teologia e sociedade 7

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REVISTA TEOLOGIA E SOCIEDADE Vol. 1 nº 6, novembro de 2009, São Paulo, SP 1

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Questões de ética planetária e calvinista, normas incômodas de Antonio Conselheiro, pluralismo e missão, eclesiologia reformada, mérito e graça, Reforma e ciência moderna, Hebreus e os caminhos de fé dos antigos, mais quatro resenhas (Bart Ehrman, Frank Crüsemann, Roseli M. K. de Oliveira, Francisco Lotufo Neto e outros) compõem a revista de 2010. Seus autores: Jürgen Moltmann, Reginaldo von Zuben, Pedro Lima Vasconcellos, Eduardo Galasso Faria, José Adriano Filho, Ronaldo Cardoso Alves, Lysias O. dos Santos, Marcos Bailão, Emerson P. dos Reis e Leontino Farias dos Santos. humanas que se apresentam na atualidade, dentro do país e fora dele. Atenta às transformações de um novo século e aos anseios por um novo paradigma de ação fiel a Jesus Cristo.

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Editor

Eduardo Galasso Faria

Conselho Editorial

José Adriano Filho, Leontino Farias dos Santos, Pedro LimaVasconcellos, Ronaldo Cardoso Alves, Waldemar Marques.

Teologia e Sociedade é editada pela Faculdade de Teologia deSão Paulo, da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil

E-mail: [email protected]

Endereço: Rua Genebra, 180 – CEP 01316-010

São Paulo, SP, Brasil

Telefone (11) 3106-2026

www.seminariosaopaulo.org.br

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DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO

Teologia e Sociedade / Seminário Teológico de São Paulo / Vol. 1,nº 7 (novembro 2010). São Paulo: Pendão Real, 2010.

Anual

ISSN 1806563-5

1. Teologia – Periódicos. 2. Teologia e Sociedade.

3. Presbiterianismo no Brasil. 4. Bíblia. 5. Pastoral.

CDD 200

Revisão: Eduardo Galasso Faria

Planejamento Gráfico, Capa e

Editoração eletrônica: Seivadartes (www.seivadartes.com.br)

Ilustrações: arquivo

Impressão: Gráfica Potyguara

Tiragem: 300 exemplares

Versão eletrônica: www.ipib.org

As informações e as opiniões emitidas nos artigos assinados são

de inteira responsabilidade de seus autores.

ACESSE

www.ipib.org

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SumárioSumárioSumárioSumárioSumário4 EDITORIAL

6 A ÉTICA DO CALVINISMO

Jürgen Moltmann

18 ÉTICA PLANETÁRIA: RESPONSABILIDADE COM A CRIAÇÃO

Reginaldo Von Zuben

36 A RELIGIÃO DE ANTÔNIO CONSELHEIRO, CONSTRUTORA DENORMAS ÉTICAS INCÔMODAS

Pedro Lima Vasconcellos

50 PLURALISMO E MISSÃO HOJE

Eduardo Galasso Faria

62 O CAMINHO DE FÉ DOS ANTIGOS

José Adriano Filho

86 DO MÉRITO HUMANO À GRAÇA DIVINA

Ronaldo Cardoso Alves

RESENHASRESENHASRESENHASRESENHASRESENHAS

102 O QUE JESUS DISSE? O QUE JESUS NÃO DISSE? QUEMMUDOU A BÍBLIA E POR QUE

Lysias Oliveira dos Santos

108 CÂNON E HISTÓRIA SOCIAL. ENSAIOS SOBRE O ANTIGOTESTAMENTO

Marcos Paulo Monteiro da Cruz Bailão

112 CUIDANDO DE QUEM CUIDA: UM OLHAR DE CUIDADO AOSQUE MINISTRAM A PALAVRA DE DEUS

Emerson R. P. dos Reis

118 INFLUÊNCIAS DA RELIGIÃO SOBRE A SAÚDE MENTAL

Leontino Farias dos Santos

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A transformação do Semi-nário Teológico de São Pauloem Faculdade de Teologia deSão Paulo alterou a configu-ração da Escola de Profetas daIgreja. Agora ligada à Funda-ção Eduardo Carlos Pereira daIgreja Presbiteriana Indepen-dente do Brasil, prepara-separa o reconhecimento acadê-mico pelo Ministério da Edu-cação e Cultura (MEC).

Nossa revista também so-freu mudanças e vive uma novaetapa. Como veículo de refle-xão bíblico-teológica no cená-rio protestante brasileiro, re-força sua preocupação em dis-cutir as questões humanas quese apresentam na atualidade,dentro do país e fora dele.Atenta às transformações deum novo século e aos anseiospor um novo paradigma de

ação fiel a Jesus Cristo, tentatrilhar um caminho que leve auma ação evangelizadora maiscontextualizada.

O Conselho Editorial temuma nova composição e seusmembros revelam a preocu-pação não só com a sua quali-dade científica, mas tambémcom o seu alcance e missão

Após dois números dedica-dos aos 500 anos do nascimen-to de João Calvino, o número7 deste ano de 2010, procurareceber outros colaboradores eexplorar novos temas algumasvezes apenas despontando en-tre nós.

Tratando da sempre pre-mente questão ética em ummundo prejudicado por sua au-sência cada vez maior, temos acontribuição do teólogo JürgenMoltmann, que faz um retros-

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Editorial

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pecto da herança refor-mada nessa área. A pre-ocupação ecológica emum mundo globalizadomuitas vezes a serviço dadestruição do planeta edo descuido com a cria-ção, aparece no artigo deReginaldo Von Zuben.Em uma recuperação dahistória do nosso país,Pedro Lima Vasconcellosexplora as ideias do bea-to Antônio Conselheirona guerra de Canudos,para nos surpreendercom as “normas éticasincômodas” que servi-ram como diretriz para avida de uma comunida-de religiosa abandonada,vítima da violência discriminatóriana República Velha.

Em “Pluralismo e Missão” pro-curamos nos aproximar da ques-tão teológica no que se refere aodiálogo religioso com as outras re-ligiões, querendo descobrir suapertinência em favor de uma açãocristã libertadora. Na área de Bí-blia, dois trabalhos de exegese sãodesenvolvidos por José AdrianoFilho e Ronaldo Cardoso Alves. Aofinal, ampliamos as resenhas com

os trabalhos de Lysias Oliveira dosSantos, Marcos Bailão, Emerson R.P. dos Reis e Leontino Farias dosSantos.

Uma boa notícia também fazparte das modificações que está so-frendo Teologia e Sociedade: em bre-ve teremos a edição eletrônica, dis-ponível na internet.

Que neste tempo do advento edo natal do senhor Jesus, a leituraseja proveitosa para todos! (EGF)

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Nossa revista tambémsofreu mudança e viveuma nova etapa. Comoveículo de reflexãobíblico-teológica nocenário protestantebrasileiro, reforça suapreocupação em discutiras questões humanasque se apresentam naatualidade, dentro dopaís e fora dele.

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* Jürgen Moltmann”La ética del calvinismo.” emCERVANTES-ORTIZ (Ed.). Juan Calvino. Su vida yobra a 500 años de su nacimiento. Barcelona: Edito-rial Clie, 2009, pp. 259-269. Artigo de colaboraçãoem Moral-wuzu? Münich, Ed. R. Italiaander, 1972,pp. 140-152. Também em El Experimento esperanza.Salamanca: Sígueme, 1977, pp. 90-108.Tradução de Eduardo Galasso Faria.

O calvinismo é um conceitotanto amplo como vago para de-signar um movimento de reformadentro do cristianismo uma vezque, ao longo de quatro séculosde história, tendo se iniciado emZurique, Genebra e Estrasburgo,adotou formas bastante diferen-tes na Suíça, França, Holanda,Hungria, Alemanha, Inglaterra eEstados Unidos.

Como o próprio nome indica,remonta à atuação pessoal deCalvino em Genebra apesar de oschamados calvinistas, ao contrá-rio dos luteranos, raramente seautodesignarem com esse nome,pois não pretendiam aparecer

como partidários e adoradores deum homem, mas como imitado-res de Jesus Cristo. Diante disso,o que se conseguiu foi apenas umasólida estruturação da ortodoxiacalvinista.

O fato da Escritura e a experi-ência pessoal serem prioritáriosdiante dos documentos oficiais eda tradição, fez com que fosse con-ferido ao movimento uma enor-me liberdade em relação às suasexpressões de fé e vida. Por con-seguinte, o termo coletivo históri-co “calvinista” nada tem a ver comuma ideologia acabada. Na verda-de a palavra compreende, parausar expressões comuns, as for-mas sujeitas à ação reformadoranas igrejas reformadas da Suíça,Alemanha, dos huguenotes naFrança, dos congregacionais epuritanos na Inglaterra, dospresbiterianos na Inglaterra e na

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América, como também, ainda quemenos diretamente, dos valdensesna Itália e da Igreja Evangélica dosIrmãos Tchecos, para mencionarapenas alguns.

O que une a todas elas não é tan-to uma dogmática mas o desejocoletivo de levar a cabo, de maneiraconseqüente, a reforma da doutri-na e da vida prática, tanto dentro daigreja como nas diferentes esferasda sociedade. Sua diferença comrelação à igreja católica romana, àigreja estatal anglicana e às igrejasluteranas deve ser procurada muitomais no âmbito da estrutura eclesi-ástica e na organização comunitáriado que no âmbito da doutrina e dateologia. Do mesmo modo como aorganização comunitária e a condu-ta na vida diária mostram sempreuma estreita relação com a formaconcreta, social e política de umadeterminada sociedade, também ocristianismo reformado foi capaz detransformar-se através da história,adaptando suas formas às diferen-tes culturas.

A fé da reforma significa, nomarco das igrejas reformadas, fé naatuação permanente, reformadorae renovadora de Deus. “Reforma”já não tem o mesmo significado quepossuía nos movimentos reformis-tas medievais, ou seja, de renovação

da igreja como obra das pessoas deboa vontade, mas como ação deDeus na história. A reforma deDeus como movimento renovadorda fé afeta, sem dúvida, o ser hu-mano em sua totalidade, o indivíduoe sua situação religiosa, social e po-lítica. Dada a íntima relação entre aigreja e a sociedade, não basta levara cabo uma reforma apenas daque-la. Esta é a objeção que frequente-mente alguns reformados apresen-tavam contra os luteranos. À “refor-ma da doutrina” deve-se seguir a“reforma da vida” uma vez que arenovação, como reforma de Deus,tem alcance universal. Se bem com-preendemos, não é mais que a re-forma escatológica do mundo, emvirtude do reino no qual “Deus étudo em todas coisas.”

Na Alemanha a igreja reforma-da, que surgiu no Palatinado em1563 (Catecismo de Heidelberg), seconsiderava como portadora da “se-gunda reforma” ou então, como sen-do “a consumação da reforma” deMatinho Lutero. “Reforma” aquijamais significou a aceitação de umfenômeno único ao qual sempre sedeve remeter, mas foi entendidacomo reforma permanente e tarefainacabada, que se experimenta sem-pre e que deve ser realizada de novo.Por esse motivo, as igrejas se nome-

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avam ecclesia reformata et semperreformanda (igreja reformada, sem-pre se reformando). O entendimen-to desta ação total do espíritoreformador de Deus pode ser con-siderado como característica parti-cular do “calvinismo”. Daqui proce-dem a determinação de colocar sobo mandato de Deus toda a vida pú-blica bem como uma ética que, aci-ma da moral privada do indivíduo,exerce influência crítica tanto nacultura como na economia e, final-mente, na disposição para a resis-tência política contra a tirania.

A “moral do calvinismo”, se as-sim a quisermos chamar, se carac-teriza pelo seguimento de Cristo emtodos os níveis da vida e a sua com-pleta santificação em direção ao fu-turo de Deus. Trataremos seguida-mente deste tema, escolhendo comocampo de análise a vida pessoal (1),a ética econômica (2) e a ética polí-tica (3). O desenvolvimento destaexposição baseia-se apenas em tiposideais para enfatizar temas impor-tantes da atualidade.

Vida pessoal

A fé reformada considera a vidapessoal do ponto de vista da vocaçãoe da santificação. A fé do indivíduo

já não consiste em participar de umacontecimento eclesial, objetivo esupra-individual, dentro do qual senasce e se “é assistido pastoralmen-te” do nascimento à morte. A fépessoal provém, acima de tudo, deum acontecimento vocacional. O serhumano é chamado em meio às suasmúltiplas ocupações vitais de cará-ter religioso, social e político, paraentrar em comunhão com Cristo.Em virtude dessa comunhão comCristo morre o velho homem, es-cravizado pelas leis da religião bur-guesa, da sociedade que o circundae da política que o governa para queressuscite um novo homem, libera-do para a liberdade de Cristo. O serhumano é chamado a participar naglória futura de Deus, pela qual todaa criação, ansiando por esperança,será libertada da servidão àcorrupção (Rm 8.18s).

O chamamento pela palavra doevangelho liberta o ser humano dosvínculos alheios a Deus neste mun-do e, ao mesmo tempo, o coloca sobo preceito divino que o encaminhaà vida e conduz toda a criação parao reino de Deus, que há de brilharsobre o mundo inteiro envolto emtrevas mas que, na verdade, com aepifania de Cristo, já começou a res-plandecer.

Da experiência com essa voca-

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ção pessoal brota a missão de santi-ficar toda a vida profana na direçãodo reino de Deus. A partir daí a féreformada sempre entendeu o pre-ceito de Deus e os mandamentos doAntigo e do Novo Testamento comopautas para a nova vida de fé. O pre-ceito, entendido no sentido de exi-gência divina, atua precisamentecomo uma denúncia permanentedos pecados e negligências do serhumano. É um espelho no qual o serhumano se reconhece envolto emsua culpa infinita na presença deDeus. Todavia é um espelho quemostra ao mesmo tempo o Cristocrucificado, que assumiu toda a suaculpa e o reconciliou com Deus detal forma que ele, como criatura dagraça divina, pode viver de acordocom os mandamentos divinos,correspondendo com uma nova obe-diência diante de Deus.

Alguns teólogos reformados nun-ca entenderam nem interpretaramo mandamento divino apenas doponto de vista do ser humano peca-dor e incapaz, mas também e prin-cipalmente do ponto de vista do serhumano vocacionado, justificado ecapacitado pelo Espírito. Isso sedu-ziu muitos calvinistas e puritanos,desviando-os para uma nova legali-dade moralista. Mesmo assim, noespírito de uma nova obediência, foi

muito maior o número dos cristãosatraídos pela alegria do cumprimen-to da lei de Deus e da boa consciên-cia. Em primeiro plano não apareceo ser humano pecador, sempre coma consciência pesada, mas o homemaliado do Deus da graça, como tes-temunha cooperante do reino futu-ro. Santificação quer dizer separa-ção, seleção e eleição para uma vidadiferente e um serviço especial. Aomesmo tempo, santificação signifi-ca transformação desta vida, obedi-ência pessoal e pública, existir-para-todos.

Como foi, em razão da vocaçãoe em nome da santificação, sua apli-cação prática na vida pessoal?

O próprio Calvino foi educadono humanismo reformista francês.No entanto, desde 1540 aproxima-damente, se distanciou de seus ami-gos humanistas. Todos eles erampartidários da reforma, mas apenasna esfera íntima da fé e do conheci-mento. Ele se separou deles porqueconsiderou o caráter íntegro e ab-soluto da reforma como reforma deDeus, que comporta implicitamen-te uma nova configuração para to-das as relações humanas. Posterior-mente haveria de chamar esteshumanistas franceses, partidários dareforma mas inconseqüentes, de“nicodemitas”, ou seja, homens que

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desejam dialogar com Jesus à noitepara não se comprometer, enquan-to durante o dia continuam submis-sos exteriormente às velhas estru-turas. Para Calvino, a propagação doevangelho origina, inexoravelmente,escândalos e perturbações. Preveni-dos, eles evitavam esses escândalosque perturbavam a ordemestabelecida e a paz reinante.

A paz de Cristo leva à inquieta-ção diante da discórdia organizadadeste mundo. A paz verdadeira, quese fundamenta na justiça, não deixao mundo tranqüilo, mas o desafia.Foi Calvino, por esse motivo, um“revolucionário”? Por certo não o foino estilo de Thomas Münzer na re-belião dos camponeses alemães.Mesmo assim, o rei da França, du-rante anos, justificou as cruentasperseguições aos protestantes, argu-mentando que eles nada mais eramque agitadores políticos. Calvino, emcartas públicas, protestou contraisso. Condenou o uso da força nasguerras civis entre huguenotes e aLiga Católica da França, fortalecen-do as comunidades para a resistên-cia passiva e a perseverança no so-frimento. Sem dúvida, o cristianis-mo huguenote foi provocador e agi-tador do ponto de vista político e,nesse sentido, “revolucionário”.

As comunidades reformadas for-

mavam minorias a leste e ao sul daEuropa. Seu destino foi marcadopelo menosprezo, as represálias, ocárcere, a expulsão, a emigração ea morte. O fato de manifestaremuma sólida vocação na fé não tinhaqualquer relação com uma consci-ência de eleição elitista. Para elas,eleição praticamente nada mais éque perseverar na fé até o fim, resis-tir a todas as tentações e medidascoercitivas, demonstrando uma fir-meza inquebrantável. Devemos en-tender a doutrina calvinista dapredestinação à luz das experiênci-as de sofrimento e perseguição, domesmo modo que a admirável re-sistência de muitos desses cristãos.Do contrário, absolutamente nãoentenderemos.

A esse respeito, um testemunhoinesquecível é a expressão recister,gravada em pedra por MarieDurand na torre de Constance emAigues Mortes, no sul da Françaonde ela permaneceu encarceradapor quarenta anos. Quando os cris-tãos reformados mostravam em suavida a santificação, queriam expres-sar, na situação beligerante em quese encontravam, a necessidade donão-conformismo cristão, bemcomo a obrigação de perseverar esofrer em sua condição de peregri-nos e estrangeiros para superar com

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paciência e firmeza todo tipo deoposição, seja exterior ou interior.A moral calvinista tem sido, comalguma freqüência, censurada porum certo zelo laborioso capitalistae lucrativo. De fato, seus escritosmuitas vezes dizem que “trabalho”não significa “produzir,” mas supor-tar a dor, os sofrimentos e contra-tempos que sobrevinham para al-guém em conseqüência de sua vidade fé.

O que nos mostram as biografi-as de numerosos cristãos reforma-dos, huguenotes, valdenses, purita-nos e irmãos, nada mais é que umainquebrantável firmeza de fé bemcomo uma atitude conseqüente eabnegada de resistência frente à se-dução e à perseguição. Hoje em dia,quanto mais os cristãos forem cons-cientes de sua condição minoritária,na qual perdem a proteção de umasociedade “cristã”, tanto mais po-dem aprender da moral calvinistapara se fazerem, por amor a Cristo,estranhos em sua própria socieda-de e nação. Na história do cristia-nismo reformado se evidencia cla-ramente o valor de ser distinto dosdemais. Somente quem é diferenteé capaz de “existir para os outros”.Ao contrário, será mais um dentroda massa.

Ética econômica

Desde seus inícios em Zurique eGenebra, o cristianismo reforma-do esteve presente, acima de tudo,nas grandes cidades. Na França, pro-pagou-se por intermédio dos comer-ciantes e para outros países foi leva-do pelos emigrantes. Daí surgiu umacerta aliança com a burguesia emsuas lutas pela liberdade contra aestrutura feudal e o senhorio eclesi-ástico medievais. É fato que nos pa-íses e nações de tradição protestan-te e especificamente calvinista, maisque em quaisquer outros nos tem-pos modernos, se desenvolveu commaior rapidez a conquista científicae industrial do mundo. O historia-dor, sociólogo e economista alemãoMax Weber deduziu a partir daí suacélebre tese sobre a “afinidadeeletiva” entre calvinismo e capita-lismo, hoje propagada por muitosque afirmam ser o calvinismo a “re-ligião do capitalismo”, mesclando“espírito e dinheiro”. Entretanto,esta afirmação carece de provaquanto à sua veracidade, uma vezque do ponto de vista histórico, atese de Max Weber consegue ape-nas se sustentar.

A autoridade em que apropria-damente se apóia Weber é o inven-

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tor e estadista norte-americano Ben-jamin Franklin, que viveu de 1706 a1790, ou seja, duzentos anos depoisde Calvino, na época do mercan-tilismo. Weber encontrou emFranklin o axioma com matiz reli-gioso e ético de que o trabalho semdescanso é um fim absoluto e que aampliação do capital representa oobjetivo supremo. Ele acreditou ha-ver encontrado a conexão entre areligião e a acumulação de capitalna doutrina calvinista da predes-tinação. Para ele, essa doutrina iso-la o ser humano em seu caminhopara Deus e o despoja da mediaçãoinstitucional dos sacramentos daigreja, deixando-o abandonado deforma absoluta às suas próprias for-ças. Como é possível ter a certezade ser um dos eleitos? Já que con-forme o Novo Testamento, somen-te a árvore boa produz bons frutos,a alma solitária deve assegurar-se desua eleição mediante novas boasobras. As boas obras já não consti-tuem um meio para se comprar océu, mas para se libertar da ansie-dade por causa da salvação eterna.Uma vez que devemos sempre pra-ticar as boas obras, não é lícito con-sumir os frutos do trabalho mascapitalizá-los. Weber chamou estaconduta na vida religiosa que, segun-do ele, era facilmente observada

nos puritanos do século XVII, de“ascese imanente”. Acreditava vernela esse espírito que caracterizouo capitalismo moderno: formaçãodo capital mediante a poupançaascética.

Na “origem do economista mo-derno” encontrava-se o puritanopreocupado com sua predestinação.Aí se forjaram “esses altivos ´san-tos` que encontramos reencarnadosnos resistentes comerciantes puri-tanos da época heróica do capitalis-mo e em alguns exemplares isola-dos que, vez por outra, podemosencontrar em nossa era contempo-rânea.” Weber todavia, não foi ca-paz de apresentar como provas his-tóricas senão alguns textos purita-nos tardios como o de RichardBaxter (Christian directory or dobyof practical divinity (1673) e de R.Steele (The tradesman´s Calling,1684). Inclusive, desses escritos,mencionou apenas metade da ver-dade. Silenciou sobre a responsabi-lidade diante da comunidade, a pre-ocupação com os fracos e a educa-ção para o bem comum, que estãoexpressos nesses escritos pastoraise que constituem patrimônio fun-damental da vida puritana.

Existe nos escritos dos teólogoscalvinistas uma conexão clara entrea fé na própria eleição e o afã co-

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mercial? É certo que a tese de Weberparece verossímil, mas carece debases históricas. Ele mesmo consi-derou o calvinismo como exceção.Para este, é Cristo em primeiro lu-gar e principalmente, o “espelho dapredestinação”. É o conhecimentoda paixão e morte de Cristo em fa-vor dos seres humanos que confereao crente a certeza de sua vocação eeleição. Para Calvino existem emconseqüência, sinais concomitantes,tais como o temor de Deus no co-ração e a comunidade eclesial, quese reúne em assembléia para aliturgia da palavra e a ação euca-rística. Calvino não menciona os fru-tos do trabalho profissional.

