teoria do projeto-01

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TEORIAS DO PROJETO E REPRESENTAÇÃO: Investigação sobre uma lacuna epistemológica Fernando Duro da Silva UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL - UFRGS DEPARTAMENTO DE ARQUITETURA PROGRAMA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA – PROPAR Porto Alegre 2011

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Para estudantes de arquitetura-Estudo do Projeto Arquitetônico

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  • TEORIAS DO PROJETO E REPRESENTAO: Investigao sobre uma lacuna epistemolgica

    Fernando Duro da Silva

    UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL - UFRGS

    DEPARTAMENTO DE ARQUITETURA

    PROGRAMA DE PESQUISA E PS-GRADUAO EM ARQUITETURA PROPAR

    Porto Alegre

    2011

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL - UFRGS

    DEPARTAMENTO DE ARQUITETURA

    PROGRAMA DE PESQUISA E PS-GRADUAO EM ARQUITETURA PROPAR

    Fernando Duro da Silva

    TEORIAS DO PROJETO E REPRESENTAO:

    Investigao sobre uma lacuna epistemolgica

    Tese apresentada ao PROPAR como requisito

    parcial para a obteno do grau de Doutor em

    Arquitetura.

    Orientador: Prof. Dr. Rogrio de Castro

    Oliveira

    Porto Alegre

    2011

  • CIP - Catalogao na Publicao

    Elaborada pelo Sistema de Gerao Automtica de Ficha Catalogrfica da UFRGS com osdados fornecidos pelo(a) autor(a).

    Duro, Fernando Teorias do projeto e representao: investigaosobre uma lacuna epistemolgica / Fernando Duro. --2011. 152 f.

    Orientador: Rogrio de Castro Oliveira.

    Tese (Doutorado) -- Universidade Federal do RioGrande do Sul, Faculdade de Arquitetura, Programa dePs-Graduao em Arquitetura, Porto Alegre, BR-RS,2011.

    1. Teoria da Arquitetura. 2. Teoria do projeto.3. Epistemologia. 4. Representao. 5. Jogos delinguagem. I. Oliveira, Rogrio de Castro, orient.II. Ttulo.

  • Fernando Duro da Silva

    TEORIAS DO PROJETO E REPRESENTAO:

    Investigao sobre uma lacuna epistemolgica

    Tese apresentada como requisito parcial para a

    obteno do grau de Doutor em Arquitetura

    pelo Programa de Pesquisa e Ps Graduao

    em Arquitetura da Universidade Federal do Rio

    Grande do Sul - PROPAR.

    Aprovada em

    BANCA EXAMINADORA

    _______________________________________________ Prof. Dr. Celso Carnos Scaletsky UNISINOS _______________________________________________ Prof. Dr. Ronaldo de Azambuja Strher UNISINOS _______________________________________________ Prfa. Dra. Cludia Piant Costa Cabral - UFRGS

  • Este trabalho dedicado minha famlia Tatiana, Pedro e Ana Lcia. A meus pais Pedro Maral da Silva e Wanda Duro da Silva (in memoriam).

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo UNISINOS pelo apoio recebido. Agradeo tambm aos meus colegas de universidade pelo incentivo. Ao meu orientador Dr. Rogrio de Castro Oliveira pela compreenso e direcionamento seguro na superao das dificuldades encontradas (e discusses bastante produtivas).

  • Por qu me impones

    lo que sabes

    si quiero yo aprender

    lo desconocido

    y ser fuente

    en mi propio descubrimiento?

    El ruido de tu verdad

    es mi tragedia;

    tu sabidura,

    mi negacin;

    tu conquista,

    mi ausencia;

    tu hacer,

    mi destruccin.

    No es la bomba lo que me mata;

    el fusil hiere,

    mutila y acaba,

    el gas envenena,

    aniquila y suprime,

    pero la verdad

    seca mi boca,

    apaga mi pensamiento

    y niega mi poesa,

    me hace antes de ser.

    No quiero la verdad,

    dame lo desconocido.

    Djame negarte

    al hacer mi mundo

    para que yo pueda tambin

    ser mi propia negacin

    y a mi vez ser negado.

    Humberto Maturana

  • RESUMO

    O tema central da tese o projeto arquitetnico e a constatao de que h uma lacuna epistemolgica entre a ao projetual e sua atualizao como objeto arquitetnico. A tese delineia um quadro terico de cunho explicativo que visa estabelecer a base para a compreenso do estatuto epistmico do processo projetual, do ponto de vista do pensamento arquitetnico. Para tal recorre interpretao de textos de fontes da teoria e histria da arquitetura, da epistemologia e da filosofia que so cotejados, revelando relaes que lanam luz sobre o problema. A investigao identifica no surgimento da tradio projetual herdada do Renascimento a origem do distanciamento entre as bordas daquela lacuna, que de resto inerente separao entre concepo (terica) e execuo (prtica) da arquitetura, portanto prpria atividade projetual. O desenvolvimento dos sistemas de representao em favor do ideal arquitetnico como cosa mentale propiciou a relativa autonomia do projeto em relao ao objeto arquitetnico, que, guiado no primeiro momento pelo balano entre a inveno moderada e a conveno garantida pelos tratados como o de Vignola, paulatinamente orientou-se na direo do esgotamento das possibilidades da representao, ao ponto de tornar a viabilidade de execuo do projeto dependente do desenvolvimento de programas de computador voltados modelagem e representao digitais. A tese identifica a insuficincia das teorias do projeto como resoluo de problemas para dar conta do aspecto epistemolgico projetual de forma compreensiva, recorrendo como alternativa epistemologia da prtica de Schn e filosofia da linguagem de Wittgenstein, em especial ao conceito de jogo de linguagem desse ltimo. Este modelo explicativo e operativo que permite avanar na construo de pontes entre as duas margens da lacuna, com a ressalva de que a lacuna inevitvel em funo da natureza da atividade projetual. Esta tese se encerra no com a pretenso da resposta definitiva, mas com a problematizao que qualifica e ilumina a questo.

    Palavras chave: Teoria da Arquitetura. Teoria do projeto. Epistemologia. Representao. Jogos de linguagem.

  • ABSTRACT

    The main topic of this thesis is architectural design and the observation that there is an epistemological gap between the act of designing and its concrete realization as an architectural object. The thesis presents a theoretical framework that aims at setting the grounds for understanding the epistemology of the design process from the standpoint of architectural thinking. In order to do so, explores, by interpreting, texts on theory and history of architecture, comparing them with others on epistemology and philosophy; by doing this, tries to uncover connections among such sources, especially connections that may shed light on that issue. The investigation identifies the origin of that gap in the emergence of western tradition, in the Renaissance, of an architectural design in which there is an inherent separation between the concept (theory) and the execution (praxis); thus, this gap is inherent to the activity of designing. The development of representation systems in favor of the ideal of architectural practice as "cosa mentale" produced a relative autonomy of the architectural design in relation to the architectural object. Initially guided by the balance between moderate invention and convention, assured by treaties like Vignola's, the act of designing has gradually oriented itself towards the exhaustion of possibilities of representation. It has reached the point where feasibility of execution of a design relies greatly on the development of computer softwares designed both for modeling and producing digital representation. The thesis claims that design theories are insufficient to account for the epistemological aspect of designing, and alternatively proposes a model based on Donald Schn's epistemology as well as on Ludwig Wittgenstein's philosophy of language, in particular on his concept of language games. This explanatory and operative model allows us to move forward in the construction of bridges" over the gaps, though some gap is inevitable given the nature of the act of designing. This thesis does not claim to have answered the issue definitely, but it has the intention of having contributed in shedding light on it.

    Keywords: Architectural theory. Design theory. Epistemology. Representation. Language games.

  • Lista de ilustraes

    Figura 1 Mies van der Rohe - Landhaus in brick, 1924. Prancha mostrando

    perspectiva e diagrama. Observe-se que da planta apresentada no se constri a

    perspectiva. (Fonte: Stadt Kunsthalle, Mannheim) .......................................................... 24

    Figura 2 Desenho de Le Corbusier para um museu de crescimento infinito, no incio

    sem lugar definido, mas em 1939 h uma proposta no executada para Philippeville

    (atual Skikda na Arglia). Consta ainda, relacionados com esta proposta, um projeto

    para Bruxelas e texto intitulado "Cration d'un muse de la connaissance de l'Art

    Contemporain" (1943). Fonte: Fondation Le Corbusier, F1-9 .......................................... 24

    Figura 3 Le Corbusier, Kunio Maekawa, Junzo Sakakura e Takamasa Yoshizaka, 1959

    (ampliao - Kunio Maekawa 1979): Museu Nacional de Arte Ocidental, Tquio. .... 25

    Figura 4. Ilustrao antiga do Livro II, captulo 1, dos Dez Livros de Arquitetura de

    Vitruvio, em que aparecem os homens ao redor do fogo, e a arquitetura representada

    pela cidade ao fundo e a maquete. Fonte: Fac Smile de M.Vitruvius per Iocundum

    solito castig atior factus cum figuris et tabula ut iam legi et intellegi possit, Veneza,

    1511, C.N.R.S., Touluse, Frana. .......................................................................................... 35

    Figura 5. A cabana primitiva segundo Laugier. Fonte: Frontispcio da obra "Ensaio

    sobre Arquitetura", Laugier (1753) ...................................................................................... 36

    Figura 6. Axonometria da Villa Savoye - Le Corbusier, 1929.Fonte: FRAMPTON,

    2001, p.78 ................................................................................................................................. 43

    Figura 7. Villa Savoye em foto de satlite- Le Corbusier, 1929- Fonte: Google Earth . 43

    Figura 8. Casa Farnsworth, Plano Vicinity, Kendall County, Illinois, EUA. Fachadas

    norte e oeste. Projeto de Mies van der Rohe, 1946. Fonte: Library of Congress -

    Historic American Buildings Survey- HABS ILL, 47-PLAN.V, 1- .................................. 44

    Figura 9. A traio das imagens, Ren Margritte, 1928-29 - Los Angeles County

    Museum of Art. Fonte: Le muse de l'art, 1998. ............................................................... 45

    Figura 10. Ledoux (1804) - Projeto para a casa do guarda fluvial, exemplo de

    architettura parlante.Fonte : Bibliothque nationale de France, dpartement Estampes

    et photographie, EST Ha-71b Fol. ....................................................................................... 48

    Figura 11. Ledoux (1804) - Projeto para a "casa de prazer" (Oikma) em forma de

    falo, exemplo de architettura parlante. Fonte: Bibliothque nationale de France,

    dpartement Estampes et photographie, EST Ha-71b Fol. .............................................. 49

    Figura 12. Robert Venturi - o "pato" e o "pavilho decorado". O "pato" o edifcio que

    um smbolo e o "pavilho decorado" o convencional ao qual se aplica um smbolo.

