas perguntas, não para lhe

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Família, escravidão, luta 95

fossem respondidas, pois já conhecia as respostas, e sim para que sua mãe contasse a mim.

Algumas dessas perguntas tinham a ver com a história que seu pai tinha lhe contado. Entre as

questões de Maria Clara, surgiu o tema da santa: ―Essa terra era de Belém, era terra da santa,

não era mãe?‖. ―Da santa‖, respondeu Adelina, ―mas venderam já um pedaço, nunca apareceu

o dono‖. Mais adiante, Maria Clara volta a pedir à mãe que me diga que a fazenda era da

santa: ―Diga para ela mãe, essa fazenda aqui era de Belém‖, e Adelina me disse:

Era terra de Belém. Era tudo Belém, depois colocaram os nomes. Não tem

Rio de janeiro, São Paulo, Brasília? O mesmo do que aqui, que botaram

Bom Jesus, aí tem Moreno, Lagoa da Montanha [...] Não tem o assentamento

que você está, né? Tudo era Belém. Antigamente era tudo terra da santa,

terra de Belém.

Em seguida, Maria Clara voltou a contar a história. Seguindo Bourdieu (1996), agora o

fazia, bem como seu pai, de um modo misteriosamente mais legítimo, a partir do

reconhecimento que lhe conferia a presença de sua mãe, uma narradora reconhecida, uma

antiga habitante de Belém:

Foi Tozé Juca, o pai de Tozé. Aí, dividiram uma parte para um, outra parte

para outro. A origem mesmo, que eu me lembro, que o pai contava, que o pai

dele falou: que era terra da santa, não existia dono. Eu me lembro que dizia

que esse homem era muito rico, que era dono de Belém, que era um monte

de terra que dava o nome de Belém, aí tinha essa filha que adoeceu do peito,

que eu ouvia falar, né? Aí, tinha uma promessa que fez para a santa, que se a

filha dele melhorasse, ele ia embora, e a terra ficava toda para a santa. Aí, a

filha dele melhorou, e eles foram embora, que dizem que era de Portugal,

não sei de onde era o dono dessa terra, eles foram embora, e aí [Tozé Juca]

apareceu e se apossou da terra, igual ao assentamento, né? Aí, foram

vendendo, foram dando o nome... Mas antes era Belém, não existia nome.

No entanto, para Maria Clara, faltava que falasse quem melhor podia fazê-lo: ―Depois

você pega essa história bem na casa do meu avô‖.

Vários ex-moradores me contaram a história da Santa ao se referirem à Belém. Alguns

relatos se estendem mais neste aspecto; outros, como o de Teresinha, se limitam a mencionar

que as terras pertenciam à Nossa Senhora de Belém. Antônio, um antigo habitante do lugar,

que hoje vive em Boa Fé (outra das atuais comunidades em terras da desaparecida fazenda),

me contou uma história semelhante à de Maria Clara. Ele a tinha ouvido de seu pai. ―Meu pai

contava que ela [a ―dona da terra‖] tinha uma doença e não tinha cura‖, então, fez uma

promessa: se ―ficasse boa‖, a dona daria as terras de Belém para Nossa Senhora da Conceição.

A dona ficou curada e ―o papel‖ das terras foi passado para o nome da santa. Depois do

ocorrido, o finado Juca ―tomou conta‖ de Belém e, com o tempo, a terra foi se dividindo. No

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Família, escravidão, luta 96

entanto, a terra era da santa e é por isso que, quando ela começou a ser vendida por frações,

ninguém queria comprá-la. A ausência de documentos que comprovassem a propriedade de

Belém também foi enfatizada por Luis Cardoso, o presidente da associação do assentamento

Jorge Fernandes: ―Tozé Juca pegou a terra da santa e arrendou e tomou conta, não tinha

documento em Belém‖.

Por sua vez, tal como Manoel, o antigo vaqueiro a quem me referi nos capítulos

anteriores, alguns antigos moradores como Gregório, o esposo de Teresinha, mencionaram

que o ―finado Juca‖ tomou as terras em um arremate. Belém tem este nome porque pertencia à

santa, à Nossa Senhora de Belém, por ocasião de seu arremate. Nessa época, contou Gregório,

―era mato, era tudo abandonado [...] Juca botava em qualquer lugar uma fazenda, e um

vaqueiro lá, um administrador para tomar conta da fazenda, não tinha transporte, não tinha

estrada‖. Antônio de Serras, o pai da esposa de um dos filhos de Gregório, também conversou

sobre o arremate: Belém era de uma santa de Pernambuco, e Juca tomou as terras nesse

arremate; o primeiro dono depois da santa foi o finado Juca.

Em comparação à narrativa do primeiro capítulo, nos deslocamos aqui de uma ênfase

na propriedade da Igreja e na cessão eclesiástica aos Melo para uma ênfase na propriedade da

santa. Este movimento deslegitima a propriedade dos Melo. Como assinalam Meyer (1979) e

Almeida (1993), para quem se considera residindo na terra de santo, o único proprietário

possível é o santo. Para os ex-moradores de Belém, a propriedade das terras por parte de

qualquer entidade — os Melo ou as autoridades eclesiásticas — que não seja a Nossa

Senhora, possui um caráter ilegítimo. Com a propriedade do santo, introduz-se assim um novo

campo de legitimidade que se opõe ao do proprietário no sagrado (Meyer, 1979). Deste modo,

a propriedade mítica de Nossa Senhora e do estrangeiro/a misterioso/a que lhe doou as terras

diminuem a importância dos Melo na história de Belém, a quem não resta outro papel senão o

de serem os primeiros que, de um modo ilegítimo, se apropriaram das terras.

A terra da santa foi tomada, e essa apropriação começou com Juca Melo. Com o

passar do tempo, as pessoas começaram a viver ali, e a propriedade da terra foi se

configurando a partir de uma dinâmica não sagrada. Vários ex-moradores compraram sua

porção da terra quando já havia sido transformada em um bem que se podia vender, depois de

ter sido apropriada pelos Melo.

Apesar da sacralidade das terras de Belém, a legitimidade dos Melo não desaparece

por completo. Eles não são os ―verdadeiros donos‖ de Belém. No entanto, em um plano mais

superficial, se constituem como tais. Eles são os protagonistas daquela dinâmica não sagrada

das terras. Ilegítimos, mas donos, afinal. Deste modo, o finado Juca, Tozé e seus herdeiros

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Família, escravidão, luta 97

são figuras bem conhecidas pelos ex-moradores, que freqüentemente descrevem a genealogia

dessa família quando se referem à Belém. Do mesmo modo como ocorria com os

proprietários, essa genealogia não é vista pelos ex-moradores de modo independente à

propriedade. Eles a reconstroem selecionando os Melo que tiveram alguma relação com a

fazenda.

―Aí ela quer saber de Belém, o que é que aconteceu, o povo que sofreu assim, dos

Melo, dos Tozé.37

O Tozé é o que de João Melo?‖, perguntou Teresinha a seu tio Joca.

Joca: Tozé é irmão.

Teresinha: É mesmo? Não sabia.

Joca: Olha aí: João Melo e Tozé.

Teresinha: Por isso é que João Melo deu o filho ao Tozé para criar.

Joca: Foi, Dona Eli, eu me lembro... Dona Eli era da minha idade.

Filha de Joca: A finada, eu trabalhei lá.

Joca: Nós nos criamos juntos.

Os Melo e, sobretudo, Tozé, eram parte daquela história de Belém sobre a qual eu

queria saber. A história da família de proprietários destacada pelos herdeiros, e que circulava

de forma imperativa na cidade, estendia sua influência e se impregnava também nos relatos

dos ex-moradores, tecendo uma continuidade entre as diferentes narrativas. Eli, filha de

criação de Tozé e filha de João Melo, era quem mandava. Tozé não teve o gosto de ter filhos,

prosseguiu Joca, Eli, Zé Duarte e outros foram filhos de criação.

Teresinha também pediu a Gregório que me explicasse sobre os Melo. Eu regressava

do cartório e, enquanto acompanhava as tarefas de Teresinha, comecei a lhe fazer perguntas

sobre os novos nomes que tinha lido nos livros daquela instituição. Gregório estava na galeria

externa da casa, na ―área‖, conversando com alguns homens: seu genro, Henrique, esposo de

sua filha Consolação, Luis, o presidente da associação do assentamento, Zeferino, um parente

de sua ex-esposa que vive naquela casa e seu vizinho Luis Eduardo, filho de Antônio, sogro

de seu filho, que apresentei anteriormente. A presença de Gregório na casa, no momento em

que perguntava a Teresinha sobre os Melo, acabou fazendo com que ela remetesse a ele.

Parecia ser mais correto falar desse tema com seu esposo que com ela. De modo que nos

dirigimos à área e, uma vez mais, Teresinha armou o cenário do narrador, personificado agora

por Gregório. Além de mim, a presença de outros ouvintes o incentivou e fez com que falasse

longamente sobre o tema. Fez referência aos filhos que Tozé criou, em especial Eli,

mencionando seu casamento com Márcio Araújo que, ao morrer, tinha filhos de três

37

É interessante notar que também entre os antigos habitantes de Belém, Tozé Melo ganha um lugar de destaque

quando eles se referem aos donos da fazenda. O uso de seu nome para designar o coletivo familiar (―os Tozé‖),

ou a subordinação do ascendente ao descendente ao falar de Juca (―Tozé Juca‖) são significativos neste sentido.

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Família, escravidão, luta 98

casamentos diferentes, entre os quais, recentemente, as terras haviam sido divididas. Márcio

Araújo era um administrador de Tozé e adotava em relação a ele uma atitude

propositadamente servil. A esposa de Tozé se chamava Maria. Ela era merecedora do respeito

da mãe de Gregório, com quem conversava por longas horas. E isso era assim, observou

Gregório, ainda que Maria fosse rica e sua mãe pobre. Ele lembrou-se que seu pai foi

dispensado de trabalhar na diária por um pedido que sua mãe fez a Maria. Seu pai tinha

problemas no ombro e aquilo tornava o trabalho muito difícil. A partir deste pedido, ele não

trabalhou mais para Tozé. No entanto, quem conta com mais respeito nesta família é Antônio

Melo Neto, concluiu Gregório.

Geralmente, conversava sobre os laços de parentesco dos Melo com os habitantes mais

antigos de Belém. Eles eram os mais recomendados para falar. Além disso, em relação a estes

últimos, os mais jovens se assumiam desconhecedores dessa ―história dos Melo‖. Alguns

tinham ouvido falar dela e sabiam explicá-la, já que tinham ouvido seus pais ou vizinhos

antigos contar que, em ―outro tempo‖, as terras do lugar pertenciam a um único dono, Tozé

Melo, e que, quando este morreu, as terras foram divididas entre seus herdeiros, que depois as

venderam. ―Em Boa Fé e em Manaus tem pessoal mais velho que sabe dessa história dos

Melo‖, assinalou João Vitor, um assentado que foi vaqueiro do ―doutor Ademar‖, último

proprietário da Fazenda Laranjeira. Para alguns, ―os Melo‖ remetem a ―um tempo‖ que não

lhes pertence (no caso de terem ouvido falar sobre aquilo). Para outros, o que não lhes

pertence é o ―tempo de Tozé‖, que é o de seus pais. Finalmente, os mais velhos só não

conheceram Juca. Não pertencer ao tempo (ou o tempo não pertencer a eles) não significa

necessariamente ainda não ter nascido, mas alude igualmente aos anos da infância, aos anos

em que ainda dependiam dos pais. ―O tempo dos pais‖ ganha este sentido amplo. Seja por não

ter pertencido à época de Juca, à época de Tozé ou à época dos herdeiros, para os ex-

moradores sempre haverá (ou houve) uma geração mais velha que saberá (ou soube) contar

melhor a história. ―Os Melo‖ sempre conduzirão a tempos distantes.

O finado Juca, Tozé, sua esposa, Maria, seus filhos de criação, Márcio Araújo (que se

casou com Eli) e os irmãos de Tozé — sobretudo João Melo, mas também Vado Melo —

eram as pessoas acerca das quais os ex-moradores discorriam com maior freqüência. Eli, filha

de João Melo, filha de criação de Tozé e esposa de Márcio Araújo (que adquiriu por

intermédio dela a Fazenda Laranjeira, região na qual se erigiu o atual assentamento Jorge

Fernandes) se destacava nessas alusões. Por sua vez, a descrição do parentesco dos Melo

acompanhava com freqüência a descrição do modo como Belém foi distribuída. Houve um

tempo em que a terra era de um único dono; houve um tempo em que o dono de tudo era Tozé

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Família, escravidão, luta 99

Melo. Este era um tema quase constante nas conversas com os ex-moradores e suas esposas e

freqüentemente derivava para a divisão de Belém, momento em que entravam em cena os

filhos de Tozé e João. Em geral, os relatos respondiam a essa seqüência, o que mos permite

apresentar aqui uma breve reconstrução da questão, tomando como base os vários relatos (e

omitindo as variações entre eles).

Tozé era dono de tudo. Se apoderou de Belém quando seu pai, Juca, morreu. Ele e sua

esposa não tiveram filhos e criaram os de João, o irmão de Tozé: Josias, Luis, Zé, Eli… entre

os quais foram divididas as terras, por ocasião da morte de Tozé. Este também deu uma parte

a seu irmão, João. Até mesmo o motorista de Tozé adquiriu um fragmento das terras,

acrescentou Ricardo, vizinho de Teresinha. Antônio Melo Neto e seu pai legítimo são pouco

mencionados quando os ex-moradores se referem a estas questões. Eli casou-se com Márcio

Araújo, um antigo administrador de Tozé que, até a sua morte, ocorrida há pouco tempo,

viveu na sede da fazenda, em Taipal, também chamada Açude Grande, região atualmente

denominada Belém. Por isso, quando comentava sobre Belém com as pessoas mais jovens,

elas faziam referência àquele lugar, muito visível, já que se encontra na beira da estrada,

diante das três cruzes erigidas sobre as margens do caminho. Os filhos de Márcio Araújo

possuem atualmente a propriedade dessa zona.

Os herdeiros se distribuíram ao longo da fazenda, ―era muita terra e pouca gente‖,

comentou Antônio de Boa Fé. Belém era grande, e os habitantes não costumam se lembrar da

distribuição dos sucessores em toda a extensão da fazenda, referindo-se com maior freqüência

aos herdeiros das áreas em que viveram. Joca, o tio de Teresinha, por sua vez, fez alusão à

distribuição em sua totalidade e me explicou que Eli adquiriu a região de Laranjeira, Luis

Melo, as de Campo Santo e Água Branca; Curral foi atribuído a Josias, que também

permaneceu com Lagoa do Gibão e parte de Água Branca. Zé Melo obteve Boa Fé e João

Melo, o irmão de Tozé, Serras. Todos eles acabaram com a herança, me disse Joca e concluiu:

―Se era para saber o mapa, eu sou o mais velho. Estou dizendo tudo aí, tudo certinho, que eu

nasci e me criei com esse povo‖.

Mais tarde, os herdeiros começaram a vender as terras. As de Laranjeira foram

vendidas por Márcio Araújo para o ―doutor Ademar‖ e depois dele veio a desapropriação. As

demais regiões foram vendidas a diferentes pessoas e grande parte das mesmas se encontra,

atualmente, em mãos de antigos moradores da fazenda. Assim ocorreu em Manaus, em Boa

Fé, em Lagoa da Montanha, em Jucá, em Moreno, na Lagoa do Gibão e em outros Sítios ou

comunidades. De modo geral, o trajeto das vendas foi longo até chegar aos moradores, como

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Família, escravidão, luta 100

contou Teresinha, referindo-se, por exemplo, a Moreno: ―Já não era mais do Luis Melo, já era

de outros donos, que aí já venderam, sabe? Vendeu aos outros, e os outros já vendeu a papai‖.

Sobre brabos e bandidos e sobre morrer em Belém

Quando, na galeria de sua casa, Gregório contou sobre Tozé e Maria, seu genro,

Henrique perguntou se era Tozé que ―dava nos trabalhadores‖. ―Tozé nunca deu em ninguém,

quem dava era Zé Jacó‖, respondeu Gregório. Muito se fala sobre os ―homens de Tozé

Melo‖,38

especialmente sobre Zé Jacó, o brabo, o capanga, o chaleira.

-―Dá licença, que eu gosto de fumar‖. O tio Joca se prepara um cigarro enquanto Teresinha

lhe fala sobre nossa caminhada a Moreno. ―Vai fazer mais perguntas a eu?‖.

-―Aí, conta dos homens: quem era brabo, quem era, quem não era. Zé Jacó era brabo‖, lhe

responde Teresinha.

-―Zé Jacó era brabo, bandido, todo ele tinha, né? Valente, que tinha o nome de valente, era

brabo‖. Zé Jacó era tão brabo que conseguiu despertar o medo de Joca: ―Eu nunca tive medo

de homens, né? Agora, de mulher eu tenho medo, mas de homem, não‖.

Joca estava para se casar e, certa vez, saiu para passear com sua bela noiva, por quem

todos os homens, casados ou solteiros, eram loucos. Cruzaram com Zé Jacó, que tinha um

revólver e uma macaca. Este último disse à jovem:

-―Cadê o casamento com Joca?‖.

-―Não estou por casar com ele ainda não, ele ainda vai se ajeitar‖, respondeu a jovem.

- ―Porque, se ele não casar, eu caso com você‖, concluiu Zé Jacó. Joca permaneceu calado,

não tinha outra opção. Desde aquele dia, teve medo, teve medo, teve medo... E assim

continuou, sem que nada acontecesse com Zé Jacó.

Em Belém, era a ―lei do patrão‖. ―Como tinha pistoleiro! Tinha de fartura, minha

filha! Na casa do seu Tozé, apanhava tudo isso, né?‖, contou Joca. Não havia polícia que

entrasse. Naquele tempo, a polícia era o fazendeiro, assinalou Antônio de Boa Fé. Somente se

fazia o que Tozé queria. Hoje, o povo é mais sabido, prosseguiu Antônio, mas nessa época,

era muito duro. Aquele que escapasse ao modo de Tozé não resistia na fazenda, era expulso

ou morto. ―Matava o outro igual que matava um cachorro‖.

38

O uso que os moradores fazem da categoria homens para se referirem ao pessoal mais hierárquico da

propriedade não é exclusivo de Belém. A categoria foi objeto de análises anteriores, como a de Sigaud (1971),

que observa que os moradores das propriedades produtoras de açúcar na Zona da Mata de Pernambuco usam o

termo para fazer alusão não somente aos empregados, mas também ao patrão.

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Família, escravidão, luta 101

Ao falar do grande poder de intervenção e controle que o proprietário mantinha sobre

seus moradores na zona canavieira de Alagoas, Heredia (1986) observa que ―são abundantes

as descrições da literatura que caracterizam o senhor de engenho como tendo atribuições de

juiz, de polícia e até de pároco […] Essa intervenção, inclusive, impedia a interferência de

qualquer outra autoridade de fora dos limites do engenho‖ (Heredia, 1986: 176). Nas

reconstruções dos ex-moradores, Belém não configura uma exceção àquelas observações. Ao

referirem-se aos homens de Tozé, que faziam valer a lei do patrão, os relatos dos antigos

habitantes da fazenda apresentam tal patrão como uma figura extremamente poderosa.

De acordo com alguns ex-moradores, Tozé havia comprado a patente de Coronel e

tinha autoridade sobre sua fazenda, bem como o finado Juca, que havia adquirido a patente de

Major. A polícia somente podia entrar na propriedade por ordem do dono. Caso contrário, a

porteira de Belém era inviolável: ―Alguém entrou para dentro de Belém, e a policia não

entrava, não. Se um bandido fizesse um crime aqui, saísse e entrasse ali, na Fazenda Belém,

era apadrinhado pelos donos de Belém, a polícia não entrava ali para pegar ele‖. As palavras

de Antônio de Serras, o pai da nora de Gregório são representativas do que me contaram as

pessoas: ―Onde é que a polícia podia mais do que Tozé Melo? Em Bom Jesus, quem mandava

era ele‖, opinou Fátima, uma antiga habitante de Belém e esposa de Antônio de Ribeiro, este

último uma figura reconhecida do movimento sindical, que atualmente vive no assentamento.

Tozé tinha aquela ―força‖ que a patente lhe conferia, como também o coronel Getúlio, cuja

fazenda se encontrava próxima à Bacia, no município de Jaguriçá, observou Antônio de

Serras e completou dizendo que essa força era comprada, já que nunca estudaram nem se

submeteram a exames para serem coronéis, como é normal hoje em dia.

A porteira não era uma barreira para os pistoleiros, não o era para os bandidos:

―Belém era o refúgio dos criminosos‖, assinalaram com freqüência os ex-moradores. Estes

eram mantidos por Tozé e por meio deles se fazia valer sua lei. Segundo Gregório, Belém

dividia-se em várias fazendas. Em cada uma delas se construía uma ―casa grande‖ e se

colocava um administrador que tomava conta da região. Os pistoleiros circulavam de fazenda

em fazenda. Quando os proprietários precisavam deles, ordenavam que se apresentassem:

―Tem um trabalho para fazer, manda chamar‖. Os pistoleiros dirigiam-se então para a fazenda

onde eram solicitados e ali permaneciam até concluírem o trabalho para o qual haviam sido

chamados. Uma vez concluído esse objetivo, iam até outra fazenda: ―O que fazia aqui, ia para

lá, ninguém via nem sabia quem era‖. ―Se ele mandava seus capangas matar, podia matar até

dez ou 12, e na semana o capanga estava livre‖. Ao falar sobre isso, Fátima disse lembrar de

seu ―tempo de menina‖, mas também das histórias que as pessoas mais velhas contavam. Ela

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Família, escravidão, luta 102

assinalou que sabe daquilo porque ―gravou na cabeça‖ o que ouvia de seus avós e de seu pai:

―Meu pai passou essa história, meus avós, eu ouvia meus avós contarem essa mesma história

que eu estou contando‖. De modo que, quando Fátima fala sobre estes temas, apresenta-se

como o último elo de uma cadeia de histórias. Ela reproduz uma história que seu pai e seu avô

lhe passaram. Tal como Maria Clara, conta o que ouviu contar, com a diferença que Fátima já

era nascida naqueles tempos, e que seu pai e seu avô, os mais autorizados narradores, já não

podem contar.

Tozé ―mandava matar‖ e ordenava que lhe trouxessem a orelha do defunto para poder

confirmar a sua morte: ―Vai lá, mata o fulano de tal e traz a orelha‖. Belém era uma terra

perigosa, concluiu Fátima. Era uma terra perigosa para os moradores, para os proprietários e

para os pistoleiros. Gregório assinalou que, com o passar do tempo, os proprietários

começavam a ter medo dos criminosos que mantinham dentro de sua fazenda. De acordo com

ele, os pistoleiros não eram recompensados pelos trabalhos que faziam, e isto gerava temor

nos patrões, de modo que sempre havia um pistoleiro para matar outro. ―Naquele tempo, o

povo dele, os empregados dele, quase todos morreram assim: matava um, depois o outro já

matava o outro‖. Quando ―não dava certo‖ com alguém, o fazendeiro ordenava a um

empregado que o matasse e, mais tarde, quem matou, passaria a ser o morto, observou

Antônio de Boa Fé. Assim ocorreu com Zé Jacó e também com outros pistoleiros. Dionísio

matou Zé Jacó quando este não quis que seu filho se casasse com sua irmã porque ela era

pobre. O matou na feira, no meio da rua com uma faca. O fez com o amparo de Tozé, e a

polícia nunca foi atrás de quem o matou, contou Antônio de Boa Fé.

E também ocorreu com os moradores. ―Eu sei que aqui não era bom, não. Isso aqui

era dos criminosos, qualquer coisinha mandava matar‖, mencionou Manoel de Bete, antigo

morador que hoje vive em Jucá, outro povoado no território da velha fazenda. Diz-se que

Tozé castigava e matava os pobres, observou Dona Lurdes, vizinha de Teresinha e esposa de

Ricardo. Ela nasceu em Aparecida e somente foi à Belém por ocasião da morte de Tozé:

―Aqui já ouvi o povo falar nesse Tozé, que esse Tozé era uma pessoa muito má‖. Os

moradores eram obrigados a vender-lhe sua produção de algodão, a trabalhar grátis para a

fazenda uma vez por semana, a votar em quem Tozé indicasse, a se casar com quem Tozé

determinasse. A lei era assim, mencionou Fátima. Tinha uma parte boa e uma parte ruim. Não

era do agrado dos pais que um jovem se envolvesse com uma jovem e não se casasse com ela.

A parte favorável é que, caso isto ocorresse, a mãe podia se queixar com Tozé: ―Seu Tozé,

fulano mexeu com minha filha e não quer casar com ela‖. Então, o proprietário ordenava que

chamassem o jovem e seu pai e, na presença de ambos, pronunciava os possíveis destinos:

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Família, escravidão, luta 103

―Vai casar o vai morrer, escolha‖. ―Aqui só morria uma pessoa se o proprietário mandasse

matar. Um vizinho não matava outro, ninguém tinha coragem de matar o outro, não, porque

no outro dia o proprietário mandava o capanga matar quem matava o outro‖. Como expressou

Fátima, a lei era a do proprietário, quem não se adequasse a ela, deveria ir embora ou morrer.

De acordo com Antônio de Boa Fé, os moradores tinham inclusive de votar no candidato que

Tozé apoiasse: ―Tomava café para poder ir a Bom Jesus e votar, era obrigado a votar. Se

dissesse que votava em contra, ele matava‖. Antônio de Serras, por sua vez, disse que o

finado Tozé não era uma pessoa ―sanguinolenta‖, não tinha a ―coragem de matar‖. A lei em

Belém era sua e se alguém ia contra isso, ordenava uma ―surra‖, o castigo corporal e/ou sua

expulsão de Belém, mas não a morte. ―Expulsavam demais‖, mas Tozé não fazia isso,

mandava seus ―cabos‖, já que era ―medroso‖, disse Antônio.

Quando Joca Souza lembrou-se do temor que lhe causou o olhar de Zé Jacó em sua

noiva, Teresinha contou que os Melo mataram seu tio, Bento, o irmão de seu pai, o irmão de

Joca. Os xerimbabas, aqueles que ―ficavam babando‖ pelo proprietário, já o haviam castigado

durante um bom tempo na diária, por isso seu pai, Zé Francisco, sentiu raiva, um grande

desgosto quando o mataram.

- ―Por que mataram ele?, perguntei a Teresinha.

- ―Por causa de namorada; mulher, não foi?‖ Me respondeu, ao mesmo tempo em que fazia a

pergunta a seu tio.

- ―Foi‖, disse seu tio. E se dispôs a contar aquela morte: ―Espera aí, eu sei de tudo‖, disse a

Teresinha. ―Você não sabe, não‖. Zé Melo era o camarada de Joca; ele, seu irmão, Antônio

Melo, e Zé dormiam juntos na sala durante o período em que Joca viveu em Taipal. Havia

muitas jovens bonitas ―e lá vai, lá vai, aí Zé Melo gostava também da namorada, né?‖. Zé

Melo gostava da namorada do tio de Teresinha e resolveu ―dar uma pisa‖ no companheiro da

moça. Em um dia de feira, Zé Melo ordenou que o chamassem para que fosse trabalhar na

diária. Bento respondeu que não iria. Aquilo gerou ódio em Zé Melo. Se, antes, queria

castigá-lo com chicotadas, a situação agora era mais brava. No outro dia, Zé Melo pegou seu

revólver, se dirigiu para a casa de Bento e disparou. Zé Melo disparava muito, concluiu Joca.

Teresinha acrescentou que isto ocorreu no roçado, quando seu tio estava trabalhando.

Zé Melo o chamou e lhe disse: ―Se prepare para morrer‖ e disparou uma bala em seu ouvido.

Bento não pôde se defender. ―Foi‖, assentiu Joca, ―chamou e matou na hora‖. Passado um

tempo, Zé Melo casou-se com sua prima e se foi de Taipal. Ela tinha um negócio e estava

bem de vida, era uma mulher ―bem arranjada‖. Já morreu — observou Joca — como os outros

Melo. ―Todos já morreram, pagando o que devem. Que ninguém nunca faça isso, né? Não

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Família, escravidão, luta 104

faça isso, uma coisa dessas, mesmo que não seja cristão, matar sem precisão, morre da mesma

doença... Sem precisão, como eles morreram. Zé Jacó também‖.

Fátima, por sua vez, contou que o pai plantava muito algodão, e não havia modo de

levar um saco deste produto para vender fora da fazenda. Toda a colheita devia ser

transportada até ali, não podia ir para outro lugar. Na entrada de Belém, os homens do

proprietário revistavam os moradores e, se estes carregavam algodão: ―Volta aí!‖, diziam.

Assim, a pessoa devia retroceder, entregar a carga na fazenda e ser castigada. Não era presa,

mas ―levava uma surra‖. Fátima lembrou-se que seu pai contava essa história e falava sobre

um coitado, um pobre morador de Belém que vendia seu algodão por fora. Em todo aquele

monte que se estendia sobre Belém, em todo esse ―mundo‖, esse ―meio mundo‖, havia um

caminho que permitia deixar a propriedade sem ser descoberto. O morador conhecia este

caminho, do qual se valia para vender seu algodão por um preço melhor. Meia-noite, juntava

o algodão em sacos e carregava o cavalo. Saía de casa e atravessava essa paisagem agreste

para poder vender naquela usina de Valdemar Dias. Depois voltava para casa. ―Deus, meu

senhor, se fosse descoberto! Se fosse descoberto, matava! Aqui era assim‖.

Talvez tenha sido, de fato, descoberto. Talvez esse homem do qual Fátima se lembrou

seja Benedito Aguiar, sobre o qual me falaram alguns habitantes de Belém e também Antônio

Melo Neto, o filho de criação de Tozé apresentado no primeiro capítulo. Zeca, um atual

assentado que nasceu em um município próximo à Belém e que chegou à fazenda quando

tinha aproximadamente oito anos, me contou sobre Benedito Aguiar, o ancião que era pai de

Zé Aguiar. De acordo com seu relato, quando Antônio Melo Neto, mais conhecido como

Toninho, era um dos proprietários de Belém, Benedito Aguiar vendeu um saco de algodão

fora da fazenda porque tinha de comprar açúcar para seus filhos. Pelo fato de vender fora para

prover o alimento de sua família, Toninho disparou, e a bala atingiu a sua perna. Desde então,

Benedito vive lesionado, ―não ficou bom, não‖. Naquela época, ―ainda tinha uma parte dos

Melo botando sujeição no povo, de pagar foro, de ter que vender algodão a eles‖. Zeca

assinalou que, quando Antônio Melo Neto se candidatou a prefeito, aposentou Aguiar e lhe

deu uma casa para que, durante a campanha, as pessoas não falassem sobre o que ele havia

feito.

Como vimos no primeiro capítulo, Antônio Melo Neto também tinha comentado

comigo sobre este episódio, sobre o qual perguntei a Teresinha e a Gregório. Teresinha

assinalou que o algodão era bem pago. No entanto, não era assim quando os Melo compravam

de seus moradores. O que ocorreu com Aguiar, acrescentou Gregório, foi que este não quis

mais vender seu algodão para Melo e que, ao saber daquilo, Melo foi buscá-lo para matá-lo.

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Família, escravidão, luta 105

Benedito era vizinho, contou Teresinha. O disparo atingiu sua perna, e ele nunca voltou a

caminhar bem depois daquilo.

Com estes relatos, revela-se o lado mais sombrio do poder do patrão para fazer valer a

lei. Quando os ex-moradores referem-se às violências na fazenda, em geral, ressaltam a

ilegitimidade de vários desses atos. O que criticam não são as mortes ou os ataques, mas a

falta de ética que acompanhou esses atos de violência. A frase de Joca, ―matar sem precisão‖,

indica que não é o fato de matar o que está em jogo neste questionamento, mas a ausência de

precisão, a morte sem justificativa, sem necessidade. De modo distinto ao que ocorria nos

relatos dos proprietários e vaqueiros, as mortes, disparos e violências aos quais se aqui alude

são cercados por um halo de ilegitimidade. A ética da violência que os relatos daqueles

apresentavam vê-se violada neste capítulo, mas seu reconhecimento não deixa de existir, o

que revela uma continuidade na visão de mundo de proprietários, empregados e moradores

em relação a uma normativa de violência.

El grito del capanga va resonando39

O que mais se destaca nas recordações dos ex-moradores ao falarem de Zé Jacó tem a

ver com os castigos que infligiria se eles não quisessem trabalhar para o proprietário. O ―rabo

do cavalo‖ e ―a macaca‖, ou ―o chicote‖ de couro eram os instrumentos do castigo que

infundiam. Quando o tio Joca falava sobre os pistoleiros que Belém mantinha nesse ―tempo

atrás‖, Teresinha encaminhou a entrevista a um ponto central: ―E Joca, tinha um tempo que

um mandou até carregar do rabo do cavalo para puxar, era nesse tempo mesmo?‖ E Joca lhe

respondeu: ―Era isso, mesmo! O finado Zé Jacó ia dirigindo e trazendo no rabo do cavalo e

trazia mesmo. Amarrava no rabo do cavalo, se não fosse trabalhar na enxada. Era isso que eu

tinha medo‖. Joca tinha medo, o pai de Teresinha tinha medo, a mãe de Teresinha tinha medo

e também Teresinha, em sua pequenez, tinha medo desses xerimbabas que a faziam tremer.

Xerimbaba é o mesmo que chaleira, me explicaram alguns ex-moradores quando lhes

perguntei sobre o significado da palavra que Teresinha sempre mencionava. Xerimbaba é um

apelido dado aos empregados que não agradavam os moradores: ―O povo chamava xerimbaba

quando era empregado de uma fazenda. Quando era boa gente, não, o povo dizia outra coisa,

mas quando era meio ruim, o povo chamava xerimbaba, xerimbaba era o chaleiro‖, me

39

Corresponde a um verso da canção ―El Mensú‖, de Ramón Ayala. Deixo aqui minha singela homenagem a

quem me ensinou quando criança.

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Família, escravidão, luta 106

explicou Antônio de Boa Fé. O chaleira ou chaleiro era o empregado que vigiava os

trabalhadores com os olhos do patrão, especificou Antônio de Serras:

Xerimbaba é aquele que, uma coisa estava acontecendo, e ele estava sempre

olhando, olhando... E, quando ele sabe, ele vai e passa para o patrão.

Xerimbaba é a mesma coisa que chaleira, quem era empregado ali para

defender só o patrão. Vamos supor assim: tem um bocado de trabalhador

trabalhando ali. Aí, se um não trabalhar, ele já entrega ao patrão. Vai e:

―Fulano não está trabalhando‖.

―Puxa para o lado do patrão, só vê o lado do patrão‖, acrescentou seu filho. Estes

chaleiras, estes capatazes eram os encarregados de obrigar os moradores a trabalhar para o

proprietário na diária, todas as terças-feiras. A imagem de Zé Jacó ou de outros

administradores levando o morador amarrado no rabo de um animal foi evocada por grande

parte dos habitantes de Belém com quem conversei. A figura de Zé Jacó incorpora uma nova

dimensão e nos permite neste momento, nos deslocarmos do bandido, do Zé Jacó que abria o

mundo dos pistoleiros e criminosos de Belém até o chaleira, o Zé Jacó capanga ―que somente

defendia o patrão‖ e que obrigava os moradores a trabalharem para este último.

Na diária, o morador, o pai da família com que o patrão estabelecia relações,40

dava

um dia de serviço a este último; entregava suas terças-feiras ao proprietário da terra sem

receber nenhum salário por isso. O dever do morador de trabalhar de graça para o proprietário

não é exclusivo de Belém. Distintas análises permitiram compreender as relações sociais de

morada em diversas regiões do Brasil e as sutilezas implicadas em suas formas específicas de

dominação. Como vários destes estudos observam, a contrapartida de ter casa de morada na

propriedade (casa que supõe a possibilidade de fazer um roçado no qual se planta o necessário

para o consumo familiar), é a obrigação de trabalhar para tal propriedade, conformando um

mecanismo que, como assinala Heredia (1986), garantia às grandes propriedades rurais não

somente a mão de obra necessária, mas também a reprodução da mesma. Na zona canavieira

de Pernambuco e Alagoas, por exemplo, este trabalho podia ser a condição ou o cambão, que

qual variava de acordo com a posição do morador no engenho (Sigaud, 1971, 1979; Palmeira,

1977; Heredia, 1986).41

40

Uma análise sobre este aspecto poder ser encontrada em Heredia (1986). 41

Na Zona da Mata, os moradores constituíram a principal força de trabalho utilizada nas propriedades

produtoras de cana, desde a Abolição da Escravatura até o momento em que começam a ser expulsos de tais

propriedades. Seguindo Sigaud (1971, 1979), Palmeira (1977) e Heredia (1986) e, dito de modo breve e um tanto

esquemático, nessa zona, os moradores recebiam uma casa de morada na propriedade, a qual incluía um fundo

de casa onde o trabalhador cultivava seus produtos de subsistência, ou seja, onde fazia seu roçado. Este é o caso

do morador de condição — assim chamado em Pernambuco — ou simplesmente morador (em Alagoas) que,

como contrapartida à casa de morada era obrigado a trabalhar para a propriedade uma determinada quantidade

de dias na semana. Aquela obrigatoriedade era chamada de condição. Se uma vez cumpridos os dias

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Família, escravidão, luta 107

Em um caso mais próximo ao de Belém, Bastos (s/d) chama a atenção, entre outras

questões, para as relações que ligam o morador ao patrão em fazendas do complexo gado-

algodão no sertão da Paraíba. Como ocorria na Zona da Mata, os moradores, neste caso, os

trabalhadores que residem nas grandes propriedades de gado e de algodão nas quais ―recebem

uma casa para morar e um pedaço de terra para trabalharem com suas famílias‖ (Bastos, s/d:

9), se vêem no dever de trabalhar para o patrão um ou dois dias por semana. Apesar de o caso

apresentado por Bastos falar de um trabalho pago, este expressa uma relação de sujeição que

aqui se observa no fato de não poder trabalhar para outra pessoa que não seja o patrão da

propriedade onde se mora, que paga menos que a remuneração correspondente a um dia de

trabalho na região em questão.42

O dever de trabalhar para o proprietário é um elemento fundamental do sistema de

morada, e Belém não é uma exceção neste sentido. Contudo, a questão não se esgota nas

formas abstratas com as quais podemos recortar determinados fatos sociais (Palmeira, s/d).

Prossigamos com as reconstruções dos ex-moradores de Belém sobre o trabalho gratuito que

davam ao patrão e vejamos o sentido que a diária nos revela quando pensamos sobre Belém.

Bem cedinho, os moradores saíam de suas casas a pé para percorrer um longo trajeto

até o lugar em que dariam a diária, que podia ser em Taipal, onde se encontrava a casa

grande, ou qualquer outro rincão da grande fazenda Belém. Durante esse dia de trabalho, os

moradores podiam limpar o terreno para preparar a roça, construir cercas para as mangas com

as estacas adquiridas nesse desmonte, extrair as ervas daninhas, plantar capim para o gado do

fazendeiro e trabalhar nas cocheiras, entre outras tarefas. A diária ―era puxada‖, era cansativa

e, além disso, era preciso suportar o capataz que observava e se assegurava que os moradores

realizassem seu trabalho de forma correta e que não conversassem.

Quando o sol se punha, os moradores voltavam para casa ―Papai, dia da diária, ele só

chegava de noite [...] papai chegava aperreado porque era longe, e a terra não era muita‖,

observou Teresinha e acrescentou que, nesses dias, sua mãe sempre tinha medo porque o

obrigatórios, o trabalhador continuasse trabalhando para a propriedade, recebia então uma remuneração. Este

morador ocupava uma posição diferente do morador com sítio ou morador foreiro que, além da casa de morada

recebia um sítio, o qual constituía um ―prêmio‖ dado pelo proprietário ao ―bom morador‖ (uma parcela maior e

mais distanciada da sede da propriedade que permitia a criação de animais, uma maior produção de parcela

plantada, assim como a plantação de árvores que ligavam o morador à terra de modo mais permanente). O

morador foreiro não dava condição, mas cambão, por meio do qual trabalhava gratuitamente para a propriedade,

no mínimo, uma vez por ano, por um período de aproximadamente vinte dias. Além do cambão, todo final de

ano, este devia pagar um foro. No entanto, segundo o que se pode observar na bibliografia, este não implicava

uma grande quantia. 42

A forma como o patrão se apropria da produção do roçado de meia dos moradores (no qual plantam algodão,

feijão e milho), especificamente, a exigência de que lhe seja vendido todo o algodão, também conduz a autora à

categoria de sujeição. No entanto, nos ocuparemos disto mais adiante.

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Família, escravidão, luta 108

esposo não chegava. Sete, oito, dez, onze ou meia-noite: o horário tardio em que os pais ou

maridos voltavam para casa constitui uma lembrança com freqüência reconstruída pelas

mulheres. ―Quando ele estava trabalhando lá, chegava em casa meia-noite‖, mencionou

brevemente Luísa, quando seu esposo, Antônio de Boa Fé, se referiu ao trajeto que os

moradores faziam a pé até Taipal durante os dias de diária.

As pessoas me contavam sobre a diária, e eu costumava lhes perguntar sobre o

episódio do ―fim do cambão‖, já que, nos relatos que escutei antes de chegar nas terras de

Belém, esse episódio estava associado ao pescado seco que os moradores almoçavam durante

os dias de diária. Ao indagar sobre o cambão, me respondiam com freqüência com outra

pergunta: ―O cambão?‖. E, em seguida, ―não lembro‖ ou ―esse não sei o que é, não‖.

Passava, então, a perguntar sobre o episódio no qual rejeitaram o pescado seco, momento em

que os ex-moradores me falavam sobre o almoço na diária.

Quando comiam, a alimentação dos trabalhadores durante esse dia consistia em uma

rapadura que podia ser acompanhada de farinha ou pescado seco, que era geralmente um

avoador, considerado pelos habitantes de Belém um alimento muito precário. De acordo com

Antônio de Serras, alguns trabalhadores chegavam ao ponto de desmaiar de fome, como

aconteceu uma vez com um morador que passou caminhando pela casa de seu pai. Manuel

Barbosa era um morador da região da Fazenda Laranjeira, onde atualmente se encontra o

assentamento, e voltava do trabalho na diária em Bom Jesus. Quando chegou em frente à casa

do pai de Antônio, Manuel se viu vencido pela fome e caiu. Os pais de Antônio levantaram

seu corpo desmaiado e o levaram para casa. A mãe o sentou e lhe deu de comer. Manuel

começou a suar e logo se recuperou. Aquele episódio serviria de assunto para as brincadeiras

dos trabalhadores que passariam por ali caminhando as terças-feiras das semanas seguintes ao

episódio: ―Dom Antunes! Tu não levantaste Manuel Barbosa, porque tu não me levantas?‖.

Antônio observou, entre risos que ―os cabras‖ gritavam aquilo a seu pai para que lhes desse

comida.

O morador estava sujeito à diária. Era sujeito a ir de qualquer maneira, ainda que

fosse pelo rabo de um animal. A diária era a sujeição de trabalhar à força. O morador tinha de

ir, tinha de ir ou apanhava, tinha de ir ou ia embora da fazenda. Nem sequer o fato de estar

doente o impedia. Às vezes, o pai podia ser substituído por um filho, mas aquilo não agradava

os fazendeiros já que, de acordo com Gregório, o trabalho dos pequenos não rendia da mesma

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Família, escravidão, luta 109

forma que o dos adultos:43

―Se os pais da gente não podia ir, quem ia era o bichinho; podia ser

deste tamanho, mas ia trabalhar na diária‖, observou Ivaldo, um ex-morador de Belém que

hoje vive no assentamento.

Quem não fosse à diária receberia um castigo. E os capangas, especialmente Zé Jacó

são aqui muito evocados. Se o morador não ia à diária, o administrador chegava na casa do

morador. Lhe esperavam a burra e a macaca. Segundo algumas pessoas, o morador era atado

ao rabo de um cavalo, segundo outras, o morador era atado a uma burra. De sua casa, este ia

caminhando amarrado ao rabo do animal até chegar ao patrão, ―passeio‖ que lembra o

―passeio em burro‖ o donkeying das cencerradas, minuciosamente analisadas por Thompson

(1995), praticadas desde o século XVII na Europa. Mas contrariamente a aquelas, quem as

executava aqui era o patrão e não ―a comunidade‖ (com todas as sutilezas com as que

Thompson utiliza esta categoria). Em Belém, o morador era dirigido até a diária ou ao

fazendeiro, que o havia ―mandado chamar‖, e quando chegava ao destino, recebia uma surra,

uma pisa, a qual consistia em chicotadas que os capangas lhe infligiam com a macaca, com o

chicote, com o couro:

E a diária, se essa diária, eu não desse, mandava buscar dois, três capangas

no rabo da burra. Ouviu a palavra? Sabe rabo da burra como é que é? É que

amarra com uma corda o cabra e amarra na sela. Você não vê na TV como

os cabras fazem no rodeio? Mesmo assim, o patrão fazia com nós aqui. Ele

mandava o capanga buscar, o administrador: ―Amarra aqui!‖. Dois capangas

pegavam, amarravam o cabra e levavam. ―Está aqui, patrão! O cabra que não

pagou o foro, o cabra que não queria ir para a diária‖. Aí, dava uma surra

grande e mandava de volta. E dizia assim: ―A semana que vem (não quero

nem ver que você não venha)‖ (Antônio de Ribeiro, antigo morador de

Belém que atualmente se encontra assentado).

Como o mostra o ―passeio na burra‖, os castigos eram exibidos. O tio de Teresinha

ainda hoje se lembra como castigaram vários moradores que não tinham ido à diária. Joca

estava trabalhando junto aos demais em Lagoa do Gibão; eram duzentos homens trabalhando

no rio, ―parecia uma festa‖. Tinham de plantar capim para que o gado do fazendeiro pudesse

comer: ―Era gado demais. O finado Tozé tinha fazenda por todo canto‖, observou Joca.

Naquele dia, Zé Jacó chegou com uns moradores de Lagoa do Gibão que havia ido buscar em

casa porque não tinham ido à diária. Zé Jacó ―só não deu no tal de Barros‖, um dos

moradores que tinham faltado à diária. Todos os que estavam trabalhando ali viram o castigo:

―Eu vi com meus olhos‖, disse Joca, ―me lembro de tudo, eu estava trabalhando também, aí o

43

Heredia (1986) mostra que aquele ponto coloca em questão não somente o rendimento do trabalho, mas as

formas de relacionamento e socialização por meio das quais o engenho assegura a reprodução de novos

moradores e de novas unidades domésticas de moradores.

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Família, escravidão, luta 110

povo ficava todo em pé, e os caras no couro, na macaca‖. A exibição desse castigo deixou

Joca e, seguramente aos demais moradores, com muito temor e com a necessidade de uma

proteção: ―Aí, eu pedindo a Deus para sair de um castigo daqueles, né? Graças a Deus, Deus é

bom, saí‖.

Se não fossem à diária, os moradores também poderiam ser expulsos da fazenda, o

que costumava se dar de um dia para o outro. Nesse período fugaz, o patrão ordenava que a

casa e o roçado do morador fossem derrubados.

A sujeição de trabalhar à força para o fazendeiro assim como o estado do morador de

ser sujeito ao patrão se encontram intimamente ligados à diária na narrativa dos ex-

moradores. Do mesmo o são o castigo e a gratuidade do trabalho, aos quais se somam a falta

de alimentação ou a alimentação precária, o cansaço, o esgotamento, o longo dia de trabalho,

a possibilidade de serem ―mandados chamar à casa‖ pelo patrão e o medo. Para dar conta

dessas experiências, existe uma categoria que foi utilizada pela totalidade dos ex-moradores e

suas esposas: a escravidão e, às vezes, também a categoria cativeiro. Sempre que se referiram

à diária, os habitantes de Belém se valeram de tal categoria para explicá-la. ―Sabe o que era a

diária?‖, me perguntou o tio de Teresinha e logo continuou: ―Era sujeito, o povo era cativo,

tinha que ir ou apanhava‖. Em seguida, Joca me explicou que hoje já não existe diária, quem

trabalha por dia somente trabalha se é pago e pode decidir se trabalha ou não: ―Pronto, aí a

diária que aparece hoje é essa, né, Teresinha? Já não é a diária de cativeiro...‖.

- ―De sujeição‖, respondeu Teresinha.

- ―[...] Proprietário rico botando sujeição, fazendo a gente apanhar... era um cativeiro‖,

concluiu Joca. Trabalhar grátis para um proprietário rico ao qual se era sujeito, estar em uma

relação de sujeição, ter de ir sem poder escolher e com a possibilidade de ser castigado são

características diversas que, de acordo, com Joca e Teresinha, fazem da diária um cativeiro.

Vemos, no entanto, que uma dessas características se destaca: a sujeição e o ser sujeito. Da

diária, não se podia escapar.

A categoria obrigação também se fez presente entre alguns ex-moradores ao se

referirem à diária e ao cativeiro que este trazia consigo. Exemplos podem ser citados, como o

de Antônio de Boa Fé que, ao falar de cativeiro insistem na obrigação dos moradores de

trabalharem na diária sob a ameaça de perderem a casa: “Se não fosse trabalhar, botava para

fora, naquele tempo. Não ouviu dizer que era quase que um cativeiro? Você sabe o que era

cativeiro? Era uma pessoa obrigada‖. Do mesmo modo, Gregório acentuou a obrigação de

trabalhar, bem como de fazê-lo de graça, sem receber sequer a alimentação, mas ao falar da

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Família, escravidão, luta 111

escravidão, destacou, sobretudo, a possibilidade de ser levado à força, amarrado no rabo do

cavalo, se não cumprisse essa obrigação:

Tudo mundo era obrigado a trabalhar um dia de graça para a fazenda [...]

Trabalhava um dia de graça sem alimentação, sem nada, peixe seco e

rapadura na hora do meio-dia, mas não dava alimentação [...] Tinha que

trabalhar um dia de graça toda a semana. Se não fosse, o administrador ia lá

e trazia amarrado no rabo do cavalo, puxando. Trabalhava quase como uma

escravidão.

A possibilidade de serem levados à força também foi enfatizada por Ivaldo em sua

alusão à escravidão. ―Aqui, nós vivíamos como escravo, mesmo. Se a gente pudesse ir, ia;

quando não podia, ele mandava buscar pela força, com um empregado‖. Por isso e pelo risco

de serem expulsos, não havia outro remédio senão ―agüentar‖, observou Ivaldo: ―O cabra

tinha que agüentar aquilo ali; hoje não acontece isso mais. Antigamente, a gente trabalhava e

ainda levava... xingava o cabra assim, ele xingava o cabra, queria expulsar para fora‖. Ivaldo,

que enfatizou a possibilidade de serem levados à força (como o fez Gregório), utilizou a

categoria sujeição quando se referiu à diária.

Ter de ir à diária, ter a obrigação de ir à diária parece indicar um aspecto diferente do

que sugere a relação de sujeição, que faz com que o morador seja sujeito à diária. Se, neste

contexto, alguém alude ao dever de fazer alguma coisa (a obrigação de trabalhar), o outro, ao

contrário, enfatiza o não poder fazer, o ser amarrado. Neste sentido, é sugestivo que um dos

elementos mais destacados pelos ex-moradores ao se referirem à diária seja o inevitável

castigo de humilhação pública: o rabo da burra. O rabo da burra mostra mais que um castigo:

este amarra, sujeita, força ao morador à diária e o impede a possibilidade de fazer ou dizer e,

por tanto, de estar obrigado a fazer algo. Assim, se a categoria obrigação se faz presente entre

alguns ex-moradores ao aludir à diária, as categorias de sujeição e de sujeito são mais

freqüentes em sua explicação deste tema e, neste sentido, a diária indica algo que vai mais

além da obrigação de trabalhar: se o morador cumpria a obrigação por sua própria iniciativa o

fazia então sujeito: amarrado à diária no rabo da burra. O morador tornava-se assim um

objeto, o que explica que, como veremos mais adiante, possa adquirir o mesmo lugar que o do

algodão: o da sujeição.

Essa idéia de sujeição (e às vezes a de obrigação) (sendo o termo usado

principalmente pelos homens) ganha um lugar central ao se falar da escravidão (ou cativeiro)

que a diária trazia consigo. No entanto, e como pudemos observar, além deste elemento

central, outros aspectos da diária, como a gratuidade do trabalho, a falta de alimentação e as

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Família, escravidão, luta 112

altas horas da noite em que os moradores retornavam, entre outros temas, também se

associam à escravidão e enriquecem a idéia, a complementam e lhe conferem um contexto.

Tais aspectos reforçam tanto o caráter indesejado da diária quanto a impossibilidade de

escapar da mesma (poderíamos dizer, a sujeição) e o fato de ter de trabalhar sob qualquer

condição (ainda que se esteja doente, vivendo longe do local da diária ou, ainda, sem a

capacidade de resistir ao esgotamento que significava). Vilma, por exemplo, enfatizou a

ameaça de expulsão que pesava sobre quem não quisesse ir à diária, quando se referiu à

escravidão (Vilma também foi habitante da fazenda e é esposa de Ivaldo):

No tempo dos escravos, se morasse na terra do fazendeiro, era expulso de

dentro da terra. Aquele que não quiser trabalhar na diária, aí ele expulsava da

terra. Queria que o pessoal morasse no terreno dele só para trabalhar para ele

[...] Aí, quando o morador não queria trabalhar, ele expulsava da terra.

Ao falar sobre a escravidão, Fátima, por sua vez, enfatizou que não ter onde morar e

não ter do que viver levava os moradores a serem escravos dos desejos do patrão, entre os

quais se encontrava a diária. À diária, era preciso ir caminhando e voltar do mesmo modo e

era preciso voltar de noite (indicação que faz lembrar as observações de Teresinha e de Luísa,

citadas mais acima, demonstrando uma recorrência na visão feminina do tema). Na diária,

não se comia, não se cobrava pelo trabalho realizado e não se perdoava a doença. A

contrapartida de não cumprir as ordens do patrão, de não ser seu escravo, podia consistir na

morte, no sofrimento, na expulsão da terra ou no castigo corporal infligido pelos capangas:

Ah, meu Deus, era muita coisa! A escravidão era grande. Tinha que trabalhar

para viver a vida, tinha que cumprir com a ordem do patrão, tudo como ele

queria. Se não for, morria mesmo ou, sei lá, sofria muito, judiava muito com

as pessoas. Hoje, aqui está muito bom, mas antes, a gente tinha muito medo

do Tozé. Pai saía para trabalhar de Lagoa da Montanha até a Fazenda Belém

e passava o dia trabalhando de graça, com fome. À tarde, no escuro, tinha

que voltar de lá a pé. E era toda semana, toda semana... Se não fosse, era

expulsado da terra. Coitado, não tinha onde morar, não tinha de que viver.

Era escravo, era escravo do que eles quisessem. Terça-feira era o dia da

diária. Quem não fosse, quando fosse de tarde, chegava o capanga dele,

batia... Podia estar doente, mas não era dispensado. Era triste! Ave Maria,

cheia de graça, era escravidão. Hoje, está tudo liberto, uma liberdade muito

grande, graças a Deus. A gente é dono da terra, e eu me acho muito mais

feliz.

