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TEORIA CRÍTICA NA ERA DA INDÚSTRIA CULTURAL.
ou
UMA ANÁLISE DA DERROTA DO ESCLARECIMENTO.
Por Marianna Waltz
Dissertação de Mestrado em Semiologia apresentada à Coordenação de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orientador: Professor Doutor André Luiz de Lima Bueno.
Universidade Federal do Rio de Janeiro 2006
2
SILVA, Marianna Waltz Moreira. Teoria Crítica na Era da Indústria Cultura. Ou: Uma Análise da Derrota do Esclarecimento. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006.
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________ Professor Doutor André Luiz de Lima Bueno, UFRJ (Orientador)
__________________________________________ Professor Doutor Luís Alberto Nogueira Alves, UFRJ
__________________________________________ Professor Doutor Victor Lemus, UFRJ
Defendida a Dissertação:
Conceito:
Rio de Janeiro, ___ / ___ / 2006.
3
RESUMO
SILVA, Marianna Waltz Moreira. Teoria Crítica na Era da Indústria Cultura. Ou: Uma Análise da
Derrota do Esclarecimento. Rio de Janeiro, 2006. Dissertação (Mestrado em Ciência da Literatura –
Área Semiologia)- Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.
Este trabalho tem o objetivo analisar a teoria crítica da sociedade e o pensamento dos intelectuais da
Escola de Frankfurt – Adorno, Horkheimer, Marcuse e Benjamin –, com foco no desenvolvimento da
sociedade capitalista industrial e de sua razão tecnológica, assim como no crescente aperfeiçoamento dos
mecanismos da Indústria Cultural. O texto avalia a percepção dos autores sobre a tecnologia e a arte e
sobre questões como o fetiche da mercadoria, o estabelecimento da divisão entre horas de trabalho e lazer,
os mecanismos de manipulação dos indivíduos, a falsa democracia das massas, entre outras. Capítulo a
capítulo é possível acompanhar as motivações para o pessimismo que caracteriza a fase final da teoria de
Frankfurt e que também a torna alvo de suas maiores críticas.
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ABSTRACT
SILVA, Marianna Waltz Moreira. Teoria Crítica na Era da Indústria Cultural. Ou: Uma Análise da
Derrota do Esclarecimento. Rio de Janeiro, 2006. Dissertação (Mestrado em Ciência da Literatura –
Área Semiologia)- Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.
In this work we intend to analyse the Critical Theory and the thought of the Frankfurt School members –
Adorno, Horkheimer, Marcuse e Benjamin -, focusing mainly the development of the industrial society
and its technological reason, so as the growing power of the Culture Industry mechanisms. The text also
examine their perception over technology and art, and over questions as commodity fetishism, the division
between labour and holiday hours, masses manipulation and false democracy. Chapter by chapter it´s
possible to verify the progress in the pessimism, which characterizes the frankfurtians last phase.
5
AGRADECIMENTOS
Ao Alexandre, que além de ignorar comigo o sol na janela por vários finais de semana, ainda compartilhou a leitura de quase toda a bibliografia e criou interesse especial pelo tema. A meus pais, pelo constante estímulo ao meu auto-desenvolvimento. A meus amigos, por me receberem sempre de braços abertos após os constantes períodos de ausência. Ao André Bueno, não apenas pelo empréstimo valioso – e impagável - de conhecimento, mas também pela extrema paciência com meus horários apertados. Ao Banco do Brasil, que, ao permitir que me ausentasse para assistir às aulas, viabilizou a concretização deste projeto.
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Sumário __________________________________________________________________________________________________________
Introdução ..................................................................................................................................... 4 1. Esclarecimento e Indústria Cultural ........................................................................................7 1.1. A atrofia da razão ...................................................................................................................7 1.2. A Indústria Cultural ............................................................................................................. 13 2. A Escola de Frankfurt .......................................................................................................... 17 3. Pensamento frankfurtiano .................................................................................................... 23 3.1. Capitalismo: o primeiro inimigo ......................................................................................... 23 3.2. O mundo da mercadoria ...................................................................................................... 27 3.3. Fácil manipulação ................................................................................................................ 30 3.4. Falsa democracia de massas ................................................................................................ 35 3.5. De Marcuse a Freud: possibilidade de felicidade na organização social ............................ 37 4. Tecnologia e Arte ................................................................................................................ 44 4.1. Tecnologia: de aliada a traidora .......................................................................................... 44 4.1.1. O “integrado” Benjamin ................................................................................................... 49 4.2. Arte: ruína ou felicidade? .................................................................................................... 54 4.2.1. Marcuse: arte como promessa de felicidade ..................................................................... 56 4.2.2. Estilo e harmonia, arte e confronto com a tradição .......................................................... 58 4.2.3. Arte na cultura de massas ................................................................................................. 63 4.2.4. O ponto de vista de Benjamin .......................................................................................... 64
7
4.2.5. Adorno x Debord .............................................................................................................. 68 5. Debord e o Espetáculo .... .................................................................................................... 73 5.1. Debord – apoio e contraponto ............................................................................................. 73 5.2. Teoria Social ........................................................................................................................ 75 5.3. Características da Sociedade do Espetáculo ........................................................................ 78 5.4. Razão tecnológica ................................................................................................................ 80 5.5. O fim da experiência vivida ................................................................................................ 81 5.6. Alienação e mundo da mercadoria ...................................................................................... 83 6. O Desencantamento ............................................................................................................. 85 6.1. Marcuse: Eros e Civilização fica para trás .......................................................................... 87 6.2. Radicalismo e Limitações .................................................................................................... 93 6.2.1. Grande Recusa .................................................................................................................. 94 6.2.2. Dialética Negativa ............................................................................................................ 95 7. Crítica Atual ........................................................................................................................ 98 7.1. A influência de Frankfurt .................................................................................................... 98 7.2. O dialético Habermas ........................................................................................................ 101 7.3. O radical Debord ............................................................................................................... 105 7.4. O integrado Eco ................................................................................................................. 107 Conclusão ................................................................................................................................. 117 Referências ............................................................................................................................... 121
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Introdução __________________________________________________________________________________________________________
O que nos propuséramos era, de fato, nada menos do que descobrir por que a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie de barbárie. (ADORNO, 1985, p.11)
A citação acima, extraída da Dialética do Esclarecimento de Adorno e
Horkheimer, reflete a preocupação dos autores com o desenvolvimento da sociedade
capitalista industrial e de sua razão tecnológica, assim como com o crescente
aperfeiçoamento dos mecanismos da Indústria Cultural.
O texto foi escrito em 1947, quando começavam os primeiros indícios de que a
mudança qualitativa imaginada até então havia sofrido um retrocesso: o caminho de
emancipação que deveria ser trilhado pela ciência positiva estava se transformando em
uma mudança de amarras. Ao invés de estarem presos aos mitos medievais, os
indivíduos foram atados ao esquematismo do pensamento tecnológico, às leis do
trabalho e à mediocridade da comunicação de massas.
Com esse prólogo em mente, o objetivo deste trabalho é a análise do pensamento
dos intelectuais da Escola de Frankfurt – Adorno, Horkheimer, Marcuse e Benjamin -,
cujo foco está exatamente na abordagem desses temas à luz de uma teoria crítica da
sociedade. O grupo alia vários campos do conhecimento humano – filosofia, sociologia,
economia, psicologia, comunicação, arte – e tem como meta, em última instância,
buscar os meios para a construção de uma sociedade madura, liberta de mitos e,
consequentemente, feliz. A felicidade – por menos usual que isso soe hoje em dia - era
o objeto final dos frankfurtianos.
Os intelectuais de Frankfurt possuíam base marxista, mas sua teoria se constituía
em oposição ao marxismo oficial e dogmático da antiga União Soviética. Os primeiros
9
textos do grupo ainda mostram alguma confiança na derrubada do capitalismo e na
instauração de uma sociedade ideal. Pouco a pouco, no entanto, deixam de considerar a
opção revolucionária e as possibilidades de mudanças estruturais no sistema. O tom dos
textos fica mais duro e pessimista, passagem que fica clara ao compararmos por
exemplo Eros e Civilização e Ideologia da Sociedade Industrial de Marcuse.
Sendo assim, nos três primeiros capítulos realizamos a conceituação da Indústria
Cultural e mostramos a sua relação com a sociedade capitalista e com a tecnologia.
Vemos como os conceitos se misturam: a tecnologia permitiu o desenvolvimento dos
meios de comunicação de massa, que por sua vez a legitimam. A Indústria Cultural é,
ao mesmo tempo, ferramenta de perpetuação do capitalismo e sua principal porta-voz.
Nesta etapa, apresentamos a visão desses intelectuais sobre o capitalismo industrial
avançado e sobre questões como o fetiche da mercadoria, o estabelecimento da divisão
entre horas de trabalho e lazer, os mecanismos de manipulação dos indivíduos, a falsa
democracia das massas, entre outros.
Os frankfurtianos também são responsáveis por análises bastante aprofundadas
da tecnologia e da arte, como mostraremos no capítulo quatro. A primeira é tida ora
como aliada, ora como inimiga. Em um primeiro momento, a proximidade de Marx faz
com que seja vista como essencial para o combate à escassez. Posteriormente passou a
ser compreendida como viabilizadora da Indústria Cultural e aliada do sistema vigente,
contribuindo para seu reforço e perpetuação. A arte, por sua vez, assume diferentes
papéis: mera contemplação, protesto político ou até mesmo caminho para a felicidade.
Apesar de não pertencer ou estar relacionado à Escola de Frankfurt, dedicamos o
capítulo cinco à visão de Guy Debord sobre as mesmas questões apontadas pelos
intelectuais frankfurtianos. Em A Sociedade do Espetáculo, observamos que Debord
tem um diagnóstico parecido, mas assume um viés mais prático e revolucionário,
10
ratificado por sua participação no movimento estudantil de maio de 1968. Seu
pensamento serve como um contraponto mais radical aos problemas levantados pelo
grupo.
Finalmente, no capítulo seis apontamos o recrudescimento da atitude negativa
que caracteriza a fase final da teoria de Frankfurt e que também a torna alvo de suas
maiores críticas. Ao não vislumbrar a possibilidade de concretização prática de suas
idéias, os frankfurtianos recusam-se a abrir diálogo com o sistema e assumem posturas
pessimistas, como a evidenciada na Grande Recusa de Marcuse, ou buscam alternativas
a exemplo da Teoria Estética de Adorno.
Assim, chegamos ao capítulo sete, que é dedicado ao que chamamos de crítica
atual. Os autores de Frankfurt nunca foram tão lidos, mas pesam sobre seus trabalhos
uma série de críticas, relacionadas sobretudo ao pessimismo, ao imobilismo prático e,
muitas vezes, ao utopismo de suas idéias. Nele relacionamos as visões de Jürgen
Habermas, Guy Debord (ao final da década de 80) e de Umberto Eco.
11
1 - Esclarecimento e Indústria Cultural __________________________________________________________________________________________________________
Chegara mesmo ao ponto de pensar que a escuridão em que os cegos viviam não era, afinal, senão a simples ausência de luz, que o que chamamos de cegueira era algo que se limitava a cobrir a aparência dos seres e das coisas, deixando-os intactos por trás do seu véu negro. Agora, pelo contrário, ei-lo que se encontrava mergulhado numa brancura tão luminosa, tão total, que devorava, mais do que absorvia, não só as cores, mas as próprias coisas e seres, tornando-os, por essa maneira, duplamente invisíveis.1
Abramos os olhos, Não podemos, estamos cegos, disse o médico, É uma grande verdade a que diz que o pior cego foi aquele que não quis ver, mas eu quero ver, disse a rapariga dos óculos escuros, Não será por isso que verás, a única diferença era que deixarias de ser a pior cega (...). 2
1.1. A atrofia da razão
A sociedade atual é irremediavelmente o lar da Indústria Cultural. Tudo tem
preço e objetivo de mercado. Tudo parece seguir um padrão preestabelecido. É certo
que palavras, roupas, hábitos alimentares e sentimentos sempre foram mais ou menos
determinados pela cultura, mas o que se observa atualmente é uma catalogação
dinâmica e artificial de tipos, estabelecidos de acordo com interesses econômicos ou,
muitas vezes, apenas identificados e potencializados por eles.
Em algumas décadas, a possibilidade de estar ou não inserido na sociedade de
massas deixou de existir. As diferenças são prontamente inseridas, rotuladas e
transformadas em novas mercadorias. Até mesmo as questões existenciais foram
catalogadas e devidamente respondidas através de alguns produtos culturais, como os
livros de auto-ajuda, por exemplo. A discussão sobre a melhor maneira de acabar com o
sistema também perdeu completamente o sentido: depois das derrotas socialistas e da
total perda de esperança em uma “revolução proletária” – até o termo parece fora de
1 - Saramago, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo, Companhia das Letras, 1995.
12
propósito hoje em dia -, a sociedade capitalista industrial só pode ser vista e analisada
do lado de dentro.
Quando isso ocorre, verifica-se que, apesar do desenvolvimento técnico, o
esclarecimento nunca esteve tão distante. A quantidade de opções e informações
disponíveis não representa uma democratização ou um aumento do nível cultural dos
indivíduos, mas um barateamento da cultura, uma caricatura do esclarecimento. Da
mesma forma, o progresso material foi desigualmente distribuído e beneficia sobretudo
aos países desenvolvidos.
Assim como no livro de Saramago, o mundo contemporâneo é tomado por uma
espécie de cegueira branca: a que ofusca pelo excesso; onde a falta é conseqüência
direta da abundância. O processo que levou à cegueira atual foi detectado por Adorno e
Horkheimer e descrito com precisão em a Dialética do Esclarecimento. Em meio ao
exílio nos Estados Unidos, os autores judeus-alemães puderam conhecer de perto a
sociedade industrial de massas em seu estágio inicial de desenvolvimento. E não
gostaram do que viram.
Até então, ambos haviam mantido a confiança na razão crítica, que conseguiria
se impor cedo ou tarde em acompanhamento ao progresso da humanidade. Adorno e
Horkheimer acreditavam que, “apesar dos percalços e retrocessos, a humanidade
chegaria, em última instância, a realizar a promessa humanística, contida na concepção
kantiana da razão libertadora. A razão acabaria por realizar-se concomitantemente com
a liberdade, a autonomia e o fim do reino da necessidade.”3
Essa verdadeira razão crítica, que se opõe à razão instrumental, vem do
esclarecimento, que pode ser definido como o “processo de ‘desencantamento do
mundo’, pelo qual as pessoas se libertam do medo de uma natureza desconhecida, à qual
2 - Saramago, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo, Companhia das Letras, 1995. 3 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.20.
13
atribuem poderes ocultos para explicar seu desamparo em face dela”.4 O objetivo do
esclarecimento seria investir os homens na posição de senhores da própria vida,
dissolvendo mitos e substituindo a imaginação pelo saber. Na visão de Adorno e
Horkheimer, o saber, temperado pela razão crítica, seria a porta para o desenvolvimento
da humanidade, que se libertaria dos mitos e primitivismos e daria vazão a todo o seu
potencial de conhecimento.
Iluminismo não é para Adorno apenas um movimento intelectual da era moderna; é antes a direção fundamental do espírito humano expressa na visão científico-utilitária da realidade, e imposta desde o ingresso da humanidade nos tempos históricos. Iluminista é o ânimo de assenhoreamento da matéria, é o imperialismo da vontade humana que atua apoiada na abstração do real desenhada pela ciência. Opõe-se ao espírito mágico, à ação ainda baseada na imitação da natureza. 5
Neste sentido, o texto marca o rompimento com esse esclarecimento ideal, com
a convicção de que cedo ou tarde o espírito humano passaria a percorrer a trilha do
desenvolvimento. “A onipotência do sistema capitalista, reificado no mito da
modernidade, estaria, segundo essa nova análise, deturpando as consciências
individuais, narcotizando a sua racionalidade e assimilando os indivíduos ao sistema
estabelecido”.6
Bárbara Freitag, citando Jürgen Habermas, afirma que esse trabalho constitui
uma espécie de ruptura dos dois autores com os trabalhos anteriores, dando início a
reflexões teóricas mais radicais, que posteriormente conduziriam Adorno à sua nova
concepção de dialética negativa. Segundo a autora, Adorno e Horkheimer abandonam
definitivamente os paradigmas do materialismo histórico, buscando um novo caminho
4 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.7-8. 5 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.48. 6 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.20.
14
que igualmente se afasta dos paradigmas do positivismo e do neopositivismo que
dominam as ciências naturais e humanas de sua época.7
Voltando à Dialética, o ponto crucial para os autores é a verificação de que a
razão crítica, ao invés de trabalhar para a promoção do conhecimento e da liberdade,
acabou por promover a “mitologização do esclarecimento sob a forma de ciência
positiva”.8
Para Freitag, o texto descreve uma dialética da razão que em sua trajetória,
originalmente concebida como processo emancipatório que conduziria à autonomia e à
autodeterminação, se transforma em seu contrário: em um crescente processo de
instrumentalização para a dominação do homem.9
Desta forma, ao invés de conduzir à produção de um conhecimento que visasse à
emancipação do espírito humano, a razão levou à técnica e à ciência positiva, que
reforçaram as amarras que o atavam. Essa razão instrumental, longe de libertar, tem
caráter repressivo e ditatorial. A razão converte-se “em uma razão alienada que se
desviou do seu objetivo emancipatório original, transformando-se em seu contrário: a
razão instrumental, o controle totalitário da natureza e a dominação incondicional dos
homens. A essência da dialética do esclarecimento consiste em mostrar como a razão
abrangente e humanística, posta a serviço da liberdade e emancipação dos homens, se
atrofiou, resultando na razão instrumental”.10 Ou seja, o porquê da autodestruição do
esclarecimento.
Neste processo, a ciência positiva converte-se na nova metafísica e o
esclarecimento “regride à mitologia da qual jamais soube escapar.”11 A razão fica
submetida ao “imediatamente dado”, ao cálculo e à classificação. Tudo se resume a
7 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.21. 8 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.8. 9 - Freitag, op. cit, p.34. 10 - Freitag, op. cit, p.35.
15
fatos e números e aquele que não compactua dessa verdade é deixado de lado. Como
afirma a Dialética, o espírito conhecedor acolhe com avidez a charlatanice e a
superstição exatamente pelo receio de ficaria excessivamente suscetível às mesmas
charlatanice e superstição, se não se restringisse à constatação de fatos e ao cálculo de
probabilidades.
No trajeto para a ciência moderna, os homens renunciaram ao sentido e substituíram o conceito pela fórmula, a causa pela regra e pela probabilidade.12
Assim, “toda a pretensão do conhecimento é abandonada”. Quanto mais se
afasta do conceito e da possibilidade de negação, mais o pensamento conforma-se com a
mediocridade e com a repetição. Para os autores: “quanto mais a maquinaria do
pensamento subjuga o que existe, tanto mais cegamente ela se contenta com essa
reprodução”.13
O fato de que o espaço higiênico da fábrica e tudo que acompanha isso, o Volkswagen e o Palácio dos Esportes, levem a uma liquidação estúpida da metafísica, ainda seria indiferente, mas que eles próprios se tornem, no interior do todo social, a metafísica, a cortina ideológica atrás da qual se concentra a desgraça real não é indiferente.14
O mecanismo da razão instrumental é tão efetivo que nem mesmo a oposição
consegue cumprir seu papel. O processo global de produção assegura-se de não facilitar
o discurso destoante, que é devidamente esterilizado. Adorno e Horkheimer observam
que as tendências opostas à ciência oficial não se modificaram menos que a ideologia
dominante, saindo de seu elemento crítico e atuando como mero instrumento a serviço
11 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.38. 12 - Ibid., p.21. 13 - Ibid., p.38. 14 - Ibid., p.15.
16
da ordem existente. Com isso, o pensamento se vê privado “não só do uso afirmativo da
linguagem conceitual científica e cotidiana, mas igualmente da linguagem da
oposição”.15
Se não há outro lado a ouvir, sem a possibilidade de diálogo, as massas
absorvem submissamente as verdades da ciência positiva. O esclarecimento “ideal” fica
cada vez mais distante e dá lugar ao esclarecimento totalitário. Este “só reconhece como
ser e acontecer o que se deixa captar pela unidade. Seu ideal é o sistema do qual se pode
deduzir toda e cada coisa”.16
Os autores têm uma visão interessante na medida em que deslocam o ângulo de
observação sobre o problema. Para eles, o esclarecimento é totalitário como qualquer
outro sistema. “Sua inverdade não está naquilo que seus inimigos românticos sempre
lhe censuraram: o método analítico, o retorno aos elementos, a decomposição pela
reflexão, mas sim no fato de que para ele o processo está decidido de antemão.”17 O
esclarecimento totalitário confunde pensamento e matemática e transforma esta última
na “instância absoluta.”
O medo que o bom filho da civilização moderna tem de afastar-se dos fatos – fatos esses que, no entanto, já estão pré-moldados como clichês na própria percepção pelas usanças dominantes na ciência, nos negócios e na política – é exatamente o mesmo medo do desvio social. Essas usanças também definem o conceito de clareza na linguagem e no pensamento a que a arte, a literatura e a filosofia devem se conformar hoje.18
É notável que, apesar do tom marcadamente negativo, o pessimismo ainda não é
total no texto. Adorno e Horkheimer parecem fazer um alerta e mencionam que o
pensamento crítico deve tomar partido pelos “últimos resíduos de liberdade” e pelas
15 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.12. 16 - Ibid., p.22. 17 - Ibid., p.37. 18 - Ibid., p.14.
17
“tendências ainda existentes a uma humanidade real”. A dialética negativa ainda não é
um beco sem saída então, processo que se acirra apenas posteriormente, com o
desenvolvimento da Indústria Cultural, e culmina com o movimento estudantil de maio
de 1968.
1.2. A Indústria Cultural
Pelos caminhos da ciência instrumental, chega-se à Indústria Cultural, que
representa a perfeita regressão do esclarecimento à ideologia capitalista. O termo foi
cunhado em Dialética do Esclarecimento e o exílio nos Estados Unidos permitiu que
Adorno e Horkheimer observassem toda a extensão do fenômeno e também previssem o
que estava por vir.
A Indústria Cultural utiliza-se da tecnologia e é viabilizada por ela. É ao mesmo
tempo ferramenta e produto do sistema capitalista. Serve como porta-voz e é a própria
voz do sistema. Como afirma Freitag, a Indústria Cultural caracteriza-se por sua
dimensão anti ou acultural (dissolução da obra de arte, produção e reprodução de
mercadorias ditas culturais); por sua vinculação com a moderna técnica (rádio, tevê,
cinema, fotografia, imprensa); por seu consumo de massas e seu caráter de mercadoria.
Desta forma, “constitui a fórmula moderna que a sociedade burguesa encontrou para
autoperpetuar-se”.19
A cultura e a arte, antes vias de transcendência, expressão ou contestação,
transformam-se em mercadorias reproduzidas em série e designadas de acordo com os
interesses do sistema econômico capitalista. Segundo os autores, a Indústria Cultural
desenvolveu-se com o predomínio que o efeito, a performance tangível e o detalhe
técnico alcançaram sobre a obra. Assim, a idéia passa a ser menos importante e menos
18
perceptível que a forma. A revolução tecnológica-industrial desencadeia o processo de
dissolução da obra de arte e da cultura.
Se a cultura respeitável constituiu até o século dezenove um privilégio, cujo preço era o aumento do sofrimento dos incultos, no século vinte o espaço higiênico da fábrica teve por preço a fusão de todos os elementos da cultura num cadinho gigantesco.20
A Indústria Cultural inibe a crítica e “confere a tudo um ar de semelhança”.21
Mesmo nas décadas de 40 e 50 – portanto bem longe da globalização atual –, Adorno e
Horkheimer já conseguem verificar na sociedade de massas um de seus pontos-chave: a
lógica do consumo das mercadorias. A humanidade, agora composta por consumidores,
está dividida e subdividida em níveis de consumo. Cada grupo está mapeado e deve
consumir a gama de opções a sua disposição.
Não há possibilidade de ficar de fora do esquematismo da produção. Toda a
diferença é imediatamente absorvida pelo sistema para em seguida transformar-se
também ela em produto passível de reprodução. “Uma vez registrado em sua diferença
pela Indústria Cultural, ele passa a pertencer a ela assim como o participante da reforma
agrária ao capitalismo”.22
Para todos algo está previsto; para que ninguém escape, as distinções são acentuadas e difundidas. O fornecimento ao público de uma hierarquia de qualidades serve apenas para uma quantificação ainda mais completa. Cada qual deve se comportar, como que espontaneamente, em conformidade com seu level, previamente caracterizado por certos sinais, e escolher a categoria dos produtos de massa fabricada para seu tipo.23
A Indústria Cultural também cria a oposição entre trabalho e lazer e serve para
preencher o tempo do trabalhador durante a noite e prepará-lo para novo expediente no
19 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.73. 20 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.15. 21 - Ibid., p.113. 22 - Ibid., p.123.