O sínodo calvinista de Dordrecht(1618) fala igualmente de Cristocomo revelação da predestinação deDeus, assim como do autoconhe-cimento da fé verdadeira e perseve-rante, do temor filial a Deus, dosofrimento pelos pecados e, somen-te em último lugar, do zelo de umaboa consciência e das boas obras.Em nenhum lugar menciona queessas “boas obras” consistem no tra-balho profissional incessante e naacumulação egoísta do capital, mes-mo na literatura piedosa do purita-nismo tardio. Somente a moral pro-saica do comerciante da épocavitoriana podia se expressar dessa

maneira. Não é possível demonstrarque exista uma relação intrínsecaentre a fé calvinista-puritana napredestinação e o espírito do capi-talismo.

A gênese do capitalismo é muitomais complicada do que se podepresumir da simples tese de MaxWeber. Economias capitalistas se for-maram durante a época doRenascimento nas cidades lom-bardas. As gestões econômicas dosFugger, Welser, Paumgartner e ou-tros financistas de confissão católicaeram claramente “proto-capitalistas”.O mercantilismo de certos príncipesabsolutistas, como o Rei sol católicoda França, pode igualmente ser clas-sificado de “capitalista”.

O fato de que no século XVIIformas econômicas capitalistas e asprimeiras indústrias de grande im-portância se desenvolveram maisrapidamente nos países de confissãoreligiosa calvinista que em outros,não teve outra explicação lógica anão ser as circunstâncias histórico-econômicas e geográficas dessespaíses. O descobrimento da Améri-ca e dos caminhos marítimos paraa Ásia substituíram os centros co-merciais ao norte e leste da Europa.Ficou comprovado, no que se refe-re à própria Genebra, que o predo-mínio calvinista serviu mais para

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paralisar do que para promover odesenvolvimento do capitalismo.Quando em 1568 e mais tarde, em1580, se quis fundar um banco, ospastores conseguiram impedir.

Mas como seria a ética econô-mica calvinista uma vez que a tesede Max Weber com certeza nãocorresponde à realidade? Em Ge-nebra, a reforma se propôs a reali-zar a tarefa de renovar não só a fé,mas toda a vida da igreja, da socie-dade e da política. Calvino partici-pou ativamente na elaboração danova ordem civil (1543). Condenoua instituição mercenária e o nacio-nalismo genebrino, tendo sido o es-pírito inspirador de uma nova polí-tica para os refugiados.

A instituição do diaconato foi vin-culada a renovação da assistênciasocial e da estrutura hospitalar.Calvino recebeu de Lutero o con-ceito reformador do trabalho pro-fano como profissão. Uma vez quena Idade Média, este vocábulo erareservado exclusivamente às profis-sões clericais e que a vita contem-9plativa tinha maior consideraçãodo que a vida ativa, fica evidente queLutero e Calvino imprimiram aotermo um novo significado. Dentrodo “sacerdócio universal de todos oscrentes”, todo cristão possui suaprofissão específica. O trabalho, em

qualquer profissão, está sob o man-damento e a promessa de Deus. Estaé exatamente a razão primordialpela qual Calvino exaltou o sentidocomunitário do trabalho profissio-nal. “É preciso trabalhar para quetodos possam sobreviver, mas o tra-balho precisa ser feito de forma queos pobres não sejam explorados pe-los ricos, por estrangeiros ou nacio-nais e os fracos pelos fortes” (M.Geiger).

Em sua avaliação sobre os ren-dimentos, os mesmos critérios fo-ram aplicados por Calvino. Ao in-terpretar certas passagens dos pro-fetas do Antigo Testamento sobreessa questão, aplicando-as à suaprópria situação, Calvino conside-rou a renda como ilícita nos seguin-tes casos: exigir juro do pobre; in-vestir capital para obter lucro semlevar em conta a ajuda aos necessi-tados; firmar contratos de rendimen-to sem levar em conta a regra deouro de Cristo (Mt 7.12). Calvinopreparou disposições canônicas esubordinou a vida econômica à or-dem divina. Por conseguinte, paraele, o decisivo era “o direito do pró-ximo”, sobretudo do fraco e do re-fugiado.

Na ética econômica de Calvinoe do calvinismo o trabalho e a pro-priedade estão a serviço do próxi-

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mo, uma vez que “Deus é o advoga-do dos pobres, dos estrangeiros e dosdesertores”. As comunidades refor-madas sempre se destacaram porsuas organizações exemplares deassistência social. Esse capitalismo,segundo o qual, o homem é lobo dohomem, é diametralmente opostoao espírito calvinista. Na Alemanhafoi adotado como protótipo de as-sistência social estatal “o sistema deElberfeld”, praticado pela comuni-dade calvinista dos Países Baixos, oque ocorreu também na Suiça,Holanda e Inglaterra. A ética eco-nômica calvinista acabou com a an-tiga sociedade estamental eclesiás-tica, porém não se tornou o prece-dente do capitalismo e sim de es-truturas sociais fundamentadas najustiça e liberdade.

Ética política

A ética política das igrejas refor-madas valoriza em primeiro lugar aideia do pacto religioso e a doutrinado contrato estatal. Da longa histó-ria de perseguição e resistência nas-ceram as teses do direito de resis-tência ativa do povo e dos cristãosdiante das autoridades tirânicas,extraindo-se mais tarde dessas te-ses as bases teológicas da democra-

cia. A partir da trágica noite de SãoBartolomeu, em Paris, em l572,Teodoro Beza, François Rotman eHuberto Languet desenvolveramuma doutrina do Estado e uma éti-ca política novas. De um lado, seapoiaram na “constituição” do Sa-cro Império Romano, baseado emuma multiplicidade de contratos ecapítulos eletivos e, por outro, apli-caram a ideia de aliança do AntigoTestamento.

Eles substituíram o antigo con-ceito de autoridade estamental pelaideia contratual, que teve importan-tes conseqüências em toda a histó-ria moderna: Deus selou um duplopacto com seu povo eleito. O pri-meiro, feito com a totalidade dopovo, renova seu juramento na fes-ta comemorativa da aliança. Porconseguinte, no que se refere aoexercício do poder político, somen-te sobre esta base pode ser feito opacto entre Deus, o povo e o rei. Aautoridade do rei deriva da sobera-nia do povo como povo de Deus. Seo rei rompe o pacto, sua autoridaderecai sobre o povo e os que o repre-sentam têm o direito e a obrigaçãode se opor a ele. Uma vez que o pac-to é selado na presença de Deus, aresistência será justificada sempreque o rei quebre os mandamentosdivinos ou se comporte como um

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inimigo de Deus. Esta é a resistên-cia em questões de ordem espiritu-al. Daqui se deduz, sem dúvida, queo povo tem igualmente o direito àresistência sempre que o reidescumpra seus acordos políticosfeitos com ele. Esta é a resistênciapor amor ao próximo.

Destas ideias bíblicas, relativas àaliança, surgiu o Estado constituci-onal moderno, anulando o poderestamental e a mentalidade de ser-vidão. Um soberano que rompe in-sistentemente a obrigação recípro-ca do pacto ou da constituição, deveser considerado como um tiranodeclarado. É preciso obedecer an-tes a Deus que a um tal mostro. Umpovo que não cumpre suas obriga-ções originárias do pacto, deve serconsiderado revolucionário. É pre-ciso enfrentá-lo. Embora Lutero naguerra dos camponeses tenha con-siderado a rebelião como um malmaior que a tirania, os calvinistas aenxergaram com maior clareza, ex-perimentando em sua própria car-ne a miséria da tirania espiritual epolítica. Ao traduzir a ideia deLutero de “sacerdócio universal detodos os crentes” para o conceito de“realeza comum de todos os cren-tes” eles se tornaram os pioneirosda democracia moderna.

Não só o rei, mas todos os ho-

mens são feitos à imagem e seme-lhança de Deus, dizia John Milton.Portanto, todos nós somos criadospara reinar e não para a servidão.Aí está a base para que uma comu-nidade constituída de seres huma-nos livres regule o exercício do po-der político à base de contratos. Acoroa não está sobre a cabeça de umser humano, mas sobre a constitui-ção. Por ocasião da declaração daindependência dos Estados Unidosse discutiu ampla e detalhadamentese a constituição deveria se chamarcovenant (pacto) ou constitution (leifundamental) e isso mostra o quan-to a ideia de aliança influenciou ahistória constitucional moderna.Esta delimita, regula temporaria-mente e controla o exercício do po-der político por meio do povo e seusrepresentantes, responsáveis unica-mente diante de Deus.

Na história existe um único cre-do cristão que deu lugar ao direitode resistência, que é o Credo Esco-cês de 1560. Nele se diz, no artigo14, ao comentar o quinto manda-mento: “não matarás”, que “se deveenfrentar a tirania (represse tyranie)e não tolerar que se derrame san-gue inocente”. Aqui, como se podeobservar na atuação de John Knoxe seus companheiros, não se estápensando apenas em resistência pas-

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siva, mas também em resistênciaativa que, em certas circunstâncias,utiliza a violência contra a violência.Significa isto uma justificação cris-tã da violência da base? De acordocom a ética política calvinista, a re-sistência ativa contra a tirania ma-nifesta não é nada mais que o legíti-mo exercício do poder estatal. Seum soberano infringe o contrato,automaticamente o poder fica como povo. A legitimidade do poder sedá na resistência ativa ao tirano ape-sar dele controlar os meios de po-der do Estado. Ser obediente a Deusno mundo da política significa tam-bém participar direta ou indireta-mente no exercício do poder políti-co. Daqui se deduz que a resistên-cia ativa por amor ao próximo opri-mido não é apenas um direito, mastambém um dever do cristão.

Esta fundamentação teológica doEstado, partindo do pacto feito comDeus e, por conseguinte, da consti-tuição, e esta fundamentação mo-ral do dever de resistência ativa con-tra a violência institucional, se im-põem mais do que nunca aos cris-tãos em meio à confusão em quevivem na área da política. Teria sidodiferente o curso da história alemãse as igrejas houvessem aceitado estaética e não tivessem cultivado amentalidade de autoridade-súdito.

Na luta contemporânea contra as di-taduras racistas existentes no mun-do, tem-se buscado uma soluçãorelativamente lúcida, enraizada natradição calvinista: o caso de tiraniae, daí, de legítima resistência quan-do um governo quebra suas própri-as leis, promulga leis contrárias à suaprópria constituição ou estabelece,afinal, uma constituição que contra-diz abertamente a Declaração Uni-versal dos Direitos Humanos. Estecaso não se define por razões ideo-lógicas, ou seja, porque a democra-cia seja a melhor forma de governo,mas por causa do direito do próxi-mo e a proteção dos fracos.

Deus selou um duplopacto com seu

povo eleito.Jürgen MoltmannJürgen MoltmannJürgen MoltmannJürgen MoltmannJürgen Moltmann

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Ética Planetária:Responsabilidade com

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*Reginaldo Von Zuben, pastor, Mestre em Ciências daReligião, professor na Faculdade de Teologia de SãoPaulo (IPIB) e na Faculdade Teológica Sul Americana,Londrina.

Nas últimas décadas do séculoXX e já nesse início de século XXItornou-se mais acentuada a neces-sidade de uma ética que abranja to-das as dimensões da vida no plane-ta Terra. Uma ética voltada ape-nas para o âmbito das ações ou dosinteresses pessoais emercadológicos já não é adequadapara enfrentar os principais proble-mas e desafios na história atual dahumanidade.

Diante dessa constatação, vemganhando cada vez mais importân-cia o conceito de ética planetária, quetem sido utilizado em contraposiçãoao sistema e principalmente às con-seqüências da chamada globalizaçãoque, por sua vez, é apontada comuma das principais responsáveis pordiversas crises, conflitos e fracassosno mundo atual.

É em conformidade com essasperspectivas que o tema da Teolo-gia da Criação ganha cada vez maisimportância nos meios teológicose eclesiásticos. Esse tema tem des-pertado e conscientizado os cris-tãos para se preocuparem e agiremno sentido do bem-estar planetá-rio como forma de servir e glorifi-car a Deus, tanto no cumprimen-to da vocação divina e exercício damordomia cristã, como no ofere-cimento de contribuições signifi-cativas para uma ética planetária.

1. Situação deambigüidades e

crises advindas daglobalização

Diante de um considerável pro-cesso histórico, encontramo-nos naatualidade em uma situação ambí-

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gua: ao mesmo tempo em que ahumanidade contempla inúmerosavanços na área da saúde, informa-ção, tecnologia, computação, ciên-cia e transporte, dentre outros, pre-sencia profundas desigualdades, in-justiças e tragédias mundiais. Essaambigüidade pode ser percebida,por exemplo, no mesmo instante emque acessamos a internet e nos de-paramos com as principais notíciasestampadas na primeira página deum site. À luz dos acontecimentose do que significou o século XX emtermos de progresso e catástrofes,Hobsbawn (2007, 9) afirma:

O século XX foi a era maisextraordinária da história dahumanidade, combinandocatástrofes humanas de di-mensões inéditas, conquistasmateriais substanciais e umaumento sem precedentes danossa capacidade de transfor-mar e talvez destruir o plane-ta – e até de penetrar no es-paço exterior.

Frente a tantos progressos, a si-tuação mundial é marcada por inú-meras crises. Na perspectiva daética planetária, queremos menci-onar apenas três delas: crise soci-al e política marcada por profundas

desigualdades e injustiças econômi-cas; crise em relação ao futuro dahumanidade diante das ameaças datecnologia e da ciência; crise ecoló-gica devido ao desrespeito e explo-ração indevida dos recursos naturais.

Estas crises têm em comum adimensão planetária, a ameaça dobem-estar mundial e o risco da qua-lidade e da própria vida humana noplaneta Terra. A globalização, frutode um longo processo histórico, éindicada como uma das principaisresponsáveis por essa situação, mo-tivo pelo qual se torna urgente umaética planetária.

No sentido restrito e econômi-co, por globalização entende-se aprogressiva transformação da eco-nomia mundial mediante a coliga-ção de mercados nacionais e regio-nais que formam uma rede paraalém das fronteiras nacionais. É umprocesso que tem por objetivo aintegração de mercados consumido-res e produtores, visando o lucroacima de tudo e de todos. Aliadacom o capitalismo neoliberal, aglobalização proporcionou aabsolutização do mercado e passoua ditar as regras de convivência paratodos os povos. Sendo assim, ela estárelacionada às questões que confi-guram a predominância do capita-lismo, a criação do mercado em ní-

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vel mundial e a regulação da econo-mia em nível global.

A globalização proporcionou oaumento da economia e da riquezamundial. Aliada ao desenvolvimen-to tecnológico e científico, ela trou-xe inúmeros benefícios para a vidahumana. Porém, seu modelo de de-senvolvimento e progresso é desi-gual, injusto e opressor, já que con-tribui para o sofrimento da maioriada população ao promover a pobre-za, fome, miséria e urbanização de-sorganizada. Nesse sentido, a con-seqüência visível da globalização é ocrescente desequilíbrio social.Kesselring (2007,160) destaca essasituação da seguinte maneira:

Nos últimos séculos, o co-mércio e a troca internacio-nais certamente aumenta-ram, porém as sociedadesparticipantes tiraram provei-to muito diversificado dessatroca. Entre diversas socieda-des ou grupos de sociedadesabriu-se uma espécie de abis-mo de bem-estar que, com otempo, se tornou cada vezmais profundo.

Com a globalização, o atual ce-nário econômico beneficia poucosem detrimentos de muitos, ou seja,

o progresso de uns resulta namarginalização de outros. Há paí-ses que participam e se ajustam ànova ordem internacional e, comisso, usufruem de vantagens advindasdo sistema vigente, tornando-se maisricos ainda, enquanto outros são co-locados à margem, condenados àexclusão e marginalização, aumen-tando sua pobreza.

Atrelada à economia capitalistade mercado, a globalização tambémtem implicações no âmbito políti-co. As mudanças ocorridas no ce-nário econômico e produtivo resul-taram no enfraquecimento dos es-tados nacionais. O plano da econo-mia mundial desenvolveu a capaci-dade de ação global de tal formaque, além de conseguir autonomia,tornou os estados dependentes des-se plano. Isso forçou os estados aenfrentarem uma espécie de reor-ganização do seu sistema e formade atuação por se tornarem obso-letos ou antiquados diante dessanova organização mundial.

Os estados nacionais tambémforam prejudicados com a criaçãode um sistema bancário mundial,setor responsável tanto para promo-ver empréstimos às grandescorporações globais como para pos-sibilitar o processo internacional derealização do capital. Esse quadro os

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afeta gravemente porque interfereem seu planejamento econômicoe social, já que a integração finan-ceira internacional torna cada vezmenos importante suas políticasmonetárias e fiscais. Em relaçãoao enfraquecimento do Estado,Bauman (1999,73) expressa o se-guinte parecer:

“ […] os mercados financei-ros globais “impõe suas leis epreceitos ao planeta. A‘globalização’ nada mais é quea extensão totalitária de sualógica a todos os aspectos davida”. Os Estados não têmrecursos suficientes nem li-berdade de manobra para su-portar a pressão – pela sim-ples razão de que “alguns mi-nutos bastam para que em-presas e até Estados entremem colapso”.

No mundo globalizado, tudo giraem torno do mercado para favore-cer seus interesses. O crescimentoeconômico e a ação política passampela participação das leis impesso-ais do mercado, do consumo e daprodução. Quer o estado, quer asociedade, ambos devem adequar-se às novas formas, critérios e opor-tunidades determinadas pelas exi-

gências dessa nova ordem mundi-al. Nesse sentido, o mercado tor-na-se mecanismo auto-regulador dasociedade, ou seja, é capaz de cons-tituir o ideal da vida social median-te as configurações da economiacapitalista.

Nessa ótica, o consumo e a con-corrência passam a desempenharum papel significativo na configura-ção da sociedade, pois elas são con-cebidas como responsáveis pela or-ganização social devido aos espaçosde relações comerciais e produtivas,além das trocas simbólicas. A con-cepção de cidadania nessesparâmetros é definida pelo ponto devista do consumo, isto é, ser cida-dão implica em menos atividadepolítica e maior capacidade em con-correr e consumir. Bauman reconhe-ce que sempre houve a prática doconsumo em qualquer sociedade,mas na atualidade ela se eleva emrelação ao trivial, tornando-se pro-funda e fundamental. Consideran-do a influência da sociedade sobreseus membros, novamente Bauman(1999, 87-88) afirma:

Nossa sociedade é uma soci-edade do consumo [...]. Amaneira como a sociedadeatual molda seus membros éditada primeiro e acima de

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tudo pelo dever de desempe-nhar o papel de consumidor.A norma que nossa socieda-de coloca para seus membrosé o da capacidade e vontadede desempenhar esse papel.

Além da crise econômica, polí-tica e social provocada pelaglobalização, outra crise é a ecoló-gica. Um dos principais temas daatualidade é o do meio ambiente, oqual nos alerta para o fato de que,nos últimos séculos, o mesmo vemsendo extrema e indevidamenteagredido e explorado. A estimativaé de que se permanecerem os atu-ais referenciais de desenvolvimen-to, progresso e consumo, os recur-sos naturais se esgotarão e inúme-ras conseqüências surgirão no sen-tido de dificultar e até ameaçar avida humana no planeta Terra.

Os dados estatísticos indicamque a gravidade do problema ecoló-gico é alarmante. Para satisfazer asnecessidades socialmente criadas eos interesses capitalistas de consu-mo e produção, desencadeou-se umprocesso de desmatamento, polui-ção, produção de lixo, extinção deanimais e exploração dos recursosnaturais em proporções gigantescas.Toda essa situação ameaça o equilí-brio da base natural da vida.

Assim, é possível reconhecer quea globalização contribui para umprocesso depredador da naturezapelo comportamento que leva àexaustão e esgotamento das fontesde energia natural. O empobreci-mento da biosfera, elevação da tem-peratura do planeta e absorção cres-cente de recursos não-renováveissão as três principais conseqüênci-as desse processo.

Outra crise presente na atualida-de é provocada pela ciência etecnologia, as quais também se en-contram relacionadas à glo-balização. A maneira irresponsávelde lidarmos com os avanços nessasduas áreas tem gerado ameaças aofuturo da humanidade e ao bem-es-tar planetário. Além disso, os benefí-cios provenientes delas promovem aexclusão da maior parte da popula-ção mundial. Sobre esse assunto,Sullivan (2004,323) reconhece os as-pectos positivos, mas não deixa demencionar as conseqüências:

Atualmente, a comunidade hu-mana está tão envolvida nos proces-sos científicos e tecnológicos quenão temos como nos afastar deles,mesmo que agora se saiba que asconquistas desejáveis sãoinseparáveis de uma miríade de efei-tos indesejáveis. A vida humana pas-sou a dispor de vantagens maravi-

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lhosas graças a esses recursos juntoa enormes dificuldades. Na verda-de, foi a partir das proezas extraor-dinárias da ciência e da tecnologiaque muitas das nossas dificuldadesatuais surgiram. Podemos ver essetipo de coisa no aumento da popu-lação ocorrido no mundo inteiro.Esse processo levou, ao menos tem-porariamente, a mais empobreci-mento e, até, a um impasse em nos-sas tentativas de aumentar o bem-estar humano.

É diante desses apontamentosque a globalização em nosso atualmomento revela-se um sistema ple-no de ambigüidades. O processo his-tórico marcado pelo que se deno-mina de desenvolvimento mundialpromovido pela globalização, prin-cipalmente em termos econômicos,caracteriza-se como situação ambí-gua. Morin (2000,45) compreendeesse estado como paradoxo e de-nuncia a cegueira para os problemasglobais:

Daí decorre o paradoxo: oséculo XX produziu avançosgigantescos em todas as áre-as do conhecimento científi-co, assim como em todos oscampos da técnica. Ao mes-mo tempo, produziu nova ce-

gueira para os problemas glo-bais, fundamentais e comple-xos, e esta cegueira gerou inú-meros erros e ilusões, a co-meçar por parte dos cientis-tas, técnicos e especialistas.

Diante dessas crises que fazemparte do nosso presente momento,as perspectivas não são tranqüi-lizadoras em relação as condições devida planetárias. A tendência é agra-var a situação e convivência mundi-al se prevalecer a ética da concor-rência, do interesse último pelo lu-cro e da exploração desenfreada dosrecursos naturais.