Como observamos na citação de Fátima, a escravidão, por outro lado, se contrapõe à

liberdade o ao estar liberto. Ana de Manaus (outra antiga habitante da fazenda) definiu a

escravidão da diária por contraste à possibilidade de ser liberto. Ao contrário de ser liberto,

ser escravo se relacionava com não poder decidir para quem se trabalhava ou como se

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Família, escravidão, luta 113

trabalhava, já que era preciso fazê-lo da maneira como o patrão dispusesse. Quando lhe

perguntei sobre o modo como a diária acabou, me respondeu o seguinte:

Há muito tempo aqui que o povo é liberto; trabalha para quem quer, desde os

anos de 70. Acho que de 70 para cá ninguém é mais escravo de ninguém,

ninguém... A pessoa trabalha para quem quiser. Se tem profissão, trabalha na

profissão que tem. Outros que vendem coisas e botam um negociozinho,

outros compram um carro e viajam para Trindade. O povo é quase todo

liberto.

Ao perguntar a Antônio de Serras se a vida em Belém tinha se transformado com a

morte de Tozé e a chegada de seu herdeiro, Luis Melo, sua resposta fez alusão à escravidão, e

essa alusão foi semelhante à de Ana: ―Não. Ficou o mesmo esquema, aquela mesma

escravidão, o povo sujeito não tinha aquela liberdade de fazer, de dizer assim: ‗Eu vou fazer

isso assim‘‖. Sem liberdade, não se podia fazer ou dizer o que se queria, mais

especificamente, não se podia fazer ou dizer, já que o povo era sujeito.

A idéia de cativeiro teve um importante tratamento acadêmico a partir do qual é

possível iluminar várias das questões às quais se refere a escravidão em Belém e que se

apresentam nas diversas análises. Sigaud (1979) observa como, aos olhos dos trabalhadores

que residem nas cidades da Zona da Mata de Pernambuco e que trabalham nas plantações de

cana de açúcar, o cativeiro se associa a uma experiência que já não lhes é própria. Tal

experiência é a dos moradores dos engenhos, na qual a sujeição ao patrão e a obrigação de

trabalhar na cana deste último se observam como características da condição de cativo,

opondo-se à liberdade de decidir em relação ao próprio trabalho e de poder se negar às ordens

do patrão, o que não se pode fazer por viver em sua terra. O morador é obrigado a trabalhar

ainda que esteja doente ou cansado e é passível de ser chamado fora de hora, como de ser

chamado em sua própria casa. Este último é um aspecto que a autora retoma de Leite Lopes

(1978), que observa a ―penetração da esfera do trabalho na esfera doméstica do operário‖

(1978: 151) como um aspecto fundamental do cativeiro experimentado pelos operários de

uma usina de açúcar da Zona da Mata de Pernambuco, como observa um operário citado pelo

autor: ―Eles vêm me chamar aqui [na casa dele], e eu tenho que ir. A qualquer hora eu posso

ser chamado‖ (1978: 166). O poder da usina de dispor de seu trabalho em qualquer horário, de

estender sua jornada de trabalho, de controlar seu tempo livre, de invadir sua casa, de colocá-

lo em uma ―prontidão permanente‖ para o trabalho faz com que o operário viva como cativo,

o que o diferencia da condição de trabalhadores rurais que, nesse sentido, são ―mais libertos‖.

Garcia Jr. (1983), por sua vez, observa que a categoria cativeiro é utilizada por grupos de

pequenos proprietários de terra que se desenvolvem nas margens das grandes plantações de

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Família, escravidão, luta 114

cana de açúcar de Pernambuco para aludir à subordinação dos moradores aos patrões, mas

não qualquer subordinação, e sim a que se experimenta na área da cana. Neste caso, sujeição e

obrigação são categorias usadas de modo independente da de cativeiro e servem para

designar as relações entre moradores e patrões que ocorrem na esfera doméstica e do trabalho,

mas fora da área da cana. A disponibilidade do morador e de sua família ao patrão (que seria

o usineiro ou o senhor de engenho), a disponibilidade de prestas seus serviços a qualquer

momento e segundo a vontade daquele ou, ainda, quem é capaz de utilizar a força física para

impor seu afã, é também aqui um traço característico do cativeiro.

De modo distinto ao observado por Garcia Jr., no caso de Belém, vemos que o laço de

sujeição (e, às vezes, a obrigação) dos moradores com o fazendeiro e sua condição de serem

sujeitos estão intimamente ligados ao que os moradores chamam de cativeiro ou, mais

comumente, escravidão. O morador é sujeito e em Belém isto implica não poder dizer não à

diária, não poder fazer nem dizer o que quer, como o faria alguém livre. O castigo é explícito:

o morador está amarrado à relação de sujeição como será amarrado ao rabo de um animal,

caso se negue a esta relação. De modo simbólico e literal, o laço amarra o morador, o torna

sujeito, o deixa sem movimentos próprios. Por sua vez, também vemos que a invasão da casa

do morador, a indiferença do patrão a seus horários, a possibilidade do castigo corporal, a

capacidade de dispor de seu tempo constituem experiências comuns de subordinação ao poder

de um patrão que são vividas e consideradas por grupos muito heterogêneos de trabalhadores

com um cativeiro.

Tais experiências, como observam os autores citados, se iluminam em relação às

experiências de outros grupos diferentes do próprio. No caso de Belém, a experiência é uma

experiência dos pais — ou, mais exatamente, do pai — uma experiência própria, mas do

passado e que se contrapõe a seu modo de vida atual. Não obstante, se entre os ex-moradores

de Belém, a experiência é do passado, isso não implica que a escravidão tenha tido fim. Em

Belém, a escravidão não alude unicamente a uma experiência que já passou. Como a crença

na ―volta do cativeiro‖ que Velho (1995) analisa, quando se refere a pequenos agricultores

originários do Nordeste do Brasil e instalados nas frentes de expansão no Amazonas Oriental,

a escravidão em Belém tem a característica de sempre estar voltando e voltando de formas

diversas, de voltar de séculos passados à época dos pais ou de voltar da época dos pais ao

presente. Nesse sentido, a televisão e os programas acerca do ―trabalho escravo‖, categoria

utilizada de forma corriqueira na atualidade, tanto pelos meios de comunicação como pelas

instituições estatais voltadas para questões trabalhistas, são uma referência central dos ex-

moradores. Várias pessoas associaram o que haviam visto na televisão com a escravidão que

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Família, escravidão, luta 115

ocorria em Belém, como Ricardo, por exemplo, que destacou que aquela escravidão existente

em Belém, quando os moradores estavam amarrados no trabalho para o patrão, continua

existindo hoje em outros lugares:

Hoje, ainda tem escravidão. Você vê as entrevistas por aí, por Rio Grande do

Sul, não sei por onde... Muita gente sai daqui e vão plantar para os cantos lá,

que tem um ganho. Quando chega lá, está tudo vendido; bota lá para o mato

lá, aí lá fica derrubando pau, fica preso, não pode sair dali. Quando é a

descoberta, aí os caras ficam por cima desses patrão que levam eles, né? Aí,

libera aquele povo sofrido, pensando que chega lá e é uma coisa, mas

quando chega lá, é outra diferente.

Antônio de Ribeiro também se valeu das notícias sobre ―trabalho escravo‖ para

assinalar que o cambão (aludindo à diária) que sujeitava, que amarrava os moradores e os

fazia viver na escravidão, continua existindo: ―O cambão acabou, mas ainda tem propriedades

escondidinho por aí com o cambão. Aqui ainda encontra uma propriedade da terra muito

grande com dois, três moradores no cambão ali. Ainda tem, ninguém sabe onde, mas tem,

ainda tem cambãozinho‖. Como o tempo dos higienistas analisados por Latour (1984) que,

através um movimento de acumulação e não de ruptura criam a possibilidade de voltar no

tempo, o que nos dizem os ex-moradores é que o tempo da escravidão é reversível. A

escravidão é capaz de voltar e de seguir existindo para sempre.

A colheita vai ao armazém

Entre os habitantes de Belém, o relato sobre a diária sempre vem acompanhado do

relato sobre o foro. Ambas as práticas descrevem obrigações e sujeições que o patrão ou os

patrões impunham ao morador, e ambas as práticas se associam à categoria escravidão. Seus

relatos não fazem distinção entre quem pagava foro e quem dava diária (como, por exemplo,

na Zona da Mata, o morador de condição se diferenciava do morador foreiro), o próprio

morador devia dar conta de ambos. Quando os ex-moradores e suas esposas descrevem o

foro, encontramos agrupadas práticas que a bibliografia nos ajuda a discriminar: em sua

reconstrução do foro, eles nos falam de arrendamento, mas também de venda e, de acordo

com alguns dados que seus relatos apresentam, parecem vislumbrar-se, além disso, relações

de endividamento, apesar de não falarem nada a este respeito. De modo que, ao mencionarem

o foro, as narrativas reconstroem uma dinâmica que dá conta das ligações entre uma e outra

prática.

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Família, escravidão, luta 116

Os habitantes de Belém explicam o foro como um arrendamento que o fazendeiro

cobrava dos moradores por viverem e trabalharem em sua terra, por terem uma casa e um

roçado na fazenda. Se a diária ocorria todas as terças-feiras, o foro era pago sempre no final

do ano, no ―tempo da safra‖:

Papai plantava muito, muito algodão, sabe? Aí, quando era o tempo da safra,

ele pegava todinho. Papai levava aquele saco, um bocado de sacos, todo

cheinho de algodão, sacão grande, né? Aí, ele pegava todinho o algodão e

deixava para o foro, para o arrendamento, mas chamava foro, um

arrendamento, que trabalhava na terra dele e tal, e levava tudo.

Teresinha assinalou que o foro era pago com o dinheiro da venda do algodão que os

moradores de Belém plantavam. Quando se fazia a colheita, os moradores deviam levar todo

o produto aos diversos armazéns da fazenda para vendê-lo ali. O obtido com essa venda era

usado para pagar o foro. De acordo com os ex-moradores, além do foro ser pago com a venda

do algodão, também o era, algumas vezes, com a venda de outros produtos ou com animais.

O montante a ser pago variava de acordo com o tamanho do roçado do morador, com

a quantidade que este plantara, a qual era medida por mil covas.44

Vários ex-moradores

assinalaram que o foro consistia na metade (ou mais) da produção total do morador. ―Como é

que pagava o foro?‖, perguntei a Antônia de Moreno, uma antiga habitante de Belém.

Teresinha reformulou minha pergunta: ―O foro era muito dinheiro ou era pouquinho?‖, ao que

Antônia respondeu:

Era (conforme), não sei mais nem quanto é que ele [o marido de Antônia]

pagava, mas a gente pagava. Era de duzentos, era de cem, conforme fosse o

tamanho do roçado. [...] (uma) mil cova era um preço, o sítio esse era outro,

o sítio esse era outro.

De modo que o foro variava de morador a morador, o que permite entrever as

diferenças existentes entre um e outro, tal como assinalou Ricardo: ―Aí, no final do ano, o

fazendeiro vinha fazer o foro da pessoa. Aí, conforme fosse o trabalho da pessoa, ele cobrava.

Era oitocentos cruzeiros, cem mil réis, variava os preços. O morador mais forte pagava mais,

o morador menos forte pagava menos‖. De modo distinto ao que ocorria no relato dos

proprietários e dos empregados da fazenda, nas narrativas dos ex-moradores e de suas

esposas, o foro adquire um caráter negativo. Apesar de ser proporcional à produção de cada

morador, dar conta do mesmo significava um grande custo para os moradores. ―O foro era

alto‖, assinalaram os habitantes de Belém. De acordo com eles, este não somente levava

44

Segundo me explicaram os habitantes de Belém, um hectare corresponde a quatro mil covas.

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Família, escravidão, luta 117

consigo qualquer possibilidade de ganho, como também os deixava no limite de sua

subsistência. Como explicou Zeca: ―Todo o algodão que arrumavam não dava para pagar o

foro‖. Era um ―foro medonho‖, observou Teresinha, um foro ―alto demais‖. A alusão à

pobreza ou às privações materiais que os moradores experimentaram naquela época

acompanhou com freqüência os relatos acerca do foro. A falta de roupa e sapatos, a

alimentação precária, as dificuldades para ir à escola e a ausência de médicos, entre outros

assuntos, destacaram-se como a contrapartida do foro do patrão. Jamais sobrava dinheiro para

comprar sequer uma roupa, enfatizou Teresinha, independentemente da quantidade de

algodão que se colhesse, o patrão ficava com tudo.

Não havia recursos para comprar roupa, nem tampouco sapatos, lápis ou caderno para

ir à escola: ―Mais da metade [da produção], ele [o pai] levava para ele [o fazendeiro]. Aí,

tinha pai de família, com filho todo nu, todo descalço, não podia nem estudar, não tinha com

que — que o coitado do pai não podia dar nem o lápis, nem o caderno‖, disse Fátima a este

respeito.

Até mesmo a alimentação dos moradores via-se afetada por conta do foro: ―A gente

ficava até sem comer e vendia aquilo ali para pagar ao patrão‖, observou Vilma, referindo-se

ao foro. Em relação a isto, Gregório explicou que o que eles cultivavam se destinava, em sua

maioria, à alimentação, com exceção do algodão, que era o cultivo que se podia vender e que

devia ser vendido na fazenda. Não obstante, se a pessoa não possuía suficiente algodão para

pagar o foro, tinha que fazê-lo com a venda dos outros produtos colhidos como o milho e o

feijão. Como estes eram destinados ao consumo familiar (através do consumo direto e/ou a

venda para comprar outros produtos), os moradores se viam na situação de sacrificar uma

parte de sua própria alimentação para pagar o foro. Os mais antigos não ganhavam nem um

centavo. Naquela época, as pessoas conheciam o que era não ter para comer, mas não

conheciam os remédios e, em conseqüência, tampouco as doenças, mencionou Antônio de

Ribeiro, e acrescentou que somente conheceu um médico pouco tempo atrás, quando se

operou, já que nunca havia ficado doente antes. Muitos dos poucos moradores que podiam ir

à escola, passavam a tarde sem sua merenda, após ter caminhado longas distâncias para ali

chegar. ―A pobreza era grande naquela época, e o patrão não se importava se estava comendo

bem ou mal‖. O patrão exigia o foro, e o trabalho grátis na diária em qualquer circunstância,

prosseguiu Antônio, lembrando-se da ―história‖de um morador que não podia pagar o foro.45

45

A reconstrução que faço do episódio se baseia em dados da entrevista que fiz com Antônio e em dados de uma

entrevista que Moacir Palmeira fizera anteriormente com ele, no âmbito do projeto ―Memória Camponesa e

Cultura Popular‖, a quem agradeço a generosidade de colocá-la à minha disposição.

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Família, escravidão, luta 118

Mas como o foro tinha de ser saldado de qualquer maneira, com os bens que houvesse, o

patrão ordenou aos empregados que fossem à casa do morador para que este cumprisse

aquilo. De acordo com Antônio, em casos extremos, até mesmo as galinhas eram confiscadas.

Como o morador tinha uma cabra, este animal seria destinado ao foro. Mas o morador

somente tinha essa cabra, cujo leite seria usado para o alimento de seu filho, de maneira que,

para ele, aquilo não era possível:

- ―Doutor, eu não tenho com que pagar o foro esse ano‖, disse o morador ao fazendeiro.

- ―Você tem, você vai ter que pagar. Se você não pagar, você vai pagar na diária, e eu vou

mandar buscar no rabo da burra se você não for‖, respondeu o fazendeiro. Diante da ameaça

de ser castigado, ―para não ir amarrado no rabo da burra‖,o morador disse:

- ―O que eu tenho é essa cabra, que o meu menino vai nascer essa semana e [...] essa cabra aí

é o que eu tenho para dar leite ao meu menino quando nascer. O senhor leve para pagar o

foro, o senhor tire seu foro e mande o resto‖.

- ―Vou levar‖. Sem mais, a conversa foi encerrada. Um empregado foi buscar a cabra e a

levou. Contudo, no trajeto, quando estavam próximos à estrada de ferro, o animal morreu,

mas isso não eliminou a exigência do fazendeiro, que disse ao morador:

- ―Você vai pagar meu foro, agora você não vai pagar mais não, vai pagar na diária‖. Como

resultado, o morador teve de pagar a diária não uma, mas duas vezes por semana.

Deste modo, os moradores eram obrigados a pagar o foro com sua produção de

algodão (ou com grande parte de seus outros cultivos e animais) aos donos da fazenda, e esta

exigência se dava mediante qualquer condição.

No caso do pagamento do foro com algodão, são significativas as sinalizações que

alguns habitantes de Belém fazem sobre a ausência absoluta de ganho, por ocasião deste

pagamento. Era esperável que sobrasse um excedente da venda de algodão, no entanto,

assinalou Teresinha, uma vez descontado o foro, jamais sobrava algum dinheiro para o

morador. Todo o algodão e o dinheiro de sua venda ficavam com o patrão. ―O foro era todo

final de ano. Trabalhava e levava o algodão todinho, coitadinho, não tinha direito a nada,

ficava tudo por conta do foro‖, observou Fátima, evocando seu pai. Como vimos

anteriormente, Zeca, por sua vez, indicou que em algumas ocasiões o algodão não era

suficiente para pagar o foro. No entanto, se o foro não levava tudo o que era produzido pelos

moradores, mas uma determinada proporção que lhes proporcionava uma sobra de algodão,

então o fato de que deixem todo o algodão com o proprietário sem ter nenhum lucro ali — ou

que, como sugeriu Zeca, fique devendo — parece indicar que, com essa quantidade, os

moradores estavam pagando algo mais que o arrendamento e que, ao falarem de foro,

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Família, escravidão, luta 119

também se referem a mecanismos de endividamento, os quais eram centrais para a retenção da

força trabalho na fazenda.46

Ao falarem da ausência (ou escassez) de ganho, os habitantes de Belém não se referem

unicamente ao fato de o foro ser extremamente alto, também mencionam o preço irrisório

pago pelo proprietário pela venda de algodão (com a qual davam conta do foro), assim como

freqüentemente aludem à idéia de roubo. Nos armazéns do proprietário, pagava-se menos do

que o preço corrente no mercado e em seus armazéns, as balanças e os empregados também

pesavam menos do que o real, ou seja, nos armazéns do proprietário se roubava.

Quando entrevistei Serafim — o antigo empregado que se dedicava a pesar o algodão,

inicialmente para Tozé e, mais tarde, para Márcio Araújo — na cidade de Bom Jesus,

Teresinha assinalou que ela o conhecia, que era um vizinho de Taipal. Não obstante, um dia

depois daquilo, mencionou que Serafim era um ―ladrão que roubava o algodão do povo‖. Me

explicou que ele se encarregava de pesar o algodão no armazém Taipal e que, ao fazê-lo,

sempre ―dava de presente‖ vários quilos para o patrão. Serafim era um ―babão‖. As pessoas

levavam seu algodão ao armazém com temor, sabendo que iam ser roubadas, comentou

Teresinha, acrescentando que não havia falado antes sobre isso, já que me percebera muito

contente com a entrevista e não queria me decepcionar ao me dizer que eu havia entrevistado

um ladrão. Tempos depois, o assunto foi discutido com seu tio Joca, momento em que

Teresinha lhe perguntou se Serafim roubava. ―Tinha muito puxa saco, ladrão, mas ele não, ele

era de confiança‖, respondeu Joca. Serafim era empregado no armazém e pesava o algodão,

mas não era ele que roubava e sim o empregado que pesava com ele. ―O povo dizia‖ que

Serafim roubava, mas não era assim, e Joca dizia saber sobre aquilo já que nasceu e se criou

46

Sobre este ponto, ver, entre outros, Palmeira (1979, s/d) e Bastos (s/d). Bastos (s/d) explica este mecanismo

centrando-se em moradores com roçado de meia em propriedades que combinam criação de gado e produção de

algodão no sertão paraibano. Durante o período de plantio, o fornecimento do patrão aos moradores mediante as

mercadorias do barracão (armazém) e/ou mediante dinheiro cria dívidas que originam laços de subordinação

com o primeiro e os retêm na propriedade. Tal fornecimento é um elemento constitutivo do sistema de morada

que ali se estabelece. Este se inicia antes que o morador obtenha a produção de seu plantio de algodão. Os

moradores pagam a dívida com o algodão, já que a produção de milho e feijão se destina ao consumo familiar

(sendo igualmente reservada uma parte para a meia exigida pelo patrão). Como a totalidade da colheita de

algodão deve, por sua vez, ser destinada ao proprietário, ocorre então que o proprietário desconta a dívida da

venda de algodão e, se algo chega a sobrar, este excedente é entregue ao morador. Deste modo, este conseguirá

―tirar a conta‖. No entanto, não somente é possível que não haja sobra, como também que o morador não

consiga saldar a dívida, que é acumulada então para o próximo ciclo. Se isto persiste, o morador terá confiscada

sua produção de milho e feijão. Como a dívida é estabelecida antes mesmo que a plantação de algodão comece a

dar produção, os moradores iniciarão seu plantio já endividados. Tal dívida irá sendo paga com a colheita de

milho e feijão e com dias de trabalho gratuitos para o patrão. Sem a possibilidade de armazenar estes produtos

para seu consumo entre as colheitas e sem poder ganhar dinheiro com o trabalho fora do roçado, o morador

precisará, no período seguinte, de um maior fornecimento do patrão, aprofundando assim sua dívida e

subordinação com este último (Bastos, s/d).

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Família, escravidão, luta 120

junto a Serafim. ―Se ele estiver vivo…‖, ―Ele tá vivo! Tá com 96 anos! Ela esteve lá, já‖,

disse Teresinha.

- ―Esteve? Ah, pois, tá sabendo da vida dele. Eu tô contando agora, não era ladrão

não‖. Para além de quem fora ou não, o importante a se mencionar aqui é que a figura do

empregado que pesava o algodão é para os habitantes de Belém uma figura passível de levar

consigo o apelativo de ladrão e que a operação na qual se vendia o algodão é capaz de ser

denegrida como roubo.

Assim, como se observa nos exemplos, de acordo com os ex-moradores, quando estes

pagavam o foro com a venda de algodão, o fazendeiro roubava o produto e o fazia mediante

as balanças e os empregados. ―A balança era um castigo, a balança comia tudo, não ganhava

quase nada‖, opinou Zeca. Àquilo soma-se o módico preço que o proprietário pagava pelo

algodão. Ao falar sobre o foro, Antônio de Serras assinalou que quando acabava o ano, as

pessoas levavam o algodão aos armazéns, onde o proprietário descontava o foro e entregava o

saldo da venda ao morador. Em seguida, seu filho Luis Eduardo, o vizinho de Teresinha, o

questionou: ―Mas ele roubava muito no peso também, né? Pesava, e os agricultores perdiam

muito‖. Seu padre assentiu e reforçou a idéia, quando explicou que, na fazenda, compravam o

algodão muito barato e pagavam um preço menor ao que correspondia aos grandes sacos de

algodão deixados pelos moradores nos armazéns. Como observou o velho vaqueiro Manoel,

em uma frase já citada no primeiro capítulo, o finado Tozé ―tomava‖ o algodão dos

moradores, ―comia os quilos‖ excedentes e o comprava pelo preço que queria. Os moradores,

por sua vez, eram obrigados àquilo (como também ao foro). Vender o algodão na fazenda era

uma obrigação:

Quem pagava era papai. Papai não vendia algodão a ele lá? Aí, ele pagava

com algodão, ninguém recebia dinheiro, não. Ele não plantava algodão? Não

colhia algodão? Levava para lá, quando pesava o algodão, ele não dava

dinheiro a papai não, ficava todinho o algodão para o foro, não trazia

dinheiro para casa, não. O algodão, se ele fosse vender em outro canto, fazia

muito dinheiro, sabe? Mas vendia a ele mesmo, não podia vender a outro. Se

vendia a outro, ele pegava a pessoa, matava, dava pisa, fazia de tudo, sabe?

Ninguém vendia escondido a outra pessoa, não; só vendia se fosse a ele, que

trabalhava na terra dele, sabe? [...] Só fazia o que ele mandasse, o que ele

quisesse.

―Quem era ele?‖, perguntei a Teresinha, depois que mencionou aquilo. Teresinha me

disse que ―ele‖ eram ―os Melo: Luis, Zé, Josias, tudinho‖ e, antes deles, Tozé. De acordo com

Gregório, a produção da fazenda era a dos moradores, de modo que tinham de trabalhar

muito, ganhar pouco e ficarem calados porque a lei era a do silêncio:

Page 135: Tese Fernanda Figurelli

Família, escravidão, luta 121

Essa história de Belém: muita terra e pouco dono e não tinha produção. A

produção era que o morador plantava algodão, que era a principal fonte de

renda e era obrigado a vender no armazém da fazenda, onde comprava ao

preço que queria: 50 quilos por dez, se era 70 dava 30, 40, e você tinha de

ficar calado porque a lei era do silêncio [...] Então, era aquela época que

você trabalhava muito e lucrava pouco porque tinha que manter a fazenda.

Apesar de aludirem a práticas distintas, a venda de algodão e o foro estão ligados, não

somente porque podiam ser executados de modo simultâneo, mas também porque ambos se

associam a obrigações impostas ao morador que lhe impediam qualquer ganho. Quando

descrevem o foro, os ex-moradores descrevem uma situação na qual se viam obrigados a

pagar um arrendamento em condições que para eles representava um custo elevado. Mas na

maioria dos relatos, essa situação se conjuga com outra na qual se viam obrigados à venda do

algodão em condições que, para eles, eram muito desfavoráveis. A venda de algodão os

prejudicava e, como em vários casos, os moradores deviam pagar o foro com essa venda, o

prejuízo que a mesma lhes causava se estendia também ao pagamento do foro. De modo que a

menção à obrigação de pagar o foro costuma levar também à menção da obrigação de vender

o algodão já que, em muitos casos, a primeira obrigação incluía a segunda. Se essas

obrigações não fossem cumpridas, os moradores poderiam ser expulsos da terra, forçados a

trabalhar de graça mais do que o faziam em média, poderiam ser castigados fisicamente e,

como quase ocorreu com Benedito Aguiar, poderiam ser assassinados. Estar na terra dos

outros significava ser sujeito a estes outros, como assinalou uma antiga habitante da fazenda,

Jacinta de Manaus, ao aludir ao ―tempo de seu pai‖, quando este devia pagar o foro ou a

renda que o dono exigia: ―Na terra dos outros é sujeito a qualquer coisa que querem fazer.

Igual ao tempo de escravos, né? Tinha que trabalhar para pagar aquela quantidade que ele

queria‖. Novamente, a categoria escravidão aparece e de forma generalizada entre os ex-

moradores para designar as experiências que estes relacionaram com o foro. ―É, o tempo era

de escravos‖, concluiu Ricardo, após contar que o algodão devia ser vendido no armazém da

fazenda e que se alguém fizesse algo diferente disto, se o fazendeiro ―soubesse que vendia

fora, mandava dar uma pisa, um chicote‖. Antônio de Serras, por sua vez, também mencionou

a categoria sujeito ao referir-se ao algodão. Como o morador na diária, o algodão na venda

estava amarrado ao patrão; os vigias na porteira impediam o movimento do produto:

O algodão era sujeito; o dono da propriedade ele comprava o algodão, e o

agricultor tinha que pagar o foro no fim do ano. Aí, quando ele botava

algodão para lá, aí o proprietário descontava o foro [...] Era sujeito porque os

pesos eram grandes, e ele comprava mais barato e ele botava aqueles vigias

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Família, escravidão, luta 122

para (pastorear) nas entradas que, às vezes, o agricultor botava aqueles

sacões bem grandes no cavalo e vendia a outro que tinha um preço melhor.

Era quase uma escravidão, sabe? Assim, o povo não tinha a liberdade de

hoje, não.

A liberdade somente podia ser exercida no escuro, às escondidas. Desviar o algodão

sujeito e vendê-lo a quem pagasse melhor requeria que o patrão não tomasse conhecimento da

operação. Se o fizesse, as conseqüências, como vimos, poderiam ser muito graves. Os vigias

que o proprietário colocava nas saídas de Belém tornavam extremamente difícil para os

moradores qualquer movimento que não respondesse às exigências do patrão. De modo

distinto a este cativeiro de épocas antigas, atualmente todos são mais libertos, observou

Antônio de Boa Fé. Atualmente, os movimentos são por decisão própria e não do patrão. Hoje

as pessoas podem fazer o que lhes pareça mais conveniente, podem fazer o que querem fazer

e ir onde querem ir:

Vendia para pagar para ele o foro (a roça, as coisinhas, tinha que fazer

aquele dinheiro), se não pagasse, botava fora, na hora [...] Era muito

cativeiro... Hoje, não. Hoje, o povo daqui é liberto. Nesse tempo, era

cativeiro, era obrigado. Hoje, não. Hoje em dia todo mundo é liberto, faz o

que quer, vai para onde quer, não é mais cativeiro como antigamente, não.

Mas naquele tempo era.

No presente, as pessoas também podem ir à justiça, como disse Antônio de Serras a

respeito das expulsões que, em outras épocas, o patrão podia empreender se o foro não fosse

pago: ―Hoje, vai para a justiça, vai lá para o juiz, vai para o advogado que vai indenizar;

naquela época, não. Era desocupar daqui até final de semana, podia arrumar os trocinhos e

saía, tinha que sair‖. Em comparação com aquele tempo, os habitantes de Belém consideram

que, atualmente, não têm a obrigação de ―vender‖ e ―pagar‖, sob a ameaça de levarem uma

pisa ou um tiro ou de serem expulsos de casa de um dia para o outro, ou de verem, sem a

possibilidade de se defenderem, o gado do proprietário comendo seus próprios roçados para

que sejam desocupados. Atualmente, tampouco estão sujeitos, não estão amarrados por

nenhum laço, nem pela burra, nem pelos vigias da porteira. Hoje podem fazer e dizer. Para os

ex-moradores, hoje não há mais escravidão nessas terras: ―Hoje, ninguém tem essa sujeição,

esse negócio mais não‖, observou Ivaldo Vera. E não há escravidão há bastante tempo.

Quando Zeca chegou, já não era a época de Tozé e, apesar de ―ainda ter uma parte dos Melo

botando sujeição no povo, de pagar foro, de ter que vender algodão a eles‖, a escravidão

quase não existia ―quando chegamos não tinha mais escravidão do povo‖.

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Família, escravidão, luta 123

Tempo dos escravos

A diária e o foro associam-se aos pais. Quem conta sobre estas práticas menciona seu

pai, que era quem ia trabalhar, quem pagava o foro. Apesar de alguns ex-moradores mais

velhos falarem de sua própria experiência nessas atividades, foi mais comum que estas fossem

associassem com ―o tempo do meu pai‖ que, geralmente, é ―o tempo do Tozé‖, ―o tempo que

era de um dono só‖, ou que já se associa com os herdeiros de Tozé, algumas vezes

mencionando-se ―o tempo do Josias‖, ―o tempo do Márcio Araújo‖, ―o tempo do João Melo‖,

―o tempo do Toninho‖ etc. mas este último já não é tão freqüente. No caso dos ex-moradores

mais velhos, eles se referem à diária e ao foro que pagavam ―no tempo do Tozé‖. Antônio de

Boa Fé também se referiu a seu pai, que pagava diária ―no tempo do Juca‖ e Serafim, o

empregado do armazém, ainda recordava o valor do foro que seu pai havia pago ao finado

Juca. Os tempos dos Melo são também ―o tempo de Belém‖, quando a fazenda pertencia a um

único dono, a uma única família: os Melo.

Leite Lopes (1978) observa que as referências aos empregados e aos proprietários da

usina de açúcar na qual enfoca seu trabalho constituem marcos importantes na história que

seus operários fazem de seu grupo social, como também marcam etapas de suas histórias de

vida. De modo análogo, os proprietários de Belém e os empregados, particularmente Zé Jacó,

atuam como demarcadores temporais da história dos ex-moradores da fazenda. O ―tempo do

Tozé‖, o ―tempo do Zé Jacó‖, o ―tempo do Toninho‖ etc. são referências centrais para os ex-

moradores na hora de delimitarem as etapas da história de seu grupo. Seguindo por aqui, é

interessante ver que, em Belém, existe um marco ainda mais característico que é o ―tempo dos

escravos‖, ―o tempo da escravidão‖, ―o tempo que era como escravo‖, ―igual ao tempo de

escravos‖ ou ―o tempo do meu pai‖, ―o tempo que meu pai trabalhava na terra do finado

Tozé‖, ―o tempo que o povo ia pagar diária‖ (e, para alguns em contato direto com o

sindicato, o ―tempo do cambão‖, mas este será tema do próximo capítulo).

Ao analisar o uso que populações camponesas do Nordeste brasileiro (e outras) fazem

da palavra ―tempo‖ (―tempo da política‖, ―tempo da greve‖, ―tempo das safras‖, ―tempo de

Arraes‖ etc.), Palmeira (2002) oferece uma análise que delimita um novo ponto de partida. O

autor não considera o tempo de uma perspectiva cronológica, mas o observa como um modo

com o qual os grupos analisados classificam a estrutura social. A sociedade passa a ser vista

não em termos de ―esferas‖, de ―espaços‖, de uma ordem orgânica ou mecânica, como

assinala o autor, mas em termos de ―tempos‖, tempos que não são fixos, que não são

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Família, escravidão, luta 124

permanentes e que representam ―o que é considerado socialmente relevante pela comunidade

em determinado momento‖ (2002: 175). O ―temporalizado‖ é o conjunto de atividades que,

em um certo período, se adéquam a uma certa finalidade e que são consideradas importantes

pelo grupo. Estas atividades se opõem a um cotidiano que assume o lugar do permanente, do

eterno, do que não tem ―tempo‖ (Palmeira, 2002).

Como vimos, para os habitantes de Belém, a escravidão não é uma categoria histórica,

nem simplesmente uma característica de uma época que já terminou. Para eles, a escravidão é

um tempo no sentido que Palmeira confere ao termo. Para os ex-moradores, o ―tempo dos

escravos‖ não é uma experiência que já terminou, mas uma parte sempre presente de sua

sociedade; parafraseando o autor, o ―tempo dos escravos‖ é uma forma de representar a

estrutura social. A categoria escravidão une o passado às vivências do presente; através da

escravidão, o passado se torna parte da sociedade de todas as épocas. Para os ex-moradores, a

escravidão é um eterno presente ou, usando os termos de Velho (1995), um mal sempre

presente que transcende qualquer especificidade situacional.47

Ainda que já não organize as relações sociais em Belém, a escravidão é um tempo que

continua existindo, um mal que espreita e o faz de ângulos diversos. Os ex-moradores o vêem

na televisão; vêem os trabalhadores que deixam seus lugares de origem para trabalhar nas

grandes plantações onde se deparam com uma situação distinta da que esperavam e ali

permanecem sem poder sair, esperando a sua liberação; como disse Ricardo: ―Pensando que

chega lá e é uma coisa, mas quando chega lá, é outra diferente‖. O que os ex-moradores vêem

na televisão não é simplesmente um programa de televisão, é uma ameaça próxima. Como

muitos outros habitantes de Belém, Henrique, o marido de Consolação, a filha de Teresinha,

comentou comigo sobre sua ida a São Paulo, onde tinha ido trabalhar na construção civil há

doze anos, experiência na qual tinha sofrido muitíssimo: ―A gente não sabe o que tem, até que

dorme com a cabeça em cima de um sapato‖. Naquela experiência, tinha encontrado pessoas

que lhe ofereceram trabalho nos Estados Unidos, o que ele rechaçou, já que não sabia para

onde iria, o que faria, nem tampouco tinha certeza se voltaria. Como Henrique, a quase

totalidade dos habitantes de Belém com quem conversei passaram pela experiência de ir

trabalhar, sozinhos ou com suas famílias, nas grandes metrópoles brasileiras, como Rio de

Janeiro ou São Paulo. Lugares que são ―caminho do roçado‖, para onde se vai e de onde se

47

Velho (1995) associa o cativeiro com a simbólica do mal que se desprende de uma ―cultura bíblica‖ e, neste

sentido, assinala que a categoria transcende qualquer situação para a qual foi produzida. Se a categoria

desprende-se das situações históricas ou de uma cultura bíblica que transcende as situações históricas e que

expressa uma compreensão do ser que as precede (uma pré-compreensão), é uma enorme e clássica discussão,

renovada de forma inovadora por Velho, que se distancia da temática que pretendo discutir aqui.

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Família, escravidão, luta 125

vem todo tempo, mencionou Teresinha. Esta experiência vivem hoje seus filhos, cuja

ausência, de agora ou de antes, foi comentada de forma muito recorrente por seus pais e mães

durante meu trabalho de campo. Na televisão, os ex-moradores observam que a escravidão

ameaça essa experiência. O mal que significa não poder sair do lugar onde se foi trabalhar,

não poder voltar para a própria casa, trabalhar obrigado e de forma quase gratuita ronda as

pessoas que se deslocam em direção a outros estados e desafia, como assinalou Velho (1995),

sua vontade de testar e exercitar a liberdade, a abertura, a possibilidade de relação com o

transcendente, a possibilidade de ―fugir do cativeiro‖.

Por sua vez, o que se vê na televisão não está distante do trabalho que desenvolvem no

próprio lugar de origem. Vários habitantes do assentamento e de outras comunidades

trabalham e/ou trabalharam nas usinas de açúcar que se encontram próximas ao lugar. Os pais

costumam mencionar que seus filhos trabalham no Rio de Janeiro, ou que trabalham nas

usinas próximas ao município em que vivem. Durante meu trabalho de campo, sempre via

estacionado no assentamento um ônibus que era usado para o transporte dos trabalhadores da

cana. Também costumava ver os trabalhadores que iam e voltavam das plantações e, certa

vez, cruzei com eles no ponto de ônibus. Às 5h20 da manhã, estavam esperando os vários

ônibus que se dirigiam no sentido Bom Jesus - Serras e que os levavam ao trabalho. Os

esperaram durante bastante tempo, o que suscitou críticas. ―Hoje, a metade do povo vai cortar

cana‖, observou Antônio de Serras. A atividade na cana é parte do cotidiano do lugar e se, de

acordo com os habitantes de Belém, o trabalho nas grandes plantações é capaz de escravizar,

então, os homens jovens do lugar que se dedicam a isto estão vulneráveis a essa possibilidade.

Várias pessoas viram de forma negativa este trabalho, como Célia do assentamento, que não

queria que seus filhos se dedicassem a isto:

Eu não sei daqui, mas sei que, da Boa Fé, muita gente trabalhou na usina.

Meus filhos, depois que ficaram rapazes, queriam tentar, mas esse negócio

de cana é muito arriscado; o transporte só já é arriscado, e esse negócio com

facão, com tudo... Eles queriam ir, mas eu disse não. A gente vai levando a

vida aqui do jeito que Deus quiser, mas não vai para as canas.

Mas a escravidão segue existindo também de outros ângulos, os quais não contemplam

unicamente a experiência dos homens. O tempo dos escravos se apresenta agora não somente

como uma ameaça, mas como uma experiência que perdura no próprio corpo. O mal do

cativeiro é complexo. Não aparece unicamente como uma absoluta exterioridade que se abate

sobre as pessoas e que delas se separa facilmente, mostrando-se também como um mal

internalizado, um mal que vem de dentro e que coloca em crise a ―solução simbólica‖ de

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Família, escravidão, luta 126

demarcá-lo e externalizá-lo (Velho, 1995). Durante meu trabalho de campo, me surpreendi

com o peso que as alusões à cor da pele adquiriram em minhas conversas com os habitantes

de Belém. O fato de eles serem negros, ou mais exatamente, pretos, foi mencionado em várias

situações. Quando elogiei sua neta, Teresinha me respondeu com a seguinte pergunta: se

realmente me parecia bonita uma menina com aquela cor de pele e, em seguida, acrescentou:

― Você acha mais bonita uma menina preta ou branca?‖ Ao falar sobre uma antiga nora,

Teresinha também comentou que ela era muito descortês com ela porque não gostava de

pretos. Marcela, por sua vez, foi muito sugestiva quando me disse que ainda que não fossem

negros, todas as pessoas que ali viviam ficavam negras devido ao sol. Até mesmo minha pele

branca tinha se tornado mais negra — ainda que a mudança de tonalidade fosse quase

imperceptível. Consolação opinou que não me reconheceriam quando eu voltasse porque o

fato de estar ali, debaixo do sol, tinha me deixado mais preta.

A cor da pele assume um lugar importante nas classificações cotidianas das pessoas do

lugar. Ser negro ou preto significa ter uma pele bronzeada pelo sol, um bronzeado que é

representado como uma conseqüência de se trabalhar por ali. Ser negro associa-se

basicamente com o trabalho agrícola, no qual é impossível se proteger do sol. A agricultura

expõe o corpo ao sol e o torna negro. Mas há mais coisas aí. As pessoas sentem-se negras por

trabalharem no sol, além disso, carregam um passado de trabalho escravo.

Talvez possamos dizer que trabalhando como escravas, as pessoas ficaram negras. A

escravidão do trabalho na diária e do trabalho no roçado de algodão (ou de outros produtos)

para o foro permanece em sua pele e segue reforçando o trabalho agrícola atualmente que,

inseparável do passado, carrega consigo algo de escravidão. Deste modo, o fato de ter uma

pele morena e bronzeada pelo trabalho sob o sol faz com que várias pessoas do lugar se

sintam negras ou pretas, e isto não pode ser visto de forma independente da exploração que

padeceram por tanto tempo. A importância que atualmente assume a classificação das peles

traz consigo uma carga histórica que faz com que um passado de trabalho escravo, um

presente de trabalho agrícola e uma pele bronzeada encontrem um lugar de confluência.

Neste sentido, é possível ver que, não é somente na pele bronzeada que a escravidão

perdura, mas também em outras marcas do corpo que o trabalho agrícola deixou, como na

cabeça mole de Teresinha, em seu ―bico de papagaio‖ ou em seus músculos duros, ―como de

homem‖. As referências de Teresinha a estes traços de seu corpo, provenientes do trabalho, do

árduo e prolongado trabalho que fez durante toda a sua vida, foram constantes. Os problemas

nos ossos e a dor na perna não a deixavam tranqüila um único dia; todo o peso que havia

carregado ao longo desses anos estava agora instalado no corpo e não a deixava trabalhar

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Família, escravidão, luta 127

como antes: ―Trabalhei muito, muito, muito mesmo; nunca tinha pena de mim, nunca tive, até

hoje. Pela minha perninha, não estou podendo agora, mas tenho que fazer, varro o terreiro,

lavo a roupa, passo ferro na roupa, mas hoje estou sem coragem, a perna atrapalha para tudo‖.

Para carregar água, usam-se barris de zinco, Teresinha carregava três ao mesmo tempo: um

em uma mão, outro na outra e o terceiro na cabeça, que ficou mole de tanto transportar peso.

Água, feijão seco, trouxas de roupa, lenha e depois garrafas de gás: ―Carregava que nem

jumento, minha filha!‖, disse Teresinha enquanto fazia a mímica da forma como transportava

esses produtos. Também carregou água em carretas, nas quais chegava a carregar 80kg. É

assim que Teresinha tem a cabeça mole, mas também é ―dura‖, tem os músculos duros dos

braços e pernas, tem músculos ―de homem‖, tem músculos de trabalho. Como Teresinha,

Jacinta tem dores nas pernas e nos joelhos de trabalhar no roçado. Também tem um braço

machucado de buscar água no rio Gameleira e carregá-la por um longo trajeto, no qual ia com

um balde em uma mão e com um pote de barro na cabeça. ―Aí, hoje eu só queixo desse braço

ter ficado assim por causa do caldeirão que eu carregava pendurado, um caldeirão de

alumínio. Pendurava e trazia o pote na cabeça‖. Seu braço é um vestígio de todo o sofrimento

que o trabalho lhe causava: ―Mas era ruim, viu? Oh, sofrimento, Jesus! A gente para viver no

mundo sofre muito, né?‖.

A escravidão perdura e o faz como ameaça ou como uma marca no corpo de um

trabalho agrícola entrelaçado com um passado de escravidão, mas naquelas terras, as relações

sociais já não se organizam segundo um tempo de escravos. Em Belém, o tempo de escravos

coincidiu com a época da fazenda. O tempo de Belém era um tempo de escravos e é a partir

desta classificação que os moradores ganham seu lugar na história de Belém.

Ao falar de escravidão não me refiro a uma situação histórica, mas a uma categoria

central na narrativa dos ex-moradores. Como vimos, o tempo dos escravos é um marco

característico para os habitantes dessas terras na hora de classificar a história de Belém. O

tempo de Belém é um tempo de escravos e os escravos (ou os iguais a escravos) são os

moradores. De modo que este marco com o qual os ex-moradores reconstroem seu passado

lhes permite aceder a uma posição de poder, a uma história própria, a poder contar uma

história própria.

Se o observamos em relação à narrativa dos herdeiros e de alguns funcionários da

cidade de Bom Jesus, isto adquire ainda mais significado. A história da família de fazendeiros

não somente circula na cidade, como também, como vimos nos primeiras partes deste

capítulo, se impregna no relato dos ex-moradores e se torna uma história hegemônica na

região. Não obstante, com o tempo dos escravos ocorre uma ruptura. Apesar de a família

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Família, escravidão, luta 128

Melo impregnar a narrativa dos ex-moradores, a história de Belém que estes constroem se

conforma com outros parâmetros, incompatíveis com a reconstrução dos herdeiros.

Com os habitantes de Belém conforma-se assim uma nova história. O tempo dos

escravos que estrutura essa história a torna suscetível de ser contada pelos ex-moradores.

Belém deixa de ser a fazenda de outros para tornar-se sua própria terra. A história já não se

constrói como ―a história da família‖, mas como ―a história dos escravos‖ e, através deste

movimento, Belém e seu passado, Belém e sua história, deixam de ser da família dos

proprietários para tornarem-se dos moradores.

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Família, escravidão, luta 129

Capítulo IV

A SILENCIOSA PERMANÊNCIA SEM TEMPO

Asegúrate de haber agotado

todo lo que se comunica

por la inmovilidad

y el silencio

Jean-Luc Godard, Historia (s) del cine

Mais além da história

Como vimos, entre os/as habitantes de Belém emergia uma história. Contudo, aquela

não foi a única narrativa que, a partir das minhas perguntas, foi inaugurada entre eles/elas. Ao

longo do trabalho de campo, minha relação bastante próxima com as mulheres me permitiu

acompanhar de perto seu cotidiano e ter acesso a seus relatos sobre a vivência no lugar. Tais

relatos traziam elementos distintos da relação dos moradores com o proprietário e dos demais

aspectos que constituíam a história de Belém reconstruída no capítulo anterior. Entre as

mulheres, outros aspectos faziam-se presentes de modo mais enfático e apresentavam uma

notável recorrência entre elas. Tais aspectos não eram centrais na história de Belém que

minhas perguntas tendiam a incentivar. Como ocorrera com os empregados da fazenda em

relação à história de Belém reinante na cidade, as mulheres fizeram com que me deslocasse de

um núcleo central para as margens da história para, finalmente, dar um passo para fora

dali.No começo do capítulo anterior, observamos a diferença vislumbrada entre as entrevistas

sobre Belém e as visitas aos parentes e vizinhos, entre as narrativas sobre Belém e aquelas

sobre a vida de alguém do lugar. Uma e outra eram questões diferentes e fui me dando conta

daquilo à medida que avançava na pesquisa. Somente depois de algum tempo, entendi o que

Teresinha queria expressar quando, se referindo à minha pesquisa, dizia: ―Ela quer saber de

tudo‖ (―tudo‖ ao qual também se somava a experiência sindical que abordaremos no próximo

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Família, escravidão, luta 130

capítulo). Teresinha que, pelo fato de me hospedar em sua casa, assumiu certa

responsabilidade sobre mim, me estimulou a percorrer diversos circuitos que, no começo, eu

não soube diferenciar.

Muito sutilmente, ela me introduzia na história, ao mesmo tempo em que me tirava

dali, e me mostrava que existiam outros significados em jogo que não se reduziam a essa

história. Quando fomos a Moreno, apesar de termos permanecido por um longo período na

casa de seu tio Joca — porque eu assim o desejava — ela propôs com maior entusiasmo levar-

me na casa de seu irmão, mostrar-me a casa de seus pais, conversar com a sua família e me

falar sobre a sua vida. O relato deslocava-se da família Melo para as famílias dos moradores,

das relações com o fazendeiro para as relações vicinais e parentais, de contar uma história

para contar uma vida.

As mulheres não eram alheias ao tempo dos escravos, nem aos demais elementos

subsidiários que faziam a história de Belém entre os ex-moradores. Elas conheciam e

reconheciam essa história, ajudando-me, inclusive, a mapear a investigação. Quando lhes

perguntava a respeito, falavam sobre aquilo e, nessa narração, era possível entrever um olhar

sobre Belém que punha em primeiro plano o sofrimento que a fazenda representava para os

moradores e suas famílias. No entanto, elas não eram as narradoras recomendadas para falar

sobre esse assunto. Em geral, tampouco era este o tema que mais lhes interessava privilegiar

em seus relatos.

No tempo dos escravos que define a história de Belém entre os habitantes dessas

terras, as mulheres ocupam um lugar secundário. Como observou Fátima: ―Belém era assim

escravidão direto em todos os que moravam dentro; não era só meu pai, era meu avô, eram

meus tios, eram todos os moradores. Todos passavam por isso porque trabalhavam para eles

e, no tempo da colheita, coitados, levavam tudo para lá, para a casa do patrão‖. A escravidão

era a experiência que se assume como experiência do pai, do tio, do avô, do marido, enfim,

era a experiência que se assume sobretudo como a dos homens adultos. O vivido pelas

mulheres em torno a estas e outras experiências fica em um lugar secundário. A escravidão é

uma categoria fundamentalmente masculina e, em conseqüência, também o é a história de

Belém que tal categoria permite definir.

Entre as mulheres, há um resíduo da escravidão, apesar de não serem elas as escravas.

Nas mulheres, a escravidão permanece por meio da negritude ou de seus corpos marcados,

mas não são elas as protagonistas nem as contadoras por excelência dessa história. Por sua

vez, quando relatam as suas próprias experiências, as mulheres (ainda que não somente elas)

tendem a estabelecer uma continuidade entre o passado e o presente, a narrar uma

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Família, escravidão, luta 131

permanência que não se faz histórica, que não se conforma como tal. Para apreender o que

narram, é necessário ir mais além da história de Belém e do tempo dos escravos que a define;

é necessário ir mais além do tempo masculino. Se faz necessário, então, atender à

permanência sem tempo narrada pelas mulheres ou, como assinala Palmeira (2002), à

narrativa de um cotidiano que não é classificado como tempo.

Como vimos no capítulo anterior, as pessoas privilegiadas para que eu entrevistasse

sobre Belém foram os antigos, homens e mulheres, mas com uma acentuada preeminência de

homens (que, por sua vez, também deviam ocupar uma posição de certa hierarquia e respeito

entre seus vizinhos). A situação de entrevista e a palavra pública que esta instituía eram

preponderantemente associadas aos homens. Estimava-se que quem poderia contar de forma

mais adequada a história do lugar a uma entrevistadora que queria saber sobre aquilo era um

homem e não uma mulher. Ainda que repleta de questões pessoais, a experiência contada

pelos homens era considerada de maior interesse público que aquela contada pelas mulheres.

Além de ser remetida aos homens na maioria dos casos, se, nas situações de entrevista,

era o casal que estava presente, o homem era quem tomava a palavra, a mulher se limitando a

intervir na estrutura que o entrevistado e eu armávamos. Quando o homem não estava, as

mulheres preferiam me dizer que voltasse mais tarde para entrevistar o marido, e várias das

entrevistas que realizei com elas somente ocorreram diante da minha insistência em fazê-lo.

Me recomendavam, inclusive, acompanhar algumas conversas de homens que ultrapassavam

o contexto da entrevista, mas aludiam a temas considerados de interesse geral, como as

reuniões entre Gregório e membros de organizações sociais que Teresinha me sugeria escutar

e que falavam da contaminação das regiões próximas pelas usinas ou as reuniões

predominantemente masculinas que se realizavam por questões referentes a projetos de

criação de gado com funcionários de instituições do Estado.

Não eram as mulheres as narradoras da história de Belém. Nem era a elas que cabia

falar em situações públicas. No entanto, nas relações informais ou pessoais que fui

construindo com as pessoas do lugar durante o trabalho de campo, ocorria algo diferente.

Nessas relações, minha posição de pesquisadora ou de entrevistadora perdia seu destaque e

meu vínculo com as mulheres era considerado mais apropriado que meu vínculo com os

homens. Mais do que em um contexto de ―entrevistas‖, tal relacionamento se dava em um

contexto de ―visitas‖ e de ―passeios‖ ou de ―acompanhamentos‖, através dos quais eu podia

circular pelo lugar, conhecê-lo e conversar com as mulheres e seus vizinhos/as, amigos/as,

seus parentes e familiares. Nesses ―passeios‖, me deparei com espaços públicos, outros

espaços públicos que não eram os dos homens. Eram espaços femininos (e alguns também

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Família, escravidão, luta 132

masculinos, mas não hegemonicamente masculinos) aos quais pude ter acesso por meio das

relações mais pessoais e que eu não poderia ter descoberto a partir das minhas perguntas sobre

Belém, o movimento sindical, a diária, o foro e a escravidão. Este mundo colocou em

questão meus próprios interesses acadêmicos e me mostrou que tudo o que neles assumia um

status de ―questão‖ tinha de ver com a experiência dos homens. Os eventos que me

interessavam, o trabalho para os patrões na fazenda, a luta sindical, o conflito de Belém, a

história de Belém me abriam um mundo essencialmente masculino. As perguntas que minhas

categorias de importância sociológica me levavam a privilegiar não faziam mais do que

atender à experiência dos homens — e somente uma parte desta — e deixar de lado a

experiência das mulheres, que não tinham nem tempo nem questão.

A necessidade de Smith de tornar visível o processo social de construção de categorias

e de conceitos sociológicos de um conhecimento masculinamente centrado ganhou para mim

todo sentido, neste contexto: a necessidade de partir da experiência feminina de todos os dias

para poder olhar os sujeitos do conhecimento como mulheres (e homens) que têm corpo, que

conhecem e sentem, que se localizam em um espaço e em um tempo concretos; para poder

olhar a ciência social, seus conceitos, suas abstrações, suas categorias como práticas

socialmente organizadas e dominadas por um ponto de partida masculino, um ponto de

partida em que homens falam com outros homens sobre o que eles consideram importante e

consolidam a validade científica e universal de seus enfoques (Smith, 1992; Collins,1992).

Descreverei, agora, os espaços femininos que ―Belém‖ e a ―escravidão‖ alocam em

um papel secundário da ―história‖ e das ―questões‖. Circularei pela narrativa que foi sendo

tecida em meu contato mais pessoal com as mulheres, no contato que se configurava a partir

de minha estada na casa do assentamento e dos passeios e visitas que fazia nas terras de

Belém e observarei o modo como, a partir de seus espaços coletivos, as mulheres colocam em

primeiro plano uma narrativa diferente.