19
dia seguinte. Ao invés de almejar a felicidade real, os consumidores abdicam da
experiência e entregam-se à ilusão da felicidade virtual, via tecnologia. “A enxurrada de
informações precisas e diversões assépticas desperta e idiotiza as pessoas ao mesmo
tempo”24 e todas as necessidades podem ser satisfeitas pelo aparato técnico e pelas
mercadorias disponíveis. Claro, como bem observam Adorno e Horkheimer, essas
necessidades devem ser de antemão organizadas, é preciso se arranjar com o que é
oferecido. A diversão favorece a resignação e a Indústria Cultural volta sempre a
oferecer como paraíso o mesmo cotidiano vivido.25
A técnica também é aliada do sistema na medida em que favorece a
manipulação. Para os autores, a publicidade e a Indústria Cultural acabam por se
confundir tanto técnica quanto economicamente:
Tanto lá como cá, a mesma coisa aparece em inúmeros lugares, e a repetição mecânica do mesmo produto cultural já é a repetição do mesmo slogan propagandístico. Lá como cá, sob o imperativo da eficácia, a técnica converte-se em psicotécnica, em procedimento de manipulação das pessoas. Lá como cá, reinam as normas do surpreendente e no entanto familiar, do fácil e no entanto marcante, do sofisticado e no entanto simples. O que importa é subjugar o cliente que se imagina como distraído ou relutante.26
Adorno e Horkheimer, por outro lado, recusam-se a seguir pelo atalho de crer
que a “barbárie da Indústria Cultural” é uma conseqüência do cultural lag, do atraso da
consciência norte-americana relativamente ao desenvolvimento da técnica. Ao
contrário, os autores têm bastante claro que a Europa pré-fascista é que se encontrava
atrasada em relação à tendência ao monopólio cultural.27
23 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.116. 24 - Ibid., p.15. 25 - Ibid., p.133. 26 - Ibid., p.153. 27 - Ibid., p.124.
20
A questão do surgimento da Indústria Cultural, detectada com precisão por Adorno e
Horkheimer, foi analisada sob diferentes enfoques por todos os frankfurtianos. Guy
Debord, que não faz parte do grupo mas que também é analisado neste trabalho, chama-
a de espetáculo. O ponto comum entre todos eles é a visão crítica da sociedade e, entre
outros, a recusa em aceitar a tendência à mediocridade e à submissão, estimulada pelos
bens culturais de massa.
21
2 – A Escola de Frankfurt __________________________________________________________________________________________________________
Antes de partirmos para uma análise mais aprofundada da Indústria Cultural e da
sociedade que a criou, é importante entender o contexto em que a questão foi
inicialmente formulada e a discussão maior que a situou.
Assim, não há como evitar que a primeira parada seja o lugar que originou,
fundamentou e levou para o centro do debate intelectual contemporâneo boa parte da
discussão envolvendo a teoria crítica em oposição à teoria tradicional, a cultura de
massas, a necessidade de transformação da sociedade, o atual papel da arte, entre outros
tópicos. Ou seja, a Escola de Frankfurt.
Para José Guilherme Merquior, a escola neohegeliana de Frankfurt é uma das
“mais sugestivas formações ideológicas do nosso tempo.”28 E neste sentido cabe
destacar que ela está muito mais para uma formação ideológica, realmente, do que para
um instituto, materialmente falando.
Bárbara Freitag observa que a Escola de Frankfurt refere-se simultaneamente a
um grupo de intelectuais e a uma teoria social. Além disso, o nome só surgiu na
verdade depois da publicação dos trabalhos mais significativos de seus membros, e a
unidade geográfica sugerida ocorreu por muito pouco tempo no período pré-segunda
guerra mundial. Em termos históricos, a crescente preocupação com o anti-semitismo
na Alemanha, estimulado pelo nazismo, levou à criação de filiais do Instituto em
Genebra, Londres e Paris em 1931. Logo depois, em 1933, o governo alemão decreta o
fechamento da sede por suas “atividades hostis ao Estado”. A matriz foi então
transferida para Genebra e um ano depois para Nova York. A reabertura em Frankfurt
só voltou a ocorrer em 1950.
28 - Merquior, José Guilherme. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.21.
22
Desta forma, boa parte das produções - algumas das mais significativas
inclusive, como a própria Dialética - foi realizada durante o período de exílio e após a
guerra o núcleo original havia perdido Benjamin, que cometeu suicídio em 1943, e
Marcuse, que optou por permanecer nos Estados Unidos. Os trabalhos da época da
emigração, por exemplo, como sugere Freitag, estiveram sempre marcados pelo impacto
causado pela avançada cultura de massas americana e pela inevitável repugnância pelo
american way of life.
Em linhas gerais, a teoria crítica parte de Marx, mas se opõe ao marxismo oficial
e ortodoxo que representou a base da então futura URSS. Da mesma forma, os
frankfurtianos “originais” corroboravam – ao menos inicialmente – a possibilidade de
transformação da sociedade através da luta de classes. No decorrer dos anos, no entanto,
as expectativas em relação à possibilidade e mesmo à necessidade de uma revolução
proletária foram se esvaziando. É importante ressaltar ainda que, à exceção de Marcuse,
que teve alguma militância na juventude, os demais nunca foram militantes políticos.
O foco do pensamento desses intelectuais, apesar, é claro, de suas inúmeras
particularidades e divergências, estava na teorização de uma sociedade que permitisse a
construção de um conhecimento emancipatório. Esse, por sua vez, viabilizaria um
sistema que levaria em última instância à felicidade humana e à democratização dessa
felicidade. Pode-se dizer que a estrada comum trilhada por todos eles foi a teoria crítica
da sociedade, cada qual idealizando sub-caminhos diferentes até o destino e dosando as
paragens, fosse através da arte, da dialética negativa, da crítica à tecnologia, à ciência
positiva e ao capitalismo.
Freitag comenta que no artigo Teoria Tradicional e Teoria Crítica, de 1936,
Horkheimer tematiza pela primeira vez o conflito existente entre dialética e positivismo.
Para ele, praticar teoria e filosofia é “algo inseparável da idéia de nortear a reflexão com
23
base em juízos existenciais comprometidos com a liberdade e a autonomia do
homem”.29 Neste sentido, o autor contrapõe a filosofia de Descartes (teoria tradicional)
ao pensamento de Marx (teoria crítica), “denunciando o caráter sistêmico e conservador
do primeiro, e sublinhando enfaticamente a dimensão humanística, emancipatória do
segundo”.30
Merquior afirma que “o marxismo não é, naturalmente, a única versão possível
de uma teoria crítica da sociedade”31, mas a verdade é que nessa época a teoria crítica
encontra-se intrinsecamente relacionada a Marx. Horkheimer se defende, de alguma
forma, e afirma que a intenção não é priorizar Marx em detrimento de Descartes, mas
englobar o pensamento do segundo no primeiro. Em sua interpretação,
a teoria tradicional, que se estende do pensamento filosófico de Descartes à filosofia e ciência modernas, se preocupa em formar sentenças que definem conceitos universais. Para tal procede dedutiva ou indutivamente e defende o princípio da identidade, condenando a contradição. As manifestações empíricas da natureza e da sociedade devem e podem, segundo essa orientação teórica, ser subsumidas nas sentenças gerais, encaixando-se no sistema teórico montado a priori (com auxílio da dedução) ou a posteriori (através da indução). Entre as sentenças gerais e os fatos empíricos existe uma hierarquia de famílias e espécies de conceitos, à semelhança da moderna biologia, estabelecendo-se em todos os momentos uma relação de subordinação e integração. Os fatos se tornam casos singulares, exemplos ou concretizações do conceito ou da lei geral.32
Deste modo, observa-se que a teoria tradicional baseia-se nos conceitos do
positivismo e aplica-os não apenas às ciências naturais, mas também às questões sociais.
E quase todo o debate promovido pelos frankfurtianos parte da verificação de que a
razão instrumental não conseguiu levar a humanidade a uma via de libertação. Ao
29 - Horkheimer, 1936 apud Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.37. 30 - Horkheimer, 1936 apud Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.37. 31 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.15. 32 - Horkheimer apud Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.37.
24
contrário, mostrou-se dócil às tendências repressivas e acabou assim por reforçar o
sistema dominante.
A teoria crítica, por outro lado, não se limita aos conceitos preestabelecidos, mas
“procura integrar um dado novo no corpo teórico já elaborado, relacionando-o sempre
com o conhecimento que já se tem do homem e da natureza naquele momento
histórico”.33 A teoria crítica também é responsável pela mais significativa resposta de
Frankfurt ao domínio da ciência positiva: a dialética negativa.
A dialética negativa, tal qual idealizada pelos frankfurtianos, está relacionada
àquele esclarecimento “ideal” a que almejavam Adorno e Horkheimer e à razão
iluminista na conceituação de Kant e Hegel. Ou seja é a razão emancipatória que
contrapõe-se à razão instrumental e ao positivismo. Freitag, ao descrever o pensamento
de Adorno, afirma que “ela consistiria no esforço permanente de evitar as falsas
sínteses, de desconfiar de toda e qualquer proposta definitiva para a solução de
problemas, de rejeição de toda visão sistêmica, totalizante da sociedade”.34 Para Adorno,
“a dialética não possui nenhum cânone específico, não trabalha segundo regras
definidas e não produz um saber que permita a prognose segura e inequívoca da
realidade.”35
A crítica passa a ser o elemento que permeia todo processo de conhecimento, não somente pondo em questão uma hipótese explicativa de um problema específico (...), mas suscitando uma atitude de desconfiança face ao conhecimento como tal, cujos objetivos e resultados são permanentemente questionados. A crítica, compreendida como o princípio da negatividade, vem a ser o elemento constituinte do método e da teoria crítica, que se fundem com o objetivo político e social a ser alcançado. 36
33 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.39 34 - Ibid., p.48. 35 - Ibid., p.48. 36 - Ibid., p.47.
25
Em oposição à dialética está a ciência positiva, que se utiliza da lógica formal
para se colocar como lugar da verdade incontestável. Os positivistas atribuem ao
método o papel predominante no processo do conhecimento, privilégio esse
veementemente contestado por Adorno e pelos demais frankfurtianos.
Sob a proteção das alegadas neutralidade e objetividade, a razão instrumental
não permite questionamentos quanto a seus pressupostos, “ignorando assim as relações
de troca e os interesses de lucro e dominação que condicionam e manipulam sua própria
área de saber”.37 Freitag observa que, com isso, a produção científica dessas áreas “não
se percebe como saber interessado que atende a interesses políticos específicos e que se
presta à apropriação de poderes econômicos e políticos que desconhece”.38
Marcuse, segundo Merquior, designa o pensamento negativo “no impulso
dialético que nega continuamente o dado e o existente, no passo rebelde e crítico da
destruição criadora”39 e verifica – em alinhamento com Hegel - que a própria essência
criadora do homem advém deste impulso.
A negação e principalmente a imagem da “destruição criadora” não deixam
dúvidas de que Marcuse também acompanha o pensamento político de Marx – apesar de
distanciar-se depois, já que o segundo não chega a duvidar em nenhum momento da
ruína do capitalismo e da consecução do projeto de felicidade humana. Ambos
acreditam ser forçoso “denunciar o estado como opressor, ultrapassando as liberdades
burguesas e conquistando para a humanidade inteira a gerência dos meios de
produção”.40
37 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.50. 38 - Ibid., p.50. 39 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.21. 40 - Ibid., p.22.
26
Apesar de já terem corpo nos anos 40, os estudos de Frankfurt disseminaram-se
pela Europa principalmente a partir da segunda metade da década de 60, e em especial
com o movimento estudantil de maio de 1968.
27
3 - Pensamento frankfurtiano __________________________________________________________________________________________________________
3.1. Capitalismo: o primeiro inimigo
O capitalismo representou uma mudança irreversível na sociedade e no
pensamento humano. Mais do que apenas uma alteração no modelo econômico, o modo
de produção capitalista implicou profundas transformações na relação do homem com o
mundo, com a arte e com o trabalho.
O alto desenvolvimento tecnológico – visto pelos positivistas e também por
Marx como a mais perfeita arma contra a escassez – viabilizou o consumo de massa e
possibilitou a reprodução de praticamente todos os produtos, o império da mercadoria.
Viabilizou também o desenvolvimento da Indústria Cultural, que levou a uma falsa
democratização dos bens culturais e à criação da diferenciação entre horas de trabalho e
horas de lazer. Além disso, a comunicação de massa rapidamente tornou-se aliada dos
setores econômicos na produção de necessidades e no estímulo ao consumo. Ao
condicionar as escolhas, passou a determinar comportamentos socialmente aceitos e,
assim, a perpetuar o sistema vigente, domando os “instintos rebeldes” das massas.
Inicialmente, no entanto, os intelectuais de Frankfurt juntavam-se a Marx na
condenação do sistema capitalista, que levava à acumulação injusta de bens apenas
pelos detentores dos meios de produção, em detrimento das massas que vendiam sua
força de trabalho. O inimigo não foi logo de início a razão tecnológica, mas meramente
a maneira como ela vinha sendo apropriada pela classe dominante. Ainda acreditavam
que a ciência positiva era capaz de libertar a humanidade dos mitos e medos ancestrais e
levá-la à construção de um saber livre, emancipatório e motivado apenas pelo desejo do
28
bem comum. Assim, a crença era de que a mudança no sistema econômico poderia
levar à utilização “benigna” da ciência positiva.
E em nome de que a valorização da luta revolucionária é adotada pelos críticos da cultura? Em nome da aspiração de felicidade. A crítica da cultura aspira ao fim da repressão, isto é, ao advento de um mundo em que a felicidade individual não só seja possível, como esteja em harmonia com o bem coletivo. De modo que o pensamento negativo, enquanto vanguarda da filosofia, considera toda a história da metafísica sob o prisma desse combate: toda a tradição filosófica do Ocidente é vista como um equivalente intelectual da luta histórica pela conquista da felicidade.41
Para Marx a ruína do capitalismo ocorreria por si só. Merquior cita As Etapas
do Pensamento Sociológico, de Raymond Aron, e mostra que Marx tem duas hipóteses
para a queda inevitável do sistema: “1) na primeira, o crescimento incessante da
produção acarretaria a ultrapassagem do nível de renda das massas, e o regime de
oferta-e-procura entraria em pane por falta de consumidores; 2) na segunda, à medida
em que a produção aumentasse, apoiada nos aperfeiçoamentos tecnológicos, o poder de
compra das massas populares (o “exército de reserva”), reduzidas ao desemprego
maciço, iria minguando até chegar a uma situação intolerável.”42 Na verdade, segundo
Aron, Marx acreditava sobretudo na segunda hipótese. Para ele, a pauperização
acabaria por provocar a destruição do sistema: “na primeira hipótese, o capitalismo se
suicidaria: uma dinâmica puramente econômica o liquidaria. Na segunda, porém, a
liquidação do sistema passaria pela revolta social, pela intensificação máxima da luta de
classes. Esta é, portanto, a perspectiva ao mesmo tempo econômica e revolucionária”.43
41 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro,1969, p. 149. 42 - Ibid., p. 240. 43 - Ibid., p. 241.
29
Freitag comenta que, muitos anos mais tarde, escrevendo em retrospectiva àquele
momento inicial no ensaio A Teoria Crítica Ontem e Hoje, de 1970, Horkheimer revisa
sua posição original e apresenta os três grandes equívocos na teoria marxista: em
primeiro lugar, a proletarização progressiva da classe operária não aconteceu. O
capitalismo conseguiu produzir um excedente de riquezas e acabou assim por desativar
o conflito de classes e as condições para uma revolução proletária efetiva. Em segundo
lugar, a atividade estatal preveniu o desencadeamento de crises econômicas
“decorrentes das alternâncias da produção excessiva e da falta de consumo, por um
lado, e do consumo excessivo que leva à falta de produtos, por outro”.44 Finalmente,
Horkheimer observa que “a esperança de Marx de que a justiça poderia se realizar
simultaneamente com a liberdade revelou-se ilusória”.45 As riquezas excedentes geradas
pelo capitalismo, que possibilitavam a redução das desigualdades materiais, eram
produzidas “ao preço da redução sistemática da liberdade”.
Além disso, como vimos, foi-se percebendo que a razão tecnológica jamais seria
convertida em aliada. Ao valorizar a lógica estrita e a matemática em detrimento do
conhecimento histórico acumulado pela humanidade; ao privilegiar a forma e o método
e não o conteúdo; ao descartar o questionamento ao dado, a ciência positiva nada mais
fez que contribuir para a construção de uma sociedade repressiva e irracional.
A experiência do nazismo demonstrara quanto a razão pode ser inútil diante das forças da barbárie; o exílio nos Estados Unidos acabaria de persuadir os professores de Frankfurt, europeus enojados pelos aspectos imbecilizantes da sociedade de massa, da irracionalidade da razão tecnológica.46
44 - Horkheimer, 1970 apud Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.40. 45 - Horkheimer, 1970 apud Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.40. 46 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro,1969, p.50.
30
Marcuse avalia em Ideologia da Sociedade Industrial, de 1964, que a ciência e
a técnica não são apenas forças produtivas, mas funcionam como ideologia para
legitimar o sistema. Para ele, os homens tornam-se cada vez mais submissos ao
processo produtivo e, em nome dessa produtividade, recalcam outros aspectos da
reflexão científica e existencial, “como a crítica do status quo e a emancipação dos
homens do reino da necessidade”.47 Assim, ao invés de buscar a libertação da
humanidade – seu objetivo original – a ciência trabalha para o capital e para a
manutenção das relações de classe.
Marcuse acredita que, ao promoverem o progresso “desejado e aplaudido por
todos”, a ciência e a técnica se tornam a base legitimadora do sistema capitalista,
“desativando o conflito de classes e silenciando as reivindicações por um sistema
político e econômico menos alienado”.48 Com isso, apesar da aparente neutralidade,
transformam-se elas próprias na ideologia tecnocrática: a partir daí não cabe mais
discutir questões políticas politicamente, ou seja, à base de negociações e lutas, “e sim,
tecnicamente, de acordo com o princípio instrumental de meios ajustados a fins”.49
Freitag mostra o complemento de Habermas à posição de Marcuse, em que o
primeiro afirma que a “simbiose entre ciência e técnica com a dominação econômica e
política no capitalismo moderno mostra quão profundamente ambas estão
comprometidas com o interesse das classes dominantes”.50 Por isso, a conclusão de que
não basta simplesmente mudar a teoria e a filosofia política para mudar o mundo. Para
Habermas, como veremos mais à frente, a superação da sociedade capitalista só pode
ocorrer com a reformulação radical dos conceitos de ciência e tecnologia que nela
atuam.
47 - Marcuse, 1964 apud Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.93. 48 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.93. 49 - Ibid., p.93. 50 - Ibid., p.95.
31
3.2. O mundo da mercadoria
Seguindo adiante, vemos que o mundo em que a ciência e a técnica são a
ideologia nada mais é do que o mundo da mercadoria.
Não apenas a economia é dominada pela lógica de mercado, mas todos os
aspectos da vida humana, entre eles a reflexão crítica e filosófica. Ou seja, também o
pensamento se converte em mercadoria. Tudo segue a dinâmica do mercado e da
produtividade; a otimização do lucro e da produção transformam-se no objetivo geral da
sociedade.
No sistema capitalista os homens são ensinados a representar dois papéis
alternadamente: clientes e consumidores, e é só através desses personagens que eles
interessam à indústria. Para Adorno e Horkheimer, a humanidade inteira foi reduzida a
essa fórmula. “Enquanto empregados, eles são lembrados da organização racional e
exortados a se inserir nela com bom-senso. Enquanto clientes, verão o cinema e a
imprensa demonstrar-lhes, com base em acontecimentos da vida privada das pessoas, a
liberdade de escolha, que é o encanto do incompreendido”.51
Mais do que isso, perde-se a verdadeira noção das necessidades reais da
humanidade. Segundo Marcuse, ainda em Ideologia da Sociedade Industrial, a
produção de bens segue uma lógica técnica: a produção visa ao lucro e não àquilo que
os homens querem ou necessitam. O que importa é o valor de troca – quer dizer, o que
se ganha consumindo ou produzindo alguma coisa. Para os produtores é muito simples:
valor é sinônimo de lucro; já para os consumidores o valor depende de uma série de
estímulos complexos realizados pelo próprio sistema. Atualmente, o marketing é
responsável ao mesmo tempo por produzir necessidades e criar valor para produtos
51 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.137.
32
(publicidade, propaganda, patrocínios, entre outros); por controlar a eficácia dos
estímulos efetuados junto ao público (pesquisas de opinião); e por verificar novas
oportunidades de mercado.
Marcuse propõe a distinção entre as “necessidades verídicas” e as “falsas
necessidades”. Para ele, entre as primeiras estariam apenas as necessidades vitais de
alimento, roupa e teto. As falsas seriam “aquelas superimpostas ao indivíduo por
interesses sociais particulares ao reprimi-lo: as necessidades que perpetuam a labuta, a
agressividade, a miséria e a injustiça. (...) A maioria das necessidades comuns de
descansar, distrair-se comportar-se e consumir de acordo com os anúncios, amar e odiar
o que os outros amam e odeiam, pertence a essa categoria de falsas necessidades”.52
Desta forma, além de instaurar a lógica do valor de troca, a própria sociedade
capitalista, através de sua principal ferramenta – a Indústria Cultural -, tem o poder de
determinar o que vale e o que não vale. E ainda de perpetuar a idéia de satisfação e o
prazer em estar integrado ao consumo.
Os meios de transporte e comunicação em massa, as mercadorias, casa, alimento e roupa, a produção irresistível da indústria de diversões e informação trazem consigo atitudes e hábitos prescritos, certas reações intelectuais e emocionais que prendem os consumidores mais ou menos agradavelmente aos produtores e, através destes, ao todo. Os produtos doutrinam e manipulam; promovem uma falsa consciência que é imune à sua falsidade. E, ao ficarem esses produtos benéficos à disposição de maior número de indivíduos e de classes sociais, a doutrinação que eles portam deixa de ser publicidade; torna-se um estilo de vida. É um bom estilo de vida – muito melhor do que antes – e, como um bom estilo de vida, milita contra a transformação qualitativa.53
Assim, o fetiche da mercadoria toma o lugar da necessidade. Mercadorias
decidem o comportamento dos homens e as particularidades do eu também “são
mercadorias monopolizadas e socialmente condicionadas, que se fazem passar por algo
52 - Marcuse, Herbert. A ideologia da Indústria Cultural. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p.26.
33
natural”.54 Para Adorno, “o aparelho econômico, antes mesmo do planejamento total, já
provê espontaneamente as mercadorias dos valores que decidem sobre o comportamento
dos homens”.55
A partir do momento em que as mercadorias, com o fim do livre intercâmbio, perderam todas suas qualidades econômicas salvo seu caráter de fetiche, este se espalhou como uma paralisia sobre a vida da sociedade em todos os seus aspectos. As inúmeras agências da produção em massa e da cultura por ela criada servem para inculcar no indivíduo os comportamentos normalizados como os únicos naturais, decentes, racionais.56
Voltando ao marketing, Abraham H. Maslow57 desenvolveu uma teoria da
motivação, segundo a qual as necessidades humanas estão organizadas em uma
hierarquia. Somente depois de resolvidas as necessidades classificadas como as mais
intensas (fisiológicas) é que uma pessoa passa a ficar motivada a resolver uma
necessidade do segundo nível de importância. A hierarquia proposta obedece a seguinte
ordem: fisiológicas (alimento, repouso, abrigo, sexo); de segurança (proteção contra
perigos, doenças, incertezas, desemprego, roubo); sociais (relacionamento, aceitação,
afeição, amizade, compreensão, consideração); de estima (necessidades do ego:
orgulho, auto-respeito, progresso, confiança, status, reconhecimento, apreciação,
admiração pelos outros); e de auto-realização (auto-realização, auto-desenvolvimento,
auto-satisfação). Neste sentido, pode-se dizer que o sistema atuou primeiramente nas
mais primordiais e pouco a pouco foi avançando para as mais elaboradas e, quanto mais
avança sobre os mecanismos psicológicos mais complexos dos indivíduos, tanto maior é
o seu controle sobre eles.
53 - Marcuse, Herbert. A ideologia da Indústria Cultural. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p.32. 54 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.145. 55 - Ibid., p.40. 56 - Ibid., p.40. 57 - Maslow, Abraham H. Maslow no gerenciamento. Qualitymark Ed., Rio de Janeiro, 2001.
34
Para Marcuse, um dos motivos para que a dimensão emancipadora ou crítica na
produção de mercadorias tenha sido sufocada foi exatamente o fato de que a economia
capitalista conseguiu satisfazer necessidades básicas das massas dos países
desenvolvidos. Com algumas de suas reivindicações atendidas diminuiu a insatisfação e
o ímpeto revolucionário dos indivíduos.
No que tange à arte e aos bens culturais, também estes seguem a lógica de
mercado, como veremos à frente. A cultura transformada em mercadoria, como observa
Freitag, perde sua característica de cultura, passa a ser meramente um valor de troca.58
Para Adorno, “o que se poderia chamar de valor de uso na recepção dos bens culturais é
substituído pelo valor de troca; ao invés do prazer, o que se busca é assistir e estar
informado, o que se quer é conquistar prestígio e não se tornar um conhecedor”.59 Assim
como nas demais mercadorias, a cultura só tem valor na medida em que pode ser
trocada, não na medida em que é algo em si mesma. Adorno observa ainda que o novo
não é o seu caráter mercantil, que já existia na sociedade burguesa. A novidade é que
hoje ela “se declara deliberadamente como tal, e é o fato de que a arte renega sua
própria autonomia, incluindo-se orgulhosamente entre os bens de consumo, o que lhe
confere o encanto da novidade”.60
3.3. Fácil manipulação
Como vimos, uma das principais funções desempenhadas pela Indústria Cultural
é reforçar o sistema e determinar a vontade e a atitude dos indivíduos, agora
consumidores. Esse controle é bastante sutil, nada é diretamente imposto. A diversão
58 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.71. 59 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.148. 60 - Ibid., p.147.
35
através dos bens culturais modernos é acrítica e mina a vontade de questionamento,
enquanto a repressão é indireta e gerada pelas próprias instituições e grupos sociais.