2. Necessidade eimplicações da ética

planetária

Diante da situação de crise mun-dial descrita acima, vários pensado-res, em diversas áreas do saber,alertam para a necessidade de umaética planetária em nossos dias.Com suas próprias especificidadese preocupações, cada pensadoraponta para as dimensões planetá-rias do agir humano, ou seja, desta-ca a ênfase sobre o pensar de formaglobal para além das questões eco-

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nômicas, tecnológicas e científicas.Dentre eles, destacam-se EdgarMorin com a expressão “sociedadeplanetária”, Moacir Gadotti com“cidadania planetária” e LeonardoBoff com “civilização planetária”. Oeducador canadense EdmundO’Sullivan e o brasileiro ManfredoAraújo de Oliveira são os que cons-tantemente se utilizam da expressão“ética planetária”.

A ética planetária considera, re-flete e avalia a situação do mundoatual e oferece alternativas funda-mentais para que os conflitos e ascrises sejam amenizadas e, se possí-vel, sanadas. Ela aponta para princí-pios que norteiam a forma de viver,pensar e agir em relação ao próprioser humano, à vida em sua diversasdimensões e ao planeta Terra.

Algumas preocupações emer-gentes acompanham e favorecemo surgimento da ética planetária.Uma delas diz respeito ao futuro.A indagação básica é: como será avida no futuro se dermos prosse-guimento aos atuais comportamen-tos e valores vigentes no mundoatual? Vale ressaltar que a preocu-pação com o futuro não se limitaapenas à sobrevivência do ser hu-mano, mas à qualidade de vida des-sa sobrevivência. Nesse sentido,Jonas (2006,21) alerta:

Como se trata não apenas dodestino do homem, mas tam-bém da imagem do homem,não apenas de sobrevivênciafísica, mas também da inte-gridade de sua essência, a éti-ca que deve preservar ambasprecisa ir além da sagacidadee tornar-se uma ética do res-peito.

A importância da imagem e daintegridade da essência humana fazcom que a ética planetária seja crí-tica da globalização e do desenvol-vimento científico e tecnológico. Aciência e a tecnologia são responsá-veis por proporcionarem acentua-do poder destrutivo jamais visto nahistória da humanidade e, com isso,ameaçar a continuidade da vida hu-mana na terra. Sobre esse assunto,Morin (2000,70) afirma: “A morteintroduzida pelo século XX não ésomente a de dezenas de milhõesde mortos das duas guerras mun-diais e dos campos de extermínionazistas e soviéticos; é também ade dois novos poderes de morte”.Diante destes dois novos poderesde morte, Morin se refere à possí-vel extinção da humanidade pelasarmas nucleares presente nesse iní-cio de terceiro milênio e à morteecológica.

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Relacionada ao futuro, outra pre-ocupação da ética planetária se vol-ta para a questão da responsabilida-de humana. É diante da atual situa-ção de crise, que Jonas entende a res-ponsabilidade como o centro da éti-ca contemporânea. Todo ser huma-no deve considerar as conseqüênci-as de suas ações, motivo pelo qualJonas (2006, p. 22) constrói toda suaargumentação em torno da ética daresponsabilidade:

Sob o signo da tecnologia noentanto, a ética tem a ver comações (não mais de sujeitos iso-lados) que têm uma projeçãocausal sem precedentes na di-reção do futuro, acompanha-das por uma consciência pré-via que, mesmo incompleta,vai muito além daquela outro-ra existente. Ajunte-se a isso amagnitude bruta dos impactosde longo prazo e também, comfreqüência, a sua irreversibili-dade. Tudo isso desloca a res-ponsabilidade para o centro daética, considerando-se aí oshorizontes espaço-temporaisque correspondam àquelesatos. Consoante isso, a teoriada responsabilidade, até hojeausente, representa o núcleoda obra.

Sob essa ótica, cada ser humanodeve assumir a responsabilidade degarantir a sobrevivência e o bem-estar dos demais seres vivos, princi-palmente nesse contexto de crise emque vivemos. Cada pessoa deve vi-ver consciente de que é responsávelpelos outros, pois fazemos parte deuma comunidade única, global e,portanto, temos deveres paraconosco mesmo e para com todosos demais seres vivos e naturais.Diante da ética da responsabilida-de, devemos pensar e agir na pers-pectiva da complementariedade, ouseja, baseados na ótica da interde-pendência de todos com todos ecom tudo.

É diante dos problemas funda-mentais do nosso tempo como algoque afeta toda humanidade que Oli-veira (2001,167-168) afirma a ne-cessidade de uma responsabilidademoral comum com vistas ao futu-ro, do seguinte modo:

Tal situação leva os seres hu-manos, as nações e as cultu-ras, pela primeira vez na his-tória mundial, a se sentireminterpelados diante dos peri-gos comuns, a assumiremuma responsabilidade moralcomum em face da questãoda articulação de seu futuro,

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ou seja, perante as questõesfundamentais relacionadas aosgrandes objetivos de uma so-ciedade que se faz planetária.

Além do fututo e da responsabi-lidade humana com o bem-estar dooutro, a ética planetária se preocu-pa também com o meio ambiente.Sob o impacto da vulnerabilidade eda irreversibilidade das conseqüên-cias naturais é que surgiu a ecologiacomo ciência do meio ambiente, aqual nos alerta para mudanças narepresentação que o ser humanotem de si mesmo em relação ao com-plexo sistema ambiental e cósmico.Segundo Jonas (2006,39): “A natu-reza como uma responsabilidadehumana é seguramente um novumsobre o qual uma nova teoria éticadeve ser pensada” (grifo do autor).

O progresso científico etecnológico associado aos interessesmercadológicos e capitalistas sob aótica da globalização, tem levado oser humano ao descaso e à depre-dação do meio ambiente, assimcomo a perda da consciência ecoló-gica. O esgotamento dos recursosnaturais e os danos já produzidos nomeio ambiente jamais foram pres-sentidos pelo ser humano, o que jus-tifica sua ausência nas reflexões éti-cas do passado. Conforme Tescarolo

e Darós (2007,136): “é preocupantea constatação de que o progressocientífico e tecnológico produzidotenha afinal se transformado emrefém do mercado e da exploraçãoem um ímpeto de inovação obsessi-va de utilidades que nos transfor-mou em predadores”.

A ética planetária, na perspecti-va da responsabilidade, tem por ob-jetivo incentivar e solidificar açõessolidárias, de cuidado e preservação,ações não-destrutivas, mas em fa-vor da continuidade da vida e pro-moção do bem-estar planetário. Énesse sentido que Oliveira(2001,176) reforça a perspectiva deuma ética planetária pautada na res-ponsabilidade e solidariedade:

Essa situação põe para a hu-manidade o problema da co-responsabilidade planetária,portanto, de uma responsabi-lidade ética global o que exi-ge uma “macroética da soli-dariedade histórica” em nívelmundial, que seja capaz deproduzir uma consciência cos-mopolita de solidariedade ede recuperar a primazia dopolítico no contexto de ummundo globalizado e ameaça-do pelo colapso ecológico esocial.

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Cada pessoa deve viver consciente de que éCada pessoa deve viver consciente de que éCada pessoa deve viver consciente de que éCada pessoa deve viver consciente de que éCada pessoa deve viver consciente de que éresponsável pelos outros, pois fazemos parteresponsável pelos outros, pois fazemos parteresponsável pelos outros, pois fazemos parteresponsável pelos outros, pois fazemos parteresponsável pelos outros, pois fazemos partede uma comunidade única, global e, portanto,de uma comunidade única, global e, portanto,de uma comunidade única, global e, portanto,de uma comunidade única, global e, portanto,de uma comunidade única, global e, portanto,temos deveres para conosco mesmo e paratemos deveres para conosco mesmo e paratemos deveres para conosco mesmo e paratemos deveres para conosco mesmo e paratemos deveres para conosco mesmo e paracom todos os demais seres vivos e naturais.com todos os demais seres vivos e naturais.com todos os demais seres vivos e naturais.com todos os demais seres vivos e naturais.com todos os demais seres vivos e naturais.

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Com essas considerações, a éti-ca planetária é definida como umaética para o presente com vistas aofuturo. Ela considera o ser humanosituado e atenta para crises e confli-tos atuais e de grandes proporçõesno mundo. É na situação históricaque a reflexão ético-política encon-tra seu ponto de partida e, por isso,tal ética critica e rejeita as perspec-tivas centrais da ética moderna, nãose determinando pela abstração con-cepção abstrata ou idealista do serhumano, nem pela racionalidadeindividualista e autônoma, nem peloantropocentrismo e nem pela inten-ção de dominar a natureza confor-me os padrões e ideais de progressosegundo os parâmetros do capita-lismo e da modernidade.

É por isso que, em vez do impe-rativo categórico kantiano, o qualrepresenta muito bem a ética mo-derna, Jonas (2006,47-48) sugereoutro imperativo: “Aja de modo aque os efeitos da tua ação sejamcompatíveis com a permanência deuma autêntica vida humana sobre aTerra”, ou então, de forma negati-va: “Aja de modo a que os efeitos detua ação não sejam destrutivos paraa possibilidade futura de uma talvida”.

Portanto, ética planetária com-preende um conjunto de valores e

princípios que fundamentam e jus-tificam costumes e ações no senti-do do bem-estar pessoal, social emundial, ou seja, é a ética do habitatplanetário sustentável, que prezapela integridade relacional entre se-res humanos, natureza e universo,baseados na responsabilidade, nocuidado e na solidariedade em fa-vor da terra, da vida e do outro. Oatual contexto de crise em váriasdimensões da vida humana signifi-ca oportunidade para uma revisão erenovação do conhecimento, dosprincípios, dos valores e das açõeshumanas.

3. A ética planetáriano pensamento de

Sullivan

Edmund O’Sullivan, educadorcanadense, ao tratar especificamentedo significado, conteúdo e as impli-cações da ética planetária, desenvol-ve três conceitos centrais: consciên-cia planetária, desenvolvimento hu-mano e educação para qualidade devida. Sobre a consciência planetá-ria, o referido autor salienta que sefaz necessário conceber o planetaTerra como uma unidade uniforme.Isso implica numa cosmologia que

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vá além da concepção de mundototalmente influenciada pelosparâmetros da globalização e pelalógica do mercado.

A partir da noção de unidadeuniforme, surge a concepção de queo universo age e está estruturado demaneira integral e relacional: “ouniverso confirma a idéia de quetudo só existe e só pode ser com-preendido no contexto das relações.Nada existe isoladamente”(Sullivan, 2004,277). Esta concep-ção é diferente da proposta atual dealienação, isolamento e fragmenta-ção sistemática de pensar o todo.Um pouco mais adiante, Sullivan(2004, 279) reforça essa concepçãodo seguinte modo:

A partir daqui, podemos con-cluir que o nosso planeta Ter-ra é uma unidade integral, emque cada ser do planeta estáimplícito na existência e nofuncionamento de todos osoutros. Agora entendemos oplaneta como uma entidadeauto-reguladora, na qual exis-te uma “teia da vida” que sópode ser compreendida comouma totalidade. Há um mis-tério incrivelmente intrincadoque liga tudo a tudo o maisno planeta. Como seres hu-

manos, somos influenciadospelos menores organismospresentes na Terra desde osseus primórdios.

O segundo conceito central nopensamento de Sullivan é o de de-senvolvimento humano. Ele reco-nhece que toda a história terrestre ehumana está condicionada pelo de-senvolvimento, o qual “deve sercompreendido como uma totalida-de dinâmica que abrange o univer-so inteiro e a consciência vital exis-tente dentro de nós e, ao mesmotempo, em tudo o que nos cerca”(Sullivan 2004,305). Nessa perspec-tiva, o planeta Terra é compreendi-do como um sistema auto-regula-dor e auto-sustentável, ou seja, umaentidade dinâmica e organizada. Oser humano é parte integral desseprocesso evolutivo, tanto como serproveniente, como dependente e atéparticipante do mesmo.

Diante do desenvolvimento vigen-te da globalização, deparamo-noscom inúmeros problemas que afe-tam gravemente a natureza, a atmos-fera e o próprio ser humano, comconseqüências devastadoras para avida em todas as suas dimensões.Desse modo, torna-se urgente umaabordagem ética com conotaçõesplanetárias e de forma integral. Na

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opinião de Sullivan (2004,325):

O que se faz necessário, a essaaltura, é uma abordagem éti-ca que leve em consideraçãoas espécies como um todo.Precisamos de uma ética dediretrizes para que nossas re-flexões possam ser seguidaspelos seres humanos em to-dos os lugares, independente-mente de raça, de cultura oude posição social.

Na perspectiva do desenvolvi-mento humano é necessário mudara concepção do próprio ser huma-no e de como este concebe o mun-do. A visão de mundo mecanicista,fragmentário e individualista é res-ponsável por uma percepçãotruncada do eu. Com isso, perde-mos a consciência de que o univer-so não é só físico-material, mas tam-bém uma realidade psíquico-espiri-tual. Em vez dessa percepçãotruncada do eu, nossa perspectivadeve ser a da integralidade e da to-talidade relacional. É diante dessaconstatação que Sullivan sugereuma percepção expansiva, denomi-nada de eu ecológico, que consisteem: reconhecer o valor absoluto decada realidade existente; que todoser contém o mistério numinoso do

qual o universo nasce; que existeinterligação de todo universo notempo e espaço.

O terceiro conceito central parauma ética planetária em Sullivan éo da educação para a qualidade devida. Em nosso atual contexto, pre-cisamos refletir sobre o significadode nossa existência e sentido da vidadiante de tantas ameaças, calamida-des, degradação e problemas refe-rentes à qualidade da vida planetá-ria. Para Sullivan, esse assunto deveter como fundamento as necessida-des humanas genuínas, sabendo quetais necessidades estão condiciona-das aos processos mais amplos daterra e com o aspecto relacional detoda a humanidade. Desse modo, énecessário re-criar o sentido profun-do da vida e a sensação de se ter umlugar no mundo. Ao contrariar osentido de vida proposto pelo mer-cado, Sullivan (2004,342) afirma:

Nossa visão de mercado eco-nômico deixou toda nossacultura com uma crise de sig-nificado e um sentimento pro-fundo de falta de um lar.Michael Lerner (1996) afir-ma que, em última instância,temos fome é de significadoe propósito de vida. Nossosvalores culturais, fixados pelo

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mercado, aprisionaram-nosnum cinismo colossal que nosleva a questionar se existe sig-nificado mais profundo e pro-pósito maior na vida além dointeresse material. O resulta-do de todo esse materialismoe glorificação do interesseegoísta é que agora estamosnum mundo cheio de descon-fiança mútua e de interessesegoístas.

Algumas exigências são pertinen-tes para a educação visando a quali-dade de vida. A primeira delas é aconcepção das necessidades huma-nas correspondentes ao desenvolvi-mento humano no sentido daintegralidade e da relação com tudoe com todos. A segunda exigênciacorresponde ao senso de comunida-de em meio à diversidade, o qualnos ajuda a adotar uma lógica e açãode tolerância, hospitalidade, respei-to e inclusão, assim como o rompi-mento com toda lógica de superio-ridade, dominação e subordinação.A terceira exigência é a valorizaçãodas pessoas como cidadãs e nãocomo consumidoras. A importân-cia e a dignidade das pessoas se en-contram no que elas são como pes-soas e não mediante a capacidadede adquirir bens e consumir produ-

tos no sistema capitalista. Por fim,a quarta exigência é a da cidadaniaplanetária, capaz de reintroduzir aidéia de sociedade civil, pela qualpoderemos atentar para questõessobre justiça social e bem-viver paratodos. Para Sullivan, dessas quatroexigências dependem a qualidade devida humana e a qualidade de todoeco-sistema natural. Elas são desa-fiadoras e extremamente pertinen-tes diante de um contexto no qualpredominam valores contrários es-tipulados pela globalização.

4. Teologia dacriação e

perspectiva da éticaplanetária

A reflexão teológica em torno dacriação sempre foi central para a fécristã. Tanto a teologia bíblica comoa sistemática nos certificam disso.Nelas compreende-se a criação for-mada não somente pelo meio am-biente e os recursos naturais. Cria-ção implica não em uma concepçãorestrita e parcial, mas que englobetodas as coisas criadas, ou seja, opróprio ser humano, todo universoe até as coisas que não vemos. Aexpressão “céus e terra” em Gn 1:

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1 aponta para a totalidade das coi-sas criadas e, como afirma o hinocristológico utilizado pelo apóstoloPaulo, “nele, foram criadas todas ascoisas, nos céus e sobre a terra, asvisíveis e as invisíveis” (Cl 1.16).

Outra importância do estudo dacriação na perspectiva teológica re-side no fato de ela ser fonte da ma-nifestação da providência e da reve-lação de Deus (Sl 19.1-4; Rm 1.18).O próprio Deus deseja ser reconhe-cido, adorado e glorificado por sero Criador (Gn 1; Gn 2; Sl 104; Sl146.5-6; Sl 147.7-11; Sl 148 e Ap4.11). A criação está permeada pelabondade e pela glória do Senhor(Gn 1.31; Is 6.3) e nela fomos colo-cados como mordomos para “domi-nar” (Gn 1.26-28), “cultivar e guar-dar” (Gn 2.15), ou seja, manter aordem, o equilíbrio e a harmonia detodas as coisas criadas. Portanto,refletir sobre a criação na perspec-tiva teológica nos ajuda a viver me-lhor e em paz no e com o mundo,desfrutando e cuidando daquilo quepertence a Deus.

Nesse sentido, não só a crise eco-lógica, mas as condições futuras devida no planeta Terra e a responsa-bilidade humana para com o bem-estar social e natural são alguns dosconceitos que incentivam a reflexãoteológica em torno da criação na

atualidade. Diante do contexto deambigüidades, incertezas, injustiças,violência e desigualdades, como cris-tãos, somos chamados a dar nossaparcela de contribuição e viver emconformidade com aquilo que en-tendemos como revelação de Deus.Nesse sentido, a ética cristã em re-lação à criação corresponde a umaética também planetária.

A reflexão em torno da teologiada Criação se faz necessária porque,no curso da história, alguns textosbíblicos foram utilizados para legi-timar a apropriação e a exploraçãoutilitarista, científica e mercado-lógica dos recursos naturais. Alémdisso, esses mesmos textos foraminterpretados para reforçar a con-cepção antropocêntrica e domi-nadora do ser humano diante da cri-ação. Dois exemplos nesse sentidosão os conceitos de criação do serhumano como “imagem e seme-lhança de Deus” e “dominai “, de Gn1.26-28, assim como o lugar de su-perioridade do ser humano confor-me descrição do Sl 8.3-9.

É por causa da interpretaçãoequivocada de alguns textos bíblicosque escritores como J. W. Forrester,G. Bateson, J. Cobb, C. Amery, en-tre outros, alegaram que a atitudepredatória, consumista e mercan-tilista da atual sociedade era resul-

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tado direto da fé cristã em relação àcriação. O historiador Lynn White,em artigo publicado na revistaScience, em 1967, cujo objetivo eradiscutir as razões históricas da criseecológica, chegou a afirmar que areligião cristã é uma das principaisculpadas pela crise ecológica. Aocomentar tais afirmações, Onça(2007, 218) afirma:

Para White Jr, o Cristianismoé a religião mais antropo-cêntrica que o mundo já co-nheceu. Deus criou o mundoexplicitamente para benefíciohumano: nenhum item daCriação tem outro propósitoalém de servir os propósitoshumanos.

White baseou seus argumentosnos dois exemplos indicados acima,ou seja, na distinção e superiorida-de do ser humano sobre a criaçãopor ser criado à imagem e semelhan-ça de Deus e, devido a isso, o domí-nio que deve exercer sobre a natu-reza. Essas duas interpretações, ali-adas com o impacto da RevoluçãoIndustrial do século XVII, com osinteresses capitalistas e com os avan-ços científicos e tecnológicos do sé-culo XX, fizeram com que o serhumano desencadeasse situações de

crises e ameaças na atualidade.Uma análise mais atenta dos re-

latos bíblicos contraria as afirma-ções indicadas por White e de tan-tos outros, pois apresentam sériasdeficiências exegéticas. Os textosbíblicos mostram que o propósitode Deus para o ser humano é o deadministrador e cooperador na ma-nutenção da ordem, da harmonia eda justiça na criação. Esse é o senti-do de “dominar” em Gn 1.26-28.Diferente das outras religiões anti-gas, a natureza não era para serdivinizada e o ser humano não de-veria se sujeitar a ela, ou seja, co-meter o erro de adorar a criação emvez do Criador (Rm 1.25). Ao ter odomínio sobre ela, o ser humano setorna responsável pelo gerencia-mento e bem-estar da criação. Essetambém é o sentido de “cultivar eguardar o jardim”, assim como o de“dar nomes aos animais” (Gn 2.15-20). Dar nome significa ser respon-sável. Com isso, segundo McGrath(2005,357): “Longe de ser inimigada ecologia, a doutrina da criaçãoafirma a importância da responsa-bilidade humana em relação ao meioambiente”.

Os relatos de Gn 1 e Gn 2 mos-tram que o ser humano deve viverem harmonia com a criação e issotem implicações para com o próxi-

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mo, para consigo mesmo, o meioambiente e Deus. Ao ser criado à“imagem e semelhança de Deus”, oque significa capacidade relacional deforma integral e plena, o ser huma-no recebeu a vocação de cuidar, pre-servar e administrar toda a vida pla-

netária. Desse modo, a integralidadeou a totalidade da vida humana devese adequar a essas quatro dimensõesda vocação humana.

É nesse sentido que a teologiada Criação se encontra em corres-pondência com a ética planetária,pois cumprir com a vocação divinaem nosso atual contexto significapreocuparmo-nos com as condiçõesde vida no presente e sua continui-dade no futuro, assim como assu-mir a responsabilidade humana pelo

bem-estar perante toda a criação.Isso nos leva ao cuidado e preserva-ção do meio ambiente em plenocontexto de crise ecológica, assimcomo ao desenvolvimento de açõessolidárias pautadas na justiça, dig-nidade e promoção da vida, princi-

palmente daqueles e daque-las que são vítimas e sofremcom as conseqüências nega-tivas da globalização.

Conclusão

A ética lida com a refle-xão sobre a ação humana pau-tada em imperativos ou osprincípios que fundamentamatitudes e modos de viver, tan-to no aspecto individual comocoletivo. Assim, é possível

falar da ética da exclusão, da con-corrência, do acúmulo e do indivi-dualismo, incentivados pela lógicada globalização e seu modo de pro-dução capitalista. É necessário e ur-gente que essa ética seja superadapor uma nova ética, também de ex-pansão planetária, de integração einterdependência mundial, ou seja,uma ética que tenha como base asolidariedade, a hospitalidade, o res-peito e a preservação com todos osseres vivos do planeta. Nesse senti-

A visão de mundoA visão de mundoA visão de mundoA visão de mundoA visão de mundomecanicista,mecanicista,mecanicista,mecanicista,mecanicista,fragmentário efragmentário efragmentário efragmentário efragmentário eindividualista éindividualista éindividualista éindividualista éindividualista éresponsável por umaresponsável por umaresponsável por umaresponsável por umaresponsável por umapercepção truncada dopercepção truncada dopercepção truncada dopercepção truncada dopercepção truncada doeu. Com isso,eu. Com isso,eu. Com isso,eu. Com isso,eu. Com isso,perdemos a consciênciaperdemos a consciênciaperdemos a consciênciaperdemos a consciênciaperdemos a consciênciade que o universode que o universode que o universode que o universode que o universonão é sónão é sónão é sónão é sónão é sófísico-material, masfísico-material, masfísico-material, masfísico-material, masfísico-material, mastambém uma realidadetambém uma realidadetambém uma realidadetambém uma realidadetambém uma realidade

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do é que Oliveira (2001, 175) afir-ma: “pela primeira vez na históriado gênero humano os seres huma-nos são chamados a assumir, emescala planetária, a tarefa de umaresponsabilidade solidária pelos efei-tos de suas ações”.