Trabalhar

Quando conversava com Teresinha e quando a entrevistava, ela enfatizava assuntos

distintos dos que perguntou a seu tio Joca no dia em que fomos a Moreno, como também o

fazia Adelina, que foi mais além nas perguntas de sua filha Maria Clara sobre as terras de

Belém. A primeira vez em que disse à Teresinha que queria ―entrevistá-la‖, ela me respondeu

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Família, escravidão, luta 133

que o melhor horário seria logo após o jantar,48

momento em que estaria mais tranqüila para

―me contar a sua vida‖. Todas as ocasiões que a ―entrevistei‖ ocorreriam nesse horário e na

―área‖, a galeria coberta que rodeia a casa, onde há uma mesa na qual costumávamos comer,

além de várias cadeiras confortáveis. Também ali costuma-se pendurar a rede para descansar,

o que me ofereceram em várias ocasiões após o almoço. A segunda vez em que a gravei,

comecei então a conversa dizendo que me contasse ―de sua vida‖, já que era assim que

Teresinha havia traduzido minhas perguntas no que lhe dizia respeito. Teresinha me

respondeu com uma canção:

Um romance de tristeza e de ilusão

Parece que o destino quis me fazer traição

Mas minha esperança é perdida

Se eu for contar minha vida

Dói em qualquer coração.

[Riu e, em seguida, continuou]:

Já amei, já fui amada

Já vivi bem satisfeita

Nunca pensei que a saudade ia morar no meu peito

Mas minha esperança é perdida

Se eu for contar minha vida

Dói em qualquer coração.

Teresinha começou a ―me contar a sua vida‖, na qual, como ―coisa boa‖ ou como

―sofrimento‖, o trabalho tinha um lugar de destaque. Desde pequena, quando vivia em Monte

Bravo, Teresinha já plantava e colhia. Naquela época, o fazia com sua família, enquanto seus

irmãos homens trabalhavam ―na enxada‖:49

Pois é, minha filha, era assim a vida da gente. Coisa boa. De criança, eu

trabalhava muito no roçado. Eu, com seis anos, já tava no roçado,

trabalhando na agricultura mais meu pai e meus irmãos. Plantava feijão

mulatinho, plantava um monte de batata, plantava milho, semeava fava,

48

As conversas depois do jantar são corriqueiras no lugar. Autores como Cascudo (1956) chamaram a atenção

sobre este fato, que não se restringe à região estudada. Ver, por exemplo, Heredia (1979), que se refere às

―palestras‖ que costumam ocorrer depois do jantar, entre pequenos produtores da Zona da Mata, norte de

Pernambuco. 49

Como observa Garcia Jr. (1983) para a Zona da Mata de Pernambuco e Heredia (1979) para a Zona da Mata

norte, o preparo da terra é uma tarefa considerada masculina, como também o é a realização de aberturas na terra

para o depósito das sementes, tarefas que utilizam, dentre outras ferramentas, a enxada. O depósito das sementes,

a plantação, é uma atividade própria das mulheres. Quanto à limpeza do terreno já plantado, ou seja, a

eliminação da vegetação que cresce ao redor dos cultivos, o que também se faz com a enxada, Garcia Jr. a

menciona como algo essencialmente masculino, apesar de, nos casos de ausência do homem por ter ido trabalhar

na cana, serem as mulheres e os filhos mais novos que se encarregam desta tarefa. Heredia, por sua vez, observa

que essas limpezas são executadas por homens, mulheres e crianças. No que diz respeito à Belém, várias pessoas

mencionaram o boi de capinadeira com o qual limpavam o roçado. Teresinha mencionou que esta atividade era

realizada por seus irmãos, apesar de ela também participar da limpeza do mato.

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Família, escravidão, luta 134

plantava fava, feijão... Colhi muito feijão verde, muito feijão (mulatinho),

muito milho, muita fava, tudo isso a gente fazia.

De noite, às 2, 3 ou 4h da madrugada, Teresinha saía de casa com seu pai e seus

irmãos para trabalhar no roçado. Chegavam ali e começavam a ―apanhar fava‖, a ―quebrar

milho‖, a ―apanhar algodão‖. Naquele tempo, iam se deitar às 7 ou 8h e às 9h já estavam

dormindo. Antes de partir para o roçado, comiam farinha de milho que o pai moía no pilão

com rapadura. ―Era uma riqueza só para nós comer‖. Quando voltavam do trabalho, jantavam,

comiam em pratos de barro: ―Aí lavava tudo, sem sabão, como fosse. Comia de novo, botava

de novo uma farinha de milho, um (mungunzá), era assim a vida‖.

Além de trabalhar no roçado do pai, Teresinha tinha um roçadinho que era a sua

plantação individual.50

O roçadinho dependia dela, a única integrante da família a quem o pai

havia dado um desses. Às 5h da tarde, deixava de trabalhar no roçado do pai e, enquanto os

demais voltavam para casa, ela se dirigia para seu roçadinho. Os demais não eram somente os

irmãos e o pai. Segundo Teresinha, também havia outros ―trabalhadores‖ que atuavam com

eles. Às 5h da tarde, ia buscar água para regar suas plantações. Quando chovia, a água se

acumulava em um reservatório próximo à sua casa, e o trajeto se fazia mais curto que quando

não chovia. Nesse caso, Teresinha ia buscar água mais longe. Para tanto, atravessava todos os

cercados do dono da terra, que não queria que as pessoas passassem por ali porque os arames

e as estacas se enfraqueciam.

- ―Quem não queria?‖ [A interrompi para lhe perguntar um dado que para ela não era

relevante].

- ―Luis Melo‖, me respondeu e continuou. Levava água na cabeça e passava por todos os

arames para poder regar seu roçadinho. Teresinha ia acompanhada por seu irmão Biu (de

Moreno) que era seis anos mais novo que ela e que também era seu afilhado: ―Papai disse:

‗Ela vai ser madrinha do menino, vai ser ela‘, me lembro como hoje. Eu fiquei numa cadeira,

numa cadeirinha de pau, dessa assim, em pé, no batizado. Fiquei em pezinho lá, com meu

braço segurando. Eu e o mulherão, para não cair comigo no braço, né? Para não cair no chão‖.

Biu a acompanhava sempre, e ela cuidava dele e lavava a sua roupa. O pai não a deixava

andar sozinha, somente se Biu estivesse junto.51

Biu era ―seu menino‖.

50

Heredia e Garcia Jr. observam, em relação aos pequenos produtores da Zona da Mata pernambucana (Norte e

Sul, respectivamente), que esta plantação individual pode pertencer a qualquer membro da família que não seja o

pai, que tem o domínio do roçado. A oposição roçado – roçadinho é um tema minuciosamente trabalhado por

ambos os autores. Ver Heredia (1979) e Garcia Jr. (1983). 51

Durante meu trabalho de campo, foi possível observar que não se considera apropriado o deslocamento de

mulheres sozinhas pelo lugar. Enquanto estive por ali, por exemplo, circulei sozinha em pouquíssimas ocasiões.

Teresinha sempre pedia que alguém me acompanhasse, seja nas casas das outras pessoas ou mesmo nos pontos

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Família, escravidão, luta 135

Saía de madrugada para trabalhar no roçado do pai, tarefa que executava até de tarde,

quando ia para seu roçadinho, onde trabalhava até às 18h30: ―De dia, trabalhava para papai

mais os outros. De noite, no meu roçadinho, e de dia no de papai; trabalhava sozinha de

noite‖. Seu roçadinho era de mil cova, ¼ de hectare. Ali, limpava o mato e plantava o mesmo

que no roçado, o que significava que plantava ―tudo‖: ―Era milho, era feijão, era fava, era

batata, plantava tudo‖. Seu trabalho no roçadinho a habilitava para falar sobre o tema quando

as pessoas conversavam sobre aquilo: ―Quando o povo dizia: ‗Eu tenho feijão‘, eu dizia: ‗Eu

também tenho, eu tenho batata, a minha batata já está seca‘‖. E também plantava algodão. Era

seu pai que lhe comprava tudo o que ela produzia e ―botava junto com o dele‖. O pai tinha

muitas cabras e, pelos produtos do roçadinho, lhe dava um dinheiro obtido a partir da venda

daqueles animais.

Assim foi a vida durante três anos, desde seus 15 anos de idade, quando seu pai lhe

deu o roçadinho, até que se casou, quando então foi trabalhar com Gregório, seu esposo. Ao

se casar, Teresinha deixou de estar sob a dependência do pai, e isto implicou a perda de seu

roçadinho. De acordo com Heredia (1979),52

apesar de o roçadinho significar uma autonomia

relativa de quem o tem, também indica a relação social de dependência do filho ou da filha

com o pai, a qual tem fim com o casamento. Quando os filhos se casam, obtêm a maioridade,

o que significa que adquirem sua própria casa e seu roçado, deixando de depender do pai.

Sendo assim, Teresinha corrigiu minha pergunta, ela não deixou o roçadinho quando se

casou, o perdeu, como ocorre com qualquer pessoa que se casa: ―Eu não estava para casar?

Eu estava para me casar já, mulher! Eu estava com 15 anos quando papai me deu esse

roçadinho. Aí, fui trabalhar mais Gregório quando casei. Aí, perdi meu roçadinho, não tive

mais não‖.

Casou-se e continuou a ―mesma vida‖. Continuou trabalhando, como sempre fez:

―Com meu papai, quando me casei, não fiquei trabalhando sempre?‖. Teresinha teve oito

filhos; os primeiros cinco foram homens: ―Todo o ano um homem‖. Depois teve duas filhas e

novamente um homem. Trabalhou muito para cuidar de seus filhos, de dia e de noite. De dia,

trabalhava no roçado, plantava, colhia, limpava o mato e, antes de ir para lá, ―deixava tudo

de ônibus. Marcela, sua neta de 18 anos, foi quem me acompanhou na maioria das vezes, não somente no

assentamento, mas também em outras comunidades para as quais fomos a pé ou em sua moto. Consolação, a mãe

de Marcela, esteve comigo em outras ocasiões, geralmente no assentamento. Além delas, e também dentro do

assentamento, o fizeram Edmundo, o irmão mais novo de Marcela, de oito anos, a quem às vezes se juntou

Renatinho, o neto de Teresinha por parte de Evandro, de três anos. Quem me acompanhava geralmente ficava

comigo na casa da pessoa que eu havia ido visitar. Quando não era este o caso, eu nunca voltava sozinha, já que

algum deles ia me buscar ou me acompanhava alguém da casa onde eu estivera — geralmente, um dos filhos

mais novos ou alguma das filhas. 52

Ver também Garcia Jr. (1983).

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Família, escravidão, luta 136

pronto‖: as favas cozidas, o milho para as galinhas do terreiro… e depois partia. O roçado era

distante, tinha pela frente meia hora de caminhada. O sol saía junto com ela e, quando era

possível vê-lo por inteiro, ela já estava lá. Era um roçado de feijão, de favas, de algodão, de

milho, de mandioca, de batata; ela ―plantava tudo, fazia tudinho na enxada‖.

―Trabalhar na enxada‖ assume aqui um sentido diferente ao que Teresinha mencionou

mais acima para se referir ao trabalho de seus irmãos, um sentido semelhante ao que observa

Heredia quando assinala que a enxada: ―É a ferramenta que simboliza o trabalho no roçado.

Freqüentemente, utiliza-se a expressão ‗trabalho na enxada‘ para indicar que quem trabalha

com ela desenvolve tarefas agrícolas‖ (Heredia, 1979: 60). No entanto, como se observa no

outro uso, essa expressão também adquire um sentido mais específico para designar as tarefas

no roçado que correspondem aos homens. Neste sentido, e no que diz respeito às tarefas

desempenhadas no roçado, é interessante constatar as variações da categoria trabalho em

função do contexto em que é usada. Garcia Jr. (1983) e Heredia (1979) assinalam a categoria

trabalho que adquirem, entre os pequenos produtores da Zona da Mata de Pernambuco, as

atividades vinculadas ao roçado, de domínio masculino, em oposição às atividades vinculadas

à casa, de domínio feminino. Por sua vez, dentro do roçado, as atividades femininas são

percebidas como ajuda em relação às atividades executadas pelos homens, consideradas como

trabalho. Por outro lado, Garcia Jr. indica que as tarefas das mulheres no roçado são trabalho

caso sejam consideradas tendo-se em mente as atividades da casa: ―Por relação às atividades

que se faz na casa, é considerado que esta atividade da mulher no roçado seja trabalho, mas

por relação às tarefas consideradas masculinas no roçado, plantar não é considerado trabalho‖

(Garcia Jr.: 1983: 122). Tendo em conta esta análise, é possível prestar atenção ao fato de que,

em Belém, as mulheres utilizaram a categoria trabalho para designar todas as atividades que

elas faziam no roçado, inclusive o plantio. No entanto, em outras ocasiões, aquelas atividades

deixaram de ser definidas como trabalho, já que foram contrapostas às atividades executadas

pelo homem. Assim, Vilma me esclareceu que não trabalhava no roçado, somente ―plantava e

colhia‖.

Fernanda: E você, no roçado do seu pai, trabalhava?

Vilma: Não, eu plantava. Nunca trabalhei de enxada não, plantava.

Marcela: Planta e colhe, né?

Vilma: Planta e colhe. Eu não gosto de trabalhar de enxada [...] No roçado,

se corta com trator e planta, milho, fava, feijão. Aí, depois, passa o boi da

capinadeira, aí vai limpar com a enxada [...].

Fernanda: E você ainda trabalha? [Perguntei, sem perceber a diferença].

Vilma: Planto, só plantar e colher. Planto feijão, milho, batata, a maniva...

Trabalhar, quem trabalha é meu filho, porque agora, operaram do coração e

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Família, escravidão, luta 137

colocaram um marcapasso no meu marido. Ele vai trabalhar no roçado, mas

não pode limpar mato.

Vilma definiu seu não trabalho em comparação com as atividades de enxada, que

executava seu filho mais velho, já que seu marido não podia mais trabalhar, não podia mais

pegar na enxada. Consolação também assinalou que ela não trabalha no roçado, ―somente

colhe‖, o que se contrapôs ao trabalho de enxada, especificamente à limpeza de ervas

daninhas que crescem em torno dos cultivos, tarefa que considerou a mais difícil de todas.

Antônia, por sua vez, apesar de não ter negado que trabalhou no roçado, achou necessário

esclarecer que não trabalhou de enxada, deixando novamente transparecer o lugar

privilegiado que as tarefas dos homens assumem — na concepção do que é trabalho — em

relação às tarefas das mulheres.

Fernanda: E a senhora trabalhava no roçado?

Antônia: Trabalhava. Agora, eu não trabalhava de enxada, apanhava feijão,

apanhava algodão... Apanhar algodão, apanhar feijão, plantar, quebrar milho,

apanhar fava, tudo isso eu fiz; agora, de enxada, nunca trabalhei. Eu era

solteira, depois me casei, nunca trabalhei de enxada.

Isto não ocorreu somente com algumas mulheres. Ricardo também me respondeu que,

quando era pequeno, não trabalhava no roçado, mas ajudava seu pai — apesar de ter

assinalado depois que eles permaneciam em sua casa, trabalhando na roça (ficar na casa,

neste contexto, significava que não iam dar diária na fazenda). Assim, na ausência de seu pai,

Ricardo considerava que trabalhava, mas se essa mesma tarefa fosse executada ao mesmo

tempo que o pai realizava a sua, então, se convertia em uma ajuda ao trabalho do pai:

Fernanda: O senhor, quando era pequeno, trabalhava no roçado?

Ricardo: A gente ajudava o pai, né? Quando era pequeno, a gente não ia

acompanhar o pai nessa diária, não, porque lá era da fazenda, coisa dele. Nós

ficava na roça de casa, trabalhando em casa.

Deste modo, as tarefas das mulheres e dos filhos no roçado são consideradas trabalho

até serem contrapostas às do marido e/ou do pai. Em outros contextos, quando já não é o

roçado a referência, a categoria volta a se redelinear e se torna passível de ser usada fora do

âmbito agrícola. Assim como Gregório e seu filho referiram-se a seu trabalho no sindicato,

várias pessoas do lugar, sobretudo os mais jovens, assinalaram que trabalham em outros

ofícios além da agricultura — e, inclusive, muitos ex-moradores idosos comentaram que na

ocasião em que viveram nas grandes metrópoles brasileiras, trabalharam em empregos

urbanos. Voltando ao relato de Teresinha, este nos permite apreciar um uso muito específico

da categoria. Se em uma descrição que envolve as tarefas do roçado, as tarefas da casa, o ―ter

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Família, escravidão, luta 138

de dar conta da casa‖ não são designados como trabalho, em troca, em uma descrição de sua

vida, eles o são. Estas tarefas são aí parte do trabalho feito durante toda a vida, uma vida cheia

de trabalho, uma vida ―cheia de sofrimento e tristeza‖: ―Trabalhei que nem bicho, que nem

jumento, para dar conta dos oito filhos que tenho, para dar conta da casa, dos bichinhos que

criava, do roçado, de tudo, noite e dia‖. O trabalho se faz presente aqui para dar conta do

sofrimento da vida. A categoria já não se liga a um exercício dinâmico de classificação das

atividades de alguns em oposição às atividades de outros, mas a um uso que ajuda a

conformar aquilo que se designa como vida. Como mencionei no início desta seção, para

Teresinha, o trabalho se apresenta como um elemento central do ―contar a vida‖ e tanto pode

impregnar tal relato de ―coisas boas‖, como de sofrimentos.

Se, quando era pequena, Teresinha ―só vivia no roçado‖, após o casamento, suas

atividades se ampliaram. De dia, trabalhava no roçado e, de noite e de madrugada, ―tomava

conta da casa‖ e dos ―bichinhos que criava‖. Lavava roupa, alimentava os porcos e as galinhas

e, quando era noite de lua cheia, varria o terreiro: ―A energia da gente era a lua. Quando não

tinha lua, eu não varria terreiro, aí eu varria de madrugada‖ e também de madrugada

costumava ordenar as cabras. ―Eu sofri muito na minha vida, sabe?‖. Para Teresinha, o

trabalho era ―uma beleza‖, mas também a fazia sofrer, trabalhar muito (e outros episódios de

sua vida) a levava a formar a idéia de uma vida sofrida, de uma vida em que ―aperreou‖ para

dar conta da casa, cuidar de seus filhos, mandá-los à escola. Trabalhar muito e fazê-lo, além

disso, durante toda a sua vida não lhe permitiu estudar, fato que se revela atualmente como

uma grande carência: ―Papai não deixou a gente aprender, tinha municipal, uma escola do

estado, bem perto da minha casa, vizinho. Eu não ia, trabalhava de dia; eu estava no roçado,

não ia, não‖. É possível observar a flexibilidade da categoria neste parágrafo: o trabalho é no

roçado por oposição à casa, o trabalho também se define por oposição ao estudo, mas o

trabalho é, além disso, na casa e no roçado e dá conta do sofrimento da vida.

Trabalhar requeria muito esforço de Teresinha e tinha seus momentos ingratos. Os

mais lembrados por ela têm a ver com os trajetos que fazia para ir lavar roupa, quando já não

havia sol. O mandão de um proprietário posterior aos Melo estava noivo de uma prima de

Gregório e somente permitiu que Teresinha usasse o açude para lavar roupa, proibindo o

acesso aos demais, apesar de seu pedido para que também o permitisse às suas vizinhas. Com

vergonha de que as vizinhas a vissem usando o açude, ela ia lavar roupa escondida nesse

horário noturno. Teresinha levava uma grande quantidade, todas as noites. Não era para ―ser

bonita‖, não era para ―se mostrar‖, não era para ―se exibir‖. Lavava porque gosta de limpeza,

porque gosta de ter sua roupa limpa e porque queria que seus filos fossem limpos para a

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Família, escravidão, luta 139

escola. Todas as noites saía de sua casa e partia em direção ao breu total que, às vezes, não

permitia ver, mas escutar ruídos de assombrações. Uma vez, chegou a ver uma, era um

velhinho que já havia morrido. Não fez nada, não falou, não a olhou, somente passou

caminhando ao lado dela; carregava água e ia para casa. Teresinha se assustou. Quando

passou do seu lado, seu cabelo se arrepiou. Não pôde mais sustentar na cabeça o apoio que

colocava debaixo do barril de zinco cheio de água. Tentava segurá-lo, mas ele caía. Tentava

colocá-lo de novo e voltava a cair e, assim, chegou em casa com o barril de zinco na cabeça e

sem o apoio. A noite tinha assombrações, a noite tinha perigos, a noite gerava medos. Como

seu pai o fazia quando ia à diária, cujo regresso também estava impregnado de medos e

escuridão, Teresinha devia trabalhar de noite. Todas as noites lavava e todas as noites

carregava água. ―Trabalhei muito‖, observou Teresinha e continuou falando sobre como fazia

para transportar uma quantidade de água tão grande.

Além disso, Teresinha preparava as comidas; triturava o milho no pilão e o cozinhava:

Botava a noite todinha numa panela de barro grande e muito fogo no fogão

de lenha. Aí, raspava coco de madrugada, raspava dois, três cocos, botava o

leite. Botava leite dentro do milho, aquela beleza, minha filha! Aí, eu sei

minha filha que era assim. Era (panela de macaxeira de noite), (panela de

milho), fazia cuscuz, fazia mungunzá, fazia canjica, fazia pamonha, fazia

muito, na época, minha filha. Dava ao povo. As vizinhas tudinho levava;

dava para um, dava para outro.

Todos os trabalhos que fez em sua vida e, especificamente, o trabalho na cozinha,

também se apresentam para Teresinha como espaços de sociabilidade. A cozinha, como se

pode ver na citação, é um lugar de troca com as vizinhas, ao passo que a roupa limpa é um

modo de apresentação na escola e requer, além disso, um trabalho que, em uma determinada

época, as vizinhas realizaram em um lugar compartilhado. Por outro lado, o roçadinho lhe

conferia a possibilidade de socializar-se, lhe dava um entendimento que depois lhe permitia

conversar com outras pessoas sobre determinados temas. Voltarei a esta questão mais adiante.

É bastante extenso o relato de Teresinha sobre tais atividades. Ela as explica em

detalhes e, para tanto, se vale das palavras e da mímica, além de me mostrar algumas das

ferramentas utilizadas na realização das mesmas, entre elas o pilão. ―Deixa eu tirar uma foto,

Teresinha‖, lhe disse enquanto me mostrava seu desempenho no pilão. A primeira foto saiu

com a cabeça baixa, e Teresinha não gostou. Me disse que a tirasse a foto com a cabeça alta e

olhando para a câmera. Dessa, sim, ela gostou. Em geral, Teresinha deixava que eu tirasse

fotos e lhe parecia apropriado que registrasse tudo aquilo da casa que tinha de ver com as suas

tarefas, como os animais do terreiro, a pequena construção nesse terreiro onde as galinhas

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Família, escravidão, luta 140

põem seus ovos, a farinha que estava secando ao sol, o beiju já preparado com o leite de coco,

as pilhas de feijão no chão da área e, inclusive, fotos dela debulhando os feijões. Mas não

qualquer feijão. Teresinha preferiu que não a fotografasse debulhando feijões secos, e sim que

o fizesse quando estivesse debulhando os feijões verdes, que eram mais bonitos. E assim o fiz.

Teresinha, por sua vez, também se lembra do MOBRAL,53

no qual atuava seu esposo.

Ele ensinava a ler e o fazia em sua própria casa. Nessas ocasiões, Teresinha preparava a

merenda para os alunos. ―Gregório ensinava em casa. Vinha o povo, e eu fazia merenda e

botava água, botava lenha, aí botava no fogo. Era tudo cheio de bichos, de gorgulho, aí

peneirava, fazia aquele cuscuz, tinha aveia, fazia fava, fazia tudo, era a merenda da escola

dele‖. De modo distinto ao que ocorria com a irmã de seu esposo, Teresinha trabalhou por

mais de 15 anos, e o governo nunca lhe pagou:

Ele ensinava, e quem fazia merenda era eu, para o prefeito nem me pagar;

nunca me deu nem um (tostão), nunca me deu nada. Trabalhei mais de 15

anos, nunca me deu nada. A irmã do Gregório, quando ele começou a

ensinar, ela foi logo ser merendeira e ganhava um salário naquele tempo. E

eu trabalhei 15 anos, era merendeira e nunca ganhei nada [...] e eu ajeitava

tudo, mulher! Lavava a louça todinha, dava para os meninos comer e nunca

ganhei nada.

Como este, também houve outros trabalhos que nunca reconheceram. Quando vivia

em Lagoa do Gibão, Teresinha lavava a roupa dos jogadores das partidas de futebol que

ocorriam aos sábados e domingos, nas quais seu esposo atuava como árbitro: ―Aí, tinha um

jogo de bola no sábado, sábado e domingo. Eu lavava roupa do jogador e nunca ganhei nada,

e assim era‖. O trabalho se apresenta aqui como um trabalho para o outro e, este último, como

assinala Sigaud (1971), tem o sentido de ―fazer salário‖. No entanto, a inexistência do

pagamento desqualifica seu reconhecimento como trabalho. Assim, não somente o trabalho,

mas também o trabalho não reconhecido, ou melhor, a ausência de reconhecimento, ajuda

Teresinha a compor o relato sobre a sua vida.

Como Teresinha, as outras mulheres também centraram seu relato nas tarefas que

realizaram ao longo dos anos. Como já observamos, seja no roçado ou fora dele, estas tarefas

eram algumas vezes nomeadas como trabalho e outras não, o que dependia do contexto no

qual eram mencionadas. Em Manaus, a filha de Maria Clara insistiu para que eu entrevistasse

sua avó, Jacinta, que fabricava instrumentos de barro. A conversa com Jacinta também se viu

profundamente marcada por este trabalho ao qual se dedicava desde pequena e, uma vez mais,

53

Este ensino vinculava-se ao Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL), programa governamental

criado durante a ditadura militar, que substituiu o Programa Nacional de Alfabetização (que utilizava o método

Paulo Freire), reprimido naquele período.

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Família, escravidão, luta 141

este me mostrou sua centralidade na vida que as mulheres me contaram. Falemos, então, sobre

isto, antes de encerrar esta seção.

As pessoas do lugar usavam utensílios de barro, mencionou Jacinta. Sua mãe e depois

ela própria os fabricavam. Também o faziam umas primas delas, que eram de Serras.

Anteriormente, o fazia sua avó, que ensinou à sua mãe e esta, por sua vez, a ela. E, assim, o

saber foi atravessando as gerações de mulheres da família, apesar de o marido de sua avó

também ter se dedicado a este trabalho. Jacinta acredita que, após sua filha, esta cadeia será

interrompida. O trabalho é muito difícil e, hoje em dia, as pessoas não lhe dão valor: ―Aí,

depois de mim e da minha menina, eu acho que se acaba, não tem mais quem queira fazer

isso, né? Esse é um trabalho que quase ninguém faz. É difícil uma pessoa fazer, mas também

não tem muito valor, ninguém, não, dá valor‖.

Jacinta trabalha por encomenda. Além disso, vende seus produtos na feira de Serras, já

que Bom Jesus fica mais distante. Todos os domingos, pega um carro que passa pela estrada e

vai em direção à feira: ―Tem dias que vende, dias que não vende, e é assim‖. Antes era

diferente. Quando era pequena, acompanhava sua mãe que ia vender na feira de Bom Jesus,

mas isso era menos freqüente que a venda por encomenda. Quem mais o fazia à sua mãe era a

esposa do finado Tozé, que lhe encarregava de fazer grandes jarras, panelas e vários outros

instrumentos de barro. Da zona de Manaus, onde viviam, ao lado do caminho principal, se

dirigiam até a zona de Bom Jesus, na casa do finado Tozé, a sede da fazenda. Nesse trajeto,

Jacinta ia sentada no cavalo e sua mãe, que não andava a cavalo, ia a pé com uma jarra na

cabeça. As demais jarras (costumavam ser três) eram amarradas em ambos os lados do

animal. ―Foi muito lutadora ela, trabalhadora‖, disse Jacinta.

- ―Ela andava só de pé, né?‖, perguntou Celine.

- ―Era, só andava de pé, não queria andar de carro. Ela dizia que tinha medo de ir de carro,

também os carros nesse tempo, era difícil, os que passavam eram muito carregados‖,

respondeu Jacinta.

Naquela época, sua mãe vendia bastante porque não havia água corrente. As pessoas

iam buscar água no rio, nas cacimbas, nos açudes e a transportavam em grandes vasilhas de

barro que transportavam na cabeça e em barris de zinco. Além disso, ―o povo‖ cozinhava com

lenha e, para tanto, usavam as panelas de barro para batata, para feijão, para carne: ―O povo

fala que a comida de barro é muito gostosa‖. De modo que não somente vendiam à esposa de

Tozé, mas também a seus vizinhos, entre os quais,o pai de Teresinha.

Quando sua mãe envelheceu, já não pôde mais trabalhar no barro. Os 80 e tantos anos

lhe disseram o que já não voltaria a fazer. Mas ela não deixava que a idade a abatesse tão

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Família, escravidão, luta 142

fácil, continuava modelando o barro e pedia a Jacinta que terminasse de ajeitar o que havia

feito. Jacinta fazia então o ―acabamento‖.

Soprava um vento agradável, e estávamos sentadas em frente à sua casa: Jacinta,

Celine, a filha de Maria Clara e eu. Enquanto saboreávamos pitombas, acompanhávamos o

relato de Jacinta que, em um determinado momento, requereu a companhia de suas criações

de barro e ferramentas de trabalho. Jacinta entrou em casa para buscar os objetos e, agora sim,

e com a precisão que desejava, pôde começar a me explicar o que fazia desde os dez anos de

idade — e mesmo antes, com a ajuda da mãe. Com sua mãos e sua voz me falava sobre o

polimento, o acabamento, a qualidade do barro, o cozimento e, tal como Teresinha, recebia

com prazer meus pedidos para tirar fotografias de seu trabalho. Quando era iniciante, o

acabamento era feito por sua mãe e o desta última, por sua vez, o fazia sua avó, e assim o

barro ficava modelado em um canto, esperando para ser retocado pela mais experiente. A

mais experiente das oleiras e não das louceiras, como elas são geralmente chamadas,

observou Jacinta: ―O nome da gente é oleira, é o negócio do barro, né?‖. Atualmente, ela está

aposentada, mas continua trabalhando naquilo que está acostumada a fazer e que perdura: ―A

gente é costumada, né? Eu já estou com 64 anos, vou fazer 65 em dezembro. Aí, já estou

aposentada, não precisa mais, não, mas a gente que é acostumada a trabalhar, fazer aquela

profissão, gosta de fazer isso‖.

Além de trabalhar com o barro, também o fez no roçado e igualmente em uma escola

municipal de Serras. A dona da fazenda, que já não era a esposa de Tozé, mas a esposa de um

dos novos proprietários que haviam comprado parte de Belém, lhe conseguiu aquele trabalho.

Ali preparava a merenda e limpava os banheiros. Para cozinhar e limpar, devia buscar água e

em bastante quantidade, o que ocasionou uma lesão leve em seu braço. Durante esse período,

continuou modelando o barro. Quando o trabalho na escola era em dois turnos, modelava nos

dias de jornada integral e, quando o trabalho era de meio expediente, modelava e fazia as

tarefas de casa durante a metade restante.

A permanência sem tempo

Seja ou não no roçado, é possível observar como, entre as mulheres, alguns trabalhos

adquirem um caráter de permanência e dão sentido ao ―sempre‖. O trabalho foi toda a vida e

continua, não tem tempo, não pertence ao tempo dos escravos, apesar de ter a marca deste

último. Não obstante, não ocorreu unicamente com as mulheres; também entre os homens, o

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Família, escravidão, luta 143

trabalho — fundamentalmente o trabalho no roçado — apresentou-se como uma experiência

constitutiva que permaneceu ao longo dos anos. Se o trabalho para os patrões teve o tem um

tempo,54

o trabalho no roçado, na casa ou com o barro perdura. O presente e o passado

mesclam-se e a vida vai e vem, não se interrompe, o passado não se transforma em história.

Através do trabalho, o passado permanece e deixa de ser classificado como um tempo.

Geralmente, iniciava minhas conversas com os ex-moradores e suas esposas

perguntando como era a sua vivência em Belém. Algumas respostas assinalavam o

nascimento e a permanência no lugar: ―Eu nasci e me criei em Belém‖ e, em seguida, se

referiam à fazenda, aos Melo, a Zé Jacó, ao tempo dos escravos, entre outros elementos da

história, que ganha sentido como uma história antiga. Outras respostas, por sua vez, não

falavam de uma história de Belém e estabeleciam uma continuidade, um eterno gerúndio que

falava do próprio trabalho. Apesar das exceções, é possível assinalar uma tendência e dizer

que o primeiro ocorria principalmente entre os homens, enquanto o segundo costumava

ocorrer entre mulheres. Quando os homens falavam de seu trabalho, tampouco deixavam de

marcar uma permanência, apesar de já não ser considerado uma parte central do relato sobre

Belém e sua história. Seu trabalho no roçado e com o gado era algo de sempre, ainda que com

mudanças através dos anos.

Desde muito cedo, as pessoas começaram a trabalhar. ―Nascemos na agricultura e se

criamos trabalhando, né?‖, esta foi a primeira frase da entrevista gravada com Francisca de

Manaus. Fátima, por sua vez, no início de nossa conversa gravada, afirmou não se lembrar

muito bem de Belém e dos enfrentamentos entre patrões e moradores, mas sim recordar que,

quando ela e seus irmãos eram ―filhos‖, trabalhavam com seu pai na terra do finado Tozé, a

quem era preciso pagar o foro. Com os anos, continuaram trabalhando no mesmo lugar, em

Belém, onde nasceu e se criou, um lugar que agora era terra própria e não exigia foro. Desde

os sete anos, Fátima trabalha ―na agricultura‖, e aquele começo faz com que se lembre do pai

e da ―escola que lhe deu‖. Ele a ensinou a trabalhar e teve de lhe ensinar coisas que

atualmente a fazem rir, como distinguir uma planta cultivada de uma erva daninha, ―porque

tinha um mato parecido com milho, então eu cortava tudo‖. Fátima ri com essa lembrança e,

em seguida, me diz bastante séria que, junto com seu marido, criou os filhos na agricultura e

quase todos eles puderam freqüentar a escola: ―Não tem outro emprego, só emprego de

agricultor. Desde que nasci que sou agricultor e vou morrer assim. Não tem como estudar para

trabalhar; eu trabalho no roçado e trabalho em casa‖.

54

Não é assim com alguns vaqueiros, como João Vitor, para quem o trabalho para um patrão adquire um caráter

de permanência.

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Família, escravidão, luta 144

Jacinta também se lembra de seu pai, que a ajudava no roçado, onde começou a

trabalhar, segundo se lembrava, com nove anos. Nas carreiras de milho, necessitava da ajuda

de seu pai, ela era pequena. ―Pequena não‖, riu, era ―nova ainda de idade‖, já que, quando

cresceu, continuou sendo pequena, disse, em relação à sua estatura e riu novamente. E aquilo

continuou, tal como a modelagem do barro. Quando pequena, trabalhou com seu pai; depois,

com seu marido, e quando ele morreu, ela continuou sozinha. Trabalhou e ainda hoje trabalha,

ainda roça o mato, cava leirão, planta batata, milho… se pode fazê-lo, o faz, já que, em

algumas ocasiões, sente dores nos joelhos.

Célia vive no assentamento e é casada com um antigo vaqueiro do último proprietário

da Fazenda Laranjeira, que foi depois desapropriada. Ela é mais jovem que as mulheres

anteriormente citadas. No entanto, quando se refere a seu trabalho, ao trabalho que realiza

atualmente, começa, tal como as demais, falando sobre seus pais e sua família, mas

principalmente de seu pai. Seus pais ―foram nessa vida mesmo de agricultor, de trabalhar na

agricultura, na colheita de milho, feijão, farinha... Eu nasci e até agora os trabalhos de nós foi

na agricultura, trabalhando na roça‖. Não obstante, quando se refere ao algodão, Célia não

traça uma linha contínua. Este cultivo se associa à sua infância, ao tempo em que seu pai

trabalhava para o dono da Fazenda Laranjeira e ela e seus 13 irmãos o ajudavam: ―Para o

doutor Ademar, a gente trabalhou muito apanhando algodão‖. ―Amanhã, a gente vai para o

algodão‖, lhes dizia seu pai, e o trabalho começava. Célia e seus irmãos partiam muito cedo.

Quando era noite de lua cheia, o pai os despertava dizendo que eram 3h da manhã, mas para

ela era meia-noite.

- ―Pai, o senhor acordou foi na meia-noite‖, diziam ao pai.

-―Foi não, que os galos estavam todos cantando, já era acho que umas três horas‖, lhes

respondia o pai.

―Quando era meia-noite, ele acordava dizendo que eram três horas, sem ser, menina!‖,

observou Célia e se lembrou do sonho que costumava ter, nessas ocasiões, e a vontade de

dormir nos sacos de algodão. Às 18 ou 18h30 iam dormir e ―quando nós estava dormindo,

achando bom, aí vem ele acordar de novo‖. Célia riu com aquela lembrança. Demoravam

bastante para chegar nos campos de algodão e quando o faziam, começavam a colher junto

com seu pai. Conseguiam encher de cinco a seis sacos por dia, uns sacos de estopa que ela

lembra que eram enormes. E toda a semana era ―nessa luta‖, que os deixava muito cansados.

Foi no ―tempo do doutor Ademar‖, até o momento em que este mesmo proprietário deixou de

plantar algodão. Antes, ―no tempo do Márcio Araújo‖, seu pai também trabalhou e ainda

mais. Célia não se lembra se também trabalhou, porque era muito pequena: ―Se eu trabalhei,

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Família, escravidão, luta 145

não lembro, agora, no tempo do Doutor Ademar, eu trabalhei demais‖. Depois concluiu: ―Mas

o pobre tem que sofrer mesmo, aí a vida era isso mesmo‖.

O pai de Célia é Antônio de Boa Fé. Ele me contou que começou a trabalhar na

agricultura com oito anos de idade e assim continuou, ainda que atualmente já tenha sua

aposentadoria e já não trabalhe como antes.

- ―Tudo o que se plantava aqui dava. Nessas terras, podia plantar inhame, podia plantar

macaxeira, podia plantar roça, podia plantar feijão mulatinho, milho, fava, tudo o que a gente

plantasse dava‖, observou Antônio.

- ―E algodão?‖, lhe perguntei.

- ―Algodão também trabalhava. Aí, depois que deu esse bicudo, não se plantou mais, não‖, me

respondeu e ligou o cultivo a uma época na qual ainda havia proprietários: ―Mas todo mundo

aqui trabalhava essa fazenda quando era do Zé Melo [...] plantava todos os anos, fazia a safra

para vender, mas depois veio esse negócio desse bicudo‖. Tal como no relato de Célia, o

trabalho com o algodão ficou com Antônio, fora da linha de permanência.

Isto não ocorreu unicamente com Antônio. Os demais homens também se referiram ao

trabalho na agricultura como um trabalho ―de toda a vida‖:

- ―Seu nome completo‖, disse Teresinha a Joca para que dissesse para mim. Joca então

começou:

- ―Meu nome é João Francisco Gomes, tá ali nos meus documentos, tudo. Estou dentro de 87,

graças a Deus [...] Eu vivo e eu (não pago a Deus o que deu). Sozinho, aleijado da coluna,

mas aqui não falta de comer na barraca. Tem feijão verde, feijão seco acabou com a chuva,

né? Se você entrar e ver meus bonecos que estão aí, eu tenho bonecos deste tamanho, meu

feijão está assim, entendeu? Não falta comida para mim, eu toda a vida trabalhei, né? Estou

acostumado‖.

Por outro lado, se ―poucas pessoas em Belém tinham um gadinho‖ e ―a maioria não

tinha nada, não. Às vezes, criava um bode ou uma cabra‖, com o passar do tempo, a criação

de animais foi ganhando maior importância. Alguns, como Antônio de Serras, que pronunciou

aquelas frases, chegaram a se dedicar quase integralmente a esta atividade: ―Eu trabalhava na

agricultura e depois era uma pecuariazinha, pouca, mas fiquei lidando com bicho. A gente

criava um gadinho. Me casei e passei dez anos trabalhando na agricultura ainda. Aí, depois,

fui lutando, fui lutando... Aí depois um bichinho, um gadinho‖.

Para voltar às mulheres, quando lhe perguntei sobre a sua vivência em Belém,

Adelina, que já foi apresentada no capítulo anterior, me respondeu:

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Família, escravidão, luta 146

A minha convivência era quando meus pais criaram a gente dentro do roçado,

trabalhando na agricultura. Minha mãe teve 14 filhos, a gente se criou no

(cabo) da enxada, nascemos e se criamos nesse lugar, nunca fui para canto

nenhum. A gente ia para o roçado, cavava leirão, (pegava a) enxada, plantava

mandioca, colhia feijão, tudo. A gente fazia o serviço da gente, a gente se

criou no serviço, mesmo. Uma pessoa, quando arruma emprego, não fica

naquele emprego? Esse era o serviço da gente. Aí casamos, ficamos na mesma

vida. Há seis anos que eu não estou mais com ele [se refere ao ex-marido].

Adelina fala sobre si, aludindo a um ―nós‖, a uma experiência de vida compartilhada

com seus pais, seus irmãos e seu marido, com quem desenvolvia um trabalho coletivo que

persistiu ao longo dos anos (me referirei a isto mais adiante). Enquanto Adelina falava de seu

trabalho e da continuidade desse trabalho, sua filha Maria Clara lhe disse: ―Diga para ela se

trabalhava na terra dos outros‖. Aquilo foi muito sugestivo para mim, já que voltava a trazer

alguns elementos centrais da história de Belém que seus habitantes contam, de uma Belém

que já não existe. Com essa frase, Maria colocava novamente no relato o que, de acordo com

ela, eu estaria buscando: uma história antiga e não uma permanência.

Adelina referiu-se, então, à frase de sua filha e falou sobre o foro que todo final de ano

pagavam ao proprietário, sobre como era difícil pagá-lo, sobre a fome que passavam e, assim,

começou a me introduzir no tempo dos escravos. De fato, como todos os ex-moradores

assinalaram, viver e trabalhar na terra de outros é parte de um sistema que já não existe em

Belém; o que persiste é a terra e o trabalho, a fazenda desapareceu. O trabalho para o patrão é

de outro tempo, um tempo que organiza as relações sociais em outros lugares, mas não

naquelas terras nas quais somente existe como vestígio.

De tudo aquilo que era a fazenda Belém, perdura o trabalho para si e também a terra.

Não ocorre o mesmo com a casa. Não ir a ―canto nenhum‖ não significa que Adelina sempre

tenha vivido na mesma casa e sim na mesma região. As casas eram do proprietário e foram

freqüentes as mudanças que tiveram de realizar quando as terras eram de outros, experiência

que se apresenta de forma marcada no relato das mulheres. As mudanças que estão em jogo

aqui não eram as relacionadas ao casamento e à constituição da própria família, mas as que

ocorriam a partir da venda de terras por parte dos proprietários. Se algumas vezes a venda

significava unicamente uma mudança de proprietário, em outras, significava a obrigação de

sair dessa propriedade e ir viver em outra casa; geralmente, iam para uma zona próxima,

dentro do território que era ou havia sido da fazenda Belém. Quando as terras eram dos outros

— assinalou Adelina — ―não tinha condição de fazer uma casa‖. Quando ela se casou, morou

em uma casa que o proprietário havia conseguido. Não obstante, passaram poucos dias ali, já

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Família, escravidão, luta 147

que foi ―o tempo que o homem, o dono da terra, ia vender a terra‖, tiveram de ir para outro

canto e ali construíram uma casa de barro.

Além de serem motivadas pelas vendas de proprietário a proprietário, as mudanças dos

moradores também eram feitas quando ―não dava certo com o patrão‖, como observou

Antônia de Moreno. Em seus 81 anos de vida, ela morou em 22 cantos diferentes.

- ―E por que a senhora mudou tanto de um canto para outro?‖, lhe perguntei.

- ―Porque a gente trabalhava, mas não dava certo com o patrão, sabe? Aí, eu trabalhava um

ano num canto, não dava certo com o patrão e saía para (boiar) na terra de outro. Aí,

trabalhava um ano, dois... Já não dava certo também, não. Nós já saía para trás de outro, por

isso que eu me mudei muito, sabe?‖, me respondeu.

Antônia está há mais de 30 anos neste lugar e observou que dali ―se Deus quiser, sai só

no cemitério‖. Seu marido e seu cunhado compraram essas terras em Moreno, onde

permaneceram. Situação análoga ocorreu com os outros habitantes de Belém, que deram fim

às mudanças quando foram morar em terra comprada por eles, em terra comprada por algum

familiar, como o pai ou, como no caso de Teresinha e Gregório, na terra que ganharam na

justiça. Quando Teresinha se casou, em 1964, continuou morando em Monte Bravo, mas em

uma casa localizada na margem do rio, numa zona que pertencia a Josias Melo. Depois, Josias

os expulsou dali, chegando, inclusive, a derrubar algumas casas, como a do irmão de

Gregório: ―Passei uns dez anos morando na beira do rio, foi o tempo que Josias Melo não quis

mais ninguém lá, na beira do rio. Aí: ‗Eu vou para onde?‘ Eu chorava todo dia para não sair

da beira do rio. Eu não queria sair, era tão bom minha casa, assim, bem bonitinha‖, observou

Teresinha. Gregório ―botou uma questão na justiça‖ e, graças à ajuda de um tio que atuava na

aeronáutica, ele e seu pai ganharam dez hectares em Lagoa do Gibão, região que também

pertencia a Josias. Dali foram para Lagoa do Gibão, para o que agora era a sua terra, do outro

lado do rio.

Trabalha(mos): contar no invisível

De modo que, nem a casa, nem o trabalho para os fazendeiros perdura, o que

permanece é a terra e o trabalho para si. Voltando a este último, é possível entrever o caráter

de sociabilidade que o trabalho ganha para as mulheres. Como vimos com Teresinha, poder

falar sobre o que os vizinhos falavam, graças à sua experiência no roçadinho, trocar comida

com as vizinhas (e receber as visitas com comida), graças à sua tarefa na cozinha, reunir-se

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Família, escravidão, luta 148

com elas no lugar de lavar a roupa ou poder apresentar seus filhos com o uniforme limpo

numa instituição pública como a escola são aspectos inseparáveis do trabalho. Jacinta, por sua

vez, a partir da olaria se relaciona com outras mulheres e vai à feira, como também o fazia sua

mãe, enquanto Adelina, Célia e Fátima (assim como Teresinha e Jacinta) nos falam do roçado

como espaço de trabalho coletivo e de socialização na vida do lugar. Neste sentido, é

sugestivo o relato de Ana. Ela vive próximo a Celine, de quem é tia, uma das irmãs de sua

mãe. Foi uma visita o que nos levou ali e, por um pedido meu, houve um momento de

entrevista, de conversa gravada, apesar de Celine não ver sentido naquilo. Ana, como as

demais mulheres e homens, havia se mudado várias vezes por não poder comprar as terras do

sítio Água Branca, que Josias Melo, em primeiro lugar, e outros proprietários, em seguida,

foram vendendo, ou por não poder continuar nas terras desses novos proprietários, que já não

queriam moradores e ―mandavam embora‖. Tal situação teve fim quando ela e seu marido

conseguiram comprar umas terras no sítio Manaus (em frente a Água Branca).

Ana também começou a trabalhar no roçado com seu pai, momento em que se

―entendeu de gente‖, se socializou. Momento este que Célia descreveu como um modo de

começar a ver o mundo e a conhecer as coisas do mundo, enquanto Teresinha começou a

poder falar com os outros sobre temas que todos falavam. ―Eu trabalhei muito de roçado‖,

observou Ana, o que era pesado, mas também divertido, já que implicava uma sociabilidade

entre parentes e vizinhos/as:

Era pesado trabalhar no roçado [...] Eu plantava e colhia. Plantar o dia

todinho assim era pesado, e eu plantava o dia todinho. Mas era muita gente

trabalhando junto, era tranqüilo, trabalhando e se divertindo. Eram oito, dez

mulheres plantando o feijão mais a gente. A gente fazia assim: se um ia

cavar o leirão, juntava oito, dez homens para cavar um leirão daqueles num

dia e a mulher tudinho ia plantar. Aí, outro dia, já era de outro; a mulher e os

homens novamente cavando, assim, tudo unido, o povo reunido, cavando e

plantando leirão do povo, era do pai dessa aqui [de Celine]. A gente cavava e

plantava, o meu, a comadre Chiquinha, aquela neguinha minha irmã. Quem

cavava leirão por aqui era todo mundo, se juntava todo mundo e ia plantar os

leirão dos outros. Era muito bom, minhas irmãs todinhas, a gente levava Pitú

para tomar no leirão, levava tira-gostos, aí a gente fazia uma festa, era

divertido.

O relato das mulheres sobre seus trabalhos não é independente dos espaços de

sociabilidade que eles criam. O trabalho no roçado, na cozinha ou com o barro, entre outros,

constitui para as mulheres um espaço público e, como tal, é digno de ser contado, de ser

passado a uma argentina, ou a uma estudante ou a uma pesquisadora. Trabalhando, as

mulheres aprendem um papel social e essa aprendizagem lhes dá a possibilidade de disputar a

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Família, escravidão, luta 149

palavra pública. Contudo, essa disputa é gerada em um âmbito velado, para usar as palavras

de Abu-Lughod (1999). Se somente a partir de um circuito de relações pessoais pude ter

acesso à palavra das mulheres, esse circuito não me abriu unicamente um mundo íntimo ou

privado, mas um mundo público. Se, por normas sociais, não eram elas as que, em primeira

instancia, contavam o Público, o faziam, de uma forma menos explícita, quando minha

relação com elas não era a da pesquisadora que ia entrevistar, mas a da ―Fernanda‖ que

visitava Teresinha e também outras pessoas.

Entre as mulheres beduínas do deserto ocidental do Egito, onde Abu-Lughod (op.cit.)

desenvolve sua etnografia, usar véu significa mais que um símbolo de subordinação feminina:

por meio deste uso, as mulheres (e as jovens) aderem ao ideal moral da modéstia e obtêm

respeito social em sua mais baixa hierarquia, posição que se instaura em relação àqueles,

considerados superiores, que obtêm o ideal de honra que, de modo geral, é um ideal

masculino. Se os sentimentos que os beduínos expressam em um discurso ordinário estão em

conformidade com estes ideais, o mesmo não ocorre com o discurso da poesia, dos

ghinnāwas, nos quais se expressam os sentimentos da vida pessoal, os sentimentos da

intimidade que, em relação aos ideais morais de honra e modéstia, se constituem como não

virtuosos.

As complexidades que a autora consegue apreender em sua análise trazem ferramentas

para pensarmos sobre aquela não assunção voluntária da palavra Pública entre as mulheres de

Belém, que se combina com uma assunção não explícita da palavra pública, com uma

assunção que se faz em um âmbito velado. Se, em uma determinada esfera, elas aderem ao

ideal moral de não serem aquelas que falam do mundo Público, em outra, na esfera dos

ghinnāwas, para dizê-lo metaforicamente, elas falaz, sim, do mundo público, mas de um

mundo público que se revela diferente do primeiro. As mulheres me falavam no âmbito das

relações pessoais, onde eu já não era alguém que se interessava por temas Públicos sobre os

quais os homens tinham a me informar, ali eu era uma outra mulher que estava de visita na

casa e conversava com outras mulheres sobre temas que somente competiam às mulheres,

temas que não adquiriam interesse Público, que não eram dignos do interesse dos homens.

Eram temas invisíveis, temas não hegemônicos, Nessas conversas invisíveis, elas me

contavam sobre seus espaços públicos. As mulheres disputavam, desse modo, um mundo

público e a possibilidade de contá-lo em meio a um silêncio que, como observa Abu-Lughod,

exclui os homens do mundo das mulheres. No invisível, em um mundo que os homens não

podem ver, as mulheres de Belém instauram, de um modo paradoxal (Scott, 1996) seus

espaços públicos.

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Família, escravidão, luta 150

A relevância que a casa de farinha — onde se fazia farinha de mandioca — ganha nas

narrativas das mulheres é outro fator sugestivo neste sentido. Geralmente, o tema estava

associado a uma época anterior, já que, no presente, aquela prática não é tão difundida como o

era antes e, habitualmente, o processo é feito na própria casa e em pouca quantidade. Apesar

de alguns homens se referirem a este assunto ao me falarem sobre suas vivências no lugar, a

centralidade que teve entre as mulheres chamou muito a minha atenção. Quando as pessoas

contaram sobre a casa de farinha, não deixaram de mencionar as outras pessoas ali presentes,

seja para aludir ao trabalho coletivo que a farinha implicava, como também às ocasiões de

festejo que tinham lugar ali. Todas estas referências deixaram em evidência a importante

sociabilidade que as tarefas na casa de farinha traziam consigo.55

- ―E eram muitas pessoas que faziam a farinha?‖, perguntei a Antônio de Serras.

- ―Era gente demais, (de noite) era mais de 30 mulheres só para raspar a mandioca. Aí, botava

assim 20 cavalos para carregar mandioca, não... Dez cavalos... Aí, botava 15 cargas de

mandioca, para raspar aquela mandioca todinha, para moer e prensar, para botar no forno e

(deixar pronto). Tinha forneiro, tinha moedor, tinha cevadeira e o pessoal para raspar‖, me

respondeu Antônio.

- ―E eram homens e mulheres?‖

- ―Era mais mulher. Tinha homens também, para moer era só homem...‖, observou Antônio.56

―Tava na peneira / Eu tava peneirando / Eu tava no namoro / Eu tava namorando‖:

como na canção de Luiz Gonzaga, a farinhada abria espaço para os namoros. Teresinha, ―só

tinha trabalho na vida‖ e, trabalhando na casa de farinha, conheceu o jovem que vivia do

outro lado do rio e que era cinco anos mais velho que ela. Era Gregório, com quem depois se

casou. Tinha 12 anos quando o conheceu. Desde os dez anos, já raspava mandioca para seu

pai quando era a época da farinhada, a qual podia chegar a durar um mês. Além de raspar

mandioca, Teresinha também a botava no cevador e peneirava a massa. Sempre trabalhou na

casa de farinha, até por volta de seus 50 anos. Havia outras mulheres que se ocupavam dessas

tarefas, apesar de ela se lembrar de ser a ―raspadora‖ por excelência, a quem os vizinhos iam

ajudar e a quem ela, por sua vez, também ajudava: ―Quem raspava era eu. Eu ajudava o povo,

os vizinhos. Aí, os vizinhos vinham me ajudar, mas mesmo assim eu trabalhava a noite

todinha, que a mandioca era muito dura de raspar. Dava mandioca, minha filha, que fazia

55

As casas de farinha como espaços de sociabilidade e de festejo entre vizinhos, além de mencionado pelos

habitantes de Belém, é um aspecto já enfatizado na bibliografia (ver, por exemplo, Caldeira, 1956). 56

Para uma descrição detalhada do processo de trabalho na casa de farinha, ver Heredia (1979) e Garcia Jr.