Não há regras formais de comportamento, mas os modos de agir e consumir dos
indivíduos são impostos pelo seu “meio-ambiente”: amigos, parentes, trabalho, clube,
entre outros. Os meios de comunicação, por sua vez, indicam a todos os padrões
aceitáveis de família, relacionamentos, vestuário, lazer. As necessidades materiais dos
consumidores também são manipuladas. Cada vez surgem novos produtos que, ao
nascerem, já se tornam indispensáveis para a continuação da vida moderna. Como
afirma Adorno, “o mecanismo da oferta e da procura continua atuando na superestrutura
como mecanismo de controle em favor dos dominantes. (...) A produção capitalista os
mantêm tão bem presos em corpo e alma que eles sucumbem sem resistência ao que
lhes é oferecido”.61
A tese de defesa do sistema passa pela idéia de que a Indústria Cultural apenas
oferece o que os consumidores querem, ou seja, de que é a demanda que gera a oferta e
não o contrário. O discurso esquece todo o trabalho “educativo” realizado nos
bastidores das escolhas dos indivíduos. Adorno chama de regressão das massas a
incapacidade atual dos indivíduos de “poder ouvir o imediato com os próprios ouvidos,
de poder tocar o intocado com as próprias mãos: a nova forma de ofuscamento que vem
substituir as formas míticas superadas”.62
Pela mediação da sociedade total, que engloba todas as relações e emoções, os homens se reconvertem exatamente naquilo contra o que se voltara a lei evolutiva da sociedade, o princípio do eu: meros seres genéricos, iguais uns aos outros pelo isolamento na coletividade governada pela força.63
61 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.125. 62 - Ibid., p.47.
36
Cabe aqui retomar a oposição entre cultura e civilização presente na sociedade
burguesa, ou seja, a distinção “entre mundo das idéias e dos sentimentos elevados de um
lado e mundo da reprodução material, do outro”.64 De acordo com Freitag, enquanto o
segundo seguia a lógica da necessidade e impunha sofrimento e abstenção aos homens,
o primeiro conduzia à liberdade, à felicidade e à realização espiritual, “se não realizadas
no presente, pelo menos prometidas para o futuro.”65 Essa separação justificava a
exploração dos trabalhadores no dia-a-dia, já que havia a contrapartida da felicidade
sugerida pela sociedade em seus bens culturais.
No capitalismo, essa separação perdeu a razão de ser. A ciência positiva não
sustentava mais a promessa de felicidade futura, produzindo a necessidade de uma
satisfação mais imediata e lógica. Quer dizer, era preciso alterar a forma de
mascaramento e dissimulação do controle. Desta forma,
a fim de tornar os trabalhadores dóceis e submissos, não bastava recorrer à dicotomia entre civilização e cultura, entre escassez material externa e riqueza espiritual interna. Tornou-se imperioso mudar os padrões de organização da produção cultural que foi sendo gradativamente cooptada pela esfera da civilização, isto é, sendo absorvida pelo sistema da produção de bens materiais que reestruturou inteiramente as formas de circulação e consumo da cultura.66
A Indústria Cultural é o resultado da absorção da cultura pela esfera da
civilização. A felicidade antes prometida para o futuro ou imaginada apenas para o
mundo espiritual ou interior precisava ser entregue. E é esse o objetivo da cultura de
massas: produzir bens culturais em escala, capazes de levar a ilusão da satisfação
imediata aos consumidores. A grande promessa da Indústria Cultural é a felicidade
“fast food” ao alcance de todos.
63 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.47. 64 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.68. 65 - Ibid., p.68. 66 - Ibid., p.70.
37
Segundo Freitag, a Indústria Cultural “cria a ilusão de que a felicidade não
precisa ser adiada para o futuro, por já estar concretizada no presente”.67 Mais ainda:
“ela elimina a dimensão crítica ainda presente na cultura burguesa, fazendo as massas
que consomem o novo produto da Indústria Cultural esquecerem sua realidade
alienada”.68
Com isso, chega-se a uma das mais importantes características da sociedade
capitalista, que é a instituição da distinção entre trabalho e lazer. A Indústria Cultural é
a indústria da diversão e é através dessa mesma diversão que media o controle aos
consumidores. A promessa de felicidade, claro, nunca é cumprida e as horas de lazer
nada mais são do que “o prolongamento do trabalho sob o capitalismo tardio”.69
Representam um escape ao processo de trabalho mecanizado e o momento de
recuperação antes de retornar a ele no dia seguinte.
O pretenso conteúdo não passa de uma fachada desbotada; o que fica gravado é a seqüência automatizada de operações padronizadas. Ao processo de trabalho na fábrica e no escritório só se pode escapar adaptando-se a ele durante o ócio. Eis aí a doença incurável de toda diversão. O prazer acaba por se congelar no aborrecimento, porquanto, para continuar a ser um prazer, não deve mais exigir esforço e, por isso, tem de se mover rigorosamente nos trilhos gastos das associações habituais. O espectador não deve ter necessidade de nenhum pensamento próprio, o produto prescreve toda reação: não por sua estrutura temática – que desmorona na medida em que exige o pensamento – mas através de sinais. Toda ligação lógica que pressuponha um esforço intelectual é escrupulosamente evitada.70
A diversão sem esforço anestesia pouco a pouco a capacidade crítica e a vontade
da capacidade crítica e torna mais fácil o controle. O conteúdo perde espaço para a
forma e o que importa são os momentos de “lazer” durante a noite, sendo secundária a
67 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.72. 68 - Ibid., p.72. 69 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.128. 70 - Ibid., p.128.
38
qualidade desse lazer. Assim, a produção cultural de massa deve ocupar o espaço que
resta ao trabalhador depois de um longo dia de trabalho, “sem lhe dar trégua para pensar
sobre a realidade miserável em que vive”.71
Para Adorno, divertir-se significa estar de acordo, e isso só é possível quando se
isola o processo social do todo, quando se abandona a pretensão da obra de refletir o
todo em sua limitação. “Divertir significa sempre: não ter que pensar nisso, esquecer o
sofrimento até mesmo onde ele é mostrado. A impotência é a sua própria base. É na
verdade uma fuga, mas não, como afirma, uma fuga da realidade ruim, mas da última
idéia de resistência que essa realidade ainda deixa subsistir.”72 Além disso, “quanto mais
firmes se tornam as posições da Indústria Cultural, mais sumariamente ela pode
proceder com as necessidades dos consumidores, produzindo-as, dirigindo-as,
disciplinando-as e, inclusive, suspendendo a diversão: nenhuma barreira se eleva contra
o progresso cultural”.73
Desta forma, Freitag observa que a cultura de massa não permite a elaboração de
uma posição crítica face a sua realidade, misturando a realidade material e suas formas
de representação e anulando, progressivamente, os mecanismos de reflexão e crítica.74
As massas desmoralizadas por uma vida submetida à coerção do sistema, e cujo único sinal de civilização são comportamentos inculcados à força e deixando transparecer sempre sua fúria e rebeldia latentes, devem ser compelidas à ordem pelo espetáculo de uma vida inexorável e da conduta exemplar das pessoas concernidas. A cultura sempre contribuiu para domar os instintos revolucionários, e não apenas os bárbaros.75
71 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.72. 72 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.135. 73 - Ibid., p.135. 74 - Freitag, op. cit., p.73. 75 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. op. cit, p.143.
39
Para Marcuse, os meios de comunicação de massa não encontram dificuldade
em fazer aceitar interesses particulares como sendo de todos os homens sensatos. “As
necessidades políticas da sociedade se tornam necessidades e aspirações individuais, sua
satisfação promove os negócios e a comunidade, e o conjunto parece constituir a própria
personificação da Razão”.76
Até mesmo os discursos excessivamente vagos e superficiais da cultura de massa
cumprem a sua função, segundo Adorno. A ausência de juízos de valor rígidos, ao
invés de representar um obstáculo, serve como fonte de legitimação do sistema. Para
Adorno é justamente a vagueza ideológica da Indústria Cultural, “a aversão quase
científica a fixar-se em qualquer coisa que não se deixe verificar”77, que acaba por
ratificar a realidade existente.
3.4. Falsa democracia de massas
A Indústria Cultural produz a ilusão de uma falsa democracia de massas. A
enorme quantidade de opções existentes, os diversos grupos sociais e comportamentos
socialmente aceitos, enfim, tudo isso faz crer que a liberdade é uma das características
da sociedade capitalista afinal. Mas isso é exatamente o que ela não é. Na verdade, “a
liberdade de escolha da ideologia, que reflete sempre a coerção econômica, revela-se em
todos os setores como a liberdade de escolher o que é sempre a mesma coisa”.78
O ingresso na “felicidade de massas” cobra seu preço: a liberdade ou até mesmo
a intenção de liberdade precisam ser esquecidas.
76 - Marcuse, Herbert. A ideologia da Indústria Cultural. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p,13. 77 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.138. 78 - Ibid., p.156.
40
Para Marcuse, “a livre escolha entre ampla variedade de mercadorias e serviços
não significa liberdade de escolha se esses serviços e mercadorias sustêm os controles
sociais sobre uma vida de labuta e temor – isto é, se sustêm alienação.”79 Do mesmo
modo a reprodução espontânea de padrões pelo indivíduo não significa autonomia, mas
a eficácia dos controles. O autor também observa que até mesmo os movimentos de
oposição ao governo em nome da democracia servem de sustentáculo ideológico aos
interesses repressivos.
Todos podem ser como a sociedade todo-poderosa, todos podem se tornar felizes, desde que se entreguem de corpo e alma, desde que renunciem à pretensão de felicidade. Na fraqueza deles, a sociedade reconhece sua própria força e lhes confere uma parte dela. Seu desamparo qualifica-os como pessoas de confiança. É assim que se elimina o trágico. Outrora, a oposição do indivíduo à sociedade era a própria substância da sociedade. Ela glorificava ”a valentia e a liberdade do sentimento em face de um inimigo poderoso, de uma adversidade sublime, de um problema terrificante”. Hoje, o trágico dissolveu-se neste nada que é a falsa identidade da sociedade e do sujeito, cujo horror ainda se pode divisar fugidiamente na aparência nula do trágico.80
Adorno afirma que a acessibilidade dos produtos culturais não fez com que estes
perdessem o seu caráter de mercadoria. Para ele, “a eliminação do privilégio da cultura
pela venda em liquidação dos bens culturais não introduz as massas nas áreas de que
eram antes excluídas, mas serve, ao contrário, nas condições sociais existentes,
justamente para a decadência da cultura e para o progresso da incoerência bárbara.”81 A
cultura de elite foi transformada em cultura de massa, mas não na perspectiva que
chegou a ser idealizada por Marcuse. Não houve democratização da cultura e, como
observa Freitag, a dissolução da obra de arte não ocorreu porque o sistema de produção
de mercadorias havia sido suprimido e sim porque ela foi transformada em mercadoria.
79 - Marcuse, Herbert. A ideologia da Indústria Cultural. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p.28. 80 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.144.
41
Voltando à oposição entre cultura e civilização, a reconciliação entre ambas não ocorreu
de fato.
3.5. De Marcuse a Freud: possibilidade de felicidade na organização social
Marcuse busca uma âncora em Freud para analisar a questão da felicidade dentro
da estrutura social. Para o segundo, o conflito entre a aspiração individual à felicidade e
a organização da sociedade não conhecerá nunca uma solução definitiva, já que a
“contradição entre o princípio do prazer e o princípio da realidade é eterna”.82
Na teoria de Freud, “a história do homem é a história da sua repressão”:83 a
sociedade civilizada baseia-se na permanente subjugação dos instintos humanos, sendo
incompatível com a sua livre gratificação. Segundo ele, essa coação constitui mesmo
um pré-requisito para o progresso, pois “se tivessem liberdade de perseguir seus
objetivos naturais, os instintos básicos do homem seriam incompatíveis com toda a
associação e preservação duradoura: destruiriam até aquilo a que se unem ou em que se
conjugam”.84 Assim, a felicidade deve estar subordinada às disciplinas do trabalho, da
monogamia e à sujeição às leis e à cultura do sistema estabelecido.
Essa repressão introduz o indivíduo ao princípio da realidade em detrimento ao
princípio do prazer: “o homem aprende a renunciar ao prazer momentâneo, incerto e
destrutivo, substituindo-o pelo prazer adiado, restringido mas ‘garantido’ ”.85
A luta pela existência tem lugar num mundo demasiado pobre para a satisfação das necessidades humanas sem restrição, renúncia e dilação
81 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.150. 82 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.24. 83 - Marcuse, Herbert. Eros e Civilização. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p.33. 84 - Ibid., p.33. 85 - Ibid., p.34.
42
constantes. Por outras palavras, qualquer satisfação que seja possível necessita d trabalho, arranjos e iniciativas mais ou menos penosas para a obtenção dos meios de satisfação das necessidades. Enquanto o trabalho dura, o que, praticamente, ocupa toda a existência do indivíduo amadurecido, o prazer é suspenso e o sofrimento físico prevalece. E como os instintos básicos lutam pelo predomínio do prazer e a ausência de dor, o princípio de prazer é incompatível com a realidade, e os instintos têm de sofrer uma arregimentação expressiva.86
Assim, há um permanente mal-estar na civilização, uma vez que esta reprime os
instintos naturais de prazer e agressividade. Esse mal-estar, como observa Freud, não é
privilégio da sociedade capitalista, mas de todas as estruturas sociais e decorre dos
“sacrifícios pulsionais exigidos pela vida social”.87
Eis o mal-estar: frustração e culpa. O ressentimento contra a civilização é uma conseqüência lógica desse mal-estar.88
Segundo Sérgio Paulo Rouanet, o mal-estar é inerente a qualquer tipo de
civilização, em qualquer estágio evolutivo. “Mas podemos presumir que ele se revista
de formas especiais conforme o período histórico. Ele foi um no início da vida social,
outro nas cidades antigas, outro nos grandes impérios, outro no feudalismo, outro na
monarquia absoluta”.89 Atualmente, então, podemos falar num mal-estar moderno e
assim,
tratando-se de um mal-estar na modernidade, o ressentimento se dirige contra o modelo civilizatório que dá seus contornos à modernidade: o Iluminismo. O ressentimento antimoderno se transforma assim num ressentimento contra-iluminista. O mal-estar na modernidade é a expressão psíquica do contra-iluminismo atual. Ele se traduz na rejeição global de todo o projeto iluminista”.90
86 - Marcuse, Herbert. Eros e Civilização. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p.51. 87 - Rouanet, Sérgio Paulo. Mal-estar na modernidade. São Paulo, Companhia das Letras,1993, p. 96. 88 - Ibid., p. 96. 89 - Ibid., p. 96. 90 - Ibid., p. 98 e 99.
43
Desta forma, observa Rouanet, a razão que nos recusa tantas possibilidades de
prazer se converte em inimiga. “O homem descobre como é agradável escapar dela,
pelo menos por algum tempo, cedendo às seduções do absurdo”.91 Apesar de não haver
ligação direta entre as idéias, o ponto de vista de Rouanet corrobora a imensa facilidade
dos produtos culturais em influenciar os indivíduos, que parecem deixar-se levar pela
sua simplicidade e irracionalidade.
Marcuse também aponta para o irracional da sociedade. Para ele, “sua
produtividade é destruidora do livre desenvolvimento das necessidades e faculdades
humanas; sua paz, mantida pela constante ameaça de guerra; seu crescimento,
dependente da repressão das possibilidades reais de amenizar a luta pela existência –
individual, nacional e internacional”.92
A união da produtividade crescente e da destruição crescente; a iminência de aniquilamento; a rendição do pensamento, das esperanças e do temor às decisões dos poderes existentes; a preservação da miséria em face da riqueza sem precedente, constituem a mais imparcial acusação – ainda que não seja a razão de ser desta sociedade, mas apenas um subproduto. O seu racionalismo arrasador, que impele a eficiência e o crescimento, é, em si, irracional.93
De volta à repressão na sociedade atual, Marcuse observa que a diferença está
em sua dimensão interior. Merquior afirma que a ambição de Marcuse é exatamente
demonstrar como a sociedade de massas destruiu as aspirações de liberdade e de
satisfação embutidas na tradição ideológica do Ocidente. Essa repressão não é gerada
por uma coação externa, mas por uma “dissimulada e sofisticada regulamentação das
próprias atividades da mente – numa espécie de ‘brain washing’ em escala coletiva”.94
91 - Rouanet, Sérgio Paulo. Mal-estar na modernidade. São Paulo, Companhia das Letras,1993. P 105. 92 - Marcuse, Herbert. Eros e Civilização. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p.14. 93 - Ibid., p.16. 94 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.26.
44
Desta forma o autor sentencia que o procedimento repressivo da sociedade tecnológica
“consiste em colocar a interiorização a serviço de finalidades repressivas”.95
Na sociedade industrial moderna, o divórcio entre os modos de vida e as verdadeiras aspirações humanas é tão grande, que um novo gênero de repressão suplementar se faz necessário: a moldagem da psique.96
Além disso, Marcuse avalia que a sociedade tecnológica, através da Indústria
Cultural e da perspectiva de auto-liquidação da cultura, exagera na dose repressiva. O
autor cria a expressão “surplus repression” para designar “a dose de repressão
dispensável do ponto de vista do crescimento e da preservação da civilização, porém
requerida pelas forças interessadas na manutenção do ‘establishment’ – da estrutura
insatisfatória da sociedade.”97 Para ele, o progresso e o alto nível de produtividade
atuais já permitiriam que a energia voltada para o trabalho alienado fosse reduzida e a
continuidade da repressão aos instintos não ocorre mais em função da luta pela
existência, mas sim pelo interesse em dominar. Os agentes dessa repressão-extra,
porém, não são necessariamente indivíduos designados e conscientes desse fim, mas
tendências sociais, muitas vezes inconscientemente encarnadas pelos indivíduos.
Freud analisa que, ao repreender os instintos, a civilização traz em si o germe de
sua própria ruína. Para Marcuse esse potencial destrutivo é ainda maior na sociedade de
massas.
Finalmente, Marcuse acredita que o controle exercido na sociedade
contemporânea é – ou transformou-se em - um controle impessoal. Não há um centro
único de poder e decisão, a máquina gira sozinha, transformando empregados, patrões e
95 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.26. 96 - Ibid., p.27. 97 - Ibid., p.27.
45
as projeções pessoais da publicidade moderna em “simples funcionários de uma
autoridade realmente impessoal: o aparelho de produção.”98
Essa idéia faz eco com a alegoria utilizada por Adorno para a sociedade
capitalista. O autor utiliza-se do mito de Ulisses, em que para escapar ao canto das
sereias este ordena que todos os marinheiros tapem os ouvidos com cera, enquanto ele
próprio fica amarrado ao mastro da embarcação. Quando a melodia surge, ele não
consegue escapar, apenas escuta em desespero. Os demais, surdos, não conseguem
ouvir os pedidos para que o desatem. Assim, “alertas e concentrados, os trabalhadores
têm que olhar para frente e esquecer o que foi posto de lado. A tendência que impele à
distração, eles têm que sublimá-la num esforço suplementar. É assim que se tornam
práticos”.99 Ulisses, por outro lado, não é mais livre do que seus empregados. O poder
de escolha também não existe mais para ele, que está irremediavelmente paralisado
pelos laços com que se atou à práxis. Ele percebe a sedução e a beleza do canto das
sereias, mas nada mais pode fazer: “quanto maior se torna a sedução, tanto mais
fortemente ele se deixa atar, exatamente como, muito depois, os burgueses, que
recusavam a si mesmos a felicidade com tanto maior obstinação quanto mais acessível
ela se tornava com o aumento de seu poderio. (...) Sua sedução transforma-se,
neutralizada num mero objeto de contemplação, em arte.”100
98 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.30. 99 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.45. 100 - Ibid., p.45.
46
Marcuse, no entanto, ainda não está totalmente contaminado pelo pessimismo
em Eros e Civilização. Ao contrário, utiliza-se da psicanálise de Freud para tenta
encontrar uma solução para a sociedade futura.
Neste sentido, sua grande pergunta é se a relação entre “liberdade e repressão,
produtividade e destruição, dominação e progresso”101 constitui efetivamente o princípio
da civilização ou apenas desta civilização específica.
Para tentar responder a essa questão ele examina a hipótese de uma sociedade
não-repressiva, mas para isso precisa ir além da teoria de Freud, na medida em que este
parece refutar a idéia e simpatizar com o pensamento de que uma sociedade sem coação
inviabilizaria a vida em comunidade e o progresso.
Marcuse, por sua vez, segue o raciocínio do próprio Freud quando este afirma
que a natureza dos instintos é “historicamente adquirida”. A partir daí, conclui que essa
natureza está, portanto, sujeita a mudanças “se as condições fundamentais que foram a
causa dos instintos adquirirem tal natureza tiverem também mudado”.102 Assim,
Marcuse continua a defender que “as próprias realizações da civilização repressiva
parecem criar as precondições para a gradual abolição da repressão”103 e que se o
processo histórico criasse condições para a obsolescência do princípio do desempenho –
ou seja, da organização repressiva e integrada da sexualidade e do instinto de destruição
– também seria possível libertar os instintos de suas restrições. Para ele, “isso implicaria
a possibilidade real de uma eliminação gradual da mais-repressão, pelo que uma
crescente área de destrutividade poderia ser então absorvida ou neutralizada pela libido
assim fortalecida”.104
101 - Marcuse, Herbert. Eros e Civilização. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p.28. 102 - Ibid., p.130. 103 - Ibid., p.28. 104 - Ibid., p.124.
47
Tal critério implica uma crítica do princípio de realidade estabelecido, em nome do princípio de prazer – uma reavaliação da relação antagônica que prevaleceu entre as duas dimensões da existência humana.105
Marcuse, desta forma, tem o seu momento de otimismo teórico, em que
consegue imaginar soluções para a humanidade a partir de mudanças estruturais na
sociedade. Seu objetivo principal sempre foi a identificação dos meios para a
estruturação de uma sociedade livre e feliz. A Grande Recusa desta época ainda era uma
“negação positiva”, quer dizer, ainda vislumbrava a transformação social. Claro, a
intenção soa utópica e foi considerada assim pelo próprio Marcuse de Ideologia da
Sociedade Industrial.
105 - Marcuse, Herbert. Eros e Civilização. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p.125.
48
4 – Tecnologia e Arte __________________________________________________________________________________________________________
A tecnologia e a arte são pontos dos mais fundamentais dentro do pensamento de
todos os frankfurtianos, além de estarem diretamente relacionados à Indústria Cultural:
seja possibilitando a sua existência, seja como oposição e alternativa, ou até mesmo
confundindo-se com ela.
4.1. Tecnologia: de aliada a traidora
No que diz respeito à tecnologia, ora ela é vista como aliada, ora percebida como
a pior das inimigas. Marx acreditava que o desenvolvimento tecnológico era essencial
para o combate à escassez e, neste sentido, o problema não era a tecnologia em si, mas
apenas sua utilização indevida pelo capitalismo. Inicialmente, Adorno, Horkheimer e
Marcuse também enxergaram-na como instrumento para o progresso da humanidade,
tanto material como espiritualmente. Em sua visão, a ciência positiva promoveria a
emancipação da humanidade de medos e mitos ilógicos e levaria ao esclarecimento.
O principal crime do desenvolvimento tecnológico, no entanto, foi viabilizar o
surgimento da Indústria Cultural e de todas as suas conseqüências, como vimos
observando. A principal delas, inclusive, o reforço do sistema e da sociedade vigentes.
Assim, é a ligação entre tecnologia e comunicação de massas que é atacada e pode-se
ousar dizer que os produtos dessa união são os principais objetos de atenção desses
intelectuais. Se essa afirmação parece simplista em um primeiro momento, basta
enumerar que entre os seus efeitos diretos e indiretos está o fortalecimento do sistema
capitalista; a perda da aura da obra de arte descrita por Benjamin; o empobrecimento da
experiência vivida; o abandono definitivo da luta de classes; a alienação dos
49
consumidores; entre outras questões. Também foi essa aproximação – ou a constatação
de suas conseqüências - que provocou uma mudança radical na teoria crítica, que ficou
mais dura, cética e pessimista.
A desilusão de Adorno e Horkheimer com a tecnologia já é clara em Dialética
do Esclarecimento. No texto, os autores chegam à conclusão de que “o espírito de
domínio tecnológico da natureza não assegura uma existência verdadeiramente
humana”106. Para eles, se por um lado o aumento da produção fornece os meios
materiais para um mundo mais justo, por outro confere grande poder ao aparelho
técnico e aos grupos sociais que o controlam. Assim, “o indivíduo se vê completamente
anulado em face dos poderes econômicos. Ao mesmo tempo, estes elevam o poder da
sociedade sobre a natureza a um nível jamais imaginado.”107
Adorno não se limita a analisar a tecnologia de forma ampla, mas avalia o seu
efeito prático através dos produtos da Indústria Cultural. Para ele, esses produtos
provocam a atrofia da atividade intelectual do espectador. E essa paralisação não se
deve unicamente a mecanismos ou armadilhas psicológicos, mas à própria estrutura e à
forma de acompanhamento e utilização desses produtos.
São feitos de tal forma que sua apreensão adequada exige, é verdade, presteza, dom de observação, conhecimentos específicos, mas também de tal sorte que proíbem a atividade intelectual do espectador, se ele não quiser perder os fatos que desfilam velozmente diante de seus olhos.108
Merquior observa certa ambivalência na postura de Adorno, causada pela defesa
do espírito crítico ao mesmo tempo em que denuncia o imperialismo da razão
tecnológica. Na visão do segundo, a razão tecnológica deixa de ser meramente um
106 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.49. 107 - Ibid., p.14.