Contra os sinais da morte e a in-justiça promovida pela globalização,a ética planetária se mostra a favorda vida, da superação dos conflitosque demarcam as relações pessoais,institucionais e internacionais emnosso mundo visando a preservaçãodos recursos naturais.

Diante desse contexto, os cristãosdevem enfrentar dois principais de-safios. Primeiro é o de desenvolveruma coerente e contextualizada teo-logia da Criação, já que a interpreta-ção equivocada dos textos bíblicospode contribuir para o agravamentodas condições de vida planetária, tantono aspecto ambiental como das rela-ções sociais. Segundo desafio é o deiniciar e incentivar uma ética comabrangência planetária, de formaencarnacional e prática, que demons-tre nossa fidelidade à vocação querecebemos de Deus.

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A Religião de AntônioConselheiro, construtora

de normas éticasincômodas*

* O presente ensaio – “A religião no Belo Monte deAntonio Conselheiro, construtora de finalidades enormas éticas incômodas” - é fruto da aulaproferida a 20/05/04 (bem como do debate que seseguiu) no Departamento de Teologia e Ciências daReligião da PUC-SP, como uma das atividadesconstantes do concurso para ingresso no quadrode carreira docente como assistente-doutor nareferida universidade. Belo Monte é o nome dadopor Antonio Vicente Mendes Maciel, o AntonioConselheiro, ao arraial de Canudos quando nele seestabeleceu, nos dias iniciais de junho de 1893.

** Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências da Religião da PontifíciaUniversidade Católica de São Paulo, e dos cursosde Teologia do Centro Universitário Salesiano e daEscola Dominicana de Teologia. Mestre em Ciênciasda Religião, Doutor em Ciências Sociais e Livre-docente em Ciências da Religião.

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** ***Introdução

Organizamos essa exposiçãoem dois momentos distintos. Pri-meiramente recuperaremos algu-mas afirmações já estabelecidas ereconhecidas a respeito da articu-lação religião-ética-finalidades, efaremos sobre elas rápido comen-tário. Não nos demoraremos mui-to e passaremos a verificar, no casoconcreto do Belo Monte de Antô-nio Conselheiro, como a experiên-cia religiosa aí vivida configurou

uma ética particular, definida emfunção do valor fundamental, deum fim último, a salvação. Quere-mos aqui salientar como a sínteseentre a cosmovisão da gente ser-taneja em geral e aquela do Con-selheiro em particular possibilitoua criação de uma alternativa sócio-religiosa para milhares de pessoasde todos os cantos do sertão (e in-clusive de fora dele) até que a bru-talidade da guerra a arrasou. As-sim, apesar do risco da idealização,quero aqui destacar o impacto dareligião sertaneja na elaboração denovos valores para a convivênciada gente que fez Belo Monte.

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I. Religião, ética efinalidades

Podemos partir da constataçãode que “a experiência mostra queas religiões desempenharam desdeo início a função insubstituível demostrar aos homens o sentido davida, de fundamentar a responsabi-lidade pela vida e de lhes doar umacomunidade e uma pátria”.1 Efeti-vamente, “durante todos os milêni-os, as religiões construíram aquelessistemas orientadores, os quais cri-aram o fundamento para uma de-terminada moral. Elas legitimavam,motivavam, e, muitas vezes, tam-bém sancionavam mediante casti-gos” (KÜNG, 1998, 59). Segundoele, mesmo nas sociedades secula-rizadas as religiões continuam ofe-recendo referências normativas im-portantes.

O cenário pós-11 de setembrovem merecendo análises que, em-bora parciais, dão conta da presen-ça mais que significativa do religio-so na definição de posturas, estraté-gias, políticas, etc. E se nos pergun-tássemos sobre as razões de as reli-giões terem historicamente exerci-

do essa função, poderíamos recor-rer à seguinte afirmação, concisamas precisa: “Como reflexo do prin-cípio de coerência, próprio de todaexperiência religiosa, a ética está emconsonância com a teovisão e aantropovisão do grupo.

As normas morais e diversoscomportamentos em todos os as-pectos da vida de um grupo derivamdo núcleo de crença deste mesmogrupo” (SEVERINO CROATTO,2001, 410). Geertz, mais extensa-mente, não diz coisa distinta: “ossímbolos sagrados funcionam parasintetizar o ethos de um povo – otom, o caráter e a qualidade da suavida, seu estilo e disposições mo-rais e estéticos – e sua visão demundo – o quadro que fazem doque são as coisas na sua simplesatualidade, suas idéias maisabrangentes sobre ordem.

Na crença e na prática religiosa,o ethos de um grupo torna-se inte-lectualmente razoável porque de-monstra representar um tipo devida idealmente adaptado ao estadode coisas atual que a visão de mun-do descreve, enquanto essa visão demundo torna-se emocionalmenteconvincente por ser apresentadacomo uma imagem de um estadode coisas verdadeiro, especialmen-te bem-arrumado para acomodar tal

1 Roberto Mancini, Francesca Aimone, AlessandraCatalani, Sara Gaetani e Elvira Mastrovincenzo. Éticasda mundialidade: o nascimento de uma consciência pla-netária. Paulinas, São Paulo: 2000, p.73-74.

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tipo de vida. Essa confrontação e essaconfirmação mútuas têm dois efei-tos fundamentais. De um lado,objetivam preferências morais e es-téticas, implícitas num mundo comuma estrutura particular, como sim-ples senso comum dada a formainalterável da realidade. De outrolado, apóiam essas crenças recebi-das sobre o corpo do mundo invo-cando sentimentos morais e estéti-cos sentidos profundamente comoprovas experimentais da sua verda-de” (GEERTZ: 1989, 103-104).

Ou seja, a percepção do sagradoe a compreensão do ser humanopropostas numa determinadacosmovisão religiosa implicam uma“vida santificada”, para usar a ex-pressão de Eliade (1996, 133). Masnão apenas porque tantos momen-tos e situações da existência serãoritualizados, mas porque a existên-cia do grupo será moldada por talcosmovisão, de maneira a definirpadrões de comportamento, senti-dos (na sua dupla conotação de “sig-nificados” e “direção”). Assim, ine-vitavelmente a religião desemboca-rá numa perspectiva ética e numaperspectiva escatológica. E podemos(dizer) que a religião seja “a ousadatentativa de conceber o universo in-teiro como humanamente significa-tivo” (BERGER, 1985, 41).

Isso não significa que os sentidose finalidades apontados pelas religi-ões apontem sempre na mesma di-reção, que essas perspectivas ética eescatológica tenham sempre os mes-mos contornos. Cabe verificar cadasituação. É por isso que nos permiti-mos passar ao caso específico de BeloMonte, por meio do qual esperamosevidenciar os aspectos aqui mencio-nados de forma sucinta.

II. Religião, ética efinalidades no BeloMonte de Antônio

Conselheiro2

Para dar conta da abordagem aque aqui nos propomos, vamos re-colher e comentar alguns depoimen-tos de gente que viveu no arraial oupróximos a ele, considerando algunsaspectos da ação de Antonio Con-selheiro e ainda afirmações de ini-migos do arraial, que militaram in-tensamente por sua destruição.3

22222 Servimo-nos para tanto de nossa tese de doutorado.3 Permitimo-nos aqui dispensar Euclides da Cunha, cujasafirmações sobre a vida do arraial, além de secundáriase muitas vezes gratuitas, estão eivadas de preconceitos.Em nossa tese de doutorado consideramos com maiorextensão a abordagem euclidiana de Belo Monte.

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O testemunho sertanejo

O fato de Antonio Vicente Men-des Maciel ser conhecido e chama-do pela gente que o seguia como“Conselheiro” já deve chamar a aten-ção. Segundo o testemunho vene-noso de frei João Evangelista deMonte Marciano, Antônio Maciel“costuma reunir em certos dias o seupovo, para dar-lhe conselhos, que seressentem sempre do seu fanatismoem assunto de religião e da sua for-mal oposição ao atual regime polí-tico”.4 Esses termos só vêm ressal-tar a repercussão das palavras do lí-der como fator de coesão da comu-nidade, algo reconhecido inclusivepelos inimigos do arraial5. O vene-rável ancião, “inculto”, mas de “pe-netração aguda”6, materializava suaautoridade nas palavras que organi-zavam a vida do arraial, davam-lhe

sentido e permitiam olhar o futuro.Nesse sentido soa significativo o

depoimento de Francisca Guilher-mina, cinqüenta anos após o mas-sacre, se lembra de ver o Conselhei-ro “falando manso, de tarde, para opovo e só dava conselhos bons”.7

Segundo Maria Guilhermina de Je-sus, outra sobrevivente, “havia mui-ta fé no Conselheiro e os ensina-mentos dele era uma felicidade ou-vir, pois só pregava para o bem”.8

Assim se pode compreender, edar o devido valor, ao seguinte tes-temunho, de alguém que vivencioude perto as memórias do Belo Montedestruído:

Eu, naquela época [alguns anosapós o massacre final] já conheciaalguma coisa do Antigo Testamen-to pelo que ouvia, e lembrava ascomparações dos fanáticos: “o Con-selheiro era Moiséis (sic), oVazabarrís (sic) seria o Nilo ou o

4 João Evangelista de Monte Marciano. Relatório apre-sentado, em 1895, pelo reverendo Frei João Evangelistade Monte Marciano, ao Arcebispado da Bahia, sobreAntonio Conselheiro e seu séqüito no arraial dos Canu-dos. Tipografia do Correio da Bahia, Salvador, 1895(edição em fac-símile pelo Centro de Estudos Baianos,Salvador, 1987), p.5. O frei, contudo não sabia dizerse o Conselheiro, nos dias da missão, deixava de falara sua gente por deferência ao missionário ou pelo cará-ter “secreto” de suas instruções.5 “Era preciso ser um homem fora do comum para seimpor à multidão por meio da palavra e do gesto, comoAntonio Conselheiro o fazia” (Aristides Milton. “A cam-panha de Canudos”. In: Revista Trimestral do InstitutoHistórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, 1902.v.63, parte 2, p.7).

6 Emídio Dantas Barreto. Destruição de Canudos. Jor-nal do Recife, 1912, p.10.7 Odorico Tavares. Canudos: cinqüenta anos depois(1947). Fundação Cultural do Estado, Salvador, 1993,p.40.8 Odorico Tavares. Canudos: cinqüenta anos depois...,p.50. A palavra do Conselheiro é poderosa, mesmoquando não emitida; é capaz de motivar oquestionamento daquela do missionário, descompas-sada em relação ao que sua gente vive; a polêmica emtorno do que o frei entende por jejum (“é comer afartar”, segundo o sertanejo) é mais que significativa(João Evangelista de Monte Marciano. Relatório..., p.6).

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mar Vermelho e o píncaro doCocorobó era o monte Sinai”.9

O Conselheiro, por suas prédicase conselhos, é associado ao Moiséscomunicador das leis de Deus aopovo. A identificação do píncaro doCocorobó com o monte Sinai, lu-gar onde, segundo a narrativa bíbli-ca, Moisés recebeu de Deus as tá-buas que continham, entre outrascoisas, o Decálogo, é particularmen-te significativa. Para o povo serta-nejo o Sinai-Cocorobó apontavapara a nova organização, querida erevelada por Deus, levada a cabo emBelo Monte. Se para os hebreus li-bertos a promessa e conquista daterra vão estreitamente ligadas àobservância dos mandamentos10, opovo conselheirista recria um uni-verso em que a vida em Belo Montese vê possibilitada pela observânciado que Honório Vilanova, antigomorador do arraial e sobreviventeda guerra, chamava “a regra ensina-da pelo Peregrino”:

Recordações, moço? Grande erao Canudos do meu tempo. Quemtinha roça tratava de roça, na beirado rio. Quem tinha gado tratava do

gado. Quem tinha mulher e filhostratava da mulher e dos filhos.Quem gostava de reza ia rezar. Detudo se tratava porque a nenhumpertencia e era de todos, pequenose grandes, na regra ensinada peloPeregrino.11

Esta regra instituiu uma nova éti-ca “social”, uma nova “política”, ter-mo que ainda encontraremos, e quejá quiseram, apressadamente, qua-lificar como alguma forma de soci-alismo. Mas o testemunho do velhoVilanova, além de eloqüente, sinte-tiza as motivações que levaram mi-lhares de pessoas a ser deslocar parao arraial construído à beira do rioVaza-barris.

O legado escrito doConselheiro

Se nos atemos ao Decálogocomo síntese da ética a servivenciada no Belo Monte, cabe des-tacar que nos dois manuscritos quelevam o nome de Antonio VicenteMendes Maciel se encontra um lon-go comentário a cada um dos man-damentos. No primeiro caderno,que leva a data de 24 de maio de1895, e é intitulado Apontamentosda Divina Lei de Nosso Senhor Je-sus Cristo, para a salvação dos ho-mens, o comentário aos dez manda-

9 José Aras. Sangue de irmãos. Museu do Bendegó,Salvador, 1953, p.149.10 H. H. Schmid. “Tierra”. In: Ernst Jenni e ClausWestermann. Diccionario teológico manual del AntiguoTestamento. Madrid: Cristiandad, 1978. v.1, col.353.11 Nertan Macedo. Memorial de Vilanova. 2 ed., Renes /Instituto Nacional do Livro, Rio de Janeiro / Brasília:1983, p.67 (grifo nosso).

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mentos abre a sessão “Apontamen-tos da Divina Lei de Nosso SenhorJesus Cristo”. Essa divina lei se ma-terializa em especial no Decálogo,que o Conselheiro comentalongamente, neste manuscrito enoutro, datado de 1897. Esses co-mentários não terão sido apenas re-sultado de um trabalho de reflexãopessoal, mas parece terem sido amarca das pregações que o Conse-lheiro dirigia a sua gente. Como serecordava Honório Vilanova, “oPeregrino estava sempre presente esempre pronto a repetir os Manda-mentos da Lei de Deus e aconselharo povo”.12 Quanto ao teor dessa pre-gação centrada no Decálogo, Ale-xandre Otten afirma que “o Conse-lheiro convive com certas concep-ções morais que formam um con-junto radicalizado de valores éticosdo catolicismo rústico”. Mas “asprédicas sobre os mandamentos sãomuito caracterizadas pela necessida-de de o homem nutrir o temor deDeus. Mesmo assim o amor deDeus e o amor a Deus permanecempresentes”.13 De toda forma, a com-preensão conselheirista do Decálogoé fator decisivo na constituição daética diferenciada que atraiu tantagente a Belo Monte.

Outros momentos da apropria-ção de temas bíblicos pelo Conse-

lheiro evidenciam a dimensão éticae escatológica do projeto religiosoque liderou. O amor de Deus seráadequadamente correspondido pelaobservância dos mandamentos; é emfunção desta que todos receberão apaga no juízo final. Este amor ma-terializou-se particularmente nossofrimentos pelos quais passou Je-sus. Decorrência desse processo vi-vido pelo Filho de Deus é o queaguarda quem lhe quiser ser fiel:tomar a cruz, pois ele sofreu paraque sigamos seus passos (o textoarticula Mateus 16,24 “Se alguémquer vir após de mim, negue-se a simesmo, tome a sua Cruz e siga-me”,e 1 Pedro 2,21: “Jesus Cristo sofreupor nós deixando-nos o seu exem-plo para que sigais os seus vestígi-os”).14 Delineia-se, assim, o perfil doitinerário cristão: obediência aosmandamentos e aceitação do sofri-mento como imitação de Jesus.

Mas esse desenho vertical temsua contrapartida. As passagens

12 Nertan Macedo. Memorial de Vilanova..., p.68.13 Alexandre Otten. “Só Deus é grande”: a mensagemreligiosa de Antonio Conselheiro. São Paulo: Loyola,1990, p.218.219.14 Antonio Vicente Mendes Maciel. “Textos”. In: Aponta-mentos dos preceitos da divina lei de Nosso Senhor JesusCristo, para a salvação dos homens. Caderno manuscri-to, Belo Monte, 1895, p.236-237. A transcrição doconteúdo deste caderno encontra-se em nossa tese delivre-docência, Abrindo as portas do céu: apontamentospara a salvação, segundo Antonio Vicente MendesMaciel. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,2009, p.46-170.

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bíblicas relativas ao amor de Deuse de seu Filho pela humanidade esua retribuição se mesclam àquelasque tematizam o amor que os fiéisdeverão ter uns para com os outros.Esta é outra tônica da seleção deversículos bíblicos na sessão “Tex-tos” do manuscrito de 1895 e dacorrespondente “Textos extraídosda Sagrada Escritura”, do cadernode 1897. Por isso cabe aí a referên-cia ao duplo mandamento, a Deus eao próximo.15 Particular interesse,dadas as circunstâncias em que seterá dado a elaboração dos manus-critos, manifesta a transcrição deMateus 5,44: “Mas eu vos digo:Amai a vossos inimigos, fazei bema quem vos tem ódio e orai pelosque vos perseguem e caluniam”.16

Duas outras citações parecem iso-ladas no conjunto, mas terão sua ra-zão de aí se fazerem presentes. A pri-

meira delas, vinda logo após um dosversículos referentes ao juízo final, éMateus 19,24, que terá determina-do, há tempo, as relações do Conse-lheiro com pessoas possuidoras debens: “Mais fácil é passar um came-lo pelo fundo de uma agulha, do queentrar um rico no Reino dos Céus”.17

A recorrência deste versículo e deoutras referências certamente indi-ca que abordagens apressadas nãosão capazes de dar conta da comple-xidade do pensamento social do Con-selheiro. No caderno de 1897, no in-terior de uma meditação sobre a pa-rábola do semeador, encontraremosa passagem evangélica (sem a cita-ção correspondente: Lucas 14,12-14)

17Antônio Vicente Mendes Maciel. “Textos”. In: Aponta-mentos dos preceitos da divina lei..., p.244; “Textosextraídos da Sagrada Escritura”. In: Tempestades que selevantam no coração de Maria por ocasião do mistério daEncarnação. Caderno manuscrito, Belo Monte, 1897,p.442-443. Editado em: Ataliba Nogueira. Antônio Con-selheiro e Canudos: revisão histórica. 3 ed., Atlas, SaoPaulo, 1897, p.159. Itamar Freitas de Oliveira afirmater ouvido de Daniel Fabrício, morador de Riachão doDantas (Sergipe), que na passagem por essa cidade,entre 1872 e 1874, o Conselheiro teria “aconselhado”,recorrendo “à parábola ‘da passagem do camelo pelofundo da agulha’”, um certo José de tal (segundo outrafonte, Joaquim da Macota) a deixar seus bens e seguirrumo à “terra prometida” (“No rastro de Conselheiro”.In: http://www.infonet.com.br/canudos/roteiro.htm [09/03/03]). Ainda segundo Fabrício, este fazendeiro foi um“rico que imitou Mateus”. Com certeza uma alusão aoapóstolo Mateus, que, segundo o evangelho que levaseu nome (9,9-13), era um publicano, cobrador de im-postos, e largou seu ofício para seguir Jesus. Note-seque a passagem do camelo é uma das favoritas do pe.Ibiapina (veja Luitgarde Oliveira Cavalcanti Barros. Aterra da mãe de Deus: um estudo do movimento religiosode Juazeiro do Norte. Francisco Alves / Instituto Nacio-nal do Livro, Rio de Janeiro / Brasília: 1988, p.102).

15 Antônio Vicente Mendes Maciel. “Textos”. In: Aponta-mentos dos preceitos da divina lei..., p.239. A citaçãoapresentada é Mateus 22,37, que corresponde aoversículo latino transcrito, relativo ao amor a Deus. Masa tradução que vem a seguir se prolonga até o v.39,incluindo a prescrição do amor ao próximo, e a seme-lhança desta com a anterior.16 Antonio Vicente Mendes Maciel. “Textos”. In: Aponta-mentos dos preceitos da divina lei..., p.244-245. O pri-meiro manuscrito leva a data de 24 de maio de 1895,três dias após a expulsão dos missionários que, porsolicitação do governo baiano e a mando da arquidioceseda capital, tinham ido tentar a dissolução do arraial. Jáo caderno seguinte leva a data de 12 de janeiro de 1897,quando as tropas de Febrônio de Brito se dirigiam paraatacar o arraial, no que se costuma chamar de “segun-da expedição” contra Belo Monte.

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que propõe convidar os pobres a umjantar ou ceia, em lugar dos amigos,irmãos ou vizinhos ricos; ação assimsurpreendente é apresentada em vistada salvação: quem o fizer terá sua re-tribuição “na ressurreição dos jus-tos”.18 Certamente essa passagem émodelar para o comportamento doConselheiro em relação a seuséqüito, especialmente à gentedespossuída que foi viver em BeloMonte: ele “acolhe em sua compa-nhia sobretudo os mais miseráveis,que, segundo o Evangelho, não têmcomo retribuir: Canudos torna-serefúgio dos pobres, aleijados, coxose cegos”.19

Outro aspecto da pregação doConselheiro, consignada nos ma-nuscritos, que evidencia como suamensagem religiosa implicava umcompromisso ético específico, dizrespeito à forma pela qual ele seapropria do teor do livro Missãoabreviada, de Manoel José Gonçal-ves Couto. Sirvo-me aqui, mais uma

vez, da conclusão acertada de Ale-xandre Otten:

Patenteia-se a resistência dobeato à interiorização eprivatização da vida religiosaque a Missão abreviadatematiza. Usa ele, verdadeira-mente, o livro como um ma-nual, extraindo elementosquando lhe são convenientes,mas sabe discordar em pon-tos essenciais. O fato de eleestar profundamente enraiza-do no catolicismo popularautêntico o preservou de umaespiritualidade intimista edesencarnada [...] A teologiado Conselheiro mantém ocaráter popular enquanto pre-serva a visão popular in-tegrativa na qual não se sepa-ram céu e mundo, corpo ealma, espiritual e temporal, in-dividual e comunitário.20

A ética religiosa propugnada peloConselheiro não assume contornos

19 Alexandre Otten. “Só Deus é grande”..., p.228. Consi-deramos que avaliações como a expressa por WalniceNogueira Galvão a respeito da visão social do Conselhei-ro, taxando-a de conservadora, são no mínimoreducionistas (veja seu “Piedade e paixão: os sermõesdo Conselheiro”. In: Walnice Nogueira Galvão e Fernandoda Rocha Peres (org.) Breviário de Antonio Conselheiro.Edufba, Salvador: 2002, p.15-16).20 Alexandre Otten. “Só Deus é grande”..., p.286-287.