(1983). Estes trabalhos também chamam a atenção sobre as casas de farinha como pontos de encontro nos quais

se reforçam as relações sociais.

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Família, escravidão, luta 151

gosto! Tinha mandioca que era maior do que um homem!‖ Além das mulheres, também havia

homens — entre os quais seu pai — que moíam a mandioca e a mexiam (a revolviam durante

o cozimento). Algumas mulheres mencionaram os trabalhadores que o pai pagava por aquele

trabalho mas, em geral, se referiram unicamente à família, aos parentes e aos vizinhos que

estavam presentes e ajudavam nesse processo. Entre mímicas e detalhamentos, Teresinha e

outras mulheres me descreveram aquela tarefa e, em seguida, falaram do beiju que

preparavam (e preparam) com essa farinha, a qual tive o prazer de provar no assentamento e

de recebê-la como um presente que me foi dado por mais de uma pessoa.

Quando era o momento de fazer farinha com a sua mandioca, o pai de Teresinha

chamava outras pessoas para participar daquilo. Antes, era necessário pedir a casa de farinha

ao dono, já que havia época em que não havia vaga na casa devido à quantidade de farinha

que se fazia. ―Dá para fazer a farinha?‖, perguntava o pai de Teresinha ao dono. Quando o

dono dizia: ―Dá‖, começava a farinhada. Começava às segundas-feiras. Teresinha ia da casa

de seu pai à de sua avó, que ficava próxima à casa de farinha e, de segunda-feira a domingo,

raspava, cevava y peneirava. Na segunda seguinte, começava de novo e assim

sucessivamente até que se acabava a mandioca.

O dono da casa era outro morador, um vizinho ou, segundo mencionado por algumas

pessoas, também podia ser o dono das terras. De acordo com Teresinha, por exemplo, Luis

Melo era o dono da casa onde seu pai fazia farinha. Ana de Manaus também mencionou uma

época em que trabalharam nas terras de dois proprietários que, além disso, possuíam casas de

farinha, as quais eram utilizadas pelos moradores. Quando o dono da casa era um vizinho,

este tinha mais recursos que os demais. Em geral, o morador que tinha uma casa de farinha, o

que não era muito comum, também possuía gado. A conga era o que se pagava ao dono da

casa pelo uso da mesma. O pagamento era feito com farinha e era relativo à quantidade

produzida. As cuias eram recipientes quadrados que serviam como parâmetro de medida e

assim também eram usados os sacos, já que a medida por peso só começou a ser usada

depois.

Além de implicar um trabalho coletivo, no ―tempo da farinhada‖, como Margarete57

o

chamou, também havia festejos: ―A vizinhança toda plantava, naquele tempo. Todo mundo

plantava roça. Aí, fazia as farinhas lá. Faz muito tempo‖, observou Jacinta. Seu pai e seus tios

passavam toda a semana fazendo farinha. Quando chegava a semana seguinte, e a roça não se

57

Margarete é uma antiga habitante de Moreno que hoje vive no assentamento.

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Família, escravidão, luta 152

terminava, a família e, se havia, os trabalhadores pagos, se reuniam novamente na casa de

farinha, onde sabiam recriar momentos agradáveis:

Um matava um porco para fazer, para comer na casa de farinha. Era muito

bom, naquele tempo. Se ajuntava,58

às vezes pagava também, sabe? Se a

família quisesse, ia ajudar, ia raspar mandioca, e os outros iam raspar

também, mas pago, era pago por dia. Ele matava um porco, aí chamava os

trabalhadores para comer na casa de farinha. Era a cevadeira, era o moedor,

moendo na roda. Eu até moí mandioca na roda também mais meu pai, fiz

aquela volta, mas aí era pesada, tão pequena e sem força... Num assunto

desses, era ruim. A mulher não moía, não. Era só os homens que moía; a

mulher cevava mandioca no cevador. E tinha o mexedor: quem tinha mais,

pagava o mexedor para mexer a semana, mas a família mesmo ia ajudar, e

fazia.

O caráter público que o trabalho assume nos relatos das mulheres não se fez visível

unicamente nas narrativas. Durante o trabalho de campo, houve dias em que me preocupava

em ver como as horas passavam, e eu permanecia na casa de Teresinha. Ali ficava, ninguém

podia me acompanhar para entrevistar ou o/a potencial entrevistado/a não estava em sua casa

e aí, eu ficava na área, acompanhando Teresinha em seu trabalho, ou conversando com as

mulheres que se reuniam de forma freqüente na galeria de sua casa. E ali eu ficava, sem poder

falar de Belém. Apesar da preocupação e da ansiedade que aquilo me gerava, foi essa

insistente frustração que me ajudou a me dar conta que ―Belém‖ era muito mais do que eu

pensava e que havia ali um mundo público de mulheres que, à primeira vista, eu não

conseguia ver.

A área, especificamente a porção da galeria que se junta com a cozinha e o terreiro, e

também a cozinha59

foram espaços que me mostraram uma dinâmica de encontros femininos e

que me permitiram perceber a sociabilidade que o trabalho implica para as mulheres (Ver

figura III). Não somente visitar-se, mas também ajudar-se com o trabalho transformava esses

lugares em zonas públicas nas quais as mulheres se reuniam. Teresinha costumava receber

com freqüência suas vizinhas do assentamento que por ali passavam e que eram atendidas na

área (onde também recebia visitas que vinham de mais longe e que podiam ser familiares ou

antigas vizinhas que viviam em outra comunidade ou Sítio). Se as pessoas chegavam depois

do almoço ou do jantar, encontravam Teresinha descansando. Nesses momentos, ela se

sentava em uma cadeira e conversava ou, quando era a hora da sesta, cochilava com as

conversas.

58

Galvão (1954), citado em Caldeira (1956), chama a atenção para as categorias adjunto e ajuda, usadas para

denominar o auxílio mútuo no sertão do Rio Grande do Norte. 59

Apesar de as casas do assentamento apresentarem um formato estandardizado, cada uma delas tem suas

particularidades e nem todas possuem galeria e/ou varanda na frente.

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Família, escravidão, luta 153

Geralmente, as vizinhas estavam ―de passagem‖, e aquilo servia como desculpa para

ficarem na casa de Teresinha. Algumas delas, como Edna, Doralice e Daniela, por exemplo,

faziam visitas mais sistemáticas. Daniela morava em frente à Teresinha e se definia como sua

vizinha e parente, já que era casada com o filho do pai (Antônio de Serras) da esposa de um

dos filhos de Teresinha e Gregório. Ou seja, era cunhada de um dos filhos do casal. Daniela ia

para a casa de Teresinha toda sesta e ficava horas sentada na área. Neste mesmo local, as

mulheres também costumavam se reunir para pintar as unhas e, com isso, criavam tardes de

brilhos e cores que originavam a possibilidade de encontros regulares.

Se Teresinha estava trabalhando, as vizinhas a ajudavam a realizar sua tarefa quando

isto era possível. Por outro lado, o trabalho de todos os dias não era feito unicamente por ela.

As atividades requeriam que sua filha Consolação, sua neta Marcela e, às vezes, sua nora

Mariana (a esposa de Evandro) e Alice, a jovem esposa de seu neto Joel (filho de Consolação)

também as executassem. Deste modo, ao longo da jornada, com exceção da sesta e do

momento posterior ao jantar, o terreiro, a área, a cozinha e o curral, onde ficavam os bodes e

as cabras, tornavam-se espaços de intensa circulação feminina. Lavar os pratos, debulhar

feijões e separar aqueles em bom estado eram as tarefas para as quais Teresinha quase sempre

recebia ajuda destas mulheres (como também de suas vizinhas) que, algumas vezes, após o

preparo do almoço em suas respectivas casas, iam almoçar na de Teresinha. Com Marcela era

diferente, já que ela vivia com esta última e sua responsabilidade era maior. Geralmente,

ainda que não sempre, Marcela fazia o almoço e limpava a casa. As tarefas do terreiro

ficavam por conta de Teresinha, como também a lavagem das roupas, a preparação do café da

manhã para Gregório, para os trabalhadores e para o restante dos membros da casa60

e do

jantar (Marcela ia para a escola de noite e não podia prepará-lo).

Ao ajudarem-se, as mulheres faziam do trabalho um espaço de sociabilidade; cooperar

nas tarefas possibilitava que se reunissem. Para além das ajudas que a filha, as noras e a neta

(e também os netos) ofereciam a Teresinha, elas iam constantemente na área para realizar suas

próprias tarefas. Consolação e Alice iam fazer crochê, um tecido que depois se transformava

em vestido de uma boneca de garrafa de refrigerante que, havia pouco, elas haviam aprendido

a fazer para vender. Além disso, Consolação, que vivia em uma casa contígua à de Teresinha,

60

Na casa, viviam Marcela, Teresinha, Gregório (que o fazia em parte, já que tinha duas casas e duas famílias).

Além disso, ainda que dormissem em um quarto com entrada independente, ali também viviam Zé Paulo, o filho

mais novo de Teresinha e Zeferino, um senhor de idade que era parente de uma ex-esposa de Gregório. Nunca

pude saber muita coisa sobre ele. Por várias vezes quis entrevistá-lo, já que ele era daquelas terras, mas isto não

teve nenhum tipo de avaliação positiva por parte de nenhum membro da casa. Zeferino era um trabalhador de

Gregório que não tinha casa e, apesar de ser um homem velho, essa posição de menor hierarquia não o

autorizava a contar. Isto mostra que não era qualquer homem velho que podia contar, mas um homem velho que

tivesse determinada posição social e econômica.

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Família, escravidão, luta 154

costumava levar algumas tarefas de casa para realizá-las ali, tais como separar os feijões,

descascar a mandioca etc., enquanto Mariana (que também vivia em uma casa contígua) vinha

freqüentemente com sua revista de venda de produtos de perfumaria, bijuteria e roupa.

Quando podiam, o trabalho era realizado na companhia de alguém ou, mais exatamente, o

trabalho lhes permitia a companhia. A sociabilidade feminina era forjada, em grande medida,

em torno de uma circulação regida pelo trabalho.

Tudo isto fazia desses espaços da casa e do terreiro um lugar público e um lugar

público de mulheres. No entanto, no que cabe à parte específica da galeria que se encontrava

junto à cozinha, esta não era um espaço exclusivo de mulheres. A área era uma zona ambígua

que, apesar de habitualmente ocupada pelas mulheres, também podia ser apropriada pelos

homens. O espaço era habitualmente de mulheres, mas potencialmente de homens.

Geralmente se estabelecia certo acordo a este respeito, e os usos da área costumavam ser mais

ou menos pautados. No entanto, quando as ocupações do lugar excediam essa normalidade, o

descontentamento das mulheres, que viam seu espaço ameaçado, não deixava de se fazer

ouvir. A área tornava-se uma zona de disputa.

Estivesse quem estivesse, Teresinha não saía dessa zona, mas quando o espaço se

tornava masculino, aí sim, deviam fazê-lo as demais mulheres. Uma dessas ocasiões era o

churrasco que Gregório organizava corriqueiramente nos finais de semana, particularmente

nos sábados ao meio-dia. Apesar de haver mulheres presentes, o evento era

preponderantemente masculino (geralmente para ele vinham pessoas de Bom Jesus e, às

vezes, de Trindade, os vizinhos do assentamento presentes eram poucos). Era um churrasco

de homens reconhecido por mulheres, que serviam e cozinhavam as comidas secundárias.

Elas costumavam ficar na cozinha, onde comiam ou, se havia lugar, também na área, mas

separadas da mesa dos homens, que almoçavam ali. Quando as mulheres podiam descansar

das tarefas que lhes cabiam naquelas situações, aproveitavam a ocasião para conversar com as

vizinhas que chegavam no canto não ocupado da área. Mais tarde, se o churrasco

ultrapassasse o nível tolerado por elas e se estendesse com embriaguez, o descontentamento

era patente e, com ele, a importância que a área assumia entre as mulheres. Assim, por

exemplo, podem ser compreendidos os comentários de Teresinha quando os ―bêbados‖ não a

deixaram dormir certa noite porque estiveram bebendo até tarde na área de sua própria casa,

o que, para ela, era extremamente inapropriado, ou também as críticas de Daniela quando, já

entrada a madrugada de sábado, ―os bêbados ainda continuavam ali‖, ocupando seu lugar de

reunião habitual. Se trabalhar permitia às mulheres obter seus espaços públicos, estes últimos

também deviam ser cuidados e disputados.

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Família, escravidão, luta 155

A mãe de Jesus

Era domingo, dia das mães. Eu estava esperando Maria Clara, que havia proposto me

acompanhar à casa de seu avô, em Bom Jesus, na tarde deste dia, o que depois se frustrou. Eu

estava na galeria com Teresinha e sua filha de Lagoa do Gibão, Estela, a filha de Estela, Bel,

Daniela e a irmã mais nova de Alice, que era manicure. Quase todos os familiares de

Teresinha haviam ido a um evento organizado pelo sindicato dos trabalhadores rurais de Bom

Jesus, por ocasião do dia das mães, com exceção de Marcela, que havia ido a seu curso de

ajudante de enfermeira, e de Mariana, que havia ido visitar sua mãe, que vivia em Lagoa

Clara, outra comunidade ou Sítio pertencente à antiga fazenda. Novamente, o brilho e as cores

dos esmaltes pintavam a tarde. Já havíamos almoçado e era o momento de descanso posterior

ao almoço. Nesse momento, chegou o pastor Rafael, um irmão de Teresinha.61

Chegou com

dois homens, todos vestidos com ternos e camisas de mangas compridas, ternos cinzas que

irromperam na tarde de cores.

Rafael e os outros homens vieram para convidar todas ali presentes para uma missa

que se faria na casa de Edna, a vizinha, que morava perto da casa de Teresinha. Nesse convite,

Rafael falou de Deus e de Jesus. Teresinha lhe agradeceu gentilmente o convite e, com uma

justificativa pertinente para Rafael, se desculpou por não poder ir. Rafael se retirou. Teresinha

é católica, como todas as outras mulheres que ali estavam. Imediatamente após a partida de

Rafael, as críticas aos crentes, como chamavam os seguidores de igrejas evangélicas, se

fizeram presentes. O eixo desta crítica passava pela exclusão que faziam da Virgem Maria.

Sua crença limitava-se a Deus e a Jesus. Com isso, excluíam Maria e, conseqüentemente,

todas as santas, já que Maria representa todas elas, observaram. Não se tratava unicamente de

uma disputa entre católicos e evangélicos, mas de uma profunda crítica de mulheres.

No centro do assentamento, as pessoas construíram uma igreja católica, e a chave da

igreja fica a cargo de três mulheres que vivem ali. Uma delas é Zefinha, a esposa de Zeca que,

no mês de maio, dirigiu a maioria dos terços. A Teresinha também foi oferecida a chave, mas

ela não aceitou a proposta pela responsabilidade que implica, já que, caso algum objeto

estivesse faltando, quem responderia por isto seria o encarregado da chave naquele momento,

me disse Teresinha.

61

Com exceção de uma irmã de Teresinha que vive em São Paulo e de um irmão que vive no Rio de Janeiro, o

resto se encontra atualmente nas terras de Belém: Aparecida e Biu, em Moreno, outros dois em Manaus e Rafael,

em Água Branca. Teresinha perdeu duas irmãs e um irmão.

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Família, escravidão, luta 156

Freqüentando esses terços de maio e escutando as narrativas das mulheres sobre um

passado de festas religiosas, voltei a me deparar com lugares de intensa sociabilidade

feminina. Mais ainda, a dinâmica religiosa recriada no lugar revelava-se um espaço de

domínio das mulheres.

Nos terços, todos cantavam: ―Ave cheia de graça/Ave cheia de amor/Salve a mãe de

Jesus aqui nosso canto e nosso louvor‖. Esse era o estribilho de um canto que, como disse um

dia Zefinha, ―fala da nossa realidade‖:

Mãe do criador, rogai

Mãe do salvador, rogai

Do libertador, rogai por nós.

Mãe dos oprimidos, rogai

Mãe dos perseguidos, rogai

Dos desvalidos, rogai por nós.

Mãe dos despojados, rogai

Dos abandonados, rogai

Dos desempregados, rogai por nós.

Mãe dos pensadores, rogai

Dos agricultores, rogai

Santos e doutores, rogai por nós.

Mãe dos bóias frias, rogai

(Causa) da alegria, rogai

Mãe das mães Maria, rogai por nós.

Mãe dos humilhados, rogai

Dos martirizados, rogai

Dos marginalizados, rogai por nós.

Mãe da unidade, rogai

Da fraternidade, rogai

Da comunidade, rogai por nós.

Mãe das famílias, rogai

Que compartilham, rogai

Dessa amada filha, rogai por nós.

Com exceção dos finais de semana, em todas as noites de maio ocorria o terço,

durante o qual essa canção era entoada. Na igreja do assentamento, reuniam-se várias

mulheres já casadas, crianças e algumas jovens solteiras que ali viviam, como também alguns

homens que geralmente acompanhavam suas esposas. O terço era realizado no horário escolar

e, por isso, contava com poucas crianças de mais de 14 anos. Às 18h, eles pegavam o ônibus

que passava para buscá-los no assentamento e se dirigiam para a escola secundária em Bom

Jesus. Por volta das 22h, estavam de volta. De modo que as poucas solteiras que estavam por

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Família, escravidão, luta 157

ali eram, em sua maioria, jovens mulheres que já haviam terminado o colégio ou que ainda

não o haviam começado e que se dirigiam para a escola mais cedo.

Era 1º de maio, e eu estava em Manaus, outra comunidade que fica nas terras da

antiga fazenda, já mencionada anteriormente. Enquanto passeava por ali com Celine, Adelina

e Maria Clara, podia ver em cada casa um intenso movimento de cozinha, uma organização de

mulheres com o objetivo de prepararem pamonha e canjica. No assentamento, antes de partir

para Manaus, foi possível apreciar o mesmo movimento. Teresinha se preparava para a

cozinha e reunia suas ajudantes. Como Marcela iria comigo a Manaus, Mariana a substituiria.

Tanto em Manaus como no assentamento seria feita à noite a reza do primeiro de maio, o

primeiro terço do mês, o que para mim constituía um evento completamente novo. Aquilo

também provocava um movimento em Manaus. Celine passou a tarde conversando com seus

parentes e familiares mulheres para organizar a saída para a igreja de Boa Fé, onde, nessa

mesma noite, ocorreria o terço. O evento também motivou a visita de sua sobrinha, que foi à

sua casa para ajudá-la a estilizar seu cabelo e adornar suas mãos. Quando chegamos com

Marcela ao assentamento, já era de noite. Teresinha estava em sua casa com sua filha

Consolação e algumas vizinhas, arrumadas e prontas para irem ao terço que se realizaria na

igreja do lugar.

Como já era tarde, fui tomar banho e fiquei com Marcela, vendo novela. Depois,

Teresinha voltou do terço e, um pouco mais tarde, seu neto Felipe, de 12 anos, filho de

Evandro, que vivia em Trindade com sua mãe e que costumava passar vários dias na casa de

Teresinha. E ali ficamos conversando sobre este longo dia e sobre tudo o que havia se passado

em seu transcurso, a preparação da pamonha e da canjica de Teresinha e minha visita a

Manaus com Marcela.

Na noite seguinte de terço em que estive no assentamento, Teresinha me convidou.

Me senti em dúvida diante desse convite, já que o mundo das missas sempre foi um pouco

distante para mim, e temia me definir a seus olhos como integrante de uma vivência que não

era a minha. No entanto, aceitei o convite e resolvi assumir, para mim e para os demais, o

lugar de estrangeira que queria conhecer os terços. Colocar-me de fora, como observadora,

me ajudou a entrar no terço sem me sentir incômoda por praticar o que me era alheio. No

entanto, uma vez ali, essa posição não foi suficiente. As pessoas me integraram na prática,

além de me perguntarem se eu era católica. Minha liminaridade precisava definir-se. Decidi,

então, classificar-me com base em uma experiência que havia ocorrido poucos dias antes.

Neste dia, estava na área, conversando com algumas mulheres que me perguntaram: ―Você é

católica ou crente?‖. A dicotomia pressupunha que eu deveria ser praticante de alguma

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Família, escravidão, luta 158

religião. Pensei que evitar a questão causaria um impacto negativo indesejado. ―Acho que

católica‖, lhes respondi um pouco pressionada (o fato de ser estrangeira sempre me

possibilitava uma margem de ambigüidade). ―Mas, você é batizada?‖, me perguntaram.

―Sou‖, respondi, feliz diante da intuição de que isso resolveria a situação. ―Então, você é

católica‖, concluíram. Meu pertencimento havia sido marcado. A lembrança dessa experiência

me conferiu os recursos necessários para dizer que, sim, eu era católica, sem que aquilo

ganhasse um significado mais amplo que o do batismo. Deste modo, podia responder

afirmativamente à pergunta, sem jamais esquecer de seu complemento, insignificante talvez

para os demais, mas tão necessário para mim: ―Fui batizada, né?‖. Se ser batizada me

autorizava a ser católica, então não estava inventando quando dizia que o era; pelo contrário,

estava assumindo uma nova identidade religiosa que se definia em relação às mulheres do

lugar. Apesar de a freqüência ao terço implicar uma crença religiosa, a prática conseguiu

transcender essa necessidade. O terço aprofundou minhas relações com as mulheres dali e

significou muito em minha própria vivência, que não era a de uma católica no sentido formal

da palavra, e sim a de uma antropóloga; o terço converteu-se também em minha própria

vivência e ganhou sentido nas relações sociais que me permitiu recriar.

Por volta das 19h, começam a tocar as campainhas da pequena igreja do assentamento.

Isto significa que o terço está para começar. As luzes da igreja se acendem, e a música

começa a tocar. Algumas mulheres já estão reunidas na casa de Teresinha para ir à igreja,

localizada logo em frente. Rapidamente terminou de tomar o chá com folhas de louro, capim

santo e laranja. É o chá posterior ao jantar. Doralice, Consolação, Teresinha, Edmundo (o

filho mais novo de Consolação) e eu partimos para o terço. Débora voltou para casa, apesar

da insistência de suas vizinhas para que seguisse com elas. Em geral, era essa a dinâmica.

Íamos em grupo e voltávamos do mesmo modo. Às vezes, junto com Dona Lurdes – a esposa

de Ricardo que mora muito perto de Teresinha – com Zefinha e/ou com a esposa e as filhas de

Luis Cardoso (o presidente da associação do assentamento), que também se dirigem para

aqueles lados.

Zefinha se encarrega de dirigir o evento, e com ela sempre colabora o mesmo grupo de

jovens, cujas idades são inferiores a que se requer para entrada no ensino médio. Laura, a filha

mais velha de Luis Cardoso, que toca violino e quer começar a universidade (o que

efetivamente conseguiu), ajudou algumas vezes a dirigir o terço. A presença de mulheres

casadas sobressaía entre os concorrentes. Também havia vários meninos e meninas que se

sentavam nas cadeiras mais à frente ou nas grades do altar. Um corredor divide as cadeiras

dos assistentes em dois conjuntos. Consolação costumava se localizar na primeira fila de um

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Família, escravidão, luta 159

desses conjuntos, do lado da parede, e Teresinha na segunda fila do outro conjunto, do lado do

corredor. Nessa mesma fila, mas contra a parede, se sentava Doralice, e eu geralmente me

localizava em meio às duas. Na igreja, também se encontra a mesa do altar e alguns ícones de

santos e santas pendurados nas paredes. Entre eles, destaca-se Nossa Senhora de Aparecida,

que se encontra no centro do altar, debaixo da imagem de Jesus.

O terço durava aproximadamente um pouco mais de meia hora, apesar disto ser

variável. Ali se rezava parte do rosário (um terço), cantava-se e lia-se versículos da Bíblia,

leitura que ficava a cargo dos ajudantes. Em seguida, Zefinha ou Laura realizavam uma breve

reflexão sobre essa leitura ou sobre as canções entoadas. Às vezes, elas tentavam a

participação verbal das outras pessoas, mas o lugar que estas últimas ocupavam nesta ocasião

não lhes dava o poder da palavra. O que diziam estava sujeito à avaliação das encarregadas do

terço que, estas sim, tinham o poder nesse momento, e seus discursos prevaleciam sobre os

demais. Aquilo inibia a palavra de quem não tinha o microfone para fazê-la ressoar.

Como último passo, as pessoas desejam-se paz, o que gera um movimento que não se

limita a quem está sentado ao lado, na frente ou atrás, mas que costuma ir das primeiras às

últimas filas. Próximo ao final da reunião, antes de se desejarem paz, há um momento central

do terço, no qual se beija a santa, Nossa Senhora da Conceição, e flores lhe são entregues. A

estatueta da santa está situada sobre uma mesa adornada com flores que mais tarde as pessoas

pegam para entregar. Cada mulher casada tem sua noite de terço. A pessoa a qual corresponde

esta noite será também a encarregada de recolher as flores, nesse mesmo dia e, para tanto

pode receber a ajuda de seus familiares e/ou vizinhos. É preciso que, nas flores, estejam

contempladas três cores: o branco, o amarelo e o vermelho. A pureza do branco é associada

aos mais novos, o amarelo às donzelas, às mulheres jovens e solteiras, e o vermelho às

mulheres casadas. O canto começa a ser entoado, e a quietude da sala se altera. As crianças se

levantam e formam uma fila ao longo do corredor, diante da mesa de flores que se encontra

debaixo do altar. Um por um beijam sua flor e a entregam, alguns também beijam a santa e

fazem depois o sinal da cruz, dobrando as pernas até ficarem quase ajoelhados posição que,

em geral, não chega a se concretizar. Algumas mulheres, como Teresinha, por exemplo, se

ajoelham e, para tanto, detêm-se durante mais tempo diante da santa. Quando as crianças se

sentam, levantam-se as donzelas com suas flores amarelas. Era pouco comum ver mais de três

donzelas em toda a sala. Por fim, chega o grande movimento, e as flores vermelhas começam

a circular; eu me perdia entre essa multidão e a ela me perdoava, minha idade já não era a de

uma donzela e minha situação era passível de ser lida quase como um casamento. Uma vez

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Família, escravidão, luta 160

mais, suas permissões me livravam dos incômodos e, situando-me a seu lado, definiam

minhas ambigüidades.

Nos terços, a santa ganha um lugar de destaque. As pessoas, em sua maioria mulheres

e crianças, juntam-se para lhe render homenagem. São essas mesmas mulheres que detêm a

chave do lugar da santa e são elas que organizam, realizam e coordenam este evento público.

O terço nos mostra que, com a religião, as mulheres estabelecem circuitos de deslocamento

que não são regidos unicamente pelo trabalho. Com a religião elas também recriam espaços

de sociabilidade que se tornam predominantemente femininos. O mundo público que estes

espaços femininos constroem colocam em primeiro plano, uma vez mais, questões diferentes

das enfatizadas pelos habitantes dessas terras, ao falarem sobre a ―história de Belém‖. Nesse

mundo, a santa era a protagonista e eram a mulheres que se comunicavam com ela. Para esta

comunicação, os cantos e as orações voltam à forma privilegiada de expressão. O canto é a

expressão por excelência de um mundo que a narração em prosa isoladamente não é capaz de

dar conta em sua totalidade. Se a canção que citei ―fala de sua realidade‖, essa realidade

ficava contida na santa (como também o faziam as terras de Belém). A santa é a grande mãe,

a mãe de todos e de toda essa realidade descrita pela canção. Se eles podem ser entrevistados

e contar aos outros sobre os escravos, os perseguidos e os oprimidos, são elas que cantam

sobre aquilo à mãe e lhe suplicam, o que é um ato fundamental dessas experiências de

opressão (como também das experiências de compartilhar, unir-se e libertar-se). São

justamente elas, as mulheres do assentamento, que pedem por esse ato e se reúnem no lugar

de sua mãe e a homenageiam, cantam e rogam, rogam por essa realidade.

Como ocorria com o trabalho, a religião também significa um espaço público para as

mulheres e, por isso, também é um assunto digno de me ser narrado quando se referem à sua

vivência no lugar. Como veremos, as narrativas das mulheres colocam em um primeiro plano

este aspecto de sua vida. Tal aspecto, por sua vez, como o trabalho, também mostra uma

permanência. Os espaços públicos que as mulheres constroem com a sua vivência religiosa

não se restringem ao presente; ao contrário, suas narrativas os apresentam em continuidade

com o passado.

―Sou caipira, pirapora Nossa/Senhora de Aparecida/Ilumina a mina escura e funda/O

trem da minha vida‖: estávamos jantando com Teresinha e, da televisão que seu filho Zé

Paulo estava vendo, se escutava a canção (Romaria). Nós duas começamos a cantá-la, e eu

perguntei a Teresinha como ela a conhecia. ―Tem muito tempo‖, me disse, e começou a se

lembrar dos terços de Monte Bravo, onde vivia quando era pequena. As referências às festas

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Família, escravidão, luta 161

religiosas do passado também me mostraram um espaço de encontro e um espaço de encontro

em que as mulheres de todas as idades tinham um lugar central.

Monte Bravo situa-se na estrada que vai de Bom Jesus a Serras, a qual era o caminho

central da fazenda Belém. Ao se passar por ali, é possível ver de longe a igreja do lugar.

―Pede para o Gregório te mostrar a igrejinha‖, me sugeriu Teresinha, e assim o fiz quando nos

aproximamos de Bom Jesus. ―Essa é a igreja‖, disse Gregório e indicou com a mão uma

construção mais nova do que eu havia imaginado. Me explicou que a igreja havia sido

restaurada, mas que era a mais velha dali; seu patrono era São João. São João Batista:

São João Batista, sua casa cheira

A cravos e rosas e flor da limeira

Viva, viva, viva são João Batista, viva

Que santo é aquele que vai e não andou

É São João Batista, mais nosso senhor

Viva, viva, viva são João Batista, viva

Que santo é aquele que vamos levando

E são João Batista vai se festejando

Teresinha se lembra de cantar esta canção desde que nasceram seus primeiros dentes.

Ela a faz lembrar seu pai e sua mãe e o ―povo‖ que se reunia na igreja de Monte Bravo e

cantava: ―Cantemos, todos, cantemos/Assim (diremos) também/Viva São João Batista/Todos

para sempre, amém‖. E todos cantavam, e ela cantava: ―Muita coisa, muita coisa bonita. Aí, o

sol subindo, e a felicidade, saudades do meu pai e da minha mãe‖.

Tudo ocorria naquela igreja, que também era de Nossa Senhora de Belém. ―Desde que

eu nasci que eu vi essa santinha lá. Nunca foi quebrada, velinha já, Nossa Senhora de Belém.

Tinha um menino no braço, uma coroa na cabeça‖. A estatueta da santa que ainda está ali é a

mesma de quando a igreja se localizava na margem do rio. De acordo com Teresinha, a

estatueta tem mais de um século. Antes de ela nascer, houve uma inundação e, junto com a

igreja, a água levou o cemitério e as casas daqueles que viviam nessa região. As pessoas

conseguiram, contudo, resgatar a santa. A mesma igreja foi depois reconstruída em Monte

Bravo, lugar onde hoje se encontra.

- ―Seu tio Joca – perguntou Teresinha — essa Nossa Senhora de Belém, desde que eu nasci

que ela está lá na igreja do Monte Bravo, Nossa Senhora de Belém e São João Batista. Agora,

eu não entendo que essa igreja era na beira do rio, aí (veio a cheia) e tiraram a igreja e

mudaram para o Monte Bravo, e encheu tudo, não foi? Ali era uma rua, não era?‖.

- ―Era uma rua do Campo Santo, nós morava bem perto...‖, respondeu Joca.

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Família, escravidão, luta 162

Nessa igreja de Monte Bravo ocorriam os terços. Eram muito bonitos, opinou

Teresinha. Ela se lembra que era pequena e que havia muita gente e todos se reuniam e

soltavam foguetes, e ela jogava com suas amigas e ―era uma festa‖. Ela jogava, se reunia com

―o povo‖ e com sua amigas e podia falar publicamente, podia cantar. Todos cantavam, e

várias das canções que Teresinha cantou para mim. Foi assim até que ―acabou-se tudo‖, até

que os mais velhos foram morrendo, e os demais foram embora de Monte Bravo porque não

agüentaram mais o foro medonho. Monte Bravo deixou de sê-lo porque o povo que o formou

se foi, cada um comprou seu canto, e Luis Melo ficou sem trabalhadores e vendeu a terra.

Terminou-se tudo e agora ―ninguém canta mais‖, disse Teresinha em um suspiro de nostalgia.

- ―Hoje passei e vi ela de novo‖, comentei com ela.

-―Você viu a igreja?!, me respondeu animada.

- ―Pois é, não te contei que na semana passada eu disse ao Gregório que me mostrasse a

igreja‖.

- ―Ele mostrou?! Você viu?! Você viu?!

-―Eu vi‖.

-―Ai, rapaz! A igrejinha! Pequenininha, mas é bonitinha, Nossa Senhora de Belém e São

Batista [...] Eu amo aquela igrejinha do Monte Bravo, eu nasci e me criei lá, é pequenininha,

mas era minha felicidade‖.

Vi a Igreja. Naquele momento, não percebi inteiramente o quão importante era isto.

Diante de tanto trabalho e do predomínio de uma circulação pelo lugar que ficava restrita a

essa tarefa, a igreja trazia um novo circuito de sociabilidade. A igreja era o espaço em que

Teresinha se reunia com os outros e cantava com os outros, com sua família e vizinhos. E

também era o espaço em que podia ver ―as meninas‖ e reinventar seus laços mediante o

esquecimento:

Eu não ia para a festa, para a festa do inhame em Bom Jesus. Eu não tinha o

gosto, papai não deixava. Trabalhava tanto, minha filha, e não deixava eu

sair para canto nenhum! Não deixava arrumar namorado, e era muito nova

para sofrer [...] que quando era criança, eu andava, eu saía, ia para a missa, ia

para festa mais as meninas. Aí ficava lá, morta, me levantava sem saber

quem era mãe nem pai. ―Quem é seu pai?‖ ―Papai‖ ―Quem é sua mãe?‖

―Mamãe‖ ―Onde mora?‖ ―Com papai mais mamãe‖: não sabia informar

ninguém. Aí, eu ia para missa e eu morria.

Quando pequena, a igreja lhe permitia ―andar‖, ―sair‖ e até ―morrer‖, o que podia ser

epilepsia, segundo lhe disseram, certa vez. Contudo, para além da epilepsia, o significativo é

que nessa morte que lhe ocorria durante a missa, Teresinha estava com as outras meninas, e

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Família, escravidão, luta 163

que essas relações lhe conferiam a possibilidade de esquecer seus laços filiais e de se

reinventar publicamente, de morrer e de nascer de outro modo na relação com suas vizinhas.

Junho se anunciava com as festas de São João e trazia consigo outra das vivências que

me seriam narradas. Haviam começado os ensaios para dançar nas quadrilhas, e aquilo

merecia comentários de várias das mulheres com as quais eu costumava estar. Aos sábados, se

reuniam e ensaiavam. A irmã de Alice (a manicure) participava daquilo e, no começo,

também o fez Marcela, mas deixou de lado porque seu companheiro desistiu e porque não se

sentia cômoda dançando. Ao se falar sobre a festa de São João, a diversão e o entusiasmo se

faziam presentes e se abria um espaço para que as mais velhas falassem sobre essa festa que

vem ―de longa data‖ e que é uma tradição. ―Eu levava minhas bonecas de pano e brincava‖,

disse Edna que, quando pequena, vivia em Lagoa da Montanha. Já desde essa época, as

pessoas banhavam-se nos açudes e cantavam: ―São João, meu São João/ Santo que todos

veneram/ Todos têm sua coroa, São João/Sua capela/ Todos têm sua coroa, São João/Sua

capela‖. Esse era o estribilho e, em seguida, continuava: ―São João foi tomar banho/Mais

vinte e cinco viúvas/Quando elas caíram na água/São João subiu pras nuvens‖. É a tradição

do mês de João, disse Teresinha:

A gente vai tomar banho de madrugada, do dia 23 para o dia 24, que é o dia

de são João mesmo, sabe? Aí canta, mergulha, quando é o negócio que sobe

para as nuvens, a gente (tira água para as nuvens), sempre a gente dançando

dentro das águas, né? Aí quando vai tomar banho com as viúvas São João

sobe para as nuvens, aí quando vai com as casadas São João disse

―coitadas‖, aí quando foi com as donzelas São João caiu com elas, minha

filha!62

Quem sente dor no corpo ou tem alguma doença pode, na água, pedir a São João a

cura: ―São João, vim aqui para me curar‖. Por sua vez, entre muita canjica e pamonha se

realiza uma fogueira na qual se pode assar o milho. Para além disso, a fogueira permite iniciar

uma relação de apadrinhamento ou comadrio entre duas mulheres:

- ―E Dona Teresinha, para ser madrinha na fogueira, diga aí‖, insistiu Edna para que

Teresinha me contasse sobre aquilo. Teresinha explicou a camaradagem:

- ―Bota o pau aceso da fogueira: ‗São João disse, e São Pedro confirmou que você fosse

minha comadre que Jesus Cristo mandou, meu São João, meu São Pedro, meu São Paulo, viva

nós minha comadre!‘‖.

62

―São João foi tomar banho/Mais vinte e cinco casadas/Quando elas caíram na água/São João disse: coitadas‖.

Após essa estrofe segue o estribilho e, em seguida, a última estrofe: ―São João foi tomar banho/Mais vinte e

cinco donzelas/Quando elas caíram na água/São João caiu com elas‖.

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Família, escravidão, luta 164

- ―Aí a madrinha do mesmo jeito, aí bota o pau, aí disse: ‗São João disse, e São Pedro

confirmou que a senhora fosse minha madrinha que Jesus Cristo mandou‘. Aí, disse três

vezes, aí depois dá a benção‖, complementou Edna.

Aquela será a madrinha de fogueira, que não é, como disse Teresinha, a madrinha de

verdade.

- ―Mas, como é? Você gosta de uma pessoa e escolhe? É a pessoa que escolhe sua

madrinha?‖, perguntei a ambas.

- ―É‖, me responderam.

- ―E pode escolher mais de uma?‖, perguntei.

- ―Pode o que você quiser‖, observou Teresinha e continuamos falando a respeito do que

começava a se revelar como um espaço de intensa sociabilidade feminina, como um espaço

público, um espaço que, como tal, era narrado pelas mulheres a partir das relações mais

pessoais de meu trabalho de campo. Esse mundo, que era parte da experiência das mulheres

de Belém, devia, portanto, também ser narrado por mim quando escrevesse a tese, esta tese.

Cantar, ir à igreja, jogar, trabalhar no roçado, pintar as unhas, cozinhar, modelar o

barro, fazer crochê, rezar, conversar na área, debulhar feijão, raspar a farinha eram atividades

que me falavam sobre modos de expressão públicos, modos alternativos de me contar sobre

―Belém‖ e sobre a vida do lugar, modos que dificilmente se abriam com as perguntas

masculinas acerca da história e do conflito ou sobre a derrubada do cambão ou sobre a

fazenda e os Melo. Minha relação mais pessoalizada e cotidiana com as pessoas me permitiu

captar esses modos alternativos de expressão. O pessoal também abria o público e, ao mesmo

tempo que o fazia, fazia lembrar o chamado de Fraser (1997), para repensarmos o público, o

privado e a separação entre ambos os conceitos. Sua convocação impelia a se contemplar as

diversas formas mediante as quais as pessoas acedem à vida pública e a se considerar os

―contra-públicos‖ que disputam formas alternativas de expressão. E recordava, sobretudo, a

necessidade apontada pela autora de ter em conta o significado político de uma separação

conceitual que, ao relegar determinados assuntos ao âmbito do privado, permite deslegitimá-

los como parte do interesse público.

O capítulo termina agora. Encerro aqui essa permanência da vida que não se encerra.

Como vimos no capítulo anterior, quando me contaram a história de Belém, o tempo dos

escravos definiu para os ex-moradores o que já não era a história de uma família, mas a sua

própria história; o que já não pertencia aos proprietários, mas a eles mesmos. Mas vimos neste

capítulo que havia mais do que isso. O trabalho das mulheres e suas vivências religiosas, do

passado e do presente, escutados em suas narrativas e apreciados dia a dia durante o trabalho

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Família, escravidão, luta 165

de campo traziam outros aspectos que elas consideravam dignos de serem contados, de serem

passados para alguém de fora do lugar que se interessava por aquilo. Contudo, estes não

poderiam ter sido contados se a minha presença ali tivesse se limitado ao circuito

recomendado de entrevistas sobre Belém, composto por habitantes antigos e, sobretudo, por

homens, circuito este que fazia emergir a narrativa apresentada no capítulo anterior,

estruturada a partir do tempo dos escravos e que privilegiava as relações com o patrão que não

existem mais. As relações informais com as mulheres, pelo contrário, me permitiram ver uma

parte daquilo que havia para contar e que não era uma história. Daquilo que não tinha tempo,

que não se classificava e que permanecia. Daquilo que era público, mas que se contava de

forma silenciosa.

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Família, escravidão, luta 166

Page 181: Tese Fernanda Figurelli

Família, escravidão, luta 167

Capítulo V

UMA LUTA MAIS ANTIGA

Em uma quarta-feira, fui entrevistar Antônio Mendes, o antigo vaqueiro de Belém que

me falaria sobre ―as mortes‖. Teresinha havia dito a Gregório que eu iria com ele até Bom

Jesus para realizar esta tarefa. A casa de Mendes não era de fácil acesso, e Gregório teve a

gentileza de me acompanhar até ali e de permanecer conosco durante a entrevista. Esta última

foi curta, já que meu acompanhante estava com pressa, e o tema das mortes acabou não sendo

abordado. Não obstante, ele falou sobre várias outras coisas. A ênfase de Mendes na

afirmação de que ―em Belém, era bom‖ incomodou Gregório que, logo após a entrevista,

observou: ―Ele disse que era bom porque era vaqueiro [...] falava que em Belém tudo era

bom, tudo era bom, e não era nada bom‖. Gregório não queria que eu ficasse com a impressão

de que ―Belém era boa‖ e, apesar de eu já ter conversado com ele e com outras pessoas que

haviam sofrido as penúrias de Belém e participado da luta sindical, meu interlocutor sentia

que aquelas narrativas deveriam ser reforçadas.

No dia anterior à entrevista com Mendes, e diante da proximidade de minha primeira

partida do Rio Grande do Norte, Gregório mencionou que finalmente iríamos a Jucá, a

comunidade que pertencia à velha fazenda, para que eu pudesse fazer a ―reportagem‖ com

Manoel de Bete e, talvez, com Zé Silva em Lagoa da Montanha. Este favor foi feito com

particular afinco, depois que soube da entrevista que eu havia feito com Antônio Melo Neto e,

mais ainda, após a conversa com Mendes. De acordo com Gregório, Belém não era boa, e

Manoel de Bete me diria o certo, me diria como as coisas realmente se passaram: ―Se você

não falar com o Manoel, não está sabendo nada de Belém‖, mencionou.

Antes de chegar ao Rio Grande do Norte, eu já ouvira falar de Manoel de Bete, o

primeiro delegado sindical de Belém. O havia feito, em primeiro lugar, a partir da leitura de

entrevistas realizadas pelo projeto ―Memória Camponesa e Cultura Popular‖ com antigos

Page 182: Tese Fernanda Figurelli

Família, escravidão, luta 168

líderes sindicais desse estado. Uma vez começado meu trabalho de campo, seu nome voltou a

aparecer, tanto em Trindade como no assentamento. Não iria ser fácil entrevistá-lo, já que o

rio Gameleira havia subido, e era necessário contratar uma canoa para poder chegar até a sua

casa. Além disso, algumas pessoas observaram que sua velhice construía lembranças

incompreensíveis. Assim, as narrativas sobre Manoel e a dificuldade do contato já haviam

criado em mim a idéia de uma figura mítica, inacessível. Tinham me dito que ele era alto e, a

meus olhos, essa estatura se tornava quase celestial. Ir entrevistá-lo era como decifrar um

grande mistério.

Na ida à sua casa, não visitaríamos parentes como na viagem a Moreno, mas faríamos

uma reportagem com um líder sindical. Teresinha já não era a minha guia, e sim Gregório, o

presidente do sindicato dos trabalhadores rurais de Bom Jesus. Já não podíamos chegar a pé e

tivemos de tomar mais de um transporte, apesar travessia feita por um caminho interno que

liga uma comunidade à outra, de modo semelhante ao que havíamos feito na viagem a

Moreno.

A chegada à casa de Manoel foi objeto de uma particular agitação que evidenciou o

caráter formal que aquele episódio ganhava. Se tratava de uma visita institucional. Depois de

almoçar na casa de Teresinha, partimos em uma caminhonete até o rio Gameleira. A

caminhonete permaneceu estacionada na margem do rio, onde esperamos pela pessoa que nos

cruzaria na canoa — e também outra caminhonete que Gregório havia contratado para nos

fazer avançar depois de vencido o primeiro obstáculo. Uma vez na nova caminhonete,

empreendemos viagem até Jucá junto ao motorista e a outros homens que vinham na parte

posterior do veículo para assegurar o trajeto. Entre as comunidades que atravessamos, se

encontrava Lagoa da Montanha, a primeira depois do rio, onde nos detivemos um instante

para beber água e cumprimentar uma família amiga de Gregório. O caminho era de barro e

estava bastante desgastado pelas chuvas, o que, somado ao prognóstico pouco otimista do

motorista, nos manteve o pressentimento constante de que não chegaríamos ao destino. Quase

no final do caminho, nos deparamos com um poço que parecia intransponível. Os passageiros

desceram da caminhonete, e o motorista tentou avançar. Quando o fez, as portas de Manoel

pareciam poder se abrir e, pouco tempo depois, chegamos à sua casa, que se encontrava em

meio a uma aglomeração de casas, com ruas de cimento e pontos de ônibus próximos.

Percebemos que teria sido mais simples chegar até ali pelos caminhos urbanizados, ao invés

de fazê-lo por dentro das comunidades. Manoel não se encontrava. Por sorte, estava perto

dali, na casa de um vizinho, e uma pessoa foi buscá-lo. O esperamos na varanda de sua casa, e

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Família, escravidão, luta 169

essa espera me manteve ansiosa e impaciente, até que, de longe, percebi sua silhueta. Dois

homens se aproximavam caminhando, e um deles, com chapéu na cabeça, era Manoel.

- ―Ele é aaaalto, viu?‖, me disse Teresinha na noite posterior à entrevista, o que me fez

lembrar das palavras de um líder sindical, também relativas a essa característica física de

Manoel.

- ―Mas não achei tão alto assim; o Antônio é muito mais alto‖, respondi.

- ―Deve ser que já está velho; ele era muito alto e muito magro‖, comentou Teresinha.

Depois do ocorrido, Gregório contou em ―A voz do trabalhador‖, seu programa de rádio,

transmitido aos sábados e com mais de 30 anos no ar, que uma pesquisadora da Argentina

estava investigando a luta63

sindical de Belém, e que havíamos ido na casa de Manoel de Bete

para entrevistá-lo. Teresinha me contou sobre isso na segunda vez em que voltei ao Rio

Grande do Norte. A ida na casa de Manoel foi um evento-chave a partir do qual completei o

círculo de entrevistas recomendado no âmbito sindical, e o sindicato deu um passo na direção

da institucionalização de uma história de Belém que era pouco difundida na lugar, tanto na

cidade, onde circulava uma história da fazenda que enfatizava a família e o patrimônio

devastado, como entre os ex-moradores. O fato de ser de outro país e de ter vindo de tão

longe para recuperar a história da luta sindical era visto como uma conquista para essa

história, cuja importância transcendia assim as fronteiras nacionais. ―Você vai conversar com

ela, ela vai gravar para levar isso para a Argentina!‖, disse Gregório a Manoel no começo de

nossa conversa.

Minha posição nesta rede de entrevistas era clara, como também era claro meu objeto

e as relações que empreendia a partir daí. Eu era uma pesquisadora, uma estudante interessada

na luta sindical. Além disso, era argentina, e isso atuava a meu favor. Por outro lado, meu

orientador já havia estado ali e feito entrevistas com pessoas da Federação dos Trabalhadores

na Agricultura do Estado do Rio Grande do Norte (FETARN) o que, somado ao fato de que a

minha entrada no campo havia sido por intermédio da federação, tornava ainda mais claro

meu lugar e favorecia minha posição nesta rede. Assim, na apreciação dos habitantes do

assentamento vinculados a este circuito, eu havia sido recomendada por meus professores da

universidade para continuar nesse lugar a tarefa que haviam empreendido. Não era mal visto

que eu circulasse com homens do sindicato porque o meu trabalho requeria isso (nas palavras

de um ex-morador sindicalizado, eu era uma lutadora) e, apesar de me associar

principalmente ao mundo masculino, as questões às quais eu me orientava eram consideradas

63

Para uma análise da categoria, ver Comerford (1999).

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Família, escravidão, luta 170

de domínio público. Além disso, meu percurso por este circuito de campo era justificado por

minha condição de universitária, que era parte não somente do universo de significados do

sindicato, mas também daquele dos ex-moradores.

O âmbito escolar era bem conhecido no lugar. O trabalho na ―ponta da caneta‖ não era

um assunto que estiva fora de seus interesses e menos ainda para as pessoas do sindicato, para

quem a universidade se constituía como um interlocutor central. Eles estavam acostumados a

dar entrevistas e contar sobre a sua luta, a viajar e dar palestras e a participar de discussões e

congressos dos quais a universidade também participava. Além disso, o assentamento tinha

um diálogo constante com grupos de universitários e com projetos conjuntos com essas

instituições. Zefinha me perguntou, inclusive, se eu já havia estado ali anteriormente com o

grupo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Como foi assinalado por alguns

autores, nos assentamentos estabelecem-se vínculos com um conjunto de instituições que

passam a fazer parte do universo de interlocução dos assentados e, a partir daí, se recriam

novos espaços de discussão, de reivindicações, de significados.64

Não foi por casualidade que

minha entrada no campo se deu por intermédio desta rede e que minha aterrissagem tenha

sido no assentamento.

Encontrei-me, assim, fazendo parte desse diálogo que criava significados e realidades.

Era parte do mundo de seus interlocutores, de uma ―universidade‖ que construía junto com

eles novos lugares de centralidade, novas referências. A narrativa de Belém se construía nesse

diálogo. A narrativa que surgia dessas relações era diferente da que circulava em outras

instituições urbanas e ficava registrada em livros de propriedades e testamentos, tornando-se

parte de um sentido comum da cidade que a fazia circular como um dado da realidade. Esta

era uma narrativa que devia ocupar seu lugar nessa realidade, e não eram muitas as

instituições que se interessavam em recriá-la, arquivá-la, registrá-la.

Percebi, assim, a importância de transmitir esta nova narrativa e a necessidade de

enviar meu ―relatório‖ ao sindicato, como Evandro me pediu para fazer. Mas percebi também

que se podíamos fazer ao dizer (Austin, 2006), se podíamos criar realidades — e realidades

alternativas à hegemônica — era porque existia um reconhecimento social da legitimidade

que a universidade e o sindicato tinham para fazê-lo, reconhecimento que trazia consigo

novas desigualdades e relações de poder (Bourdieu, 1996). Deste modo, as diversas histórias

de Belém foram sendo construídas através de laços sociais e disputas que, como vimos nos

capítulos anteriores, revelavam não somente enfrentamentos entre proprietários e

64

Ver, entre outros, Fernandes (2000; 2002); Leite, Heredia, Medeiros, Palmeira e Cintrão (2004); Medeiros

(2004).

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Família, escravidão, luta 171

trabalhadores, mas também elementos em comum entre ambos e toda uma série de hierarquias

internas, assim como obrigações sociais, reconhecimentos e modos de comportamento e de

reciprocidade desse mundo social. Os diálogos das entrevistas criavam significados, mas nem

todas as pessoas eram autorizadas a dialogar ali. Assim, ser parte de um diálogo me permitia

construir, me permitia dar a voz mas, ao mesmo tempo, abandoná-la.

Cada uma das histórias sobre Belém que foram surgindo no trabalho de campo

apresenta seus narradores centrais e seus narradores secundários, e ocorre que a narrativa

destes últimos somente contempla uma parte (e, às vezes, muito pequena) das histórias

construídas como tais. Para contar essas histórias, alguns foram mais recomendados que

outros, e os critérios dessa recomendação variaram de uma rede de relações para outra. No

que diz respeito a este capítulo, fui remetida, em primeiro lugar, aos homens, que seriam

aqueles que me falariam sobre questões relacionadas ao sindicato e ao que chamei de

―conflito de Belém‖, que se ligava ao momento em que os trabalhadores se organizaram

sindicalmente, ―derrubaram o cambão‖ e foram depois perseguidos durante a ditadura.

- ―Você lembra de uma época em que veio o sindicato e que teve muita perseguição em 64,

que vinha Jorge Fernandes...?‖, perguntei a Edna que, se referindo às reuniões atuais, me

respondeu:

- ―Me lembro, mas quem passa pelo negócio de sindicato é meu marido, é ele quem sabe‖.

-―Você não ia nas reuniões?‖, perguntei.

- ―Não, é ele quem vai, porque é ele quem é assentado daqui. Então, essas coisas é mais com

ele, reunião é mais com ele. Quando eu quero ir, eu vou, quando não quero, não vou, não‖.

Apesar de ter me remetido a seu marido, Edna começou imediatamente a falar sobre assuntos

que seriam tratados pelos assentados na reunião do próximo sábado.

A citação de Edna mostra o que ocorreu comigo em várias ocasiões em que tentei

abordar mulheres. Elas me aconselhavam a falar com seus maridos ou vizinhos, que poderiam

me explicar melhor as reuniões do sindicato e assuntos correlatos. No entanto, ao mesmo

tempo que me fizeram essa recomendação, em várias ocasiões também falaram sobre o tema.

Por outro lado, não eram todos os homens os indicados para contar. Destacavam-se,

principalmente, os antigos habitantes do lugar, ainda que também os mais recentes, que

participaram de alguma das diferentes experiências sindicais, e as pessoas que, durante o

momento da pesquisa, se encontravam em um lugar institucional destacado em relação a este

assunto, como o presidente do sindicato de trabalhadores rurais ou o presidente da associação

do assentamento. Sem a participação nessas experiências, somente o fato de ser um morador

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Família, escravidão, luta 172

antigo já não servia como critério; o que estava em jogo não era exatamente a ―pesquisa do

povo‖ de Belém, mas do sindicato e do ―trabalhador que foi preso‖:

- ―Se estivesse Joaquim Freire, eu mandava ela lá, porque ele é sabido, ele conhece o povo.

Ela quer uma pesquisa do povo, né?‖, perguntou tio Joca a Teresinha.

- ―Ela quer saber também do sindicato, do trabalhador que foi preso, quer saber de tudo‖, lhe

respondeu Teresinha, já quase no final da entrevista.

- ―Isso o senhor...‖, tentei perguntar a Joca, mas Teresinha se antecipou:

- ―Não sabe, não‖.