50
instrumento à disposição do homem e passa a representar uma “investida tirânica contra
a natureza e contra o próprio homem”. Na verdade, essa “ambivalência” percebida por
Merquior revela o endurecimento e a gradual mudança de rumos dos intelectuais de
Frankfurt – a perda de confiança no teor emancipatório da razão tecnológica e sua
conversão em inimiga.
Esse “amadurecimento” também é observado em Marcuse, que avalia a
tecnologia sob duas perspectivas diferentes. Em um primeiro momento, como vimos,
integra-a em sua utopia de uma sociedade sem repressão, em que o trabalho é abolido e
os seres humanos vivem em constante estado de satisfação e felicidade. Neste caso a
tecnologia tem o duplo papel de substituir os indivíduos nos processos de trabalho,
liberando-os para a diversão, e promover o fim das necessidades materiais.
Desta forma, ao defender a tecnologia Marcuse tem em mente um projeto de
transformação da sociedade atual em uma sociedade ideal. Isso significaria corrigir
suas deficiências, entre outras coisas aliviando a carga de trabalho dos indivíduos e
liberando-os para o prazer e a criação. Merquior observa que apesar do pessimismo
com relação ao momento presente, Marcuse insiste em que o nível do progresso
tecnológico alcançado em nosso tempo conquistou “o espaço subjetivo e objetivo para o
reino (possível, embora inviável) da felicidade humana“.109 Neste momento não há
dúvidas de que Marcuse ainda está conceitualmente próximo de Marx e acredita que
não considerar “as possibilidades de maior felicidade contidas no nível já atingido pelo
progresso tecnológico”110 é ser conivente com a repressão.
A perda do otimismo, porém, não tarda. Em Ideologia da Sociedade Industrial,
o tom utilizado já é bem mais sóbrio. Neste texto, Marcuse avalia que a tecnologia
108 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.119. 109 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.289.
51
acaba por compactuar com o controle social e desenvolver-lhe formas cada vez mais
complexas e eficazes. Ele afirma que o aparato produtivo torna-se totalitário ao
determinar não apenas os comportamentos socialmente necessários, mas também as
“necessidades e aspirações individuais”.111 Desta forma, reconhece que a noção da
“neutralidade” da tecnologia não pode mais ser sustentada: “a tecnologia não pode,
como tal, ser isolada do uso que lhe é dado; a sociedade tecnológica é um sistema de
dominação que já opera no conceito e na elaboração das técnicas”.112
As aptidões (intelectuais e materiais) da sociedade contemporânea são incomensuravelmente maiores do que nunca dantes – o que significa que o alcance da dominação da sociedade sobre o indivíduo é incomensuravelmente maior do que nunca dantes. A nossa sociedade se distingue por conquistar as forças sociais centrífugas mais pela Tecnologia do que pelo Terror, com dúplice base numa eficiência esmagadora e num padrão de vida crescente.113
Para Marcuse, apesar de o desenvolvimento atual da tecnologia já possibilitar
uma liberação de energia para além do trabalho alienado, como descrito em Eros e
Civilização, ela trabalha exatamente na tendência oposta: “o aparato impõe suas
exigências econômicas e políticas para a defesa e a expansão ao tempo de trabalho e ao
tempo livre, à cultura material e intelectual.”114 O afastamento de Marx também é
inevitável, já que, como observa Merquior, o primeiro nunca “chegou a duvidar de que,
dadas certas condições, a felicidade seria atingida pelo homem”.115
Marcuse condena a razão tecnológica porque ela exige a separação entre o ego e
os instintos e potencializa a separação entre o homem e a natureza. Voltando à
110 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.289. 111 - Marcuse, Herbert. A Ideologia da Sociedade Industrial. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p.18. 112 - Ibid., p.19. 113 - Ibid., p.14. 114 - Ibid., p.24.
52
aproximação com Freud, Marcuse rechaça ainda o princípio da realidade, “definido
como sufocação necessária dos instintos em nome da paz social e da possibilidade do
convívio humano”116 e declara que este não é senão “a máscara do princípio da
eficiência, da religião da eficácia, da fúria tecnológica a cujo serviço o homem aliena as
suas ‘chances’ de felicidade”.117
Na verdade há forte identificação entre os posicionamentos de Adorno e
Marcuse sobre a questão tecnológica. Segundo Merquior,
o tema forte da ‘maldição iluminista’ em Adorno corresponde, cem por cento, à crítica marcusiana da sociedade tecnológica. Neste sentido, os fundamentos últimos da ‘dialética do iluminismo’ e as raízes da teoria de Marcuse são idênticos.118
Ambos mostram-se pessimistas em tempo integral no que diz respeito ao
presente. Inicialmente, no entanto, há expectativas com relação às possibilidades
futuras, cujo fim leva ao recrudescimento do pensamento negativo, como veremos
adiante. Além disso, ambos não admitem concessões, não há possibilidade de diálogo
com a sociedade tecnológica e menos ainda com a cultura de massas. Ou as duas são
destruídas, ou a humanidade é que o é. Como conseqüência, Adorno volta-se à
negatividade e à teoria estética, enquanto Marcuse fecha-se na Grande Recusa.
4.1.1 . O “integrado” Benjamin
Walter Benjamin tem opinião diversa a respeito dos efeitos da tecnologia e da
razão tecnológica. Apesar de ter experimentado um dos seus produtos mais irracionais,
115 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.23. 116 - Ibid., p.43. 117 - Ibid., p.43.
53
o fascismo, Benjamin nunca deixou de enxergar possibilidades positivas em sua
utilização.
Para Merquior, um dos fatores que explicam a “integração” de Benjamin neste
aspecto, pelo menos em relação a Adorno, Marcuse e Horkheimer, é o fato de o
primeiro não ter cumprido exílio nos Estados Unidos. Nessa experiência, os três
últimos encontraram a concretização de todos os seus pesadelos: a sociedade
tecnológica plenamente desenvolvida. Merquior consegue reconstruir com precisão a
imagem do horror que os refinados burgueses europeus devem ter sentido frente ao
american way of life:
Para os três exilados, a cultura americana não é senão o último e mais sutil avatar da repressão: da repressão de tal modo triunfante, que dispensa todas as suas formas físicas e diretas, contentando-se com a moldagem universal das consciências, executada pela onipotência dos ‘mass media’, em pleno regime de liberdade. A repugnância pelo ‘american way of life’ é o traço psicológico que está na origem do ceticismo adorno-marcusiano diante das chances de humanização da sociedade tecnológica.119
Ainda na opinião de Merquior, a visão de Benjamin sobre a tecnologia é muito
mais matizada que a dos demais frankfurtianos e implica uma visão de mundo que
“oferece dimensões bem mais amplas do que o pessimismo de Frankfurt”.120
Boa parte dos argumentos de Benjamin sobre a tecnologia está presente no texto
A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica. Nele, o autor constrói teses
sobre as tendências evolutivas da arte nas condições produtivas do capitalismo da
década de 30, mais particularmente sobre a evolução das suas técnicas de reprodução,
em especial a fotografia e o cinema.
118 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.96. 119 - Ibid., p.99. 120 - Ibid., p.100.
54
O objeto principal de Benjamin é a perda da aura na arte, que ocorre em virtude
do desenvolvimento da tecnologia e conseqüente capacidade de reproduzir tecnicamente
as obras. A aura pode ser definida como o invólucro da obra de arte e que contém
elementos espaciais e temporais: “a aparição única de uma coisa distante, por mais perto
que ela esteja”.121 Benjamin identifica os fatores sociais específicos que condicionam o
seu declínio atual, que, para ele, deriva de circunstâncias estreitamente ligadas à
crescente difusão e intensidade dos movimentos de massas.
Fazer as coisas “ficarem mais próximas” é uma preocupação tão apaixonada das massas modernas como sua tendência a superar o caráter único de todos os fatos através da sua reprodutibilidade. (...) Retirar o objeto do seu invólucro, destruir sua aura, é a característica de uma forma de percepção cuja capacidade de captar “o semelhante no mundo” é tão aguda, que graças à reprodução ela consegue captá-lo até no fenômeno único.122
É preciso entender, no entanto, que Benjamin não lamenta a perda da aura. Para
ele, como observa Freitag, longe da esfera da contemplação a obra adquire um novo
valor – o valor de consumo -, tornando-se acessível a todos os indivíduos. A obra de
arte não é destruída com a possibilidade da reprodução, ela é radicalmente
transformada. Mudam ao mesmo tempo a sua natureza e a forma de apreensão pelo
consumidor.
A obra de arte reprodutível abala a tradição e, com isso, promove a atualização
do objeto reproduzido. Assim, cria-se a possibilidade de renovação também da
humanidade. A obra de arte reprodutível estabelece um diálogo com os movimentos de
massa dentro da sociedade atual, coisa que a arte tradicional há muito não fazia. Neste
sentido, um dos maiores focos de Benjamin está nas virtudes potenciais do cinema.
121 - Benjamin, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In: Obras escolhidas I. São Paulo, Brasiliense, 1985, p.170 122 - Ibid., p.170.
55
Para ele, é um erro tentar apreciar um filme ainda dentro da esfera do sagrado ou
tentar encontrar elementos da obra de arte tradicional na montagem cinematográfica. A
arte mudou, o olhar também precisa mudar. Não importa se os produtos da Indústria
Cultural podem ou não ser considerados arte, isso não é relevante. O que importa é que,
arte ou não, a Indústria Cultural ocupou parte do espaço da arte tradicional e, em sua
opinião, resgatou e renovou funções que estavam atrofiadas.
Benjamin, no ponto de interseção com os demais frankfurtianos, acredita que a
expansão tecnológica é potencialmente benéfica à humanidade e que é o capitalismo
que a desvirtua. Merquior lembra que, no epílogo da A Obra de Arte na Era de sua
Reprodutibilidade Técnica, Benjamin “acusa o nazismo de desviar para a guerra a
direção democrática contida na tecnologia moderna.”123 Assim, sua principal diferença
em relação aos seus contemporâneos de Frankfurt talvez seja incluir determinados
produtos culturais, em especial o cinema, entre os “efeitos positivos” da tecnologia.
Um dos trunfos do cinema é o poder de penetrar no indivíduo. Neste ponto, há o
contraste com a arte tradicional, em que é o espectador que penetra na obra através da
mera contemplação. O cinema produz um choque que não é mais sentido com a arte e
este “choque nos adapta, tanto quanto nos adaptamos a ele”.124 A experiência
cinematográfica produz um novo tipo de percepção em que cada indivíduo é ao mesmo
tempo ativo e passivo.
A descrição cinematográfica da realidade é para o homem moderno infinitamente mais significativa que a pictórica, porque ela lhe oferece o que temos o direito de exigir da arte: um aspecto da realidade livre de qualquer manipulação pelos aparelhos, precisamente graças ao procedimento de penetrar, com os aparelhos, no âmago da realidade”.125
123 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.121. 124 - Ibid., p.121. 125 - Benjamin, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In: Obras escolhidas I. São Paulo, Brasiliense, 1985. p.187.
56
Benjamin diverge radicalmente de Adorno nesta questão, já que para o segundo,
como vimos, a forma de acompanhamento do cinema proíbe a atividade intelectual do
espectador. Para Benjamin, ao contrário, a experiência cinematográfica implica um
aprendizado: “o filme serve para exercitar o homem nas novas percepções e reações
exigidas por um aparelho técnico cujo papel cresce cada vez mais em sua vida
cotidiana. Fazer do gigantesco aparelho técnico do nosso tempo o objeto das inervações
humanas – é essa a tarefa histórica cuja realização dá ao cinema o seu verdadeiro
sentido”.126 Segundo ele, a recepção através da distração constitui o sintoma de
transformações profundas nas estruturas perceptivas e tem no cinema o seu cenário
privilegiado.
Benjamin observa ainda, em um dos pontos mais importantes, que a
reprodutibilidade técnica modifica a relação da massa com a arte. A arte tradicional
vinha perdendo significação social, o que distanciava a atitude de fruição da atitude
crítica, ou seja: desfrutava-se o que era convencional, sem criticá-lo; criticava-se o que
era novo, sem desfrutá-lo. O cinema, por sua vez, consegue promover uma
reaproximação com o público. No cinema,
a associação de idéias do espectador é interrompida imediatamente, com a mudança da imagem. Nisso se baseia o efeito de choque provocado pelo cinema, que, como qualquer outro choque, precisa ser interceptado por uma atenção aguda. O cinema é a forma de arte correspondente aos perigos existenciais mais intensos com os quais se confronta o homem contemporâneo.127
O autor analisa ainda a questão da representação diante da câmera e traça um
paralelo interessante: de dia, os indivíduos alienam-se diante de um aparelho, durante o
57
trabalho. À noite realizam a sua vingança através do ator cinematográfico; este afirma
sua humanidade diante do aparelho e, mais ainda, “coloca esse aparelho a serviço do seu
próprio triunfo”.128 O cinema ainda possibilitaria que o indivíduo criasse consciência
dos condicionamentos que determinam sua existência, mas assegurando-lhe, por outro
lado, um grande espaço de liberdade.
Benjamin não deixa de perceber, contudo, a expropriação do potencial positivo
da reprodutibilidade técnica pelo capitalismo. Para ele, o capital cinematográfico
inverte as relações de controle – ao invés das massas controlarem o conteúdo e a forma
no cinema, aproveitando-lhe as oportunidades revolucionárias, ocorre justamente o
oposto. O capital “estimula o culto do estrelato, que não visa conservar apenas a magia
da personalidade, há muito reduzida ao clarão putrefato que emana do seu caráter de
mercadoria, mas também o seu complemento, o culto do público, e estimula, além disso,
a consciência corrupta das massas, que o fascismo tenta por no lugar de sua consciência
de classe”.129
Assim, o capital cinematográfico corromperia e falsificaria o interesse original
das massas pelo cinema, relacionado à sua consciência de classe, e o vincularia aos
interesses de uma minoria, como ocorre com os demais aspectos da sociedade
capitalista. Por este motivo, Benjamin considera a expropriação do capital
cinematográfico “uma exigência prioritária do proletariado”.130
Ao analisar o pensamento de Benjamin sobre a tecnologia, não há como não lhe
notar por um lado a originalidade e, por outro, a ingenuidade. Como mencionamos, há
semelhanças com a fase inicial de Adorno e Marcuse no que diz respeito à má utilização
126 - Benjamin, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In: Obras escolhidas I. São Paulo, Brasiliense, 1985. p.174. 127 - Ibid., p.192. 128 - Ibid., p.179. 129 - Ibid., p.180. 130 - Ibid., p.185.
58
da tecnologia pelo sistema capitalista. As diferenças, porém, são gigantescas quanto ao
papel da arte e dos produtos da Indústria Cultural, em especial o cinema. Talvez, se
tivesse sobrevivido à guerra, Benjamin produzisse, a exemplo de Marcuse (com Eros e
Civilização e Ideologia da Sociedade Industrial) um trabalho mais crítico e mais
pessimista. Talvez, ao contrário, conseguisse estabelecer uma ponte, já naquela época,
entre o pessimismo e a sociedade de massas. Talvez perseguisse ainda mais a
conscientização através da Indústria Cultural. Talvez não.
4.2. Arte: ruína ou felicidade?
A questão estética também está no cerne da teoria crítica. A arte aparece como
forma de protesto, como mera contemplação, ou até mesmo como caminho inequívoco
para a felicidade. Também assume parte da culpa pelo fortalecimento do sistema e da
comunicação de massa, uma vez que fracassa em seu papel político. Por vezes a arte
pode existir na cultura de massas, por outras extingue-se com elas.
Veremos a seguir os principais pontos de vista dos intelectuais de Frankfurt no
que diz respeito à arte na sociedade capitalista avançada e um contraponto entre as
idéias de Adorno e Guy Debord sobre a experiência artística no mundo contemporâneo.
O segundo chega a decretar sua morte, dado o fracasso das vanguardas estéticas e
políticas.
Como ponto de partida temos a sociedade iluminista, que a tolerava enquanto
mero objeto de contemplação e deleite. Segundo Merquior, a estética também assume
uma função de compensação, “uma tentativa de restaurar um outro cosmos, um mundo
essencialmente diverso do da razão tecnológica”.131 Para ele, a arte iluminista traz em si
131 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.51.
59
um sentimento de nostalgia e remete a um passado de harmonia do homem com a
natureza. A sociedade positivista só admite a arte enquanto memória passiva de uma
felicidade remota - a experiência estética constitui a conciliação, a nostalgia da
identificação entre homem e natureza.
Assim, a arte ao mesmo tempo aproxima-se e distancia-se da magia na sociedade
iluminista. Por um lado, para assumir o papel contemplativo e nostálgico, precisa
abdicar da pretensão ao conhecimento efetivo, característico da experiência mágica.
Por outro, não abandona a busca pela totalidade:
a arte fabrica um substitutivo quase perfeito do objeto mágico. Em ambos existe a solicitação da totalidade. A magia invocava o mana, a unidade divina; a arte evoca o todo, ‘pretende o absoluto’.132
Neste ponto, cabe voltar ao conceito de Benjamin sobre a aura da obra de arte –
que é exatamente o elemento que se perde na transição da sociedade iluminista para a
sociedade moderna avançada, com o aprimoramento da reprodutibilidade técnica da
obra de arte. A aura é “herdeira da magia” e a “vocação da totalidade modela cada
verdadeira obra de arte, tal como, outrora, cada simples gesto mágico”.133
Pertence ao sentido da obra de arte, da aparência estética, ser aquilo em que se converteu, na magia do primitivo, o novo e terrível: a manifestação do todo no particular. Na obra de arte volta sempre a se realizar a duplicação pela qual a coisa se manifestava como algo espiritual, como exteriorização do mana. É isto que constitui sua aura.134
Ao que nos parece, então, é possível ter como premissa que a principal
modificação no papel da arte com o advento do capitalismo industrial avançado é a
132 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.51. 133 - Ibid., p.51.
60
perda da sua aura e da sua identificação com a magia. Com a reprodução em massa, a
arte perde seu caráter único, aprofunda o seu caráter de mercadoria e deixa de ser um
elo de ligação com a natureza. É neste recorte específico e com esta questão em mente
que avaliaremos o ponto de vista dos intelectuais de Frankfurt.
4.2.1. Marcuse: arte como promessa de felicidade
Na mais poética das imagens, Marcuse acredita que a arte carrega consigo a
promessa de felicidade. Ele destaca a expressão artística do domínio puramente estético
e a transporta para a vida em seu ideal de sociedade não-repressiva. A dimensão estética
de Marcuse prevê a transformação da própria vida em obra de arte, através do fluxo
livre dos instintos humanos.
Merquior observa que na teoria de Marcuse a arte vem sempre triunfante,
“baseada na expressão tranqüila e plena de uma harmonia superior”.135 A posição de
Marcuse contrasta radicalmente com a de Adorno nesse ponto. Para o segundo, não há
nada de glorioso na arte, ao contrário esta “é a encarnação do desespero, da revolta e da
dilaceração”.136 Além disso, o fenômeno artístico para este restringe-se ao campo da
própria arte e “não a uma projeção do estético em outros planos da atividade
humana”.137
Seguindo Freud, Marcuse reconhece na fantasia o impulso de superar a realidade
humana e reconciliar o homem com a natureza; neste sentido, associa-a à arte, na
medida em que esta é uma forma de expressar e dar forma à primeira:
134 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.32. 135 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.56. 136 - Ibid., p.56.
61
Como processo mental independente e fundamental, a fantasia tem um valor próprio e autêntico, que corresponde a uma experiência própria – nomeadamente, a de superar a antagônica realidade humana. A imaginação visiona a reconciliação do indivíduo com o todo, do desejo com a realização, da felicidade com a razão. Conquanto essa harmonia tenha sido removida para a utopia pelo princípio da realidade estabelecido, a fantasia insiste em que deve e pode tornar-se real, em que o conhecimento está subentendido na ilusão. As verdades da imaginação são vislumbradas, pela primeira vez, quando a própria fantasia ganha forma, quando cria um universo de percepção e compreensão – um universo subjetivo e, ao mesmo tempo, objetivo. Isso ocorre na arte.138
Para ele, a arte também modela a “ ‘memória inconsciente’ da libertação que
fracassou, da promessa que foi traída”.139 Assim, consegue opor a imagem do homem
livre à repressão da sociedade tecnológica, mas - da mesma forma que Adorno –
acredita que a libertação só vem da “negação da não-liberdade”.140 Ou seja, a arte tem o
papel de reaproximar o indivíduo de premissas importantes aprisionadas no inconsciente
e levá-lo ao caminho da crítica à realidade atual. Para conseguir dar conta desse papel a
expressão artística deve estar desvinculada da forma e dos padrões estéticos
estabelecidos:
A própria vinculação da arte à forma vicia a negação da não-liberdade em arte. Para ser negada, a não-liberdade deve ser representada na obra de arte com semblante da realidade. Esse elemento de parecença sujeita, necessariamente, a realidade representada a padrões estéticos e, assim, priva-a do seu terror. Além disso, a forma da obra de arte inculca ao conteúdo as qualidades de fruição de prazer. Estilo, ritmo, métrica, introduzem uma ordem estética que em si mesmo é agradável, reconciliando-se com o conteúdo. A qualidade estética da fruição, mesmo do entretenimento, tem sido inseparável da essência da arte, por mais trágica, por mais intransigente que a obra de arte seja.141
137 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.55. 138 - Marcuse, Herbert. Eros e Civilização. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p.134. 139 - Ibid., p.134. 140 - Ibid., p.134.
62
Mas novamente ao contrário de Adorno, mesmo em seu momento mais
pessimista Marcuse parece não duvidar da arte, acreditando que “a dimensão estética
ainda conserva uma liberdade de expressão que permite ao escritor e ao artista chamar
os homens e as coisas por seus nomes – dar nome ao que seria de outro modo
inominável”.142
4.2.2. Estilo e harmonia, arte e confronto com a tradição
O conceito de estilo segundo Adorno exprime tanto na Idade Média como no
Renascimento a estrutura diversificada do poder social e não uma conformidade a leis
estéticas, idéia que não passa de uma “fantasia romântica retrospectiva”. Para ele, “os
grandes artistas jamais foram aqueles que encarnavam o estilo da maneira mais íntegra e
mais perfeita, mas aqueles que acolheram o estilo em sua obra como uma atitude dura
contra a expressão caótica do sofrimento, como verdade negativa.” 143
Desta forma, o estilo não passa de uma promessa. Por um lado, visa à
universalidade e à harmonia através das formas de expressão artísticas da sociedade, por
outro, não chega a – e nem pode – entregá-las. E o seu valor está exatamente nessa
busca de antemão fracassada: o verdadeiro estilo está sempre próximo à totalidade, mas
não chega a atingi-la e é isso que lhe confere a autenticidade.
é tão-somente neste confronto com a tradição, que se sedimenta no estilo, que a arte encontra expressão para o sofrimento. O elemento graças ao qual a obra de arte transcende a realidade, de fato, é inseparável do estilo. Contudo, ele não consiste na realização da harmonia – a unidade problemática da forma e do conteúdo, do interior e do exterior, do indivíduo e da sociedade -, mas nos traços
141 - Marcuse, Herbert. Eros e Civilização. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p.135. 142 - Marcuse, Herbert. A ideologia da Indústria Cultural. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p.227. 143 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.122.
63
em que aparece a discrepância, no necessário fracasso do esforço apaixonado pela busca da identidade.144
Segundo Adorno, diferentemente da grande obra de arte, a obra medíocre
sempre se ateve à semelhança com outras e “a Indústria Cultural acaba por colocar a
imitação como algo de absoluto. Reduzida ao estilo, ela trai seu segredo, a obediência à
hierarquia social.”145 Sob esse ponto de vista, o estilo da Indústria Cultural representa
para Adorno a própria negação do estilo.
A reconciliação do universal e do particular, da regra e da pretensão específica do objeto, que é a única coisa que pode dar substância ao estilo, é vazia, porque não chega mais a haver uma tensão entre os pólos: os extremos que se tocam passaram a uma turva identidade, o universal pode substituir o particular e vice-versa.146
Adorno defende a inutilidade da arte, o seu distanciamento de qualquer possível
valor de troca. Afastando-se do caráter de mercadoria e da produção material, a arte não
se dirigiria aos aspectos quantitativos. Em detrimento do racionalismo da ciência
positiva, a experiência artística remete aos fins qualitativos, considerados irracionais,
como a felicidade do indivíduo (a promessa de felicidade, mais precisamente). A
inutilidade artística tem o potencial de libertar a natureza de sua condição de simples
meio ou instrumento (ADORNO apud JAPPE, Anselm).
Isso não significa, na opinião de Adorno, que o processo artístico
contemporâneo deve se isolar das forças produtivas. Ao contrário, uma arte aquém do
estágio de seu possível desenvolvimento técnico em uma sociedade – como o jazz, em
144 - Adorno, Theodor W. & Horkheimer Max. A dialética do esclarecimento. Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1985, p.122. 145 - Ibid., p.122. 146 - Ibid., p.122.