18 O texto bíblico reza: “Quando deres algum jantar, oualguma ceia, não chames nem teus amigos nem teusirmãos, nem teus parentes, nem teus vizinhos, queforem ricos: para que não aconteça que também eles teconvidem à sua vez e te paguem com isso; mas, quan-do deres algum banquete, convida os pobres, os aleija-dos, os coxos e os cegos: e serás bem-aventurado,porque esses não têm com que te retribuir: mas ser-te-á isso retribuído na ressurreição dos justos” (AntonioVicente Mendes Maciel. “Sobre a parábola do semea-dor”. In: Tempestades que se levantam no coração deMaria..., p.558-559. Editado em: Ataliba Nogueira.António Conselheiro e Canudos..., p.185).

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intimistas, nem a pregação sobre odestino escatológico tem o caráter“salva tua alma”, tão comum no cato-licismo convencional de seu tempo.

Ao mesmo tempo, as prédicas donovo Moisés terão sido capazes deneutralizar o teor legalista, repres-sivo e amedrontador das pregaçõesdo clero. Eduardo Moniz faz umcomentário esclarecedor a respeitode uma passagem que Euclides,mais uma vez, lê de formadesabonadora ao Conselheiro e asua gente:

Mas se Antônio Conselheironão admitia a violência, acei-tava a franqueza dos que ce-diam diante da tentação ou daimpulsividade do próprio tem-peramento. Ao ter conheci-mento de que uma jovem ain-da solteira se entregara sem

relutância, apenas disse: “Se-guiu o destino de todas; pas-sou por baixo da árvore dobem e do mal”. Estas palavras[...] eram a réplica aos mora-listas mais exigentes, que pe-diam a punição da pecadora[...] Antônio Conselheiro co-nhecia a falsidade dos precon-ceitos, bem como o valor dacompreensão e da tolerância.21

O tom algo idealizado destas afir-mações não impede que se tire aconclusão, inevitável, sobre a vidano arraial:

Daí o irresistível clima de ale-gria e liberdade que caracte-riza a comunidade e exerceuma atração forte sobre to-dos quantos dela se aproxi-mam [...] O Deus do Conse-lheiro fala diretamente aohomem, e lhe dá coragem detomar a vida nas mãos e ca-minhar livremente, mesmosabendo-se abandonado pelospoderes públicos.22

Nesse ponto reside um aspecto

21 Eduardo Moniz. Canudos: a guerra social. 2 ed., Elo,Rio de Janeiro, 1987, p.50. Euclides situa a palavra doConselheiro em outra perspectiva: “Ao saber de casoescandaloso em que a lubricidade de um devassomaculara incauta donzela teve, certa vez, uma fraseferozmente cínica, que os sertanejos repetiam depoissem lhe aquilatarem a torpeza: ‘Seguiu o destino detodas: passou por debaixo da árvore do bem e do mal’.Não é para estranhar que se esboçasse logo, em Canu-dos, a promiscuidade de um hetairismo infrene” (Ossertões. Brasiliense, São Paulo, 1985, p.238). O quenos faz suspeitar da leitura de Euclides é que ManuelCiríaco, em entrevista a Odorico Tavares, “desmente aversão de que o Conselheiro contemporizava com osatentados à moral das moças” (Canudos: cinqüentaanos depois..., p.48).

22 Eduardo Hoornaert. Os anjos de Canudos: uma revi-são histórica. Petrópolis: Vozes, 1997, p.117-118.

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central, mas pouco notado, para acompreensão do sentido da prega-ção do Conselheiro e para se perce-ber melhor as motivações que leva-ram tanta gente a deixar tudo o quetinha para viver naquele lugar aben-çoado. Não é, portanto, sem razãoque Belo Monte pôde ser conside-rado por seus habitantes uma nova“barquinha de Noel”, imagem daIgreja, lugar de proteção, caminhopara a salvação.

As prédicas que levam o nomedo Conselheiro, mais que apontarpara um futuro misterioso, amea-çador e alvissareiro ao mesmo tem-po, elas convocam para a responsa-bilidade histórica, para a construçãoda comunidade, para a solidarieda-de efetiva. As citações da Escritura,particularmente do Novo Testamen-to, apontam para a atenção aos po-bres e esquecidos23, o que não con-tradiz a convicção fundamental deque todos estão aqui de passagem,em peregrinação à pátria celeste.24

A vida no Belo Monte, profunda-mente embasada em valores frater-nais e solidários, é oportunidade

privilegiada de preparação para odestino eterno post mortem.

Aliás, nesse ponto é que nos pa-rece acontecer a convergência fun-damental entre a visão religiosa eética do povo sertanejo e o projetoparticular do Conselheiro. O fulcroda articulação entre as visões doConselheiro e da gente que o seguiase encontra primeiramente na pre-ocupação com a vida presente, en-tendida não como negação ou, parausar uma expressão consagrada,como um “vale de lágrimas”, mascomo espaço privilegiado de vidaque prepara aquela que vem após amorte. O resultado prático destaconfluência pode ser aquilatado naspalavras de Honório Vilanova jámencionadas, que atribuem à “re-gra ensinada pelo Peregrino” a no-vidade sócio-religiosa representadapelo projeto Belo Monte. As pala-vras do Conselheiro sugerem umaética a ordenar a vida do arraial, aomesmo tempo em que viabilizam asalvação eterna das almas. A recep-ção criativa das palavras do Conse-lheiro, aliada à certeza de se estarrefazendo a saga dos hebreus liber-tados, propiciou à gente do BeloMonte ensaiar uma recriação da for-ma de vida da primeira comunida-de cristã, de Jerusalém, de acordocom o livro neotestamentário dos

23 Antônio Vicente Mendes Maciel. Tempestades que selevantam..., p.442-443.558-559. In: Ataliba Nogueira.António Conselheiro e Canudos..., p.159.185.24 Antonio Vicente Mendes Maciel. Tempestades que selevantam..., p.343-346. In: Ataliba Nogueira. AntónioConselheiro e Canudos..., p.136-137.

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Atos dos Apóstolos.Rompe-se, portanto, a dicotomia

entre expectativas escatológicas ecompromissos no campo ético e his-tórico, tão própria de uma mentali-dade religiosa secularmente en-raizada: a comunidade “viabiliza, des-ta forma, um novo modo de vida,este sim, concreto e real que, em si,é uma prefiguração da vida futura”.25

As palavras do Conselheiro, feitasconselhos, viabilizam a comunidade,orientam decisões particulares, vis-lumbram horizontes inusitados, eensinam o caminho da salvação. Dealguma forma, Belo Monte recupe-ra um traço de longa duração da re-ligiosidade popular brasileira, a aten-ção à vida terrena. Tal recuperaçãopermite reescrever o sentido daqui-lo que terá sido o escopo último doprojeto Belo Monte: a salvação. Emduas palavras, um da Conselheiro eoutra da gente sertaneja, se materia-liza essa convicção. No final do ca-derno de 1897, no tocante textointitulado “Despedida”, o líder doarraial pede perdão se por acaso agiu

ou falou de forma rígida com suagente:

Conquanto em algumas oca-siões pro-ferisse palavras ex-cessivamente rígidas, comba-tendo a maldita república, re-preendendo os vícios e moven-do o coração ao santo temor eamor de Deus, todavia nãoconcebam que eu nutrisse omínimo desejo de macular avossa reputação. Sim, o dese-jo que tenho da vossa salvação(que fala mais alto do que tudoquanto eu pudesse aqui dedu-zir) me forçou a proceder da-quela maneira.26

E que o povo do Belo Monteparecia estar convencido dessaperspectiva escatológica do proje-to do Conselheiro deduz-se do tes-temunho irado de frei JoãoEvangelista, que no último dia desua missão no arraial viu a frenteda casa em que se hospedava to-mada pelos habitantes do arraial,“gritando que não precisavam depadres para se salvar, porque ti-nham o seu Conselheiro”.27 Essacerteza de que o Conselheiro seempenhava em abrir as portas docéu para sua gente levou inclusiveà resistência na guerra brutal; “sal-

25 Josildeth Gomes Consorte. “A mentalidademessiânica”. In: Ciências da Religião. São Bernardo doCampo, 1983, n.1, p.47.26 “Despedida”. In: Antônio Vicente Mendes Maciel.Tempestades que se levantam..., p.625-626. Editadopor Ataliba Nogueira. Antônio Conselheiro e Canudos...,p.197 (grifo nosso).27 João Evangelista de Monte Marciano. Relatório...,p.6.

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var a alma”, eis a garantia que eledava a quem morresse na luta, se-gundo depoimento recolhido porEuclides da Cunha.28

Testemunhos hostis

É recorrente, nos testemunhosde inimigos do arraial, a afirmaçãode que a ação e a palavra do Conse-lheiro instituem uma nova legalida-de. Um correspondente do barão deJeremoabo, depois de afirmar queentre as milhares de pessoas queestavam com o Conselheiro nãohavia “uma só criatura que esta sejahumana”, afirma: “e ele [o Conse-lheiro] impondo leis... basta destesentido que me incomoda!!”29 Con-flito de sentidos... Em outra cartaafirma: “O Conselheiro está agorapercorrendo as Vilas deste sertão eplanta-nos sua lei, que ele é o Go-verno desta terra sem lei, pior go-verno”.30 E o pe. Vicente Martinslamenta essa ética feita política: “oAntonio Conselheiro não é mais ohomem de ontem. Hoje tem forosde governador, e como tal vai pro-mulgando leis, publicando-as e es-tas vão sendo aceitas pelos infelizesque o acompanham e por uma gran-de maioria dos habitantes dos luga-res onde ele arma tenda ara dar con-

selhos”.31

Essas afirmações todas conflu-em em duas, que julgamos sinteti-zar a percepção dos inimigos doConselheiro e do arraial por ele li-derado: “a política dele é toda di-ferente”.32 Preciosa constatação...Também o lamento de outro cor-respondente do barão é enorme-mente sugestivo: ele não se con-forma que o Conselheiro “possater esquecido as coisas do Céu parasó cuida(r) no que é exclusivamen-te terreno”.33 Não cabe na cosmo-visão dualista católica umaintegração entre uma ética queconstrói alternativas de vida paraa gente sofrida do sertão e a espe-rança pela salvação escatológica.Mas na cosmovisão da gente ser-taneja, e do Conselheiro em parti-

28 Euclides da Cunha. Diário de uma expedição. Compa-nhia das Letras, São Paulo: 2000, p.111.29 Carta de José Américo ao barão de Jeremoabo, de 28/02/1894. In: Consuelo Novais Sampaio (org.) Canudos:cartas para o barão. São Paulo: Edusp, 1999, p.97.30 Carta de José Américo ao barão de Jeremoabo, de 02/01/1896. In: Consuelo Novais Sampaio (org.) Canudos:cartas..., p.111.31 Carta de Vicente Martins ao barão de Jeremoabo, de22/01/1896. In: Consuelo Novais Sampaio (org.) Canu-dos: cartas..., p.114.32 Carta de João Cordeiro de Andrade ao barão deJeremoabo, de 02/01/1897. In: Consuelo Novais Sampaio(org.) Canudos: cartas para o barão. São Paulo: Edusp,1997, p.131.33 Carta de Aristides Borges ao barão de Jeremoabo, de2/4/1897, citada por Alexandre Otten. “Só Deus é gran-de”..., p.332.

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O Conselheiro, porsuas prédicas econselhos, é associadoao Moiséscomunicador das leisde Deus ao povo.

cular, ela era indispensável,e foi ela que viabilizou o pro-jeto Belo Monte.

Conclusão

Fixamo-nos aqui em as-pectos da mensagem religi-osa do Conselheiro, e daapropriação dela feita pelagente que o seguiu, capaz deconstruir a alternativa sócio-religiosa representada porBelo Monte. Seriam possí-veis outras abordagensatinentes à temática destaaula, como, por exemplo,realçar aquilo que o histori-ador inglês Edward P.Thompson chamou “a eco-nomia moral da multidão”(e que bem poderia ser cha-mada “a economia religiosada multidão”), ou seja, “umconsenso popular a respei-to do que eram práticas legítimase ilegítimas na atividade do mer-cado, dos moleiros, dos que fazi-am o pão” fundamentado numa“visão consistente tradicional dasnormas e obrigações sociais, dasfunções econômicas peculiares a

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vários grupos na comunidade”.34

Como no caso das multidões in-glesas do século XVII e XVIII,também no caso sertanejo a per-cepção de que a ordem social ereligiosa tradicional estava sendoviolada, particularmente pelasinovações trazidas pelo regime re-publicano, foi fator decisivo parao estabelecimento do Belo Mon-te. E se fortaleceu ainda mais coma ação do Conselheiro, que pre-encheu “de palavras e sentido oprotesto de uma populaçãoiletrada”.35 Por isso, Machado deAssis talvez não tenha sabido queacertara em cheio ao afirmar,

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS37

BERGER, Peter. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulinas, 1985.ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1996.GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.KÜNG, Hans. Projeto de ética mundial: uma moral ecumênica em vista da sobrevivência humana. 2 ed. SãoPaulo: Paulinas, 1998.SEVERINO CROATTO, José. As linguagens da experiência religiosa: uma introdução à fenomenologia da religião.São Paulo: Paulinas, 2001.VASCONCELLOS, Pedro Lima. Terra das promessas, Jerusalém maldita: memórias bíblicas sobre Belo Monte(Canudos). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2004 (tese de doutorado).

34 Edward. P. Thompson. “A economia moral da multi-dão inglesa no século XVIII”. In: Costumes em comum.Companhia das Letras, 1998, p.152.35 Dawid Danilo Bartelt. “Os custos da modernização:dissociação, homogeneização e resistência no sertão doNordeste brasileiro”. In: Revista Canudos. Salvador:1999. v.3, n.1,p. 103.36 Machado de Assis. A Semana. W. M. Jackson, Rio deJaneiro / São Paulo / Porto Alegre: 1946, v.3, p.312;coluna de 4/6/1893.37 Citamos aqui apenas os títulos não mencionados nasnotas de rodapé anteriores.

quando soube da participação de-cisiva do Conselheiro e de suagente nas manifestações contra osnovos impostos, que o lema do fu-turo líder de Belo Monte era “nãodeis a César o que é de César”...36

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*Eduardo Galasso Faria, Mestre em Ciências da Reli-gião, pastor e professor na Faculdade de Teologia deSão Paulo (IPIB).

Introdução

A ideia cada vez mais presentede um encontro iminente entre areligião cristã e as outras religiõesaos poucos começa a exigir umareflexão mais acurada entre nós.A dificuldade para um posicio-namento diante desta matéria temraízes profundas e brota da natu-ralidade oriunda da posição de su-perioridade e exclusividade vividapelo cristianismo por séculos, es-pecialmente no mundo ocidental.No entanto, no século XXI, emum mundo globalizado, a realida-de do pluralismo se apresentacomo uma exigência nos meios decomunicação e na vivência daspessoas, colocando em xeque asreligiões em suas posições isola-

das, há muito firmadas. Em paísescomo os Estados Unidos e a Ingla-terra existem mais muçulmanosque presbiterianos. Na AméricaLatina e no Brasil é visível o cres-cimento de seus adeptos. A cadamomento somos desafiados a re-conhecer como nunca antes a rea-lidade do outro, suas opções e va-lores diferentes. Como podemos,a partir da teologia, refletir sobreeste fenômeno?

A questão extrapola os limitesda academia e do debate intelectu-al atingindo as pessoas no viver diá-rio. Com os meios de comunica-ção eletrônica, o mundo se tornamenor e as várias tradições religio-sas não podem mais se ignorar.

O exclusivismo que tem pro-vocado o isolamento das religiões,aos poucos começa a ser questio-nado em nome de uma nova atitu-de, que possibilite maior diálogo econhecimento entre esses grupos.

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Não é mais possível às religiões vi-verem a sua própria história, inde-pendente das outras, acreditandoser a única verdadeira. Um certoimperialismo religioso, que tornoufamiliar a ideia de que as outras reli-giões sempre devem aprender como cristianismo, pede hoje umareconsideração. Por outro lado, apossibilidade de encarar as outrastradições religiosas de maneira hu-milde e inspirada no trato de Jesuscom os estranhos, pode estar crian-do a possibilidade de uma interaçãorespeitosa e positiva com elas.

Aos poucos, o tema dopluralismo como dado importantepara uma nova compreensão damissão de Deus no mundo do sécu-lo XXI entra na agenda de nossasdiscussões acerca da evangelização.É provável que ao abordá-lo venha-mos a tomar consciência das im-plicações para a vida da igreja e otestemunho do evangelho.

Essa possibilidade desperta per-guntas delicadas e perturbadoras.Seriam as outras religiões verdadei-ras e também instrumentos para asalvação? Suas verdades poderiamser aceitas sem se perder a identi-dade cristã? Nesse caso, o cristia-nismo seria apenas uma religião en-tre tantas outras e Jesus não seriaúnico? Seria possível e proveitoso

dialogar com as religiões de formarespeitosa e sincera, sem medo?

Proponho-me neste artigo a exa-minar parte da discussão teológicaacerca do pluralismo e de uma teo-logia das religiões. Procurarei escu-tar com simpatia as vozes e propos-tas que se manifestam no debate atu-al sobre o tema. Ao procurar repro-duzir suas principais ideias de manei-ra fiel, espero que elas tenham al-cance maior e contribuíam para adiscussão da fé e da religiosidade emdias tão conturbados na vida da igre-ja. Assim, acompanharemos um pou-co de sua história que não é nova nempequena e, na elaboração deste re-censeamento, o farei com a atençãovoltada para as implicações parauma possível nova fronteira na obraevangelizadora, que deve sempre en-volver a igreja de forma imperativa,apaixonada e ousada.

I - O Cristianismoe as religiões

não-cristãs

Exclusivismo

É antiga dentro do cristianismoa discussão sobre a possibilidade dasalvação nas religiões não-cristãs.

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Com a expansão do islamismo noséculo VII, a questão se tornou cadavez mais presente até se aproximarda formulação de uma teologia dasreligiões no século XX. Com a evo-lução das discussões sobre o relacio-namento entre as religiões, pelo me-nos três posições, que já se tornaramclássicas, estão sempre presentesquando a matéria é discutida.

A primeira delas, chamada deexclusivismo, afirma que Jesus Cris-to é o único mediador da salvação.Tem suas bases em textos bíblicoscomo Mateus 11.27, “ninguém co-nhece o Pai senão o Filho e aquele aquem o Filho o quiser revelar”, ouAtos 4.12, “não existe nenhum ou-tro nome pelo qual devamos ser sal-vos” . Sustenta, com Orígenes eCipriano no século III, que fora daigreja não há salvação. Reafirmadano II Concílio de Florença, em1442,estabeleceu que nenhum dos quevivem fora da igreja católica... podetornar-se partícipe da vida eterna,conforme Mateus 25.41, “apartai-vos de mim, malditos, para o fogoeterno...” É uma posição que vemdos inícios do cristianismo e foi fun-damental para a preservação da igre-ja em meio às ameaças de persegui-ção e do politeísmo.

Com Constantino, no século IV,o cristianismo se tornou a religião

oficial do Império Romano e cami-nhou majoritariamente como úni-ca religião verdadeira, tendo comoproposta missionária a conversãodos pagãos, que de outra forma es-tariam perdidos.

Ainda no século passado, esta foia posição quase inabalada da igrejacristã. Mesmo a teologia de KarlBarth no século XX, sustentou umavisão negativa das religiões não-cris-tãs, ao considerá-las como um cami-nho construído pelo homem paraalcançar a salvação, uma pretensãohumana auto-justificadora que des-prezava o dom da graça e a revela-ção de Deus. Nessa condição, em-bora portadora de verdades precio-sas, a religião seria a grande mani-festação da incredulidade do homem(GIBELLINI, 509), em oposição àfé em Jesus Cristo, a única possibili-dade real de salvação. Esta posturateve sua expressão missionária má-xima com Hendrick Kraemer ( Amensagem cristã em um mundo nãocristão, 1938), que contribuiu parao isolacionismo e a ausência de diá-logo entre as religiões.

Tal posição não impediu que opróprio Barth, mais tarde,reformulando seu pensamento aotratar da humanidade de Deus, res-saltasse a importância das religiõesao dizer que “Todo ser humano, tam-

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bém o mais estranho a nós, o maisinfame ou miserável, deve ser pornós tratado sob a pressuposiçao deque, à base da eterna decisão deDeus, Jesus Cristo é também seuirmão, Deus mesmo é também seuPai.” (BARTH, 398). Outros teólo-gos protestantes como EmilBrunner, Paul Tillich e WolfhartPannenberg, baseados em umteocentrismo cristológico e apon-tando para um inclusivismo, provo-caram uma abertura maior para acompreensão entre as religiões e apossibilidade de abrir o diálogo en-tre elas. Na Igreja Católica se de-senvolveu a ideia de que a igreja nãoé a única via de salvação (H.Schlette), mas a via especial. Comisso, reforçou-se uma visão maispositiva das religiões, o que facili-tou o caminho para a colaboração eo encontro.

Inclusivismo

Nessa discussão, uma segundaposição se tornou possível atravésda ideia de inclusivismo. Com elaadmite-se que fora do cristianismo,que é a religião verdadeira, pessoasreligiosas, autênticas e responsáveis,podem ser alcançadas pela graça deDeus. Prende-se à ideia do teólogocatólico Karl Rahner, sobre os “cris-

tãos anônimos, que estariam obri-gados a se tornar cristãos explícitos”(GIBELLINI, 511). A igreja, porsua vez, seria muito mais a vanguar-da social, histórica e explicitamenterelevante no mundo.

Jesus Cristo é na verdade o úni-co caminho, mas existem outrasveredas pelas quais é possível sechegar a Deus. Este caminho esta-ria presente em outras religiõesonde possa existir

“uma realidade transcenden-te amorosa e justa, que dêsentido para a vida humana,promova a integridade psi-cológica, mantenha elevadopadrão ético, contribua paraa libertação de todas as pes-soas e integre os indivíduose as nações numa comunida-de humana mais ampla – aípoderemos reconhecer umareligião verdadeira, válida esalvadora ainda que seus se-guidores apelem para o nomede Maomé, Moisés, Buda ouqualquer outro, ao invés deapelarem para o nome de Je-sus” (citação de Knitter emGUTHRIE, 126).

Esta posição é chamada tambémde unicidade relacional de Cristo ou

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cristocentrismo inclusivista (GI-BELLINI, 513). Procurando fugir deuma certa arrogância cristã, reco-nhece que a salvação pode alcançarquem não confessa a Cristo comosalvador, mas possui características“moldadas pelo evento de Cristo”.Caso as religiões não-cristãs sejamconsideradas como vias ordináriasda salvação e o cristianismo comoa via extraordinária, como fazemalguns teólogos (Dupuis/Schlette),teríamos a indicação de que existea “mudança de um paradigmacristocêntrico para um outro,teocêntrico” (GIBELLINI, 514).

