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Territórios Expandidos
Práticas contemporâneas de arte-joalheria
Mirla Fernandes 1
Resumo: A arte-joalheria é uma disciplina que vem buscando o reconhecimento no campo da arte. Permeada em seus primórdios pela funcionalidade , como foi também o caso da fotografia, hoje a joalheria contemporânea se ramifica por um lado em peças de caráter tradicional, ligados exclusivamente ao adorno, e por outro lado, em trabalhos que dão prioridade ao desenvolvimento de um discurso poético, a chamada arte-joalheria, a ser tratada neste artigo. Ainda pouco conhecida no cenário brasileiro, a arte-joalheria estabelece interfaces com outras mídias operando no campo da arte contemporânea. O presente artigo é uma reflexão a partir de trabalhos de artistas joalheiros de reconhecimento internacional que expandiram os tradicionais territórios ocupados pela joalheria, ou seja usar o corpo como suporte, para trabalhar com fotografia, vídeo e instalação. Abstract: Art-jewelry is a discipline that has been searching recognition in the art field. From its beginning, permeated by functionality, such was the case of photography, art jewelry branches out into pieces of adornment, and in the other hand, in works that give priority to the development of a poetic discourse, the so called art jewelry to be mentioned here in this paper. Almost unknown in the Brazilian art scene, it establishes interfaces with other medias operating in the contemporary art field. This paper is a reflection on works of internationally recognized jewelry artists that have expanded the traditional territories occupied by jewelry using also photography, video and installation. Palavras-Chave :arte-joalheria, hibridismo, arte contemporânea, joalheria, corpo Keywords :art-jewelry, hybridism, contemporary art, jewelry, body
1. Territórios da Arte
A partir daquilo que Tassinari (2001) chama de fase de desdobramento do modernismo
aparecem na arte novas configurações nas quais a relação de comunicação entre a obra e o
espaço do mundo se dá de tal forma que passa a ser difícil distinguir o espaço da obra de um
espaço cotidiano qualquer. Nota-se que sobretudo dos anos 1950 em diante os limites
espaciais vão se tornando pouco a pouco híbridos, assim como a relação entre as linguagens
que coexistem no do campo da arte. Da pureza de linguagem experimentada no início do
modernismo passa-se ao “desmantelamento das fronteiras interdisciplinares” (ARCHER,
2008, p.61) e a livre articulação das ideias do artista fazendo uso de procedimentos mistos.
Ao pensarmos no campo da arte estamos portanto nos referindo a um território que se
configura pela invenção de seu fazer: “a arte toda, não é mais o lugar da metáfora, mas da metamorfose, que leva a um
comportamento ativo e interrogativo, móvel e modelável, interativo , de natureza
1 mestranda em Poéticas Visuais pelo Instituto de Arte da Unicamp, pesquisadora do Grupo Ornata
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que convida ao jogo, à manipulação, à transformação, ao ensaio e à mudança, à
experimentação e à invenção de outras regras estéticas.” (PLAZA; TAVARES;
1998, p.199)
Não havendo distinção clara nos limites, o que está em jogo é a qualidade do discurso, a
coerência nas escolhas e interações entre linguagens em função da poética do artista.
Podemos pensar como exemplo, no trabalho de Cindy Sherman (FIG.1) onde a pintura
e a fotografia se interpenetram para reconfigurar a tradição do autorretrato. Ou no trabalho de
apropriação de imagens publicitárias e o uso da palavra no trabalho de Bárbara Kruger (FIG.
2).
Figura 1: Untitled #224, 1990 Figura 2: Untitled, 1986
O artista contemporâneo é multidisciplinar, tomando as técnicas e estruturas de
diversas linguagens com desenvoltura para construir sua obra. Lembremos do trabalho de
Matthew Barney, que desenvolve desenhos com uma forte carga performática, como na série
Drawing Restraint (FIG. 3), onde a imagem surge a partir de configurações de ação limitantes
pré-estabelecidas pelo artista. Barney ao mesmo tempo desenvolve filmes, como os da série
Cremaster Cicle (FIG. 4) onde mescla e incorpora elementos da pintura, da música, cultura
pop e mitológica, criando personagens híbridos que não seguem uma estrutura narrativa típica
do cinema.