    Fonte: Venturi, 1978. .............................................................................................................. 49

    Figura 13. Chiat/Day em Main Street, Venice, Califrnia. Frank Gehry, 1975-1991. O

    binculo colocado na entrada uma concepo de Claes Oldenburg. Fonte:

    http://learningfromtv.files.wordpress.com/2010/01/gehry_chiatday.jpg ................ 50

  • Figura 14. Croquis de lvaro Siza para o projeto do Jardim Infantil Joo de Deus,

    Penafiel, Portugal (1986). Fonte: Robbins, 1997, p. 62. ..................................................... 52

    Figura 15. Alvro Siza, escola em Penafiel, Portugal - Projeto executivo. Fonte:

    Robbins, 1997, p. 74. .............................................................................................................. 53

    Figura 16: Vignola - Intercolnio da ordem jnica. Fonte: Universidade de

    Heidelberg, Alemanha, Heidelberger historische Bestnde - digital : Bcher zur

    Architektur und Gartenkunst. Disponvel em http://digi.ub.uni-

    heidelberg.de/diglit/vignola1787 ...................................................................................... 59

    Figura 17: Arquitrave da ordem jnica segundo Paldio. Fonte: Los Cuatro libros de

    arquitectura (Palladio, 1988), ilustrao da pgina 100. .................................................. 60

    Figura 18: Projeto para o bloco central do Castello de Rivoli. Detalhe de fachada

    (acima) e de corte (abaixo). Projeto de Filipo Juvarra (1678-1736), projeto ca. 1720.

    Fonte Collection of the Canadian Centre for Architecture, publicado em Blau e

    Kaufman (1989) p. 326. .......................................................................................................... 61

    Figura 19: Antonio Sant'Elia - projeto para a Citt Nuova , estao ferroviria central

    e aeroporto. Fonte: Musei Civici de Como, publicado em Curtis (2008), p. 107. ......... 63

    Figura 20: Erich Mendelsohn, projeto para observatrio conhecido como Torre

    Einstein. Fonte: UAB Digital Collections, disponvel em

    http://contentdm.mhsl.uab.edu/u?/arthistory,14679 ................................................... 65

    Figura 21: Mercedes Benz Museum, UNStudio. Desenvolvimento da forma: Esboos,

    diagrama e modelos virtual e fsico. Fonte Hemmerling e Tiggemann (2010) pgina

    208. ........................................................................................................................................... 67

    Figura 22: Mercedes Benz Museum, UNStudio; 3D paramtrico - geometria de

    componente. Fonte Hemmerling e Tiggemann (2010), pgina 211. ............................... 68

    Figura 23: Museu Guggenheim Bilbao, Frank Gehry, 1997. Estrutura de ao, malha

    triangulada da forma externa do edifcio. Fonte Andrea Deplazes (2005), pgina 118.

    .................................................................................................................................................. 69

    Figura 24. A Origem da Pintura, por David Allan, 1773. Fonte:

    http://projectionsystems.wordpress.com/2009/09/06/the-origin-of-painting/ ...... 73

    Figura 25. A origem da Pintura - Karl Friedrich Schinkel, 1830. Boutades desenha na

    rocha, sob a luz do sol, o perfil de seu amado. Quadro baseado na narrativa de Plnio,

    o Velho, sobre o mito do surgimento da pintura. Fonte:

    http://projectionsystems.wordpress.com/2009/09/06/the-origin-of-painting/ ...... 73

    Figura 26. Esttua acfala de Gudea, prncipe de Lagash, Mesopotmia, Ca. 2100 A.C.

    Esta esttua personifica o prncipe como o arquiteto do templo do panteo do Estado

    de Lagash. A planta que se encontra na tabuinha est representada em projeo

    ortogonal e mostra provavelmente o recinto do santurio de Ningirsu. Fonte: Museu

    do Louvre, Paris. .................................................................................................................... 82

    Figura 27. Reproduo das linhas desenhadas no Templo de Apolo em Didyma.

    Fonte Encyclopaedia Romana Fonte :

  • http://penelope.uchicago.edu/~grout/encyclopaedia_romana/greece/paganism/i

    onicbase.jpg, adaptado de Haselberger, 1985. ................................................................... 82

    Figura 28. Registros do fronto do Panteo de Roma (datados do ano 100 D.C.

    aproximadamente). esquerda o desenho encontrado no piso do Mausolu de

    Augusto e direita o fronto. Fonte: Haselberger, 1995. ................................................. 83

    Figura 29. Planta do Mosteiro Beneditino de St. Gall, Sua, 816-830 d.C. Este desenho

    no corresponde ao stio do mosteiro, de onde se deduz que poderia ter sido criado

    como um mosteiro ideal a ser implantado em qualquer lugar da Europa, de acordo

    com os preceitos dos beneditinos. Fonte: Codices Electronici Sangallenses (Digital

    Abbey Library of St. Gallen) ................................................................................................ 83

    Figura 30. Fachada de Notre Dame de Reims por Villard de Honnecourt (c. 1230).

    Fonte: Bibliothque Nationale de France. Dpartment des Manuscrits, Division

    occidentale, folio 31v. ............................................................................................................ 84

    Figura 31. Desenho da fachada do Palcio Sansedoni (1340) em Siena, Itlia, que

    acompanha o contrato para a execuo da obra. Fonte: Toker, 1985 ............................. 84

    Figura 32. Desenho de Giotto para o Campanile do Duomo de Florena (esq.) e como

    se encontra hoje (dir.) Fonte: Evans, 1986, p. 168 e o autor, respectivamente. ............. 85

    Figura 33. Elevao em perspectiva do Cenotfio de Newton, 1784. Fonte

    Bibliothque Nationale de France, disponvel em http://gallica.bnf.fr........................ 93

    Figura 34. Modelo de Popper para explicar a maneira como os cientistas abordam os

    problemas. P1 o problema inicial identificado; H a hiptese e EE a eliminao dos

    erros; que levam a novos problemas P2; P3;... ................................................................... 98

    Figura 35 - Ludwig Wittgenstein. Foto Moritz Nhr, 1930. Fonte:sterreichische

    Nationalbibliothek (NB), disp. em

    http://www.bildarchivaustria.at/Bildarchiv//BA/933/B1557521T12849461.jpg .. 113

    Figura 36 - Casa Wittgenstein, Viena, 1928. Fonte: foto do autor ................................. 114

    Figura 37 - Adolf Loos, Casa Mller, Praga, Repblica Tcheca, 1930. Fonte: Home

    page da Villa Mller http://www.mullerovavila.cz/english/vila-e.html ................ 115

    Figura 38 - Casa Wittgenstein - radiador de calefao da sala de desjejum projetado

    por Ludwig Wittgenstein. Fonte: Leitner (2000), pgina 169. ....................................... 115

    Figura 39. Ilustrao da figurao de Wittgenstein. As proposies so formadas pela

    combinao de nomes que afiguram um estado de coisas no mundo, chamados de

    fatos; dependendo da correspondncia entre a figurao e o fato figurado, a

    proposio pode ser verdadeira (como no caso ilustrado simbolicamente) ou falsa.

    Fonte: o Autor. ..................................................................................................................... 121

    Figura 40 - A representao pode propor fatos que no tm possibilidade de

    existncia no mundo, como por exemplo na litografia Subindo e Descendo, de M C

    Escher (1960). Escher consegue esta iluso de tica pelo posicionamento do

    observador em relao ao objeto da perspectiva que faz coincidir o ponto de partida e

  • o ponto de chegada da escada. Fonte: http://www.mcescher.com/Gallery/recogn-

    bmp/LW435.jpg ................................................................................................................... 131

    Figura 41: Piranesi:Carceri, Prancha XI, 1761. Os Carceri de Piranesi so um exemplo

    de representao de fatos possveis, ainda que imaginrios. Fonte: British Museum -

    PD 1910-12-14-26 (Hind 11, Wilton-Ely 36). Trustees of the British Museum. ....... 132

    Figura 42 Casa Wittgenstein, Viena, 1928. Implantao. Reproduo do projeto

    original, fonte KAPFINGER, 1991, p. 15. ......................................................................... 149

    Figura 43 -Casa Wittgenstein, Viena, 1928. Plantas baixas. Reproduo do projeto

    original, fonte KAPFINGER, 1991, pp. 16-17. .................................................................. 150

    Figura 44 - Casa Wittgenstein, Viena, 1928. Fachadas. Reproduo do projeto

    original, fonte KAPFINGER, 1991. .................................................................................... 151

    Figura 45 - Casa Wittgenstein, Viena, 1928. Cortes. Reproduo do projeto original,

    fonte KAPFINGER, 1991 . ................................................................................................... 152

  • 11

    SUMRIO

    1 INTRODUO 12

    2 O DISCURSO DA TESE 17

    3 TEORIA 28

    4 REPRESENTAR 33

    5 PROJETAR 70

    6 PROJETO E EPISTEMOLOGIA 95

    6.1. O PROJETO COMO SOLUO DE PROBLEMAS E SUA CRTICA. 101

    6.2. EPISTEMOLOGIA DA PRTICA: DONALD SCHN E A REFLEXO-NA-

    AO 109

    7 WITTGENSTEIN FILSOFO-ARQUITETO: O PROJETO COMO PROPOSIO E

    COMO JOGO DE LINGUAGEM 113

    8 CONCLUSES 130

    REFERNCIAS 139

    ANEXO 1 - PROJETO DE LUDWIG WITTGENSTEIN (CONHECIDO COMO CASA

    WITTGENSTEIN) 149

  • 12

    1 INTRODUO

    A presente tese busca uma abordagem pragmtica1 da produo do projeto de

    arquitetura, em especial uma abordagem baseada no conceito de reflexo-na-ao2 de

    Donald Schn e no simplesmente numa instrumentalidade que tem se mostrado

    eficiente para a soluo de problemas, porm ineficiente quando a questo

    compreender e generalizar o conhecimento construdo no fazer projetual. A tese

    aventura-se sobre um territrio que entre ns s recentemente vem sendo explorado

    com o necessrio rigor, em particular pelo Programa de Pesquisa e Ps-Graduao

    em Arquitetura da UFRGS. Inserida na linha de pesquisa Princpios e Paradigmas do

    projeto em Arquitetura, a presente tese adicionalmente aprofunda um aspecto

    particular da tese do Prof. Rogrio de Castro Oliveira: aquele que se prope a

    explicar o ato projetual como um dos tantos jogos de linguagem (OLIVEIRA, 2000a,

    p. 78-83). Os jogos de linguagem aqui referidos so as interaes comunicativas,

    conforme enunciadas na obra de Ludwig Wittgenstein (ver abaixo, pgina 124), cuja

    experincia pessoal com o fazer arquitetnico3 sugere plausveis e significativas

    aproximaes entre a construo de seu pensamento filosfico e a prtica da

    arquitetura, jogos fundados, um e outro, em figuraes de mundos possveis. .

    Nossa tese de que o projeto tambm uma proposio, formada por outras

    proposies as decises de projeto que se encadeiam em lgicas internas e

    externas, as quais no dependem somente de uma correspondncia com uma

    arquitetura ideal que se copia; nem encerram em si, de forma autnoma, todas as

    suas razes. Ao contrrio, estas decises s tm sentido quando consideradas no

    contexto que as originou, no que denominamos o jogo do projeto. Este contexto

    1 Pragmtica aqui empregada para se referir ao, prtica projetual. No confundir com a pragmtica filosfica que se ocupa da aplicao das ideias e das consequncias prticas de conceitos e conhecimentos; nem com o conceito da prxis marxista.