O processo acima descrito apon-ta para uma revolução na teologia,ou seja, a mudança radical de umpensamento teológico centrado emJesus para um outro centrado emDeus. No entanto, reconhece-se queesta posição, marcada pelo dilemaentre o exclusivismo intolerante porum lado e o inclusivismo tolerantepor outro, embora procure se man-ter fiel ao evangelho, acaba fazendouma problemática relativização dacristologia (Hick/Knitter).

Tese singular dentro do inclu-sivismo e praticamente ultrapassan-do-o, é defendida pelo teólogo ca-tólico suíço, Hans Kung ( Ser Cris-tão. Rio: Imago, 1976/ Projeto deética mundial; uma moral ecumênica

em vista da sobrevivência humana.S. Paulo: Paulinas, 1993). Ele criti-ca a ideia de Rahner acerca dos cris-tãos anônimos, por considerar quepor ela as religiões não necessitari-am de Cristo e se tornariam cami-nhos de salvação.

Afirma também a singularidadee o universalismo inclusivo do cris-tianismo ao invés de umexclusivismo arrogante. O singulardo Cristianismo para ele, é Jesuscomo “critério último para o relaci-onamento humano com Deus, como próximo e com a sociedade” (inTEIXEIRA, 73). Ademais, só emCristo existe salvação plena. E ocritério para que uma religião sejaconsiderada verdadeira depende deuma prática e teoria que manifes-tem o espírito de Jesus Cristo(GIBELLINI, 517).

Küng ensina que as religiões nãodevem ser vistas como sendo to-talmente falsas ou verdadeiras. Emsuas limitações, “não contrariandoa mensagem cristã em pontos fun-damentais, podem muito bem com-plementar, corrigir e enriquecer areligião cristã” (in GIBELLINI,518).

Há uma causa maior que deveser ponto fundamental para o cris-tianismo e as demais religiões ouseja, que através do diálogo, este-

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jam a serviço do ser humano. É pre-ciso buscar uma “teologia-criadora-da-paz entre as religiões e os povos”(GIBELLINI, 518) – uma “teologiaecumênica para a paz”, com Cristoacima das religiões (TEIXEIRA, 75).

Pluralismo

Com a evolução da cultura mo-derna no século XIX a sociedade,bem como a teologia e a religiosi-dade, foram forçadas a lançar umoutro olhar sobre o mundo, exigin-do do cristianismo uma atitude me-nos exclusivista e mais positiva emrelação às religiões (PEDREIRA,119/ FAUSTINO, 86). A essanova visão ou espírito dá-se o nomede pluralismo. O próprio movi-mento missionário, em contatocom as religiões da Ásia e África,tornou necessário o diálogo dianteda forte presença de uma realida-de cultural e religiosa diversa. Essaatitude receptiva levou ao entendi-mento de que, “da mesma maneiracomo Deus fala por meio de Jesuse sua mensagem, fala também pormeio dos ‘outros profetas e men-sagens` (PEDREIRA, 121), fazen-do com que “esses caminhos inde-pendentes de salvação, não neces-sitem da mediação cristã” (Idem,121) e sejam importantes para o

enriquecimento das religiões emsua busca da salvação.

Esse novo passo, considerado uma“revolução copernicana na teologia”(Amaladoss), aponta para a ideia deque “Deus, e não Jesus, seria na per-cepção pluralista, o meio e o fim dasalvação” (PEDREIRA, 122). Assim,o pluralismo avança em oposição àideia de que a salvação mediada pe-las religiões não-cristãs é incompleta,constituindo no máximo, uma “pre-paração” para a verdadeira revelação,encontrada no cristianismo e na igre-ja (TEIXEIRA, 56, 58).

O pluralismo vai além doexclusivismo e do inclusivismo pararenunciar à visão , “segundo a qualtodas as religiões giram em torno doCristo e do cristianismo” (Geffré inTEIXEIRA, 58). Admite a ideia deque a igreja cristã não é a única viade salvação mas a via especial (H.Schlette). Assim, nota-se a evoluçãodo exclusivismo para o inclusivismoou cristocentrismo e deste, para opluralismo. Todavia, ao ser questio-nada a unicidade de Jesus Cristocomo mediador entre Deus e a hu-manidade é evidente que surja umaforte polêmica, no caso lideradapelos teólogos inclusivistas, lem-brando a importância fundamentaldos textos cristológicos do NovoTestamento.

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II - Pluralismo elibertação

A participação da teologia lati-no-americana no debate acerca dopluralismo e de uma teologia dasreligiões, possibilitou um enriqueci-mento do mesmo. Como ponto deligação, menciono em primeiro lu-gar a experiência de Paul Knitter,teólogo norte-americano e missio-nário na Nova Guiné, que viveu naobra evangelizadora uma caminha-da em direção às outras religiões embusca de diálogo (No Other Name?,1985). Fazendo uma recapitulaçãobiográfica, ele fala do contato comas religiões mundiais (islamismo,judaísmo, hinduísmo, budismo) ecomo as enxergava: vivendo em ple-na escuridão face à luz do cristianis-mo. Na década de 60, em busca deuma estratégia que favorecesse umverdadeiro encontro com as outrasreligiões, começou a presenciar eviver a luta de algumas igrejas cris-tãs que começavam a se abrir paraa possibilidade de um diálogo embusca do “verdadeiramente outro”(KNITTER, 22).

Passando de sua postura inicialexclusivista para uma inclusivista edepois, para “alguma forma depluralismo” (KNITTER, 28), co-

meçou a compreender melhor asoutras religiões e como elas podemter suas próprias visões e respostasválidas ao Mistério, sem precisar serincluídas unilateralmente no cristi-anismo. Em um segundo momen-to, constatou como o modeloteocêntrico de interpretação da dou-trina cristã pode favorecer um diá-logo autêntico entre as religiões quesentem dificuldades com a visãocristocêntrica ou eclesiocêntrica.Para ele, a mensagem principal deJesus foi teocêntrica, em suavivência de completa subordinaçãoao Pai.

Foi nas décadas de 70 e 80, nosEstados Unidos, que ele se sentiuchamado testemunhar de um mododiferente a sua fé. Passou a partici-par, em manifestação aberta contraa política norte-americana, ao ladode várias igrejas, da luta pelos direi-tos humanos de estudantes perse-guidos e foragidos da América Cen-tral (Movimento Santuário),porcausa das revoluções e da pobreza

Tal militância o levou a proporuma nova maneira de avaliar teolo-gicamente as religiões, verificando“em que medida elas se empenhamem promover a salvação – o bem-estar da humanidade” (citação emPEDREIRA, 122), mais preocupa-das em ser soteriocêntricas. Daí o

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seu entendimento de que a verdadedeixa de ser exclusiva de uma únicareligião, à qual as demais devem seajustar, para ser, acima de tudo, “bem comum de todas as religiõesque contribuem para a salvação e apromoção do Reino de Deus”(Idem, 123). Em decorrência, apreocupação com as diferenças pas-sou a ser substituída pela busca dassemelhanças, a fim de favorecer odiálogo em torno de um objetivofundamental básico e responsável(vida, verdade, justiça, paz, amor).

A questão maior

Para o teólogo José Maria Vigil,o mundo está marcado pela exis-tência de uma forte estrutura opres-sora que só pode ser vencida poruma ação globalizada. Diante dessaurgência, as diferenças doutrinári-as entre as religiões deve ceder lu-gar a uma questão maior, que re-quer diálogo e entendimento e re-sulte na ação em favor dos necessi-tados. Não precisamos de um con-senso em torno de doutrinas, pois oque importa é o “diálogo da vida” .Dúvidas sobre questões teóricas po-dem não ser tão importantes como“a urgência inadiável da convivên-cia na paz e no amor. Não se tratade nos convencer mutuamente,...

nem muito menos de ´converter`os outros, mas de atender ao Deusda vida” ( in TOMITA, 23).

Para José Comblin também, nãohá proveito em se comparar as di-versas religiões, com suas doutrinas,rituais, sistemas, símbolos. A verda-de é muito mais que isso e está alémdas religiões que podem se tornaridólatras, um fim em si mesmas.Não se pode esquecer que na histó-ria, as religiões já justificaram a es-cravidão e até guerras imperialistas.Muitas vezes, são elas os sustentá-culos religiosos que, em nome deDeus, justificam as dominações eos fundamentalismos. O mesmoacontece com o cristianismo que,em sua história, tem se tornadomuito mais uma religião cultural doque uma religião fiel ao Senhor Je-sus. “A verdade da religião é o queestá mais além da religião: a buscade Jesus Cristo, de Deus...”(TOMITA, 55)

Embora as religiões sejam neces-sárias, elas só se tornam importan-tes na medida em que são capazesde lutar contra os poderes opresso-res, buscando um modo mais hu-mano de viver, fundamentado emJesus Cristo, o “Deus impotente quemorre na cruz e é rejeitado”(TOMITA, 56). Sua presença écontestadora dos poderes estabele-

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cidos e por isso, é um desafio às re-ligiões institucionalizadas e à cris-tandade.

A base real para o diálogo partedos problemas que os seres huma-nos enfrentam, seja pobreza, discri-minação ou dominação da mídia.Nesse caso, as religiões mundiais,assim como as religiões indígenas eafricanas e até os militantes “ateusou não crentes” (TOMITA, 73 ) sãointerpelados. O grande tema dessediálogo macroecumênico e que con-ta para Deus, é o atendimento aosnecessitados (cf. Mateus, 25). A ver-dadeira religião pois, é o “amor ati-vo aos pobres” (TOMITA, 60).

De modo geral, o interesse pelasreligiões vem dos homens e não deDeus e sua proposta, ao invés dodiálogo plural, consiste na busca deadeptos de outras religiões. Opluralismo conduz à necessidade dedialogar com o benefício da corre-ção mútua. Os cristãos muitas ve-zes, são os que desconhecem a Je-sus Cristo quando os pagãos podemapontar para a verdade do evange-lho (TOMITA, 54). Assim, opluralismo religioso - nossa terceiraposição no convívio com as religi-ões - leva ao relativismo do cristi-anismo, apontando para uma mu-dança de paradigma no trato comas outras religiões, que também são

consideradas caminhos de salvação.O que conta é o diálogo da vida,

especialmente quando ela estáameaçada no mundo que Deuscriou com o propósito de ser um larverdadeiro para os seres humanosviverem em comunhão com respon-sabilidade. Para Vigil, não se tratamais de conquista missionária masde uma ética mundial responsável(TOMITA, 20). Aos poucos, faceàs grandes massas excluídas do Ter-ceiro Mundo e especialmente daÁfrica, as igrejas se sentem chama-das a desafiar um mundoexcludente, tomado pela ganância.

As religiões são chamadas parafora de seu exclusivismo a fim dedialogar e, se admitimos que avida é o dado fundamental, aí estáo dado que pode medir a sua rele-vância. Diante dele, a discussãoclássica em torno da teologia dasreligiões pode desviar a atenção docristão de sua missão. A TL pro-põe em razão disso, uma inversãono tratamento da matéria. O diá-logo do cristianismo com as de-mais religiões deve partir do reco-nhecimento da dificuldade emfazê-lo na área da ortodoxia e dosacordos doutrinários, parapriorizar o “campo da ética e davida” (Vigil in TOMITA, 23).

Embora seja intrigante a proble-

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mática discutida no diálogo das re-ligiões, a questão maior é outra. Aocontrário da afirmação tradicionalsobre a prioridade da igreja quantoà salvação, a verdade é que “fora dasalvação não há igreja (verdadeira)”(Vigil in TOMITA, 25).

“Se a religião não produz“soteria”, ou seja, se não trans-forma o ser humano e o mun-do em favor da justiça,.. se nãose une às demais religiões nodiálogo e na cooperação paraa transformação do mundo, éporque é uma religião “falsa”ou falsificada, ou inútil.” (Vigil,in TOMITA, 26).

A utopia pela transformação domundo é o que há de mais originalna religião judaico-cristã e seria suagrande contribuição para o diálogointer-religioso. O diálogo com asreligiões em torno a construção deum novo mundo é o grande tema aser discutido. Para a TL, o desafio éir além da libertação no campo eco-nômico, cultural, de gênero, deetnia, para viver o pluralismo religi-oso da “libertação mundial”, que“afeta todo o universo teológico esob sua luz tudo deve serreformulado” (TOMITA, 31). Ain-da Vigil:

“O maior serviço que hoje de-vem fazer as religiões ao mun-do e aos pobres, concretamen-te, é dialogar e encontrar ocaminho da colaboração posi-tiva para a transformação dasociedade” ( TOMITA, 20).

Esta paixão pela justiça efraternidade pode ser a contribui-ção judaico-cristã para o diálogointer-religioso, que lhe permitirá “co-mungar com outras religiões queaceitem acolher com reverênciaessa vivência da opção pela Justiçamaior”(TOMITA, 29) que, emcontrapartida, poderia serenriquecida com outras perspecti-vas e “carismas” de outras religiões.E o cristianismo pode contribuirmostrando em sua prática Jesus,aquele que se apresenta como oDeus frágil e impotente, “próximode um ser humano, dominado, ex-plorado, excluído.” Aí estaria o novoponto de partida para um diálogodesejável e produtivo.

Em um mundo globalizado edespersonalizado, com as empre-sas multinacionais que se impõemcontrolando com suas ideologias osmeios de comunicação e fazendo aspessoas consumidoras apenas, a al-ternativa consiste em retomar “otema do Deus libertador dos opri-

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midos” (Comblin in TOMITA, 65)e contestar o sistema global como ofizeram os primeiros cristãos, en-frentando o Império Romano. Aopressão não alcança somente osfamintos, mas os que estão subme-tidos ao papel muitas vezes indig-no que lhes concede a sociedademanipulando-os. Em tal situação,o diálogo cristão com as outras re-ligiões se fará com o incon-formismo em meio de um mundoque “não entende por que um serhumano não pode estar feliz sendosimplesmente consumidor”(Comblin in TOMITA, 66).

Como complemento desta im-portante tarefa, as religiões devemestar conscientes da sua impossibi-lidade de dizer a última palavra so-bre a vida. No diálogo inter-religio-so, elas devem saber apontar paraalém, conscientes que seu papel li-mitado. Como já foi dito, está cla-ro que as religiões podem ser cami-nhos de salvação ou de perdição. Odesafio é que as religiões e o cristia-nismo, mudando seu rumo, se apro-ximem de Jesus Cristo dispostos aconfessar seu pecado e a trilhar umcaminho comum de libertação, úni-ca possibilidade para um diálogoverdadeiro.

Conclusão

Concluindo podemos pensar nosdesafios que podem estar presentesem alguns elementos da discussãoatual sobre o pluralismo e o diálogointer-religioso.

Além de um natural sentimentode ameaça e da necessidade de pre-caução diante do desconhecido,como igreja, pode-se pensar na pos-sibilidade de uma reconstrução ereformulação da fé sustentada atéhoje? Ou seja, teremos condições derenovar esta fé e falar em religiãosegundo um novo paradigma? Ouainda, seríamos capazes de nos abrirpara uma nova agenda missionária?Afinal, teríamos condições e dispo-sição, diante da crise que alcança asigrejas, de reexaminar a nós mes-mos em questões que seriam, deoutra forma, consideradas básicas eintocáveis? Que possibilidade temosde trilhar caminhos inusitados navivência do evangelho e do Reinoque possam ir além da busca e con-quista do outro que simplesmenteengrosse as nossas fileiras?

Na igreja a oração e o cântico emfavor das multidões tiveram sua ex-pressão mais conhecida no verso dohino que diz:

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASREFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASREFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASREFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASREFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARTH, Karl. Dádiva e Louvor. Artigos Selecionados. S. Leopoldo: Sinodal, 1986.DUPUIS, Jaques. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso. S. Paulo: Paulinas, 1999.GIBELLINI, Rosino. A Teologia do Século XX. S. Paulo: Loyola, 1998.GUTHRIE, Shirley. Sempre se Reformando – a fé reformada em um mundo pluralista. S. Paulo: Pendão Real/Publicações João Calvino, 2000.KNITTER, Paul F. Jesus de os Outros Nomes. Missão cristã e responsabilidade global. S. Bernardo do Campo:Nhanduti Editora, 2010.PEDREIRA, Eduardo Rosa. Do Confronto ao Encontro. S. Paulo: Paulinas, 1999.TEIXEIRA, Faustino. Teologia das Religiões. S. Paulo: Paulinas, 1995.TOMITA, Luiza E., BARROS, Marcelo e VIGIL, José Maria (orgs.). Pluralismo e Libertação. Por uma TeologiaLatino-americana Pluralista a partir da Fé Cristã. São Paulo: Asett, Eatwot, Loyola, 2005.

“Eis os milhões que em trevas tão medonhas/Jazem perdidos sem o salvador!”

(Cantai Todos Povos, no. 280).

Teríamos condições de ver asgrandes populações que cla-mam no mundo globalizado deuma outra maneira? Se pensa-mos em uma religião para o fu-turo, com condições de favore-

“Que estou fazendo se sou cristão,... Há muita fome no meu país,Há tanta gente que é infeliz,Há criancinhas que vão morrer,...Há muitos pobres sem lar, sem pão,Há muitas vidas sem salvação.Aos poderosos eu vou pregarQue a injustiça é contra DeusE a vil miséria insulta os céus

(CTP, no. 297).

cer uma missão libertadora dealcance mundial, fundamentadaem Cristo, talvez venhamos aenfatizar algum outro hino domesmo hinário, como aquelecujos versos dizem:

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*José Adriano Filho é bacharel em Teologia, licen-ciado em Letras pela Universidade Estadual deLondrina (UEL), Mestre e Doutor em Ciências daReligião pela Universidade Metodista de São Pau-lo, cursa atualmente o doutorado em Teoria eHistória Literária no Instituto de Estudos da Lin-guagem (IEL) da Universidade Estadual de Campi-nas (UNICAMP). Professor na Faculdade de Teo-logia de São Paulo da IPI do Brasil e na Faculda-de Unida de Vitória (ES).

Hebreus tem como caracterís-tica marcante a apresentação dacomunidade cristã como o “povode Deus peregrino”. A comunida-de cristã é peregrina da mesmaforma que o povo de Israel no pas-sado (Hebreus 3-4). Abraão pe-regrinou na terra da promessa,mas tinha os olhos fixos na cida-de da qual “Deus é o arquiteto e

edificador” (11,8-16). Acima detudo, está Jesus, agora entronizadonos céus, o exemplo maior (12,1-3). Além disso, ao comparar Jesuscom eminentes figuras da tradiçãojudaica: anjos (1,4-13), Moisés(3,1-6), o sacerdócio levítico, es-pecialmente o sumo sacerdócio(7,1-10,18), e considerá-lo “supe-rior” (1,4; 7,7.19.22; 8,6; 9,23;10,34; 11,16.35.40; 12,24),Hebreus procura estabelecer ahonra superior de Cristo e indicara efetividade maior da sua media-ção como sumo sacerdote. Ele,como sumo sacerdote e mediador,garante a salvação (2,5-18; 7,1-10,18). Tendo ele próprio passadopela jornada terrestre, tornou-se o“precursor”, o “pioneiro” e o“aperfeiçoador” da fé (2,10; 6,20;12,2).

Esta apresentação é marcanteem Hebreus 11, um capítulo que

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se assemelha às listas de exemplose aos sumários da história da salva-ção1. Estas listas, cuja extensão econteúdo variavam grandemente,faziam parte da homilia da sinagogahelenista. Elas exortavam para de-terminado tipo ou prática de virtu-de e apresentavam também o signi-ficado do plano salvífico de Deus.Não são somente uma série deexemplos, mas também um resu-mo da história da salvação,condensada nas descrições das açõesdos amigos de Deus, e ilustram aação de Deus naquela história2.

Os heróis apresentados sãoexemplares porque sua fé no quefizeram ou não viram ainda é apro-vado por Deus, razão porque são “agrande nuvem de testemunhas” etestemunhas das “coisas melhores”,tornando a lista uma ilustração dadeclaração de 11,1: “A fé é um modode possuir desde agora o que se es-pera, um meio de conhecer realida-des que não se vêem.”

Hebreus 11 caracteriza-se pela

repetição anafórica da expressão“pela fé”, utilizada dezoito vezes nosvv.3-31 para introduzir cada exem-plo apresentado e mostrar como afé em “coisas não vistas” capacita oherói do passado a sustentar a fé naspromessas de Deus. Na seção de11,32-38, introduzida pela expres-são “por meio da fé”, os persona-gens da narrativa bíblica são menci-onados numa progressão cronoló-gica livre. Todos estes exemplos es-tão ligados por meio da repetição de“pela fé” e “por meio da fé” à defini-ção de fé de 11,1-2. Estas repetiçõesestão conectadas com a exortaçãoà fidelidade de 10,32-39, que con-duz à definição de fé em 11,1-2 e àsua ilustração em 11,3-38.

A conclusão de 11,39-40: “Todoseles, embora tenham recebido umbom testemunho graças à sua fé, nãolograram, entretanto, a realização dapromessa. Já que Deus previa paranós coisa ainda melhor, eles nãodeviam chegar sem nós à plena rea-lização”, retoma a recomendação deque “a fé é um modo de possuir des-de agora o que se espera, um meiode conhecer realidades que não sevêem”3.

A forma como Hebreus 11 apre-senta a peregrinação é significativa,pois reflete claramente uma situa-ção de conflito social. A imagem dos

1 Josué 24; Ezequiel 20,5-44; Neemias 9,6-38; Salmo78; 105; 106; 135-136; Eclesiástico 44-50; 1 Macabeus2,51-60; 2 Macabeus 2,50-64; 4 Macabeus 16,16-23;18,11-19; Sabedoria 10.2 COSBY, Michael R. The Rhetorical Composition andFunction of Hebrews 11, pp.8-24; EISENBAUM, PamelaM. The Jewish Heroes of Christian Faith, pp.18-35, 84-87.3 COSBY, Michael R. The Rhetorical Composition andFunction of Hebrews 11, pp.30-34; SPICQ, Ceslas. L’Epitreaux Hébreux, pp.364-365.

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peregrinos, sustentados pelas suasesperanças a caminho para a pátriacelestial, não é somente uma des-crição da situação legal dos destina-tários, nem puramente metafórica,mas apropriada para descrever umacomunidade que estava sofrendoostracismo e desgraça social4. Nes-ta apresentação, Hebreus dissociaseus destinatários de qualquer res-ponsabilidade pelos valores da cul-tura dominante. Aos olhos da soci-edade vigente, eles se movem den-tro de um baixo status social; po-rém, embora humilhados, recebe-ram a aprovação de Deus e com-partilham o destino glorioso do povode Deus.