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Figura 3:Drawing Restraint 6, 1987-89 Figura 4: Cremaster 4, 1994
2. A Situação na Arte-Joalheria
Se adornos sempre tiveram um papel significativo em diversas culturas no mundo há
séculos, em tempos atuais a joalheria deslocou-se de suas raízes ornamentais para tornar-se
uma forma de arte que não pode mais ser definida apenas por suas características materiais ou
técnicas. Assim como ocorreu com a pintura e escultura, a joalheria foi tomada por
transformações, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, quando questionamentos
sobre preciosidade, unicidade e uma busca por novas possibilidades estéticas gerou o que hoje
definimos como arte-joalheria: uma prática que questiona as fundações históricas da joalheria
assim como seu papel no campo da arte. (STRAUSS et al., 2007)
Pouco a pouco, o que se iniciou por um interesse em novas possibilidades materiais
além do metal precioso e das gemas, foi se desdobrando em outras vertentes que começaram a
existir sobretudo a partir dos anos 1960 como investigações sobre as relações com o corpo.
Esses questionamentos distinguiram-se inicialmente da Body Art pela intermediação do
objeto-joia, embora isso não signifique que houvesse uma intenção decorativa como
continuava a ocorrer na joalheria tradicional. O enfoque conceitual configurou obras que,
assim como estava acontecendo em outras formas de arte, buscaram valorizar a experiência
do usuário. Strauss cita inclusive a similaridade da proposta de ampliação da sensibilidade
sensorial buscada na obra da inglesa Caroline Broadhead (FIG. 5) com a pesquisa de Lygia
Clark. (STRAUSS et al., 2007)
Entretanto, a medida que essa nova atitude se desenvolvia na joalheria, a relação com
o objeto-joia também começou a ser trabalhada de outras maneiras por artistas que chegaram
à transgressão do objeto em si e avançaram sobre outros territórios de práticas artísticas tais
como o vídeo, a instalação ou a performance. No cenário atual tem-se que os trabalhos de
arte-joalheria não podem ser entendidos apenas por uma escolha estética diferenciada da
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joalheria tradicional, mas também pela integridade do uso de estratégias artísticas e processos
definidos a partir de um questionamento conceitual. (ASTFALK in GRANT, 2005)
3. Territórios Expandidos
Assim como podemos perceber uma convergência de linguagens na produção da arte
contemporânea, o mesmo se dá com a arte-joalheria. Inúmeros artistas valem-se de outras
linguagens para discutir assuntos pertinentes ao universo da joalheria saindo das tipologias
tradicionais, tais como, colares, brincos, anéis e broches para flertar com a fotografia, o vídeo,
a instalação e a performance.
Temos na incorporação de outras linguagens pelo artista joalheiro o deslocamento de
seus trabalhos para um território difuso, entre fronteiras e portanto com uma carga de
ambiguidade maior, possibilitando uma leitura de obra mais rica. Tratam-se de portanto de
trabalhos híbridos que entre outros assuntos caracterizam-se por explorar a relação entre
corpo e objeto. (BROADHEAD in GRANT, 2005)
Dos vários artistas que transitam e experimentam expandir os territórios da arte-
joalheria destacamos o suíço radicado em Munique, Otto Künzli, chefe do departamento de
joalheria da Akademie de Bildenden Künste desde 1991, que tem seu trabalho representado
por galerias de arte e em coleções de diversos museus. Künzli faz parte de uma geração que se
destacou a partir dos anos 70 inicialmente pelo uso de materiais não preciosos, mas que além
da discussão material/formal já levantada pela geração anterior, também se caracterizou por
experimentações com performance e fotografia.
Tomemos o exemplo da performance de 1983, Das Schweiser Gold – Die Deutsche
Mark (FIG.5) que pode ser traduzido como “O ouro suíço, o marco alemão” . Nela um casal
vestido em trajes bastante formais permaneceu isolado em uma vitrine enquanto se dava a
abertura de uma exposição. O homem usava um broche de grandes proporções na forma de
uma barra de ouro, que no entanto era feito de papel de chocolate suíço. A mulher usava um
colar feito de 200 moedas de um marco alemão. Durante a performance, o casal aproveitava o
momento conversando, fumando, tomando champanhe enquanto em uma sala adjacente eram
observados pelos visitantes da exposição. Não havia contato acústico entre eles. Da rua podia-
se observar tanto o público quanto os performers. (BESTEN, 2011, p.39)
Com este trabalho Künzli cria uma situação de voyeurismo explícito onde as joias
sublinham uma atmosfera de decadência e exibicionismo, trata aí da relação entre o falso e o
real, a vaidade e o consumo, temas caros à joalheria. As joias em si, pelos materiais
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escolhidos já evidenciam uma postura questionadora que é ampliada pela performance na qual
Künzli revela as convenções e o papel mais comum da joalheria na sociedade.