64
sua opinião - pode ser considerada “reacionária”, uma vez que não dá conta da
complexidade dos problemas atuais.147
Anselm Jappe afirma que “toda a estética de Adorno baseia-se no fato de que,
também na arte, se encontra a contradição entre o potencial das forças produtivas e seu
uso atual.”148 Assim, a arte configuraria uma forma de dominação da natureza,
submetendo os objetos a uma transformação – em especial a arte moderna, na visão do
frankfurtiano, já que esta promove uma reestruturação da realidade segundo suas
próprias regras. Por outro lado, ao contrário do que faz a tecnologia, a arte domina a
natureza apenas para “lhe restituir seus direitos”, propondo à sociedade “exemplos de
um uso possível de seus meios numa relação com a realidade que não seja de
dominação nem de violência”.149
Adorno também vê no material artístico a semente – e o dever - da ruptura. A
arte só existe na contradição e desta forma não pode ser harmônica. Como observa
Merquior, a homogeneidade é suspeita e torna-se cúmplice da ordem social, devendo ser
denunciada pelo anticonformismo da arte.
Todo grande artista prefere a ruptura à falsa harmonia da forma identificante, assimiladora, igualitária. (...) O preço da autenticidade da obra é a impossibilidade de realização formal completa, a privação da plenitude “clássica”. A verdadeira obra é maneirística; deve conter aquele arrevesamento estilístico em que se mostra a intransigência da arte diante da invasão aplainadora do veneno social.150
Assim, ao contrário de Marcuse, que consegue projetar a arte em sua sociedade
conciliada, a obra de arte para Adorno “só entretém com a paz e com a felicidade a
relação de uma nostalgia incurável; mas o seu desejo quase selvagem de um acordo
147- Jappe, Anselm. O "fim da arte" segundo Theodor W. Adorno e Guy Debord. Disponível em: http://www.rizoma.net. Acesso em: 11 abr 2006. 148 - Ibid. 149 - Ibid.
65
impossível, o seu repúdio indomável da falsa ordem do universo, é a força que a
constrói como linguagem rancorosa da ruptura”.151
Para Adorno a arte é sobretudo a agente da crítica social; a expressão da crise de
valores deixa de ser secundária e torna-se a razão de ser da obra de arte. A qualidade
heróica presente no classicismo de Lukàcs desaparece, pois só pode existir atualmente,
na visão de Adorno, como mera ideologia.
O estilo que testemunha a desumanização não pode transmitir o naturalmente humano, o valor e a qualidade que a repressão destrói ou neutraliza. O estilo que presencia a violência é ele próprio vítima da tortura: é como forma amaldiçoada e retorcida que se recusará a dizer, numa última resistência, num protesto tão raivoso quanto inútil contra a falta de sentido do real.152
Este posicionamento leva Adorno a uma valorização da arte moderna, na medida
em que esta é fiel à realidade da crise da sociedade atual e consegue encarnar um dos
principais papéis da arte em sua opinião, ou seja, chega a ser o negativo da sociedade ao
invés de seu espelho. Adorno deposita nos movimentos de vanguarda o quê de
esperança que lhe resta em relação à expressão artística na era da cultura de massas.
A simpatia pela arte moderna também se deve à sua impossibilidade de absorção
imediata, ao esforço necessário ao seu entendimento. A arte moderna não compactua
com a simplificação imposta pela Indústria Cultural e “exige o emprego da inteligência
para, em troca, premiar a sensibilidade”.153
Freitag afirma que “a partir de Adorno, que havia identificado na obra de arte de
vanguarda (em especial a música) o último reduto ou esconderijo da razão, passou-se a
pensar o tema da cultura e da arte como a última possibilidade de cultivar a razão e
150 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.55. 151 - Ibid., p.56. 152 - Ibid., p.55. 153 - Ibid., p.122.
66
preservá-la da contaminação instrumentalizada”.154 Merquior, por sua vez, critica-o
pelo seu “excessivo apreço pela ruptura”, que acaba por afastá-lo “do equilíbrio
dinâmico dessa dialética”. Ele lembra que entre o apolíneo e o dionisíaco de Nietzsche
havia uma relação de conflito e cooperação que margeava o entendimento e aliava
“maliciosamente os impulsos adversários”. Em Adorno, ao contrário, a balança pesa
para o fragmento em si, sem esperanças de acordo.155
Se por um lado deposita grande responsabilidade na arte, por outro, Adorno não
acredita em sua chance real de sucesso. No fundo, Adorno reconhece que o protesto da
arte – também ele – é ineficaz. Deste modo, a arte constituiria a “expressão da digna,
porém inútil, revolta do indivíduo contra o roubo dos seus direitos à felicidade”.156
4.2.3. Arte na cultura de massas
Como vimos até aqui, a arte na cultura de massas não existe para Marcuse e
Adorno, quer dizer, não existe em conformidade às regras da Indústria Cultural. Parece
ficar claro que, apesar de cogitarem a arte em uma sociedade tecnológica, esta não diz
respeito aos bens culturais de massa. A cultura de massa e os seus produtos não são
considerados arte por nenhum dos dois. O único que parece conviver com essa
possibilidade é Benjamin, em sua experiência inicial com o cinema.
Podemos dizer que a Indústria Cultural é a forma “pela qual a produção artística
e cultural é organizada no contexto das relações capitalistas de produção, lançada no
mercado e por este consumida”.157 A grande questão é que, em seu domínio, a arte
“deixa de ter o caráter único, singular, deixa de ser a expressão da genialidade, do
154 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.119. 155 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.88.
67
sofrimento, da angústia de um produtor (artista, poeta, escritor) para ser um bem de
consumo coletivo, destinado desde o início à venda, sendo avaliado segundo sua
lucratividade ou aceitação de mercado e não pelo seu valor estético, filosófico, literário
intrínseco”.158
Para Marcuse, ao afastar-se da crítica aprofundada e do esforço intelectual,
assim como de uma realidade material de exploração, a arte assume uma função
alienante, “na medida em que faz com que os homens se ajustem e se adequem às
formas desumanas de organização à sociedade, remetendo para o futuro os seus desejos
de felicidade e realização”.159 Segundo Adorno, os bens culturais perdem a
característica primordial da arte: a sua capacidade de ruptura e oferecem em troca o que
ele chama de prazer culinário:
os fragmentos isolados proporcionam apenas um deleite vulgar; diante deles, o prazer estético cede à baixa sensualidade do simplesmente ‘agradável’. Esta forma de fragmentação caracteriza as obras de arte em que o enfraquecimento da estrutura serve ao predomínio do que Adorno chama de sentido culinário. O culinário em arte representa a vitória do “gostoso” sobre a profundidade emotiva e a carga intelectual do verdadeiro processo estético.160
4.2.4. O ponto de vista de Benjamin
A opinião destoante no que diz respeito à arte na sociedade de massas é a de
Benjamin, que pode ser considerado um caso à parte. Ele realiza um diagnóstico
preciso sobre as mudanças na experiência artística, decorrentes, por sua vez, de
alterações profundas na própria sociedade. Para ele, o fim da experiência efetivamente
156 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.131. 157 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.72. 158 - Ibid., p.72. 159 - Ibid., p.69.
68
vivida e a modificação entre as formas de relacionamento dos indivíduos entre si e com
os objetos são determinantes para o papel da arte.
Benjamin avalia que antes da formação da grande cidade “o contato com
desconhecidos conservava o privilégio da surpresa” da mesma forma que a
contemplação da obra de arte conservava “um sabor misterioso”, “reminiscência dos
objetos do culto, as obras de arte apareciam como únicas e longínquas.”161 Para ele, “a
implantação da arte sem aura equivale à degradação das relações humanas”162, processo
sugerido no ensaio de 1939 sobre Baudelaire.163
Mas apesar dessa análise desfavorável, e de forma diretamente contrária aos
demais frankfurtianos, Benjamin consegue enxergar um papel positivo na arte
tecnologicamente reproduzível da era moderna. A posição mais amena de Benjamin é
por isso mesmo mais apreciada pelos intelectuais contemporâneos, como Habermas.
Seu objeto de estudo principal é o cinema, como vimos, que contém para ele o germe
da politização e talvez o potencial “desalienante” em relação às massas.
Dadas as grandes diferenças, há, no entanto, semelhança com a posição de
Adorno no que diz respeito a esse potencial libertador da arte. Para os autores, isso
ocorre na medida em que esta expõe o mundo como ele é, sem idealizações.
No coração da estética expressionista de Adorno e Benjamin, mora a esperança de que, se o mundo for mostrado em toda a sua sinistra carga de violência, o choque resultante leve à revolta contra a injustiça. Esta é para eles a verdadeira contribuição da arte à libertação dos homens.164
160 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.56. 161 - Ibid., 1969, p.89. 162 - Ibid., p.90. 163 - Benjamin, Walter. Obras Escolhidas Volume 3, Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo, Brasiliense, São Paulo, 1989. 164 - Merquior, op. cit., p.118.
69
A lógica é a de que “se os homens forem confrontados com as ruínas do
humano, talvez se recordem das promessas da felicidade”.165
Mas além do aspecto crítico, voltado basicamente para a vida social, Benjamin
enxerga na arte o seu componente universal, que não parece não fazer parte do escopo
de Adorno. Assim, “a compreensão da obra ‘em relação a seu tempo’ é apenas uma
etapa na interpretação e no juízo; não poderá nunca explicar a universalidade do estético
e o seu interesse contemporâneo”.166
No esquema de Benjamin, a arte reflete a luta contra a desumanização e seus aspectos essencialmente históricos, mas reflete, igualmente, certos limites da condição humana que, se não podem propriamente ser chamados “atemporais”, pelo menos acompanham o homem em todas as fases do seu caminho histórico, desde que ele se reconhece como tal. A estética de Benjamin conjuga a noção dos universais da conduta humana com a consciência das raízes históricas da arte. A teoria de Adorno não tem lugar para esse primeiro elemento.167
A estética de Benjamin e sua interpretação sobre a cultura também passam pela
revalorização do conceito de alegoria, que é contraposto ao de símbolo. Segundo
Merquior, o autor “não se limita a contemplar na cultura uma projeção do homem: ele
se apaixona precisamente pelo que a cultura tem de fossilizado, de prescrito, de caduco
e até de morto”.168
Benjamin é um intérprete do não-familiar, um comentador do que se tem habitualmente por não-comentável. Onde a cultura aparece como natureza, o ensaísta entra em contato com a obra, para fazê-la confessar o que nela ficou submerso – e que, na carícia lúcida das mãos que o decifram, reviverá como potencialidade de uma conduta humana.169
165 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.118. 166 - Ibid., p.103. 167 - Ibid., p.135. 168 - Ibid., p.104.
70
Neste sentido, o veículo natural dessa “verdade desprendida da intenção é a
alegoria”.170 Na lógica alegórica, os objetos não estão presos a significados únicos e
fixos: há várias possíveis significações, mutáveis de acordo com o contexto e o tempo
histórico. Não há coincidência entre sujeito e objeto, como no símbolo. A alegoria é, na
verdade, exatamente o contrário dessa fusão perfeita: “é precisamente a representação
em que há distância entre significante e significado, entre o que está dito e o que se quer
dizer”.171
A alegoria, além disso, não está ligada à universalidade e não tem a pretensão de
representar o todo. Merquior observa que as alegorias “correspondem, no reino das
idéias, ao que as ruínas são no reino das coisas”.172 Desta forma, o conceito de alegoria é
“polissêmico, aberto, histórico, hostil a todo gênero de monismo na interpretação da
realidade”.173
Merquior afirma que no esquema de Goethe, a representação por símbolo
implica:
a) uma captação do Todo no particular; b) a coincidência entre o sujeito e o objeto; c) a harmonia entre homem e natureza; d) um efeito comunicativo direto, que prescinde de comentário decifrador; e) o amor ao aspecto sensível, concreto, do representado; e f) a revelação de algo em última análise inexprimível, pois o símbolo, por mais significativo que nos pareça, contém sempre uma inesgotável reserva de sentido.174
Com isso, o símbolo contrasta diretamente com a alegoria, “que não procede por
fusão do subjetivo com o objetivo nem do homem com o meio natural, não dispensa
exegese, é abstrata, desinteressada do sensível, e se cristaliza em conceitos, sem nenhum
169 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.104. 170 - Ibid., p.104. 171 - Ibid., p.106. 172 - Ibid., p.104. 173 - Ibid., p.110.
71
sentido inesgotável”.175 Enquanto o símbolo tem uma natureza plástica, atrelando a idéia
a sua forma adequada, a alegoria é temporal, “porque sempre exprime algo diverso do
que se pretendia dizer com ela”.176
A alegoria é estranha a esse tipo de atingimento direto do universal. O objeto alegórico é representação de outro, e até de vários outros, mas não do todo. A alusividade da alegoria é pluralista e não monista: ela remete à diversidade, não a uma suposta unidade do diverso.177
4.2.5. Adorno x Debord
Anselm Jappe faz um interessante paralelo entre as posições de Adorno e Guy
Debord sobre o papel da arte na sociedade de massas. Em alguns pontos importantes, a
questão é vista de forma semelhante: assim como Adorno, Debord problematiza a
atitude de mera contemplação da arte na sociedade espetacular e lamenta a sua
transformação em mercadoria. Além disso, ambos enxergam potenciais
transformadores no processo artístico.
A grande diferença fica sob o ponto de vista da possibilidade de sobrevivência
da arte na era da cultura de massas ou até mesmo da sua legitimidade. Para Debord, “a
cultura é o lugar da busca da unidade perdida” e a sua história também é a história da
revelação de sua insuficiência, “como uma marcha para sua auto-supressão”.178
O fim da história da cultura manifesta-se por dois lados opostos: o projeto de sua superação na história total e sua manutenção organizada como objeto morto, na contemplação espetacular. Um desses
174 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.105. 175 - Ibid., p.105. 176 - Ibid., p.104. 177 - Ibid., p.106. 178 - Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Contraponto Ed., Rio de Janeiro, 1997, p.120.
72
movimentos ligou seu destino à crítica social; o outro à defesa do poder de classe.179
No artigo O "fim da arte" segundo Theodor W. Adorno e Guy Debord, Jappe
afirma que, para Debord, a arte moderna chega ao apogeu e termina com Dada e os
surrealistas.180 Essas vanguardas estéticas realizaram uma última tentativa desesperada
de suprimir e, ao mesmo tempo, realizar a arte. Com o seu fracasso e também com o
fracasso do movimento proletário e das vanguardas políticas, a arte perde a razão de ser:
“compreende-se a si mesma como alienação, como projeção da atividade humana numa
entidade separada” e, “para quem quiser ser fiel ao sentido da cultura, não resta outro
remédio senão negá-la como cultura e realizá-la na teoria e na prática da crítica
social”.181 Assim, Debord atesta o fim da arte na sociedade contemporânea.
Adorno não chega a tamanha ousadia. Avalia que o processo artístico encontra-
se em dificuldades, chega até a questionar o seu direito de existência, mas não vai além.
Não decreta o fim da arte e de forma nenhuma compartilha a posição de transportá-la
para a prática, considerando essa visão totalitária.
Para o autor, o problema do protesto contra a arte não está no ataque à ordem
social e estética existente, mas na crença de que a atitude de abolir a arte reflete, na
verdade, a conformidade com o sistema. Em Teoria Estética Adorno afirma que "a
abolição da arte numa sociedade semibárbara e que avança para a completa barbárie
converte-se em sua colaboradora" (ADORNO apud JAPPE) e apesar de visitar a idéia da
impossibilidade de se produzir arte após Auschwitz, enxerga-a ao mesmo tempo como
um último refúgio contra a sociedade industrial avançada. A postura de Adorno foi alvo
179 - Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Contraponto Ed., Rio de Janeiro, 1997, p.121. 180 - Jappe, Anselm. O "fim da arte" segundo Theodor W. Adorno e Guy Debord. Disponível em: http://www.rizoma.net. Acesso em: 11 abr 2006. 181 - Ibid.
73
de críticas pelos movimentos de contestação radical, que o acusavam de recolher-se à
teoria e negar a práxis política.
Referindo-se principalmente à arte moderna, Adorno acredita que a obra de arte
deve sua função crítica precisamente à sua inutilidade prática, como vimos
anteriormente: não serve “nem para a ampliação dos conhecimentos, nem para o prazer
imediato, nem para a intervenção direta na práxis.” Para ele, "só quem não se submete
ao princípio da troca defende a ausência de dominação: apenas o inútil representa o
valor de uso atrofiado”; neste sentido, “as obras de arte representam o que seriam as
coisas uma vez que deixassem de ser deformadas pela troca". (ADORNO apud JAPPE)
Voltando a Debord, este enxerga na arte, assim como Adorno, uma
representação das potencialidades da sociedade e acredita que as relações tradicionais
que contradizem o desenvolvimento necessário das forças produtivas devem ser
combatidas. A diferença é que para o primeiro o processo de inovação chegou a um
esgotamento, já que cada nova descoberta torna inútil a sua repetição posterior. Além
disso,
o desdobramento paralelo das forças produtivas extra-estéticas transpôs um patamar decisivo, criando a possibilidade de uma sociedade já não inteiramente dedicada ao trabalho produtivo, uma sociedade que teria tempo e meios para "brincar" e entregar-se às "paixões". A arte, enquanto simples representação de tal uso possível dos meios, a arte enquanto sucedânea das paixões, estaria, portanto, superada. Assim como o progresso das ciências tornou a religião supérflua, a arte demonstra ser, em seu progresso posterior, uma forma limitada da existência humana. (DEBORD apud JAPPE)
Outro ponto significativo de delimitação entre os dois autores diz respeito ao
conceito de alienação: para Adorno a arte continua funcionando como pilar de
resistência à "alienação"; Debord, por outro lado, não acredita mais nessa capacidade.
Jappe observa que isso se deve em parte porque Debord conceitua alienação como “o
74
alheamento da subjetividade”, enquanto que para Adorno “a própria subjetividade pode
converter-se facilmente em alienação”.182
Debord apropria-se da análise do fetichismo da mercadoria de Lukács -
posteriormente abandonada pelo segundo por levar ao erro de considerar toda
objetividade como alienação - em que se “atribui à mercadoria, enquanto coisa sensível
e trivial, as propriedades das relações humanas que presidiram sua produção.”183 A
expansão da lei da mercadoria sobre a sociedade “coisifica” e domina os indivíduos,
aprisionando-os em relações passivas e objetivas com a realidade. Segundo Jappe,
“nem Debord nem o Lukács de História e consciência de classe duvidam de que possa
existir uma subjetividade ‘sã’ , não-reificada, a qual situam no proletariado e cuja
definição oscila entre categorias sociológicas e filosóficas”.184
Para Adorno, ao contrário, o que aliena o sujeito de seu mundo é justamente o ‘subjetivismo’, a propensão do sujeito a ‘devorar’ o objeto. Sujeito e objeto não formam uma dualidade última e insuperável nem podem ser reduzidos a uma unidade como o ‘ser’, mas constituem-se reciprocamente. As mediações objetivas do sujeito são, contudo, mais importantes que as mediações subjetivas do objeto, já que o sujeito continua sendo sempre uma forma de ser do objeto; ou, em termos mais concretos: a natureza pode existir sem o homem, mas o homem não pode existir sem a natureza. (ADORNO apud JAPPE) (...) O ‘pensamento identificante’ conhece uma coisa determinando-a como exemplar de uma espécie; porém, desse modo, não encontra na coisa senão o que o próprio pensamento nela introduziu, e nunca pode conhecer a verdadeira identidade do objeto.185
Na tradução de Jappe, Adorno atesta que “num mundo em que todo objeto é
igual ao sujeito, o sujeito torna-se um mero objeto, uma coisa entre as coisas” e que
apenas a arte teria a capacidade de “contribuir para a superação do sujeito dominador”,
182 - Jappe, Anselm. O "fim da arte" segundo Theodor W. Adorno e Guy Debord. Disponível em: http://www.rizoma.net. Acesso em: 11 abr 2006. 183 - Ibid. 184 - Ibid.
75
reconciliando sujeito e objeto. Apenas na experiência artística o sujeito poderia
“desenvolver-se livremente e dominar seu material sem violentá-lo, o que significa
sempre, em última instância, violentar-se a si mesmo”.186
Jappe também observa que Debord concorda com Adorno no valor da pura
negatividade aplicada à arte no período entre 1850 a 1930, mas no que diz respeito ao
período atual, o primeiro acredita ser possível passar à positividade, “pois, ainda que
não se tenha produzido uma melhora efetiva da situação social, estão dadas as condições
para isso”.187 Para Adorno, ao contrário, essa reconciliação só é possível na obra de arte.
185 - Jappe, Anselm. O "fim da arte" segundo Theodor W. Adorno e Guy Debord. Disponível em: http://www.rizoma.net. Acesso em: 11 abr 2006. 186 - Ibid. 187 - Ibid.
76
5 – Debord e o Espetáculo __________________________________________________________________________________________________________
A vitória do sistema econômico da separação é a proletarização do mundo”.188
5.1. Debord – apoio e contraponto
Em 1967, Guy Debord publicou a sua própria visão sobre a Indústria Cultural e
o sistema vigente, a que chamou de “Sociedade do Espetáculo. Mais radical e agressivo
em seus argumentos, Debord aproxima-se novamente de Marx em um momento em que
os frankfurtianos já o haviam deixado de lado. Debord parece mais prático e suas idéias
sobre os malefícios da cultura de massa seguem alguns caminhos não trilhados pelos
demais intelectuais.
Antes de continuarmos, cabe, no entanto, uma breve explicação das posições
políticas de Debord e da Internacional Situacionista, grupo criado, liderado e extinto por
ele.
A Internacional Situacionista foi fundada em 1958 e dissolvida em 1972 e não
reuniu mais que setenta membros. Tinha como projeto político a crítica radical da vida
cotidiana no capitalismo, e propunha a desmontagem do capitalismo enquanto
civilização. Como fica evidenciado pela quantidade de participantes, não se pretendia
como um grupo político hegemônico, mas queria antes “afrontar as vicissitudes dos
projetos revolucionários de seu tempo no sentido de anunciar-lhes a derrota antecipada,
já que a ontologia política de tais movimentos apresentava-se como face da mesma
moeda das sociabilidades do projeto burguês”.189
188 - Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Contraponto Ed., Rio de Janeiro, 1997, p.22. 189 - Revista Espaço Acadêmico da UFG, número 48.
77
O movimento situacionista punha-se não só como o negativo da sociabilidade burguesa, mas também como o negativo daqueles que se antepunham ‘formalmente’ a tal sociabilidade; o situacionismo quis-se como o negativo das negações formais (vide as práticas políticas dos socialismos contemporâneos) da sociedade burguesa.190
Debord defendia a revolução da vida cotidiana, cujo sujeito seria o proletariado
e cujo espaço seria não apenas o da produção mas o da vida social como um todo.
Assim como os frankfurtianos, propunha a recusa em bloco às condições existentes e foi
uma das bases intelectuais e materiais mais importantes do movimento estudantil de
1968.
Também é bem-vinda uma contextualização da obra de Debord em relação aos
demais frankfurtianos, o que faremos com o pensamento de Adorno. Segundo Anselm
Jappe, nenhum livro de Adorno foi traduzido para o francês antes de 1974, ano em que a
teoria situacionista já estava elaborada; e em sua opinião dificilmente o alemão teve a
oportunidade de conhecer os textos de Debord. Posto isso, há grande semelhança entre o
tema central do espetáculo de Debord e o da Indústria Cultural de Adorno e
Horkheimer, ou seja, a recusa absoluta ao diálogo com a sociedade capitalista e a
análise de todos os seus malefícios. O ponto de divergência fica por conta do papel da
arte, como vimos anteriormente. Para Jappe, “Debord e Adorno reconhecem no que
descrevem uma falsa forma de coesão social, uma ideologia tácita apta para criar um
consenso acerca do capitalismo ocidental, um método para governar uma sociedade e,
finalmente, uma técnica para impedir que os indivíduos, que estão tão maduros para a
emancipação como o estado das forças produtivas, tomem consciência disso.”191 Da
mesma forma,
190 - Revista Espaço Acadêmico da UFG, número 48. 191 - Jappe, Anselm. O "fim da arte" segundo Theodor W. Adorno e Guy Debord. Disponível em: http://www.rizoma.net. Acesso em: 11 abr 2006.
78
a infantilização dos espectadores não é um efeito secundário do espetáculo ou da Indústria Cultural e, sim, a realização de seus objetivos antiemancipatórios: segundo Adorno, o ideal da Indústria Cultural é ‘rebaixar o nível mental dos adultos ao de crianças de onze anos’; segundo Debord, no espetáculo, a necessidade de imitação que o consumidor sente é justamente a necessidade infantil.192
Vários pontos debatidos pelos frankfurtianos são encontrados aqui: a constatação
do fim da experiência vivida, o mundo da mercadoria, os mecanismos de manipulação
da sociedade de massas, a diferenciação entre as horas de trabalho e as horas de lazer, a
análise do controle impessoal realizado pelo sistema, entre outros pontos.
5.2. Teoria social
Como mencionamos, Debord é mais radical e está envolvido de forma muito
mais prática com a luta de classes. O autor confia na negação – possivelmente inspirado
em Adorno e Marcuse -, mas apenas se ela produzir efeitos materiais. Segundo Debord,
“a teoria crítica do espetáculo só se torna verdadeira ao unificar-se à corrente prática da
negação na sociedade.”193
Sem dúvida, o conceito crítico de espetáculo pode também ser divulgado em qualquer fórmula vazia da retórica sociológico-política para explicar e denunciar abstratamente tudo, e assim servir à defesa do sistema espetacular. Porque é evidente que nenhuma idéia pode levar além do espetáculo existente, mas apenas além das idéias existentes sobre o espetáculo.194
Para Debord, o sistema capitalista deveria ser derrubado e isso só ocorreria
através da conscientização dos trabalhadores. Nisso há outra diferença de tom em
relação aos frankfurtianos, um pouco menos crentes no potencial teórico das massas.