A história da comunidade, quecontinua a história do povo de Deusdo passado, mostra que a honra des-te mundo e a honra divina são mu-tuamente exclusivas. Hebreus, as-sim, convoca seus destinatários a seafastarem dos valores e da estimada sociedade vigente. Eles devemviver os valores e compromissos queresultam na aprovação de Deus e norecebimento das promessas.

1- Hebreus 11,1-7:definição de fé e osprimeiros heróis da

história de Israel

Hebreus 11,1 apresenta umadefinição de fé, formulada em duascláusulas: “A fé é um modo de pos-suir desde agora o que se espera, ummeio de conhecer realidades quenão se vêem” (11,1). Fé, emHebreus 11, significa fidelidade, fir-meza e confiança em Deus. Hebreus11, contudo, conecta a fé com aescatologia, algo evidente na afirma-ção de 10,39: “Nós, porém, não so-mos daqueles que recuam para aperdição, mas daqueles que crêempara a conservação da alma”. Estecomponente escatológico ajuda adefinir o significado de “coisas nãovistas” de 11,1, pois estabelece umarelação entre “coisas não vistas” e acitação do Salmo 8 em Hebreus 2,5-9, que relembra a afirmação do Sal-mo 110,1: “Senta-te à minha direi-ta, até que eu faça dos teus inimigoso escabelo dos seus pés”. Como Je-sus ainda não realizou visivelmenteeste grandioso status (2,8b), a su-jeição de todas as coisas a Ele é umapromessa ainda não cumprida (“algonão visto”), mas que com certeza

4 ATTRIDGE, H. W. “Paraenesis in a Homily”, pp.211-226.

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virá. Neste sentido, a fé está relaci-onada com a realidade da sujeiçãoúltima de todas as coisas a Cristo,algo esperado, mas ainda não visto5.

O conceito de fé de Hebreus 11não se reduz exclusivamente ao as-pecto escatológico, pois está tam-bém relacionado com os exemplosapresentados na lista. Primeiro, afir-ma que “a fé é um modo de possuirdesde agora o que se espera”.Hebreus afirma que os heróis agempor ou através da fé, sendo, às ve-zes, recipientes passivos do que lhesacontece pela fé. Segundo, o com-ponente escatológico da fé, já indi-cado, é também importante, porqueindica que os heróis da fé são apro-vados por sua capacidade de anteci-par o futuro. Eles demonstram co-nhecer os eventos futuros, mesmoquando não podem ver os eventosque ultrapassam seu tempo de vida,o que faz com que a definição de11,1 tenha uma função pro-gramática em relação aos exemplosque seguem. Por essa razão, a de-

claração de 11,2: “Foi ela que valeuaos ancestrais um bom testemu-nho”, que se refere diretamente aotestemunho da Escritura e declaraque ela é um registro das vidas dosantepassados6, é seguida pela afir-mação de 11,3: “Pela fé nós com-preendemos que os mundos foramorganizados pela palavra de Deus.Segue-se daí que o mundo visívelnão tem suas origens em aparênci-as”, que inicia a seção de 11,3-31.Este verso combina com a declara-ção de que a fé dirige-se para as “coi-sas não vistas” (11,1), que é parale-la à afirmação de que “o mundo vi-sível não tem suas origens naquiloque se vê”.

Desenvolvendo sua compreen-são de fé, Hebreus apresenta a pri-meira série de heróis: Abel, Henoce Noé. Abel, mencionado primeiro,não é conhecido na tradição comoum homem de fé: “Pela fé Abel ofe-receu a Deus mais excelente sacri-fício que Caim, pelo qual alcançoutestemunho de que era justo, dandoDeus testemunho das suasoferendas, e por meio dela depoisde morto, ainda fala” (11,4).Hebreus não inicia sua apresenta-ção com seu assassinato, mas coma declaração de que o sacrifício delefoi aceito, mas não o de Caim, acres-centando que Abel “alcançou teste-

5 BRAWLEY, Robert. “Discursive Structure and the Unseenin Hebrews 2:8 and 11:1”, pp.81-98; HAMM, Dennis.“Faith in the Epistle to the Hebrews: The Jesus Factor”,pp.270-291.6 ATTRIDGE, Harold W. The Epistle to the Hebrews,pp.308-314; EISENBAUM, Pamela M. The Jewish Heroesof Christian Faith, pp.145-147.

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munho de que era justo”, justamen-te porque procura integrar a lista deheróis com a afirmação anterior: “Omeu justo viverá pela fé, mas, sevoltar atrás, minha alma nele não secompraz” (10,38). Hebreus está fa-miliarizado com tradições que apre-sentam Abel como justo (1 Henoc22,7; Testamento de Abraão 13,2-3; Mateus 23,35; 1 João 3,12). Abelfoi a primeira pessoa na história bí-blica a ser assassinada, o que devetambém ter influenciado sua apre-sentação. Hebreus, contudo, nãodestaca sua morte violenta. Apenasdeclara que ele “morreu”. Mesmoem 12,24, que compara o sangue deJesus com o sangue de Abel, o tes-temunho de Abel é subordinado aotestemunho de Jesus através da novaaliança7.

Com relação a Henoc, o que sediz sobre ele segue Gênesis 5,24:“Tendo seguido os caminhos deDeus, desapareceu: Deus o arreba-tara.” Hebreus está próximo aGênesis 5,24 na apresentação de

Henoc, mas a compreensãointertestamentária de Henoc comouma pessoa que foi retirada da ge-ração pecaminosa no dilúvio paraser protegida, tornando-se um per-sonagem exemplar de justiça, erabastante difundida e deve ter influ-enciado a escolha dele para figurarna lista. Hebreus enfatiza o trasladode Henoc ao céu. Henoc foi retira-do do mundo dos pecadores para asua própria proteção e sua apresen-tação adequa-se à de Abel.

Abel sofreu uma morte violen-ta, Henoc não, mas os dois termi-nam numa esfera celestial, de ondecondenam os ímpios na terra. Am-bos foram também aprovados porDeus. Abel foi aprovado por ser jus-to e Henoc por ter agradado a Deus.Assim, 11,6: “Ora, sem a fé, é im-possível agradar a Deus, pois quemse aproxima de Deus deve crer queele existe e recompensa os que o pro-curam”, afirma que se agradar aDeus “crendo que Ele existe e re-compensa os que o procuram”8.

Hebreus 11,7 conclui a primei-ra série de heróis com a menção deNoé : “Pela fé, Noé, divinamenteavisado daquilo que ainda não se via,levou a sério o oráculo e construiuuma arca para salvar sua família.Com isso, ele condenou o mundo ese tornou herdeiro da justiça impu-

7 SPICQ, Ceslas. L’Epître aux Hébreux, p.342;EISENBAUM, Pamela M. The Jewish Heroes of ChristianFaith, pp.148-149; ATTRIDGE, Harold W. The Epistle tothe Hebrews, pp.316-317.8 EISENBAUM, Pamela M. The Jewish Heroes of ChristianFaith, pp.150-151; LANE, William L. Hebrews 9-13,pp.336-337; SCHOLER, J. M. Proleptic Priests, pp.132-133.

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tada de acordo com a fé.” A primei-ra parte do verso, que fala sobre ooráculo que ele recebeu a respeito“daquilo que ainda não se via”, refe-re-se às “coisas não vistas” de 11,1.Nesse sentido, o fato de Noé con-cluir a referência aos heróis do iní-cio da história bíblica e a referênciaà criação têm o efeito de um sumá-rio, delimitando esta seção da se-guinte, onde serão apresentadas asações dos patriarcas.

A segunda parte de 11,7 afirmaque Noé “condenou o mundo e setornou herdeiro da justiça imputa-da de acordo com a fé”. A declara-ção de Gênesis 6,9: “Eis a famíliade Noé: Noé, homem justo, foi per-feito no meio das gerações do seutempo. Seguiu os caminhos deDeus”, indica que Noé era “justo”,“íntegro” e “agradou a Deus”. A afir-mação de que ele “condenou o mun-do” está baseada na tradição de queele foi comissionado por Deus parapregar o arrependimento. O mun-do foi condenado e destruído, masNoé “tornou-se um herdeiro da jus-tiça que vem pela fé”, (11,7b) e,conseqüentemente, participante deum povo separado do resto da hu-manidade9.

Abel, Henoc e Noé foram sepa-rados de toda a impiedade terrena eretirados da sua geração, a geraçãodo dilúvio, um período no qual, se-gundo a tradição judaica, a humani-dade se caracterizava por grandedecadência moral. Abel foi assassi-nado, Henoc trasladado. Noé e suafamília foram salvos na arca, mas omundo em torno deles foi destruídopelas águas do dilúvio. Cada umdeles, por seu exemplo, condenou ageração de sua respectiva época.Hebreus apresenta, em seguida, operíodo patriarcal, cujos heróis nãosó se distinguem da humanidade emgeral, mas também começam a serdiferenciados do que pretende ser ahistória nacional israelita.

2- Hebreus11,8-19: Abraão

e os patriarcas

Hebreus 11,8-22 apresenta operíodo patriarcal: Abraão (vv.8-19), Isaque, Jacó e José (vv.20-22),destacando a experiência de Abraão(vv.8-19), que é justificada pela in-serção homilética dos vv.13-16. Nes-ta apresentação destacam-se algunsaspectos da história familiar deAbraão, mas Hebreus destaca suapartida da terra natal em obediên-

9 ATTRIDGE, Harold W. The Epistle to the Hebrews,p.319; EISENBAUM, Pamela M. The Jewish Heroes ofChristian Faith, pp.152-153.

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cia à vontade de Deus (11,8-10),para um lugar desconhecido (11,13-16). Abraão é chamado para vivercomo estrangeiro numa terra es-trangeira. Ele é apresentado como“estrangeiro e peregrino”, uma ex-pressão normalmente utilizada paraindicar pessoas que desfrutavam deum status social mais baixo que osoutros cidadãos10. Sua experiênciade migração é destacada porque suachamada indica a separação e atémesmo a alienação que acompa-nhou o fato de ele ter sido escolhidopor Deus. Muitas coisas foram pro-metidas a Abraão, mas a separaçãoda pátria fica evidente nas palavrasque lhe foram dirigidas pelo próprioDeus: “O Senhor disse a Abrão:´Parte da tua terra, da tua família eda casa de teus pais para a terra queeu te mostrarei`” (Genesis 12,1).

Segundo Hebreus 11.8, “Pela fé,Abraão, respondendo ao chama-

mento, obedeceu e partiu para umlugar que devia receber em heran-ça, e partiu sem saber para onde ia”.Deus não disse para onde Abraãodeveria ir, até aquele destino ser al-cançado. Embora tenha afirmadoque lhe daria a terra, quando Abraãolá chegou, encontrou outro povo vi-vendo ali, o que o tornou um “resi-dente estrangeiro” (11,9).

Na discussão sobre a fé deAbraão, Hebreus não cita o textoprova de Gênesis 15,6: “Abraão tevefé no Senhor, e por isso o Senhor oconsiderou justo”. Ele é um dos pou-cos exemplos de fé da Escritura queHebreus apresenta, mas não explo-ra o potencial total do seu próprioexemplo, pois o seu interesse pri-mário não é a fé de Abraão, mas suaeleição e o isolamento subseqüentedo lar, da nação e do mundo, junta-mente com Isaque e Jacó.

Hebreus 11,13-16 apresenta aexperiência de Abraão como umestrangeiro e peregrino, comentan-do principalmente sua migraçãopara Canaã e sua subseqüente vidaseminômade. Hebreus é testemu-nha de uma tipologia de Abraão, deacordo com a qual ele é o “peregri-no” por excelência, o modelo paraos que peregrinam na terra devidoao seu ideal religioso. A declaraçãode 11,13a: “De acordo com a fé,

10 A falta de cidadania expunha a pessoa a experiênciasde desgraça e perda. A cidadania trazia segurança ealguns laços na sociedade. A privação da cidadaniadeixava a pessoa à deriva, sujeita ao abuso e insulto e,conseqüentemente, viver longe da terra nativa expunhaa pessoa à perda de status e acesso limitado à honra naterra estrangeira. Sirácida 29,24-28 afirma: “Triste vidaé andar de casa em casa, aí és forasteiro, não poderásabrir a boca; tu és um estranho, darás de beber semreceber um obrigado e, além disso, ouvirás palavrasamargas: ‘Vem cá, forasteiro, põe a mesa; se tens algu-ma coisa, dá-me de comer.’ ‘Retira-te, forasteiro, cedelugar a um mais digno, vou hospedar meu irmão, precisoda casa.’ Essas coisas são pesadas para um homemsensato: a censura do hospedeiro e a injúria do credor.”Veja também deSILVA, David A. Despising Shame,pp.185-186.

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todos estes morreram sem ter al-cançado a realização das promes-sas”, refere-se aos heróis menciona-dos antes na lista e aos que aindaserão apresentados, pois Abel,Henoc, Noé e os patriarcas partici-pam da trajetória histórica deAbraão. Hebreus 11,13-16, em ge-ral, comenta sua vida, pois é elequem melhor exemplifica o que sequer deixar claro: separação emarginalização. A própria históriade Abraão em Gênesis fornece a lin-guagem que fala sobre a separação.A confissão dos patriarcas de quesão “estrangeiros” e “peregrinos”intensifica a expressão utilizada emGênesis. Por isso, o final do v.13 es-pecifica que a morte dos patriarcas,de acordo com a fé, foi marcada poruma expectativa oposta ao cumpri-mento. Foi numa condição de fé enão de cumprimento que eles mor-reram.

Abraão poderia ter retornado àsua pátria original. Mas a expressão“todos estes” é uma referência maisampla: “De acordo com a fé, todosestes morreram sem ter alcançadoa realização das promessas, mas ten-do-as enxergado e saudado de lon-ge e reconhecendo-se estrangeirose peregrinos na terra. Pois aquelesque assim falam mostram claramen-te que estão à procura de uma pá-

tria” (vv.13-14). Esse verso preparaa declaração do v.16: “De fato, aspi-ravam a uma pátria melhor, a umapátria celeste. Por isso, Deus não seenvergonha de ser chamado seuDeus; de fato, ele preparou-lhes umacidade” (11,16), que afirma que ameta das peregrinações de Abraãonão é terrena, mas celestial. Os pa-triarcas estão separados do mundono qual eles vivem. Estão alienadosda sua pátria, bem como da terraprometida por Deus, o que faz comque a afirmação do v.15a: “e, se ti-vessem tido em mente aquela deonde haviam saído” indique não umdesejo nostálgico pela antiga pátria,mas o desejo por uma pátria me-lhor11.

Dando continuidade à precarie-dade da história humana apresenta-da na vida de Abraão, após a men-ção do sacrifício de Isaque (11,17-19), Hebreus apresenta Isaque, Jacóe José em cenas que os mostram emseus leitos de morte (11,20-22).Gênesis 27,27-40 subjaz à mençãode Isaque: “Também pela fé, Isaacabençoou Jacó e Esaú em vista dofuturo” (11,20). Hebreus mencio-na a bênção sobre Jacó e Esaú erelembra a história da bênção sobreJacó, que enganou seu pai, Isaque,

11 SILVA, David A. Despising Shame, pp.187-188.

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pois segundo o costume o filho maisvelho deveria ser abençoado primei-ro. Este fato, junto com a mençãode Esaú, não deve ser menospreza-do, pois ele quebra a perspectivaconvencional de sucessão da histó-ria israelita, na qual a bênção deDeus passa de Abraão para Isaque,de Isaque para Jacó, de Jacó para osdoze patriarcas. Embora Esaú nãoseja escolhido como um exemplo defé (12,16-17), a inclusão da bênçãosobre ele quebra a seqüência natu-ral da história. Hebreus 11 não apre-senta uma etiologia de Israel comonação.

Hebreus 11,21 relembra umacena similar, tendo, consequen-temente, o mesmo efeito. Na nar-rativa de Gênesis, Jacó abençoa seuneto mais novo, Efraim (Gênesis48,8-22). Contudo, desta vez nadaé feito ingenuamente, pois Jacó ex-plica a José que está abençoando omais novo porque ele será maior nofuturo. Se o normal era o filho maisvelho receber a herança, a históriadesses heróis torna-se única, numdesvio no curso normal da história,que implica a intervenção divina12.A frase “no tocante às coisas futu-ras” (11,20) indica que as bênçãosde Isaque predizem o futuro de cadaum dos seus filhos, harmonizando-se com a compreensão de fé como

uma esperança futura.O interesse pelo futuro e a habi-

lidade em predizê-lo está presentetambém na escolha de Jacó, cujabênção indica a grandeza de Efraim(11,21). O mesmo é verdade comrespeito a José, que prediz o êxodoe pede que seus ossos sejam leva-dos do Egito para Canaã quando oêxodo ocorresse (11,22). O fato deIsaque, Jacó e José serem descritosem seus leitos de morte e de quetodos eles fazem predições foi, semdúvida alguma, um fator importan-te na decisão do autor de Hebreusde incluí-los na lista, pois estas ca-racterísticas os distinguem comouma sub-série na lista, e estão ade-quadas às circunstâncias de morteou próximas à morte que caracteri-za a vida de cada herói13.

Abraão e seus descendentes dei-xaram sua terra nativa em obediên-cia à vontade de Deus, aceitaram ostatus mais baixo de estrangeiros eperegrinos, sendo expostos à deson-ra que acompanhavam tal mudan-ça de status. Abraão e os patriar-

12 EISENBAUM, Pamela M. The Jewish Heroes of ChristianFaith, pp.164-165.13 De uma forma ou outra, Hebreus 11 liga cada exem-plo de fé à morte, seja sua própria morte ou a de alguémde sua família (11,4.5.7.11-12.13.17-19.20.21.22.23.25-26.29.30.31.33-34.35-38). VejaROSE, Christian. Die Wolke der Zeugen, pp.253-267;LANE, William L. Hebrews 9-13, p.395.

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cas desconsideraram a opinião dosinfiéis e desprezaram a vergonha,permitindo que Deus definisse oque era honroso e desonroso. Aobediência a Deus conduz à honra,nunca à desgraça e, também, à boareputação e aprovação na comuni-dade fiel14.

Os patriarcas participam de umagenealogia particular, tendo sido es-colhidos por um herói prévio e, porextensão, por Deus. Isaque, que ape-nas o faz como herdeiro de Abraão,abençoa Jacó, que nunca deveria tersido abençoado. Jacó, por sua vez,abençoa Efraim e Manassés, de for-ma bem menos convencional. A his-tória deste grupo distingue-se da his-tória geral de Israel devido ao de-senrolar dos acontecimentos paraeles: os filhos mais novos suplantamos mais velhos e, em meio às cir-cunstâncias desfavoráveis, como nocaso de Isaque, tornam-se herdei-ros. Segundo Hebreus 11, estes per-sonagens não são parte da trajetó-ria fundante de Israel, pois não seocupa com o período em que Israeltornou-se uma nação, ou seja, coma conquista da terra, o estabeleci-mento da monarquia e a constru-ção do templo. Abraão, Isaque eJacó não são os fundadores de Isra-el. Eles são distintos de e não repre-sentativos de Israel, estão ligados

entre si, mas Hebreus não estabele-ce uma relação entre eles e a histó-ria nacional israelita15.

3 - Hebreus 11,23-28: Moisés e o

êxodo

Moisés é apresentado como umapessoa que, como outras do povode Deus, sofreu por causa da fideli-dade. Ele não é apresentado comolegislador ou mediador da Nova Ali-ança, mas como alguém que renun-ciou um lugar de honra no mundo eescolheu o status de escravo em so-lidariedade ao povo de Deus. Porisso, logo após a indicação do seunascimento e da sua preservaçãomiraculosa, Hebreus afirma queMoisés “recusou a ser chamado fi-lho da filha de Faraó” e apresentaeventos da sua vida que indicam umconflito onde “o que se vê” deve seravaliado em função do que “não sevê”. Chamado “filho da filha deFaraó”, motivado pelas “coisas ain-da não vistas”, Moisés abandonouos tesouros do Egito, preferindo so-frer e compartilhar a sorte do “povo

14 deSILVA, David A. Despising Shame, p.190.15 EISENBAUM, Pamela M. The Jewish Heroes of ChristianFaith, pp.165-166.

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de Deus”: “Pela fé, Moisés, tendocrescido, renunciou a ser chamadofilho da filha de Faraó. Preferiu sermaltratado com o povo de Deus, agozar, por um tempo, do pecado”(11,24-25). Moisés torna-se partedos “filhos de Israel”, está separadoporque conscientemente escolhedeixar o Egito, recusa ser membroda casa real egípcia e rejeita todosos benefícios que daí adviriam parasofrer junto com o povo de Deus”16.

Apresentado como membro dafamília real egípcia, Moisés renun-cia ao prazer da corte, preferindo ser“maltratado junto com o povo deDeus”. Ele deixa para trás as hon-ras do trono a fim de unir-se a es-cravos, povo do mais baixo statussocial e sujeitos ao insulto e abusofísico. No texto, o prazer da cortedo Egito é qualificado, primeiro, por“temporário”, que contrasta com“permanente”, usado para descrevera herança eterna (10,34; 12,27;13,14), fazendo com que a honra ouconforto possibilitados pela alegriatemporária do status terreno e a ri-queza não tenham valor último, es-tando mesmo sujeitas a serem trans-formadas em desgraça e dor no diada visita de Deus17. Segundo, é iden-tificado com “pecado”, que, no tex-to, significa mais que transgressãoda lei, sendo a recusa em viver em

solidariedade com o povo de Deus.Pecado é, portanto, não perseverar,não suportar as injúrias junto como povo de Deus. Esta definição depecado, ou seja, não ser solidáriocom o povo de Deus em seu sofri-mento e, principalmente a perspec-tiva da impossibilidade de restaura-ção de alguém que peca depois deter conhecido a fé (6,4-6; 10,26-31),relaciona o termo pecado com a cri-se que os destinatários de Hebreusenfrentavam. O pecado ocorrequando a comunhão com o povo deDeus é recusada ou abandonada,cedendo à tentação e procurandoum lugar de prazer na sociedade in-fiel. Ocorre também quando al-guém abandona o “ser maltratadojunto com o povo da Deus”, alme-jando a honra definida pelos inimi-gos de Cristo18.

A escolha de Moisés é motivadapor sua avaliação do valor respecti-vo dos tesouros do Egito e a “repro-vação de Cristo”. Com os olhos fi-xos no galardão, ele achou que areprovação de Cristo constituía o

16 D’ANGELO, M. R. Moses in the Letter to the Hebrews,pp.28-32; 46-47; SPICQ, Ceslas. L’Epître aux Hébreux,pp.358-359.17 SPICQ, Ceslas. L’Epître aux Hébreux, pp.357-358;LANE, William L. Hebrews 9-13, pp.371-372; deSILVA,David A. Despising Shame, pp.191-192.18 WENGST, Klaus. Pax Romana. Pretensão e Realidade,pp.203-204.