Em Beauty Gallery (FIG. 6), de 1984, Künzli funde duas linguagens ao criar retratos
onde mulheres estão usando molduras de quadros no lugar de colares. Esse trabalho consiste
em uma série de fotografias, expostas como tal e que hoje fazem parte do acervo de joias do
Australian Craft Board. Se assumirmos que o retrato é construção artificial a serviço de uma
vontade de singularização (FABRIS, 2004), da mesma forma, a joia clássica o é, agindo como
objeto que, em princípio, ressalta qualidades, amplia a beleza e capacidade sedutora de quem
a porta e portanto atua como elemento de distinção.
Figura 5: Das Schweiser Gold , Die
Deutsche Mark, 1983
Figura 6: Beauty Gallery (Susy), 1984
No cenário da arte joalheria europeia destaca-se também a artista portuguesa Cristina
Filipe, responsável pelo departamento de joalheria da Escola Ar.Co de Lisboa e co-fundadora
e presidente da PIN, Associação Portuguesa de Joalharia Contemporânea. Embora se coloque
como uma artista do universo da joalheria, seu trabalho transborda os limites pré-
estabelecidos da escala corporal da joalheria ao usar a fotografia e o vídeo como mídias.
Em “Il est tout plat, et il a une emeraude, la plus belle que j’aie jamais vue...” (FIG. 7)
de 1997, temos uma interferência site-specific documentada em suporte fotográfico. O
trabalho tem como inspiração a história de Tristão e Isolda. Dentre tantos elementos que
permeiam tal história, Filipe elege o anel: a prova da identidade de Isolda ao enviar uma
mensagem a Tristão por meio de um mensageiro. O anel, testemunha de identidade é efêmero
tal como “são os corpos de Tristão e Isolda ou qualquer corpo de um morto que volta à terra
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e se transforma em cinzas ou em pó, permanecendo na nossa memória, apenas..”2 . Aqui
portanto a tipologia tradicional do anel é referenciada, porém desmaterializada na medida que
se torna uma intervenção no espaço.
Figura 7:“Il est tout plat, et il a une emeraude, la plus belle que j’aie jamais vue...”
Para o artista, o fato de um trabalho ser pensado para um corpo torna-o um mediador
que potencia a significação da obra. Muitos trabalhos passam a fazer sentido quando vestidos
apenas ou têm seu sentido amplificado quando sobre o corpo. É o que pensa a artista joalheira
brasileira radicada na França, Dani Soter. Seus primeiros trabalhos iniciaram-se pela
fotografia e hoje ela transita livremente também pelo desenho e pelo objeto-joia, como prefere
chamar. Em suas palavras: “A joia é o resultado de uma reflexão, de um impulso ou de uma experiência. Ela
pode, ou não, usar o corpo como suporte, mas é fundamental para identificar e
relacionar o objeto enquanto joia, seja através de um conceito, seja por inspirar sua
concepção, sua representação e sua realização. O corpo inspira e impõe sua presença
à joia, que tanto pode ser exibida, sentida e interpretada por ele, como viver
separada dele, apesar de uma dependência constante entre os dois. Interesso-me pela
joia que veicula a comunicação e estabelece um elo entre as pessoas, estimulando
sua curiosidade, tanto visual como intelectual.”3
2 Entrevista concedida à autora por email em 06/11/2011. 3 Em entrevista concedida à autora por email entre 6 e 12 de Setembro de 2012.
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Ao eleger a linha como símbolo de seu próprio percurso criativo, Soter não hesita em
usá-la ora no desenho, ora na fotografia, ora no objeto em alguma relação com o corpo. Assim
tem-se uma linha que escorre pelo corpo na fotografia “À Mostra” (FIG. 6), e outra que alude
a um possível caminho percorrido em “Percurso” (FIG. 7). Se na fotografia o corpo está
visível e aparece tomado por fios que remetem a veias, no objeto-joia o corpo não aparece
mas é convidado sutilmente ao interagir pois o colar traz em si a potência de ser vestido. O fio
vermelho sai do plano da fotografia para o objeto. Como delineador de percursos, o fio sólido
e concreto convida ao toque, evoca a uma cumplicidade que passa pela possibilidade de ser
usado pelo corpo de quem usufrui, sendo assim, joia.