    2 Para este conceito ver pgina 88 abaixo.

    3 Wittgenstein, como veremos mais adiante (pgina 107), projetou e construiu a casa de sua irm Margarethe Stonborough, conhecida hoje como casa Wittgenstein, em Viena (1928).

  • 13

    inclui tanto as relaes intrnsecas entre as proposies parciais (decises de projeto)

    quanto s relaes entre o projeto como um todo (tomado como uma proposio) e os

    fatos.

    Dito assim poder-se-ia pensar que todo o jogo, ao no ter um padro externo

    absoluto de validao, constitui um universo particular, ou, de outra forma, que um

    jogo de projeto no se relaciona tambm com outros jogos de projeto. Pergunto: o que

    faz com que reconheamos as regras de um jogo desta natureza? Ou ainda o que

    faz com que reconheamos em diferentes projetos a mesma qualidade que torna

    possvel identific-los como pertencentes ao mesmo universo da arquitetura?

    Wittgenstein nos fala de uma semelhana de famlia4 entre os jogos de linguagem:

    Em vez de indicar algo que comum a tudo aquilo que chamamos de linguagem,

    digo que no h uma coisa comum a esses fenmenos, em virtude da qual

    empregamos para todos a mesma palavra, - mas sim que esto aparentados uns com

    os outros de muitos modos diferentes. (WITTGENSTEIN, 1999, p. 52). Mais adiante

    diz: No posso caracterizar melhor essas semelhanas do que com a expresso

    semelhanas de famlia; pois assim se envolvem e se cruzam as diferentes

    semelhanas que existem entre membros de uma famlia: - E digo: os jogos

    formam uma famlia (Idem). Esta posio deixa de lado qualquer tentativa de

    chegar-se a uma essncia comum a todos os jogos e, em nosso caso, a todos os jogos

    possveis de projeto, pois a semelhana que funda o pertencimento a uma

    determinada famlia so certas coincidncias, mas no necessariamente as mesmas5.

    Mas por que substituir uma viso terica por outra? Parece-nos que o

    deslocamento da questo da caracterizao do projeto como soluo (instrumental)

    de problemas, para a concepo do projeto como construo de proposies com

    4 O termo semelhana de famlia pode tambm ser denominado, como nos parece mais apropriado de ar de famlia, no original, em ingls family resemblance.

    5 Por exemplo: alguns membros de uma famlia podem ter a mesma cor de cabelos, outros a mesma cor dos olhos, outros ainda a mesma cor de cabelos e de olhos, mas nenhuma destas caractersticas por si s definitiva. Parece que esta superposio de alguns caracteres que so compartilhados de forma difusa configura este ar de famlia.

  • 14

    significado, ou seja, retornando a Wittgenstein, inseridas como jogos de linguagem em

    uma forma de vida6, corresponde a um giro importante e necessrio na questo,

    especialmente quando a preocupao volta-se para os processos atravs dos quais

    so estabelecidos nveis de organizao do conhecimento e desenvolvidas as

    habilidades e competncias necessrias ao projetar. Em suma, quando intervm o

    problema terico de delimitar uma epistemologia do projeto arquitetnico. Em

    paralelo com a concepo da linguagem das Investigaes filosficas, o projeto

    mantm-se como uma forma de descrio de um mundo possvel. A natureza de sua

    relao com o real, no entanto modifica-se profundamente, pois se insere como parte

    de uma forma de vida (lebensform) e torna-se dependente do contexto de sua

    produo.

    Como aproximar estas concepes ao ato projetual? Parece que aqui se encerra

    a questo fundamental do projeto: visto como representao que guarda relao

    referencial com o seu objeto final a obra de arquitetura o projeto depara-se com a

    impossibilidade de uma representao perfeita, que contenha todos os aspectos, de

    forma a estabelecer uma relao. Neste sentido o projeto aproximado da proposio

    lgica, uma afirmao que guarda correspondncia aos fatos que figura7. Essa

    concepo reafirma a autonomia do projeto em face de uma causa necessria e

    determinante (como seria, caso houvesse a possibilidade de um funcionalismo

    estrito), ao mesmo tempo em que nega uma completa arbitrariedade, pois o torna

    dependente do contexto das aes projetuais e do fato que prenuncia, isto ,

    permanece contingente8. Como proposio, deve ser verificvel, se no

    6 Forma de vida tambm um conceito de Wittgenstein (ver abaixo a pgina 109). Para Wittgenstein a forma de vida um entrelaamento de cultura, viso de mundo e linguagem. O autor usa este termo para delinear os variados contextos (os conjuntos das atividades comunitrias) em que esto imersos os jogos de linguagem (GLOCK, 1998, pp. 173-178), portanto os jogos de linguagem so indissociveis das prticas sociais e culturais.

    7 O conceito de figurao outro que tem origem na obra de Wittgenstein (2001, 2.1, p. 143). Para a figurao ver abaixo a pgina 97 e seguintes, ver tambm Giannotti (1995), em especial pgina 27 e ss.

    8 Entenda-se contingente o evento natural ou humano que se caracteriza por sua indeterminao e imprevisibilidade. Neste sentido no se trata do aleatrio, mas de uma

  • 15

    empiricamente, ao menos em sua forma lgica, sendo a forma lgica de uma

    proposio o universo de suas possibilidades de atualizao. De pronto se descarta a

    experincia emprica como nico termo capaz de afianar a validade do projeto, pois

    a forma lgica da proposio independe da experincia concreta e pode

    perfeitamente apoiar-se em construes formais que incluam um sistema de relaes

    forma contedo.

    O caminho percorrido na construo desta tese passa pela anlise crtica de

    textos, ou seja, de uma hermenutica que, cotejada com a experincia prtica do

    ofcio e com os fundamentos tericos e disciplinares da arquitetura, leve

    formulao de uma possvel teoria do projetar arquitetnico. Os textos fundamentais

    para o estudo da pertinncia e da aplicabilidade dos conceitos de figurao e jogo de

    linguagem ao projeto arquitetnico so o Tractatus e as Investigaes Filosficas de

    Wittgenstein e, secundariamente outras obras do mesmo autor como Da Certeza

    (WITTGENSTEIN, 2000b) e Gramtica Filosfica (WITTGENSTEIN, 2003). No outro

    polo da investigao fundamental que compaream os textos de Alexander (1976a;

    b; 1980) e de Simon (1973; 1981), bem como os artigos publicados pelo peridico

    Design Studies, cuja linha editorial aproxima-se dos estudos sobre mtodos de projeto.

    A relao entre o Wittgenstein filsofo e o Wittgenstein arquiteto encontra-se na obra

    de Nana Last (LAST, 1999). De especial interesse so tambm as obras

    epistemolgicas de Piaget; Kuhn; Popper; Foucault. Uma aproximao entre a

    epistemologia construtivista e a arquitetura encontramos em Rogrio de Castro

    Oliveira (2000a), que por sua vez faz referncia a um possvel construtivismo em

    Wittgenstein. A obra de Donald Schn (1983; 1993; 2000), por sua vez, fornece

    algumas chaves para se compreender os aspectos cognitivos envolvidos no atelier de

    projetos, que por certo tem especial interesse para a tese.

    Este conjunto de referncias so instauradoras da argumentao que sustenta

    as proposies aqui defendidas e trazidas como fundamento de um ponto de vista

    situao que, opondo-se ao necessrio ou ao impossvel, deixa em aberto sua atualizao (transformao de possibilidade em ato) em acontecimento futuro (LALANDE, 1999, p. 204).

  • 16

    cuja pretendida coerncia , nesta tese, sua prpria justificativa. Nesse sentido, as

    referncias no foram reunidas ao acaso, mas configuram uma judiciosa seleo de

    diferentes contextos discursivos que constituem, na sua heterogeneidade, uma

    formao discursiva, no sentido atribudo a esta expresso por Foucault: uma

    disperso de enunciados que compartilham um mesmo sentido, o qual se manifesta

    no uso que se faz deles no mbito da argumentao. As relaes textuais que armam

    o arcabouo desta investigao so, portanto, elas mesmas parte integrante da tese,

    pois no existem a priori, mas so fruto da prpria trajetria da investigao aqui

    exposta. Tomadas em conjunto, desenham o territrio a partir do qual, e sobre o qual,

    se estrutura a reflexo sobre o projeto que anima a reflexo, aqui proposta, sobre a

    configurao epistmica do conhecimento projetual.

  • 17

    2 O DISCURSO DA TESE

    O trabalho em filosofia - tal como muitas vezes o trabalho em arquitetura , na realidade, mais um trabalho sobre si prprio. Sobre a nossa prpria interpretao. Sobre a nossa maneira de ver as coisas (E sobre o que delas se espera). Ludwig Wittgenstein (2000a, p. 33)

    Entendo que, nas artes que no so puramente mecnicas, no basta saber trabalhar, importante acima de tudo saber pensar9. Marc Antoine Laugier (1753, p III)

    Esta tese tem como objeto de estudo o projeto de arquitetura. Enuncia-se um

    ponto de vista cujos fundamentos remetem concepo da prtica projetual como

    jogo de linguagem, na acepo proposta por Ludwig Wittgenstein em Investigaes

    Filosficas (1999). Esta escolha no surge a priori no contexto da tese, mas constitui

    recurso terico capaz de esclarecer aspectos operativos do projeto frequentemente

    negligenciados ou pouco estudados. As razes para adoo desse panorama terico

    como pano de fundo da argumentao sero progressivamente desveladas ao longo

    do texto.

    O projeto tem papel central na produo arquitetnica, em especial quando se

    considera sua funo constitutiva e fundadora da tradio Albertiana (considere-se

    aqui como dada a persistncia desta tradio at os dias atuais10). Seria desnecessrio,

    por redundante, recorrer a uma justificativa extensa quanto pertinncia deste objeto

    de estudo para a tese. Porm, se a arquitetura est certa e intimamente relacionada ao

    ato projetual, alguns dos preceitos da maneira como entendemos esta relao, dados

    como evidentes, merecem um questionamento mais cuidadoso.

    9 Il me semble que dans les arts qui ne sont pas purement mchaniques, il ne suffit pas que lon sache travailler, il importe sur-tout que lon apprenne penser. - No original. H tambm uma traduo desta obra para o Espanhol (LAUGIER, 1999).