- ―Não, não conheço, não‖, confirmou Joca que, durante a década de 60, teve de rumar para o

Rio de Janeiro por ―um negócio que houve‖, no qual quiseram processá-lo, mas finalmente

não o fizeram; segundo Teresinha e Gregório (este último havia ―ouvido dizer‖), foi um

problema que teve com um dos herdeiros da fazenda.

Ter feito parte das experiências sindicais não era o único critério central para falar

Algumas pessoas também privilegiaram o fato de se ter tido acesso à escola, o que era

associado ao conhecimento, à memória e ao saber contar. Enquanto falávamos sobre o fim da

diária e a influência que o sindicato pôde ter ou não naquilo, Ricardo, o vizinho de Teresinha,

me falou sobre Jorge Fernandes e expôs as hierarquias por trás do contar: ―Ele conta toda a

vida do Tozé porque tem conhecimento, mais estudo... e eu sou trabalhador da roça, a pessoa

não se lembra mais‖.

Os laços sociais e as disputas que construíam essa narrativa da luta de Belém eram, em

grande, parte masculinas. Além disso, a educação formal e a experiência de interlocução com

determinadas instituições e organizações envolvidas na experiência sindical adquiriam

importância. Deste modo, as disputas que ocorriam predominantemente entre homens e a

cultura escolar e letrada ganhavam valor e constituíram critérios centrais na definição de

quem era capaz de contar e quem não o era, tanto para os interlocutores que me falaram sobre

a luta sindical como para os interesses que a categoria sociológica de ―conflito social‖

despertava. O ―conflito‖ me aproximava, assim, de uma experiência de trabalhadores rurais,

de uma história pouco conhecida, que encontrava poucos espaços de construção e de difusão

para além da universidade; mas o ―conflito‖ também me aproximava de um mundo dominado

por trabalhadores homens e por pessoas que sabiam lidar com a linguagem e com as

categorias que circulavam nas instituições.

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Família, escravidão, luta 173

O cambão e a sua derrubada

Era 1961, e os moradores de Belém viviam sob um regime que chamaram de

escravidão. A história é montada a partir daqui. Os ex-moradores sindicalizados que

descreveram a escravidão no capítulo anterior dão continuidade ao relato, enquanto os

sindicalizados que não foram moradores reconhecem aquela descrição, a qual se converte no

ponto de partida de sua narrativa sobre Belém.

Entre antigos e atuais líderes sindicais da Federação dos Trabalhadores na Agricultura

do Estado do Rio Grande do Norte, as experiências vividas em Belém se agrupam sob a

denominação de cambão, a categoria também sendo reconhecida por alguns ex-moradores

sindicalizados. No relato desses líderes, Belém é apresentada como uma conquista da luta

sindical no estado, uma referência do movimento com o qual se conseguiu construir uma

importante organização sindical que pôs fim ao cambão. Sua derrubada em Belém é

geralmente o rótulo que permite identificar, reconstruir e conferir sentido àquelas

experiências.

Quando se fala sobre as Ligas Camponesas, a categoria cambão adquire um peso

importante (Julião, 1962, 1968; Azevedo, 1982; Andrade, 1998). Dar fim ao cambão, junto

com a oposição ao aumento do foro, constituiu-se como uma das principias reivindicações

que, em uma primeira etapa de consolidação, desde meados dos anos 50, esta organização de

camponeses sustentou (depois se abriu caminho para outras propostas, tais como a reforma

agrária sindical, sustentada por várias organizações agrárias na década de 60) (Julião, 1968;

Azevedo, 1982). Dito em traços muito gerais, na bibliografia que se refere ao tema, o cambão

é em geral definido como o trabalho gratuito (ou, de acordo com Andrade, 1988, também e

preço muito baixo) que os moradores deviam dar ao dono da propriedade na qual residiam

como contrapartida pela terra que ocupavam (Julião, 1962, 1968; Azevedo, 1982). Tal

trabalho gratuito podia ocorrer semanalmente ou podia consistir em uma determinada

quantidade de dias trabalhados durante um período do ano. A este respeito, e centrando-se na

zona canavieira de Pernambuco, autores como Palmeira (1977) e Sigaud (1979) observam a

necessidade de não se confundir o cambão com a condição. O primeiro correspondia ao

trabalho gratuito do morador-foreiro e ocorria uma vez por ano; o segundo, por sua vez,

vinculava-se ao morador de condição e tinha lugar semanalmente: o morador devia trabalhar

gratuitamente para o engenho dois dias por semana e, em caso de ultrapassar este limite,

começava a receber remuneração em dinheiro a partir do terceiro dia (Palmeira, 1977).

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Família, escravidão, luta 174

Quando nos centramos nos relatos dos líderes sindicais do Rio Grande do Norte,

começam a ser observados não somente as especificidades e os sentidos diversos que as

pessoas pretendem expressar com esta categoria, mas também as dinâmicas sociais reveladas

por seu uso. Refiro-me, especificamente, à possibilidade de observar a experiência de

interlocução entre os sindicalistas de fora de Belém e os moradores do lugar que, de algum

modo, se vincularam à organização. Na narrativa dos líderes sindicais, o cambão é

identificado ao trabalho gratuito para o dono da fazenda, que os ex-moradores chamaram de

diária e, às vezes, também, com a venda de algodão, que eles descreveram quando me

falaram sobre o foro. Por outro lado, também se denomina cambão o peixe seco que era

entregue aos moradores pela diária que pagavam, de modo que este sentido da categoria não

alude unicamente ao trabalho gratuito para o proprietário, mas também à distribuição de

alimentos que estava intimamente ligada àquele trabalho. ―Era a única fazenda no Rio Grande

do Norte que tinha o sistema de cambão‖, observou, referindo-se à Belém, Jorge Fernandes, o

primeiro presidente da Federação, que participou da organização sindical na fazenda, e

prosseguiu:

O cambão era um peixe que eles [os donos da fazenda] compravam na

segunda-feira, na feira, e na terça-feira de manhã distribuíam para os

trabalhadores. Isso era uma coisa tradicional, e essa distribuição dava o

direito — porque esse era um direito também que já vinha da Paraíba, e era

assim em Pernambuco — que era um peixe seco que distribuía por cada

morador, e aquele peixe significaria três dias de trabalho de graça para o

proprietário, fora mais um dia ou dois que os capatazes achassem necessário.

Terminar com o peixe era, assim, terminar com o direito dos proprietários de dispor de

trabalho grátis dos moradores. Em uma entrevista posterior que fiz com Jorge Fernandes, a

categoria remeteu a esse trabalho gratuito, o qual não se concebia de maneira independente do

sistema em sua totalidade, que se completava com a distribuição gratuita de peixe seco:

- ―O cambão acabou, acabou-se, acabou-se, mesmo. Até hoje não tem mais cambão. Era uma

cultura do cambão, aí os trabalhadores não aceitaram‖, mencionou o entrevistado.

- ―O cambão, o peixe?‖, observei, tentando confirmar o sentido que a categoria estava

adquirindo. Jorge Fernandes confirmou:

- ―Era o peixe‖.

-―Mas o fim do cambão era que acabou o peixe?‖, insisti, confusa.

- ―Não, acabou-se o cambão, que era o regime, o regime que eles tinham lá, né? Dava o

cambão e, com aquele cambão, você estava recebendo o peixe seco e você trabalhava três dias

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Família, escravidão, luta 175

de graça para o proprietário, além da meia, além de tudo [...] Isso acabou e acabou de vez,

mesmo, não tem mais esse cambão de escravo‖.

O peixe seco não era independente do trabalho gratuito e este último não era

independente do primeiro. O cambão aludia a algo mais complexo, aludia a um sistema de

exploração, mas também de construção de direitos por parte do proprietário; terminar com um

dos elementos do sistema também significava terminar com o outro.

Jorge Alves, que era vice-presidente da Federação no momento em que realizei meu

trabalho de campo, se referiu ao cambão, aludindo ao trabalho gratuito que o morador fazia

para a fazenda, à alimentação precária que recebia durante esse trabalho, especificamente o

peixe fraco, e à venda obrigada de sua produção na fazenda.

O porquê da história do cambão? O cambão era porque todos os moradores

da fazenda eram obrigados a trabalhar dois dias de graça para a fazenda,

dava dois dias de graça para a fazenda e tinham somente quatro dias para

trabalhar no seu roçado [...] E o proprietário dava feijão puro. A alimentação

era feijão com um peixe, conhecido para nós aqui de (tainha), que é um

peixe fraquinho, que não é um peixe (de lei). Então, comia aquele peixe

assado com feijão. E quando vinha a produção dos moradores, eram

obrigados a vender na fazenda. O excedente do que você produzia no seu

roçado para se alimentar tinha que ser vendido na fazenda. Se vendesse fora,

era expulso da fazenda. Então, isso era considerado cambão, que hoje a

gente (denomina) de trabalho escravo, trabalho degradante. Naquela época,

não tinha essa nomenclatura; naquela época, era cambão: eu trabalho na

fazenda, sou obrigado a trabalhar dois dias de graça e a minha produção eu

tenho que vender lá.

Ao prosseguir, Jorge Alves acrescentou outro fator à descrição que fez do cambão: a

compra que os moradores realizavam no barracão (armazém) da fazenda:

E tinha um barracão, que eu comprava as coisas da minha necessidade no

barracão da fazenda. Quando era no final do ano, eu entregava a minha

produção, e ele ia somar o que estava devendo Se a minha produção desse

para pagar, eu entregava pela conta, e quando não dava para pagar, eu

entregava toda a minha produção e ainda ficava devendo. Aí, eu ia trabalhar

o outro ano para pagar, então, isso era o cambão.

Para ambos os entrevistados, o cambão tem uma tradução possível na idéia de

escravidão. No entanto, este termo não adquire aqui a mesma centralidade que assumia entre

os moradores. Como vimos, Jorge Fernandes observa que o cambão é ―de escravo‖, sem

precisar mais nada a respeito, enquanto Jorge Alves vincula o cambão à escravidão e remete

esta idéia a uma época mais recente, associando-a com categorias como as de ―trabalho

escravo‖ e ―trabalho degradante‖ que, atualmente, circulam de modo importante em vários e

diversos espaços, entre os quais se contam as instituições estatais e os meios de comunicação.

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Família, escravidão, luta 176

O cambão dos líderes sindicais, cujo significado está ancorado em vários elementos

que, para os moradores constituíam a escravidão e o cativeiro, tem neste relato seu fim, a sua

derrubada. ―A derrubada‖ é agora dos trabalhadores e não mais, por exemplo, das

vaquejadas, nas quais os vaqueiros dominavam os toros, novilhos e bois que, em última

instância, eram de domínio dos proprietários, que criavam em campos comuns um gado que,

nessas ocasiões, era separado, ou ―apartado‖ (Cascudo, 1956). Se os vaqueiros conseguiam

derrubar os bois do fazendeiro, os moradores conseguem aqui a derrubada do cambão que

fica fora e que se opõe ao domínio daquele.

De acordo com os relatos dos líderes, a derrubada do cambão ocorreu imediatamente

após a fundação da delegacia sindical em Belém. Como explicou o primeiro presidente da

FETARN, na década de 1960, a organização sindical se dava por meio da fundação de

sindicatos e delegacias:

O sindicato tinha cinco, seis municípios, que eram delegacias, que se

organizavam os trabalhadores lá em delegacias do sindicato de tal lugar. À

medida que ia se formando o processo, iam se desvinculando do sindicato:

você tinha uma delegacia sindical, e na delegacia ia preparando um processo

de sindicalização.

O sindicato de trabalhadores rurais de Bom Jesus foi criado em 1961, constituindo-se

como um dos primeiros sindicatos surgidos do trabalho de sindicalização rural empreendido

na década de 1960 por atores vinculados à Igreja Católica do Rio Grande do Norte. O Serviço

de Assistência Rural (SAR) havia sido fundado no final da década de 1940 como um órgão

que permitiu estender o trabalho social eclesiástico até o meio rural, o que ocorreu em um

contexto de reconversão da Igreja Católica que, até então, havia estado aliada aos interesses

dos proprietários rurais (Cruz, 2000). Na década de 1960 criou-se no seio do SAR um setor de

sindicalização rural do qual participaram ―padres, estudantes de Direito e Serviço Social,

advogados, professores e leigos, todos ligados à igreja‖ (Cruz, 2000: 66). De acordo com a

autora, diversas organizações vinculadas à Igreja, como o Movimento de Educação de Base

(MEB), a Escola de Serviço Social, as diversas paróquias, o ―Jornal A Ordem‖ e a Emissora

de Educação Rural, entre outras, integraram o incipiente trabalho de sindicalização. Tudo isso

contribuiu para que, no Rio Grande do Norte, a Igreja imperasse entre as demais forças

políticas que atuavam no campo e disputavam a hegemonia do movimento, tais como a Liga

Camponesa e o Partido Comunista Brasileiro.

O trabalho de fundação de sindicatos associados à Igreja concentrou-se no litoral,

estendendo-se depois às demais regiões do estado (Cruz, 2000). Em maio de 1962, no mesmo

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Família, escravidão, luta 177

ano em que foi criada a Federação dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais do Rio Grande do

Norte, o sindicato de Bom Jesus obteve o reconhecimento oficial do Ministério do Trabalho,

que entregou cartas sindicais aos sete sindicatos que até aquela data haviam sido criados por

este movimento (Jornal A Ordem, 19 y 20 de maio de 1962: 8). No final de junho do mesmo

ano, tais entidades convocaram eleições. Para o sindicato de Bom Jesus, foram eleitos Luis

Bezerra de Lima como presidente, Francisco Ribeiro como secretário e Sérgio Souza de

Santos como tesoureiro (Jornal A Ordem, 11/08/1962: 4). Neste mesmo período e a partir da

criação do sindicato de Bom Jesus foi fundada a delegacia sindical de Belém.

Jorge Fernandes contou a história dessa fundação.65

Um domingo à tarde, os

trabalhadores da fazenda reuniram-se em uma casa dentro dessas terras. Eram tantos que

tiveram de se dirigir para o pátio da casa porque não cabiam dentro dela. Seu propósito era

fundar a delegacia. Durante a reunião, a família Melo e alguns de seus capangas chegaram

em caminhonetes e se localizaram em uma posição estratégica. Aquilo não impediu que os

trabalhadores continuassem a reunião e atingissem seu objetivo: nesse domingo de tarde, foi

fundada a delegacia sindical. O delegado eleito foi Manoel, o mesmo que entrevistei em Jucá.

Sua figura é central no relato de Jorge Fernandes sobre Belém.

Manoel havia sido uma das pessoas brabas da fazenda. Era conhecido no lugar, de

modo que sua aparição em uma das reuniões do sindicato de Bom Jesus assustou o presidente

de tal organização.

- ―Jorge, eu me lembro de uma tarde que tu entraste na fazenda lá em Bom Jesus. Você

desceu para abrir a porteira ...‖, disse Manoel e Jorge Fernandes respondeu:

- ―Eu fiz isso várias vezes‖. Manoel prosseguiu:

- ―Em uma das vezes, eu me levantei três vezes para te matar. Quando eu queria apertar o

gatilho, alguma coisa dizia que não... Por isso, me impressionei e hoje estou do seu lado‖.

Jorge Fernandes lembrou-se do ocorrido. Manoel não se aproximou da organização

sindical para olhar, para espiar, para ―fazer jogo duro e ver se tinha alguma pessoa da fazenda

dentro da reunião‖ – observou o entrevistado. Manoel ―era realmente um trabalhador rural‖ e

se aproximou para se associar ao sindicato. Sendo assim, a uma desconfiança inicial seguiu-se

uma amizade entre o delegado de Belém e o líder sindical do estado, que mencionou:

Manoel tornou-se muito meu amigo. Ele ficou muito ligado a mim, e eu

disse para ele: ―Olha, agora o que cabe a você é você fazer a sindicalização

65

O relato de Jorge Fernandes que reconstruo aqui se baseia nas entrevistas que realizei durante meu trabalho de

campo, na entrevista feita previamente pelo professor Moacir Palmeira, no âmbito do Projeto Memória

Camponesa e Cultura Popular e na apresentação do entrevistado no I Seminário Estadual Memória Camponesa,

vinculado ao projeto mencionado e realizado no Rio Grande do Norte, nos dias 20 e 21 de janeiro de 2005.

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Família, escravidão, luta 178

de Belém‖. E ele realmente começou a fazer a sindicalização, e Belém

começou a ser um símbolo de luta, luta (mais) resistência, porque a família

era grande, poderosa politicamente, economicamente, financeiramente, e um

dos maiores latifúndios do estado, terra boa, fértil... Então, eles tinham um

poder muito grande de dominação, tanto na política, como principalmente na

ação policial, e quando chegou o ponto, nós fundamos a primeira delegacia

sindical de Belém.

Jorge Fernandes conta que, na tarde dessa fundação e uma vez terminada a reunião,

Manoel se dirigiu aos patrões:

- ―Olha, João Melo‖, disse Manoel a quem, segundo nosso narrador, era ―o mais forte‖, ―o

administrador‖, ―o gerente‖, ―o pai‖, ―o cabra que dominava a família‖: ―Eu não convidei

nem vocês, nem seus capangas, porque esta é uma reunião de trabalhadores e vocês não são

trabalhadores‖.

- ―Mas essa propriedade é minha‖, respondeu João Melo.

- ―Era sua, hoje é dos trabalhadores‖, concluiu Manoel.

A partir daí, tiveram início em Belém as grandes encrencas, as brigas. Uma vez

fundada a delegacia, os trabalhadores dispuseram-se a acabar com o cambão. Na madrugada

da terça-feira seguinte à fundação, Jorge Fernandes, Manoel e outros trabalhadores

sindicalizados dirigiram-se ao lugar onde o peixe seco, o cambão, era distribuído. Várias

pessoas encontravam-se nesse lugar, esperando o caminhão que traria a alimentação. Quando

este chegou e um de seus passageiros começou a distribuição, Manoel levantou um facão e

disse: ―Vocês são livres, trabalhadores, de apanhar essa porcaria aí. Agora o que apanhar esse

peixe, eu corto o braço!‖. Nenhum dos presentes pegou o peixe, e esse evento significou o fim

do cambão, que foi eliminado não somente de Belém, mas também do Rio Grande do Norte,

já que tal fazenda era a única do estado que funcionava sob esse sistema. De acordo com

Jorge Fernandes, a recusa do peixe significou a recusa do cambão e, após isso, ninguém mais

trabalhou de graça para o proprietário.

Eu já havia escutado aquele relato antes de chegar ali. Belém era apresentada como um

símbolo da luta sindical no Rio Grande do Norte, e foi precisamente isto que me conduziu

àquele lugar. Quando cheguei a Trindade, uma das primeiras entrevistas que realizei trouxe o

evento novamente à tona. Desta vez, a conversa foi com Jorge Alves, o vice-presidente da

Federação. Antes da conversa, Jorge Alves me fez passar em seu escritório. Me disponibilizou

um material que havia levado para a entrevista e me aconselhou a lê-lo enquanto eu esperava

pelo fim da reunião que teria naquele momento. O material consistia em um texto de sua

autoria, com o título ―História de 40 anos de Luta da FETARN. Fundada em 15 de junho de

1962‖, escrito em 11 de novembro de 2003. Quando olhei a primeira página dessa história,

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Família, escravidão, luta 179

me deparei com a menção à ―derrubada do cambão‖. O evento estava vinculado à descrição

do mandato de Jorge Fernandes como primeiro presidente da Federação, cargo que assumiu

desde a fundação da entidade até o dia 2 de abril de 1964, quando foi enviado à prisão pelo

Golpe Militar. Jorge Alves enumera sete lutas que Jorge Fernandes foi capaz de desenvolver

nesse curto período. A primeira delas tem a ver com Belém:

Mesmo assim, com este curto mandato impedido pelo golpe militar, [Jorge

Fernandes] desenvolveu muitas lutas, como: 1- A derrubada do cambão em

Bom Jesus, na Fazenda Belém, onde os moradores tinham que trabalhar dois

dias de graça para a Fazenda, sob a pena de serem jogados para fora da

propriedade.

- ―Eu tinha lido entrevistas do Jorge Fernandes, e ele falou em Belém. Aí, eu vejo também

aqui, na primeira página, a derrubada do cambão em Bom Jesus. Eu queria saber mais sobre

isso, como é que foi, quando foi que derrubaram o cambão‖, eu disse a Jorge Alves quando

ele voltou da reunião. Ele começou a desenvolver o assunto:

- ―A história de Belém era de um fazendeiro chamado Antônio Melo, conhecido como

Toninho Melo. Era uma fazenda muito grande e tinha cerca de 14 léguas. Ela fazia fronteiras

com quatro municípios e tinha muito morador, muito morador. Na época, era lógico os

grandes fazendeiros ter [sic] muitos moradores para garantir a mão de obra, e tinha capataz,

gerente, para coordenar o trabalho dos moradores [...] E era uma fazenda tradicional. Seus

donos também eram chefes políticos. Na época, os políticos também eram grandes donos de

terra [...] Tanto que eles foram prefeitos de Bom Jesus e de várias outras cidades vizinhas‖.

A menção à grandeza de Belém e à tradição de poder de seus donos introduziu, aqui, a

história. O mesmo ocorreu com Jorge Fernandes, que iniciou seu relato dizendo:

Belém fica no município de Bom Jesus. Era na época de 60, era um dos

maiores latifúndios do estado; pegava vários municípios, bem na divisa da

Paraíba. Tinha moradores, meeiros, arrendatários, posseiros e era

administrada por pessoas muito cruéis. Já era uma tradição, a crueldade

vinha dos seus bisavôs.

Os Melo, a família e a grandeza de seu patrimônio continuam sendo ingredientes

centrais da narrativa, mas não mais para reconstruir a genealogia e elaborar a história do

patrimônio familiar. A grandeza significa aqui o latifúndio e a exploração dos moradores que

trabalham de graça sob o domínio dos fazendeiros tradicionalmente poderosos. A grandeza é

acompanhada imediatamente pela menção aos moradores e sua exploração, aos trabalhadores

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Família, escravidão, luta 180

e ao cambão.66

Jorge Alves continuou, então, seu relato, me explicando sobre este último e,

em seguida, referiu-se à organização sindical que ocorreu em Belém e à derrubada do

cambão. Nessa derrubada, explicou, os trabalhadores chamaram o proprietário e lhe

disseram que não mais aceitariam o cambão, tampouco o trabalho gratuito ou o peixe seco

assado. Trabalhariam para a fazenda unicamente se o trabalho fosse pago e se a alimentação

fosse adequada. Por outro lado, acabar com o cambão também significou, de acordo com

Jorge Alves, deixar de vender a produção por um preço menor ao que se pagava na feira e

deixar de comprar no barracão. Os trabalhadores denominaram essa recusa ―a derrubada do

cambão‖, prosseguiu meu interlocutor. Quando isto ocorreu, ―os moradores que ficaram não

estavam mais obrigados a trabalhar de graça, a vender a produção na fazenda e a comprar

nada dentro do barracão; então isso foi a liberdade, mas isso ficou... os patrões ficaram muito

chateados‖, concluiu Jorge Alves.

Como se pode observar, na narração deste grande evento evidenciam-se algumas

diferenças entre os líderes sindicais. Para além das dessemelhanças na descrição do modo

como o evento ocorreu, também o que culminou com a derrubada do cambão ganha, como

vimos, um sentido levemente diferente. Se, em Jorge Alves, a ―derrubada do cambão‖ alude

ao fim do trabalho gratuito, ao fim da má alimentação nesses dias de trabalho para a fazenda,

à recusa de ter de vender a produção por um preço mais baixo que o corrente e, ao fim da

obrigatoriedade da compra no armazém de Belém, em Jorge Fernandes, a derrubada ganha

um tom mais alegórico que enfatiza a interelação entre recusar o peixe seco e o fim do

trabalho gratuito. Por outro lado, quando fala a este respeito, Jorge Fernandes também se

refere à meia. No entanto, ainda que o declínio da meia se some à derrubada do cambão, esta

soma não significa necessariamente sua fusão com este evento:

66

Em notícias veiculadas no início da década de 1960 pelo periódico da Arquidiocese de Trindade, A Ordem,

observa-se um modo semelhante de se apresentar estas questões. Uma nota do periódico realizada por ocasião da

fundação do sindicato, que narra a reação de um proprietário de Belém diante desse acontecimento, permite

apreciar o uso de uma linguagem comum na abordagem da família Melo e de seu patrimônio, que torna central a

categoria latifúndio. A nota também deixa entrever outras categorias comuns como a de trabalhador rural e

associa a família Melo com a exploração destes últimos: ―Há semanas passadas, denunciamos à opinião pública

atos de injustiça praticados na Fazenda Belém, latifúndio localizado nos municípios de Bom Jesus, São Sebastião

e Serras. Naquela oportunidade, retratamos a prepotência da família Melo que vem perseguindo de modo

desumano muitos dos rurícolas ali residentes. Agora voltamos ao assunto, espelhando nesta notícia a revolta de

todos os sindicatos rurais do RN, que durante esta semana enviaram moções de solidariedade aos trabalhadores

rurais atingidos pela ira dos Melos [sic], família que está despertando interesse em todo estado, pela sua triste

fama de enriquecer a custa do suor alheio‖. A notícia, cujo título é ―Latifundiário de São Sebastião desafia a

justiça e a autoridade. 20 mil trabalhadores rurais de todo o estado solidários com o rurícola ameaçado de morte

pelo proprietário da Fazenda Belém, em São Sebastião‖, foi publicada no sábado 7 e no domingo 8 de abril de

1962, página 8 de A Ordem.

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Família, escravidão, luta 181

Ninguém pegou o peixe, e o cambão terminou aí. Ninguém mais foi

obrigado a trabalhar de graça para eles. Porque eles, além de trabalhar de

graça, eles tinham a meia da produção, 50%. Além de trabalhar na área dos

proprietários, ainda tinha que trabalhar na área dele, do morador, e dar 50%

do que ele produzia para o proprietário. Isso foi acabado, e houve uma forte

mobilização.

Para além destas leves diferenças, o importante é assinalar o lugar central que a

derrubada do cambão adquire nestas narrativas sobre Belém. A partir de diversas

experiências que ocorreram na fazenda e fora dali, os relatos vão esculpindo um evento que se

constitui como um marco da história da mobilização sindical no Rio Grande do Norte.

―Então, essa é mais ou menos a história que a gente tem para contar‖, disse Jorge

Alves, acrescentando que ele não sabia dessa história por experiência própria: ―Estou

contando por ‗ouvir dizer‘‖. Sua mãe e parte de sua família são da região, do município de

Salvador, e Jorge Alves sabia daquilo por ter pesquisado com seus primos, com o presidente

do sindicato de Bom Jesus, que era seu amigo, e com outras pessoas do lugar que lhe

passaram as informações. De modo que achou pertinente que eu me dirigisse à Belém para

conversar com aqueles que haviam participado daquele acontecimento:

Mas o bom mesmo é você ir lá no assentamento, na Fazenda Laranjeira, que

lá hoje moram três remanescentes dessa luta de Belém, que é Antônio de

Ribeiro, que foi o que fugiu — ele era noivo e estava para casar, mas aí, ele

era um dos que estavam na lista para ser morto, ele saiu só com a roupa no

corpo, arrumou dinheiro emprestado com a futura sogra. A sogra deu

dinheiro, e ele fugiu para São Paulo. Passou dois anos lá para não ser morto;

se tivesse ficado tinha morrido — Gregório, que é o presidente [...]. Ele

ficou (acobertado) por um setor lá, que ele não sofreu nenhuma perseguição,

[...] tortura; tem o Zeca, que também faz parte da diretoria, que era de lá, que

também conhece; e tem ainda uma pessoa que está viva, mas ficou retardado

por conta das torturas que teve dos militares, que é um ex- presidente do

sindicato da época.

Como vimos no capítulo anterior, a categoria cambão era desconhecida de grande

parte dos ex-moradores, para quem a diária, o foro e a escravidão ou o cativeiro

reconstruíam experiências próximas às enfatizadas pela organização sindical com a categoria

cambão. Os antigos moradores do lugar e os atuais assentados que já haviam escutado esta

palavra eram, em geral, pessoas vinculadas ao sindicato. Muitos deles a associaram a Jorge

Fernandes e a relacionaram a algumas características da diária e do foro. Se com a idéia de

cambão, os líderes sindicais tentavam traduzir as vivências dos moradores em uma linguagem

própria, o movimento inverso não estava ausente. Falar em cambão requeria um trabalho de

tradução por parte dos moradores, que os aproximava de outras linguagens, predominantes

em espaços diferentes dos seus. Não chama a atenção que aqueles que conheciam a categoria

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Família, escravidão, luta 182

fossem as pessoas mais próximas às experiências de organização sindical no lugar. Esta

interlocução gerava assim uma construção de ênfase e de significados que se materializavam

em diversas categorias.

―Esse cambão que ela fala, eu não sei o que é‖, disse Teresinha a Ricardo no dia em

que fomos à sua casa para entrevistá-lo. Ricardo era um antigo morador de Belém que

participou da luta pelo assentamento, empreendida junto ao sindicato de trabalhadores rurais

de Bom Jesus. Após refletir por um momento, Ricardo respondeu:

O cambão... Tinha esse finado Zé Jacó, que era o empregado do patrão, toda

terça-feira tinha serviço lá. Então, mandava buscar o povo e, aquele que não

ia, ele amarrava numa corda e amarrava ele no rabo do cavalo e vinha

puxando a pessoa, o cambão é isso. Eu, nessa época, era pequeno; não

trabalhei na diária. Meu pai quem trabalhava, e então não sabia muito desse

assunto, mas acredito ir por aí [...] Esse negócio de cambão não entendia

muito, não. Eu estou dizendo da minha mente, eu acredito ser isso: que a

pessoa era sujeito a ir de qualquer maneira e, então, se não fosse por bem, ia

por mal.

Ricardo traduziu o cambão, associando-o à diária e com o ser obrigado a ir ―de

qualquer maneira‖. Mais particularmente, relacionou a categoria com Zé Jacó, o empregado

do patrão, e com seu costume de atar as pessoas no rabo do cavalo, o que materializava aquela

sujeição.67

Esta ênfase em ser obrigado a ir à diária, amarrado em um animal e a importância

que o empregado do proprietário assume nessa experiência também foram mencionados por

Luis Cardoso, o presidente da associação do assentamento, ao se referir ao cambão:

Porque, aqui em Belém, tinha um negócio chamado cambão. Os fazendeiros

tinham muitos moradores dentro da fazenda e, então, aqueles moradores

trabalhavam um dia de graça para o proprietário. Aí, quando o cabra não ia,

o cara mandava o capataz, dava o nome de capataz, buscar o cabra no

cambão. Aí, o cabra vinha montado na burra com a macaca no braço.

Chamava assim, ―buscar o cabra no cambão‖, e se o cabra não quisesse vir,

aí amarrava o cabra no rabo da burra, e a burra vinha puxando o cabra. É a

história que o velho me contava, o Manoel [David].

A partir daqui, talvez também seja possível compreender a resposta que me foi dada

por Manoel de Bete:

- ―O cambão era o que?‖, perguntei a ele.

67

É possível ver que este uso não se encontra distanciado do significado original de cambão, destacado por

Julião (1968). Este último alude ao jugo, a peça de madeira que amarra os bois pelo pescoço para fazê-los

trabalhar. O trabalho que o proprietário exige do camponês como contrapartida pela terra que ocupa, também

chamado de cambão, se liga explicitamente em Julião (1968) com aquela idéia, e o camponês é, neste caso,

passível de ser comparado ao jugo. O camponês está amarrado ao trabalho para o proprietário.

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Família, escravidão, luta 183

- ―Cambão? Eram os empregados, os empregados da propriedade‖, me respondeu e

prosseguiu seu relato sem dar maior importância ao assunto.

Por outro lado, entre outras pessoas do assentamento, o cambão assumiu um

significado diferente, desta vez ligado ao peixe seco e também a Jorge Fernandes. Certo dia,

estávamos almoçando na área junto com Teresinha, Consolação e Marcela. Quando me servi

de peixe, Teresinha sugeriu que o devolvesse e que me servisse de outras comidas que

estavam sobre a mesa, já que esse peixe não era dos melhores — tinha muitas espinhas e

pouca carne. Era um avoador. Em seguida, Consolação, sua filha, comentou com um sorriso:

―Esse é o cambão que você fala, o avoador, mas seco!‖. Consolação tinha me acompanhado

para entrevistar Zeca, seu vizinho, que havia observado algo a este respeito. Nessa entrevista,

Zeca citou Jorge Fernandes e associou o cambão à alimentação do povo que ia trabalhar na

diária:

Depois, começou a vir esse movimento do sindicato. Jorge Fernandes,

que hoje o nome do assentamento é o dele, foi um baluarte aqui

dentro; na reunião, dizia que era o tempo de cambão. Tempo de

cambão é que trabalhava e, no meio dia, o que comia era um avoador

seco, comia o avoador, amarrava na corda do cinto, aí botava o nome

do cambão. E no tempo de Tozé era assim, eu não cheguei a conhecer

esse tempo, que sou dos mais novos; agora meu pai conhecia tudo,

mas ele não está aqui para entrevistar, que já se foi, né? Agora, o povo

mais velho... Pena que hoje Jorge Fernandes não está aqui, que Jorge

Fernandes sabia contar tudo de Belém, e Gregório também sabe um

bocado.

―O pessoal mais velho‖ ligado ao sindicato, como Jorge Fernandes, Gregório e

Antônio de Ribeiro, que foram recomendados por Zeca, saberiam, de acordo com ele, me

contar a respeito ―de Belém‖. Sobre o cambão, Zeca recomendou especialmente o primeiro:

―Quem sabe dizer é o Jorge Fernandes. Eu acho que é que dava o avoador para o povo comer,

e o camarada não queria o avoador seco; aí o cabra amarrava na corda da calça, aí chamava de

cambão‖. O cambão evoca aqui o trabalho na diária, o peixe de má qualidade para se

alimentar durante esse trabalho e sua recusa, que se tornava visível ao se deixar pendurado no

cinto da calça, enquanto se trabalhava, o peixe seco e com pouca carne. Esta recusa descrita

por Zeca, que, ao se referir ao cambão, a coloca em primeiro plano, tem um alto valor

simbólico que nos permite pensar que, com aquilo, os trabalhadores não estavam somente

recusando o peixe, mas também a diária. O peixe era amarrado no cinto da calça tal como os

moradores eram amarrados à diária, o que poderia sugerir que o que está em jogo quando os

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Família, escravidão, luta 184

moradores denominam cambão o peixe amarrado no cinto, elaboram uma metáfora dos

moradores amarrados à diária.

Gregório também vinculou a categoria cambão a Jorge Fernandes. Tanto ele como

Antônio de Ribeiro a traduziram fazendo referência à diária de um modo geral. A diária, a

obrigação de trabalhar um dia de graça para a fazenda, sem alimentação ou com uma

alimentação muito precária — como o peixe seco e a rapadura — sob a ameaça de ser

amarrado ao rabo de um animal: ―Essa é a história que Jorge Fernandes chamava de cambão‖,

observou Gregório, enquanto me falava sobre a diária. Antônio de Ribeiro, por sua vez,

estabeleceu uma sinonímia explícita entre a diária e o cambão: ―O cambão era assim: eu

morava na terra do finado Tozé, aí ele foi lá em casa para meu pai ir dar diária. A diária é o

cambão. Aí, meu pai toda a semana dava um dia, que era terça-feira. Toda terça-feira, meu pai

trabalhava, e não era meu pai só era todo morador‖. Em seu relato, o peixe seco também

estava intimamente ligado ao cambão:

Lá o patrão tinha que dar uma rapadura, uma fava cozinhada numa lata de

botar óleo. Quando não tinha fava, era só rapadura, e quando não tinha, era

um peixe seco, que botava sal e ficava branquinho. O peixe, a gente comia

na casa dele quando ia trabalhar. Não era que mandava peixe para a gente,

como agora o prefeito mandou para a gente em Semana Santa, não. Se você

não fosse para o cambão trabalhar, dar diária ao patrão, você não comia nem

peixe seco. E aquele que não fosse trabalhar, ele mandava o administrador

dar uma pisa. O peixe, ele comprava em Bom Jesus. Mandava botar lá na

cocheira. Toda terça-feira tinha trabalhador. Aí dava aquele peixe para o

trabalhador; era o almoço e a janta da gente no dia de cambão.

Antônio historicizou, além disso, a categoria e situou seu surgimento em um período

ligado à organização sindical na região. A prática existia, mas não como cambão: ―Agora, o

cambão tinha de 1962 para cá. Já tinha cambão, mas o pessoal não falava que era cambão‖.

Deste modo, se estabelece um diálogo entre os líderes sindicais que não eram do lugar

e os líderes que o eram, além de outros habitantes vinculados ao sindicato. Velhas

experiências são ressignificadas e categorias diversas são associadas umas às outras. A

experiência sindical vai sendo construída neste movimento dialético.

Por último, a este respeito, é interessante citar ainda o tio Joca, que também havia

escutado falar do cambão e, não por acaso, quando estava em Santa Rita, Paraíba, um dos

lugares destacados na organização das Ligas Camponesas. No entanto, a reapropriação feita

por Joca adquiria um tom particular:

- ―Seu Joca, você ouviu falar do cambão?‖, perguntei.

- ―O gambá?‖, perguntou Joca.

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Família, escravidão, luta 185

- ―Cambão!‖, esclareceu Teresinha.

- ―Eu ouvi esse negócio de cambão sabe onde? Em Santa Rita, no estado de João Pessoa. Eu

também trabalhei lá, na cana. O cambão é um boi, e o dono do boi, que trabalha no cativeiro,

olha como isso acabou-se68

[...] Isso acabou. Hoje, você chega e vê trator cortando a terra e

plantando; cadê o trabalhador? [...] Hoje, o cativeiro do usineiro é o trator. Pode descer aí de

Sítio Novo para baixo (entrando) no Salvador, aí vai bater em Praia Bela. Só é cana e nem

homem é que faz aquele serviço. Só trator por dentro, cortando e plantando, pronto. O cambão

é o boi e o dono trabalhando. Chama-se cambão‖.- ―Trabalhando para outro?‖, perguntei a

ele.

- ―Trabalhando‖, me respondeu, ―O boi limpando, trabalhando e também plantando e... (Hoje)

não, o boi não, quem planta é o trator‖. Joca continuou falando sobre as plantações de cana e

concluiu: ―O boi e o dono é o cambão, o cambão da usina, não existia esse negócio de trator

trabalhando, nem nada‖.

O cativeiro a que Joca se refere quando fala do cambão alude ao trabalho para o

usineiro nas plantações de cana de açúcar. De acordo com Joca, o cambão implica a cana e

significa o trabalho com um boi e com o dono do boi, de modo que o cambão termina quando

a usina incorpora o trator. Como vimos anteriormente, dito em traços muito gerais, o cambão

é descrito na bibliografia como a obrigação que o morador tem de trabalhar de graça para o

proprietário determinados dias do ano. Em áreas de plantação canavieira do Nordeste, esse

trabalho podia ocorrer tanto na manutenção da propriedade como nas próprias plantações de

cana (Palmeira, 1977). Tendo isso em mente, é interessante observar como Joca distingue o

trabalho de graça para o proprietário de Belém do trabalho nas plantações de cana,

distinguindo com isso, o cambão da diária, que também é de cativeiro. Para Joca, o cambão

não se associa à obrigação de trabalhar de graça para o patrão de uma fazenda de gado — o

que se vincula à diária — e sim ao trabalho com a cana. A diária e o cambão lhe dizem

coisas diferentes: a diária associa-se à sua experiência em Belém, o cambão remonta à sua

experiência em Santa Rita. Um deles se vincula ao trabalho com o gado e o algodão para os

Melo, o outro ao trabalho para um usineiro. Ambos se referem assim a assuntos distintos que

não podem ser generalizados em uma categoria, apesar de ambos serem vistos por Joca como

um cativeiro.

No que diz respeito à derrubada do cambão, a descrição do evento feita por Jorge

Fernandes ou por Jorge Alves é desconhecida das pessoas de Belém. Alguns ex-moradores

68

Novamente, não estamos distantes do jugo destacado por Julião (1968) em sua alusão ao cambão.

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Família, escravidão, luta 186

sindicalizados realizam uma associação entre o fim do cambão ou da diária com o

movimento sindical que eles organizaram ali, mas esse fim não está relacionado a nenhum

evento específico tal como narram os líderes sindicais. Somente um antigo morador e não

diretamente vinculado ao sindicato havia escutado sobre o episódio narrado por Jorge

Fernandes quando falou sobre o fim do cambão, ao qual já nos referimos anteriormente. Este

ex-morador era Antônio de Serras. Em seu relato, tal episódio não significou o fim do

cambão, mas uma mudança importante da alimentação recebida pelos trabalhadores por

ocasião da diária. Por outro lado, os protagonistas do evento não eram as mesmas pessoas

mencionadas por Jorge Fernandes.

- ―E o cambão? O senhor sabe o que era?‖, perguntei a Antônio. A resposta foi negativa, e

perguntei então sobre a ―derrubada do cambão‖: ―Me contaram que teve aqui uma vez, nos

anos sessenta e poucos, que os trabalhadores pagavam a diária e, às vezes, davam peixe seco e

que, um dia, os trabalhadores se recusaram a pegar o peixe seco, e a diária acabou, foi?‖,

Antônio se surpreendeu e me respondeu:

- ―Esse caso aconteceu com um cunhado meu‖. O cunhado de Antônio era vaqueiro e

administrador de Toninho Melo, que tinha fazenda em Olaria. Era o dia da diária, e os

trabalhadores foram almoçar. Quando chegaram ao lugar onde almoçariam e começaram a

fazer o fogo para assar o peixe, um dos trabalhadores pegou um revólver e disse:

- ―O que botar a mão ali, eu ponho uma bala‖. O cunhado de Antônio foi embora. Os demais

recusaram-se a acompanhá-lo. Dirigiu-se à casa de Toninho, bateu na porta e lhe disse:

- ―Seu Toninho, para eu tomar conta do trabalhador, não conte comigo, não‖.

- ―O que está acontecendo?‖, perguntou o fazendeiro.

- ―Olha, se for para dar de comer aos homens, eu tomo conta da diária (mas não para outra

coisa). O cara disse que quem botasse a mão naquela (lenha), atorava uma bala‖, respondeu o

cunhado.

―Era o Marinho. Conhece o Marinho?‖, perguntou Antônio de Serras e seu filho, Luis

Eduardo, que nos acompanhou nesse trecho da entrevista. ―O filho dele mataram na Boa Fé,

agora há pouco‖, respondeu Luis Eduardo. Marinho era quem havia pronunciado a frase sobre

a bala. ―Coisa boa, se o Marinho não tivesse feito aquilo, eles não comiam carne‖, opinou

Antônio. Na semana seguinte àquele episódio, na hora do almoço, ao invés de peixe seco,

começar a dividir carne de charque: ―Aí melhorou a situação, sabe? Aí, ficaram trabalhando e

comiam carne de charque‖.

São poucos os habitantes de Belém que realizam uma associação entre o fim da diária

e a organização sindical, verificando-se aqui um contraste entre suas narrativas e a do

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Família, escravidão, luta 187

sindicato. Apesar de muitos deles reconhecerem a história sindical, não associam, no entanto,

tal organização com o fim da diária. Em suas narrativas, tal fim, como o do foro e o da

escravidão, é progressivo e tem, em geral, uma relação com as vendas de terras por parte dos

proprietários: aquele modo de vida foi decaindo à medida que a fazenda decaía, as terras eram

vendidas, e os Melo se distanciavam. Quando perguntava sobre o fim da diária, ou do foro

aos ex-moradores, as respostas giravam nessa direção: ―E como foi que acabou esse negócio

de diária e de foro?‖ Ou ―Como foi que a diária acabou?‖, perguntei:

Vilma: Porque Toninho vendeu os terrenos, partiu as terras dele, saiu

partindo para o povo, vendendo.

Ivaldo (marido de Vilma): Vendeu para Márcio Araújo, passou para Márcio

Araújo.

Vilma: E Márcio Araújo foi e vendeu.

Ivaldo: Porque ele vendeu os terrenos, foi morar na cidade, saiu do sítio...

Foi ficando pobre, o pessoal foi vendendo as terras, esse pessoal que foi

herdeiro [...] Hoje não tem terra [...] Quando o finado Tozé morreu,

começaram a vender de graça, barato, barato. Aí, foram acabando com

aquilo, e hoje estão todos pobres. Só tem um que mora pelo lado de Serras,

que ele tem lá uns 20ha de terra, porque um genro dele não deixou ele

vender (Antônio de Serras).

Quando todo mundo comprou, que ficou trabalhando no que é da gente

mesmo, pronto, ninguém pagou mais diária para ninguém. Isso aí foi no ano

de 70, 69, 70, que o povo foi vendendo por aqui os terrenos para quem podia

comprar. Aí, quem comprou, trabalhava nos terreninhos (Ana de Manaus).

As vendas e a compra de uma terra própria no que antes era a fazenda são fatores

centrais que os habitantes de Belém assinalam em relação ao fim da diária, aos quais se

somam outros, como a mudança na sabedoria, a saída dos moradores em direção a outras

terras que eles podiam comprar ou onde não existia mais foro, a chegada de melhores

presidentes ou de proprietários que já não cobravam diária:

O cambão acabou... (eu não sei dizer) porque muita gente foram crescendo

[sic], foram trabalhando... foi comprando um pedacinho de terra, saíram da

propriedade... E lá veio os presidentes, apareceu com a coisa boa, melhor

para o agricultor (Antônio de Ribeiro).

Olha, eu não posso nem dizer. Não sei nem lhe informar. O povo foi

comprando terra, foi saindo... O povo não queria pagar mais foro e foi saindo

das terras, sabe? Saindo, saindo, saindo... Todos saíram, todinho, ficou sem

ninguém. Uns foi morar na rua, outros foi morar nas terrinhas, aí acabou-se.

Não teve mais diária para ninguém, não teve mais ninguém para trabalhar

para o doutor Melo nem para ninguém. Saiu devagarzinho, uns saía para a

rua, outros compravam um pedacinho de terra... Papai mesmo comprou terra,

uma terrinha, duas terrinhas e foi para a terra (Teresinha).

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Família, escravidão, luta 188

[A diária] acabou com o doutor Ademar [o proprietário da Fazenda

Laranjeira quando esta foi desapropriada]. Quando o doutor Ademar

comprou, não teve mais diária. A gente trabalhava o tanto que quisesse

trabalhar, não era obrigado [...] Com o doutor Ademar não era diária, você ia

ganhar aquele dinheiro que ele pagava, aquele que precisava, ia trabalhar e

aquele que não precisava, não (Antônio de Boa Fé).

Fernanda: Seu Francisco, a diária como foi que acabou?

Teresinha: Hoje em dia, tem negócio de juiz. Como é tio Joca, que tem

agora?

Joca: Minha filha, acabaram porque o povo mudou, e a sabedoria mudou o

mundo todo, mudou por isso, né? Aí, esse negócio de diária mudou porque

não existe mais a diária para trabalhar todo sujeito. Hoje, não há diária, não.

Hoje, o cara está com 15, 20: ―Rapaz, tu quer 20 para trabalhar um dia (para

eu)?‖ Não é? Acabou-se a diária. Hoje, não tem diária mais não. Hoje, o cara

pergunta: ―Quer vir para trabalhar um dia?‖ — ―Eu só vou por 25‖ —

―Pega‖. Pronto [...] Aí, hoje está perguntando o negócio da diária... Pode

existir o nome, mas não existe hoje a diária, o cara trabalha por quanto quer.

Em contraste, outros habitantes de Belém situam a organização sindical dos

trabalhadores como um elemento central do fim desse sistema. Não obstante, são poucos os

que me forneceram essa interpretação. Zeca, que foi recomendado para falar tanto por seus

vizinhos e vizinhas como por Jorge Alves, observou:

[A diária] acabou pela pressão do sindicato, não deixaram que o proprietário

maltratasse os trabalhadores. Os proprietários têm raiva do sindicato ainda

hoje. Que o rico só quer o trabalhador ao serviço dele. Ele sempre quer

alguma coisa dele, ou o voto, ou o trabalho dele, a mulher dele se for bonita,

ou uma filha. Tem que ter cuidado com o rico, sempre está a fim de lucrar

alguma coisa; se der uma camisa, ele quer a calça.

Gregório também seguiu nessa mesma direção e enfatizou o papel do movimento

sindical, ainda que, como observei anteriormente, tal como Zeca, não reconheça nenhum

evento emblemático em relação a este fim:

O cambão acabou depois que o movimento sindical começou. Dividiram a

propriedade, mas eles mantiveram a mesma coisa que os avós deles faziam:

trabalhar de graça, essa coisa toda. Quando o movimento sindical começou a

tomar força, nós fomos acabando essa história do cambão, de trabalho

escravo de graça, semanalmente tinha que trabalhar de graça. Quem acabou

com o cambão foi o movimento sindical, foi lutando e o cambão acabou.

Por último, me parece interessante citar a este respeito o diálogo entre Evandro, filho

de Gregório e antigo presidente da associação do assentamento, com Fátima, a esposa de

Antônio de Ribeiro. Evandro me acompanhou em sua casa com o intuito de que eu

entrevistasse Antônio. Antônio não estava, e Fátima sugeriu que eu voltasse mais tarde. No

entanto, após ter insistido bastante, consegui entrevistá-la. De modo semelhante a seu esposo,

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Família, escravidão, luta 189

ela vinculou o fim das experiências da escravidão às compras de terras por parte dos

moradores e a uma melhoria na política estatal: ―Graças a Deus, esse tempo acabou. Acabou

depois que os presidentes, os governos... Foi diferente, a coisa melhorou mais, o prefeito, os

deputados...‖.

- ―O movimento sindical‖, balizou Evandro.

- ―... Foram melhorando, graças a Deus; o mais que ajudou foi o Sindicato, bateu muito‖,

concluiu Fátima, incorporando o comentário de Evandro.

É manifesto o esforço de Evandro em destacar o papel do sindicato nas transformações

ocorridas em Belém diante de uma narrativa que não toma essa direção. Este esforço é

observado ao longo da entrevista. Assim, mais adiante, Fátima mencionou o papel que as

vendas e as compras de terra por parte dos moradores teve na melhoria à qual estavam se

referindo. : ―Ah, minha filha, a escravidão foi o pior, depois foi melhorando, melhorando...

Começaram a retalhar as terras, venderam um pedaço para um morador, outro pedaço para

outro... Eles estavam sem terra, e o morador estava com terra; compraram a propriedade de

Toninho Melo, em Lagoa da Montanha, o morador todinho‖.

- ―O sindicato forçou ao proprietário a dar terra para o morador‖, interveio Evandro, e Fátima

confirmou:

- ―Quem deu mais força foi o sindicato‖.

―E a derrubada do cambão?‖, perguntei, mais tarde, e Evandro me respondeu:

- ―É essa historia que o movimento sindical começou criar força com a Igreja. Aí, veio a força

maior do movimento, e o pessoal se uniram e derrubaram [sic], mesmo, não aceitaram essa

questão de ser submersos mais, não, aí foram para a feira com seus negócios, tal e tal. Houve

vários presos, Jorge Fernandes foi exilado; isso tudo foi o movimento que começou a puxar,

não foi do nada. As igrejas foram se organizando, o movimento sindical foi criado em 61,

foram se organizando e derrubaram esse negócio‖.

-―A escravidão‖, esclareceu Fátima.

O cambão, a diária e o foro, a meia, a venda obrigatória da produção e a escravidão

constituem-se, assim, em uma base de significados sobre a qual se constrói a experiência e o

relato sindical sobre Belém. A experiência dos moradores se vê ressignificada na categoria

cambão e, por sua vez, tal categoria se ressignifica a partir da vivência específica dos

trabalhadores de Belém. Por sua vez, ao mesmo tempo que traduzem categorias, os

habitantes de Belém traduzem visões de mundo e somam novos ângulos a partir dos quais

olhar e recortar suas experiências. Suas vivências são reinterpretadas, e essa reinterpretação

permite a construção de um código compartilhado. As idéias de cambão e diária se refazem

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Família, escravidão, luta 190

mutuamente, e visões diferentes de mundo constroem, nessa interlocução, significados

comuns. Existe um entendimento comum em relação às experiências e ao seu caráter negativo

que, as diversas categorias — diária, cambão e escravidão, entre outras —reconstroem.

Entende-se também que essas experiências tiveram seu desenlace. O modo como ele ocorreu

aparece de forma diversa nas narrativas tecidas tanto pelos habitantes de Belém e líderes

sindicais como pelos habitantes de Belém entre si. Destes últimos, são poucos os que

vinculam o fim da diária à organização sindical no lugar e, quando o fazem, diferentemente

dos líderes sindicais que não foram moradores do lugar, não o associam a nenhum evento

específico. Por sua vez, aqueles que não estabelecem uma relação entre o fim da diária e a

organização sindical, não por isso desconhecem tal organização.

Para além do cambão e de sua derrubada, deste grande marco que define Belém nos

discursos mais gerais que são transmitidos a vários interlocutores — entre os quais se

encontram a universidade, os entrevistadores, os leitores interessados pela ―História de 40

anos de Luta da FETARN‖ — e que incorporam Belém ao relato das diversas experiências

sindicais em nível estadual, o relato da organização sindical nesse lugar é composto, além

disso, por outras experiências que vão agregando detalhes e vivências. Essas experiências

adquirem uma narrativa mais cotidiana e se aproximam do reconhecimento, não somente dos

entrevistadores e leitores, mas também de alguns habitantes de Belém. Veremos, então, a

reconstrução dessas várias vivências que fazem da história da luta sindical na fazenda.

O começo do fim da escravidão: entrar para a luta e liberar com os direitos

Como observei anteriormente, o sindicato dos trabalhadores rurais de Bom Jesus foi

criado em 1961, e a delegacia de Belém teve início a partir da criação de tal entidade. De

acordo com Jorge Fernandes, a cidade de Bom Jesus converteu-se em lugar de reuniões de

trabalhadores durante o período de fundação do sindicato. Com poucos participantes no

começo, tais reuniões foram gradualmente aumentando sua envergadura, de modo tal que a

pequena casa que serviu de sede ao sindicato a princípio, deixou de ser o lugar onde, todas as

segundas-feiras — dia em que os trabalhadores do campo se dirigiam para a feira na cidade

— eles se encontravam. As reuniões se fariam agora na sede do cinema. Ao longo desse

processo, os trabalhadores de Belém iriam se aproximando das assembléias, e os líderes

sindicais começariam a convidá-los e a fazer reuniões dentro da fazenda para motivá-los a ser

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Família, escravidão, luta 191

parte da organização. Até que um dia, observou Jorge Fernandes, um deles se associou e, a

partir dali:

Foi se associando, e quando tinha bastante gente em Belém sindicalizada, aí

foi quando começou se tomar posição em Belém. Tomava-se posição nas

assembléias do sindicato, e nós íamos para Belém tentar fundar a delegacia.