Por outro lado, remete também aos colares de contas usados por diversas religiões onde
cada conta se refere a uma oração, e portanto a uma concentração específica em um
determinado ponto. Em “Percurso”, cada círculo de metal alude à passagem por um lugar
costumeiro aos trajetos da artista. É também um convite à uma viagem conjunta, que é no fim
das contas o que a obra de arte evoca: o embarque na proposta do artista, o deslocamento para
uma realidade por ele proposta. Em ambos a presença da linha “parece ter vida própria”,
como a própria artista explica sobre seus desenhos: “me insinuam que desejam sair do papel. A solução que encontrei foi deixar que a
linha do desenho se tornasse um objeto que se pudesse tocar, que pudesse sair do
papel para se enroscar no lápis, depois nos dedos, na mão, no braço e assim por
diante [...]”.4
Desta forma vemos em Soter trabalhos que vão se construindo através de um diálogo
pela linha. O elemento constitutivo do desenho é aqui retomado através do código de outras
disciplinas para dar continuidade a sua poética, que não se limita a existir dentro de fronteiras
pré-fixadas ou definições categorizadas de uma única linguagem.
4 Ibid.
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Figuras 6 : “À mostra”, Dani Soter, 2002
Figura 7: “Percurso”, Dani Soter, 2009
4. Considerações Finais
Pelos trabalhos exemplificados de Künzli, Filipe e Soter vimos que a arte-joalheria pode
fundir questões pertinentes joalheria à de outras linguagens. Embora essa nova faceta da
joalheria venha se desenvolvendo há mais de 40 anos, a arte-joalheria, assim como ocorreu
com a fotografia até meados dos anos 1960, ainda busca o reconhecimento no campo da arte.
Ao analisar o percurso da inserção da fotografia na arte, deixando de lado uma certa
existência marginal a que estava sujeita, Jeff Wall (in GOLDSTEIN;RORIMER, 1995) afirma
que foi apenas a partir do momento em que se auto-desconstruiu é que a fotografia finalmente
se afastou da questão da representação. Quando a fotografia se desvencilhou de seu caráter
reportagem a partir da fotografia conceitual, onde a perícia técnica do artista também foi posta
em cheque, é que a fotografia alcançou o status de arte contemporânea.
Tal qual a fotografia, a joia, na medida que se afasta de sua tipologia habitual e da
função decorativa, amplia seu território de ação no entrecruzamento com outras práticas de
arte. Ao escolher transitar por uma zona de imprecisão e apropriar-se de outros códigos
distancia-se das associações instantâneas que acompanham a ideia de joia, normalmente
ligadas às dinâmicas da indústria joalheira e de moda. O fato de não usar uma tipologia já
conhecida causa um estranhamento que exige mais do usuário/usufruidor da obra. A obra
torna-se mais complexa nessa convulsão semiótica provocada pelo artista e ao mesmo tempo
insere-se mais afirmativamente no contexto da arte contemporânea.
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Referências ARCHER, Michael. Arte Contemporânea. Uma história concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2008. GRANT, Catherine (Org.) New Directions in Jewellery.Essays by Jivan Astfalck, Caroline Broadhead and Paul Derrez. Londres: Black Dog Publishing, 2005. BESTEN, L.d. On Jewellery. A Compendium of international contemporary art jewellery. Stuttgart: Arnoldsche Art Publishers, 2011. FABRIS, Annateresa. Identidades Virtuais. Uma leitura do Retrato Fotográfico. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004. GOLDSTEIN, A.; RORIMER, A. Reconsidering the Object of Art: 1965-1975 with essays by Lucy Lippard, Stephen Melville and Jeff Wall. Los Angeles: The Museum of Contemporary Art, 1995. PLAZA, Julio; TAVARES, Monica. Processos Criativos com o Meios Eletronicos: Poéticas Digitais. São Paulo: Editora Hucitec, 1998. STRAUSS, C; ENGLISH, H.W.D.; BURROWS, K.M.; WETZEL, K. Ornament as Art. Avant-garde Jewelry from the Helen Williams Drutt Collection. Houston:The Museum of Fine Arts. Stuttgart: Arnoldsche Art Publishers, 2007. TASSINARI, Alberto. O espaço moderno. São Paulo: Cosac Naify, 2001. Internet: DANI SOTER (disponível em http://www.danisoter.com/) MATTHEW BARNEY (disponível em http://www.drawingrestraint.net/ e http://www.cremaster.net/)