    10 Sobre a atualidade de Alberti ver a tese de Ronaldo Strher (2006).

  • 18

    Ao projetar seguimos uma tradio que h mais de 500 anos, no mnimo,

    propugna pela separao fundamental para a arquitetura entre o fazer mecnico e o

    pensar. J afirmava Leon Battista Alberti em seu tratado De Re Aedificatoria,

    apresentado ao papa Nicolau V em 1452 e publicado pela primeira vez em 1485:

    creio que h de explicar que caractersticas deve reunir, em

    minha opinio, o arquiteto. De fato, no vou considerar como tal a um carpinteiro, a quem poderias colocar no nvel dos homens mais qualificados das demais disciplinas: pois a mo de um obreiro serve de ferramenta ao arquiteto. Eu, de minha parte, vou considerar que o arquiteto ser aquele que com um mtodo e um procedimento determinados e dignos de admirao haja estudado o modo de projetar em teoria e tambm de levar a cabo na prtica qualquer obra que, a partir do deslocamento dos pesos e a unio e encaixe dos corpos, se adeque, de uma forma belssima, s necessidades humanas. Para torn-lo possvel, necessita da inteleco e do conhecimento dos temas mais excelsos e adequados.11 (ALBERTI, 1991, p. 57)

    Esta obra, que Franoise Choay classifica como texto instaurador12,

    considerada marco histrico para a criao de uma disciplina autnoma da

    Arquitetura. Reveste-se de importncia o estabelecimento da distino entre o fazer

    com a mo e o conceber e que no era to clara assim na cultura medieval europeia.

    Alberti define o Arquiteto como Artista e a Arquitetura como arte que se destaca da

    11 creo que he de explicar qu caractersticas debe reunir, en mi opinin, el arquitecto. En efecto no voy a considerar como tal a un carpintero, a quien t podras poner a la altura de los hombres ms cualificados de las restantes disciplinas: pues la mano de un obrero le sirve herramienta al arquitecto. Yo, por mi parte voy a convenir que el arquitecto ser aquel con un mtodo y procedimiento determinados y dignos de admiracin haya estudiado el modo de proyectar en teora y tambin de llevar a cabo en la prctica cualquier obra que, a partir del desplazamiento de los pesos y la unin y el ensamblaje de los cuerpos, se adecue, de una forma hermossima, a las necesidades de los seres humanos. Para hacerlo posible, necesita de la inteleccin y el conocimiento de los temas ms excelsos y adecuados.. No original (Idem)

    12 Quanto ao significado deste termo, Choay bastante precisa ao explicitar o objetivo destes textos que a constituio de um aparelho conceptual autnomo que permita conceber e

    realizar espaos novos e no aproveitados. (CHOAY, 1985, p 6). A autora faz ainda a ressalva de que o termo instaurador no se refere fundao de um campo cientfico, mas, em nossa opinio, no caso de Alberti parece ter havido o nascimento de um novo campo do conhecimento, seno cientfico ao menos no sentido de uma epistemologia.

  • 19

    simples prtica, transcendendo o fazer mecnico13 (RIVERA, 1991, p. 29). Podemos

    ento afirmar que desde este momento inaugural o projeto tambm pensamento14,

    coisa mental.

    Para ns, a concepo atual deste tema est longe da viso romntica do gnio

    criador pela qual este pensamento surge do nada, como uma ideia preconcebida. O

    pensamento mediado por uma disciplina que estabelece os seus limites de

    pertinncia (um corpus) e suas regras; elaborado por um processo que pressupe

    um aprendizado desta disciplina (formal ou informalmente) e uma organizao

    muito particular do conhecimento, que alguns autores denominam de pensamento

    projetual.

    Qual a natureza do conhecimento transmissvel implicado no projetar? Ao

    analisar as virtudes (ou excelncias) humanas Aristteles divide-as em virtudes

    ticas, que nascem do hbito, e virtudes dianoticas (ou tericas), que tem sua origem

    na razo e podem ser ensinadas (ARISTTELES, 2009, Livro II, 1103a14, p. 40).

    Destas ltimas (dianoticas) diz que existem cinco : o conhecimento cientfico

    (episteme) que leva ao conhecimento do universal a partir dos fatos; a tcnica15

    (techne), que leva ao conhecimento sobre o como fazer, cujo objetivo a produo; a

    sensatez ou prudncia16 (phronsis), conhecimento que, baseado no bom senso e na

    razo, leva ao visando o bem comum; a inteligncia (nos), que a portadora do

    13 A propsito, veja-se a afirmao de Laugier, citada na epgrafe deste captulo.

    14 Esta afirmao deve ser matizada devidamente, pois toda a ao humana que tem uma finalidade, mesmo sendo executada com as mos, tambm fruto de um pensamento, ou ao menos pressupe uma reflexo.

    15 Na referncia utilizada a traduo percia sendo que algumas vezes ainda este termo substitudo pela palavra arte, mas no contexto da discusso as tese parece-nos que tcnica, pelas conotaes que tem no campo da arquitetura, mais adequado.

    16 Alguns autores consideram esta traduo pouco precisa (ADORNO, 1988), pois a phronsis um conhecimento prtico, oposto o contemplativo, mas que no se confunde com a astcia, pois visa o bem comum e no meramente uma forma de ao sem maiores consequncias. Curioso notar que este termo parece estar pouco presente nas discusses atuais, sendo privilegiada a dicotomia arte / cincia.

  • 20

    conhecimento; e a sabedoria ou Sophia, que rene cincia e inteligncia, sendo

    necessria para as mais elevadas aes e reflexes. Entre estas cinco, as trs primeiras

    virtudes envolvem o desenvolvimento de formas de conhecimento que se relacionam

    particularmente ao projetar17, considerada a pertinncia desta distino, pois ainda se

    fazem presentes nos debates sobre o fazer da arquitetura. Seria a arquitetura cincia?

    Seria arte-tcnica? Ou a ao prudente?

    A cincia pressupe a observao de fatos e a formulao de universais,

    vlidos em qualquer tempo ou lugar, envolve o saber por que; a tcnica j envolve

    uma situao especfica, mas atm-se ao saber como; a prudncia, envolvendo

    tambm uma situao especfica e no universal, articula tanto a cincia quanto a

    tcnica e dirige sua ao para o bem. O projeto e o conhecimento mobilizado para a

    soluo dos problemas de arquitetura no podem ser considerados como uma busca

    de universais, visto serem sempre resultado de uma situao especfica que se coloca

    de incio (programa, lugar, etc.), por outro lado o projeto no lida com um fato

    observado, mas, ao contrrio, prope fatos possveis, portanto no se reduz ao

    conhecimento cientfico18, muito embora este conhecimento seja necessrio para a

    compreenso dos fenmenos fsicos - a cincia est tambm presente no projetar. O

    conhecimento projetual compartilha com a tcnica o fato de ser particular e no

    universal; ao mesmo tempo o saber como tambm necessrio para que se

    viabilize o possvel do projeto, porm neste caso falta-lhe o critrio de julgamento

    para guiar a tomada de deciso e chegar a uma boa "soluo" em uma situao

    especfica. Resta dos trs a prudncia que combina o conhecimento tcnico-cientfico

    com o propsito que visa ao bem comum e que parece ser o aspecto mais importante

    quando se pensa no ato de projetar. Concluindo: o projeto no s cincia, nem s

    tcnica, tambm phronsis (KIRKEBY, 2009), utilizando-se este termo grego para

    despi-lo de conotaes que deformem sua acepo original, embora muitas vezes nos

    17 Obviamente a inteligncia e a sabedoria so essenciais produo da boa Arquitetura, mas destacamos estas por suas particularidades em relao ao tema da tese.

    18 Considerando-se, de forma muito simplificada, o conhecimento cientfico como puramente factual.

  • 21

    deparemos com a discusso redutora que coloca a Arquitetura somente entre arte e

    tcnica.

    Por vezes a posio tecnicista parece ser dominante, mas o tema bem mais

    complexo e tem consequncias bastante profundas. Nesta mesma direo vemos

    Donald Schn, em seu livro The reflective practitioner (1983), combater a proeminncia

    do pensamento puramente tcnico-cientfico como panaceia para os problemas da

    sociedade (que denomina racionalidade tcnica, conceito de origem em Max

    Weber19). Schn baseou-se, entre outros, em estudos feitos em atelis de escolas de

    arquitetura para formular seu conceito de Reflexo-na-ao, uma epistemologia da

    prtica construtivista que se revelou em sua pesquisa, e que dava conta de explicar

    como as atividades profissionais lidam com a complexidade dos novos problemas e

    de suas consequncias. Este pensamento encontra-se muito mais prximo de uma

    ideia de phronsis do que de uma tcnica ou de uma cincia.

    Em oposio s judiciosas objees de Schn, a f na capacidade da tcnica

    parece ter tomado novo flego na prtica contempornea da arquitetura com a

    introduo de novas tecnologias da informao e comunicao, na promessa de um

    mundo ordenado e controlado. Nesta perspectiva, o projeto visto como um esforo

    para ordenar e controlar tecnicamente a produo da arquitetura (mas no

    necessariamente um instrumento de controle social). Decorre da a tentao de

    identificar as possibilidades de potencializar este controle tcnico, atravs da

    incorporao de ferramentas computacionais ao prprio processo projetual: pareceria

    ento possvel reduzir a prtica do projeto aplicao de um mtodo impessoal e

    eficiente (racionalizado). Contra esta posio, contudo, alinham-se os argumentos

    desta tese, embora nem tanto pelas questes operativas suscitadas pelo uso da

    computao em si, cuja natureza no difere muito de outros instrumentos tcnicos

    19 Ver A tica Protestante e o Esprito do Capitalismo. (WEBER, 2004)

  • 22

    que acompanham a consolidao da atividade projetual como a geometria descritiva

    e a perspectiva20.

    Em outras palavras: esta tese ope-se a uma noo de projeto tomado

    simplesmente como meio; neste caso, o projeto reduz-se ao mtodo e a metodologia

    passa a se confundir com a disciplina projetual. Na concepo estritamente

    metodolgica, o projeto apenas caminho, sequncia de procedimentos que, uma

    vez aplicada de forma conveniente, conduz ao resultado esperado. A eficcia do

    projeto-mtodo, ideia contra a qual nos posicionamos, s pode ser medida por

    comparao com o resultado obtido, portanto quando no se concretiza na

    representao de um novo objeto arquitetnico (concebido em qualquer escala, em

    um contexto que lhe prprio e que atribui a ele um carter local) um caminho

    interrompido. Ao contrrio, o projeto pensamento que formula uma possibilidade

    de ao sobre o mundo e como tal contm em si tambm o germe das possveis

    consequncias desta ao, reduzido ao mtodo perde-se a perspectiva de seu

    entendimento de uma tica construtivista em que o papel do sujeito cognitivo

    preponderante para o estabelecimento dos parmetros que norteiam as escolhas dos

    possveis.

    Apesar de seu objetivo implcito21 o projeto, como vimos, pode ser

    considerado como atividade relativamente autnoma e esta condio paralela, de

    totalidade independente de outras atividades que lhe advenham, fundamental para

    que tenha um sentido quando no se concretize em obra construda. Constata-se esta

    autonomia, que coloca em cheque a viso simplista do projeto como subsidiria do

    construir, atravs da anlise de certos projetos significativos que tm uma influncia

    notvel sobre a produo arquitetnica, tanto terica quanto prtico-projetual.