Também não foi fácil fundar a delegacia, pela pressão patronal e pelo temor

dos trabalhadores. Na hora que fundasse a delegacia sindical, ia ter um

enfrentamento direto, né? O que aconteceu: fundou a delegacia, e o

enfrentamento foi direto.

Pouco a pouco, os problemas de Belém foram ganhando as reuniões do sindicato. ―Um

dizia que Belém tinha 20 mil moradores, outros diziam que tinha 40 mil, era muita gente‖,

mencionou Jorge Fernandes. Belém era um dos maiores latifúndios do estado, cujos

proprietários possuíam o poder político da região, como um símbolo de poder que, com a ação

sindical, ia se transformando em um símbolo da luta e da resistência: de acordo com o relato

de Jorge Fernandes, a grandeza de Belém era agora conquistada pelos trabalhadores.

―Interessante é que muitos trabalhadores e presidentes de sindicato vinham para Belém para

ver se aquilo estava acontecendo realmente, aí eles voltavam empolgados, né? Com as

(decisões) de Belém, dos trabalhadores se organizarem‖, observou este entrevistado.

Nessa narrativa, Belém ia ganhando um novo significado. Se, entre os proprietários, a

fazenda havia sustentado a cidade de Bom Jesus, a Belém que aqui se apresentava se

convertia, em troca, no sustento do movimento sindical da região: ―Onde o movimento

sindical cresceu foi em Belém. O povo sofria em Belém, e Belém bancou o movimento

sindical na região‖, opinou Gregório e, de modo semelhante, o fez Jorge Alves: ―Belém tinha

outros vizinhos. Então, as outras fazendas giravam em torno de Belém, porque Belém

chamava a atenção, que era grande, tinha muito poder político e enfrentando Belém é mais

fácil enfrentar os outros. Então, começou lá, que era mais difícil‖.

Em Bom Jesus, as reuniões eram realizadas às segundas-feiras e, em Belém, aos

sábados e domingos. Vários moradores recordaram as reuniões que Jorge Fernandes realizava

em Belém, em Lagoa da Montanha e outras comunidades, sob a sombra das árvores, das

mangueiras e cajueiros: ―Foi o tempo em que começou o movimento sindical‖, observou

Gregório:

O movimento sindical foi muito forte, junto com a Liga Camponesa, ainda

tem uma força aqui da Igreja Católica. Na época, Dom Carlos Neves deu

uma cobertura aos trabalhadores. O Jorge Fernandes, que foi o primeiro

presidente da Federação, veio e começou a fazer um trabalho em Belém.

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Família, escravidão, luta 192

Naquela época, o sindicato era mais forte que na atualidade, já que tinha um objetivo

claro: se libertar da escravidão, explicou Gregório, que foi um dos sócios fundadores da

organização. Nesse período, ele já havia feito 18 anos e, tal como seus nove irmãos, quatro

homens e cinco mulheres, havia sido associado ao sindicato por sua mãe, momento em que

partiu para a luta. As reuniões do sindicato não foram fáceis de se realizar, devido à

perseguição dos donos da propriedade que, nessa época, eram os herdeiros e já não mais o

antigo dono, explicou o mesmo interlocutor. Enviado por estes herdeiros, os capangas

chegavam a cavalo, tentando sabotar as reuniões de Belém. De acordo com Gregório, as

pessoas também se encontravam na paróquia de Bom Jesus. Aqueles que se associavam

faziam sua carteira sindical escondidos, com medo dos patrões que, até esse momento,

estavam acostumados a ser donos de tudo, e não unicamente da propriedade. ―Foi muito

cansativo, muita luta, muito trabalho que nós tivemos‖, observou Gregório e mencionou

várias pessoas de Belém que, naquela época, ―fizeram o movimento sindical‖: Manoel de

Bete, que foi delegado sindical de Belém, Cacá Jundiá, já falecido, Zé Silva, preso em 64, e

seu medo continua o acompanhando ainda hoje, ―e nós temos Antônio de Ribeiro, que mora lá

no assentamento também; ele é assentado junto comigo‖.

A enumeração acentuava experiências bem determinadas. À medida que o trabalho de

campo se desenvolvia, era possível visualizar que o que na narrativa sindical tinha a ver com

Belém se orientava de modo predominante à época das origens do sindicato; o circuito

sindical de entrevistas sobre a luta de Belém conformou-se, em sua maior parte, pelas pessoas

que vivenciaram aquelas experiências originais. Ainda que não fosse necessariamente

mediante a menção à derrubada do cambão, as experiências dessa época marcavam uma

descontinuidade na narrativa sindical sobre Belém. Era possível visualizar um tempo que

tinha início com o fim da escravidão e que falava sobre a ―história da luta de Belém‖.

―Olha, vou falar, já tá gravando não está? Quando começou a historia da nossa luta

aqui, que eu vim me entender, que eu entrei na luta. Eu nasci em 1940, com 15 anos eu já

comecei‖. Para Antônio de Ribeiro, a luta havia começado quando ele tinha 15 anos. Ao lhe

perguntar se havia trabalhado no cambão, Antônio me ofereceu um relato que narrava sua

entrada na luta: ―Ave Maria, que meu pai trabalhou o tempo todo, até acabar o cambão; só ia

uma pessoa na casa, e eu ia ainda, os dias que meu pai não ia, ele mandava eu, até um dia que

eu fui, e começou a raiva dele, que eu peguei revolta com ele [com o fazendeiro] e entrei

nessa luta por causa disso‖. De acordo com Antônio, seu pai estava doente e lhe disse: ―Não

vou trabalhar hoje, vai para o finado Tozé‖. Nesse momento, Antônio tinha 15 anos. Quando

chegou ao destino ao qual seu pai lhe enviar, foi limpar a palma: ―Uma fome danada,

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Família, escravidão, luta 193

chovendo, mato grande. Aí, eu peguei uma carreira aqui, 30 homens trabalhando‖. Em um

dado momento, Antônio se descuidou de sua enxada, que cortou um broto de palma. Ao ver

aquilo, ―o velho‖, o ―dono da terra‖ que estava ali, exclamou:

- ―Ehhh, mande esse rapaz aqui!‖. Antônio se aproximou, e o dono lhe perguntou: ―Você é

filho de quem?‖.

- ―Eu sou filho de Seu Joaquim‖.

- ―E por que seu pai não veio?‖.

- ―Porque ele está doente‖.

- ―E você estava cego, que não viu o pé de palma, não? Meteu a enxada e cortou? Seu cabra

safado!‖.

- ―O senhor me respeita‖, respondeu Antônio, e o dono concluiu:

- ―Onde estou, eu que não lhe dou uma lapada! Vai se embora trabalhar!‖.

Mas Antônio voltou a cortar outra planta: ―Eu descuidei, chovendo, a enxada pegou de

novo, outra palma‖. O velho o viu e gritou:

- ―Eeehhh, venha se embora, venha cá, venha depressa, depressa!‖. Antônio se aproximou

novamente, e o patrão disse: ―Olha [...], eu quero lhe bater, cabra safado!‖.

- ―O senhor tem filhos, vai bater no seu filho, em mim, não‖, respondeu Antônio.

- ―Aí, você cortou o pé de palma, cabra safado! Vai se embora, vai se embora, agora mesmo!‖

E Antônio reiterou:

- ―Eu vou embora, agora, o senhor bater em mim, não. O senhor tem direito a mandar eu

embora, agora, a bater em mim, não. O senhor não é meu pai‖.

―E desse dia eu comecei. Aí, comecei minha luta, avisando ao povo e dizendo ao

povo‖, observou Antônio. Esse episódio marcava para meu interlocutor um começo que teve

seu auge com a fundação do sindicato: ―Com o tempo do seu Gregório, com o tempo do Jorge

Fernandes, com o tempo meu e dos amigos, na época, em 1962, aqui, nós fundamos o

sindicato‖. Aquilo representava uma ruptura, o tempo havia deixado de ser dos escravos para

ser do sindicato e de cada um deles, daqueles que haviam iniciado a luta.

―Foi de 1962 para cá‖. De acordo com Antônio, esse foi o tempo em que Jorge

Fernandes se fez presente no lugar e começou a realizar reuniões explicando o que era o

sindicato. A luta começou com 18 pessoas. Pouco a pouco, os habitantes de Belém foram se

somando a eles, e o sindicato em Bom Jesus foi crescendo. Sua sede estabeleceu-se em um

terreno doado pela Igreja, onde continua atualmente. Naquela sede, somente havia uma mesa

e algumas cadeiras de madeira. Era difícil obter dinheiro para comprar lápis e papel para

registrar as pessoas que se associavam e também era difícil lidar com essa linguagem escrita

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Família, escravidão, luta 194

na qual era preciso elaborar as listas de nomes e de números de identidade, sendo que muitos

deles não eram alfabetizados.

Foi necessária muita luta para poder estabelecer seu sindicato. Os patrões começaram

a perseguir os moradores sindicalizados. ―Jorge Fernandes dizia que o sindicato não era para

tomar a propriedade deles, era um direito da gente pagar seus direitos e ter direitos‖. Contudo,

naquela época, os patrões não entenderam e interpretaram que o sindicato queria tomar suas

terras, observou Antônio. A chegada do sindicato vincula-se à chegada dos direitos, e esta

chegada marca um antes e um depois (Sigaud, 1971, 1979). Apesar das perseguições, os

moradores conseguiram continuar naquelas terras e manter seus direitos, o que, de acordo

com Antônio - e de modo distinto ao que este havia mencionado anteriormente quando se

referiu ao fim do cambão - não foi aleatório: ―E nós estamos aqui, graças a Deus, e a nossa

luta, isso foi nossa luta‖.

Uma luta na qual Antônio se apresenta como um de seus fundadores mais antigos,

lugar que também compartilha com seus amigos de luta que ainda estão vivos: Jorge

Fernandes, Manoel de Bete e Zé Silva. ―A história é essa, se alguém contar, nem vai contar o

que eu contei‖. Para Antônio, alguns desses amigos já haviam ficado velhos ou afetados pelo

ocorrido e ―nem sabem contar a história‖, como ocorreu com Manoel, que ―não sabe mais

começar uma história e levar para frente‖. Antônio se sentia autorizado então (e, de fato, o

era) como alguém que sabia contar a história: não somente dizia se lembrar de tudo sobre a

luta, como também se apresentava como um dos mais velhos, um de seus fundadores.

Na época em que começaram as reuniões do sindicato, Manoel de Bete morava em

Rocas, outra das comunidades erigidas em terras da antiga fazenda.

- ―O senhor pode contar a ela como o Jorge Fernandes vinha fazer reunião na sua casa, nos

cajueiros...‖, disse Gregório a Manoel e introduziu a entrevista que eu queria fazer com ele.

- ―Graças a Deus!‖, respondeu Manoel, e Gregório prosseguiu:

- ―Fica aí para conversar com ela‖.

- ―Mas é muita coisa, não vou contar tudo já. Eu fui fundador do sindicato de Bom Jesus, não

fui não?, disse Manoel.

- ―Foi‖, afirmou Gregório, e Manoel começou seu relato.

Logo após anunciar seus 93 anos, Manoel voltou a manifestar o quanto havia sido

extenso e inapreensível o que vivera e as impossibilidades de elaborar um relato exaustivo. Há

mais do que é possível dizer, do que é possível recordar em um curto período de tempo: ―Eu

tenho muita coisa para contar, mas de a pouco, tenho muita coisa para contar, mas a gente

esquece‖. Apesar dessas impossibilidades, Manoel podia me dar algo de suas vivências, ainda

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Família, escravidão, luta 195

que somente uma pequena parte: ―Mas pode gravar e levar para lá, que a coisa aqui nunca foi

boa, não. Depois que esse povo morreu, melhorou um pouco. Eu nasci e me criei aqui em

Belém. A injustiça... mataram muita gente aqui, 300 e tantas pessoas que mataram aqui‖.

Diferentemente do que diziam os vaqueiros, Manoel me diria que Belém nunca havia sido boa

nem justa e, com seu relato, me daria algo daquilo, para que pudesse levar comigo.

Jorge Fernandes havia sido seu amigo de trabalho: ―Eu fui fundador do sindicato. O

Jorge Fernandes estava mais eu e, hoje, é doutor, advogado. Ele trabalhava mais eu, ia lá em

casa, almoçava mais eu, aí depois foi o negócio de revolução, aí teve que sair, não sei pra

onde, e quando veio era (doutor).69

A minha luta aqui foi grande, ele sabe‖. ―Eu não sou um

doutor‖, observou Manoel e enfatizou que, apesar de ter se tornado doutor, Jorge Fernandes o

apresentou como um grande amigo e o legitimou como representante do sindicato, levando

seu nome a todos os rincões do mundo, até chegar ao fim do mundo, como a minha presença

ali evidenciava.

Manoel havia sido eleito um dos representantes do sindicato de Bom Jesus. A reunião

que formalizou a organização em Belém, e que foi lembrada por Jorge Fernandes, também foi

reconstruída por ele. Segundo Manoel, havia ocorrido em Monte Bravo e, diante da oposição

do povo dos Melo, a reunião teve de ser feita na marra: ―O Jorge Fernandes, nós fizemos a

reunião na marra, nós dois‖. Os Melo passaram por ali. Sua intenção era cruzar com seus

veículos em meio aos moradores reunidos; não obstante, ao ver que ali havia cerca de duas

mil pessoas, mudaram de idéia: ―Quando os Melo passaram, se esconderam [...] Passaram no

meio, não. Se esconderam com medo da gente, que era gente em todo canto‖.

―Foi Toninho, sabe quem é?‖, disse Manoel ao homem que nos acompanhou na

entrevista para nos ajudar a traduzir o que cada um dizia. Era um dos homens que vinha na

caminhonete que nos transportou desde Lagoa da Montanha até a casa de Manoel, em Jucá.

―Sei, sei‖, respondeu o homem. Toninho (Antônio Melo Neto) o havia mandado chamar: ―Eu

não devo a ninguém e eu fui‖, observou Manoel.

- ―Por que é que fizeram esse sindicato?‖, perguntou o fazendeiro.

- ―Porque precisava, a gente precisa de documento‖, respondeu Manoel e Toninho tentou

persuadi-lo:

- ―Não, mas a Liga Camponesa é de comunista, não sei o que, não sei o que...‖, mas Manoel o

interrompeu:

69

Com a categoria doutor, as pessoas do lugar não se referem ao título profissional de modo literal. Costumam

utilizar o termo para aludir àqueles oriundos de uma cultura mais escolarizada e urbanizada

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Família, escravidão, luta 196

-―Não, eu não quero saber de Liga Camponesa. O que eu quero saber é do direito que eu

quero ter, o sindicato é a lei para a gente tirar um documento bom‖.

- ―Não, que isso é para tomar o que é do povo, não sei o que, não sei o que...‖, insistiu o

fazendeiro. ―Aí eu tinha uma roça lá, aí botou a questão‖, observou Manoel. Os

enfrentamentos começaram.

Não foram somente os protagonistas destas reuniões e da fundação do sindicato de

Bom Jesus que as recordaram. Vários outros habitantes de Belém também o fizeram. Tanto

Vilma, de 58 anos, como seu esposo, Ivaldo Vera, dez anos mais velho que ela, que hoje

vivem no assentamento Jorge Fernandes, moraram desde pequenos em Lagoa da Montanha.

Quando lhes perguntei sobre a fundação do sindicato, sobre a época em que eram feitas

reuniões sob a sombra dos cajueiros naquela comunidade de Belém, ambos se lembraram do

que eu estava perguntando. ―Eu lembro tudo, a reunião com Manoel...‖, respondeu Vilma, me

surpreendendo, já que na entrevista que havia feito com ela, antes de entrevistar seu marido,

ela havia mostrado desconhecimento sobre o tema e sugerido que eu conversasse com Ivaldo.

Este último acrescentou:

- ―Manoel de Bete [...] Jorge Fernandes...‖.

- ―Nesse tempo, ele [Manoel] era presidente do sindicato. Ele morava do outro lado do Rio, e

nós era debaixo do cajueiro‖, prosseguiu Vilma.

- ―Porque eu assisti muita reunião com Jorge Fernandes, Manoel de Bete, Francisco [...] que é

primo da gente, ainda, e um bocado de gente assistia nessa reunião, lá na beira do rio,

embaixo do pé de (cajueiro)‖, observou Ivaldo.

- ―E falavam o que nas reuniões?‖, perguntei a eles.

-―Falavam da reforma agrária‖, respondeu Ivaldo, e Vilma acrescentou:

- ―Falavam em sindicato‖.

- ―Falavam em sindicato‖, afirmou Ivaldo.

- ―Falavam que ia aparecer para tudo mundo a reforma agrária. Que tem o direito, os

trabalhadores têm o direito‖, continuou Vilma.

- ―Falavam até que conseguimos‖, concluiu Ivaldo.

Nessa época, Ivaldo era solteiro, e Vilma ia às reuniões com seu pai. Foi o momento

em que começaram a realizar a carteirinha do sindicato, a pagar a entidade e a adquirir os

direitos que hoje tem o trabalhador. ―O sindicato era um documento bom para a gente, para

todo mundo‖, me explicou Vilma, e seu marido acrescentou: ―O sindicato é um documento

para o negócio de ter que se aposentar, um documento para o negócio de terra, para o negócio

do cabra que está doente e tem que ir no hospital‖. Entrar no sindicato e adquirir direitos são

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Família, escravidão, luta 197

atos que se materializam em um documento, cuja materialidade se torna, desse modo, central

(e explica o fato de se enterrar a carteira sindical durante os momentos de maior perseguição

dos moradores sindicalizados). O reconhecimento social transforma o documento em doador

de direitos; o documento comunica e não somente de um modo referencial. Ele possui uma

força ilocucionária que constitui a cidadania de quem o possui (Peirano, 2006). Deste modo,

em Belém, o reconhecimento social da carteira sindical permitia que esta constituísse as

pessoas que a possuíam em trabalhadores rurais com direitos.

Como Ivaldo e Vilma, outros ex-moradores de Belém também se lembraram e

mencionaram aquelas reuniões. ―O senhor ouviu falar do Jorge Fernandes?‖, perguntei a

Antônio de Serras.

- ―Jorge Fernandes? Não estou lembrado‖, me respondeu.

- ―Quando começou o sindicato aqui, que eles...‖, comecei a fazê-lo lembrar do ocorrido.

- ―Sim! Eu me lembro que houve uma revolução, do sindicato, que o pessoal dizia que queria

tomar as terras. Tinha Jorge Fernandes mesmo e tinha outros mais, tinha... era... Antônio de

Ribeiro era um deles‖.

Antônio de Serras havia participado de algumas dessas reuniões, apesar de, naquela

época, ter somente 20 anos ou ainda menos, me disse. De acordo com as suas lembranças, as

reuniões eram feitas em alguma casa de morador, sob a sombra das árvores. Maria das Dores,

da ―família dos Meireles‖ foi evocada por Antônio como outra das principais figuras desse

período: ―Uma mulher dessas que brigava, mesmo, e que dava aquela força também. Ela

trabalhava em Bom Jesus, fazia carteira de sindicato, essas coisas, carteira profissional, e ela

era uma líder sindical, né? Aí, ela era uma pessoa que não tinha medo de nada, bem peituda‖.

Quando o sindicato começou, a maioria das pessoas tirou suas carteiras, mas tiveram de fazê-

lo escondido dos patrões, que se opunham ao sindicato, já que pensavam ―que o sindicato era

para tomar as terras‖, observou Antônio. ―Aquele pessoal era privado, sabe?‖. As pessoas

deviam tomar cuidado para que o patrão ―não ficasse de olho neles‖. Se o patrão soubesse que

a pessoa havia feito sua carteira de trabalho, lhe ordenava que desocupasse a casa, uma vez

que este ―ficava de olho; qualquer coisinha que a pessoa pisasse na bola, ele mandava

desocupar a casa‖. ―Foi o negócio do sindicato, as Ligas Camponesas, essas coisas. Aí era o

direito que eles queriam criar para o trabalhador, né? Aí, o latifundiário não queria abrir mão,

por isso houve esses conflitos‖. No entanto, prosseguiu Antônio, as pessoas precisavam se

legalizar. Para ser considerado um agricultor e ter direitos, era necessário o sindicato. Com o

tempo, os patrões foram se acostumando e, atualmente, o sindicato é um direito, mas no

começo foi muito agitado, e não somente em Belém, também em outros lugares, como em

Page 212: Tese Fernanda Figurelli

Família, escravidão, luta 198

―(Mari), na Paraíba; houve um conflito lá, e morreram não sei quantas pessoas. Lá era Liga

Camponesa‖, concluiu Antônio.

Como deixam entrever os relatos dos habitantes de Belém, o sindicato lhes falava,

entre outras coisas, sobre os direitos do agricultor, do trabalhador, os quais se

materializavam em um documento. No ―tempo em que começou o movimento sindical‖, disse

sobre a entrada no mundo da escrita, dos direitos, da lei e dos documentos, um mundo que

significa um corte com a escravidão. Era algo novo com o qual teve de se acostumar. Os

patrões não ―queriam abrir mão‖ e não foi simples fazer desses direitos e documentos um

costume ou uma mudança na sabedoria. Uma vez fundada a delegacia, o enfrentamento foi

direto, observou Jorge Fernandes, em uma frase citada mais acima. Os patrões reagiram

contra o sindicato e contra os trabalhadores que se afiliaram à organização. De acordo com

estes últimos, os fazendeiros alegavam que o sindicato era de comunistas e queria tomar ou

invadir as terras que não lhes pertenciam. Foi com esse argumento que atacaram a luta pelos

direitos dos trabalhadores rurais. Como sintetiza Jorge Alves:

Os trabalhadores organizados fundaram o sindicato de Bom Jesus. Houve

uma reação por parte dos fazendeiros dizendo que aquele sindicato era

comunista, que o Jorge Fernandes era comunista, e que o presidente do

sindicato de Bom Jesus também era comunista, e que estava incentivando os

trabalhadores a invadir, a tomar terra alheia. Então, houve essa onda, e

houve muita repressão em cima dos trabalhadores, muita audiência. Teve

uma denúncia que os trabalhadores tinham derrubado uma cerca. Eles

começaram também a reprimir os trabalhadores para os trabalhadores sair da

fazenda [sic]. O que é que eles faziam? Eles (passavam uma cerca) tomando

a lavoura do povo, botava o gado dentro, e os trabalhadores iam lá e

derrubavam a cerca. O que é que eles faziam também? Os fazendeiros

começaram a chocalhar capanga, botar um chocalho no pescoço do capanga

[...] do jagunço, e ia para dentro do roçado do camponês, de noite, e quando

o camponês ouvia a soada do chocalho e pensava que era o gado que estava

comendo a lavoura dele, é que se levantava de noite para ir; e eles matavam,

matavam e enterravam, matavam e lá mesmo faziam um buraco e

enterravam o trabalhador dentro da própria fazenda. Houve muita morte,

muito massacre, muita repressão, prisão, perseguição em cima do camponês,

mas os camponeses não recuaram.

De modos distintos, as lembranças de meus interlocutores trazem evidências desses

enfrentamentos, alguns dos quais abordarei em seguida.

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Família, escravidão, luta 199

Versus proprietários

―Aí eu tinha uma roça lá, aí botou a questão‖, ali havia retido a frase de Manoel de

Bete. A entrada de Manoel no sindicato abriu um enfrentamento direto com o fazendeiro, que,

neste caso, era Antônio Melo Neto. ―Se o senhor não me quer na propriedade, eu saio‖, disse

Manoel a Toninho, quando este último quis ocupar a sua roça sem deixar que ele vendesse o

que havia plantado. O fazendeiro ―botou na mão do juiz, o juiz mandou me chamar‖, disse

Manoel. Uma vez diante do juiz, decidiu enfrentá-lo e lhe dizer que era um ―comunista‖ por

querer se apropriar da sua roça: ―O juiz era outro ladrão que nem ele, queria tomar a roça para

eles dois‖. Manoel pensou: ―Vou dar uma atacada nele, vou dar uma atacadinha‖ e disse,

então, ao juiz: ―O primeiro comunista do Brasil é você, viu? Porque você quer tomar meu

suor, e ele, (o Toninho) [...] Eu sou pobre, mas eu tenho meus direitos‖. ―Eu chamei o juiz de

comunista, eu chamei na cara dele‖, mencionou Manoel. A questão demorou dois anos: ―Foi

de Trindade para o Rio de Janeiro, no tribunal do Rio de Janeiro‖. Nesse período, Manoel foi

defendido pelos advogados do sindicato, que disseram a Toninho: ―É costume de vocês

mandar matar, mas esse aí é nosso, viu? Se ele morrer deitado na cama dele, foram vocês que

mandaram matar, viu?‖. ―Porque qualquer coisa, ele mandava matar. Eu nunca confiei não,

que se eu morresse, ninguém sabia‖, me explicou Manoel.

A questão chegou ao Ministério da Justiça e se encerrou ali. Manoel e seus advogados

se encontravam diante do ―doutor do tribunal‖, que ―abriu a gaveta, tirou meu caso e disse:

‗Caso Manoel de Bete. Diga a ele que tá na mão dele, só Deus é quem arranca‘‖. ―Graças a

Deus!‖, me disse Manoel com um sorriso. Havia conseguido manter a sua roça. No entanto,

não conseguiu com isso anular a desconfiança do fazendeiro: ―Aí, ele (nunca teve raiva de

mim, não), mas nunca confiei nele, que a gente (daqui) nunca deve confiar em nada [...] Eu

nunca corri não, nunca teve medo não, mas nunca confiei nele, ele morava em Bom Jesus e eu

nunca confiei nele, graças a Deus, hoje acabou-se isso‖. As questões resolvidas na justiça não

por isso o eram na vida de todos os dias.

- ―E o senhor morava aonde, no Monte Bravo, perguntei a ele.

- ―Morava aqui. Eu tinha um terrenozinho‖, respondeu.

- ―Aqui em Rocas, né?‖, lhe perguntou o homem que nos ajudava, traduzindo-nos.

- ―Em Rocas, no arisco, lá embaixo, e dali, esse terrenozinho eu vendi e comprei essa casa

aqui. Eu estou satisfeito, meu santo é muito (forte). Uma pessoa pobre, sem futuro, mas meu

santo é (forte), nunca me entregou não, nunca. Estou com 93 anos‖, Manoel ri: ―Gravou

alguma coisa?‖.

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Família, escravidão, luta 200

Gravei aquilo e vários episódios que me foram contados por Manoel e por outros

narradores. As audiências judiciais haviam começado e, com elas, as tentativas de expulsar os

moradores sindicalizados da propriedade. Sobre este aspecto, há várias notícias publicadas em

―A Ordem‖, periódico da Arquidiocese de Trindade, fundado em 1935. Como se pode ver na

desconfiança de Manoel em relação a Antônio Melo Neto, o periódico também afirma que os

donos da fazenda procediam à expulsão dos moradores tanto por notificações judiciais, que

era o que correspondia legalmente, como por meio de diversas ameaças ou agressões. Diante

disso, os moradores exigiam o direito à indenização pelos bens produzidos naquela

propriedade.70

Além dos enfrentamentos que giraram em torno das expulsões, houve também outros

antes do Golpe Militar. Alguns incidentes, como o do agave e o do algodão, foram

mencionados por mais de um ex-morador de Belém; o episódio do agave foi relatado,

inclusive, por um dos proprietários, como se pôde ver no primeiro capítulo. ―Ela quer que

você diga, naquele tempo, que vocês arrancaram o agave do Manoel Câmara, aquele algodão

do doutor Melo, como Belém era, do finado Tozé Melo, que era quem mandava em tudo, as

fazendas e tal. Conte isso aí a ela, ela quer saber disso‖, disse Gregório a Manoel de Bete, no

dia em que fomos à sua casa entrevistá-lo. Gregório traduzia meus interesses e, enquanto os

70

As notícias desse jornal permitem visualizar tanto as diferentes estratégias que os proprietários adotavam para

a sua expulsão como as respostas da organização sindical diante dessas ofensivas. Tais notícias assinalam que os

proprietários não cumpriam com o mecanismo legal que devia reger aquilo, ameaçavam seus moradores e lhes

negavam a indenização de suas benfeitorias. Podemos citar como exemplo uma nota do sábado 3 e do domingo 4

de fevereiro de 1962. Nela, o ―Jornal A Ordem‖ tem como título na página 8: ―Proprietários da Fazenda Belém

expulsam trabalhadores rurais‖: ―Em dias desta semana vieram à redação deste jornal trabalhadores rurais de

Bom Jesus para externar a sua revolta contra a expulsão de que estavam sendo vítimas, pelos atuais proprietários

da fazenda Belém, srs. Antônio Melo Neto, Márcio Araújo, Luis Melo e José Duarte Melo, principalmente. [...]

Relatam os reclamantes que sendo alguns deles residentes em terras de Belém há 60 anos, estão sendo expulsos

sem qualquer indenização pelas benfeitorias que ali produziram. Como ponderassem aos proprietários que a

indenização deveria proceder à retirada, foram até ameaçados de morte, tendo suas casas rondadas

freqüentemente por conhecidos mal feitores. / Citaram casos em que houve notificação judicial procedida pelo

proprietário, mas em que a pressão para a imediata retirada foi da mesma veemência. / O motivo: A única razão

desse procedimento dos proprietários é a circunstância de haverem os trabalhadores se filiado ao Sindicato dos

Trabalhadores Rurais de Bom Jesus e, conseqüentemente, alertado seus direitos e deveres‖. Entre outras

informações, a notícia relata que houve necessidade de tomar medidas judiciais para garantir a segurança desses

trabalhadores que haviam se dirigido a Trindade para se reunirem com o advogado da organização sindical.

Alguns dias depois, o mesmo meio de comunicação tornou a mencionar o assunto e relatou, desta vez, as

medidas tomadas pela organização sindical. A notícia, cujo título é ―Dr. Paulo Rodrigues, advogado dos

sindicatos rurais: É inglória e antipática a atitude dos patrões que combatem o sindicalismo‖, cita as palavras do

advogado dos sindicatos rurais que assinalou: ―tomamos as duas únicas medidas que o caso ensejava. Em

primeiro lugar, procuramos um entendimento amigável com os patrões convictos de que esta medida é que

melhor consulta os interesses de ambas as classes e porque as atividades do SAR têm como constante o

pacifismo. Como segunda providencia, temos o ajuizamento das questões não solucionadas amigavelmente‖ (17

e 18 de fevereiro de 1962, pág. 3). As notícias de ―A Ordem‖ relativas às tentativas de expulsão dos proprietários

de Belém não terminam aqui. São narrados, entre outros, episódios como o incêndio da cerca de um

arrendatário por parte de um dos proprietários (24 e 25 de fevereiro de 1962, pág. 8) ou a invasão da sede do

sindicato de trabalhadores em São Sebastião por parte de outro proprietário que, além disso, ameaçou de morte

um arrendatário e destruiu as plantações (7 e 8 de abril de 1962, pág. 8) (cit. em nota 66).

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Família, escravidão, luta 201

apresentava para Manoel, era revelador ver como as minhas perguntas sobre o conflito de

Belém iam assumindo novas formas.

O episódio do agave ocorreu previamente ao Golpe. De acordo com Ricardo, do

assentamento, Márcio Araújo havia plantado tal cultivo em uma extensa porção de terras de

Belém que ―acabou com o roçado do povo‖ que morava nesse lugar. Para Ricardo, o negócio

do fazendeiro era claro: ―Para o fazendeiro é bom, ele investe e tem um retorno; ele achou que

o morador não estava dando retorno a ele, aí pegou as terras para trabalhar e botou sisal‖. Os

próprios moradores haviam sido obrigados a realizar a plantação desse produto. A época

estava difícil, era a época ―época do Márcio Araújo, o finado Tozé já tinha morrido‖. Os

moradores já não puderam manter seu roçado e foram embora dali.

Foi na época de 62 para 63. Foi na época que plantaram agave. Aí muita

gente ficou trancada ali [...] tinha que procurar o canto dele, para sair, porque

não queria mais morar dentro do agave dele [do Márcio Araújo]. Saiu todo

mundo, só ficou uma única pessoa e eu lá... Meu pai comprou esse

terreninho lá, foi em 64... Foi que tudo mundo saiu.

O pai de Ricardo – junto com outras 36 pessoas - havia sido morador de Trovoada,

comunidade afetada pelas plantações de agave. Também havia sido um homem de confiança

de Tozé e, mais tarde, de Márcio Araújo e, na época do agave, quando as pessoas começaram

a sair do lugar, foi o único morador que ficou por ali. Ricardo me contou que eles compraram

dois hectares nesse lugar, mas não fizeram a escritura: ―‗não, não vou escriturar porque não

tenho dinheiro, deixa passar um ano ali quando arrumar dinheiro‖, havia dito seu pai naquele

momento. Quando finalmente chegou o dia da escritura, Márcio Araújo disse: ―Eu não posso

escriturar uma terra dentro de 2 mil ha de terra. Escriturar 2 ha no meio da terra, aí você mora

até o dia que Deus mandar chamar‖. ―Foi o que aconteceu, meu pai morreu aqui dentro‖.

Ricardo continuou em Trovoada até completar seus 45 anos e ir para o Rio de Janeiro, em

meados nos anos 1980.

As plantações de agave despertaram a reação do movimento sindical: ―E lá vai, lá vai,

aí o pessoal ia arrancar‖, observou Ricardo. Segundo Gregório, o movimento sindical havia

crescido e ganho tanta força que aquilo tornou possível a decisão de extirpar esse agave. De

acordo com esse entrevistado, o episódio se deu em terras de Manoel Câmara, um proprietário

que não era de Belém. ―Vamos arrancar o agave do Manoel Câmara e fazer plantação lá‖. A

proposta foi um fato: ―Cem homens foram lá e arrancaram o agave para fazer roçado‖. Logo

após aquilo, os proprietários mandaram a polícia, e várias pessoas foram presas. No entanto, o

movimento sindical tinha a proteção da Igreja e de Maria das Dores Meireles, que era ―uma

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Família, escravidão, luta 202

pessoa ligada à Igreja‖, disse Gregório. A entidade os apoiava na confusão e lhes dava força,

e a ―Igreja Católica era muito respeitada‖, opinou este entrevistado.

Outro dos enfrentamentos coletivos entre moradores sindicalizados e proprietários,

contado pelos ex-moradores, se deu quando ―arrancaram o algodão do doutor Melo‖. Como

observamos ao longo do trabalho, as plantações dos donos de Belém eram trabalhadas pelos

moradores: ―Quem cuidava do roçado deles eram os moradores, com esses dias de cambão‖,

explicou Gregório. Manoel, por exemplo, lembrou seu trabalho nas plantações de algodão de

Antônio Melo Neto e a confrontação que teve com este em relação a este assunto. Todas as

terças-feiras, Manoel empreendia as dez carreiras de algodão de mil braças que o empregado

dava a cada morador como tarefa durante os dias de diária.71

―Na diária, o empregado era

ruim‖, o empregado que Manoel chamara anteriormente de cambão. Um dia ―foi lá em casa‖,

disse Manoel.

- ―Quem?‖, perguntei.

- ―O Toninho‖, me esclareceu o homem que nos ajudava a nos compreendermos mutuamente.

Manoel ficara doente e não havia podido ir à diária. O proprietário lhe enviou, então,

três recados, exigindo sua presença, ―nos quatro dias, ele veio para levar amarrado na

(vassoura) do burro‖. Manoel se negou e lhe disse:

- ―O senhor (veio) para que? (Para me tirar sossego)?‖. ―Porque o que eu tinha a dizer era

isso‖, nos disse Manoel. O proprietário lhe respondeu:

- ―Mas amanhã, quando for terça-feira, você vai ou vai, eu venho buscar‖.

- ―Quando você vier, traga uma rede (para eu me dar sossego), porque se estiver bom, eu vou.

Você me enchendo o saco, não vou nem indo no burro‖, respondeu Manoel.

Manoel foi somente na semana seguinte. Por volta das 4h da tarde, ele já havia

terminado de trabalhar as dez carreiras de algodão.

- ―Mas está cedo, agora vai trabalhar de novo‖, lhe disse o empregado.

- ―Não, são 4h e vou-me embora‖, respondeu Manoel. Em seguida, disse a quem estava ali:

―Ninguém é cativo, vai embora!‖.

―Acabou e saiu tudo mundo‖. Seu enfrentamento com o proprietário já estava

consumado. Manoel era visto agora como um cabeça dos trabalhadores. ―A vida é essa

71

A braça é a ―unidade de medida de comprimento que corresponde a 6 pés ou aproximadamente 1.83m‖

(IBGE, 2004). Se considerarmos que o salário mínimo diário de um trabalhador rural equivale teoricamente ao

trabalho em uma área de 10 braças por 10 (o que corresponde, aproximadamente, à ―conta‖) (Palmeira, 1971), é

possível pensar que as mil braças a que Manoel faz referência correspondam à quantidade que, não um, mas a

totalidade dos moradores devia trabalhar durante os dias de diária.

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Família, escravidão, luta 203

mesmo, Deus do céu é bom. Gravou?‖ Me perguntou Manoel novamente e exclamou: ―Minha

vida é um romance!‖.

Para voltar ao episódio que Gregório havia começado a contar, no qual os moradores

arrancaram o algodão do proprietário, este havia ocorrido na terra de Luis Melo, outro dos

herdeiros de Belém. O herdeiro tinha uma plantação de algodão que era trabalhada pelos

moradores: ―Também fazia tudo por conta da gente; não gastava nada para fazer isso,

chamava para trabalhar e tinha que ir‖, observou Gregório. De acordo com este entrevistado,

quando ―veio a força‖ do sindicato, os trabalhadores fizeram uma proposta: ―Vamos arrancar

algodão e vamos fazer para a gente, para nós plantar‖. Foi no final da safra, o algodão que

havia sido colhido, somente ficavam as plantas: ―Aí fomos lá e arrancamos o algodão que já

tinha sido colhido para trabalhar a terra‖.

―Tinha esse negócio de apanhar um roçado de um para outro‖, explicou Manoel,

referindo-se às ações do sindicato no tempo de sua fundação, mediante as quais se tentava

plantar roça em extensões que os proprietários cultivavam comercialmente e que haviam sido

trabalhadas gratuitamente pelos moradores. Nesse tempo, Manoel era um dos representantes.

―Eu fui representante do sindicato. Jorge Fernandes era representante também do sindicato

mais eu, tinha um que era secretário [...] Aí, o Luis Bezerra era o presidente do sindicato

nesse tempo, aí levou (uma turma para arrancar) algodão lá‖. Luis Bezerra havia juntado uma

turma de homens para ―tomar um campo de um para dar a outro‖. A polícia soube daquilo e

foi atrás deles. Ao inteirar-se que a polícia estava a caminho, uma pessoa do sindicato avisou

aos trabalhadores que se encontravam no campo de algodão para que voltassem: ―Venho

dizer para os trabalhador [sic] que eu mando ir para trás!‖; mas o aviso foi tardio. No campo,

havia mais de 200 homens que já haviam arrancado o algodão, e a polícia se fez presente em

seguida: ―Tinha um bocado de polícia, aí eu sei que (ninguém deixou o campo)‖, concluiu

Manoel.

―Isso deu muita confusão, Melo levou a polícia lá‖, contou Gregório. Após aquilo,

algumas pessoas foram presas, mas também rapidamente liberadas. ―Nós vencemos essas

dificuldades‖, disse este entrevistado.

Belém havia se convertido em um centro da luta sindical. Os acontecimentos que

ocorriam na fazenda começaram a ser difundidos entre os membros da organização e se

fizeram conhecidos em todo o estado.72

Belém, que significava aqui o grande latifúndio, se

72

No periódico ―A Ordem‖ também se pode visualizar aquilo. Como observamos na notícia sobre Belém citada

na nota 66, 20 mil trabalhadores rurais do Rio Grande do Norte, filiados às organizações sindicais do estado,

tomam conhecimento do ocorrido ali e manifestam solidariedade pelo episódio narrado. Tal episódio fala da

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Família, escravidão, luta 204

construía como um símbolo de luta. ―Todo o movimento da esquerda ia para Belém, para

conhecer Belém, para conhecer como é que estava a organização de Belém‖, observou Jorge

Fernandes. À medida que foi crescendo, a organização sindical no lugar foi se estendendo a

outros espaços e, em uma das plenárias que se realizavam todas as segundas-feiras em Bom

Jesus, os trabalhadores decidiram apresentar um candidato a prefeito para as eleições desse

momento. Seria Zé Cunha Pereira, um cobrador de impostos da prefeitura de Bom Jesus cujo

pai era um morador de Belém sindicalizado. Quando os trabalhadores de Belém se dirigiam

todas as segundas-feiras à feira para vender seus produtos, Zé Cunha não lhes cobrava os

impostos e lhes deixava passar, por isso os trabalhadores o elegeram como candidato.

Os relatos de Jorge Alves e Jorge Fernandes foram os mais enfáticos em relação a esse

acontecimento. Disputar o poder político da cidade requereu um grande trabalho: ―Nós

(verificamos) que não podíamos ter o poder político, porque a grande maioria, a grande

maioria dos trabalhadores rurais de Belém, era analfabeta, não podiam votar, então era um

impedimento‖, mencionou Jorge Fernandes. De acordo com ele, a organização sindical

manteve, nesse período, uma importante aliança com organizações de estudantes

universitários: ―Eles iam lá, estudar Belém, eles viam o comportamento‖ e foi através dessa

aliança que conseguiram ganhar as eleições: ―Toda sexta-feira à tarde, iam carros a custo

zero, porque era estudantes que iam, muitos estudantes iam para Belém para poder ensinar aos

trabalhadores a fazer o nome para poder [...] votar‖. Depois daquilo, conseguiram disputar o

poder político da cidade que, nesse momento, estava nas mãos da família Machado Silva,

observou Gregório. O candidato dos trabalhadores foi eleito antes do Golpe Militar e assumiu

o posto após o mesmo. ―Foi eleito prefeito na cidade mais importante do Trairi, só que eu não

pude vir à posse porque eu estava preso, porque veio o Golpe logo, e eu não acompanhei‖,

concluiu Jorge Fernandes.

Após vários enfrentamentos, ―chegou o ponto do domínio total de Belém, né? Os

trabalhadores tinham o domínio de Belém totalmente; todo esse sistema da escravidão foi

abolido em Belém, os trabalhadores não pagavam mais meia, não pagavam posse, não

pagavam nada, era deles Belém‖, disse Jorge Fernandes. Como já analisado, a organização

sindical significou, no relato deste entrevistado, um corte marcado em relação ao fim da

escravidão, o que se diferencia do relato dos demais narradores sindicais, para quem tal

organização marca o começo de uma luta que alcançará seus objetivos de um modo mais

agressão de Luis Melo a um de seus moradores e a invasão que faz à sede do sindicato de trabalhadores rurais de

São Sebastião.

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Família, escravidão, luta 205

paulatino. Como observou Antônio de Ribeiro: ―Aí, depois, com o tempo... já bem pra cá é

que a coisa foi melhorando‖.

“Vai embora que vão te pegar também”

1964. A chegada do Golpe ou, como mencionaram com maior freqüência os

trabalhadores de Belém, da Revolução, marca uma diferença nos tipos de episódios contados

por eles. Apesar de os acontecimentos prévios ao Golpe referir-se a ofensivas dos

proprietários, também falavam sobre as defesas diante dessas ofensivas, bem como de

investidas por parte dos trabalhadores. Falava-se de enfrentamentos entre trabalhadores e

proprietários. Era um tempo de liberação da escravidão. Mas agora os relatos começam a

mudar, e os enfrentamentos a ceder lugar às fugas, às perseguições, às prisões, às cabeças

raspadas.

Eu já havia entrevistado Antônio de Ribeiro e, antes dele, sua esposa Fátima. Ele havia

sido recomendado tanto por Gregório como por Jorge Alves. Passado um tempo, Teresinha

me contou que estivera conversando com Antônio. Nessa ocasião, lhe perguntou se me havia

falado sobre seu casamento e sobre a demolição da sua casa, e ele respondeu que não havia

me falado muito sobre ―essa parte‖. Teresinha propôs, então, me acompanhar um dia na casa

de Antônio para que ele aprofundasse esta questão. Era algo pelo que ela também já havia

passado: ainda que a sua casa não tivesse sido demolida, precisou ir embora dali. Certo dia,

Antônio estava no terreiro de Teresinha junto a Gregório e outros homens. Quando se

aproximou da área para conversar com Teresinha e comigo, ela lhe disse que eu tinha de

voltar a entrevistá-lo para que me contasse sobre a sua casa. Mas a Antônio não pareceu

conveniente. Para ele, eu já havia gravado tudo e, se voltasse a fazê-lo, a história ficaria muito

prolixa. Ele havia narrado uma linearidade, que seria alterada com uma nova gravação.

Preferia, então, que seu relato permanecesse do modo como me havia passado.

Teresinha e outros vizinhos de Antônio sabiam sobre a sua história. Alguns sabiam,

como Teresinha, que haviam demolido a sua casa; outros, que precisou ir embora. Também

sabiam dos demais trabalhadores que, nessa época, foram presos e perseguidos. Antônio

precisou fugir para São Paulo quando estava para se casar. ―Eu vi a hora dele sair e não

chegar em casa‖ foi desse modo que Fátima, sua esposa, me introduziu ao assunto que ambos

contaram com detalhes.

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Família, escravidão, luta 206

Antônio era um jovem de cerca de 20 vinte anos, que estava para casar. Havia pedido

um terreno de Belém, em Lagoa da Montanha, ao proprietário, que era Toninho Melo. Este o

havia cedido, e Antônio havia começado a construir a casa onde viveria com Fátima. Essa

casa não durou muito. O proprietário ordenou a demolição, e Antônio perdeu a sua casa,

tamanha a raiva do primeiro por conta de sua participação no sindicato.

Episódios como esse também foram contados por outros ex-moradores, como Manoel

de Bete. ―Aqui, não tinha confiança‖, observou de novo Manoel e me falou sobre um rapaz

que estava para casar e que havia feito uma casa na margem do rio, uma casa de barro. O

proprietário o havia autorizado a fazê-la e a botar o roçado onde quisesse. No entanto, com

rifle e revólver, este e seus capangas foram um dia até aquela casa novinha e a botaram

abaixo.

- ―Por que fizeram isso?‖, perguntei a Manoel.

- ―Por quê? Por ruim, porque o safado [referindo-se ao proprietário]... que ele não foi dizer a

ele que ia fazer a casa lá; ele fazia o roçado onde queria, mas a casa, ele não foi falar que ia

fazer a casa nesse canto‖, me explicou Manoel.

Manoel havia conservado vestígios do episódio: ―Eu achei duas balas de revólver ali,

ainda tenho‖. Se o jovem e sua família se encontrassem na casa, naquele momento, o

proprietário os teria matado, afirmou Manoel. ―Aqui, minha filha, tinha que ter paciência e

coragem [...] Todo canto saia para matar a gente, botar a casa abaixo‖. Gregório também falou

sobre o tema e mencionou a enorme dificuldade de se construir casas em Belém, naquela

época: ―Eu me casei em 64, em 65, e naquele tempo a casa era de taipa, fazia essa casa com

trabalho, e o proprietário de jeito nenhum queria que faça [sic] essa casa na sua propriedade‖.

Como vimos no capítulo anterior, Teresinha também falou sobre isto: ―Esse tempo foi

difícil‖, observou Gregório.

Para voltar, então, a Antônio, ele perdeu a casa que havia construído, mas não foi

somente isso. Antônio teve de ir embora e não voltou até se passarem alguns anos. Na noite

em que se foi, observou Fátima: ―Pegaram o compadre Zé Silva, pegaram Manoel de Bete e aí

disseram: ‗Vamos matar Antônio de Ribeiro‘‖. Antônio estava na casa da moça que, na

época, ainda era a sua namorada. O irmão de Fátima presenciou o momento em que a polícia

levou Zé Silva e soube ali que levariam o povo do sindicato. Como o irmão não era do

sindicato, pôde correr até a casa de Fátima e prevenir Antônio.

―Aí chegou meu cunhado e disse: ‗Antônio, tu corre que já pegaram o Zé Silva‘, que

foi esse que levou o tiro no pé. Estavam pegando meus amigos, né?‖, observou Antônio.

Dispararam no pé de Zé Silva e levaram-no preso. Manoel de Bete também foi preso.

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Família, escravidão, luta 207

Trataram os agricultores que lutavam por seus direitos, os trabalhadores, ―como se fossem

ladrões de galinha‖, e rasparam a cabeça de ambos, expondo-os a uma grande humilhação. De

acordo com Antônio, os proprietários queriam provocar medo, queriam que a luta terminasse,

porque ―o patrão pensava que nós do sindicato era para tomar a terra dele‖.

Não conseguiram prender Antônio. Ele fugiu e teve de fazê-lo de noite. Ele contou

que, quando seu cunhado chegou correndo e muito assustado para lhe avisar o que estava

acontecendo, sua namorada lhe disse: ―Antônio, vai se embora, vai que vão te pegar e vão

rapar tua cabeça também e vão te dar uma pisa e vão tirar você por aí‖. Já haviam estado em

sua casa, em Lagoa da Montanha, mas Antônio não estava lá. Eram 7h, observou Fátima,

estava escuro, naquela época não havia energia elétrica. Antônio lembrou que, logo após

aquilo, foi até a sua casa e encontrou a sua mãe, que lhe disse: ―vai se embora, menino‖. Ele

não tinha dinheiro, e ela lhe deu todos os bens que lhe poderiam servir. Antônio juntou então

a sua roupa, a colocou em uma bolsa e se dirigiu até Lagoa do Verão, onde viviam sua irmã e

seu cunhado. De acordo com Fátima, seu marido correu de noite pela margem do rio. Se o

tivesse feito pelo caminho principal, o teriam interceptado. ―Onde é que tu vais?‖, lhe

perguntou a sua irmã quando ele chegou ali. ―Vou embora‖, lhe respondeu Antônio e lhe

contou a história. ―Mas não tenho dinheiro‖, acrescentou. Sua irmã que, nesse tempo,

negociava em Bom Jesus, tomou uma carteira que tinha guardada, a abriu e lhe deu seu

dinheiro. Como observou Jorge Alves, diferentemente de outros sindicalistas, ―o Antônio não

teve essa proteção da Igreja para fugir, para sumir, aí foi a proteção mesmo da família‖.73

Antônio pediu em seguida a seu cunhado:

- ―Vai comprar passagens em Bom Jesus‖. A cidade ficava perto de Lagoa do Verão. Seu

cunhado foi e, quando retornou, lhe disse:

- ―Não tem mais passagens, não, só tem uma passagem para vender agora, para você ir lá em

Trindade, na Rodoviária Velha‖.

- ―Então, quero‖, respondeu Antônio.

Antônio se foi. Quando chegou na antiga Rodoviária Velha de Trindade, comprou uma

passagem para São Paulo. ―Vou embora‖, disse. Não sabia para onde iria.

Teve de ir embora e não pôde se casar nesse momento. ―Fui para são Paulo para não

ser preso aqui, que raparam a cabeça, da Revolução, que diziam que eu era comunista. Fugi

para São Paulo, passei lá um bocado de tempo. Quando acabou, eu voltei e estou aqui até

73

A citação corresponde a uma entrevista do projeto Memória Camponesa e Cultura Popular, realizada pelo

professor Moacir Palmeira com Antônio de Ribeiro.

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Família, escravidão, luta 208

hoje‖. Depois daquilo casou-se com Fátima: ―Eu nem esperava mais ele‖, observou ela. ―Aí,

ele chegou e deu certo, nos casamos‖.

- ―E quando o Antônio foi embora, os patrões não vinham aqui?‖, perguntei a Fátima.

- ―Não, não vinham, não. Depois que esses três saíram, eles não vieram porque os

proprietários antigamente tinham raiva do sindicato porque ele dava direito ao agricultor, e

eles não queriam que o trabalhador tivesse direito‖, me respondeu.

No entanto, e de acordo com Fátima, quando Antônio voltou, o ―sofrimento para ele‖

continuou: ―Ficaram com raiva dele e foram um dia dar uma surra nele, mas nesse dia, ele não

estava em casa, mas também não mexeu com ninguém de casa‖. Antônio se refugiou, então,

na casa da sua tia durante certo tempo e depois na de sua irmã, em Lagoa do Verão. Ele

contou, além disso que, ao voltar, teve cinco anos de questão com o proprietário das terras

onde morava, que era Antônio Melo Neto, pela demolição da sua casa. ―Aí, eu decidi que não

queria mais a questão, mas depois o patrão veio e me deu uma casa... até eu vir para aqui [o

assentamento]‖. Segundo Antônio, os patrões começaram a entender que os trabalhadores do

sindicato não eram comunistas e fizeram seu próprio sindicato patronal. O patrão deixou de

ter raiva dele, lhe deu uma casa, e hoje é seu amigo. ―Passou o tempo, e eles não tinham mais

raiva passada a Revolução. Na revolução, morreu muita gente aqui. Morreu muito

sindicalizado. Lutador que morava na propriedade‖, observou.

―E a luta foi essa aqui‖: Antônio me contou que já o haviam entrevistado várias vezes,

anteriormente, e ele havia contado a história da luta de Belém. Agora, era a minha vez, me

disse. Ele estava me passando a história para que, mais tarde, eu a contasse. A luta não havia

sido fácil, e Antônio a tinha muito presente: ―Eu sinto muito aqui nossa luta, dizer aquilo que

foi passado. Isso aqui é realidade, não foi brincadeira, não. Perdemos muitos amigos da gente,

nesse tempo. Raparam a cabeça, dizia que era comunista‖. Há algum tempo, Antônio havia

ido à casa de Manoel de Bete e, ainda que, para Antônio, Manoel já estivesse velho e não

soubesse levar adiante a narração da história, pude, contudo, recordar com ele a ―luta de

Belém‖. Tudo havia ocorrido ―de 1962 para cá‖.

Devido àquelas perseguições, Zé Silva permaneceu ―até meio avexado de tanta

emoção e de tanta agitação com ele‖, observou Antônio. ―O compadre Zé ficou assombrado e

desistiu do sindicato‖, disse Fátima. Hoje, Zé Silva vive em Lagoa da Montanha, Quando

fomos entrevistar Manoel de Bete, passamos em frente à sua casa. Apesar da intenção prévia

de entrevistá-lo, as pessoas que estavam comigo, nesse momento, mencionaram que seria

muito difícil fazê-lo, já que cada vez que alguém desconhecido chegava, Zé se escondia.

Devido à pressão que sofreu em 1964, ―ele tem medo de tudo‖, me explicou Gregório.

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Família, escravidão, luta 209

Manoel de Bete, por sua vez, me contou sobre quando foi preso, durante a Revolução.

Sua descrição daquilo está repleta de diálogos e detalhes. Ele voltava do trabalho em seu

roçado e, enquanto o fazia, ia colocando veneno de formigas na cerca que contornava suas

plantações. Nesse momento, ―não estava sabendo de nada‖. Quando estava na cerca, um

policial se aproximou e, com a intenção de ajudá-lo, disse:

- ―Manoel, a coisa não está boa, não‖. Sem dar tanta importância àquilo, Manoel lhe

respondeu:

- ―Não tem nada, não, melhora depois‖.