192 - Jappe, Anselm. O "fim da arte" segundo Theodor W. Adorno e Guy Debord. Disponível em: http://www.rizoma.net. Acesso em: 11 abr 2006. 193 - Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Contraponto Ed., Rio de Janeiro, 1997, p.131.
79
Debord acredita que a burguesia chegou ao poder por ser a classe da economia que se
desenvolve e que o proletariado só alcançará esse poder se se tornar a classe da
consciência. Segundo ele, a revolução proletária depende de que a teoria seja pela
primeira vez reconhecida e vivida pelas massas, “ela exige que os operários se tornem
dialéticos e inscrevam seu pensamento na prática”.195 Assim, a luta de classes
revolucionária deveria desenvolver a crítica do espetáculo, que seria a “teoria de suas
condições reais, das condições práticas da opressão atual”.196
A vitória atual do sistema capitalista é conseguida sobretudo através da
separação entre o trabalhador e o que ele produz. Desta forma, o indivíduo perde o
ponto de vista unitário sobre o que produziu e sobre o processo produtivo, além da
comunicação direta com os demais produtores. Com isso, os atributos decisivos da
unidade e da comunicação tornam-se exclusividade da direção do sistema. Por este
motivo, não há outra saída, segundo Debord, que não a luta de classes. Para ele, o
sujeito só pode emergir da luta que existe dentro sociedade.
Por outro lado, e ao contrário de Marx, Debord não aguarda a ruína inevitável do
sistema capitalista e nem acredita que a classe operária esteja destinada à revolução,
como ainda parece crer o primeiro. A teoria crítica da Sociedade do Espetáculo não
espera milagres da classe operária e “considera a nova formulação e a realização das
exigências proletárias como uma tarefa de grande fôlego”, onde “o caminhar obscuro e
difícil da teoria crítica deverá ser também o apanágio do movimento prático agindo na
escala da sociedade”.
Guy Debord também consegue fazer uma leitura ampla dos efeitos do sistema
capitalista sobre o mundo, analisando os movimentos históricos recentes e a situação
nos países periféricos. Para ele, o espetáculo dá a ilusão de que as sociedades são
194 - Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Contraponto Ed., Rio de Janeiro, 1997, p.131. 195 - Ibid., p.85.
80
completamente distintas e isoladas, e que os países do bloco socialista ou
subdesenvolvidos podem fugir à sua ordem. Isso cria, em sua opinião, as “falsas lutas
espetaculares”, mas
na condição real de setores particulares, a verdade de sua particularidade reside no sistema universal que as contém: no movimento único que transforma o planeta em seu campo, o capitalismo.197
Além disso, a dominação sobre as regiões subdesenvolvidas não se dá apenas
pelo poder econômico, mas também – e sobretudo – pelo poder do espetáculo
propriamente dito. Ele observa que mesmo nos lugares onde a base material ainda está
ausente, a sociedade moderna já invadiu espetacularmente a superfície social. Isso
acontece seja na definição do programa das classes dirigentes, seja no condicionamento
das mercadorias a serem desejadas, seja na apresentação de falsos modelos de
revolução.
Para ele o poder burocrático também faz parte do espetáculo, “como sua
pseudonegação geral, e seu sustentáculo”. Essas especializações totalitárias do discurso
e da administração sociais “acabam se fundindo, no nível do funcionamento global do
sistema, em uma divisão mundial das tarefas espetaculares”.198 Segundo Debord, o
stalinismo, que extingue a verdade e a realidade em prol da ideologia totalitária, não
passa de um “primitivismo local do espetáculo”, que da mesma forma que as sociedades
subdesenvolvidas compõe o jogo do espetáculo mundial.
Sobre o fascismo, enxerga-o como uma reação da sociedade capitalista à
subversão proletária, tendo copiado a forma de organização do stalinismo e o ajudado a
destruir o movimento operário. Em trecho que poderia ter sido escrito por Adorno e
196 - Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Contraponto Ed., Rio de Janeiro, 1997, p.131. 197 - Ibid., p.38.
81
Horkheimer, Debord afirma que o nazismo “apresenta-se como aquilo que é: uma
ressurreição violenta do mito, que exige a participação em uma comunidade definida
por pseudovalores arcaicos: a raça, o sangue, o chefe”.199
Debord parecia realmente acreditar que os acontecimentos de 1968,
principalmente através da ação do grupo extremista IS, poderiam levar a humanidade a
uma mudança histórica e o proletariado a realmente cumprir o seu papel revolucionário.
Os situacionistas foram capazes de propor a única teoria da temível revolta de maio; e a única que apresentava novas acusações estrepitosas, que ninguém havia feito. Quem lamenta o consenso? Nós o liquidamos”.200
Finalmente, percebe-se também que a teoria social de Debord, ao menos na
teoria, não acaba na revolução. Apesar de defender a luta de classes, a “tomada” de
poder pelos trabalhadores, o estágio de equilíbrio imaginado após o momento de
conflito é a democracia. Para ele é preciso emancipar-se do espetáculo, mas nem o
indivíduo isoladamente nem a multidão sujeita a manipulação são capazes de realizar
esse feito. Esse papel caberia ao que ele chama de “Conselho”, ou seja, a democracia –
a classe “capaz de ser a dissolução de todas as classes” e na qual “a teoria prática
controla a si mesma e vê sua ação”.
5.3. Características da Sociedade do Espetáculo
Para Debord, a Sociedade do Espetáculo é exatamente o contrário da sociedade
sem classes, em que os trabalhadores conseguem ter a posse direta de seus momentos de
atividade. É o lugar da separação do trabalho e da alienação das massas e da
198 - Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Contraponto Ed., Rio de Janeiro, 1997, p.38. 199 - Ibid., p.75.
82
“conservação da inconsciência na mudança prática das condições de existência.”201 É
onde o poder separado desenvolve-se em si mesmo, “no crescimento da produtividade
por meio do refinamento incessante da divisão do trabalho em gestos parcelares,
dominados pelo movimento independente das máquinas; e trabalhando para um
mercado cada vez mais ampliado”.202 Segundo o autor, é “a afirmação onipresente da
escolha já feita na produção, e o consumo que decorre dessa escolha.” No espetáculo,
forma e conteúdo são “a justificativa total das condições e dos fins do sistema
existente”.203
Para Debord, o espetáculo é o herdeiro da fraqueza do projeto filosófico
ocidental. Ele é a tentativa frustrada da ciência positiva de explicar e libertar o mundo
através da razão tecnológica. Mas ao invés de emancipar utilizando-se da tecnologia, a
sociedade capitalista tornou-se muito mais um fórum para a “incessante exibição da
racionalidade técnica específica que decorreu desse pensamento”.204 A racionalidade
técnica deixou de ser um instrumento para a busca da verdade e tornou-se, enquanto
espetáculo, a única verdade – ou melhor, a única realidade.
Ao que parece, o espetáculo é algo mais amplo do que a Indústria Cultural, ou
talvez resulte de um aperfeiçoamento do conceito. Ao invés de ser um instrumento, ou
o sustentáculo do sistema, como a segunda, o espetáculo confunde-se com o próprio
capitalismo ou ainda, como sugere Debord, confunde-se com o momento histórico que
nos contém. Constitui-se de uma “enorme positividade, indiscutível e inacessível”.205 É
seu próprio produto e é “pseudo-sagrado”.
200 - Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Contraponto Ed., Rio de Janeiro, 1997, p.151. 201 - Ibid., p.21. 202 - Ibid., p.21. 203 - Ibid., p.21. 204 - Ibid., p.19. 205 - Ibid., p.16.
83
O espetáculo apresenta-se ao mesmo tempo como a própria sociedade, como uma parte da sociedade e como instrumento de unificação. Como parte da sociedade, ele é expressamente o setor que concentra todo olhar e toda consciência. Pelo fato de esse setor estar separado, ele é o lugar do olhar iludido e da falsa consciência: a unificação que realiza é tão somente a linguagem oficial da separação generalizada.206
Além disso, não há um objetivo espetacular definido, ele é um fim em si mesmo.
Para Debord, “a sociedade que se baseia na indústria moderna não é fortuita ou
superficialmente espetacular, ela é fundamentalmente espetaculoísta. No espetáculo,
imagem da economia reinante, o fim não é nada, o desenrolar é tudo. O espetáculo não
deseja chegar a nada que não seja ele mesmo.”207
Debord também identifica ainda na década de 60 a crescente impossibilidade de
se extrapolar o espetáculo. Não é possível ignorá-lo ou viver a sua margem, como
Adorno e Horkheimer ainda pareciam acreditar na Dialética do Esclarecimento. Estes
já haviam identificado como as ciências humanas absorviam a linguagem da razão
tecnológica; Debord vai mais além e mostra que a própria análise do espetáculo é feita
através da linguagem do espetacular, obrigando o interlocutor a passar “para o terreno
metodológico dessa sociedade que se expressa pelo espetáculo.”208
5.4. Razão tecnológica
Como temos observado, o espetáculo ou a Indústria Cultural são vistos como
conseqüência da evolução da razão tecnológica. Isso traz à questão um quê de
fatalismo, como se a História não pudesse ter progredido de outra maneira e também
leva a uma certa passividade, já que parece não haver muito que fazer.
206 - Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Contraponto Ed., Rio de Janeiro, 1997, p.14. 207 - Ibid., p.17. 208 - Ibid., p.16.
84
Guy Debord, no entanto, tem outra visão sobre o assunto. Para ele, o espetáculo
não é o produto necessário do desenvolvimento técnico: “ao contrário, a sociedade do
espetáculo é a forma que escolhe seu próprio conteúdo técnico”.209 E neste sentido
escolhe aquela que é mais capaz de reforçar as estruturas vigentes.
Se o espetáculo, tomado sob o aspecto restrito dos ‘meios de comunicação de massa’, que são sua manifestação superficial mais esmagadora, dá a impressão de invadir a sociedade como simples instrumentação, tal instrumentação nada tem de neutra: ela convém ao automovimento total da sociedade. Se as necessidades sociais da época na qual se desenvolvem essas técnicas só podem encontrar satisfação com sua mediação, se a administração dessa sociedade e qualquer contato entre os homens só se podem exercer por intermédio dessa força de comunicação instantânea, é porque essa ‘comunicação’ é essencialmente unilateral; sua concentração equivale a acumular nas mãos da administração do sistema os meios que lhe permitem prosseguir nessa precisa administração.210
5.5. O fim da experiência vivida
Debord aprofunda a questão do fim da experiência levantada principalmente por
Benjamin, entre os frankfurtianos. Para ele, com o espetáculo, tudo o que era vivido
diretamente pelos indivíduos tornou-se uma representação. A vida na sociedade
transforma-se em “uma imensa acumulação de espetáculos”.211 Não há centralização,
não há unidade, mas apenas uma colcha de retalhos de percepções visuais e ideologia.
As partes somadas não formam mais um todo:
As imagens que se destacaram de cada aspecto da vida fundem-se num fluxo comum, no qual a unidade dessa mesma vida já não pode ser restabelecida. A realidade considerada parcialmente apresenta-se em sua própria unidade geral como um pseudomundo à parte, objeto de mera contemplação.212
209 - Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Contraponto Ed., Rio de Janeiro, 1997, p.20. 210 - Ibid., p.20. 211 - Ibid., p.13. 212 - Ibid., p.13.
85
O mundo deixa de ser real e torna-se uma sucessão de imagens. Quando isso
acontece, essas “simples imagens tornam-se seres reais e motivações eficientes de um
comportamento hipnótico”.213 O espetáculo utiliza-se da tecnologia para fazer ver aquilo
que já não se pode tocar diretamente. Isso resulta em um empobrecimento e no
processo de negação da vida real.
Segundo Debord, a realidade vivida é invadida por essa contemplação do
espetáculo e acaba por retomar em si a ordem espetacular. Ou seja, realidade e
espetáculo acabam por se fundir: “a realidade surge no espetáculo, e o espetáculo é real.
Essa alienação recíproca é a essência e a base da sociedade existente”.214 Assim, quanto
mais o espectador contempla, menos ele vive; “quanto mais aceita reconhecer-se nas
imagens dominantes da necessidade, menos compreende sua própria existência e seu
próprio desejo”.215
Para Debord, o espetáculo é “a expressão da separação e do afastamento entre o
homem e o homem”.216 As “vedetes”, ou seja, os modelos de identificação com a vida
devem compensar o estilhaçamento das especializações produtivas de fato vividas. Mas
elas não cumprem o seu papel, na medida em que não são o indivíduo, mas o seu oposto
– ao compactuarem com o espetáculo, renunciaram a toda qualidade autônoma para
identificaram-se “com a lei geral de obediência ao desenrolar das coisas.”217
Voltando de certa forma ao debate sobre a técnica, Debord critica mais uma vez
a sociologia por sua tentativa de isolar a racionalidade industrial do conjunto da vida
social e quase concluir que a sociedade espetacular “têm como causa o infeliz encontro,
quase fortuito, de um imenso aparato técnico de difusão das imagens, com a imensa
213 - Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Contraponto Ed., Rio de Janeiro, 1997, p.18. 214 - Ibid., p.15. 215 - Ibid., p.24. 216 - Ibid., p.138.
86
atração dos homens de nossa época pelo pseudo-sensacional”.218 Como já vimos,
Debord discorda dessa visão fatalista e acredita que essa atração decorre simplesmente
do fato de que os homens não vivem mais acontecimentos reais.
Porque a própria história assombra a sociedade moderna como um espectro, surge uma pseudo-história construída em todos os níveis do consumo da vida, para preservar o equilíbrio ameaçado do atual tempo congelado.219
5.6. Alienação, mundo da mercadoria
Já afirmamos que as principais questões dos intelectuais alemães relativas à
Indústria Cultural - ou ao espetáculo - também são recorrentes em Debord. A questão
do fetichismo da mercadoria, por exemplo, que na verdade vem de Marx, tem destaque
no texto. Para Debord, o “espetáculo é o momento em que a mercadoria ocupou
totalmente a vida social”.220
Neste aspecto, porém, ao contrário do que ocorre em outras questões como o fim
da experiência ou a tecnologia, Debord não acrescenta muita coisa de novo ao debate
sobre a Indústria Cultural.
O autor afirma que o princípio do fetichismo da mercadoria se realiza
completamente no espetáculo, “no qual o mundo sensível é substituído por uma seleção
de imagens que existe acima dele, e que ao mesmo tempo se fez reconhecer como o
sensível por excelência”.221 A questão da criação de necessidades também é abordada
de forma semelhante à dos frankfurtianos, talvez a novidade fique com a criação do
conceito de “sobrevivência ampliada”, que se refere à abundância de mercadorias em
217 - Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Contraponto Ed., Rio de Janeiro, 1997, p.40. 218 - Ibid., p.129. 219 - Ibid., p.129. 220 - Ibid., p.30. 221 - Ibid., p.28.
87
um nível muito além da necessidade humana. Para ele, o poder econômico transformou
o trabalho humano em trabalho-mercadoria, resultando em uma abundância que resolve,
mas excede a sobrevivência. A necessidade sempre volta a aparecer e sempre em um
grau superior.
O crescimento econômico libera as sociedades da pressão natural, que exigia sua luta imediata pela sobrevivência; mas, agora, é do libertador que elas não conseguem se liberar.222
As forças do poder econômico suprimem a necessidade, “a base imutável das
sociedades antigas”223, pelo desenvolvimento econômico infinito. Com isso substituem
essas necessidades “legítimas” por pseudonecessidades, que têm na verdade a única
função de reforçar o sistema. Essas pseudonecessidades não são comparáveis aos
“desejos autênticos” e representam uma ruptura absoluta com o desenvolvimento
orgânico das necessidades sociais. Para Debord, “sua acumulação automática libera um
artificial ilimitado, diante do qual o desejo vivido fica desarmado”224, modificando e
reconstruindo a todo instante o espaço da mercadoria.
Debord também destaca a perda de qualidade (preocupação bastante evidente
em Adorno, principalmente) em detrimento da quantidade. Para ele isso apenas traduz
o caráter fundamental “da produção real que afasta a realidade”. A mercadoria é a
“igualdade confrontada consigo mesma, a categoria do quantitativo”.225
Há ainda referência ao controle impessoal, descrito por Marcuse. Ao falar sobre
a produção de alienação conseqüente da expansão da Indústria Cultural e da forma do
222 - Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Contraponto Ed., Rio de Janeiro, 1997, p.29. 223 - Ibid., p.34. 224 - Ibid., p.45. 225 - Ibid., p.28.
88
espetáculo na sociedade, Debord afirma que “o que cresce com a economia que se move
por si mesma só pode ser a alienação que estava em seu núcleo original”.226
226 - Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Contraponto Ed., Rio de Janeiro, 1997, p.24.
89
6- O Desencantamento __________________________________________________________________________________________________________
Como vimos, os frankfurtianos foram pouco a pouco perdendo a confiança nos
benefícios da tecnologia e na aplicação coerente da ciência positiva. Mas reforçamos
novamente o gradualismo do processo e o fato de que isso não ocorreu de forma
simultânea.
Adorno e Horkheimer já mostravam uma desconfiança maior que a de seus
companheiros na Dialética do Esclarecimento. A humanidade afundava em “uma
espécie de barbárie”, acreditavam. De qualquer modo, apesar do diagnóstico sombrio,
esse texto ainda vislumbra possibilidades de a ciência positiva retornar a suas origens
libertárias. Marcuse, do mesmo modo, não cogita diálogo com o sistema capitalista,
mas cria a sua utopia de sociedade feliz em Eros e Civilização.
Assim, houve um momento em que a teoria crítica de Frankfurt acreditava, ainda
que literalmente mais no plano da teoria, em uma sociedade em que a tecnologia e a
ciência fossem utilizadas para suprir não só as necessidades materiais, mas também as
do espírito, levando os indivíduos à emancipação. Como vimos, a arte e a política
teriam um papel fundamental no caminho até essa civilização. O grande inimigo comum
era o sistema capitalista e, quando ele fosse superado, haveria espaço para a
concretização de tais possibilidades.
O pensamento negativo, assim como a arte, guardava o dever de defender os
últimos resquícios do pensamento livre na sociedade tecnológica, fosse através da
dialética da negação – do movimento questionador e por isso mesmo libertador – ou
através do protesto e da construção artística.
90
O desencantamento dos frankfurtianos com a viabilidade da implantação de suas
teorias no mundo contemporâneo, no entanto, os conduz a um pessimismo extremo, que
é apontado como uma de suas principais limitações.
6.1. Marcuse: Eros e Civilização fica para trás
Em prefácio de 1966 a uma nova edição de Eros e Civilização, Marcuse já
mostra um tom menos otimista, esclarecendo e se reposicionando em relação a alguns
aspectos do livro.
O autor deve o anterior tom positivo à crença de que “as realizações da
sociedade industrial avançada habilitariam o homem a inverter o rumo do progresso”227,
rompendo as associações fatais de produtividade e destruição, liberdade e repressão.
Isso porque, em sua percepção, o fundamento lógico para a dominação dos indivíduos
havia deixado de existir, e a necessidade pelo trabalho era artificialmente perpetuada
pelo sistema no sentido de preservá-lo.
No texto de 66, Marcuse admite ter minimizado “o fato desse fundamento lógico
‘obsoleto’ ter sido amplamente reforçado (se não substituído) por formas ainda mais
eficientes de controle social”.228 Ou seja, “as próprias forças que tornaram a sociedade
capaz de amenizar a luta pela existência serviram para reprimir nos indivíduos a
necessidade de tal libertação”.229
A sobrevivência e o patriotismo já não eram discursos adequados ao
convencimento das massas, mas ficou claro para Marcuse que mecanismos ainda mais
poderosos haviam sido desenvolvidos para justificar a necessidade ininterrupta de
produção de mercadorias supérfluas, base da sobrevivência da sociedade. Assim, o
227 - Marcuse, Herbert. Eros e Civilização. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p.13. 228 - Ibid., p.13.
91
autor percebe a utilização da libido e do instinto de destruição no processo de cooptação
das massas ao sistema capitalista.
O ‘látego econômico’, mesmo em suas formas mais refinadas, já deixou de ser adequado, ao que parece, para garantir a continuidade da luta pela existência na organização antiquada de hoje, assim como as leis e o patriotismo também já não parecem apropriados para assegurar um apoio popular ativo à cada vez mais perigosa expansão do sistema. A administração científica das necessidades instintivas converteu-se, desde há muito, em fator vital na reprodução do sistema: a mercadoria que tem de ser comprada e usada traduz-se em objetos da libido; e o Inimigo nacional, que tem de ser combatido e odiado, é destorcido e inflado a tal ponto que pode ativar e satisfazer a agressividade na dimensão profunda do inconsciente.230
Desta forma, o controle social abandona a força, agora desnecessária, e
contabiliza a adesão voluntária de colaboradores, já que a servidão tornou-se cada vez
mais compensadora e agradável. Para Marcuse, essa palatabilidade do sistema e sua
reprodução aprimorada, mais ainda – a conivência dos indivíduos com o sistema -,
representam o fim de outros “sistemas possíveis de vida que poderiam extinguir servos
e senhores, assim como a produtividade de repressão”.231 Ele observa que a maioria das
pessoas está ao lado da continuidade, ao lado “daquilo que é – não com o que podia e
devia ser”. Os próprios trabalhadores, os sujeitos históricos da revolução, converteram-
se em mão-de-obra sindicalizada e atuante em defesa do status quo.
O fato de a grande maioria de a população aceitar e ser levada a aceitar essa sociedade não a torna menos irracional e menos repreensível. A distinção entre consciência verdadeira e falsa, entre interesse real e imediato, ainda tem significado. O homem tem de vê-la e passar da consciência falsa para a verdadeira, do interesse imediato para o interesse real. Só poderá fazê-lo se viver com a necessidade de modificar o seu estilo de vida, de negar o positivo, de recusar. É precisamente essa necessidade que a sociedade estabelecida consegue reprimir com a intensidade com que é capaz de ‘entregar as mercadorias’ em escala cada vez maior, usando a
229 - Marcuse, Herbert. Eros e Civilização. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p.13. 230 - Ibid., p.13. 231 - Ibid., p.15.
92
conquista científica da natureza para conquistar o homem cientificamente.232
Essa supressão do agente da revolução proletária, segundo Marcuse, deriva entre
outras coisas da oportuna introjeção da democracia na sociedade capitalista, uma vez
que os indivíduos livres não necessitam de libertação e os oprimidos não são
suficientemente fortes para se libertarem.
A libertação é a mais realista, a mais concreta de todas as possibilidades histórica e, ao mesmo tempo, a mais racionalmente, mais eficazmente reprimida – a possibilidade mais abstrata e remota. Nenhuma filosofia, nenhuma teoria pode desfazer a introjeção democrática dos senhores em seus súditos. Quando, nas sociedades mais ou menos afluentes, a produtividade atingiu um nível em que as massas participam de seus benefícios, e em que a oposição é eficaz e democraticamente ‘contida’, então o conflito entre senhores e escravos também é eficientemente contido.233
Em Ideologia da Sociedade Industrial, Marcuse apresenta o problema da
inviabilidade prática da teoria crítica atual. Como vimos, a alteração da estrutura da
sociedade desqualificou a burguesia e o proletariado enquanto agentes de transformação
histórica. As duas classes, ao contrário, uniram-se ao objetivo comum da preservação e
desenvolvimento da sociedade atual. Desta maneira, a crítica recua para um alto nível
de abstração e retira do terreno das possibilidades a harmonia entre a teoria e a prática:
“até mesmo a análise mais empírica das alternativas históricas parece especulação
irreal”.234
Sem as condições sociais capazes de permitir “a dissociação real do estado de
coisas existente”235, a crítica deixa de ser uma oposição eficaz e torna-se incapaz de
fornecer uma alternativa fora do sistema atual.
232 - Marcuse, Herbert. Eros e Civilização. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p.17. 233 - Ibid., p.16. 234 - Marcuse, Herbert. A Ideologia da Sociedade Industrial. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p.16. 235 - Ibid., p.34.
93
Mas os fatos e as alternativas existem como fragmentos que não se casam, ou como um mundo de objetos mudos sem um sujeito, sem a prática que moveria esses objetos na nova direção. A teoria dialética não é refutada, mas não pode oferecer o remédio. Não pode ser positiva. De fato, o conceito dialético, ao compreender os fatos dados, transcende a estes. Este é o próprio indício de sua veracidade. Ela define as possibilidades históricas, até mesmo as necessidades históricas; mas a realização destas só pode estar na prática que responde à teoria, e, na atualidade, a prática não dá tal resposta. Tanto em bases teóricas como empíricas, o conceito dialético pronuncia sua própria desesperança.236
Os argumentos passam em definitivo para a dimensão utópica, a crítica não
consegue mais demonstrar aos próprios oprimidos a sua prisão. Para Marcuse, a maior
fraqueza da teoria crítica é exatamente a “sua incapacidade para demonstrar as
tendências libertadoras dentro da sociedade estabelecida”.237
Mesmo assim, Marcuse pareceu sinalizar a possibilidade de uma solução prática,
o que estimulou a sua utilização como base intelectual para os movimentos estudantis
nos Estados Unidos, Europa e para as tentativas de revolução e protesto em países
subdesenvolvidos, inclusive o Brasil. Para o autor, nos países desenvolvidos a
sociedade converte-se no “Estado de Bem Estar Social”, que deve ser combatido. Mas
isso só seria possível através de sua substituição por um “Estado Beligerante”, que se
propusesse a reconstruir o sistema produtivo sem vestígios das bases mentais para a
dominação e a exploração.