    Tratam-se de projetos que, apesar de pouco desenvolvidos (muitas vezes desenhos

    20 A bem da verdade a aplicao de invenes tcnicas como estas (e outras) no se deram sem consequncias para a arquitetura, assim como seus surgimentos encontram-se em consonncia com o pensamento de determinada poca. A propsito, ver Alberto Prez-Gomes e Louise Peletier (1997)

    21 Todo projeto, pressupe-se, quer em menor ou maior grau ser outra coisa que no projeto.

  • 23

    de ilustrao de uma ideia22), foram interpretados como se fossem projetos

    plenamente desenvolvidos e discutidos como tais, ou mesmo tiveram o potencial de

    gerar efetivamente projetos que chegaram ao seu termo. Sonit Bafna (2008) analisa o

    interessante caso das casas de campo em alvenaria de tijolos de Mies van der Rohe

    (um dos cinco projetos que Mies desenvolveu e publicou aps a Primeira Guerra

    Mundial quando abandonou o ecletismo mimtico e aderiu abstrao

    construtivista23), observa que os nicos registros remanescentes deste projeto so os

    dois microfilmes dos desenhos abaixo (Figura 1) e que, apesar da incongruncia entre

    perspectiva e planta apresentada e da pouca informao que fornece, o projeto foi

    muito debatido pela crtica. A este, pode-se acrescentar, exemplificando, o Museu

    de crescimento ilimitado de Le Corbusier (Figura 2) que explora a questo do

    percurso, tomando como referncia a geometria da espiral equiangular e o

    crescimento natural do molusco do gnero Nautilus24. O prprio Le Corbusier

    desenvolveu projetos de museus partindo desta concepo, deixando ainda um

    legado de projetos nela baseados por outros conhecidos arquitetos como Josep Lluis

    Sert e Junzo Sakakura25 (MONTANER, 2003). Antony Moulis (2002), em

    levantamento efetuado na obra Corbusiana, enumera um total de 23 projetos entre

    22 O potencial destes desenhos talvez se deva ao seu carter de diagrama.

    23 Em Berlim, Mies conheceu o cineasta dadasta Hans Richter, juntando-se ao seu crculo intelectual. Richter, El Lissitzky e Werner Graff criaram a revista G:material zum elementaren Gestaltung, na qual Mies publicou os cinco projetos citados: dois arranha-cus de vidro (1921 e 1922), um edifcio de escritrios de oito pavimentos de concreto armado (1922), uma casa

    de campo em concreto trrea (1922) e a casa de campo de tijolos (1924). Ademais os

    projetos exploram as possibilidades tcnicas, construtivas e expressivas dos materiais. (COLQUHOUN, 2005, p. 173-74)

    24 Le Corbusier estava provavelmente influenciado pelas teorias de DArcy Thompson sobre os modelos matemticos que explicam o crescimento dos seres vivos (CURTIS, 1999; MOOS, 2009 , p.265). Encontram-se no captulo XI da sua obra On growth and form (THOMPSON, 1992, pp. 749 e 754), publicada pela primeira vez em 1916, uma radiografia de um Nautilus e desenho de espiral bastante semelhante aos de Le Corbusier aqui apresentados na figura 2.

    25 Respectivamente: Fundao Maeght (Saint-Paul-de-Vance, Frana, 1964) e Fundao Joan Mir (Barcelona, Espanha, 1975) de Sert, e museu de Arte Moderna (Kamakura, Japo, 1951) de Sakakura. Curioso notar que Afonso Eduardo Reidy convidou Le Corbusier para implantar o museu de crescimento ilimitado no Museu da Cidade, previsto em seu projeto do centro administrativo do Rio de Janeiro.

  • 24

    museus e outros que, segundo o autor, apresentam um parentesco com o referido

    projeto (sua relao vai da Villa La Roche de 1923 at o Muse de loitissiment, de 1965).

    Entre estes esto trs museus efetivamente construdos: Chandigarh, Ahmedabad e

    Tquio (Figura 3).

    Figura 1 Mies van der Rohe - Landhaus in brick, 1924. Prancha mostrando perspectiva e diagrama.

    Observe-se que da planta apresentada no se constri a perspectiva. (Fonte: Stadt Kunsthalle,

    Mannheim)

    Figura 2 Desenho de Le Corbusier para um museu de crescimento infinito, no incio sem lugar

    definido, mas em 1939 h uma proposta no executada para Philippeville (atual Skikda na Arglia).

    Consta ainda, relacionados com esta proposta, um projeto para Bruxelas e texto intitulado "Cration

    d'un muse de la connaissance de l'Art Contemporain" (1943). Fonte: Fondation Le Corbusier, F1-9

  • 25

    Figura 3 Le Corbusier, Kunio Maekawa, Junzo Sakakura e Takamasa Yoshizaka, 1959 (ampliao -

    Kunio Maekawa 1979): Museu Nacional de Arte Ocidental, Tquio.

    Esta relativa autonomia tem consequncias. O projetar, o ensino da arquitetura

    e a formao do arquiteto esto intimamente relacionados, ocorrem quase que

    inteiramente pela sua prtica nos atelis das escolas e escritrios de arquitetura e

    muito raramente pela prtica direta no canteiro de obras. Mesmo os estgios

    (curriculares ou no) so atividades de observao e no de prtica efetiva.

    Os meios de comunicao, por sua vez, tratam das questes arquitetnicas

    tambm se valendo de representaes, em especial figurativas. bvio que os textos

    tm seu papel26 como transformadores da maneira que so recepcionadas estas

    representaes e dos seus sentidos. Aqui parece haver um caminho inexplorado nos

    estudos sobre as relaes interdisciplinares da arquitetura e da comunicao, qual

    seja: o da anlise do discurso das publicaes e seus efeitos sobre a recepo e

    produo da arquitetura e que forosamente passa por processos de representao,

    26 A intertextualidade, se considerarmos elementos figurativos inseridos em texto escrito como sendo tambm elementos textuais, notvel nos meios de comunicao quando apresentam temas de arquitetura, em particular na literatura no especializada. Para estudo sobre estas relaes no caso particular de um caderno de jornal dirio, ver nossa dissertao de mestrado O habitar na mdia(DURO, 2002)

  • 26

    mas um caminho que necessitaria de outro enfoque distante da questo projetual,

    como aqui se pretende tratar.

    A problemtica da tese centra-se tambm nas relaes entre o projeto e a

    questo da representao, da qual se serve para a sua efetivao. Para o senso

    comum a representao um espelho perfeito que estabelece relaes isomrficas

    entre o que representado e o que o representa. Visto desta maneira simplista, a

    representao , por substituio, fonte de conhecimento emprico, de sinais emitidos

    pelo objeto e captados de forma passiva pelo sujeito. Nesta simetria indiferenciada

    no h lugar para uma distino significativa entre o projetar, entendido como uma

    forma de representar, e o construir, entendido como produo do objeto

    representado; e o projeto assume uma posio subsidiria frente ao ato construtivo

    para a produo da arquitetura. Consequentemente o projetar parece ser uma etapa

    intermediria e descartvel do processo de produo arquitetnica, uma vez que se

    cumpra o seu papel de substitutivo, ou, por outro lado, uma vez que no se cumpra

    este papel torna-se intil e sem sentido.

    Esta tese prope como soluo problemtica levantada a tica da

    epistemologia da prtica proposta por Donald Schn (SCHN, 1983; 2000); esta, no

    entanto, carece de formulao terica mais consistente sobre o ato projetual, lacuna

    que preenchemos partindo de uma aproximao com os jogos de linguagem, tal

    como proposta pelo filsofo Ludwig Wittgenstein.

    De antemo coloca-se a questo sobre a pertinncia da aproximao da

    Filosofia com a Arquitetura e da consequente relao entre estas disciplinas. Esta

    relao evidente se tomarmos em conta o olhar filosfico sobre a arte em geral a

    Esttica. Os filsofos que se ocuparam da definio do belo27 e, mais recentemente,

    das questes estticas28 no deixaram de tratar da arquitetura, como se pode

    27 Especialmente posteriores ao dilogo Platnico Hpias Maior (PLATO, 2000)

    28 Esta distino deve-se ao fato de que o termo Esttica s surge como conhecemos hoje depois de Baumgarten (1993) que foi o primeiro a formular a cincia do Belo por volta de 1750, como uma parte da Filosofia (BAYER, 1979, p. 180)

  • 27

    constatar, entre outros, em Kant (1993b; a) e Schopenhauer (2003, p. 127-148; 2005,

    p.288-292). Mais recentemente muitos filsofos e pensadores modernos e ps-

    modernos tambm abordaram as questes da arquitetura, ou estreitamente ligadas

    ao campo da arquitetura, como podemos encontrar na compilao de textos da obra

    Rethinking Architecture: A reader in cultural Theory (LEACH, 1997)29 que, embora no

    seja exaustiva, d-nos uma ideia das aproximaes possveis entre Filosofia e

    Arquitetura. Em lngua portuguesa cabe notar a obra Arquitetura e Filosofia

    recentemente publicada (PULS, 2006).

    Esta tese parte da constatao que as teorias sobre a atividade projetual hoje

    aceitas, largamente assentadas na ideia do projeto como metodologia para resoluo

    de problemas, no so capazes de dar conta do complexo panorama em que se

    desdobra esta atividade. Por certo o projetar envolve a resoluo de problemas, mas

    sua aplicabilidade limitada a problemas parciais que, somados, no garantem o

    sucesso da atividade projetual como um todo. Torna-se necessria uma teoria que,

    sem ignorar a importncia de uma heurstica, permita a explorao de outras

    possibilidades capazes de qualificar a atividade projetual, tanto na prtica

    profissional quanto no ensino da arquitetura.

    29 Entre os autores compilados encontram-se Theodor Adorno; Georges Bataille; Walter Benjamin; Ernst Bloch; Siegfried Kracauer; Georg Simmel; Gaston Bachelard; Martin Heiddeger; Hans-Georg Gadamer; Henri Lefebvre; Gianni Vattimo; Roland Barthes; Umberto Eco; Jean Baudrillard; Jrgen Habermas; Fredric Jameson; Jean-Franois Lyotard; Gilles Deleuze; Jacques Derrida; Michel Foucault e Paul Virilio.

  • 28

    3 TEORIA

    Na sua origem, a palavra grega teoria (Qewra) significa viso de um

    espetculo, viso intelectual, especulao (LALANDE, 1999, p. 1127). Na antiga

    Grcia, a theoria30 era uma prtica cultural em que um indivduo (o theoros) fazia uma

    peregrinao por outras cidades para assistir a certos espetculos e eventos (sendo

    em muitos casos enviados na condio de representantes diplomticos); na volta

    trazia um relatrio oficial do que testemunhou. (NIGHTINGALE, 2004,p. 40). Por

    analogia, Plato em seu mito da caverna faz com que um theoros saia das trevas e

    contemple a verdade numa jornada-teoria, aludindo questo de que o

    conhecimento de fato das coisas s poderia se dar pela contemplao do filsofo que

    tem uma viso privilegiada, diferente do senso comum31 (PLATO, 2006, Livro VII,

    p. 263).