―Ele sabia do negócio lá, né?‖, me disse Manoel sobre o policial. À medida que se

aproximavam de sua casa, os chaleiras iam atrás dele, ameaçando-o com um facão:

- ―Que é isso rapaz, está assombrado?‖, lhe diziam.

―Era a revolução, né?‖, observou Manoel. Eram 5h da tarde quando chegou. Sua casa

estava repleta de gente. Havia cinco policiais e os chaleiras que vinham junto com ele.

Manoel disse:

- ―Se eu estou devendo, preciso pagar. Eu não estou devendo nada a ninguém, mas se eu devo,

vou pagar‖. Para Manoel, ficar em dívida era desmoralizante.

―Eu não devia nada a ninguém, graças a Deus, até hoje não devo nada a ninguém‖,

esclareceu para mim. Manoel deixou sua casa a cavalo. Cacá Jundiá já havia sido preso e se

encontrava ali. Dirigiam-se agora para a Lagoa da Montanha, à casa de Zé Silva. Depois

daquilo, ficaram presos durante quatro dias em Bom Jesus. Passaram quatro dias comendo

avoador.

Maria das Dores Meireles, segundo Manoel ―uma moça velha de 40 anos, ela era

funcionária do Ministério de Trabalho‖ e que trabalhava no sindicato com ele, soube daquilo

de sábado para domingo. Ficou desesperada, observou Manoel: ―Ela gostava, Deus no céu e

eu na terra, ela gostava muito de mim‖. Passava dias inteiros na sua casa, junto com

professores, professoras, padres, doutores: ―Graças a Deus, todo mundo gostava de mim e

gosta ainda hoje, tudo mundo aqui, eu me entendo com tudo mundo‖. Na segunda-feira,

Maria das Dores foi falar com o vereador para lhe dizer que ―tinha um bocado de trabalhador

preso‖. O vereador ―mandou boas palavras para nós, que o delegado soltasse nós‖. Após

aquilo, Maria das Dores esperou. Passados quatro dias, foi falar novamente e eles foram

soltos. ―Aquela ali era a minha mãe, era a minha filha, tudo‖, disse Manoel sobre Maria das

Dores.

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Família, escravidão, luta 210

Em seguida, Manoel deu parte do ocorrido, ―denunciando que eu fui preso‖. Em seus

ideais morais, ter sido preso era uma desonra. Quando o mandaram chamar, ele não teve

medo e, uma vez em Bom Jesus, disse ao delegado de polícia:

- ―Olha, eu quero saber por que eu fui preso, eu não sou ladrão, não sou criminoso, não sou

desonesto, não sou nada disso, sou homem da minha casa‖. O delegado respondeu com uma

alusão ao sindicato, e Manoel discutiu:

- ―Sindicato, não, não entende, não, delegado; foi dinheiro que você comeu, a bola que você

comeu‖.

―Eu disse na cara dele, daí, graças a Deus, aí nunca tive medo‖. Manoel era um

―homem da sua casa‖. Ser preso o impactou, já que não correspondia com a vida que ele

levava; não era criminoso, não era desonesto, não era ladrão, mas havia sido preso: ―Iam

fazer injustiça, com analfabeto faziam, né?‖. A situação de ser preso significava, naquele

contexto, uma considerável humilhação e deixava em Manoel uma grande marca.

Não foi aí que terminaram suas interlocuções com o mundo judicial. ―Qualquer coisa

que o povo precisava, ia lá em casa, para eu dar qualquer sugestão, né?‖. Certo dia, Melo

dirigiu-se à sua casa, mas não o encontrou. Havia dado parte de Manoel ao delegado, e este

último mandou chamá-lo novamente. ―Eu não devia nada, fui nas carreiras, né? [...] Eu não

posso negar a verdade de ninguém, fui‖, observou Manoel. O delegado o atendeu às 5h da

tarde. Lhe havia enviado uma carta que dizia: ―Venha, que eu quero ver sua presença daqui

para 9 horas do dia‖, mas Manoel a deixara em casa.

- ―Cadê a carta?‖, lhe disse o delegado.

- ―Você queria minha presença, eu vim, não tenho carta, não‖, Manoel riu e me disse: ―Graças

a Deus, nunca estive nervoso nem nada disso‖. ―Se eu estou devendo, preciso pagar‖, disse ao

delegado.

- ―Você me dá a carta‖.

- ―A carta, a mulher lavou a roupa, a carta está molhada‖.

- ―Mas quero ver ela‖, concluiu o delegado.

Manoel logo recorreu a Maria das Dores, que era funcionária do Ministério do

Trabalho. Manoel não contou para mim sobre o processo legal que estava em jogo com esse

episódio. Tudo aquilo era para ele nebuloso e não apresentava maior relevância. O que ele

destaca são os diálogos que manteve naqueles fatos excepcionais, desconhecidos e

assustadores que, de modo repentino, ocorriam em sua vida. Manoel se relata emaranhado em

um mundo sem sentido, no qual somente duas questões adquirem importância: a ajuda que lhe

deram algumas pessoas, como Maria das Dores, e os diálogos que, nessas ocasiões, soube

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Família, escravidão, luta 211

manter com grande destreza, fatores que possibilitaram que se livrasse daquele emaranhado.

No momento em que Manoel recorreu a Maria das Dores, ambos se dirigiram para Trindade.

Estavam agora diante do delegado do Ministério do Trabalho; o pai também estava ali:

- ―Foi intimado. Já foi lá?‖, disse o delegado a Manoel.

- ―Fui‖, disse Manoel.

- ―O senhor sabe por que foi intimado?‖, perguntou o delegado.

- ―Não sei, não. Não estou sabendo de nada, estava no meu trabalho, fui intimado tem que

obedecer a justiça‖, respondeu Manoel e repetiu para mim: ―Eu nunca temia nada, graças a

Deus, nunca tive nervos de qualidade nenhuma‖.

-―E você não sabe por quê?‖, disse o delegado.

- ―Não sei, não‖, disse Manoel. O delegado perguntou:

- ―Cadê a carta?‖, e Manoel respondeu:

- ―Está aqui, estou com tudo‖.

Maria das Dores entregou a carta. O delegado a leu e mencionou:

- ―Essa carta, eu vou levar, eu nem vou falar com o chefe de comando porque ele está fora [...]

Essa carta eu quero levar para o chefe de comando, amanhã‖.

No outro dia, o delegado voltou junto com outra pessoa de Piraí Mirim: ―Graças a

Deus, fiquei livre, e eu estou aqui, não estou no sindicato que eu estou muito velho‖, concluiu

Manoel.

Além da fuga de Antônio e das adversidades e da prisão de Manoel de Bete, Zé Silva e

Cacá Jundiá, a fuga de Jorge Fernandes também se apresenta como parte da luta de Belém.

Com a revolução, ―Jorge Fernandes passou muitos anos fora... ele, para voltar aqui, mudou de

nome‖, observou Antônio de Ribeiro, que não havia sido o único a ter de ir embora. Muitos

habitantes de Belém ligados ao sindicato me falaram sobre a fuga que Jorge Fernandes teve de

fazer durante o Golpe. Este último foi preso no dia 2 de abril de 1964 e depois fugiu para o

Rio de Janeiro, dali para São Paulo e de São Paulo começou seu asilo político fora do Brasil.

Sua fuga também se incorpora, e como um elemento central, aos relatos sobre a luta de

Belém. O líder sindical havia sido preso e tentara fugir, e isto configurou um duro golpe para

os sindicalizados do lugar. ―Vai voltar, um dia‖, pensava Antônio durante a sua ausência, até

que um dia voltou, e se abraçaram em Trindade. Além de Antônio e, como vimos páginas

atrás, de Manoel de Bete, vários outros habitantes de Belém mencionaram a perseguição a

Jorge Fernandes, e muitos deles por tê-lo escutado da ―boca dos outros‖: ―Aí, Jorge Fernandes

foi preso aqui, aí liberaram ele [...] em todo canto tem uma pessoa boa. Aí, ele fugiu, foi

exilado. Depois que o Brasil ficou em democracia, ele voltou‖, me disse Luis Cardoso.

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Família, escravidão, luta 212

Quando se referiu à época da ditadura em Belém, Zeca também enfatizou esta questão:

―Pegava o povo, raspava a cabeça, prendia: quem falava no movimento do sindicato aqui,

nessa época, era preso, e Jorge Fernandes teve que fugir para não ir preso; mudou de nome,

fugiu muito tempo; quando esse povo morreu [o povo da ditadura], ele voltou; foi ameaçado

pela ditadura‖. E Ricardo comentou comigo: ―Jorge Fernandes teve que fugir para não

morrer; foi preso, foi exilado, sei para onde, sei que ele passou um tempo fora, para os

Estados Unidos, para lá, para (se livrar desse bocado de gente), era um dos cabeças‖. Durante

o Golpe, mencionou Gregório, houve muitos presos: ―Jorge Fernandes teve que fugir para

diferentes países e aqui quem não tinha como fugir, foram presos, sofreram [sic]‖. Quando

veio o Golpe, Jorge Fernandes já não pôde acompanhar o que ocorreu em Belém. Somente

pôde voltar ao Rio Grande do Norte em 1987. As lembranças que ele reconstrói sobre Belém,

nesse período, falam sobre a grande quantidade de trabalhadores que foram presos no lugar.

Como não cabiam na prisão de Bom Jesus, as pessoas de Belém foram levadas para os vagões

da estação de trens, sem água, sem banho, em uma cidade quente ―e, ao meio-dia, era um

problema sério, uma hora da tarde, muito quente, dentro daquele vagão de ferro, foi preciso

que a sociedade aqui se movimentasse, a Igreja fosse ao quartel para soltar; que nem jumento,

para animal era aquele tratamento‖. Luis Bezerra, o presidente do sindicato, também fora

preso. No entanto, tudo aquilo não significou o fechamento do sindicato. Antes do Golpe,

haviam sido fundados 55 sindicatos e delegacias no Rio Grande do Norte, um ou dois anos

após, somente ficaram cinco. O sindicato de Bom Jesus foi um dos que se manteve aberto.

Tanto Jorge Fernandes como Jorge Alves mencionaram que aquilo teve a ver com a eleição de

Zé Cunha como prefeito.

―O prefeito Zé Cunha deu certo apoio ao sindicato, e o sindicato, mesmo com toda a

repressão, ele não fechou as portas, ele continuou com as portas abertas lutando, com muita

dificuldade, mas lutando‖, disse Jorge Alves. Jorge Fernandes, por sua vez, observou que Zé

Cunha pôde assumir, nesse período, porque era um funcionário que não tinha filiação política:

Ele continuou, porque ele não tinha nenhuma... nenhuma participação

política; era uma pessoa que estava no sindicato, mas ele não tinha

participação política, era uma pessoa que estava próximo da gente, mas não

era uma pessoa que tivesse... não era dirigente sindical, era um funcionário,

mas estava próximo ao sindicato.

Por ocasião do Golpe, o sindicato continuou com as portas abertas. De acordo com

Gregório que, naquela época, era associado, o sindicato teve dificuldades para ser restaurado

após as perseguições. Além de Zé Cunha, houve também outros apoios, como o das pessoas

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Família, escravidão, luta 213

de Trindade, que estavam vinculadas à federação. Os trabalhadores associados ficaram com

muito medo por ocasião do ocorrido e começaram a negar seu vínculo com o sindicato, alguns

deles, inclusive, enterraram a sua carteira sindical. De modo distinto ao momento de

fundação, quando grandes proporções de trabalhadores se associaram ao sindicato, a adesão

destes depois do Golpe foi difícil, como também o foi a realização de reuniões. Ainda sem

muita possibilidade de movimento, o sindicato continuou. As pressões que sofreram, nesse

período, vieram de alguns proprietários, mas não houve intervenções estatais. Entre essas

pressões, Gregório assinalou, por exemplo, as que fizeram para que o presidente do sindicato

os aposentasse, ele e seus amigos, pelo Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural –

FUNRURAL, o que não era possível, já que tal fundo contemplava unicamente os

trabalhadores. Teodoro Reis, que havia sido presidente do sindicato antes da assunção de

Gregório, sentiu-se pressionado pelos proprietários e renunciou. Como o tesoureiro e o

secretário do sindicato não quiseram assumir a presidência, Gregório, que desde a década de

1970 já fazia parte da direção como primeiro suplente, assumiu esse lugar em 1972. Alguns

anos depois, candidatou-se ao posto e foi eleito presidente, cargo que ocupa até hoje.

Uma narrativa sindical quando o tempo já não é de Belém

Durante o período de Gregório como presidente di sindicato, produziu-se a

desapropriação de uma parte do que havia sido a Fazenda Belém. No entanto, para a maioria

dos ex-moradores do lugar que falaram a este respeito, a ―história da luta de Belém‖ acaba

antes, uma vez encerradas as perseguições. De fato, falar da desapropriação da Fazenda

Laranjeira, antiga porção de terra pertencente à Belém, não é para os habitantes do lugar falar

sobre a história de Belém. Significa, sim, falar sobre uma luta e sobre uma luta ―nas terras de

Belém‖, mas já não mais sobre a luta de Belém.

Apesar de a desapropriação ter começado na década de noventa, Gregório e Ricardo

situam as origens dessa luta na década de 70. A Fazenda Laranjeira já havia sido vendida por

Márcio Araújo, antigo administrador de Tozé e, mais tarde, esposo de Eli, a Ademar de

Morais, um fazendeiro de Uruá. De acordo com Gregório, a confusão começou quando este

fazendeiro se propôs a destinar a área à plantação de capim e à criação de gado, para as quais

devia desabitar tal área. Ali havia não somente vaqueiros, mas também moradores. Diante

desse fato, eles foram pedir a intervenção de Gregório como presidente do sindicato.

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Família, escravidão, luta 214

Gregório organizou, então, uma reunião na fazenda, em uma zona na qual funcionava

um grupo escolar que pertencia ao município. ―Ele [Gregório] andava aqui com um

jeepezinho do sindicato [...] nós vinha [sic] fazer reunião já, pra ver se nós tínhamos um

direito aqui em terra para trabalho‖, observou Ricardo. Nesse lugar, vários moradores haviam

se concentrado. No entanto, a reunião foi interrompida por um vaqueiro, um administrador do

―doutor Ademar‖ e outros dos cabras que os acompanhavam. Estes entraram de modo

prepotente. O vaqueiro disse:

- ―Está aqui por ordem de quem?!‖. Gregório respondeu:

- ―Me mandaram chamar, e eu estou aqui‖.

- ―Tá na terra do doutor Ademar!‖, exclamou o vaqueiro.

- ―Tô na terra do Doutor Ademar, não. Tô num grupo escolar do município que não é do

Doutor Ademar‖, replicou Gregório.

Passados apenas dois minutos, Gregório percebeu que, a seu redor, somente ficaram

duas pessoas, os demais haviam corrido. Somente lhes restava esperar pelo que viria. Foi

quando o vaqueiro lhes disse:

- ―Seu Gregório, faz o seguinte, agora o Doutor Ademar não está aqui. O senhor venha aqui o

dia que ele estiver‖, e Gregório lhe respondeu:

- ―Tudo bem, mas o povo me chamou; agora, o Doutor Ademar não está, e você faz o

seguinte: no dia que ele chegar, você diga a ele que eu quero conversar com ele. Eu não vou

chamar ele para o sindicato que ele não vai, eu venho na hora que ele quiser para conversar

com ele‖.

Na semana seguinte, o ―Doutor Ademar‖ ―mandou dizer‖ a Gregório que buscasse

uma propriedade de 100ha para enviar os moradores de Laranjeira para lá. Segundo o

proprietário, era impossível mantê-los nessa fazenda, já que ele possuía um empréstimo do

Banco do Nordeste e da SUDENE para criar gado. No entanto, os moradores não voltaram

para buscar Gregório. Segundo ele, por medo.

Depois de tudo aquilo, o fazendeiro construiu algumas casas em uma parte de suas

terras, onde agrupou os moradores de Laranjeira, no lugar hoje denominado Boa Fé.

Laranjeira ficou sem moradores. Com o tempo, o proprietário foi abandonando a produção

daquelas terras, já que ―entrou na política‖ e foi candidato a prefeito em João Pessoa. Somente

ficaram ali o administrador e alguns vaqueiros que cuidavam de umas poucas cabeças de

gado. Foi nesse momento, já avançada a década de 1990, que um grupo de pessoas ligadas ao

sindicato — entre elas Gregório, Antônio de Ribeiro, Luis Cardoso, Ricardo e outros

assentados — decidiu tentar a desapropriação dessas terras que estavam improdutivas.

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Família, escravidão, luta 215

Entraram em contato com a FETARN e começaram depois a acampar na beira da

estrada durante um ano e meio. Segundo o relato dos assentados, este é um período de

grandes dificuldades, entre as quais se inclui a morte de um acampado que foi atropelado por

um veículo. Vários assentados sustentavam a hipótese de que aquilo foi obra de um

fazendeiro da região para impedir que as desapropriações avançassem e tomassem as suas

terras. As mulheres assentadas também me contaram sobre este período, que caracterizaram

como um momento de sofrimento e de medo, de modo distinto aos homens que, para narrar a

experiência, empregaram o termo luta ou enfrentar a luta. Vilma observou que se dirigia a pé

para o assentamento e permanecia ali durante algumas horas para realizar certas tarefas, como

cozinhar para seu marido, por exemplo. Como outras mulheres, ela vivia em uma comunidade

vizinha (Lagoa da Montanha) e se dirigia ao acampamento de dia, mas de noite voltava para

casa. Outras mulheres lembraram a ausência do marido nesse longo período, como Edna que,

devido à sua gravidez, não podia se deslocar de Lagoa da Montanha até o acampamento, e

tampouco seu marido pôde estar presente quando ela deu à luz. Fátima, por sua vez,

mencionou que, enquanto Antônio permanecia no acampamento, ela ficava cuidando da casa

e dos filhos, além de manter o negócio de vendas que tinham em Lagoa da Montanha.

Após ter permanecido por mais de um ano na estrada e ter presenciado aquele

acidente, os 18 acampados que, de fato, haviam empreendido o acampamento (nos planos,

haviam sido 40), decidiram entrar na Fazenda Laranjeira. O processo devia avançar: ―Com

um ano e meio, se você não ocupar a terra, vai ficar aqui toda a vida. Aí, se ajuntou mais

gente, e fizemos a ocupação na terra‖, observou Luis. Ricardo, por sua vez, mencionou que o

objetivo dessa ocupação era criar um ―conflito‖: ―Aí, veio o conflito da terra, que nós

entramos dentro para ter um conflito, que nos passemos na beira da pista e não fazia nada, aí

quando entramos dentro da terra, aí veio o conflito [sic].‖74

O proprietário reagiu àquela

ocupação, e o processo no INCRA foi mobilizado. De acordo com Ricardo, o conflito era para

mostrar que existia gente interessada nas terras: ―Então, nós entramos para dentro da terra, e

criou um conflito [...] aí, quando passou o conflito na mesa do presidente do INCRA, ele já

viu que tinha gente interessada na terra, aí nós ganhamos a imissão de posse da terra‖.

74

Na citação de Ricardo, o conflito é visualizado como uma categoria jurídico-administrativa; a idéia se liga a

um processo formal que é necessário cumprir para que as terras sejam desapropriadas. O conflito torna-se algo

externo que vem junto com as experiências sindicais. Na luta pelo assentamento, é preciso criá-lo e fazê-lo

chegar até a mesa do INCRA. Esta observação torna-se interessante na hora de se desnaturalizar a categoria

conflito e analisar os diferentes recortes e classificações que tal categoria implica, análise que empreendi em um

trabalho anterior (ver Figurelli, 2007).

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Família, escravidão, luta 216

Imediatamente após o conflito foi decretada a desapropriação das terras.75

Naquela

ocasião, os assentados esperaram mais de ano pela imissão de posse: ―Toda vez que o INCRA

se preparava para receber a imissão de posse, o fazendeiro recorria à justiça. Aí tinha que

esperar tudo de novo‖, mencionou Luis. Nesse tempo, os assentados permaneceram

acampando durante um ano na terra de um morador, até que, em 2001, conseguiram a imissão

de posse e se mudaram para Laranjeira. Ali fizeram suas barracas e começaram a plantar.

Esperaram dois anos para a construção das casas e outros dois para a divisão dos lotes que, de

acordo com Luis, ainda não se encontra completamente acabada.

Os narradores da luta pela desapropriação não foram os mesmos que me narraram a

luta de Belém. Foi outra rede de entrevistas que surgiu a partir daqui. Os recomendados, neste

caso, foram as pessoas que participaram e acompanharam o longo processo do acampamento.

Já não eram os antigos moradores de Belém que participaram ou viveram a época da

fundação do sindicato, nem os líderes sindicais que também o fizeram, mas que não eram

moradores. Apesar de alguns deles, como Antônio de Ribeiro e Gregório, terem adquirido

voz em ambos os relatos, o critério de recomendação, no entanto, segue aqui outros

parâmetros. Na primeira vez em que cheguei ao assentamento Jorge Fernandes, o fiz com

Gregório, logo após tê-lo entrevistado na sede do sindicato de Bom Jesus. Gregório me

contara sobre o grupo de sindicalizados que havia sido perseguido durante a ditadura, mas

também tinha me falado sobre o assentamento. O primeiro que fez quando chegamos ao

assentamento foi levar-me à casa de Luis Cardoso — o atual presidente da associação, que

teve uma participação destacada no processo de desapropriação das terras — para que fizesse

uma entrevista com ele.

A conversa com Luis abriu esta nova rede. Ao final da entrevista, eu havia perguntado

sobre as outras pessoas que participaram do acampamento. ―Da luta‖, disse Luis e prosseguiu:

―Só tem um que participou e não mora aqui, que desistiu, mas os outros moram todos aqui‖.

75

Em julho de 1997, foi aberto no INCRA o processo de desapropriação do imóvel ―Fazenda Laranjeira‖

(também chamado Nossa Senhora da Conceição), de 1.937ha. A rigor, o imóvel compreende três áreas contíguas

do mesmo proprietário e se denomina ―Fazenda Laranjeira (Nossa Senhora da Conceição)/Boa Fé/São Luiz de

Gameleira‖. A abertura do processo se deu a partir de uma nota enviada pela FETARN, a qual, por sua vez,

encaminhou uma nota do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Bom Jesus ao Superintendente do INCRA.

Ambas as notas denunciavam a ―Fazenda Laranjeira (Belém)‖ como propriedade improdutiva que não cumpria a

sua função social. Além de informar o nome de seu proprietário e a quantidade de hectares, as notas solicitavam

imediata vistoria e desapropriação. Em julho de 1998, o sindicato e a FETARN comunicaram a ocupação da

fazenda por 46 famílias de trabalhadores rurais e, pouco mais de um ano depois, em novembro de 1999,

comunicou-se a entrada dos trabalhadores na propriedade após permanecerem mais de um ano na beira da

estrada. Entre os motivos, se assinalava a ameaça de atropelamentos e a necessidade de plantar as terras para

produzir alimentos. Mais tarde, em 17 de novembro de 1999, o imóvel foi declarado de interesse social para fim

de reforma agrária, o que foi publicado no Diário Oficial da União, em 18 de novembro de 1999 (Processo de

desapropriação Fazenda Laranjeira- Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).

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Família, escravidão, luta 217

Luis, sua esposa Marilena e o filho de Gregório, Evandro, que tinha me acompanhado à casa

de Luis, me ajudaram a compor este novo circuito de pessoas recomendadas para falar. Eram

todos do assentamento Jorge Fernandes. Ali figuravam Gregório, Antônio de Ribeiro,

Ricardo, Zeca, e Ivaldo Vera, entre outros.

Mais além de Antônio de Ribeiro e de Gregório, as pessoas desta lista eram as que,

coincidentemente, conheciam a história da luta de Belém narrada neste capítulo e as que, além

disso, haviam escutado mencionar o termo cambão. Sua experiência próxima ao sindicato

lhes havia aproximado dessa história. Desde o começo, eles me levaram a perceber que a rede

de entrevistas do assentamento não me falaria sobre Belém nem sobre a luta de Belém, apesar

de muitos dos incluídos nessa rede serem, sim, recomendados para fazê-lo. De modo que, ao

me falarem sobre a luta de Belém, a maioria das pessoas do circuito se posicionou em um

lugar secundário e me reenviou a Antônio de Ribeiro, Jorge Fernandes ou Gregório. As lutas

haviam ocorrido na mesma terra, mas tratava-se de lutas claramente diferentes: ―Luis conta a

história do assentamento, não domina a história de Belém‖, disse Evandro durante a entrevista

com Luis. Este último assentiu e distinguiu, além disso, a história de Belém do momento da

luta do sindicato:

- ―Para a história de Belém, vai falar com o Manoel David‖. Manoel David era o antigo

vaqueiro que sabia contar toda a história de Belém. No relato de Luis, essa história distinguia-

se das perseguições posteriores de Antônio de Ribeiro e Jorge Fernandes durante o Golpe

Militar, de modo que, para ele, a luta de Belém não era exatamente a história de Belém.

Como ocorreu com Luis e Evandro, os demais narradores sindicais também mostraram

que Belém e sua luta correspondiam a outro momento, que já não era o do assentamento,

apesar de ele ter se erigido nessas terras. A luta de Jorge Fernandes, de Antônio de Ribeiro e

dos outros, do ―pessoal mais velho de Belém‖, como disse Zeca, havia sido uma luta mais

antiga.

- ―Quem teve a idéia de colocar o nome de Jorge Fernandes?‖, perguntei a Gregório em

relação ao assentamento. Ele me respondeu:

- ―Pronto, aquele fui eu, que eu pedi para colocar, pelo trabalho do sindicato que o Jorge

Fernandes fez em Belém‖.

Gregório considerou que ele ainda era parte da ―história de Belém‖, já que ainda é ―de

Belém‖ e vive ali, com a diferença de que, agora, é dono, e antes era morador. ―Existe Belém

porque quem mora, quem é criado em Belém, ainda chama, ‗sou morador na terra de Belém‘,

mas a fazenda acabou, não existe mais‖. É nesse sentido que, para Gregório, como para outros

assentados, o assentamento se liga à Belém: ―O assentamento é Belém [...] só que essa Belém

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Família, escravidão, luta 218

tinha sido vendida, 2 mil ha de terra, a uma pessoa lá de Uruá, o Doutor Ademar de Morais‖.

Para alguns moradores, como Gregório, Belém ainda existe nas terras. No entanto, para eles,

já não é o tempo de Belém que, como vimos, supunha outras relações sociais, semelhantes à

da escravidão, como supunha também a família Melo. A luta do assentamento não pertence

ao tempo de Belém. As relações sociais que se ordenavam segundo esse tempo já haviam

mudado naquele momento. A luta do assentamento ocorre nas terras de Belém, mas já não

ocorre para liberar-se da escravidão. Deste modo, apesar de a luta pelo assentamento e a luta

de Belém ocorrerem ambas na mesma terra, não são, no entanto, uma mesma luta. O

assentamento estabelece uma continuidade com Belém, com as terras, mas não com o tempo

de Belém que era um tempo de escravos. E o assentamento também estabelece uma

continuidade com a luta que, ainda que já não seja a luta de Belém, é sim a luta do sindicato.

Deste modo, a inclusão ambígua do assentamento na narrativa sindical de Belém, nos

permite observar um duplo parâmetro na organização do relato sindical. Por um lado, o tempo

dos escravos, que operava de modo central no relato e as classificações dos moradores não

deixam de ser, também aqui, um demarcador central da história, o qual não surpreende se

temos em mente que os narradores desta história da luta de Belém são, em sua maioria,

antigos moradores. Isto vale para os narradores sindicalizados que vivem nas terras de Belém,

e não para os líderes sindicais que não são do lugar. A narrativa sindical destes moradores

organiza-se com base no tempo dos escravos e configura, além disso, outro tempo que é, nas

palavras já citadas de Gregório, ―o tempo em que começou o movimento sindical‖ ou, nas

palavras de Antônio, ―o tempo do Seu Gregório […] o tempo de Jorge Fernandes [...] o tempo

meu e dos amigos na época‖, o tempo em que fundaram o sindicato. Esse tempo encontra-se

intimamente vinculado ao tempo dos escravos, que também é o tempo de Belém. A narrativa

sindical se vincula, assim, à escravidão e está montada com base neste classificador social. O

tempo do sindicato é o da libertação da escravidão, o tempo que marca o começo do fim do

tempo dos escravos, o começo do fim do tempo de Belém e a luta para que fosse assim. Há

aqui uma descontinuidade, um tempo, uma demarcação que permite que se constitua uma

história, que aquilo que foi demarcado possa ser contado, transmitido e novamente narrado. A

luta de Belém se estabelece, assim, como um tempo, um tempo que não se apresentava entre

os moradores não sindicalizados. Um tempo que tem seus próprios narradores, claramente

delineados.

Na narrativa sindical, a escravidão continua, deste modo, ordenando e classificando.

Mas a este se agrega um critério diferente, que se liga à idéia de luta sindical. A luta pela

desapropriação e a luta do momento de fundação do sindicato foram especificadas pelos

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Família, escravidão, luta 219

narradores sindicais de Belém como duas lutas distintas. No entanto, ambas unem-se em um

mesmo relato que fala sobre a luta naquele lugar. E esta união se dá tanto nos relatos

individuais como na tentativa de alguns líderes de passar a história mediante seu próprio

relato e mediante o relato de outros narradores sugeridos por eles. Assim, por exemplo,

Gregório configurou para mim um circuito de entrevistas que me passaria a luta em Belém,

que era não somente a luta de Belém, mas também do assentamento. Jorge Alves e Jorge

Fernandes, por sua vez, não deixaram de mencionar em seu relato sobre Belém o atual

assentamento que hoje se erige sobre essas terras. Ambos o fizeram do mesmo modo, como

um momento que coroa a luta no lugar, uma luta que teve um duro golpe militar mas que,

apesar disto teve também grandes conquistas e depois continuou. Em ambos os entrevistados,

o assentamento coroou a continuidade desse começo do sindicato, e sua menção foi feita para

encerrar o relato da luta na década de 1960: ―E, hoje, um pedaço de Belém é um

assentamento, e botaram meu nome, Jorge Fernandes‖. As palavras são de Jorge Fernandes, a

menção ao assentamento assim colocada foi feita por ambos.

Desta forma, a classificação da história opera de outro modo, de acordo com este

segundo critério e, o que se conta, não é tanto Belém, mas a luta, a luta do sindicato. Quando

me vi diante da opção de incorporar ou não o relato do assentamento a este capítulo sobre a

―luta de Belém‖, me dei conta da ambigüidade que me deixava hesitante em relação à decisão.

A história sindical se organizava segundo critérios diversos de ordenamento e os

entrelaçavam. A luta pela desapropriação e a luta de Belém estavam separadas mas, ao

mesmo tempo, unidas. E se uniam com base neste último critério, mediante o qual se narrava

a luta e se perfilava uma narrativa sindical que ia mais além e que podia se desvincular do

tempo de Belém, tempo ao qual não correspondia inteiramente, mas somente uma parte, ainda

que fundamental, dessa luta sindical.

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Família, escravidão, luta 220

Capítulo final

SOBRE HISTÓRIAS CONTADAS E SOBRE CONTAR

HISTÓRIAS

―No sertão do Nordeste vivia antigamente um homem cheio de conversas, meio caçador e meio

vaqueiro, alto, magro, já velho, chamado Alexandre. Tinha um olho torto e falava cuspindo a gente, espumando

como um sapo-cururu, mas isto não impedia que os moradores da redondeza, até pessoas de consideração,

fossem ouvir as histórias fanhosas que ele contava. Tinha uma casa pequena, meia dúzia de vacas no curral, um

chiqueiro de cabras e roça de milho na vazante do rio. Além disso possuía uma espingarda e a mulher. A

espingarda lazarina, a melhor espingarda do mundo, não mentia fogo e alcançava longe, alcançava tanto quanto a

vista do dono; a mulher, Cesária, fazia renda e adivinhava os pensamentos do marido. Em domingos e dias

santos a casa se enchia de visitas – e Alexandre, sentado no banco do alpendre, fumando um cigarro de palha

muito grande, discorria sobre acontecimentos da mocidade, às vezes se enganchava e apelava para a memória de

Cesária. Cesária tinha sempre uma resposta na ponta da língua. Sabia de cor todas as aventuras do marido ...‖

(Graciliano Ramos, Alexandre e outros heróis).

Histórias de família? De escravidão? De luta?

Sobre Belém, conta-se a sua história. Sobre Belém se pode dizer. Belém torna-se

nominável e descritível. Ela adquire uma entidade e me permite olhá-la como um objeto no

sentido que Foucault (2005) confere ao termo. Não se trata, seguindo este autor, de olhar as

coisas em si e tentar transcender o que se diz sobre elas, tampouco de olhar as palavras sobre

as coisas. Trata-se, antes, de acentuar a construção dos objetos, inseparáveis das relações

discursivas que os formam. Na análise proposta por Foucault, ―as palavras se encontram tão

deliberadamente ausentes como as próprias coisas‖ (2005: 80). O discurso não consiste aqui

em meras palavras sobre uma entidade preexistente, o discurso é uma prática e, como tal,

forma o objeto sobre o qual se fala.

O que é Belém? A pergunta nos remete, assim, a outra, relativa à produção de

entidades. Sobre Belém são ditas coisas distintas e, ao longo da tese, foi possível observar que

as posições sociais dos narradores tiveram um papel central no que diz respeito a esta questão.

Diferentes narradores em diferentes posições e localizados em redes diferentes de

Page 235: Tese Fernanda Figurelli

Família, escravidão, luta 221

recomendações construíram ―Beléns‖ distintas, com pontos de continuidade e de ruptura entre

uma e outra. Se Belém se constitui como uma entidade, esta é uma entidade imprecisa e um

objeto de disputa.

A loucura diz-se e aparece como um objeto, mas a experiência que se faz da loucura

não é a mesma em um e outro tempo, em um e outro âmbito (Foucault, 2004). A menção à

análise de Foucault é aqui esclarecedora. Como se perguntasse sobre a loucura, quando

perguntava sobre ―Belém‖ estava questionando algo que existia, sobre um objeto em relação

ao qual havia alguma coisa a se dizer. Ao pronunciar ―Belém‖, acedia, assim, a uma narrativa

possível entre as pessoas. Belém abria experiências e realidades. No entanto, ela abria várias

realidades.

Perguntava sobre Belém, sobre como ela era, sobre como se vivia ali, e as respostas a

estas questões me permitiram apreciar certas regularidades e quebras que se constituíram na

base dos capítulos apresentados na tese. Quando me falavam sobre Belém, a maioria das

pessoas afirmava estar contando uma história, e essas histórias que me eram contadas

revelavam diversos elementos que se faziam presentes ou desapareciam, que se agrupavam e

se desagrupavam de modos distintos em cada um dos relatos. Na organização desses diversos

relatos, foi possível apreciar alguns parâmetros centrais que permitiram delimitar as narrativas

mais gerais distinguidas neste trabalho. Alguns relatos deixavam ver certos acentos que não se

viam em outros; estes últimos construíam experiências que não se encontravam nos primeiros,

e assim fui observando certas regularidades que me levaram a distinguir essas várias ―Beléns‖

sobre as quais escrevi; esses tipos ideais nativos que destaquei com as diversas histórias.

Atendendo aos acentos e ―desacentos‖, fui visualizando essas diferentes histórias sobre Belém

que, mais tarde, se iluminaram umas em relação às outras. Belém não era uma entidade de

uma vez e para sempre. Ela estava submetida a uma constante e dinâmica construção. Belém

era uma entidade cuja formação era uma disputa.

Talvez tenha sido a possibilidade de transitar por diversos circuitos etnográficos o que

me permitiu ver que, se Belém era algo, não era o mesmo para todos. Os circuitos

etnográficos tenderam a se superpor com a história, de modo que cada rede de recomendações

me fez vislumbrar uma Belém diferente. Transitei pela cidade, e um funcionário me

recomendou a outro; os funcionários contaram e me recomendaram aos ex-proprietários, e

estes últimos também contaram. Transitei pelos Sítios, e um ex-morador me recomendou a

outro, e os ex-moradores contaram. Transitei novamente pela cidade e dali voltei ao Sítio. Um

sindicalista me recomendou a outro, e os sindicalistas e ex-moradores contaram. Trânsitos e

histórias se identificavam. O que se contava mantinha uma constância em cada circuito, e

Page 236: Tese Fernanda Figurelli

Família, escravidão, luta 222

histórias diferentes surgiam de circuitos diferentes. Não obstante, esses percursos eram

nítidos, mas não puros; eles também se mesclavam e, de um, eu podia ser remetida a outro:

sobre a ―família‖ (Melo), me disse, por exemplo, Gregório, que quem sabia contar era

Toninho (Melo). Assim, as histórias imbricavam-se como as pessoas de um circuito também

se relacionavam com aquelas de outro.

Nos deparamos, aqui, com várias construções de Belém, com a dinâmica que se

encontra por trás dessa entidade. Parti de um interesse em indagar sobre a categoria conflito.

Parti de uma Belém que se associava a essa categoria e me deparei com uma família e com

um patrimônio, com um tempo de escravos, com vidas que permanecem e com uma luta

sindical. De Belém se dizia tudo aquilo. Belém abria várias histórias. Vejamos novamente, de

modo breve, cada uma delas.

A história de Belém é a da família Melo, é a da enorme fazenda produtiva que

sustentou o crescimento da cidade de Bom Jesus. Perguntar, nesta cidade, e perguntar aos ex-

proprietários sobre Belém trouxe diversos aspectos que se ordenaram de um modo específico

e fizeram de Belém essa grande propriedade familiar. A família Melo e o patrimônio ficam

entrelaçados nesta história. Belém é a fazenda, e a fazenda não o é sem seus donos, de modo

que Belém é também a família proprietária. Belém começa a ser narrada a partir do momento

em que os Melo adquirem o domínio da propriedade e criam a fazenda. Antes disto, a história

encontra-se obscurecida. Não se sabe muito sobre ela, nem nos registros institucionais, nem

nos relatos das pessoas. Uma nuvem de incerteza estende-se até ―tempos imemoriais‖, quando

as terras foram doadas à Igreja (mais exatamente, à santa), antes que os Melo ali chegassem.

A memória da família, por sua vez, dissipa a nuvem, e Belém é narrada a partir dessa

memória. O que importa da formação de Belém é a conjunção das terras com os

proprietários, o surgimento do patrimônio familiar.

A partir daqui, já não é possível visualizar a família sem atender ao patrimônio e vice-

versa. Ambos se fundem em um único objeto, ambos são Belém. Mais do que uma família

Melo existe uma dinâmica, e essa última é erigida em torno da concentração do patrimônio. O

grande ancestral familiar recordado é aquele que fortaleceu a propriedade a partir de uma

ruptura com os irmãos e consolidou os laços familiares que permitiram concentrar a herança:

o finado Juca. Após este último, o finado Tozé ocuparia, na memória, o lugar do grande pai,

aquele que soube concentrar a terra e fazer dela um legado para seus descendentes, aquele que

construiu uma família incorporando como filhos alguns de seus parentes; aquele que, ao

mesmo tempo que construía sua família, edificava o centro que consolidava um conjunto mais

amplo de parentes e fazia dos Melo o sobrenome que seria identificado com Belém.

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Família, escravidão, luta 223

Finalmente, a divisão do patrimônio entre os irmãos e os ―casamentos mal casados‖ que

contaminaram o sobrenome confeririam à história seu momento de decadência. ―Os Melo‖

significam um processo permanente que é inseparável da construção do poder do proprietário.

Desse modo, Belém alude a um processo de construção que entrelaça as entidades separadas

por um sentido comum: a família e a propriedade; em Belém, uma não é sem a outra; em

Belém, uma se faz e desfaz permanentemente junto da outra.

Assim são narradas a formação de Belém e sua decadência. A história fala sobre

concentrações, concentrações de pessoas e concentrações de terras. A história fala igualmente

de uma grandeza, fala sobre prestígio. Tal grandeza coincide com os momentos de

concentração de terra, coincide com o momento dos donos e não com o dos herdeiros, cuja

divisão acarretou a decadência de Belém. Os donos tornam-se figuras representativas da

história, daquele processo permanente de construção do patrimônio familiar. Deste modo, a

referência às características pessoais dessas figuras permite conformar a grandeza de Belém.

Além disso, tal grandeza se edifica na alusão à produtividade econômica da propriedade.

Tanto as características pessoais dos donos como a produtividade econômica da fazenda

apontam para um prestígio elaborado em referência a valores urbanos. A reconstrução, feita

sobretudo pelos urbanizados herdeiros, mostra uma propriedade que abastece as cidades com

algodão, carne e madeira e permite o desenvolvimento urbano. As grandes figuras de Belém,

por sua vez, vêm nesta reconstrução junto com a tendência urbanizadora da propriedade, e

com seus costumes trazem a vanguarda do desenvolvimento. Novos caminhos que desafiam

as matas, danças que chegam do cruzamento de fronteiras nacionais, automóveis e objetos de

luxo: o mundo moderno da época chega à região com os gostos inovadores e refinados de

Tozé e de Juca, bem como com os vínculos sociais que estes mantiveram com personagens

―da sociedade‖.

No entanto, esta história de Belém, esta história do progresso e do patrimônio familiar

também tem suas zonas obscuras, e não somente em sua origem imemorial.76

Além das carnes

e do algodão, o ―prestígio ruim de Belém‖ chega às fronteiras da cidade. O patrimônio

familiar encerra uma ―brabeza‖, encerra mortes, violências, mas nada disto consegue ocupar o

centro da história. Por que se as mortes de Belém são narradas, não chegam, contudo, a

formar parte do eixo da narrativa? Podemos responder que a hierarquia de seus contadores é

inseparável do que se conta. Vimos que, no circuito de recomendações, os narradores

privilegiados desta Belém foram os ex-proprietários, os herdeiros Melo. Eles me falariam

76

Na qual se mesclam santos, a apropriação pela Igreja das terras de santo e as titulações sem origem

comprovada, sem registros.

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Família, escravidão, luta 224

sobre a história da família, que também era aquela da fazenda. Seus relatos seriam os mais

valorizados na hora de reconstruir Belém, e tais relatos fizeram das mortes um elemento

secundário. As mortes foram narradas como episódios circunstanciais ou foram deixadas para

os contadores que, no teatro familiar, atuaram como artistas convidados. Assim, por um

tempo controlado, o espaço foi deixado aos contadores que interpretaram a peça secundária

dentro do grande espetáculo. Este era o espaço dos empregados, era o lugar onde eles podiam

brilhar nesta história de Belém, nesta Belém também conhecida e contada por eles, nesta

Belém de Tozé e de Juca. Sua prosa é mais ampla que o fragmento que se ilumina neste

teatro, mas permanece fundida e confundida com as outras prosas que constroem a Belém

familiar e cujos porta-vozes protagonistas são os herdeiros. Além disso, sua prosa imiscui-se

na prosa dos ex-moradores, e o mundo daqueles que habitavam a grande fazenda, invisível

nesta primeira história, se descobre por intermédio das suas vozes. Mas este último fragmento

já não está representado nesta obra.

Deste modo, há lugar nesta Belém para estilos diferentes. O patrimônio familiar é

capaz de ceder um espaço para algumas breves histórias de morte, a algumas histórias ―da

época‖, a algumas histórias de empregados que se cruzam com a história do progresso e da

família, com a história de Belém. A vanguarda abria seu teatro à cultura popular. Os

contornos ficavam abertos, mas controlados. A história do patrimônio familiar continuava de

pé, sendo a peça principal oferecida ao espectador.

A história de Belém é também a dos escravos, a dos cativos. Aqui, se diz de Belém o

que representa uma ruptura com a Belém familiar e, por isso, abre-se outra história, apesar de

se mencionarem elementos que oferecem pontos de continuidade com aquela. Os contadores

desta nova Belém são os ex-moradores da fazenda. Ainda que seus relatos se vejam

impregnados pela história da família que, orgulhosa, se expande para outras vozes e circuitos,

esta já deixa de ser um elemento central. Aqui, a escravidão é o eixo que estrutura a história, e

os significados que esta categoria traz consigo se tornam incompatíveis com a primeira

Belém. As abordagens tornam-se incongruentes e surge uma nova história. De Belém diz-se

algo diferente, e uma concepção distinta do objeto entra em conflito com a anterior (Foucault,

2004).

Belém é uma história antiga e começa antes do patrimônio familiar dos Melo. Não

são eles que marcam o começo da história. A referência às origens religiosas de Belém é

agora mais acentuada e já não como parte de um ―tempo imemorial‖. A história é capaz de ser

contada porque a memória dos ex-moradores a reconstrói de narração em narração. Aquela

zona obscura da primeira história, aquela ―massa amorfa e indistinta‖, parafraseando Saussure

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Família, escravidão, luta 225

(2005), passa a ganhar forma em meio às palavras dos ex-moradores. O patrimônio familiar

cede seu protagonismo à santa e ao caráter sagrado das terras. Belém já não tem seu

significado na junção das terras com seus proprietários. Ela é agora uma santa, e as terras

sagradas, as terras da santa.

A partir daqui, o protagonismo dos Melo já não é absoluto. Sua chegada não é mais

que uma contingência da história, uma simples arbitrariedade. Os Melo entram na cena como

personagens casuais. São vistos como os primeiros a se apropriarem das terras da santa e, com

eles, Belém ganhará uma nova dinâmica. A ―história dos Melo‖ se estenderá também para

esta narrativa de Belém, mas sob a advertência de sua arbitrariedade, de sua arrebatadora

aparição em uma história sagrada.

Será inaugurado, então, o ―tempo dos Melo‖. Como ocorria com a primeira Belém, a

família tampouco será vista de modo independente do patrimônio, o que os ex-moradores se

referem como família Melo será a dinâmica de agrupamentos e desagrupamentos de pessoas

em torno da propriedade. Os membros da família que mais serão mencionados são aqueles

que, de algum modo, estiveram envolvidos na história da fazenda. Os ex-moradores

reconstruíram, eles também, a genealogia da família poderosa, o tempo em que Belém era de

―um dono só‖, o tempo dos herdeiros, as relações intra-Melo. Esta família se fará pública, o

conhecimento dos laços construídos em sua composição se tornará parte de um saber comum,

e o valor de seu relato se tornará reconhecido. Haverá aqueles que saberão sobre aquilo e

aqueles que desconhecerão o assunto. As remissões aos herdeiros serão possíveis, os

moradores me recomendarão sair de seu circuito para indagar em outro âmbito aquilo que

teria valor para ser contado. Me recomendarão falar com Antônio Melo Neto, como o fez

Gregório, ou não perceberão como insensata minha busca no Cartório, que talvez pudesse

dizer coisas que eles não puderam me dizer, coisas cujo significado reconhecem. Desta forma,

ainda que transformada em um elemento secundário da história, a família Melo não perderá,

entre os ex-moradores, o valor de ser narrada. A história da família saberá impregnar o relato

daqueles que não pertencem a ela, e a Belém dos ex-moradores apresentará no que a isto

concerne uma continuidade com a Belém dos herdeiros.

Um ponto de encontro entre ambas ―Beléns‖ também pode ser observado em relação à

violência. No entanto, será uma continuidade de tipo distinto. As mortes da fazenda não serão

negadas ou, em sua ausência, legitimadas, como com os herdeiros; tal como os empregados,

serão ditas em voz alta, sem a necessidade de ocultamento ou neutralização. Contudo, de

modo distinto a estes últimos, as mortes tenderão a mostrar de modo enfático o uso sombrio

que o proprietário fazia de seu poder, e serão desta maneira cercadas por um acentuado halo

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Família, escravidão, luta 226

de ilegitimidade. Os ex-moradores destacarão a falta de ética e a arbitrariedade por parte do(s)

patrão(ões) e seus homens no exercício da violência. O que há aqui de contínuo, então, é a

normativa a partir da qual proprietários, empregados e ex-moradores legitimarão e

deslegitimarão a violência. Se o fato de matar alguém somente se justifica por precisão, o que

há de recorrente é certo entendimento sobre essa precisão, uma moral compartilhada das

mortes.

Mas não haverá nada de recorrente na referência à escravidão. Esta categoria, como a

de cativeiro (a última usada de modo geral pelos mais velhos), é a que estrutura os relatos dos

ex-moradores ao falarem de Belém. A categoria nos confronta a novos significados que

constroem Belém a partir de uma base diferente. Belém já não é boa, já não é a terra generosa

e produtiva, a fazenda da abundância comum. Com esta categoria, Belém se liga ao

sofrimento e à humilhação, à exploração e à pobreza, aos castigos e medos. Belém se liga,

sobretudo, aos laços, às amarras, à sujeição. Ser escravo ou igual a um escravo é o contrário

de ser liberto. Ser liberto é a possibilidade de fazer ou dizer, é estar sem amarras. Mas Belém

atava e o fazia de formas diversas.

Os laços tornavam-se visíveis na diária, no foro e na venda de algodão, práticas que

pontuam os relatos dos ex-moradores, práticas distintas unidas em sua evocação da

escravidão. Não poder dizer não, nem fazer o que se desejava, são impossibilidades

recorrentes em um e outro relato sobre uma e outra prática. Em uma terça-feira e na seguinte e

na outra, os moradores trabalhavam de graça para o patrão. Se não o faziam por bem, o

faziam por mal, dizem os habitantes de Belém. Ali estava a burra e, sobre ela, o capanga.

Com este último, o laço. E, no laço, a sujeição. Ali estava o morador indo ―por mal‖ e

atualizando seu ser sujeito ao patrão.

Como o morador, também o algodão se encontrava sujeito. Objetos sem movimento,

amarrados ao patrão. No caso do algodão, os vigias da fazenda, localizados nas zonas de

saída, impediam o movimento do produto. Sem outra opção, o algodão ia, então, para o

armazém do proprietário. Ali, era vendido em condições desfavoráveis e também era usado

para pagar o foro, o arrendamento anual (e, talvez, as dívidas). Não sobrava nada, dizem os

ex-moradores. Tudo ia para o foro do patrão. Suas possibilidades de ganho iam-se com ele; o

que ficava era a sua contraface, era a pobreza. Esta última acompanha o relato sobre o foro,

que ganha aqui um caráter fortemente negativo. Assim, descobre-se uma Belém de profundos

sofrimentos, uma Belém de escravos, uma Belém de laços, uma Belém de obrigações, uma

Belém de impossibilidades. Não é possível agora chegar a um mesmo sentido de Belém, a

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Família, escravidão, luta 227

memória de braços atados e a memória da família e do progresso não nos abrem uma mesma

experiência.

Quando os ex-moradores se referem à Belém, falam de um tempo, de um tempo que

não é cronológico, mas classificador (Palmeira, 2002). O tempo de Belém é, para os ex-

moradores, o tempo dos escravos. É o tempo das experiências de ser amarrado e de ser

obrigado. É o tempo de sua história, mas também de seu presente. Ainda que as relações

sociais já não se organizem em função de um tempo de escravos, a escravidão (ou o cativeiro)

não deixa de ser um parâmetro na hora de se pensar o mundo, de recortá-lo. Os ex-moradores

demarcam seu passado nesse tempo, mas com ele também continuam classificando o seu

presente. A classificação se faz dinâmica, as temporalizações podem mudar de um momento

para o outro, e o que hoje já não se organiza em um tempo de escravos, pode fazê-lo amanhã.

Nada salva os moradores da escravidão. Esta última classifica o seu mundo e pode voltar a

qualquer momento. A escravidão continua existindo, continua ameaçando. De várias

maneiras dá seus sinais, na televisão, por exemplo, que incessantemente lhes faz lembrar

desta ameaça.

Por outro lado, ao demarcar seu passado, a escravidão confere aos moradores uma

história, que é a sua própria história, que é a história que eles, e ninguém melhor que eles,

podem contar. Se o tempo de Belém é um tempo de escravos, o eixo da história se constitui,

então, pelas experiências que constroem esse tempo, que são as dos moradores. Os melhores

contadores serão aqueles que viveram estas experiências, ou seus descendentes, que as

observaram ser vividas ou as escutaram daqueles que diretamente as vivenciaram. Este é o

modo como os ex-moradores se apropriarão de Belém e o modo como farão dela sua própria

experiência, a experiência dos escravos, a experiência dos cativos. É assim que os moradores

acederão a um lugar protagonista da história, que já não será a dos Melo.

Contudo, esta Belém tampouco fica isenta de hierarquias internas. O circuito dos

habitantes de Belém também tem seus contadores privilegiados, que são os mais velhos e,

sobretudo, os homens mais velhos. O que eles dirão sobre Belém definirá, em larga medida, o

que ela será neste circuito de narrativas. Belém é a dos escravos e não é de se estranhar que a

experiência dos escravos seja aquela dos homens, a experiência que inclui o patrão e que fala

das relações de trabalho que os moradores mantiveram com este último. O tempo dos

escravos tem protagonistas masculinos, os demais somente desempenharão papéis

secundários.

Perguntar por Belém era, assim, excluir muito da experiência feminina. As mulheres

sabiam e reconheciam a história; haviam sido companheiras ou filhas dos escravos, haviam

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Família, escravidão, luta 228

vivido a escravidão ou a escutaram contar. Elas sabiam sobre Belém mas, ao lado dos

homens, sua experiência seria considerada indireta. A questão central girava em torno das

relações entre trabalhadores e patrões, e não eram as mulheres que as entabulavam. O lugar

que a história de Belém lhes abria seria secundário, e as minhas perguntas sobre a diária, o

foro, Belém e o conflito deixariam suas experiências de lado. Mas a etnografia permite ver o

não buscado, e o trabalho de campo me ajudaria a distinguir o que, à primeira vista, me era

invisível: a vivência das mulheres.

As mulheres narravam a Belém dos escravos e o faziam, então, de um lugar

secundário. Não tinham, como os empregados na primeira história, um pequeno espaço no

qual representar um fragmento de sua peça. Elas somente narravam na ausência dos

protagonistas, ou por insistência do público, porque eu demandava. Em suas narrativas de

Belém, foi possível apreciar uma especificidade na qual a vivência do sofrimento conformava

um ângulo destacado na hora de abordar as experiências da escravidão. Em seus relatos,

Belém significava um grande sofrimento, e não somente para os moradores, mas também para

suas famílias. Uns e outros sofriam com a extensa jornada da diária: tanto os moradores que

deviam atravessar a escuridão como seus familiares que, na tardança, choravam e temiam, que

lidavam com conjecturas ingratas ao imaginar os infortúnios que poderiam ter ocorrido ao

marido ou ao pai que demorava a voltar. Uns e outros sofriam com as mudanças e a perda da

casa que, por ―não dar certo‖ com o patrão, por caprichos do proprietário ou por vendas da

terra, devia ser abandonada. Uns e outros sofriam com a ameaça de ter de sair das terras, de

ser expulsos de sua própria casa. Uns e outros sofriam com o excessivo trabalho que o

algodão lhes requeria e a ausência de ganho que dele se obtinha. Sofria não somente quem ia

trabalhar doente, como quem via sair para trabalhar doente seu familiar. Deste modo, não se

enfatiza tanto a humilhação do trabalho gratuito, do castigo público, ou do ―passeio na burra‖,

mas sobretudo o sofrimento que Belém acarretava para o morador e para toda a sua família.