Para ele, apesar da desilusão com a eficácia da práxis atual e com críticas à
imaturidade dos protestos e de argumentos, ainda há um fio de possibilidade de
estruturação social no que ele chama de “solidariedade instintiva” entre os movimentos
dos jovens dos países desenvolvidos e as revoltas nos países atrasados. O atraso
histórico e todos os horrores presenciados com o superdesenvolvimento técnico e
236 - Marcuse, Herbert. A Ideologia da Sociedade Industrial. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p.232. 237 - Ibid., p.233.
94
científico representariam uma nova oportunidade de levar o progresso para outra
direção. Para ele, a luta pela vida hoje, “a luta por Eros, é a luta política”.238
A revolução nas sociedades superdesenvolvidas deveria representar a eliminação
desse superdesenvolvimento e de sua inerente racionalidade repressiva, interrompendo a
produção de bens supérfluos e destrutivos e, assim, constituindo um estágio superior de
desenvolvimento humano em que “as mutilações somáticas e mentais infligidas ao
homem por essa produção seriam eliminadas”.239 Há, sem dúvida, bastante ingenuidade
no argumento, especialmente quando menciona a vantagem histórica das nações
subdesenvolvidas de poderem “saltar o estágio de sociedade afluente”. Para ele, essas
nações “por sua pobreza e fraqueza”, poderiam ser “forçadas a renunciar ao uso
agressivo e supérfluo da ciência e da tecnologia”.240
Marcuse também conclama mesmo que sem muita convicção os excluídos da
sociedade – “o substrato dos párias e estranhos, dos explorados e perseguidos de outras
raças e de outras cores, os desempregados e os não-empregáveis”241 – que existem fora
do processo democrático. Para ele, “sua oposição é revolucionária ainda que sua
consciência não o seja”242 e é a natureza de sua miséria que ainda justifica a necessidade
de se transformar as condições existentes.
O autor apela ainda para a recusa organizada da elite intelectual, que, em sua
opinião, poderá ter o efeito já não obtido com manifestações tradicionais, como greves.
Ele admite que a idéia pode parecer irrealista, mas não isenta o intelectual de sua
responsabilidade política na sociedade industrial contemporânea. Essa posição encontra
semelhança na responsabilidade atribuída por Umberto Eco243 aos intelectuais da cultura
238 - Marcuse, Herbert. Eros e Civilização. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p.23. 239 - Ibid., p.18. 240 - Ibid., p.18. 241 - Marcuse, Herbert. A Ideologia da Sociedade Industrial. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p.235. 242 - Ibid., p.235. 243 - Eco, Umberto. Apocalípticos e Integrados. São Paulo, Editora Perspectiva, 1979.
95
no sentido de reformar e intervir na comunicação de massa, como veremos adiante.
Marcuse afirma ainda que essa recusa do intelectual pode encontrar apoio na recusa
instintiva dos jovens em protesto. Para ele, “a juventude está na primeira linha dos que
vivem e lutam por Eros contra a Morte e contra uma civilização que se esforça por
encurtar o ‘atalho para a morte’, embora controlando os meios capazes de alongar esse
percurso”.244
Por outro lado, o movimento estudantil de maio de 1968 parece ter contribuído
significativamente para ratificar a atitude negativa mais radical dos frankfurtianos. Os
estudantes protestavam contra as estruturas autoritárias fundamentando-se nas reflexões
críticas de Marcuse, Adorno e Horkheimer. A idéia era transpor a teoria crítica para se
chegar à prática revolucionária.
Freitag observa inclusive que foi a partir daí que Marcuse passou a ser visto
como o ideólogo da New Left americana e dos movimentos de protesto dos estudantes
europeus. Também nessa época ocorreu a reintegração das duas correntes de reflexão da
Escola de Frankfurt: a alemã, de Horkheimer e Adorno, e a americana, baseada nos
trabalhos de Marcuse.
Segundo Freitag, “em nome da unidade da teoria e prática, da relação dialética
entre o particular e o universal e entre o sujeito do conhecimento e seu objeto” 245, os
estudantes defendiam a transformação radical da sociedade, partindo da democratização
da própria universidade, e apregoavam a destruição da família e do Estado autoritário.
Mas os frankfurtianos assustaram-se “com a radicalidade do movimento e com a
imaturidade da grande maioria dos estudantes que seguiam seus dirigentes, não por
motivos racionais, mas por sua liderança carismática, que paralisava a autocrítica dos
244 - Marcuse, Herbert. Eros e Civilização. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975, p.23. 245 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.24.
96
seus adeptos”.246 Eles enxergaram características fascistas no movimento e passaram a
combatê-lo ao invés de apoiá-lo. Assim,
a incorporação da teoria crítica ao movimento estudantil parecia anunciar o seu fim. A desilusão e incompreensão de ambas as partes – frankfurtianos e estudantes – terminou com a saída de Horkheimer para a Suíça (1967), a morte prematura de Adorno (1969) e a crítica de Marcuse a certas simplificações da New Left.247
Desta forma, na década de 60 os intelectuais de Frankfurt abandonam
definitivamente Marx e o paradigma da luta de classes como caminho para o fim do
capitalismo. Como observa Freitag, “evapora-se toda e qualquer esperança de que a
classe operária pudesse efetivamente reverter o processo de consolidação e perpetuação
do sistema vigente”.248
Esses grandes batalhões de trabalhadores não tinham condições de reconhecer o desespero de sua situação material, contentando-se com as melhorias salariais, em detrimento da perda de autonomia e da consciência de sua exploração e alienação objetiva.249
A teoria crítica conclui que nenhuma força contemporânea seria capaz de
garantir a necessária reestruturação da sociedade e, deste modo, perde a crença e a
conexão com a experiência prática.
6.2. Radicalismo e Limitações
Sem um projeto prático, sem uma válvula de escape às suas convicções, os
frankfurtianos recrudescem sua teoria e fecham-se na contestação amarga e pessimista
246 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.25. 247 - Ibid., p.26. 248 - Ibid., p.79. 249 - Ibid., p.80.
97
da sociedade atual. Ao não ter mais a práxis como objetivo e nem tampouco admitir o
diálogo com o sistema em vigor, os protestos do pensamento negativo soam vazios e
encontram aí a maior parte das resistências e críticas. O pessimismo radical de
Frankfurt é considerado um beco sem saída e a fonte de suas limitações teóricas.
6.2.1. Grande Recusa
Da utopia da sociedade feliz, Marcuse passa à defesa única da Grande Recusa,
encarada como a luta derradeira contra “a tendência à sufocação da crítica e da
diferenciação, por meio do estabelecimento do império da uniformidade, do
conformismo unidimensional”.250
Para ele, a dialética deve transcender o real rumo à definição de possibilidades
históricas, mas, como formula Merquior, a Grande Recusa não consegue ultrapassar a
amarga contestação e muito menos prevalecer contra a sociedade repressiva.251
Voltando aos conceitos desenvolvidos em Eros e Civilização,
o fim da repressão não é considerado como realmente possível porque a práxis histórica não funciona no sentido de Eros. A tendência da civilização contemporânea não se encaminha para a implantação da felicidade. A sociedade industrial avançada se afasta do horizonte da harmonia entre o princípio do prazer e o princípio da realidade.252
Para Marcuse, toda a sociedade está dominada pela repressão, que só pode ser
combatida na ordem utópica da dimensão estética. Ou seja, como vimos anteriormente,
250 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.291. 251 - Ibid., p.153. 252 - Ibid., p.153.
98
a conclusão é de que não há na prática atual possibilidades de concretização da teoria da
sociedade não-repressiva. O sistema atual é ilegítimo e rejeitado.
6.2.2. Dialética Negativa
De forma semelhante a Marcuse, Adorno define a sua dialética negativa como o
“esforço permanente de evitar as falsas sínteses, de desconfiar de toda e qualquer
proposta definitiva para a solução de problemas, de rejeição de toda visão sistêmica,
totalizante da sociedade”.253 Para Adorno, a dialética não possui cânones específicos,
nem regras definidas e tampouco se responsabiliza por prognósticos precisos sobre a
realidade existente.
Deste modo, a dialética deveria forçar a dúvida, a crítica, reconduzindo os
indivíduos sempre ao pensamento emancipado. Mas, como vimos, o poder criativo da
negação é sobrepujado pelo imobilismo da negativa absoluta. O pessimismo
incondicional compromete a sua possibilidade prática. Para ele,
depois que a cultura se transformou gradativamente em Indústria Cultural, depois que a arte perdeu sua aura, dissolvida no consumo de massa, e depois que a filosofia e a ciência se reduziram ao positivismo, em que sua pobreza somente permite a reflexão afirmativa do existente, restam poucas alternativas à sociedade moderna de assegurar sua auto-reflexão e crítica.254
Afastado da expectativa pela extinção da sociedade tecnológica, Adorno volta-se
para a estética do protesto, que transfere para a arte a responsabilidade pela ruptura com
o sistema. A arte deve ser o veículo de protesto por excelência, deve revelar a tirania e
interromper, sustar “em alguns pontos – coágulos, constelações – a fluência da
253 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.48. 254 - Ibid., p.81.
99
repressão”.255 Para Adorno, a arte - sobretudo a composição musical, sua especialidade
– guarda uma pequena área de verdade, que ainda não foi destruída pelo ao avanço do
sistema.
Segundo Freitag, a teoria estética é para Adorno a única forma consistente de
negar e criticar as condições materiais e sociais de vida social: “o horror gerado pelo
regime nazista, a paralisação imposta pelas sociedades industriais massificadas, a
estupidez da vida humana inserida em relações de trabalho e dominação que a
transforma em acessório da máquina produtiva e do aparelho de dominação”256 – tudo
isso só poderia ser captado no campo da estética.
A teoria estética procura desvendar na obra de arte sua essência, seu verdadeiro caráter de negadora do real estabelecido, sem submetê-la a sistemas conceituais coerentes ou ao processo de produção e reprodução da mercadoria. Procura, quase que intuitivamente, afinar-se e sincronizar-se com ela para compreender sua mensagem negadora e contestadora.257
Por outro lado, o pensamento de Adorno leva à constatação subliminar de que
também a arte é incapaz de salvar a cultura. Ao mesmo tempo em que lhe atribui a
responsabilidade de guardiã da verdade, sinaliza o seu fracasso. O protesto é ineficaz e
a arte não consegue fugir da mera expressão da revolta.
O desgosto ante a marcha da cultura, que já circunscrevera a obra de arte como protesto, em sensível detrimento das suas características cognitivas, termina por condenar globalmente a arte. Esta fica, implicitamente, responsabilizada pela sua incapacidade de redimir a cultura.258
255 - Merquior, José G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1969, p.130. 256 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.81. 257 - Ibid., p.84. 258 - Merquior, op. cit., p.134.
100
Assim, seja na Grande Recusa ou na estética do protesto, a negatividade deixa de
ter compromisso com a criação histórica. As alternativas possíveis na teoria não são
viáveis na prática contemporânea.
101
7 – A Crítica Atual __________________________________________________________________________________________________________
7.1. A influência de Frankfurt
Passadas quase seis décadas desde a publicação da Dialética do Esclarecimento,
Adorno e os demais autores de Frankfurt nunca foram tão lidos, comentados e
pesquisados. Seu pensamento permanece como base da teoria da cultura atual, mas
também é alvo de uma série de críticas, principalmente no que diz respeito ao seu
pessimismo absoluto, ao seu conceito kantiano de razão e ao rígido papel atribuído à
arte, entre outros aspectos. Adorno voltou-se para a estética como último refúgio de
resistência, mas colocou-a ele próprio em cheque, além de ter sido taxado de elitista. A
Grande Recusa de Marcuse, por outro lado, valeu-lhe o rótulo de utopista.
Antes de partirmos para os pontos de vista “atuais”, no entanto, é importante
ressaltar que o pensamento frankfurtiano foi elaborado como um contraponto ao
positivismo da época, que se aliava ao capitalismo, e já constituía a base intelectual da
sociedade. Os intelectuais de Frankfurt conseguiram muito precocemente elaborar uma
crítica aprofundada e dura contra questões que muitas vezes apenas se insinuavam.
Além do repúdio ao nazismo e ao fascismo, eles criticaram o marxismo “oficial” muito
antes da constituição da URSS e conseguiram antever com aguçada clareza as
conseqüências do capitalismo avançado que observaram em seus primórdios nos
Estados Unidos. Assim, o alcance teórico desses autores foi muito além da produção
intelectual que lhe era contemporânea, o que – claro – causou resistência em um
primeiro momento e fez com que a difusão de suas idéias ocorresse tardiamente.
É importante que esse mérito lhes seja reconhecido e que suas opiniões e, muitas
vezes, radicalismo sejam contextualizados. Outro ponto relevante é que, ao ler o
102
trabalho desses autores, percebe-se que havia receio de que possíveis concessões
pudessem constituir porta de entrada para a contaminação teórica. O momento era de
firmar posicionamentos e por isso não havia espaço para diálogo; era necessário que a
teoria crítica se consolidasse e constituísse oposição e não complemento ao pensamento
vigente – já então muito poderoso e com forte capacidade de “absorção”.
Ressalvas feitas, passamos à crítica atual. Freitag avalia que
a revitalização do pensamento crítico de Adorno, Horkheimer, Benjamin e Habermas e a assimilação de autores novos como Altvater, Offe e outros pode ser compreendida como uma forma de reação da sociologia americana ao positivismo, até então hegemônico nos centros de estudo e treinamento dos cientistas sociais americanos.259
A autora também destaca o fato de que cabe muito mais à nova geração de
cientistas sociais alemães a difusão da teoria crítica, uma vez que Adorno e Horkheimer,
em seu exílio nos Estados Unidos na década de 40, viviam em um “enclausuramento
lingüístico intencional”, falando e publicando em alemão e mantendo-se isolados das
correntes de pensamento americano.
Ao abordar a recepção da teoria crítica no Brasil Freitag menciona Carlos
Nelson Coutinho, que identifica duas etapas de assimilação do pensamento crítico de
Frankfurt no Brasil. “A primeira se teria dado no final da década de 60 via Marcuse (e
portanto através dos Estados Unidos), assumindo entre nós uma coloração
contracultural e irracionalista. A segunda, ocorrida no final da década de 70,
mediatizada por Rouanet, assumiria uma conotação radicalmente racionalista, buscando
recuperar na teoria crítica seu elemento iluminista original.260
259 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p. 132. 260 - Ibid., p.139.
103
Assim, da primeira metade do século XX para cá, os conceitos da teoria crítica
foram amplamente difundidos, estudados e – naturalmente – contestados e
desenvolvidos.
Freitag observa que, no desenvolvimento de suas idéias, os frankfurtianos
passaram de um marxismo relativamente ortodoxo, quando ainda se concebia a
possibilidade de uma revolução proletária, à radicalidade da dialética negativa. Como
mencionamos, a recusa absoluta em dialogar com sociedade tecnológica e o
posicionamento sem concessões levou-os a uma desesperança total e à percepção de que
a razão não encontrava em nossa época “nenhuma ancoragem objetiva em nenhum
grupo ou suporte social”.261
Neste capítulo, traremos a visão de três intelectuais “contemporâneos”, mais do
que isso, três visões bastante distintas sobre as questões da teoria crítica e da Indústria
Cultural. Não se pretende aqui esgotar o assunto, mas apenas exemplificar as discussões
atuais sobre o tema.
Jürgen Habermas é considerado o herdeiro intelectual dos frankfurtianos e o
principal representante da chamada “segunda geração” de Frankfurt. Sendo assim, ele
parte diretamente das idéias de Adorno, Horkheimer, Marcuse e Benjamin, para então
aperfeiçoá-las e criar uma nova teoria, que fornece, em sua opinião, uma alternativa ao
beco sem saída para onde se encaminharam seus antecessores.
Guy Debord, por sua vez, pode ser considerado o mais radical entre os três
autores. Já conhecemos o seu posicionamento sobre a Sociedade do Espetáculo no
decorrer deste trabalho e veremos mais uma vez seus argumentos, mas com a
perspectiva do final da década de oitenta. Observaremos que permanece a
impossibilidade de diálogo com o sistema e o apelo revolucionário nas entrelinhas.
261 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.149.
104
Umberto Eco, por sua vez, é uma unanimidade da sociedade contemporânea e
adota uma postura “integrada” no que diz respeito aos produtos da Indústria Cultural.
Acusa os “apocalípticos” de elitistas e condena sua postura de imobilismo e recusa ao
diálogo com a sociedade de massas.
7.2. O dialético Habermas
Voltando a Habermas, assim como seus antecessores, ele também dedica boa
parte de sua obra à crítica ao tecnicismo e cientificismo da sociedade contemporânea,
mas admite dialogar com ela. A sua perspectiva não é mais a de quem antevê o começo
de um processo, mas a de quem vive sob esse processo concretizado e maduro, no caso,
o capitalismo avançado. A perspectiva de Habermas não é a de quem vê possibilidade
de mudança do sistema, mas sim de mudança no sistema. Habermas não está de fora,
como se acreditavam os frankfurtianos, mas dentro, como se infiltrado e tentando
ampliar as brechas existentes até integrá-las ao ambiente dado.
Desta forma, Habermas parte das idéias da “primeira fase” de Frankfurt e
preserva grande parte de seus conceitos centrais, especialmente no que diz respeito à
condenação do positivismo, à analise crítica da realidade e à rejeição de falsos
determinismos. Por outro lado, discorda em pontos-chave, sobretudo na crença no
diálogo com o sistema, elaborando uma teoria alternativa à teoria crítica tradicional.
Outro aspecto que o afasta dos demais é a descrença em uma razão objetivada na
História. Os frankfurtianos da primeira geração já haviam deixado de lado o marxismo
tradicional no decorrer da evolução de seu pensamento, mas com Habermas este
distanciamento fica ainda mais evidente, já que o trabalho deixa de ser o lugar social da
emancipação ou mesmo de oferecer essa possibilidade. Para Freitag, “Habermas
105
encontrou um caminho que permite sair dos impasses da dialética negativa, mas à custa
de tanto ecletismo que hoje dificilmente pode ser considerado um pensador marxista.”262
Não que não haja aderência a Marx. Habermas reconhece a importância da
tecnologia e da racionalidade técnica no desenvolvimento da sociedade de massas e
também concorda que o grande problema é que o sistema de reprodução material ainda
não encontrou formas justas de distribuir os bens produzidos. Por outro lado, discorda
fortemente da visão marxista de que a revolução proletária e conseqüente transformação
das condições sociais constituíssem a solução para o problema – ou mesmo que isso
tivesse sido viável em algum momento.
A alternativa de Habermas é a Teoria da Ação Comunicativa, publicada em
1981. Nela, o autor propõe um novo paradigma para a discussão sociológica e elabora
um novo conceito de razão, que não está relacionado à visão instrumental
contemporânea, mas que também ultrapassa a razão kantiana, “subjetiva, autônoma,
capaz de conhecer o mundo e de dirigir o destino dos homens e da humanidade”.263
Habermas foge do pessimismo na medida em que deposita sua fé na competência
lingüística e cognitiva dos atores, “capazes de, no diálogo, na disputa, no
questionamento radical, produzirem uma razão comunicativa que pouco tem em comum
com a razão kantiana: ela não é subjetiva, não é transcendental, não é inata”.264
Na verdade a crítica de Habermas aos frankfurtianos deve-se, como observa
Freitag, à discordância no que diz respeito aos conceitos de razão, verdade e
democracia. Para Habermas, Horkheimer e Adorno se atêm a um conceito histórico-
filosófico de razão, de inspiração marxista, que, “apesar do ceticismo crescente quanto à
possibilidade de que a classe operária viesse a assumir os destinos da história,
262 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.150. 263 - Ibid., p.59. 264 - Ibid., p.60.
106
assegurando a concretização de uma racionalidade liberadora na sociedade moderna”,265
não os deixa abandonar a crença em uma razão objetivada na história.
Segundo Habermas, quando fica claro que a revolução proletária não irá ocorrer,
a teoria crítica perde a sua base material e busca refúgio na radicalização do protesto e
na estética. Para ele, o resgate da concepção emancipatória de razão não ocorre através
da superação das relações de trabalho, mas através da mediação da intersubjetividade.
Na concepção da teoria da ação comunicativa, a “razão passa a ser
implementada socialmente no processo de interação dialógica dos atores envolvidos em
uma mesma situação”266, buscando o consenso através da argumentação. Segundo
Freitag, a racionalidade não é uma faculdade abstrata para Habermas, “mas um
procedimento argumentativo pelo qual dois ou mais sujeitos se põem de acordo sobre
questões relacionadas com a verdade, a justiça e a autenticidade. Tanto no diálogo
cotidiano como no discurso, todas as verdades anteriormente consideradas válidas e
inabaláveis podem ser questionadas”.267
A razão comunicativa circunscreve um conceito para o qual o questionamento e a crítica são elementos constitutivos, mas não sob a forma monológica, como ainda ocorria na Dialética do Esclarecimento ou na Dialética Negativa, e sim de forma dialógica, em situações sociais em que a verdade resulta de um diálogo entre pares, seguindo a lógica do melhor argumento.268
Habermas confere à razão comunicativa – que ainda estaria preservada em certos
nichos da sociedade - a capacidade de reorientar a razão instrumental, arrancando-lhe o
poder determinante sobre o destino dos indivíduos e atribuindo-lhe meramente o papel
de fornecer as bases materiais para a organização e sobrevivência da sociedade
moderna. Para ele,
265 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.108. 266 - Ibid., p.59. 267 - Ibid., p.59.
107
é na esfera social e da cultura (ou no que futuramente chamaria de Lebenswelt, mundo vivido) que devem ser conjuntamente fixados os destinos da sociedade, através do questionamento e da revalidação dos valores e das normas vigentes no mundo vivido. Somente quando este reconquistar o terreno perdido pode ocorrer o que na modernidade se tornou urgente: a descolonização do mundo vivido pelo sistema, a capacidade de agir comunicativamente para todos os atores. A razão dialógica, comunicativa, estaria, desta forma, recolocando em seu devido lugar a razão instrumental.269
Sobre o conceito de verdade, a crítica de Habermas diz respeito à incapacidade
de Adorno e Horkheimer de formular uma teoria capaz de “satisfazer os requisitos da
ciência e remeter ao conceito integral de razão hegeliana que abrange a dimensão
científica, como a prática e a estética expressiva”.270 Esta impossibilidade, em sua
opinião, também é determinante no radicalismo final da dialética negativa. Na
perspectiva de Habermas, “razão e verdade deixam de ser conteúdos, valores absolutos
universais, para serem definidos formalmente como procedimentos, isto é, regras de
jogo, fixadas consensualmente”.271
Finalmente, sobre a democracia, observa que os frankfurtianos encaravam-na
com receio em relação à sociedade de massas e traziam de suas experiências nos
Estados Unidos a percepção de que a “democracia de massas” era na verdade uma
permanente ameaça à sobrevivência da razão. Para os intelectuais de Frankfurt, as
massas não tinham capacidade e nem vontade crítica e constituíam mero grupo de
manobra (percepção bastante lúcida, diga-se), suscetível assim a todo o tipo de liderança
carismática, como o fascismo. Neste ponto, diferem de Habermas, que contrapõe a
descrença no julgamento das massas à “fé inquebrantável na capacidade de aprendizado
dos sistemas sócio-culturais modernos, que ajustam seus mecanismos de autocontrole e
268 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.60. 269 - Ibid., p.63. 270 - Ibid., p.110. 271 - Ibid., p.112.
108
de auto-orientação de acordo com os graus de complexidade e diferenciação
atingidos”.272
Desta forma, na visão de Freitag, Habermas está mais próximo de Benjamin que
dos demais frankfurtianos:
Critica Marcuse, Adorno e Horkheimer por terem adotado uma posição tradicional, limitada e idealista em relação à obra de arte e à cultura: tradicional porque continuam vendo na obra de arte somente uma promessa de felicidade; limitada, por se basearem em um conceito burguês de arte, no qual fenômenos artísticos como o jazz, o surrealismo, o filme contemporâneo, happenings, etc., não têm lugar, e, finalmente, idealista, por não admitirem a alteração interna da estrutura e função da arte e cultura que acompanha o desenvolvimento do capitalismo tardio.273
7.3. O radical Debord
Sobre Guy Debord cabe notar que não há mudanças estruturais significativas em
seu pensamento contemporâneo em relação ao descrito na década de 60 na Sociedade
do Espetáculo. Ele reconhece, é claro, que as lutas operárias desapareceram do cenário
geopolítico, mas, apesar de não afirmar isso diretamente, a percepção é de que a
revolução permanece como o único meio possível de se enfrentar os efeitos do
espetáculo. Para Debord, continua a não existir nenhuma possibilidade de diálogo com
a sociedade espetacular.
Diferentemente de Habermas, ele não enxerga brechas no poder espetacular e
tampouco espaço para uma razão comunicativa em determinados nichos da sociedade.
Acredita, ao contrário, que o próprio espetáculo organiza discussões vazias sobre si.
Em suma, o debate sobre o espetáculo faz parte do espetáculo e ocorre com a sua devida
conivência.
272 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.65.