    Atualmente o termo teoria empregado num espectro que vai do

    conhecimento cientfico at uma opinio sem comprovao alguma. O significado do

    termo aplica-se em oposio ao de prtica (teoria versus prtica) por constituir um

    conhecimento que no visa necessariamente aplicao, constituindo-se em

    conhecimento desinteressado; no campo da cincia um conhecimento, fruto de

    concepo metdica, organizada, formalmente dependente de convenes cientficas,

    que no pertence ao senso comum. Mais genericamente o seu significado de uma

    construo hipottica, opinio de um cientista ou filsofo sobre uma questo

    controversa, que se ope ao conhecimento tido como certo; ou uma sntese

    abrangente que visa explicar uma gama considervel de fatos, independentemente

    da especificidade de cada um. Em sentido pejorativo, uma concepo

    excessivamente simplificada sobre os fatos e que se fundamenta mais no preconceito

    e na imaginao que na razo, da qual no se tiram concluses plausveis que

    possam ser aplicadas realidade. Apesar da pluralidade de significados atribudos

    30 Forma como poderia ser transliterada a palavra para nosso alfabeto latino

    31 Este seria o rei-filsofo da sua Repblica.

  • 29

    ao termo poderamos dizer que a teoria Construo especulativa do esprito, que

    liga consequncias a princpios (LALANDE, 1999, p. 1127 -28), o que no exclui o

    engano do sentido depreciativo explicitado acima. Uma teoria uma tentativa de

    descrever, explicar e prever determinado fato.

    As teorias em geral podem ser classificadas em duas categorias: teorias

    positivas e teorias normativas. Uma teoria positiva aquela que estabelece nexos de

    causa e efeito do fenmeno observado e por isto capaz de prever comportamentos

    futuros em situaes semelhantes, tais como as teorias das cincias naturais que

    tentam ser uma descrio objetiva do mundo como . As teorias normativas no

    lidam com fenmenos observveis, mas com as possibilidades de criao de um

    objeto, neste sentido elas tratam de estabelecer os parmetros a serem seguidos para

    a soluo do problema de dar forma a este objeto, de concretiz-lo (JOHNSON, 1994).

    O termo teoria est vinculado disciplina da arquitetura desde seu texto

    inaugural o tratado de Vitrvio onde est definido que a arquitetura teoria e

    prtica: A Arquitetura prtica e terica(VITRUVIO, 1992, Cap. I, p. 2). Mas o

    que seria exatamente uma teoria da arquitetura, ou mais precisamente uma teoria do

    projeto arquitetnico?

    Antes de se discutir o que seria uma teoria do projeto arquitetnico temos que

    estabelecer os fundamentos do que seria uma teoria da arquitetura. Hanno-Walter

    Kruft (1990, p. 13 e ss.) chama a ateno para a profunda interdependncia das

    teorias da arquitetura com o seu contexto histrico. Kruft descarta uma teoria que

    pudesse ser aplicada ao fenmeno arquitetnico independente da considerao do

    momento em que surge e de forma abstrata. Como critrio compreensivo define

    teoria da arquitetura como a reflexo sobre a arquitetura, formulada em texto32. Sabe-

    se que nem todo o texto terico sobre arquitetura sobreviveu ao tempo e que nem

    32 Texto deve se entendido aqui em sentido amplo, no excluindo a figura. A caracterstica fundamental a inscrio.

  • 30

    toda formulao terica sobre a arquitetura foi e registrada sob a forma textual33. A

    natureza indissocivel do fazer projetual arquitetnico, ao mesmo tempo reflexivo e

    prtico34, faz supor que entranhado em toda obra de arquitetura digna deste nome

    haja um tanto de elaborao terica, de tal maneira que se poderia (re)construir a

    teoria partindo da anlise das obras, mais ou menos como reescrever a teoria

    perdida. No entanto, as empreitadas neste sentido tm se mostrado muito

    problemticas por refletir mais as ideias de quem as formula do que o pensamento

    daquela poca, como demonstram as tentativas de resgatar a teoria da arquitetura

    gtica e mesmo pr vitruviana. Por fim Kruft chega a formular uma definio da

    teoria da arquitetura como todo o sistema geral ou parcial sobre arquitetura

    formulado por escrito e que se baseia em categorias estticas (Idem, p.16).

    Hlio Pin, em recente publicao, equipara a sua Teoria do Projeto

    exposio dos fundamentos estticos da modernidade. Diz o autor: Esboar uma

    teoria da modernidade equivale a propor uma teoria do projeto: no se pode abordar

    a primeira sem entrar necessariamente na segunda (2006, p. 12). A seguir apresenta

    sua definio da teoria: Uma teoria do projeto ser, portanto, um conjunto coerente

    de critrios para abordar os problemas apresentados pela concepo e configurao

    de arquiteturas concretas, isto , um sistema de atitudes e critrios para abordar o

    projeto35 desde uma perspectiva esttica concreta (Ibidem, p. 218). Suas concepes

    em muitos pontos coincidem com as posies aqui adotadas, porm, apesar da

    ressalva de que sua teoria no uma srie de prescries cuja aplicao

    minuciosa possa conduzir a projetos satisfatrios , o texto tem um carter

    doutrinrio que o distancia daquelas pretendidas por esta tese.

    33 Textual um enunciado que se abre refutao.

    34 Como veremos mais abaixo (pgina 89) Donald Schn desenvolve uma epistemologia em que a prtica est indissocivel da reflexo, seja na simultaneidade temporal reflexo-na-ao seja em momentos diferentes reflexo-sobre-a-ao.

    35 Grifo nosso

  • 31

    Como vemos, admitida a possibilidade de existncia, a prpria definio do

    que seja uma Teoria do Projeto em si mesma problemtica.

    Outra questo problemtica a da prpria existncia de uma nica Teoria do

    projeto. Parece-nos mais pertinente falar de teorias sobre o projetar. Sem entrar

    em maiores discusses sobre o tema, adotaremos aqui o termo teoria do projeto

    arquitetnico como uma concepo fundamentada sobre o ato projetual, baseada em

    raciocnio especulativo e investigao hermenutica, e que tem caracteres descritivo,

    explicativo e interpretativo.

    O prprio alcance de uma teoria do projeto deve ser questionado. Como disse

    Quatrmre de Quincy, chega certo ponto em que a teoria nos abandona, restando a

    nossa imaginao para seguirmos adiante (1837, p. 233). Se tomarmos o termo

    imaginao como as decises operativas, significa dizer que o projetar no pode

    ser fruto de pura especulao terica, se essa pode ser um ponto de partida, h um

    momento em que a teoria imbrica-se de tal forma com o ato projetual que se tornam

    indissociveis e no necessariamente explcitas36. Vemos tambm Julien Guadet,

    influente professor de teoria da Arquitetura na cole de beaux-arts ao final do sculo

    XIX, na aula de abertura de seu curso, em 28 de novembro de 1894, a afirmao de

    que todos os cursos [de teoria] poderiam desaparecer e a cole de beaux-arts seria

    ainda cole de beaux-arts, enquanto que sem os atelis no se concebe esta escola. 37

    (Guadet, 1895 apud LUCAN, 2009, p. 156). Aqui tambm se confirma a importncia

    da prtica projetual na cole, configurada pela prtica da composio nos atelis,

    ficando os cursos de teoria encarregados de desenvolver o repertrio de elementos

    de arquitetura e elementos de composio (bem como das questes instrumentais

    36 Aqui, mais uma vez, vem tona o conceito de reflexo-na-ao de Donald Schn.

    37 Nossa Traduo, no original: tous les cours pourraient disparatre, et lcole des Beaux-arts serait encore lcole des Beaux-arts ; tandis que sans les ateliers on ne saurait concevoir cette cole

  • 32

    mais bsicas) 38; neste caso a questo no parece dizer que suprfluo o estudo

    terico (e no caso a sua teoria da composio), mas de reafirmar, retoricamente, a

    centralidade da prtica do projeto para o ensino e a formao do arquiteto.

    Portanto uma teoria no campo do projetar no deve se propor a tarefa de

    estabelecer critrios de excelncia para o resultado projetual, deve acima de tudo

    buscar uma interpretao e desta maneira formular uma elucidao do ato projetual.

    Esta elucidao por sua vez, tem um efeito teraputico na discusso da questo, no

    sentido que retira da discusso os falsos problemas.

    38 Guadet, anteriormente, quando ainda no era professor do curso de teoria (e ento patron de um atelier), que assumiu em 1894, j havia feito a mesma afirmao em L'enseignement de l'architecture : confrence faite la Socit centrale des architectes, le 24 mars 1882 (1882, pp. 8-9)

  • 33

    4 REPRESENTAR

    A representao est estreitamente ligada s teorias do projeto, pois a prtica

    projetual fundamenta-se na sua essncia em atividades que envolvem formas de

    representao. Por outro lado o projetar em arquitetura como se entende hoje s

    pode ser entendido como um processo de reflexo na prtica e sobre a prtica (ver

    pgina 111). Aqui, no campo da representao, a teoria faz-se prtica e se confunde

    do ponto de vista epistemolgico com o projetar.

    No possvel falar-se sobre a representao sem remeter teoria da mimese,

    no antigo conceito grego. Para Plato, a mimese sempre se refere ao real, seja na

    reproduo da sua aparncia enganosa (phantastik), como faz pela arte o artista, seja

    da prpria realidade (eikastik) (MARQUES, 2001), privilgio que s seria dado aos

    Deuses. No dilogo Crtilo (1994) Plato discute a questo dos nomes como

    representao de objetos e seres, contrapondo as posies naturalista e

    convencionalista39, pela primeira o nome (ou poderamos dizer tambm outras

    formas da representao) guarda uma relao com a essncia daquilo que representa,

    portanto h uma relao intrnseca entre eles; pela concepo convencionalista, o

    nome arbitrrio e no guarda relao necessria com o que representa40. No

    dilogo, duas personagens - Crtilo e Hermgenes - assumem respectivamente estas

    posies extremas, mas Plato admite que a representao parte natural e parte

    convencional. Aristteles (2003) em sua obra Arte Potica coloca a questo da

    mimese em outros termos, no mais relativa a uma realidade, mas na produo de

    efeitos a Potica no duplicadora de uma realidade, mas produtora de possveis

    mimese dos caracteres, emoes, aes humanos41. Preferimos o termo mimese

    39 Para uma interessante discusso sobre o tema ver Arte e Iluso de Ernst Gombrich (2007, p. 305 e ss.)

    40 Esta questo, posta em outros termos, est longe de se esgotar ainda hoje.

    41 Esclarea-se que as artes da imitao tratadas na obra de Aristteles so aquelas que pem em movimento os afetos como a msica, o teatro a dana.