Houve uma recorrência das visões femininas sobre as experiências da escravidão que

permitiu chegar até as casas dos moradores e ver o sofrimento que também se experimentava

nesse âmbito.

Contudo, para além do patrão e das vivências que se geravam a partir dessas relações,

também havia experiências antigas, da época em que ―as terras eram dos outros‖, que as

mulheres mais velhas podiam contar, e não de um lugar secundário. No entanto, aquilo que as

suas palavras abriam quando nos distanciávamos das experiências da escravidão não se

identificava com a história de Belém. Elas contavam a história da sua vida ou suas vivências

que, ainda que respondessem à minha pergunta, ―Como foi a sua vivência aqui, em Belém‖,

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Família, escravidão, luta 229

não conformavam, no entanto, a história desta última. Assim, quando falavam sobre as suas

próprias experiências, as mulheres não pretendiam falar sobre essa história, de modo que

Belém não era uma referência direta em seus relatos. Elas me falavam sobre Belém somente

de modo indireto, sem dizer que o faziam, sem contar a sua história.

A história de Belém não incluía o mundo público das mulheres do lugar. Este mundo

era parte de uma permanência ou de uma história de vida, mas não da história de Belém

estruturada a partir do tempo dos escravos. Com as mulheres dei, assim, um passo para fora

da história, e isto me permitiu olhá-la com certa distância. Nos relatos femininos, nas questões

que as mulheres tendiam a enfatizar, me deslocava ―da família‖ (Melo) para as famílias de

cada mulher, das relações entre trabalhadores e patrões para as relações entre vizinhas e

parentes, entre pais e filhas, entre mães e filhos, entre marido e mulher; dos relatos sobre

Belém para os relatos sobre a vida, a vivência e a convivência. Nos relatos femininos, me

deslocava para experiências permanentes, para experiências de sempre, para experiências que

não eram parte do tempo dos escravos e, portanto, não constituíam a história de Belém. Nos

relatos femininos, me deslocava para o mundo público das mulheres, para os espaços de sua

sociabilidade que elas achavam dignos de ser contados.

Demorei a chegar a este mundo com as minhas perguntas sobre Belém. O que em meu

trabalho assumia um status de questão se relacionava com a experiência dos homens, e isso

me devolvia o olhar em direção às ciências sociais e às perguntas que esse âmbito privilegia e

deslegitima. Entre meus interlocutores, nem todos adquiriam autoridade para falar sobre

Belém (dos escravos e dos patrões), e se eu tivesse me limitado a essa hierarquia, não poderia

ter alcançado o que as mulheres achavam importante transmitir sobre a experiência no lugar.

As relações com as mulheres me ajudaram a burlar esta hierarquia. ―Entrevistando-as‖, ainda

que não fossem as mais recomendadas, conversando de modo casual, ou deixando o tempo

passar ao lado delas, pude aceder ao que se contava de modo silencioso. E assim, nessas

relações informais e invisíveis diante do olhar dos homens e da investigação sobre o conflito,

surgiu a permanência, surgiu um mundo público diferente do dos homens, surgiu a vida que

havia para contar e os vários aspectos que a conformavam.

Entre o que havia para contar, as experiências de trabalho e religiosas ganharam um

lugar central. O trabalho que aqui se narrava não era o que se fazia para o patrão, e sim o de

toda a vida, o trabalho que, mais do que um tempo, evidenciava uma permanência. Era, além

disso, o trabalho que se constituía como um espaço de sociabilidade feminina, como um

espaço de socialização e de encontro com os outros, no qual as mulheres se construíam como

pessoas. Com as vivências religiosas ocorria algo de semelhante. Também ali as mulheres

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Família, escravidão, luta 230

recriavam seus espaços de sociabilidade, e não somente em suas experiências atuais. Isto

vinha de épocas antigas e se apresentava como um aspecto constante de suas vidas. A

experiência das mulheres me falava, assim, sobre uma Belém diferente. Tal experiência não

estabelecia uma ruptura com o passado, não marcava um tempo que organizara as relações

sociais de um modo específico. Quando falaram do trabalho e de suas reuniões na igreja ou

nas festas religiosas, as mulheres articularam o passado e o presente. Suas vivências teceram

uma continuidade que se fez indiferente às mudanças de Belém.

Por último, a história de Belém é a da luta, é a história que começa com a chegada do

sindicato de trabalhadores rurais. Esta chegada marca um tempo, o ―tempo em que começou o

movimento sindical‖, que também era o tempo daqueles que entraram na luta. Este tempo

opõe-se ao tempo dos escravos e inicia o fim da escravidão em Belém, inicia a luta pela

liberação. A partir destas narrativas, Belém começa a ser construída como um símbolo dessa

luta, o que se diz dela gira em torno desta direção.

O tempo dos escravos é, deste modo, uma referência fundamental da história sindical,

que continua a história dos moradores. De fato, entre aqueles que a contam, se encontram ex-

moradores que participaram das experiências sindicais daquela época, das experiências

mediante as quais entraram no mundo dos direitos, dos documentos e papéis que

materializavam esses direitos e os constituíam como trabalhadores rurais, como

trabalhadores com direitos estabelecidos por lei. Mediante essas experiências, os moradores

entraram em outro tempo. Era o tempo de soltar as amarras do patrão, de terminar, entre

outras práticas, com o trabalho sujeito e com o algodão sujeito. Era o tempo de terminar com

os laços que os tornavam escravos ou cativos. Era o tempo do sindicato, o tempo da luta. Era

o tempo dos lutadores.

Mas a luta é narrada a partir de vozes distintas, todas elas autorizadas a contá-la. Estas

serão as dos ex-moradores que participaram do início do sindicato e também as dos

sindicalistas que não eram do lugar e que tiveram importância nessa luta. A essas vozes

privilegiadas se somarão as dos habitantes atuais da zona, que participam das experiências

sindicais e as dos sindicalistas que não são do lugar, mas que conhecem a história e sabem

contá-la por ―ouvir dizer‖. As vozes masculinas serão as mais destacadas, serão igualmente

valorizadas as vozes ligadas ao mundo dos papéis, da cultura letrada, mundo este que o

sindicato trazia consigo. Os recomendados para contar serão, assim, figuras que ocupam

posições sociais diferentes. Essa polifonia deixa entrever as diferenças entre os sindicalistas

que não eram moradores de Belém e os que sim, o eram, assim como a experiência de

interlocução que constrói esta história.

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Família, escravidão, luta 231

Os sindicalistas que não eram moradores incorporam em seu relato outras categorias a

partir de onde contar. Uma delas conferirá um marco à história. Mais do que de escravidão, os

sindicalistas falarão de cambão, termo desconhecido para a grande maioria dos moradores,

com exceção daqueles que se encontram mais ligados às experiências sindicais. A diversidade

de categorias cairá, apesar de sua variedade, em uma continuidade de sentido que estruturará a

história sobre um mesmo eixo, tanto entre os que eram moradores como entre os que não o

eram. A história tratará da luta para liberar-se do cambão, ou do jugo, ou do trabalho sujeito,

ou da diária, ou do laço da burra, ou da escravidão. Para além da variabilidade, os

significados dos termos serão contínuos. Esta continuidade de sentido gerada a partir da

interlocução tornará possível que a história da luta seja contada de diversas posições.

Nos relatos dos sindicalistas, o cambão será derrubado, e este declive fará de Belém

um marco na história sindical do Rio Grande do Norte. Belém será um símbolo da luta

sindical nesse estado e, com este enquadramento, sua história chegará a outras regiões do

estado e do país e a outras instituições além das sindicais, como as universidades. A história

disputará seu reconhecimento nas cidades com a história da família, e Belém deixará de ser

um patrimônio familiar para ser o símbolo do fim do cambão no Rio Grande Norte.

Esta Belém experimenta uma ruptura com o que dela se dizia na história familiar. Se,

entre os ex-moradores, a Belém familiar impregnava alguma parte de seus discursos, aqui já

não cabem as abordagens da genealogia dos Melo, das relações entre os membros da família,

nem dos vínculos específicos destes com o patrimônio. A família proprietária não deixa de ser

central, mas o faz de outro modo. Os Melo são agora os latifundistas, os grandes proprietários

que, como muitos outros grandes proprietários, possuíam o poder político e econômico da

região. Os grandes proprietários que, como muitos outros grandes proprietários, se

apropriavam do trabalho dos moradores. Os Melo são também aqueles cuja tradição de poder

é derrubada. A história diz desta derrubada, e Belém mostra a sua transformação: o grande

latifúndio, o símbolo do poder, vai sendo pouco a pouco destituído. O grande latifúndio vai se

tornando um centro da luta pelos direitos dos trabalhadores até que se torna sua grande

conquista e o símbolo da luta sindical.

No entanto, narrado como a derrubada do cambão, este marco da luta se tornava

desconhecido, não unicamente pelos ex-moradores, mas também pelos ex-moradores

sindicalizados. Cheguei às terras de Belém perguntando pela derrubada do cambão, mas

aquela pergunta não era a mais pertinente, e velhas experiências se fizeram presentes. Passava

o mesmo que naquele trabalho de campo em Pernambuco, quando fui investigar um ―conflito

de terras‖ e me deparei com o fato de que meu ponto de partida se desfazia, que o conflito não

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Família, escravidão, luta 232

era algo dado, que as experiências cotidianas o desnaturalizavam como uma entidade

delimitada, mostrando-se impertinente perguntar sobre um recorte que, para as pessoas, já não

tinha sentido (Figurelli, 2007). De modo semelhante, não cabia falar de cambão entre os

habitantes de Belém. A categoria lhes era alheia, era melhor perguntar sobre aquilo a Jorge

Fernandes, me disseram alguns. No entanto, se em uma primeira aproximação não era

possível chegar ao cambão e à sua derrubada, vi, relato após relato, tentativa após tentativa

de responder à minha pergunta sobre o que era o cambão, que, ainda que não chegasse à

derrubada do cambão, chegaria aos significados que aquele marco trazia, chegaria ao eixo de

significados que estruturava a história. Os sentidos em jogo nos relatos dos ex-moradores

sindicalizados e dos sindicalistas não moradores eram capazes de confluir em uma narrativa

comum, na história de uma luta contra os laços do patrão que, se nos relatos dos sindicalistas

se apresentava como derrubar o cambão, naqueles dos moradores sindicalizados significava a

liberação da escravidão, significava o começo dos direitos e de novas experiências de vida

nas quais já não estariam sujeitos ao patrão. Com o transcorrer do campo, vi que os

significados que o cambão punha em jogo não eram tão alheios como a categoria: este remetia

a algo que era preciso se liberar, que era preciso derrubar, seja o cativeiro ou a escravidão, a

diária, o peixe seco, os empregados ou o rabo da burra.

No relato dos ex-moradores, a história de Belém não era apresentada como um marco

da história sindical do Rio Grande do Norte, não se identificava com o grande evento forjado

a partir da derrubada do cambão, mas se fundia no relato das várias experiências vividas

durante os anos de nascimento do sindicato. Esses relatos aderem à vida de todos os dias e

mostram aquelas experiências de uma perspectiva que os vizinhos do lugar reconhecem. O

comparecimento às reuniões que aconteciam sob a sombra das árvores do lugar, a fuga de

Antônio de Ribeiro a São Paulo, a prisão dos demais e as demolições de casas, entre outras,

eram questões que os habitantes de Belém conheciam a partir dos laços de vizinhança; eles

sabiam o que havia ocorrido com seus vizinhos como sabiam o que estava ocorrendo no lugar

onde viviam. Manoel de Bete, por exemplo, soube de seus jovens vizinhos cuja casa foi

derrubada por ordem do proprietário, enquanto Teresinha e os outros vizinhos estavam a par

de que Antônio havia sido obrigado a deixar o lugar ou de que sua casa havia sido demolida.

Os relatos sobre a luta, sobre a criação do sindicato e a ditadura, impregnam assim os relatos

sobre as vivências no lugar e se deixam impregnar por uma moral compartilhada entre aqueles

que ali viviam.

Nas narrativas acerca da fuga de Antônio, por exemplo, as relações familiares e

vicinais e os circuitos de reciprocidade implicados nessas últimas tornam-se centrais. O relato

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Família, escravidão, luta 233

de sua perseguição durante a ditadura não se separa da casa que estava construindo para se

casar, do noivado que mantinha, da ajuda de sua mãe, de sua irmã e de seus dois cunhados.

Nessa dinâmica familiar e vicinal que sua fuga implica, as mulheres ganham um lugar

protagônico. Fátima, naquele momento, a prometida de Antônio, torna-se uma voz que narra

aquilo em primeira pessoa. Apesar de não ser a voz autorizada para falar da luta, quando o faz

devido à minha insistência, começa a narrar a sua própria experiência e faz da luta uma

experiência também das mulheres. Teresinha, por sua vez, sugere a Antônio que me conte

sobre a sua casa e seu casamento perdidos, enfatizando aquele aspecto que era tão próximo às

suas vivências. Como ocorria no tempo dos escravos, com o relato das mulheres (e não

somente destas, como também com o relato de Antônio), a família dos moradores volta a

aparecer, e o faz nos momentos mais críticos da ditadura, nos de maior protagonismo

feminino, nos momentos de grande sofrimento. A experiência das mulheres, aquela dos

homens e a luta sindical têm aqui um ponto de convergência. As mulheres adquirem um lugar

destacado na narrativa sindical, feminizando o relato masculino da ditadura, que também se

faz parte do âmbito vicinal.

Esses relatos vividos da ditadura deixam entrever a reviravolta de uma ordem moral

que estava sendo violada pelos proprietários. Não era possível ter confiança no fazendeiro,

havia dito Manoel de Bete. Antônio de Ribeiro, por sua vez, viu serem quebradas as regras da

morada quando sua casa, essa casa nova que havia sido construída por ele como o fazia todo

jovem que estava para se casar, foi demolida pelo proprietário. Eles, que eram ―homens de

sua casa‖ estavam sendo perseguidos, naquele momento, presos e raspados como meros

―ladrões de galinha‖. Entre outras coisas, os proprietários os estavam humilhando, estavam

atacando uma identidade construída na relação com seus vizinhos e também com seus patrões.

É possível ver, por exemplo, como na reconstrução daquelas experiências, Manoel de

Bete responde a esses ataques e reivindica sua moral. Ele reafirma sua posição social, suas

boas relações com os vizinhos e com aqueles que não o eram, com aqueles prestigiosos

professores/as, padres, doutores/as que o apreciavam e que o ajudaram nos momentos mais

difíceis. Manoel destaca sua condição de trabalhador e de pessoa decente que paga as dívidas

que contrai. Assinala também o caráter imoral dos ataques dos fazendeiros que, como ladrões,

queriam se apropriar dos produtos de seu trabalho, que, como pessoas nas quais não se podia

confiar, atacavam quando o adversário estava indefeso. As destrezas heróicas que Manoel

reconstrói no mundo judicial, nesse mundo de sem sentidos, também se vêem impregnadas

por uma reafirmação de sua integridade, Manoel clareia ali, tudo que há para clarear e, sem

medo, enfrenta as acusações infundadas.

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Família, escravidão, luta 234

A história de Belém como uma história da luta surge assim de relatos distintos

elaborados por pessoas posicionadas em lugares diferentes. Esta história da luta inclui a

interlocução entre os ex-moradores e os sindicalistas que não são dali, o que torna possível

distinguir em vários dos relatos dois parâmetros da organização que se entretecem e que

tornam a história ambígua. A história tem a ver, por um lado, com a luta de Belém, na qual o

tempo dos escravos continua sendo um classificador central. O tempo do sindicato monta-se

em referência à escravidão, e a luta é aquela que termina com o tempo de Belém, um tempo

organizado pelas relações de sujeição ao patrão. A essa visão dos ex-moradores

sindicalizados soma-se outra que se centra não tanto em Belém e no tempo de Belém, mas na

luta sindical. O que aqui se destaca são as lutas nas terras de Belém que envolvem tanto essa

luta mais antiga, que é a luta de Belém, como as lutas posteriores a ela, por exemplo, a

desapropriação de uma parte das terras da antiga fazenda, que é uma luta em Belém, mas não

a luta de Belém, já que se desvincula do tempo de Belém e das relações sociais organizadas

em função desse tempo. É somente a partir desse acento na luta — desse acento que se coloca

antes nas experiências sindicais que nas experiências de Belém e da morada — que os

contadores desta história podem estabelecer um ponto de continuidade entre essas lutas de

tempos diferentes, tornando possível incluir em tal história a narrativa sobre a desapropriação

de uma parte da fazenda. Relatos mais marcadamente sindicais se mesclam deste modo com

relatos de ex-moradores, e de Belém conta-se, assim, o que faz a história de uma luta.

Perguntar sobre Belém não revelava simplesmente diferentes versões de um fato, mas

diferentes fatos que estavam sendo produzidos. Como vimos, foi possível separar um de outro

em função de certos eixos que os estruturaram. No entanto, seus limites não eram definidos, e

diversos elementos que os compunham circulavam de um a outro fato, de uma a outra história

de Belém. A narrativa dos proprietários chegava até os moradores, que nos contavam sobre a

família Melo e nos reenviavam para os proprietários para que escutássemos os relatos sobre

aquilo. Por sua vez, a história da santa chegava até os proprietários que, apesar de enfocarem

seu relato não tanto na santa, mas na Igreja e na propriedade eclesiástica, não deixavam de

reconhecer, no entanto, ―o que se dizia‖ acerca de Nossa Senhora de Belém. As violências e

as mortes entreteciam um e outro relato, assumindo em cada um deles formas diferentes, mas

moralidades semelhantes. As relações vicinais e familiares, os circuitos de reciprocidade e os

valores morais dos habitantes de Belém tornavam-se parte dos discursos sindicais da luta dos

trabalhadores contra seus patrões, e esta luta também se imiscuía nas relações vicinais e

integrava o universo de significados dos habitantes de Belém. Temas como a santa, a família,

a propriedade e a morte adquiriam sentido para os vários e diferentes relatores que Belém

Page 249: Tese Fernanda Figurelli

Família, escravidão, luta 235

implicou, e atravessavam com diversos aparatos uma e outra história, um e outro recorte de

Belém.

Visões diferentes de Belém surgiam de pessoas posicionadas em lugares distintos e

tornavam impossível falar de uma única Belém. Nos termos de Ginzburg (1987), poderíamos

dizer que não tinha sentido uma ―história das mentalidades‖ sem referência às classes sociais.

Por sua vez, as visões não eram autônomas; elementos de uma história se entrelaçavam com

elementos de outra. As ênfases de uma podiam ser apreciadas em oposição às ênfases de outra

e, assim, os relatos se impregnavam entre si tanto quanto as pessoas se contatavam entre si,

recriando permanentemente suas perspectivas, fazendo destas últimas um processo dinâmico,

um lugar onde, de modo constante, se articulam as relações sociais a partir das quais essas

perspectivas se conformam. Uma visão de Belém não é autônoma da outra porque as pessoas

que constroem essas ―Beléns‖ se relacionam e se relacionaram entre si, e essas relações foram

se incorporando aos seus relatos sobre esse objeto. Ao pensar cada uma dessas visões, não há

lugar para a idéia de autenticidade do que fora a visão dos proprietários, dos empregados, dos

moradores, das mulheres ou dos sindicalistas, e sim para a de circularidade, para essa idéia

que nos abre uma janela para as relações dinâmicas entre as pessoas de diferentes posições

sociais na hora de se pensar sobre suas visões de mundo, visões que já não são uma entidade

fechada e fixa, e sim um constante ir e vir (Redfield, 1967; Darnton, 1986; Bakhtin, 1987;

Ginzburg, 1987).

Este trabalho observa a memória e, como tal, enfoca um passado dinâmico, que é

constantemente elaborado e reelaborado pelas pessoas em função de seu presente e das

relações sociais que estabelecem. Como assinalei anteriormente, não me interessa abordar

Belém como um fato dado do passado, e sim como um objeto (Foucault, 2005) que está sendo

construído, que é variável. Ao falar sobre Belém, me interessa falar sobre a sua construção,

sobre as diferentes e cambiantes elaborações do passado que são colocadas em jogo a partir de

perspectivas distintas. Deste modo, ao longo do trabalho, me esforcei por associar as

recordações narradas às posições dos narradores e à situação de sua reconstrução. Tentei

enfatizar, a cada momento, que o passado reconstruído em cada uma das histórias aqui

apresentadas surgia de determinados contadores e de determinadas redes de relações e

recomendações, e que passados diversos resultavam de situações diversas. Tentei, desse

modo, ligar a entidade com as relações sociais que a conformam. Coloquemos, agora, o eixo

da reflexão nessas relações e recomendações e desloquemo-nos das histórias contadas para o

contar histórias.

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Família, escravidão, luta 236

Vozes em circulação

Ao ganhar a forma de uma história, Belém podia ser transmitida. A história

significava para aqueles que a construíam algo que podia ser contado, algo que podia ser

passado de uma pessoa para outra. A história adquiria entidade nos relatos, em sua circulação,

em seu intercâmbio. Como a mercadoria de Marx, a história era porque podia ser contada,

não era história com anterioridade à sua circulação. De modo que o contar, o passar e todas

as relações e dinâmicas sociais que essa atividade supõe constituem um lugar fundamental na

hora de se pensar as histórias. Estas dizem sobre quem as coloca em circulação e quem não o

faz, sobre quem recomenda a quem para contar, sobre quem pode contar que e quando e sobre

tudo que isto envolve. A dinâmica social que implica o contar está envolvida nas histórias. De

diferentes formas, Marx (1988), Mauss (1971) e Malinowski (1976) nos permitem iluminar

esta questão, ao deixar entrever como as coisas que circulam adquirem sentido quando se olha

as relações sociais que essas coisas significam. Assim, a mercadoria de Marx (1988) nos fala

de relações sociais que as pessoas estabelecem em seus trabalhos e nos devolve o olhar ―para

seus custódios, os possuidores de mercadorias‖ (op. cit:103), enquanto em Mauss (1971), as

coisas que as pessoas dão e devolvem não são separáveis nem das pessoas nem dos elementos

morais, políticos, domésticos, religiosos, mágicos, econômicos, jurídicos, estéticos que as

relações entre elas supõem e, com Malinowski (1976), observamos nos Vaygu’a Kula, uma

história de laços sociais intertribais que se encontra contida neles. Com estes autores, olhar

um objeto é, assim, olhar as relações sociais envolvidas nesse objeto.

A história que se passa revela uma dinâmica de relações entre as pessoas, entre

aqueles que contam e entre aqueles que recomendam outras pessoas para contá-la. A história

não pode ser separada das obrigações, dos valores morais, das regras de reciprocidade, das

hierarquias, dos pertencimentos, dos reconhecimentos a partir dos quais determinadas vozes

se configuram como autorizadas para contá-la e outras não. A história não se distingue dessa

dinâmica social que a constrói, dessa dinâmica mediante a qual determinadas vozes, aquelas

que lhe darão existência, serão escolhidas. Uma história contada é inseparável de quem a

conta, como enfatizei na primeira parte destas conclusões, mas também é inseparável das

relações sociais que selecionam os contadores e permitem seu surgimento. Devolvamos,

assim, o olhar para os ―possuidores de histórias‖, para a relação entre os contadores e os

―recomendadores‖, para a conformação dos lugares que cada um ocupou na circulação das

histórias.

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Família, escravidão, luta 237

Os contadores não foram aleatórios. Pelo contrário, sua seleção deixava ver muito

desse mundo social que cada história colocava em jogo. Os ex-proprietários foram contadores

reconhecidos principalmente na cidade do município e entre os funcionários de instituições

públicas. Eles teciam relações nesse âmbito e, nesse âmbito, recriava-se uma história do

patrimônio familiar, tanto nos relatos das pessoas como nos registros escritos que a cidade

mantinha acerca de Belém (testamentos, heranças e escrituras, entre outros). A cidade de

classe média, o que essa cidade deixava entrever e escutar, dava voz àqueles que foram donos

do grande patrimônio, àquelas figuras conhecidas do lugar, que podiam falar melhor de sua

própria família e de sua própria fazenda. Nessa cidade, o sindicato de trabalhadores rurais que

se erigia em uma de suas quadras não tinha o peso da família Melo, gravada em suas ruas, em

seus arquivos, nas listas de prefeitos e de outros cargos políticos. O sindicato e aqueles que o

integravam não estendiam sua influência ao âmbito da classe média urbana, apesar de seu

presidente ter sido funcionário da municipalidade. O faziam, sim, os endinheirados e defuntos

donos que transitaram de modo freqüente pelo lugar, onde teceram relações e se constituíram

em figuras de grande destaque, bem como os atuais herdeiros já sem fazenda que continuam

transitando por ali e se relacionando com as pessoas de classe média do lugar. O

reconhecimento desses habitantes da cidade os autorizava, não havia ninguém mais adequado

para falar de Belém. Esta se convertia, assim, na história do patrimônio familiar.

Não era somente o reconhecimento dos habitantes de classe média que dava voz aos

proprietários. Os patrões foram figuras centrais na vida dos moradores, e vários deles não

deixavam de ver na família desses patrões e em sua história algo de valor para ser contado,

como assinalei anteriormente. Também entre eles, a família Melo se fazia de público

reconhecimento e, assim, tiveram lugar algumas remissões em direção à palavra dos ex-

fazendeiros. Contudo, ainda assim ocorriam, entre os moradores, as desautorizações dessa

palavra, e isso no caso em que não a ignoravam, o que acontecia com maior freqüência, já que

os moradores não conheciam o paradeiro dos antigos proprietários ou, inclusive, se estes

estavam ou não vivos. Se, para falar sobre a família, Gregório me remeteu a Antônio Melo

Neto, o desautorizou, por sua vez, a falar sobre a história de Belém, do tempo do sindicato.

Em sua opinião, sem conversar com Manoel de Bete e escutando o vaqueiro Mendes ou o ex-

fazendeiro, eu ―não estava sabendo nada de Belém‖. Por sua vez, quando comentei com

Teresinha que ia entrevistar Josias Melo, ela me respondeu com um ―para que?‖. Do mesmo

modo, achou inútil minha entrevista com o empregado do patrão que, segundo sua avaliação,

roubava algodão dos moradores. Entre os habitantes de Belém, os proprietários não saberiam

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Família, escravidão, luta 238

falar sobre o tema central da história que se associava à vivência dos moradores do lugar,

motivo pelo qual somente seriam recomendados a falar sobre sua própria família.

Se, apesar das desautorizações, cabia, entre os moradores, alguma remissão aos

proprietários, a voz destes últimos, em troca, não tinha lugar no circuito de recomendações

para contar sobre a Belém do âmbito sindical. Nenhum espaço lhes era concedido aqui. A luta

era dos trabalhadores e era a eles que correspondia falar, aos lutadores. Esses lutadores, por

sua vez, não eram todos os trabalhadores, eram aqueles que haviam se relacionado entre si a

partir das experiências sindicais e que eram, em sua maioria, homens. Além disso, eram

pessoas que viviam em Belém e fora dali, de modo que as recomendações atravessaram um e

outro lugar. A organização sindical, através de Jorge Alves, me enviava tanto a Jorge

Fernandes como às pessoas do assentamento. Neste último, por sua vez, assumiam a voz e me

enviavam aos lutadores do lugar, mas também àqueles líderes mais escolarizados que não

eram dali e que ―sabiam contar‖. Esta história estendia-se para além da fazenda e se fazia

presente na cidade de um modo diferente ao da história da família. A luta era registrada nos

arquivos da federação de trabalhadores e nos arquivos da imprensa católica da arquidiocese de

Trindade, nos relatos dos sindicalistas que ali viviam, nos encontros e congressos realizados

com a universidade e nos registros produzidos a partir dali, nos arquivos do INCRA etc. A

história também era construída entre as pessoas de classe média urbana, mas as instituições

nas quais elas se posicionavam já não se localizavam no município onde os Melo teceram

relações, tampouco eram as instituições que arquivavam a história familiar.

Ao nos dirigirmos às recomendações dos ex-moradores, os velhos, como vimos,

assumiam um lugar privilegiado, os velhos eram os contadores por excelência daquele tempo

que, nesse lugar, já não existe. Os habitantes de Belém recomendavam seus antigos, seus

sábios. Recomendavam seus pais ou seus antecessores, os velhos que conheciam por laços de

vizinhança ou parentesco. Contar correspondia àqueles que haviam vivido a história ou

àqueles que a haviam escutado daqueles que a haviam vivido. Os anos de vida conferiam

experiência e sabedoria e autorizavam os antigos a passar aquilo a quem não possuía. Era

possível chegar, assim, não somente aos velhos moradores, mas também aos velhos

empregados que, ainda que de modo distinto dos ex-moradores, acreditassem que ―Belém era

boa‖, estariam igualmente autorizados a falar sobre ela.

Se os velhos eram os narradores privilegiados de uma ―Belém antiga‖, de uma Belém

que já não existe, como assinalei anteriormente, entre eles se destacavam os homens velhos,

os que haviam sido moradores e vivido de forma direta o cativeiro ou a escravidão. Além

disso, considerava-se que seriam os homens que poderiam me falar sobre o ―mundo público‖,

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Família, escravidão, luta 239

de modo que era a eles que correspondia conversar em uma reportagem, em uma situação

formal gerada por uma pesquisadora com gravador nas mãos. Particularmente, correspondia

conversar aos homens que assumiam um lugar de respeito entre seus vizinhos, aos homens

que souberam conseguir aquilo que era valorizado em seu mundo moral, como uma família,

uma casa e terras para trabalhar, uma boa reputação que lhes apresentava como trabalhadores

que bebiam moderadamente, como homens de sua casa que pagavam as suas dívidas e não

roubavam etc. (assim, por exemplo, o velho Zeferino, que vivia na casa de Gregório, não

estava autorizado a contar, ainda que fosse considerado um trabalhador, uma vez que não

tinha nem casa, nem terra). As mulheres aderiam a esta regra implícita de não falar em

situações públicas e me enviavam para os homens quando eu queria entrevistar sobre Belém.

Contudo, quando os homens não estavam, ou quando se tratava de contar sua vivência

pessoal, uma questão que os demais não reconheciam como parte de um saber comum, as

mulheres, então, assumiam a voz, ali, no silêncio do que, em uma primeira instância, não se

considerava público. Do mesmo modo, quando as conversas ocorriam em um âmbito

informal, quando se tornavam parte da relação mais pessoal que eu estabelecia com elas, sua

voz também ressoava, ainda que não mais para passar a história de Belém, na qual assumiam

sobretudo o lugar de organizadoras do espetáculo — por sua centralidade nas recomendações

— que o de contadoras. As hierarquias entre os moradores, as relações de gênero, seu mundo

moral, não se desligavam assim da história que sobre Belém contariam os antigos habitantes

da fazenda, do que seria ou não classificado como parte dessa história.

Os velhos empregados também foram autorizados a fazer circular a história, a contá-la

e conferir-lhe uma forma. Na legitimação de suas vozes, vários aspectos se entrecruzaram.

Por um lado, como vimos no parágrafo anterior, o universo social dos habitantes de Belém

fazia-se presente na recomendação desses homens mais velhos que haviam vivido a história e

que ainda sabiam contá-la. Por outro, novos aspectos vinham com a autoridade que os

próprios empregados conferiam, a qual se forjava, tal como para os ex-moradores, pelo

critério de serem velhos e saberem mais que os demais, mas também por terem estabelecido

relações próximas com a família Melo. Entre os empregados, privilegiava-se o saber sobre os

patrões, sobre a fazenda e seus donos, sobre questões que eles acompanharam de perto em seu

contato com estes últimos. Assim, a experiência que haviam tido de Belém não deixava suas

narrativas fora da história contada pelos proprietários. Apesar de seus relatos não se deterem

ali, Belém continuava sendo, entre os empregados, um patrimônio familiar. Finalmente, na

conformação de seu lugar de contadores da história também se deixava entrever a hierarquia

estabelecida entre o patrão e seus vaqueiros. A recomendação de um proprietário para que um

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Família, escravidão, luta 240

vaqueiro contasse sobre as mortes era inseparável daquela hierarquia mediante a qual se

conseguia dar um lugar secundário a essa questão. Deste modo, essa hierarquia também

impregnava a história que, com as vozes dos empregados, entrava em circulação e adquiria

existência.

Os contadores surgem de um universo de relações sociais inseparável das histórias.

Estas remetem tanto àqueles que as contam como ao mundo social que habilita alguns deles a

contar. As histórias dizem mais que o que narram, mostram mais do que a sua aparência

imediata; nos falam de pessoas relacionando-se, de pessoas que constroem legitimações, que

constroem prestígios, que instituem olhares sobre o mundo, nos falam sobre crenças e valores

morais, nos falam de hierarquias e de posições. A partir daqui, podemos dizer, nos termos de

Marx, que já não é possível fetichizar a história.

As histórias também nos falam de uma maneira de estar uns com os outros. Se as

histórias são em seu ser contadas, então o ―ser contadas‖ não pode passar desapercebido.

Nesse mundo social que se encontra contido nelas, se vislumbra o momento de serem

narradas, esse momento em que se dá ao outro algo de si. Trata-se, então, aqui, de impregnar

as histórias na cotidianidade das pessoas, em suas formas de sociabilizar-se, juntar-se, contar-

se. Em suas formas de ser e de viver.

Esta tentativa dialoga com aquelas análises que, quando se referem aos textos,

apontam para se olhar para além do escrito, com esses trabalhos que buscam a voz na letra e

nos permitem visualizar ali o momento performático que a impregna (Zumthor, 1993). Deste

modo, para citar alguns deles, Zumthor (op. cit.) nos convida a ver na escritura medieval

aquela performance da qual não se desliga, aquela vocalidade criadora de sentidos que se

torna uma parte constitutiva do texto. As circunstâncias da transmissão, a presença conjunta

de quem irá transmitir a obra e de quem a ouvirá, ganham com o autor um lugar prioritário

para olhar a escritura medieval. Do mesmo modo, Dupont (1991) perceberá a voz e o evento

das obras homéricas, tentará reencontrar Homero em seu contexto enunciativo, em sua

cotidianidade, nos banquetes gregos em que os contos dos bardos eram ouvidos, e esse

banquete, esse momento da narração, será desse modo central na hora de se pensar essas

obras. Em um esforço semelhante, Darnton (1986) destacará a necessidade de relacionar os

contos populares franceses que analisa à sua transmissão oral e ao contexto dessa transmissão

entre camponeses franceses do século XVIII. Galand Pernet (1988), por sua vez, observará

que o literário, no domínio da literatura bárbara, envolve o oral; que o ato de comunicação

entre um autor e o auditório se faz presente na organização da mensagem e, de novo, o texto

se verá indissociável do momento de sua manifestação coletiva. Heinich (2005), por outro

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Família, escravidão, luta 241

lado, argumentará contra a ―redução hermenêutica‖ na análise de narrativas de ficção (na qual

inclui o escrito e o não escrito, como o cinema, por exemplo) e, numa tentativa de ver para

além do conteúdo das mensagens, apontará, entre outras coisas, para a sociabilidade que estes

põem em jogo. Finalmente, e saindo do âmbito escrito, em Pécora (2001), será possível

apreciar que o conteúdo da conversa nem sempre foi um lugar privilegiado na ―arte de

conversar‖, como o demonstra a leitura dos ensaístas franceses do período de Luis XIV, para

quem a conversa se apresenta como fonte de prazer e de diversão, como um lugar de encontro

entre as pessoas, como um modo de fortalecer o trato social entre os homens.

O momento em que uma narrativa é executada ganha um lugar central com estes

autores que buscam para além do escrito ou para além do conteúdo das mensagens. Para nos

deslocarmos próximo ao campo desta tese, podemos citar Melo (s/d), que começa seu livro

assinalando o contexto de diversão em que têm lugar as adivinhações que recopila e, entre

outras situações, menciona as reuniões após o jantar ou ―qualquer outra circunstância em que

haja agrupamento‖ (op. cit.: 15). Por sua vez, como o prefácio desse capítulo deixa entrever,

na obra de Graciliano Ramos, o momento de contar se faz tão importante como as histórias

que se contam. Cada história narrada por Alexandre introduz-se nesse momento de encontro

de vizinhos, nas noites de lua cheia, nas características de seus ouvintes, na voz fanhosa de

Alexandre, nos gostos das bebidas ou nos odores do tabaco. Assim, se ilumina nas histórias o

momento de contar, esse momento que fará com que cada história não seja de uma vez por

todas, esse momento que dará aos textos sua movência, como diria Zumthor (1993), que

manterá vivo um passado que se recriará e mudará com cada contar.

Apreciar as histórias em seu ―ser contadas‖ nos reenvia a sociabilidades, prazeres e

destrezas. Ao observar a voz que une ―no calor das presenças simultâneas‖ (Zumthor, 1993),

o conto do bardo que é capaz de obter uma memória comum e sagrada (Dupont, 1991), a

―função de coesão‖ do texto (Galand-Pernet, 1998), ou as visitas na casa de Alexandre

(Ramos, 1979) etc., os autores acima citados chamam a atenção para a comunhão e a

sociabilidade que as narrações geram, sociabilidade que não foi alheia às histórias deste

trabalho.

Com as histórias, as pessoas de Belém passeiam, se encontram, se visitam, se reúnem

e conhecem um sobre o outro. Que eu escutasse sobre Belém, por exemplo, significava para

Maria Clara ir certo domingo visitar seu pai e seu avô na cidade. De modo análogo, para

Manoel, o velho vaqueiro, significava uma visita a seu amigo Serafim, o balanceiro. Ainda

que, para Manoel, a história estivesse completa em seu relato, a visita a Serafim também

poderia ser parte dela. Apesar de, devido a seu frágil estado de saúde, não ter sido possível

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Família, escravidão, luta 242

fazer essa visita, ao recomendá-la, fez com que eu levasse algo dele para Serafim e se

estabelecesse, assim, um encontro entre ambos.

Teresinha, por sua vez, me transmitiu a história de sua vida, tanto por intermédio de

seu relato quanto mediante as visitas que fizemos às diversas comunidades de Belém onde ela

vivera ou tinha parentes. Essas visitas configuravam-se parte da história que ela me passava,

da história com a qual me ajudava em meu trabalho. Com ela, fui a Moreno e visitei seus

parentes. Com ela, percorri a paisagem que era parte de sua história, a árvore que lhe

lembrava seu pai ou a casa em ruínas onde este último e sua mãe viveram seus últimos anos.

Com ela, provei o beiju e a torta pé de moleque que fez a vida toda e com ela fui passar o dia

em Lagoa do Gibão, a comunidade de Belém onde viveu por muitos anos, onde tinha sua casa

e suas amigas, vizinhas e familiares. Ela ficaria insatisfeita, tinha me dito, se eu fosse embora

sem conhecer a sua casa e sua gente querida daquele lugar. De modo que, me contar a sua

história, também envolveu esse passeio que fizemos junto com a sua neta, Marcela, sua filha,

Consolação, Alice, a nora de sua filha, seu filho, Evandro e seus netos, Edmundo e Renatinho,

como igualmente envolveu os perfumes e as roupas preferidas que todos eles colocaram com

tal finalidade.

Para citar uma última situação, a narração de Belém significou um grande momento de

encontro entre vários vizinhos do lugar em uma de minhas idas a Boa Fé. Dona Guida, a dona

de casa que eu propusera entrevistar, chamou seus velhos vizinhos homens para que me

falassem sobre Belém. A ocasião reuniu dois destes velhos vizinhos, a esposa de um deles e

os familiares mais jovens, que se sentaram para escutá-los na varanda de frente da casa.

Aquele momento se tornaria inseparável do que contariam: a tentativa dos narradores de

seduzir o público, as piadas, os risos, as intervenções do auditório etc. não se separariam da

história que estavam transmitindo para mim.

As histórias também eram a maneira de nos encontrarmos, em que a minha relação

com eles era possível. Esse momento de encontro tampouco ficaria fora do que me contavam.

O que eu perguntava, a relação que estabelecíamos, o que a minha presença gerava, suas

percepções sobre mim, todos os apreensíveis e inapreensíveis de nossa relação estariam

envolvidos nas histórias, como estão envolvidos neste trabalho. Minha vivência com eles não

está fora do meu contar escrito, de minha tese, da história que aqui apresento.

Deste modo, as histórias contadas implicavam passeios, visitas e encontros de vizinhos

e parentes. Significavam um modo de se sociabilizar e de se reunir. As histórias também

implicavam degustar os sabores históricos e conhecer os objetos históricos, provar beiju e ver

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as árvores e a igreja de Monte Bravo. As histórias chegavam por meio dos ouvidos, mas

também do paladar, do olfato e da visão, e através das experiências de se estar junto.

Como o desfrute não ficava fora do banquete (Dupont, 1991), da conversação (Pécora,

2001) ou da experimentação de uma obra (Heinich, 2005; Galand-Pernet, 1998; Zumthor,

1993), nas terras de Belém, o prazer não ficava fora dos momentos narrativos, que requeriam

gostos, tempos e lugares específicos. Contar histórias ganhava gosto de café que, eu

incansavelmente bebia em cada casa onde ia. Ganhava sabor de suco de fruta do lugar, de

pitombas e, às vezes, de cafés da manhã, almoços ou jantares. Quando a história se

sobrepunha aos horários das refeições do contador, costumava se dar o convite para quem

estava escutando. As narrações implicavam um momento de descanso e deleite e se faziam no

lugar mais confortável da casa, que seria a sala ou a varanda. De preferência, eram realizadas

após o jantar, momento para se conversar; um momento fresco e livre das agitações diárias,

um momento tranqüilo, no qual os vizinhos tinham tempo para se reunir. Teresinha não me

contava a sua vida a qualquer hora, mas à noite, na agradável galeria da sua casa, com seus

familiares escutando e, às vezes, também com seus vizinhos, sentados na rede ou nas

confortáveis cadeiras que havia por ali. Quando deviam ser contadas em outro horário, as

histórias igualmente buscavam uma pausa para se falar, se olhar, escutar e ser escutado e, às

vezes, até para cantar. Procurava-se que a narração ocorresse em um horário no qual o

contador pudesse se dedicar àquilo sem ter de se preocupar com o trabalho. De tardezinha, por

exemplo, quando os animais já estavam guardados, era para os homens um bom horário para

se conversar, enquanto, para as mulheres o era depois do almoço e durante a tarde, distante

dos momentos de preparação das comidas. A pausa permitiria um bom desempenho, assim

como uma narração detalhada, como puderam fazê-lo Luis e Ricardo, por exemplo, após me

proporem que passasse de tardezinha. Como Teresinha, com seu ―romance de tristeza e

ilusão‖, Ricardo, seu vizinho, começou seu relato com um violão, e seu canto, escutado por

mim, por Teresinha, seus familiares e parentes que viviam próximos à sua casa. A narração de

Luis Cardoso, por sua vez, acabou com a música que o violino de sua filha, Laura, fazia

ressoar, assim como com um convite para jantar. Na ausência de uma varanda, sua narração e

também a de Ricardo, forma realizadas na sala de casa.

As histórias também implicavam um saber contar, ―um conhecimento, a inteligência

[...], a sensibilidade, os nervos, os músculos, a respiração, um talento de reelaborar em tempo

tão breve‖ (Zumthor, 1993: 141). Implicavam um domínio, como assinalou Evandro,

implicavam saber ―começar uma história e levar adiante‖, como disse Antônio de Ribeiro.

Para ele, essa nova gravação que Teresinha sugeriu que eu fizesse para que me falasse um

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Família, escravidão, luta 244

pouco mais sobre a sua casa e seu casamento seria um despropósito à sua arte de contar

histórias, à sua arte de saber ―levar adiante‖. Esta história já estava gravada, já se definira, e

essa definição havia sido dada no momento em que ela me foi passada. Uma história é o que

se conta, e esse contar a define, lhe confere uma particularidade que a distinguirá da história

que será definida em outro momento de transmissão. A história não será para sempre, será em

cada contar, será dinâmica e sujeita às variadas reelaborações de cada contar. A arte de contá-

la, que é a arte de defini-la e de transmiti-la torna-se assim fundamental.

Ao pedir que me contassem sobre Belém e suas vivências em Belém, os narradores

começavam a fazer uso de sua destreza. Começavam a me contar e a definir aquele objeto que

seria passado, que seria transmitido aos vizinhos, familiares ou somente para mim, e que de

mim iria até o fim do mundo, como disse Manoel de Bete, até a Argentina ou até o Rio de

Janeiro. Os que eram considerados bons contadores eram aqueles que, não somente sabiam

das experiências por tê-las vivenciado, ou seja, aqueles que tinham algo para contar, mas

também os que sabiam passá-las. As pessoas não deixavam de levar isso em conta na hora de

me recomendar alguém para que me contasse. Depois, muitas delas me perguntavam se eu

havia gostado daquilo que me contara a pessoa recomendada. Teresinha, por exemplo, a cada

nova entrevista que fazia, me questionava sobre qual de todas as conversas havia parecido

mais virtuosa, de qual eu tinha gostado mais, quem, em minha opinião, sabia contar melhor e,

em definitivo, quem sabia mais. Ele sabe ou não sabe? Me perguntava, e agregava: ―quem

sabe mais, fulano ou fulano?‖ ou ―de qual conversa você gostou mais?‖.

Saber contar a história, como disse Antônio, se identificava com poder construir uma

linearidade, com começar um tema e ser capaz de segui-lo até esgotá-lo. No relato do que se

considerava um bom contador, minhas perguntas e as do resto do auditório, quando este

existia, eram secundárias, esparsas no extenso relato, um mero ponto de partida para o

desempenho do narrador. Somente era preciso dizer o que alguém desejaria que eles

contassem, e ali começava a fala. Quando o tema se esgotava, então a pergunta tinha lugar.

No relato só se ―colocava mais lenha‖ quando a chama se apagava, quanto menos lenha,

melhor contador. Essa dinâmica esteve muito presente entre os mais antigos e também entre

algumas pessoas mais jovens que, ainda que não estivessem habilitadas na arte da narração, já

haviam intuído os segredos do contar e nele exercitado. Não surpreende que, entre os ex-

moradores, os recomendados para contar sobre Belém tenham sido os velhos, e não somente

por terem vivido o que eu perguntava, mas também porque dominavam a arte da conversação

e possuíam uma destreza verbal e corporal, uma seriedade e, ao mesmo tempo, uma picardia,

uma astúcia e uma desenvoltura necessárias para entreter o ouvinte.

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Tendo me proposto a indagar as reconstruções de um evento histórico, cheguei a

outros eventos que se constituíram em torno ao mesmo objeto: Belém. Esses vários eventos se

incorporavam à história social reconhecida pelas pessoas do lugar. No entanto, essa história

social que começava a perceber não era uma só. A história que falava sobre o movimento

social e sobre a ditadura militar era diferente da história que falava da região e de seu

desenvolvimento produtivo e urbano, e esta era, por sua vez, diferente da história da

exploração da mão de obra por parte dos grandes proprietários, e isso sem falar de todas as

vivências que eram contadas e que não eram passíveis de ser transformadas em eventos

históricos. A história não somente não era uma única como, das várias versões que surgiam,

começaram a se destacar entidades distintas. Em um momento, me via pensando nas lutas

sociais, em outro, em uma família e seu patrimônio e depois na exploração e no cativeiro dos

camponeses. Enfatizar uma dessas entidades implicava não enfatizar a outra. Além disso,

apesar de algumas delas poderem coexistir, outras se tornavam incompatíveis na hora de se

narrar uma única história.

Cada uma dessas diferentes histórias surgia de lugares sociais específicos. Cada

narrador se encontrava posicionado socialmente e, de pessoas posicionadas em lugares

semelhantes, surgiu uma história semelhante. A história não era neutra, o que se contava

privilegiava um ponto de vista, e reproduzir uma entidade era também situar-se socialmente.

Diante deste panorama, qual poderia ser a reconstrução histórica a se realizar? A que fora,

implicaria uma seleção, uma tomada de posição e uma exclusão das entidades designadas

como menos relevantes. A reconstrução histórica seria a de alguma questão que a própria

vivência social permite conferir valor, a vivência na universidade, no rabo da burra, na prisão,

na cozinha, na igreja, na fazenda, ou em qualquer outro lugar.

Foi assim que escolhi trabalhar várias histórias e relativizá-las. Escolhi introduzir ―os

Menocchios‖ do assunto, esse personagem que permitiu a Ginzburg (1987) questionar o tom

interclassista da história das mentalidades e o ajudou a chegar a uma ―cultura popular‖ que

mostrava tudo o que a reconstrução histórica totalizadora deixava fora da época. Não me

centrei no evento histórico do qual parti, mas em vários eventos históricos que foram

possíveis a partir de meu objeto. Ao descobrir que não havia um único evento possível, tentei

entender o que era colocado em jogo em cada um deles. Não me propus a reconstruir os

eventos, mas a relativizá-los. Procurei dar toda força à dimensão narrativa, que envolve não

somente um conteúdo, mas também um universo social. Quis mostrar etnograficamente que

uma história não tem vida própria e que uma história supõe relações e pessoas que recortam,

classificam e delimitam. Deste modo, minha proposta apontou para uma etnografia das

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Família, escravidão, luta 246

construções históricas, uma etnografia na qual as histórias apareçam integradas na vida das

pessoas, na qual se dê conta dessa vida social mais complexa que os eventos históricos

isolados que dela surgem. Uma etnografia na qual a história seja entendida como uma relação

com essa vida e não em relação a si mesma, na qual seja devolvida à história toda a

complexidade que sua abstração pode deixar de lado.

As histórias contadas desse trabalho nos falam de olhares diversos sobre o mundo, de

posições sociais, de hierarquias, de crenças, de valores morais, de legitimações e de

reconhecimentos e também nos levam a uma dimensão profunda da existência que não é outra

coisa senão estar com o outro. As histórias são um modo a partir do qual as pessoas se

encontram, se dizem, se escutam, compartilham, desfrutam, constroem um mundo comum, se

emocionam e são afetadas mutuamente. Ao serem contadas, as histórias recriavam climas de

reunião, de interesse mútuo, de querer saber sobre as histórias dos outros, sobre seus

sofrimentos, suas lutas, suas vidas. As histórias emocionavam, faziam uma pausa, traziam os

mortos, davam aos mais velhos uma voz perdida na agitação de todos os dias. Seu som suave,

lento e fugidio, de cordas vocais gastas e dentes perdidos, era capaz de ressoar em meio ao

barulho. As histórias faziam as pessoas se olharem. Trabalhar com histórias, categoria a partir

da qual meu interesse sobre a memória dos conflitos foi sendo definido junto a meus

interlocutores/as no trabalho de campo, foi uma maneira comovente de aproximar-me

deles/delas.

Nas histórias, casa um se mostrava ao outro em sua multiplicidade de vivências, em

sua diacronia, em sua complexidade. Cada um punha nelas algo de si, que começava a existir

quando era dito, quando se contava ao outro, quando se passava, quando se dava, enfim,

quando se fazia história. Com esta última, cada um dava ao outro, e esse dar-se lhe devolvia

uma vida. ―Ouvir dizer‖, ―escutar da boca de outros‖, ―contar a história‖, essas frases

repetidas entre meus interlocutores/as revelam assim um significado profundo.

A existência da história e de tudo o que ela significa vem com o contar, com o dar,

com o relacionar-se. Uma história existe enquanto contada, e o ser contada incorpora o outro

na definição do que se contará, daquilo a que alguém dará existência, desse objeto que será

construído. Essas são as histórias deste trabalho, as histórias contadas, aquelas histórias

dinâmicas que dizem tanto sobre o mundo social que estão criando como do mundo social que

as conta, aquelas histórias imbricadas nas relações e no cotidiano das pessoas, aquelas

histórias que nos falam do encontro com os outros. Ao final, como esta tese, não se trata de

nada além de irmos até os demais, e com os demais, em nossos contares.

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Anexo I

Lista de informantes citados/as, com idades respectivas em 2009

Adelina: moradora de Manaus, nasceu em Belém e vive ali desde então. 65 anos (aprox.).

Ricardo: morador do assentamento e participante da luta pela desapropriação. Nasceu em

Belém e vive ali desde então. 65 anos.

Teresinha: moradora do assentamento, nasceu em Belém e vive ali desde então. 62 anos.

Joca Souza (tio Joca): morador de Moreno, nasceu em Belém e vive ali desde então. 87anos.

Gregório Ferreira: morador do assentamento e presidente do Sindicato dos Trabalhadores

Rurais de Bom Jesus, nasceu em Belém e vive ali desde então. 67 anos.

Dona Lurdes: moradora do assentamento, nasceu em uma região vizinha à Belém. 62 anos

(aprox.).

Alícia: diretora da Casa da Cultura de Bom Jesus.

Fátima: moradora do assentamento, nasceu em Belém e vive ali desde então. 66 anos.

Josias Melo: herdeiro de Belém. 77 anos.

Manoel de Bete: morador de Jucá e participante do movimento sindical da década de 1970,

nasceu em Belém e vive ali desde então. 93 anos.

Manoel David: ex-vaqueiro de Belém. 81 anos.

Jorge Alves: atual vice-presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado

do Rio Grande do Norte (FETARN). 58 anos.

Jorge Fernandes: primeiro presidente da FETARN e participante do movimento sindical da

década 1960. 67 anos.

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Família, escravidão, luta 256

Antônio (de Serras): morador de Serras, nasceu e se criou em Belém. 68 anos.

Antônio (de Boa Fé): morador de Boa Fé, nasceu em Belém e vive ali desde então. 82 anos.

Antônio de Ribeiro: morador do assentamento, participante do movimento sindical da

década de 1960 e da luta pela desapropriação, nasceu em Belém e vive ali desde então. 69

anos

Antônio Mendes: ex-vaqueiro de Belém. 68 anos.

Antônio Melo Neto: herdeiro de Belém. 66 anos.

Ivaldo Vera: morador do assentamento e participante da luta pela desapropriação, nasceu em

Belém e vive ali desde então. 68 anos.

Ana (de Manaus): moradora de Manaus, nasceu em Belém e vive ali desde então. 68 anos

(aprox.).

Maria Clara: moradora de Manaus, nascida no lugar. 42 anos (aprox.).

Jacinta (de Manaus): moradora de Manaus, nasceu em Belém e vive ali desde então. 64

anos.

Vilma: moradora do assentamento, nasceu em Belém e vive ali desde então. 57 anos.

Luis Cardoso: morador do assentamento, participante da luta pela desapropriação e

presidente da associação, nasceu em uma região vizinha à Belém. 52 anos.

Edna: moradora do assentamento, nasceu em Belém e vive ali desde então. 53 anos.

Antônia (de Moreno): moradora de Moreno, nasceu em uma região vizinha à Belém e vive

neste último lugar há muito tempo. 81 anos.

Margarete: moradora do assentamento, nasceu em Belém e vive ali desde então. 55 anos.

Francisca (de Manaus): moradora de Manaus, vive em Belém desde pequena. 63 anos.

Serafim: ex-balanceiro de Belém. 96 anos.

Célia: moradora do assentamento, nasceu em Belém e vive ali desde então. 49 anos.

Zeca: morador do assentamento e participante da luta pela desapropriação, vive em Belém

desde pequeno. 59 anos.