109
Como era teoricamente previsível, a experiência prática da realização sem obstáculos dos desígnios da razão mercantil logo mostrou que, sem exceção, o devir-mundo da falsificação era também o devir-falsificação do mundo. Exceto uma herança ainda considerável, mas com tendência a diminuir, de livros e construções antigas – que são, aliás, cada vez mais selecionados e considerados de acordo com as conveniências do espetáculo -, já não existe nada, na cultura e na natureza, que não tenha sido transformado e poluído segundo os meios e os interesses da indústria moderna.274
Assim, o que muda na verdade é apenas o diagnóstico da sociedade, que fica
ainda mais duro e pessimista. Para ele a mudança de maior importância desde então é
exatamente a própria continuidade do espetáculo, e não em virtude do aperfeiçoamento
técnico, mas principalmente em função de a “dominação espetacular ter podido educar
uma geração submissa a suas leis”.275
Debord afirma que, como os acontecimentos de 1968 “não destruíram em
nenhum lugar a organização social existente, o espetáculo, que dela parece brotar
espontaneamente, continuou a se afirmar por toda parte.”276 Pior ainda: alastrou-se,
aprofundou-se e “chegou a incorporar novos procedimentos defensivos, como costuma
acontecer com o poder quando se vê atacado”.277 O espetáculo contemporâneo
caracterizaria-se pela combinação de cinco aspectos principais: “a incessante renovação
tecnológica, a fusão econômico-estatal, o segredo generalizado, a mentira sem
contestação e o presente perpétuo”.278
Deste modo, de lá para cá o espetáculo ficou ainda mais poderoso e confundiu-
se com a própria realidade. O presente deve deixar de lado o passado, já que “o poder
absoluto suprime a história de modo mais radical quanto mais ele for levado a isso por
273 - Freitag, Bárbara. A teoria crítica: ontem e hoje. Brasiliense, São Paulo, 1993, p.78. 274 - Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Contraponto Ed., Rio de Janeiro, 1997, p.173. 275 - Ibid., p.171. 276 - Ibid., p.168. 277 - Ibid., p.168. 278 - Ibid., p.175.
110
interesses ou obrigações impreteríveis, e sobretudo se encontrou facilidades práticas de
execução”.279 O domínio da história, que representava o memorável, o conhecimento
que deveria durar, os acontecimentos “cujas conseqüências se manifestariam por muito
tempo” deu lugar à importância instantânea, que será sempre substituída por outra
importância instantânea, que, com esse processo, acaba por adquirir um caráter de
eternidade.
A preciosa vantagem que o espetáculo tirou dessa marginalização da história – de já ter condenado toda a história recente a passar para a clandestinidade e ter conseguido fazer todos esquecerem o espírito histórico na sociedade – foi, antes de tudo, abarcar sua própria história, o movimento de sua recente conquista do mundo. Seu poder já soa familiar, como se sempre tivesse estado presente.280
7.4. O integrado Eco
Em Apocalípticos e Integrados, Umberto Eco cunha os dois termos do título,
que ganharam fama e designam, por um lado, aqueles que não admitem diálogo com a
sociedade de massas – como Adorno, Horkheimer, Marcuse e Debord; de outro, aqueles
que encaram a indústria da cultura ou o espetáculo como processos naturais do
desenvolvimento do capitalismo e que possuem uma série de aspectos favoráveis.
Benjamin e Habermas não se enquadrariam em nenhum dos dois conceitos e, ele
próprio, não se inclui em nenhum dos grupos, mas sem dúvida tem um forte viés de
integração em seu discurso.
Eco condena tanto apocalípticos como integrados pela difusão de conceitos
genéricos, que ele chama de “conceitos fetiche”, e por havê-los utilizado em polêmicas
improdutivas. O próprio termo “cultura de massa”, por exemplo, é visto como
279 - Debord, Guy. A sociedade do espetáculo. Contraponto Ed., Rio de Janeiro, 1997, p.177. 280 - Ibid., p.178.
111
“genérico, ambíguo e impróprio”. O autor entende que, se a cultura é um fato
aristocrático, então é um contra-senso imaginá-la partilhada por todos. Ou seja, neste
sentido, a cultura de massa seria a anticultura.
Neste ponto cabe uma observação: ao mencionar os apocalípticos, os principais
alvos de Eco são sem dúvida os frankfurtianos, sobretudo Adorno e Horkheimer. Neste
sentido, ele assume a premissa de que a cultura é, na verdade, um fato aristocrático, o
que o leva, por conseqüência, a reduzir os intelectuais de Frankfurt a meros aristocratas
elitistas, deixando de lado todo o seu embasamento teórico e o contexto histórico em
que estavam inseridos, aspectos que vimos analisando neste trabalho até então. Assim,
taxá-los de elitistas e encerrar a questão é no mínimo injusto e distante dos fatos. Além
disso, ao não tomar partido de forma efetiva por nenhuma das duas posições, Eco
coloca-se no confortável espaço do liberal de esquerda esclarecido.
Posto isso, retomamos a exploração do conceito de cultura de massa. O
integrado de Eco enxerga-a de forma positiva: um “alargamento da área cultural” onde
finalmente há espaço para a circulação de uma arte e de uma cultura dita popular. Por
outro lado, o grupo apocalíptico, na opinião do autor, vê a sociedade moderna não como
“uma aberração transitória e limitada”, mas como “o sinal de uma queda irrecuperável,
ante a qual o homem de cultura (...) pode dar apenas um testemunho extremo, em
termos de Apocalipse”.281
A imagem do Apocalipse ressalta dos textos sobre cultura de massa; a imagem da integração emerge da leitura dos textos da cultura de massa. Mas até que ponto não nos encontramos ante duas faces de um mesmo problema, e não representarão esses textos apocalípticos o mais sofisticado produto oferecido ao consumo de massa? 282
281 - Eco, Umberto. Apocalípticos e Integrados. São Paulo, Editora Perspectiva, 1979, p.8. 282 - Ibid., p.9.
112
Na visão de Eco, o apocalíptico entrevê a existência de uma “comunidade de
super-homens”, capazes de se elevar acima “da banalidade média”. Neste ponto, o autor
faz uma comparação entre o super-homem conformista da cultura de massa (o
superman) e o super-homem proposto pelo crítico apocalíptico. O segundo “opõe, à
banalidade imperante, a recusa e o silêncio, alimentado que é pela total desconfiança em
qualquer ação que possa modificar a ordem das coisas”.283 Mas essa postura tem efeito
inócuo e leva apenas à passividade: “expulsa pela porta, a integração volta pela
janela”.284
Ao avaliar a comunicação de massa, Eco encara-a com naturalidade, analisa-a do
lado de dentro e sem a perspectiva de saída. Em sua opinião, a sociedade de massas
está dada e é preciso partir dela; a possibilidade de retorno passa a ser um mero
saudosismo. Para ele, o mundo da comunicação de massa “nasce com o acesso das
classes subalternas à fruição dos bens culturais, e com a possibilidade de produzir esses
bens graças a processos industriais”.285 A Indústria Cultural indica um contexto
histórico e não possui dois níveis diferentes, quais sejam a comunicação de massa e a
cultura aristocrática, mas estabelece “uma rede de condicionamentos recíprocos”.
O universo da comunicação de massa é (...) o nosso universo; e se quisermos falar de valores, as condições objetivas das comunicações são aquelas fornecidas pela existência dos jornais, do rádio, da televisão, da música reproduzida e reproduzível, das novas formas de comunicação visual e auditiva. Ninguém foge a essas condições, nem mesmo o virtuoso, que, indignado com a natureza inumana desse universo da informação, transmite o seu protesto através dos canais de comunicação de massa.286
O autor também avalia que vários aspectos da Indústria Cultural possuíam raízes ou até
mesmo existiam de forma efetiva em sociedades anteriores. Eco fornece, por exemplo,
283 - Eco, Umberto. Apocalípticos e Integrados. São Paulo, Editora Perspectiva, 1979, p.10. 284 - Ibid., p.10. 285 - Ibid., p.11.
113
mostras de reprodução em série antes da cultura de massa, como a bíblia e livro. Para
ele, as “epopéias cavalheirescas, queixas sobre fatos políticos ou de ocorrência diária,
motejos anedotas ou coplas (...) possuem a primeira característica dos produtos de
massa, a efemeridade”.287 Além disso, já forneciam certos tipos de sentimentos com o
objetivo de causar efeitos determinados no público e tinham inclusive o aspecto
publicitário evidenciado em seus títulos.
Guardadas as devidas proporções, a defesa é de que a reprodutibilidade em série
há muito já condicionava os seus produtos-alvo. Eco também defende a idéia de uma
cultura popular, além de, da mesma forma, remetê-la a sociedades anteriores. Para ele,
esse tipo de literatura contribuía para a alfabetização do público e para sua crescente
inclusão social. Do mesmo modo, não seria casual “a concomitância entre civilização do
jornal e civilização democrática, conscientização das classes subalternas, nascimento do
igualitarismo político e civil, época das revoluções burguesas.”288
Eco, como vimos, também se opõe fortemente à postura imobilizada e elitista
do “homem de cultura”, afirmando que a relação dialética com a Indústria Cultural é a
única postura possível. E critica diretamente os “pseudomarxistas da Escola de
Frankfurt” pela convicção conceitual de que o papel do pensador não é o de “propor
remédios, mas, quando muito, testemunhar sua própria dissensão”.289 Para ele, “a
existência de uma categoria de operadores culturais que produzem para as massas,
usando na realidade as massas para fins de lucro, ao invés de oferecer-lhes reais
ocasiões de experiência crítica”,290 não justifica o afastamento e a negação de antemão
da cultura. Assim, a censura ao apocalíptico diz respeito à recusa em estudar e entender
os produtos culturais e suas formas de consumo, preferindo rejeitá-los antecipadamente.
286 - Eco, Umberto. Apocalípticos e Integrados. São Paulo, Editora Perspectiva, 1979, p.11. 287 - Ibid., p.13 288 - Ibid., p.14 289 - Ibid., p.17
114
Lembramos aqui a ressalva feita no início deste texto e apontamos mais uma vez
a postura intransigente em relação aos frankfurtianos. O pessimismo dos autores é fato,
mas ele não deriva – como afirmado – de um desconhecimento ou de uma recusa em
estudar os produtos culturais. Da mesma forma, a atitude negativa foi recrudescendo
gradualmente e fez parte de um processo de aprofundamento e desencantamento teórico.
Assim, é no mínimo leviano levantar a acusação de “preguiça intelectual” ou “má-
vontade de antemão”, como parece ser a intenção de Eco.
Voltando a Apocalípticos, o autor também faz referência ao postulado expresso
na fórmula ceci tuera cela. Ou seja, a nova tecnologia passa a competir com as
anteriores para posteriormente destruí-las. Para isso, cita como exemplo o texto
platônico em que este descreve a invenção da escrita: ao ser confrontado com a
descoberta, o faraó Tamus ao invés de enxergar-lhe o mérito preocupa-se que esta venha
a provocar um enfraquecimento da memória humana. Assim, utiliza-se do trecho do
Fedro para lembrar que “toda modificação dos instrumentos culturais, na história da
humanidade, se apresenta como uma profunda colocação em crise do “modelo cultural”
precedente; e seu verdadeiro alcance só se manifesta se considerarmos que os novos
instrumentos agirão no contexto de uma humanidade profundamente modificada, seja
pelas causas que provocaram o aparecimento daqueles instrumentos, seja pelo uso
desses mesmos instrumentos.”291
Neste mesmo sentido, considera miopia histórica “avaliar a função da imprensa
segundo as medidas de um modelo de homem típico de uma civilização baseada na
comunicação oral e visual“292 ou, do mesmo modo, analisar a cultura de massa sob a
ótica de um homem renascentista que não existe mais.
290 - Eco, Umberto. Apocalípticos e Integrados. São Paulo, Editora Perspectiva, 1979, p.19 291 - Ibid., p.34. 292 - Ibid., p.34.
115
O autor também aponta o elitismo de alguns posicionamentos, questionando se
por trás da intolerância com a cultura de massa não está “um desprezo que só
aparentemente se dirige à cultura de massa, mas que, na verdade, aponta contra as
massas”293, em nostalgia à época em que a cultura pertencia apenas ao círculo da classe
dominante.
Diante de certas tomadas de posição, nasce a suspeita de que o crítico constantemente se inspire num modelo humano que, mesmo sem ele o saber, é classista: o modelo de um fidalgo renascentista, culto e meditativo a quem uma determinada condição econômica permite cultivar, com amorosa atenção, suas experiências interiores, preservando-as de fáceis comistões e garantindo-lhes, ciosamente, a absoluta originalidade. Mas o homem de uma civilização de massa não é mais esse homem. Melhor ou pior, é outro, e outros deverão ser os seus caminhos de formação e salvação.294
Finalmente, Eco propõe uma espécie de julgamento em que à cultura de massa cabe
o banco dos réus. Assim, elenca os argumentos que lhes são a favor e contra, ou seja,
opõe argumentos apocalípticos e integrados. Do lado das críticas, afirma, entre várias
coisas, que os mass media: 295
- difundem por todo o globo uma cultura de tipo homogêneo, destruindo as
características culturais próprias de cada grupo étnico;
- “dirigem-se a um público incônscio de si mesmo como grupo social
caracterizado; o público, portanto, não pode manifestar exigências face à cultura
de massa, mas deve sofrer-lhes as propostas sem saber que as sofre”;
- “tendem a provocar emoções intensas e não mediatas; em outros termos: ao
invés de simbolizarem uma emoção, de representá-la, provocam-na; ao invés de
a sugerirem, entregam-na já confeccionada”;
293 - Eco, Umberto. Apocalípticos e Integrados. São Paulo, Editora Perspectiva, 1979, p.36. 294 - Ibid., p.38. 295 - Ibid., p.40-42.
116
- estão sujeitos à lei da oferta e da procura, dando ao público somente o que ele
quer, “ou, o que é pior, seguindo as leis de uma economia baseada no consumo e
sustentada pela ação persuasiva da publicidade, sugerem ao público o que este
deve desejar”;
- “mesmo quando difundem os produtos da cultura superior, difundem-nos
nivelados e “condensados” a fim de não provocarem nenhum esforço por parte
do fruidor”;
- “encorajam uma visão passiva e acrítica do mundo”;
- “assumem os modos exteriores de uma cultura popular mas, ao invés de
crescerem espontaneamente de baixo, são impostos de cima. Como controle das
massas desenvolvem uma função que, em certas circunstâncias históricas, tem
cabido às ideologias religiosas. Mascaram porém essa sua função de classe
manifestando-se sob o aspecto positivo da cultura típica de uma sociedade do
bem-estar onde todos têm as mesmas oportunidades de acesso à cultura, em
condições de perfeita igualdade”.
Já a defesa da cultura de massa é construída nas seguintes bases:296
- “a cultura de massa não é típica de um regime capitalista. Nasce numa
sociedade em que toda a massa de cidadãos se vê participando, com direitos
iguais, da vida pública, dos consumos, da fruição das comunicações; nasce
inevitavelmente em qualquer sociedade de tipo industrial”;
- a cultura de massa não tomou o lugar da cultura superior, “simplesmente se
difundiu junto a massas enormes que, tempos atrás, não tinham acesso aos bens
de cultura”;
296 - Eco, Umberto. Apocalípticos e Integrados. São Paulo, Editora Perspectiva, 1979, p.44-48.
117
- à difusão de produtos de entretenimento que ninguém ousaria julgar positivos
“replica-se que, desde que o mundo é mundo, as multidões amaram os circenses
(...)” e isso não deveria portanto ser considerado “como um sinal particular da
decadência dos costumes”;
- “uma homogeneização do gosto contribuiria, no fundo, para eliminar, a certos
níveis, as diferenças de casta, para unificar as sensibilidades nacionais, e
desenvolveria funções de descongestionamento anticolonialista em muitas partes
do globo”;
- “os mass media oferecem um acervo de informações e dados acerca do universo
sem sugerir critérios de discriminação; mas, indiscutivelmente, sensibilizam o
homem contemporâneo face ao mundo; e na realidade, as massas submetidas a
esse tipo de informação parecem-nos bem mais sensíveis e participantes, no bem
e no mal, da vida associada, do que as massas da antigüidade, propensas a
reverências tradicionais em face de sistemas de valores estáveis e indiscutíveis”.
Como conclusão, Eco tenta se colocar no meio termo entre os dois grupos, apesar
de, como mencionamos, aparentar mais simpatia com a integração. Para ele não se trata
absolutamente de condenar a cultura de massa ou pretendê-la como cultura superior.
Em sua opinião as duas esferas podem coexistir e a questão fundamental seria de
garantir também às massas a “fruição de experiências de ordem superior, dando a cada
um a possibilidade de chegar a elas”.297 A idéia de Eco é que possa haver uma livre
circulação dos indivíduos entre os produtos “superiores” e os produtos de massa.
Entre o consumidor de poesia de Pound e o consumidor de um romance policial, de direito, não existe diferença de classe social ou de nível intelectual. Cada um de nós pode ser um e outro, em diferentes
297 - Eco, Umberto. Apocalípticos e Integrados. São Paulo, Editora Perspectiva, 1979, p.39.
118
momentos de um mesmo dia, num caso, buscando uma excitação de tipo altamente especializada, no outro, uma forma de entretenimento capaz de veicular uma categoria de valores específica.298
O principal erro dos integrados seria esquecer o caráter de mercadoria da cultura
submetida às leis gerais do mercado e considerar a multiplicidade de seus produtos
como boa em si mesma, sem a necessidade de críticas e correções do rumo. Por outro
lado, o pecado apocalíptico é exatamente “pensar que a cultura de massa seja
radicalmente má, justamente por ser um fato industrial, e que hoje se possa ministrar
uma cultura subtraída ao condicionamento industrial”.299
A falha está em formular o problema nestes termos: ‘é bom ou mau que exista a cultura de massa?’ (...) Quando, na verdade, o problema é: ‘do momento em que a presente situação de uma sociedade industrial torna ineliminável aquele tipo de relação comunicativa conhecido como conjunto dos meios de massa, qual a ação cultural possível a fim de permitir que esses meios de massa possam veicular valores culturais?’300
Como exemplo do bom uso da cultura de massa, o autor elenca o aparecimento
de edições críticas e de coleções populares, que em sua opinião representam uma
“vitória da comunidade cultural sobre o instrumento industrial com o qual ela
felizmente se comprometeu”.301
Na mesma linha de Marcuse em seu prefácio político a Eros e Civilização, que
conclama a recusa geral dos intelectuais, Eco atribui aos homens de cultura a
responsabilidade por uma “atitude de indagação construtiva” aplicada ao novo modelo
humano da comunicação de massa. Ele afirma que o problema da cultura de massa é
que sua operação é conduzida “por “grupos econômicos” que miram fins lucrativos, e
realizada por “executores especializados” em fornecer ao cliente o que julgam mais
298 - Eco, Umberto. Apocalípticos e Integrados. São Paulo, Editora Perspectiva, 1979, p.58. 299 - Ibid., p.49. 300 - Ibid., p.50.
119
vendável”, sem a participação dos homens de cultura, que limitam-se ao protesto.
Assim, os meios de massa ainda não teriam sido alvo de uma análise crítica
aprofundada, buscando uma orientação de rumos ao invés de uma mera execração.
Para ele é fundamental a participação de um grupo de produtores cultos em
relação dialética com a massa de fruidores. Eco propõe ema ação político social que
permita também às massas usufruir a alta cultura. Mas além de afirmar que dificilmente
isso acontecerá “de modo pacífico e institucionalizado” e que “a luta de uma ‘cultura de
proposta’ contra uma ‘cultura de entretenimento’ sempre se estabelecerá através de uma
tensão dialética feita de intolerâncias e reações violentas”302 não fornece outras
sugestões do caminho a seguir.
301 - Eco, Umberto. Apocalípticos e Integrados. São Paulo, Editora Perspectiva, 1979, p.50. 302 - Ibid., p.60.
120
Conclusão __________________________________________________________________________________________________________
Tentamos analisar neste trabalho as principais questões desenvolvidas pelos
intelectuais da Escola de Frankfurt, em especial aquelas relacionadas à Indústria
Cultural e a suas correlações com a sociedade capitalista e com a cultura
contemporânea.
Vimos que não há unanimidade nas análises e caminhos percorridos, mas
algumas idéias parecem prevalecer. Adorno, Horkheimer, Marcuse e Benjamin avaliam
de forma bastante precisa o mecanismo de alienação e barateamento cultural presente na
sociedade de massas. A lógica da mercadoria, a mecanização, o processo de idiotização
dos indivíduos, a falsa democratização da cultura são expostos em toda sua extensão.
Em todos os casos também há análises aprofundadas e repletas de matizes sobre o papel
da tecnologia e da arte, que tentamos apresentar no capítulo quatro.
Além disso, o pensamento frankfurtiano é marcado de forma irremediável pela
experiência do nazismo e - à exceção de Benjamin – pelo exílio nos Estados Unidos, o
que contribui para o tom duro, sem concessões e também para as críticas quanto ao seu
pessimismo. Na verdade, o difícil contexto histórico e a constatação da impossibilidade
de uma transformação social, entre outros fatores, os conduzem a um beco sem saída.
Mas isso não inviabiliza ou diminui o valor de sua contribuição.
É importante sinalizar que as questões abordadas: difíceis, complexas, tensas
eram em boa parte originais então. Ou seja, o mérito antes de tudo foi identificar a
existência do problema e conseguir projetar a sua importância para a vida futura dos
indivíduos. Os intelectuais de Frankfurt conseguiram apontar, delimitar e avaliar com
clareza as mazelas da sociedade tecnológica – antes que elas estivessem evidentes - e de
seu maior instrumento de perpetuação, a Indústria Cultural.
121
Vendo em perspectiva e com algumas respostas – e mais algumas decepções -
em mãos parece fácil identificar falhas de percurso e proceder à acusação, o que não
deixa tal atitude menos leviana ou conivente com o status quo.
Por outro lado, aos que vêm depois, como ocorre com toda teoria, cabe sem
dúvida o aperfeiçoamento. Neste sentido, no último capítulo relacionamos alguns
exemplos da “crítica atual”, ou seja, de como as questões levantadas pelos
frankfurtianos são abordadas hoje em dia. Vimos que Habermas, considerado o
principal representante da “segunda geração de Frankfurt”, confia basicamente na sua
teoria da ação comunicativa, que pretende escapar ao pessimismo na crença de que a
competência lingüística e cognitiva dos indivíduos é capaz de conduzir, através do
diálogo, a uma razão comunicativa. Debord, por sua vez, não altera sua posição da
década de 60 e parece ainda acreditar em uma saída revolucionária, enquanto Eco prega
abertamente a integração.
Apesar de serem posicionamentos bastante diferentes, como vimos, o ponto em
comum entre os três é que trazem críticas veladas às posições frankfutianas, seja por seu
pessimismo, seu imobilismo prático ou por seu caráter muitas vezes utópico. Também
trazem em comum o fato de não conseguirem superar a teoria crítica original e
apresentarem soluções tão “utópicas” quanto as posições que tentam superar. Eco, por
exemplo, parece repetir a sugestão de Marcuse de conclamar a participação dos
intelectuais no processo produtivo. Habermas, ao propor a razão comunicativa, esquece
que na maior parte das vezes o diálogo não ocorre em igualdade de forças e nem sempre
– ou quase nunca – a opinião vencedora é a melhor. Eco e Habermas admitem dialogar
com o sistema, enquanto Debord isola-se e não desenvolve em nada o seu pensamento
anterior.
122
Posto isso, no entanto, ainda cabem algumas observações. Em nossa opinião a
primeira constatação é de que não há, hoje em dia, possibilidade real de uma cultura
descondicionada da Indústria Cultural. Não existe mais o lugar do observador puro e
incontaminado, capaz de trazer o olhar de fora para o sistema. Como mencionou
Debord, a Indústria Cultural já produziu uma geração inteiramente nascida sob o seu
domínio, ou seja, que não conheceu nenhum outro modo de enxergar o mundo.
Além disso, parece-nos que o problema realmente não está na existência de uma
cultura de massa em si, mas no fim de uma “cultura de alto nível”. O que ocorre em
nosso tempo é que a cultura barateada passou a ser hegemônica, a ponto de sufocar ou
condenar à extinção os bens culturais “de qualidade superior”. Essa sim é a novidade.
E isso não ocorre apenas em virtude da impossibilidade de sua coexistência com
a Indústria Cultural, mas também - e sobretudo – em função do regime de trabalho
imposto pelo sistema capitalista, pela era moderna. Benjamin, através de Baudelaire,
anuncia o desaparecimento da flânerie. Com ela, desaparece também a figura clássica
do homem de cultura. Os detentores do poder econômico, também eles, estão
submetidos às leis do capital. Também eles estão submetidos à divisão entre horas de
trabalho e horas de lazer - o feitiço virou contra o feiticeiro. O sistema capitalista tem
como efeito colateral o fim do intelectual, do humanista, como esse existia até o século
XIX. Eco afirma que:
O homem de uma civilização de massa não é mais esse homem. Melhor ou pior, é outro, e outros deverão ser os seus caminhos de formação e salvação. (ECO, 1979, p.38)
Deixando de lado o aspecto “integrado” de Eco parece claro que a afirmação de
que o homem da civilização de massa está distante do intelectual renascentista procede.
Nosso objetivo não é encontrar uma solução para o “problema da cultura de massa”,
123
mas nos parece que a sua análise passa necessariamente pela adoção da premissa de que
o que havia então não existe mais.
Desta forma, o desafio parece ser o de revitalizar a cultura dita superior e fazer
com que ela saia de determinados nichos e consiga se alastrar pela sociedade,
promovendo-se uma democratização real da cultura. Pelo que vemos, porém, e apesar
da simplicidade da sentença, a sua aplicação está bem longe de ser simples. A Indústria
Cultural, a ideologia tecnológica e o ritmo de trabalho da sociedade capitalista têm
constituído um antídoto poderoso à necessidade de reflexão e liberdade.
Sendo assim, o dilema ainda não foi superado. Permanece a percepção de
Marcuse de que não há prática atual capaz de responder à teoria crítica. Ou então: ainda
não há teoria atual capaz de viabilizar as mudanças práticas necessárias.
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