  • 34

    ao termo imitao 42 para relacion-lo com a representao por incorporar um

    elemento produtivo, ou seja, mesmo sem uma referncia (seja a realidade, no sentido

    da mimese platnica, sejam as aes humanas) as representaes tm um valor

    prprio. Do ponto de vista esttico estamos falando da apparition a que se refere

    Theodor Adorno: Em toda obra de arte genuna, aparece algo que no existe

    (ADORNO, 1988, p. 101), seguindo este pensamento poderamos dizer que em toda a

    representao tambm surge algo que no existe, ou ao menos no existia at ento.

    Como veremos, a questo transcende em muito o conceito de simples cpia.

    A ideia da arquitetura como arte mimtica, seguindo a tradio greco-romana,

    encontrada no tratado de Vitrvio (1992, Livro II, cap. 1). Na passagem em que

    discorre sobre o surgimento da arquitetura, Vitrvio narra o seu mito de origem,

    comeando pela condio primordial do homem que vivia solitrio na floresta

    (segundo ele, como os animais). Certo dia, durante uma forte tempestade, os ramos

    das rvores incendiaram-se pela frico provocada pelo vento; o fogo na floresta

    primeiro provocou o medo e os homens afastaram-se, mas depois, vendo que o fogo

    aquecia, os primitivos aproximaram-se dele e assim tambm ficaram prximos uns

    dos outros; a proximidade incitou-os a desenvolverem a linguagem verbal como

    forma de comunicao; de posse da linguagem e observando como os pssaros

    construam suas casas, o homem comeou a produzir as suas prprias e,

    comunicando-se entre si, propagaram as suas descobertas43 (Figura 4). Da surge o

    mito da to discutida cabana primitiva, essa cabana teria sido a primordial, de onde

    se desenvolveu a arquitetura, cuja forma primeira e original deve-se mimese da

    natureza, de certa forma esta ideia aproximava a arquitetura das demais artes e foi

    explorada pelos tratadistas da renascena para justificar a autoridade da arquitetura

    42 Do latim imitatio, a cpia por sua vez remete ao avesso da originalidade como valor superior da produo artstica.

    43 Franoise Choay (1985, p. 127 e ss.) traa um paralelo entre a obra de Vitrvio e de Alberti, chamando a ateno para as diferenas entre as duas, e, apesar da aparente identidade, das crticas que Alberti faz Vitrvio entre elas do tratamento mtico e superficial dado s questes tericas da arquitetura.

  • 35

    antiga como modelo. Esta ideia de uma origem mimtica, prxima da natureza, ou

    de algo que lhe d legitimidade, est na base de muitas revises refundacionalistas

    da histria da arquitetura, como por exemplo, a prpria cabana primitiva (Figura 5)

    de Marc-Antoine Laugier (1999).

    Figura 4. Ilustrao antiga do Livro II, captulo 1, dos Dez Livros de Arquitetura de Vitruvio, em que

    aparecem os homens ao redor do fogo, e a arquitetura representada pela cidade ao fundo e a maquete.

    Fonte: Fac Smile de M.Vitruvius per Iocundum solito castig atior factus cum figuris et tabula ut iam

    legi et intellegi possit, Veneza, 1511, C.N.R.S., Touluse, Frana.

  • 36

    Figura 5. A cabana primitiva segundo Laugier. Fonte: Frontispcio da obra "Ensaio sobre Arquitetura",

    Laugier (1753)

    A viso clssica da mimese em arquitetura foi posta em cheque por

    Quatremre de Quincy. Para Quatremre de Quincy a mimese mais que a busca da

    semelhana figurativa na representao. Quatremre estabelece importante distino

    entre tipo e modelo como elementos para a representao para ele O modelo um

    objeto que se deve repetir tal como ; o tipo , ao contrrio, um objeto segundo o qual

    cada um pode conceber obras que no se paream entre si. Tudo preciso e dado no

    modelo; tudo mais ou menos vago no tipo44(QUATRMERE DE QUINCY, 1825,

    pp. 543-545). Esta distino estabelece tambm modalidades diferentes de

    representao correspondentes ao tipo e ao modelo: o tipo representado pela

    mimese (denominado por Quatremre de imitao), o modelo pela cpia. A diferena

    significativa, pois para Quatremre o tipo uma entidade abstrata, ao contrrio do

    modelo que concreto, portanto, ao copiar o modelo h a repetio do mesmo sob

    outra forma, j ao imitar o tipo surgem inmeras possibilidades de configurao, este

    aspecto produtivo pode-se denominar a potica da representao. Segundo Oliveira

    44No original : Le modele,cest um objet quon doit rptertel quel est. Le type est, au contraire, um objet daprs chacun peut concevoir des ouvrages que ne se ressembleroient pas entre eux. Tout est pecise et donn dans le modele, tout est plus ou moins vague dans le type.

  • 37

    (2000b) Quatremre redefine a mimese em termos abstratos, aproximando da

    metfora, tal como desenvolvida por Paul Ricoeur.

    No campo da histria, Michel Foucault (1995) traa um amplo painel histrico

    da transformao pela qual passou a ideia da representao desde o Renascimento

    at a poca Clssica. Durante o Renascimento (at o fim do sculo XVI) a semelhana,

    enquanto fonte da representao, teve um papel estruturador do conhecimento na

    cultura ocidental, mas esta semelhana45 no era um instrumento do conhecimento

    da maneira como entendemos atualmente: ela revelava uma verdade anterior que se

    escondia sob a aparncia das coisas, uma verdade preestabelecida que foi colocada

    na ordem do mundo por Deus e que cabia ao homem desvelar46. J na poca Clssica,

    em especial aps Descartes, a semelhana permanece como representao do mundo,

    porm ela no mais o que determina o seu sentido, mas uma espcie de pano de

    fundo que estabelece o contato primeiro entre representante e representado; o seu

    significado, no entanto, no algo a se descobrir, algo que deve ser racionalmente

    45 Foucault analisa-a sob a forma das quatro similitudes: convenientia, aemulatio, analogia e simpatia. A convenincia a relao que se estabelece por vizinhana e proximidade, sendo, portanto, de natureza espacial - So convenientes as coisas que, aproximando-se umas das outras, vm a se emparelhar; tocam-se nas bordas, suas franjas se misturam, a extremidade de uma designa o comeo da outra (FOUCAULT, 1995, p. 34). A emulao uma espcie de convenincia que atuasse distncia, sem a necessidade da proximidade espacial H na emulao algo do reflexo e do espelho: por ela, as coisas dispersas atravs mundo se correspondem. De longe, o rosto o mulo do cu e, assim como o intelecto do homem reflete, a sabedoria de Deus, assim os dois olhos refletem a grande iluminao que

    expandem o sol e a lua; . A analogia caracterizada pela superposio da convenincia e emulao Como esta [emulao], assegura o maravilhoso afrontamento das semelhanas atravs do espao; mas fala, como aquela [a convenincia], de ajustamentos, liames, de junturas. as similitudes que executa no so aquelas visveis, das prprias coisas; basta

    serem as semelhanas mais sutis das relaes . A simpatia a similitude que se estabelece independente das relaes de espao e semelhana figurativa Nela [simpatia] nenhum caminho de antemo determinado, nenhuma distncia suposta, nenhum encadeamento prescrito. A simpatia atua em estado livre nas profundezas do mundo. . O autor coloca-as como categorias importantes de similitude, mas adverte que havia outras no perodo histrico referido.

    46 Muito mais uma arte divinatria como a quiromancia de hoje.

  • 38

    conhecido atravs da anlise das diferenas, da identidade, da medida e da ordem

    surge uma episteme47 da razo a substituir a episteme da divinao.

    Como consequncia desta nova episteme transposta ao campo da arquitetura,

    vemos em Claude Perrault o ceticismo quanto capacidade e o papel das propores

    para expressar no microcosmo a ordem divina do macrocosmo (PERRAULT, 1683;

    PEREZ-GOMEZ, 1999). Perrault, um homem das cincias (apresentado na sua obra

    como da Academia Real de Cincias, Doutor em Medicina da Faculdade de Paris)

    escrevendo sobre arquitetura no concebia que a habilidade do arquiteto consistisse

    em adequar as propores ao programa e ao lugar, na certeza que estas propores

    herdadas da tradio representassem uma perfeio absoluta e imutvel (fosse ela

    mtica ou divina); para Perrault deveria ser empregado o imperfeito mtodo de

    observao, anlise e induo do mais provvel e matematicamente preciso possvel,

    sempre sujeito a uma evoluo e descoberta48 (PEREZ-GOMEZ, 1999, p.74).

    Herdeiros que somos deste ltimo pensamento (o projeto no sentido moderno

    coloca-se nesta perspectiva clssica) desenvolvemos instrumentos e mtodos de

    projetar que so a um s tempo representaes e instrumento de anlise das

    diferenas, da identidade, da medida e da ordem de um mundo a construir

    instrumentos simultaneamente de construo e prospeco desta construo. A

    referncia a Descartes relevante, visto que sua maior contribuio ao pensamento

    moderno foi sem dvida o seu mtodo.

    Ao abordarmos teoricamente a questo da representao torna-se necessria

    uma distino entre duas possveis concepes do termo: como imagem mental e

    como expresso perceptvel.

    47 Este termo aqui empregado no sentido definido por Foucault, ou seja, o paradigma pelo qual se estruturam os diferentes saberes em determinado perodo histrico. Neste sentido muito prximo da noo mesma de paradigma de Thomas Kuhn (ver abaixo pgina 89).

    48 Para o aprofundamento sobre o pensamento arquitetnico de Claude Perrault, ver a introduo da traduo edio inglesa do seu livro Ordonnance des cinq espces de colonnes selon la mthode des anciens por Alberto Prez-Gmez

  • 39

    A primeira delas, representao como imagem mental, tal como utilizado na

    psicologia e na filosofia, tem como princpio a ideia de que nosso acesso realidade

    exterior s possvel atravs dos sentidos. Estes, por sua vez, transmitem-nos

    impresses que so reelaboradas mentalmente sob a forma de representaes. Neste

    sentido seria melhor empregar o termo na forma reflexiva o sujeito representa-se a

    realidade atravs destas imagens.

    A segunda diz respeito representao como expresso perceptvel de um

    objeto, seja ele real, imaginrio, ou possvel. Neste caso a representao concebe-se

    como um elemento substitutivo que ocupa o lugar de outro. Quando falamos da

    representao de uma paisagem em um quadro que figura uma cena real temos de

    um lado o objeto representado a cena e de outro sua representao registrada na

    superfcie da tela.

    Esta distino faz-se necessria, pois os dois conceitos de representao tm

    naturezas completamente distintas, o primeiro diz respeito a fenmenos psicolgicos

    e subjetivos, enquanto que o segundo material e tem existncia no mundo fora da

    subjetividade. Poder-se-ia cair na tentao de introduzir um elemento que

    correlacionasse s duas instncias representacionais, imaginando que as

    representaes materiais so exteriorizaes da representao imagem mental,

    como espelhos que refletissem estas concepes da realidade elaboradas no intelecto.

    J Vitrvio faz referncia a esta dicotomia quando, no captulo II dos seus Dez Livros

    da Arquitetura, dedicado a enumerar De que coisas consiste a Arquitetura

    (VITRUVIO, 1992, p. 8). Define ele as espcies de Disposio (segundo o autor que

    em grego se chamam ideias) enumerando: a Icnografia, Ortografia e Scenografia49. Diz

    49 Icnografia aproximadamente o que hoje chamamos de planta-baixa ( desenho do qual se tomam as dimenses para demarcar no terreno o vestgio ou planta do edifcio);

    Ortografia corresponde s fachadas ( uma representao da frente do edifcio futuro, e de sua figura por elevao, com todas as suas dimenses) e Scaenografia foi interpretado pelos renascentistas de forma a acordar com a perspectiva ento nascente ( o desenho

    sombreado da frente e lados do edifcio, que se afastam, concorrendo todas as linhas para um ponto.), apesar da objeo de Daniele Barbaro de que o termo mais apropriado Sciografia, (ACKERMAN, 2002, pp. 224-225) que significa o traado das sombras, ou ainda da representao em corte do edifcio, ou at que o termo teria sido mal transcrito. A troca de

  • 40

    o texto: Nascem estas trs espcies de ideias da meditao e da inveno. A meditao

    uma atenta, industriosa e vigilante reflexo, com desejo de encontrar a coisa

    proposta. E a inveno a soluo de questes intricadas, e a razo da coisa

    novamente achada com agudeza e engenho .

    A meditao seria denominada por Frederico Zuccari Disegno Interno e a

    inveno, Disegno Esterno (ZUCCARI, 1607a). Zuccari, seguindo o mtodo

    Aristotlico-Escolstico, afirma que a obra de arte (tema central de sua obra citada)

    possvel porque manifesta aquilo que primeiramente teve lugar no esprito do artista

    (o desenho interior) e que pela sua ao prtica assume a forma de um desenho

    exterior (PANOFSKY, 1994). Suas ideias esto impregnadas de contedo teolgico,

    pois a fonte do desenho interno para Zuccari s pode ser obra de Deus - a Centelha

    da divindade 50-, a ponto de elaborar uma etimologia da palavra como segue:

    Que seja sinal do nome de Deus este nome Di-segn-o bastante claro por si mesmo, como se pode ver das suas prprias letras sem outra declarao. Porque as duas primeiras e a ltima letra demonstram abertamente o nome de Dio [Deus]: argumento da dignidade e grandeza sua, e querendo ainda mais entender as outras quatro letras, que no meio deste nome Di-segn-o sobram, no nos surpreenderemos da singular propriedade sua, e sua significao, que denota ser verdadeiro sinal de Deus em ns51. (ZUCCARI, 1607a, p. 83)

    Sciografia por Scenografia (o desenho do cenrio para o teatro na tentativa de simular a profundidade) seria uma alterao que visava dar autoridade nova representao, pois a perspectiva com linhas que convergem para um ponto nico (chamada Perspectiva artificialis ) , ao que tudo indica, uma inveno Renascentista que no tem registro em pocas anteriores (PREZ-GMEZ e PELLETIER, 1997, p. 46). (todas as citaes entre parnteses extradas de Vitrvio, op. Cit., pp. 9 e 10)

    50 Scintilla della Divinit (ZUCCARI, 1607b, p. 14)

    51 Nossa Traduo. No original: Che sia segno del Nome di Dio questo nome DI, SEGN, O, assai chiaro per se stesso, come si pu vedere dall' istesse sue lettere senz' altra dichiarazione. Perocch le due prime, e l' ultima lettera dimostrano apertamente il nome di Dio, argomento della dignit, e grandezza sua; e volendo di pi intendere le altre quattro lettere, che nel mezzo di questo nome Di, segn, o, restano, non ci maraviglieremo della singolar facolt sua, e sua significazione, che ci dinota essere vero segno di Dio in noi.

  • 41

    Metafsica parte, este duplo conceito articula e conecta as partes terica e

    prtica do projetar, pois o disegno compreende tanto a representao mental quanto o

    objeto material que a representa (ou seja, o desenho no papel, por exemplo).

    Interessa tese discutir a representao como um todo, mais prxima deste

    duplo conceito de Disegno. Obviamente no se trata de um trabalho de psicologia

    nem de filosofia ou teologia, portanto para o caso presente o projeto no s uma

    imagem mental52. O projeto tambm um documento que se constitui em objeto de

    suporte das inscries e registros que traduzem e sintetizam uma ideia, mais at que

    isto a forma visvel de um processo de construo de conhecimento sobre o objeto

    projetado. Por tratar da questo projetual do ponto de vista da arquitetura e da

    epistemologia, h o complicador de que os registros de desenhos (tradicionalmente

    utilizados no projeto), so desenhos externos (representaes como expresso

    perceptvel) de desenhos internos (como representaes mentais), substituem no um

    objeto, mas outras representaes. Dito de outra maneira, o referente no se encontra

    entre os objetos concretos do mundo.

    Poder-se-ia pensar que a representao figurativa, de especial interesse para o

    estudo do projeto arquitetnico, ativada unicamente pela semelhana entre o

    representante e o representado. Esta pressuposio, no entanto, no resiste anlise

    mais profunda. Se tomarmos a semelhana figurativa perfeita como a mxima

    correspondncia formal, portanto neste sentido o grau mximo de representao,

    veremos que isto s ocorre de fato especularmente no prprio objeto representado

    s o objeto da representao absolutamente coincidente consigo mesmo, mas

    raramente uma representao de si mesmo, ou seja, a semelhana reflexiva, mas a

    representao no a ; a semelhana tambm simtrica, no sentido que se A se

    parece com B, B tambm se parece com A, mas da representao nem sempre

    podemos dizer o mesmo se uma fotografia representa uma paisagem, a paisagem

    52 Muitas vezes se ouve a expresso de alunos em sala de aula, quando questionados sobre o trabalho de atelier: est tudo na minha cabea, que reflete este conceito que projeto pura

    concepo mental e que a passagem da ideia para a sua representao uma simples transposio.

  • 42

    no representa uma fotografia. H casos em que mesmo cpias relativamente fiis

    no se representam mutuamente, como objetos que so produzidos em srie e que

    no constituem representaes, mas novos objetos, ainda que praticamente iguais

    (GOODMAN, 1976, p. 4). Nelson Goodman atribui denotao o papel central do

    processo de representao, salientando que a denotao independente da condio

    de semelhana .

    Podemos fazer um pequeno exerccio de anlise em relao aos objetos da

    arquitetura e suas funes representacionais: seria incoerente dizer-se que a Villa

    Savoye53 representa a Villa Savoye54, mas a expresso Villa Savoye, a axonometria

    (Figura 6), a fotografia (Figura 7) e tantas outras formas de diz-la representam aquela

    casa; por outro lado, esta condio de alteridade no suficiente, pois para que se

    possa estabelecer a funo representacional deve haver uma relao que a torne

    possvel, assim a fotografia da Casa Farnsworth, de Mies van der Rohe abaixo (Figura

    8) no representa a Villa Savoye, ainda que seja uma fotografia como a da Figura 6,

    represente uma casa suburbana e guarde com aquela algumas semelhanas

    geomtricas. Esta relao, ou nos termos de Goodman, denotao, pode ter maior ou

    menor grau de correspondncia formal entre o representado e o representante. No

    exemplo acima as fotografias e os desenhos guardam uma analogia direta com as

    formas geomtricas da casa, mas o nome Villa Savoye tem uma relao indireta,

    ou, como diriam os linguistas, imotivada.55.

    53 A famosa casa projetada por Le Corbusier em Poissy, na Frana, de 1929.

    54 No sentido de que alguma coisa no pode estar no lugar de si mesma, ela e no representa. Podemos dizer que a Villa Savoye representa os valores da arquitetura moderna, ou mesmo que representa a modernidade.

    55 Para a semiologia Saussuriana, o primeiro princpio o da arbitrariedade do signo, ou seja, ele dito imotivado; visto que vrias palavras podem significar o mesmo objeto, dependendo da lngua que se emprega. Ex. chair, chaise, silla, sedia, cadeira, Stuhl, todas significam (denotam, representam) em diferentes lnguas o mesmo objeto que serve para sentar. No caso das onomatopeias e exclamaes poder-se-ia dizer que so motivadas, ou seja, no arbitrrias pela sua relao direta entre a forma do som natural e a forma do som articulado (como em tiquetaque e atchim), mas nosso sistema lingustico

  • 43

    Figura 6. Axonometria da Villa Savoye - Le Corbusier, 1929.Fonte: FRAMPTON, 2001, p.78

    Figura 7. Villa Savoye em foto de satlite- Le Corbusier, 1929- Fonte: Google Earth

    est muito longe de ser constitudo somente de palavras onomatopaicas. (SAUSSURE, 1969, p. 85)

  • 44

    Figura 8. Casa Farnsworth, Plano Vicinity, Kendall County, Illinois, EUA. Fachadas norte e oeste.

    Projeto de Mies van der Rohe, 1946. Fonte: Library of Congress - Historic American Buildings Survey-

    HABS ILL, 47-PLAN.V, 1-

    No campo das artes visuais bastante conhecido o quadro de Magritte A

    traio das imagens (Figura 9) em que o pintor representa um cachimbo na tela e ao

    mesmo tempo enuncia a negao da imagem como representativa de um cachimbo

    com a frase Isto no um cachimbo (Le muse de l'art, 1998). A obra desmascara a

    funo representativa da figura como substitutivo perfeito de um cachimbo: por

    evidente no se pode fumar o quadro e atear-lhe fogo seria destrutivo! O prprio

    ttulo do quadro encerra uma denncia de que as imagens pecam por representarem,

    mas no tornarem presente o objeto retratado - uma falsa promessa que trai o seu

    propsito.

  • 45

    Figura 9. A traio das imagens, Ren Margritte, 1928-29 - Los Angeles County Museum of Art. Fonte:

    Le muse de l'art, 1998.

    Seja como for, a representao pressupe tomar de emprstimo algo do

    representado - uma qualidade - que no est presente no representante e express-la

    (da re-[a]presentar, apresentar novamente), o que implica uma dupla condio,

    aparentemente contraditria: a de diferena entre o representante, presente, e o

    representado, ausente; e a condio de semelhana ou de relao entre o

    representante e o representado.

    A condio de diferena estabelece ainda que a representao uma funo

    possvel do objeto e no est ligada sua materialidade ou sua forma. As figuras da

    Villa Savoye esto aqui colocadas como representantes da casa, mas a Villa Savoye

    tambm representante da arquitetura de Le Corbusier, dos cinco pontos propostos

    pelo Mestre Suo56 e at mesmo da arquitetura de Palladio (ROWE, 1978, pp. 9-11).

    Esta independncia em relao forma permite-nos pensar numa no fixidez da

    funo representacional: o mesmo objeto pode assumir funes de representante e

    representado alternadamente, ora representante, ora representado; tambm o mesmo

    objeto pode representar coisas distintas, seja por conotao, seja por denotao.

    56 A saber: os pilotis, o teto-terrao, a fentre en longueur, a planta livre e a fachada livre.