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maior tesouro. O v. 26: “Conside-rou a humilhação de Cristo comouma riqueza maior do que os tesou-ros Egito, pois tinha-os fixos na re-compensa”, é um breve comentário,cuja função é similar aos vv.13-16na seção de Abraão. Nos dois ca-sos, Hebreus mostra as motivaçõesdos heróis. Abraão, depois de mi-grar para Canaã, teve de viver comoestrangeiro e peregrino na terra dapromessa, pois ele ainda não haviachegado à verdadeira pátria. Moisés,por sua vez, “considerou a humilha-ção de Cristo como uma riquezamaior do que os tesouros Egito”.Hebreus destaca este aspecto, tan-to ao falar dos patriarcas quanto deMoisés, pois mesmo que os deixesaber que há galardões que os espe-ram, eles não os experimentaramdurante as suas vidas. A fé conside-ra as realidades terrenas à luz dasrealidades eternas, fazendo com queo que pode provocar reprovação edesonra na opinião do mundo sejatransformado no caminho para ahonra diante de Deus19.

Hebreus também destaca queMoisés, da mesma forma queIsaque, Jacó e José (11,20-22), tempoder profético para antecipar o

futuro: “Pela fé, abandonou o Egitosem temer a ira do rei e, como quemvê aquele que é invisível, manteve-se inabalável” (v.27). Moisés é mo-tivado pelas “coisas não vistas”.Hebreus, em geral, apresenta Moiséscomo um visionário20, destacandoeventos específicos da vida dele, as-sim como fez com os outros perso-nagens, mas agora em vez deapresentá-lo como quem libertou osisraelitas da escravidão do Egito,descreve-o como um homem quesabe fazer boas escolhas.

Á luz da promessa, pois “olhouo galardão”, Moisés escolhe a repro-vação de Cristo, mesmo à custa deser desonrado aos olhos do mundo.Moisés desprezou a vergonha, re-nunciando às honras do mundoonde ele nasceu e foi adotado. As-sim como Cristo, ele assumiu a for-ma de escravo e escolheu ser deson-rado e reprovado na companhia dopovo de Deus, unindo-se ao seu des-tino, ao invés de beneficiar-se dosprazeres daquela sociedade e ligar-se ao destino dela. A fé o conduziu àescolha da desgraça temporária e aavaliar as honras do mundo à luz dogalardão de Deus.

A comparação entre Moisés e osheróis apresentados demonstra queela se conforma à situação dos des-tinatários. Os destinatários de

19 deSILVA, David A. Despising Shame, pp.193-194.20 D’ANGELO, M. R. Moses in the Letter to the Hebrews,pp.95-145.

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Hebreus experimentaram injúrias ejulgamento, sofreram e perderam osbens (10,33-34). A fidelidade pas-sada da comunidade é descrita emtermos que lembram Moisés, cujaescolha acomoda-se a esta apresen-tação de sua existência. Moisés es-colheu ser maltratado junto com opovo de Deus (11,25), abandonouos tesouros do Egito e olhou ogalardão que estava adiante (11,26).Ele até mesmo suportou o “opró-brio de Cristo” (11,26), que é o queos destinatários têm sofrido (10,35).Seu exemplo amolda-se à situaçãodos destinatários e, em particular, àescolha que é colocada diante deles.Confrontados com o exemplo dele,os destinatários de Hebreus pode-riam mais uma vez afirmar sua re-núncia ao próprio status e aceitar aperda de honra e lugar na sociedadecom alegria, ao escolher a solidarie-dade com o povo de Deus e com osseus irmãos e irmãs marginalizados.

Logo após a apresentação deMoisés, Hebreus 11,29-31 enume-ra três exemplos de fé. Primeiro, opovo de Israel, que é contrastadocom os egípcios: “Pela fé, eles atra-vessaram o mar Vermelho comoterra enxuta, ao passo que os egíp-cios que tentavam fazê-lo foram tra-gados”. Segundo, as muralhas deJericó caíram, permitindo aos

israelitas ser vitoriosos e o povo deJericó ser destruído: “Pela fé, asmuralhas de Jericó ruíram, depoisde se lhe ter dado a volta durantesete dias” (11,30). Terceiro, e fina-lizando o uso anafórico de “pela fé”,temos a história de Raabe, salvaporque exerceu a hospitalidade e fazparte do milagre de Jericó: “Pela fé,Raabe, a prostituta, não pereceucom os rebeldes, pois acolhera pa-cificamente os espiões” (11,31). Atradição judaica trata Raabe comouma pessoa especial e a tradiçãocristã lhe outorga um lugar de des-taque (Mateus 1,5; Tiago 2,25). Suainclusão na lista de Hebreus é im-portante, pois não está incluída emnenhuma lista judaica por ser mu-lher gentia e de má reputação.

A intervenção de Deus torna ahistória favorável para algumaspessoas e desastrosa para outras.De fato, não só em forma, mastambém em conteúdo, estes ver-sos são paralelos à menção deIsaque, Jacó e José na referênciaaos patriarcas, onde Deus escolheo filho mais jovem e não o maisvelho - a norma tradicional de he-rança é contrariada por Deus(vv.20-22). Em 11,29-30, a ordemda natureza é tambémtransgredida, pois Deus favorecealgumas pessoas em detrimento de

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outras.Hebreus também não segue a

ordem cronológica da históriaisraelita, porque se a tivesse segui-do, a queda das muralhas de Jericóseria apresentada depois da históriade Raabe. Esta é alguém de fora, nãoé israelita e não deve ser vista mera-mente como uma tentativa deHebreus de ampliar “as fronteirasda velha aliança”. Raabe é parte datrajetória que Hebreus apresenta nalista. Os verdadeiros heróis da his-tória bíblica não são os líderes naci-onais de Israel, mas aqueles que sãocaracterizados pela fé que demons-tram. Todos eles foram pessoas defora, estando separadas da sua ge-ração, da nação e do mundo21.

4 - Hebreus11, 33-38: osmártires e os

marginalizados

Hebreus 11,32-38 apresenta pes-soas que foram martirizadas ou tor-turadas, que suportaram a desgraçae afronta ao cumprirem as exigên-cias da fé, razão pela qual elas sãoinseparáveis daquelas que realiza-ram através da fé atos dignos de ser

honrados e louvados na memória dopovo de Deus. Os heróis menciona-dos não são apresentados numa or-dem cronológica e nomes de baixostatus social estão combinados nalista. A mudança de uma ordem cro-nológica para uma de natureza for-tuita, de uma lista de heróis e suasobras para uma lista de nomes quenão estão associados entre si e, en-tão, para uma lista de eventos cujoreferente não está claro, apresentauma leitura caótica da história.Hebreus não menciona a conquistada terra, a monarquia e a constru-ção do templo. Nenhuma das glóri-as nacionais da história de Israel re-cebe atenção. Hebreus desenvolveuma linha histórico-salvíficadissociada da história nacional deIsrael22. Os eventos mencionadosacentuam este aspecto ao se referiràs vidas dos profetas e mártiresmacabeus: não são reis ou sacerdo-tes. Além disso, a seção desloca-selado do positivo ao negativo, deixan-do os destinatários no lado de baixoda história.

A expressão: “E que mais acres-centar? (v.32a), estabelece a transi-

21 D’ANGELO, M. R. Moses in the Letter to the Hebrews,pp.95-145.22 EISENBAUM, Pamela M. The Jewish Heroes of ChristianFaith, pp.174-175; DUNNILL, John, Covenant andSacrifice in the Letter to the Hebrews, pp.181-183.

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ção entre o v.31 e v.32, sendo seguidapela afirmação de que o tempo e oespaço disponíveis não permitemcontinuar apresentando outrosexemplos (vv.33-35). Os vv.35b-38são aplicados de forma mais diretaaos destinatários. Os vv.33-34 focali-zam realizações política e militar. Osheróis apresentados são exemplos defidelidade, assim como os que “re-peliram os exércitos estrangeiros”. Anota positiva: “mulheres reencontra-ram seus mortos, pela ressurreição”(1 Reis 17,17-24; 2 Reis 4,18,37 ) équebrada no v.35b: “Mas outros so-freram o esquartejamento, rejeitan-do a libertação para conseguir umaressurreição melhor”, que inicia a lis-ta de sofrimentos suportados porvários heróis23.

Hebreus se refere aos mártiresmacabeus ao falar daqueles que fo-ram torturados até a morte por cau-sa de uma melhor ressurreição, tor-nando-se exemplos de compromis-so com Deus e com a Torá no juda-ísmo helenístico (2 Macabeus 6,18-

7,42)24. 2 Macabeus 7 afirma queos mártires, em meio ao escárnio ezombaria de seus inimigos, sofreramuma morte vergonhosa, mas supor-taram a dor e a vergonha. Ao acen-tuar este aspecto, o texto deixa cla-ro que eles jamais retornariam a umcaminho que poderia oferecer con-forto e honra. Eles poderiam terretornado e abandonado o caminhoque a obediência a Deus requeria,mas tinham os olhos postos nogalardão, isto é, “uma melhor res-surreição” (11,35). Eles valorizama esperança que Deus dá ao fiel, ra-zão porque são capazes de recusaras promessas de honra e alto statusoferecidas e prosseguir no caminhoque traz sobre eles completa desgra-ça diante da opinião pública, mas,para eles, honra e vida diante deDeus25. Como Abraão e Moisés, osmártires recusaram a honra da so-ciedade vigente, a fim de alcançarum lugar de honra diante de Deus.Eles não permitiram que as pressõessociais de reprovação ou abuso físi-co os envergonhassem diante da-queles que não têm compromissocom Deus e nem esperança nogalardão prometido.

Eles formam uma corrente comaqueles que “sofreram a provaçãodos escárnios e do chicote e a dascorrentes e da prisão; foram apedre-

23 SPICQ, Ceslas. L’Epître aux Hébreux, pp.369-371.24 HENTEN, Jan Willem van. The Maccabean Martyrs asSaviours of the Jewish People, pp. 125-140.25 A tortura até a morte era uma experiência de dorfísica extrema e de total degradação. A pessoa erasujeita a abusos físicos, que envolviam um desafio asua honra pessoal, sendo-lhe negada a possibilidadede reparar a sua honra durante a vida. Veja deSILVA,David A. Despising Shame, pp.197-198.

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jados, foram serrados; morreramassassinados à espada; levaram umavida errante, vestidos de peles decarneiro e de pêlos de cabra; foramsujeitos às privações, oprimidos,maltratados, eles de quem o mun-do não era digno; erravam pelosdesertos e montanhas, pelas grutase cavidades da terra” (11,36-38).Nesse catálogo de desonrados, lo-calizados nas margens da socieda-de, em lugares que indicam o opos-to da ordem social, Hebreus intro-duz a avaliação: “dos quais o mun-do não era digno; errantes pelos de-sertos e montanhas, pelas grutas ecavidades da terra”. Essa afirmaçãoque envolve uma inversão das avali-ações de honra e desonra e é parteessencial da exortação e da declara-ção irônica da dignidade relativa dosperegrinos e do mundo, consistenuma inversão das normas da soci-edade26. Como nos vv.13-16, quefala sobre as peregrinações deAbraão, e do v.26, sobre Moisés,estes versos constituem um comen-tário sobre as peregrinações dosheróis mencionados nos vv.33-37.

Os que foram perseguidos e mor-tos, que peregrinaram pelos deser-tos e viveram em montanhas e co-vas da terra e foram rejeitadas sãoos modelos de fé. Delas, o mundonão é digno: elas desprezaram a ver-gonha ao renunciar a honra, statuse a aprovação oferecida pela socie-dade; preferiram a reprovação, ul-traje e desgraça, a fim de manter suaintegridade diante de Deus e alcan-çar o que ele prometeu.

Hebreus 11 atinge o clímax coma afirmação de que os heróis do pas-sado ainda aguardam a consumação,não deixando dúvidas de que aindalhes falta alguma coisa: “Todos eles,embora tenham recebido um bomtestemunho graças à sua fé, não lo-graram, entretanto, a realização dapromessa. Já que Deus previa paranós coisa ainda melhor, eles nãodeviam chegar sem nós à plena rea-lização” (vv.39-40). Recordando oinício do capítulo, Hebreusrelembra que estas pessoas “obtive-ram bom testemunho”, mas apesardo seu grande testemunho, não re-ceberam a promessa. A comunida-de cristã encontra-se numa posiçãomelhor que a dos heróis apresenta-dos e a expressão “eles não deviamchegar sem nós à plena realização”deixa claro a conexão existente en-tre os heróis do passado e a presen-

26 deSILVA, David A. Despising Shame, pp.199-200;LANE, William L. Hebrews 9-13, pp.389-391.

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te comunidade cristã. Esta conclu-são é significativa, pois destaca osofrimento dos heróis e, presu-mivelmente, reflete a situação dosdestinatários e os localiza na mes-ma continuidade histórica que osheróis apresentados.

Para Hebreus, na medida em quea história bíblica é parte da antigaaliança, ela é uma história não aca-bada. As alusões sumárias aos even-tos dos vv.32-38 deixam a históriabíblica num estado de sofrimento ecaos, sendo necessário impor-lheuma direção teleológica. Nesse sen-tido, a afirmação do v.40: “eles nãodeviam chegar sem nós à plena rea-lização”, implica que o “objetivo” dahistória somente será realizado nacomunidade cristã. Perfeição signi-fica algo acabado, que alcançou o seucumprimento27. Quando aplicamoseste conceito à releitura da históriaapresentada, Jesus Cristo torna-sea sua meta última, aquele a quemdevemos olhar atentamente. Signi-fica também que qualquer que te-nha sido a situação da comunidadecristã, de forma alguma o sofrimen-to deles poderia ser comparado comaquele dos heróis da fé.

Os santos do passado foram fi-

éis, tendo as promessas como baseda sua fidelidade, mas a comunida-de cristã desfruta agora de privilé-gio ainda maior, pois pode se bene-ficiar do ensino de Jesus, o grandesumo sacerdote (4,14-16; 5,1-10;8,1-10,18), o qual, depois da “nu-vem de testemunhas”, é apresenta-do como o exemplo por excelência.Os heróis do Antigo Testamentonão receberam a promessa e nãoforam aperfeiçoados em seus dias.Jesus, tendo alcançado a promessa,completa e coroa da fé, e, estando àdireita, nas alturas, tornou-se oexemplo por excelência que os cris-tãos devem seguir (12,1-3).

Hebreus 11 é, portanto, umaexortação que procura fortalecer afé dos seus destinatários, para quefossem corajosos no tempo presen-te. Os exemplos de homens e mu-lheres apresentados, de Abel atéRaabe (v.3-31), do período dos juízesaté os macabeus, mostram em deta-lhes a fé em ação. A fé considera “ascoisas não vistas” e as realidades fu-turas para traçar seu curso de ação,tornando relativa a importância da-quilo “que se vê”. De fato, ao consi-derar o invisível como visível, os he-róis da fé suportaram a perda de pres-tígio e status que as ações de fé tra-zem aos olhos dos incrédulos, alcan-çando a vida e honra diante de Deus

27 PETERSON, David. Hebrews and Perfection, pp. 156-159.

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e na memória do seu povo (11,2).O povo de Deus considera o cha-

mado divino como honra e meio dealcançar as suas promessas, a des-peito das opiniões contrárias dosinfiéis. Abraão desprezou a vergo-nha ao permitir que Deus definisseo que é honra e desonra. A obedi-ência a Deus conduz à honra, nuncaà desgraça. Ao deixar sua terra na-tiva em obediência à vontade deDeus, Abraão aceitou o status deestrangeiro e peregrino, sendo ex-posto à reprovação e desonra queacompanhavam aquela mudança destatus. Ele confessou este status,perseverou nele e, embora pudessevoltar à situação anterior, não foi

Hebreus 11 é,portanto, uma

exortação que procurafortalecer a fé dos seusdestinatários, para que

fossem corajosos notempo presente. Os

exemplos de homens emulheres

apresentados, de Abelaté Raabe (v.3-31), doperíodo dos juízes até

os macabeus,mostram em detalhes

a fé em ação.

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afetado pela vergonha diante da opi-nião da sociedade e não se sentiumotivado a deixar aquela relaçãomarginal em troca de um lugar dehonra aos olhos daquela sociedade.

Moisés compartilhou o mau tra-tamento do povo de Deus da mes-ma forma que Cristo suportou “avergonha da cruz” (12,2). Confron-tados com o exemplo de Moisés, osdestinatários podem mais uma vezafirmar a sua renúncia ao seu pró-prio status e aceitar a perda de hon-ra e lugar na sociedade com alegria,escolhendo continuar em solidarie-dade com o povo de Deus margina-lizado. Os mártires e os marginali-zados, por sua vez, desprezaram avergonha ao renunciar a honra,status e a aprovação oferecida pelasociedade incrédula, preferindo areprovação, ultraje e desgraça, im-postos por ela a fim de manter a suaintegridade diante de Deus e alcan-çar o que ele prometeu.

Jesus é o modelo supremo de fé.Os destinatários de Hebreus devem

considerar a carreira terrena e a gló-ria celestial de Jesus, para comparti-lharem da sua glória. Hebreus con-voca para seguir a Jesus e identificar-se com o seu sofrimento e vergonha:“Saiamos, pois, ao seu encontro, forado acampamento, carregando a suahumilhação” envolve “suportar a ver-gonha de Cristo”, como ocorreu como povo peregrino no passado.Hebreus quer, com isso, romper comuma adaptação que esconde a pro-fissão de fé, que promete segurançae “prazeres transitórios”, mas que nãose solidariza com os que estão atri-bulados. Hebreus chama para “den-tro da esfera profana com seu perigoe ameaça, para aceitar injúria e per-seguição”, fundamentando-se na afir-mação de que para os cristãos nãohá cidade permanente na terra. Elespertencem à cidade que há de vir,estando “cheios de expectativa a ca-minho dela no espaço desprotegido”:“Na verdade não temos aqui cidadepermanente, mas buscamos a que háde vir” (Hebreus 13,14).

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Do mérito humano àgraça divina

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*Ronaldo Cardoso Alves é bacharel em Teologia,licenciado em História pela Universidade de São Pau-lo, licenciado em Matemática pela Unifieo, Mestre edoutorando em Educação pela Universidade de SãoPaulo. Professor na Faculdade de Teologia de SãoPaulo, da IPI do Brasil.

Mérito. A sociedade ocidental,permeada por valores neoliberais,convive diuturnamente com umalógica meritocrática que leva aspessoas a reproduzirem conceitosirrefletidamente, muitos porquelhes são apresentados, sobretudonas diferentes mídias.

Quando nos deparamos com otexto de Efésios 2.1-10, observamos,à primeira vista, a preocupação doautor em deixar de lado a lógica domérito e enfatizar a graça de Deusem sua relação com o ser humano.Compreender o conceito de graça éum grande desafio que possibilitarefletir a respeito de um caminhodiferenciado da lógica do mérito rei-nante na sociedade. Se de um ladoo trecho base de nossa análise

prioriza a relação entre soberania emisericórdia de Deus para com o serhumano, por outro propõe a refle-xão acerca da oposição entre osbinômios “morte-pecado/graça-sal-vação”, enfatizando a ação de Cristopara a salvação humana. Nesse con-texto, o ser humano que vive no pe-cado e depende totalmente dagraciosidade divina é apresentadocomo “feitura de Deus” e, por isso,amado pelo Pai desde a criação.

A relação humana com atemporalidade é eixo central do tex-to. Limites físicos são colocados (cri-ação, morte, vida), assim como asmudanças de rumo no processo vi-tal (a conversão). Ambos, media-dos pela discussão de um conceitofundamental na relação entre eles.

Deus e os seres humanos: a gra-ça. Conceito que é o principal atra-tivo desse texto muito presente emprédicas e estudos bíblicos e, por isso,objeto da análise exegética aqui.

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Tradução

1 - E estando vós mortos aos delitos e às ofensas vossa(s),2 - nos quais outrora andastes conforme a época deste mun-

do, segundo o príncipe da potestade do ar, do espírito(que) agora opera nos filhos da desobediência.

3- Entre os que também nós todos nos comportamos noutrotempo, nas paixões da nossa carne, fazendo as escolhasda carne e dos pensamentos; e éramos (por) natureza fi-lhos da ira como também os outros.

4- Mas Deus, sendo rico em misericórdia, por seu grandeamor, amou-nos.

5 - E estando nós mortos aos pecados, deu-nos vida ao Cris-to, graças sois salvos.

6- E (nos) ressuscitou juntamente com (Ele) e (nos) fez sen-tar com (Ele) nos celestes em Cristo Jesus.

7- A fim de mostrar nos tempos vindouros a superabundanteriqueza da sua graça, em bondade para nós em CristoJesus.

8- porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não(é) de vós, (é) dom de Deus.

9- Não do trabalho, para que de modo nenhum alguém seglorie.

10 - Pois dele somos feitura (criação), criados em Cristo Je-sus para boas obras, as quais Deus preparou de ante-mão para que nelas andemos.

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1 - A Ambientaçãodo texto

1.1 Gênero literário ecaracterização formal

Efésios 2.1-10 é uma “narrativacomentada” exemplar de um textode “gênero epidíctico”, ou seja, o tipode escrito que objetiva representarfatos, pessoas ou coisas por meio denarrativas baseadas em imagens asquais “[...] tencionam impressionaro leitor, para fazê-lo sentir admira-ção ou repulsa;” (BERGER, 1998,21). Dentro dessa perspectiva, talnarrativa é formada por umasequência de acontecimentos que,concomitantemente, são narrados,avaliados e julgados. Esse tipo de es-tratégia lingüística clarifica algo queé inerente à autoria: oposicionamento diante do narrado.

Por mais que alguém se coloquecomo neutro diante de uma situa-ção narrada (algo defendido pelaconcepção positivista, oriunda doséculo XIX, ou ainda pelaliteralidade teológica), a investiga-ção histórico-linguística permite aavaliação dos propósitos do autor,ou simplesmente, de hipóteses acer-ca da carga ideológica que está ocul-ta na narrativa. Como tal, a epístola

aos Efésios apresenta arememoração do passado pagãocom vistas ao fortalecimento do pre-sente cristão dos destinatários doescrito, mudança histórica promo-vida pela intervenção divina pormeio da graça redentora do Cristo.

Nessa perspectiva, o texto deEfésios 2.1-10, permite a seguintedivisão:

Parte I – Diagnóstico doestado humano e sua

transformação pela açãodivina no curso temporal

(1-7)

A miséria humana é identificadacom a figura do príncipe dapotestade do ar, pois ambos retra-tam o egocentrismo. Essa situação,todavia, só poderia ser transforma-da por algo que exemplarmente re-presentasse o oposto: o altruísmo.Assim, a vitória divina ocorre porintermédio de sua própria interven-ção na história, personificada pelahumanidade do Cristo, Deus encar-nado. O resultado desse processo éa mudança do estado humano (dedesobediência para a obediência aDeus) e de temporalidade (dafinitude mortal imanente para ainfinitude imortal transcendente).

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Parte II - Graça comoagente da mudança do

estado humano e de suatemporalidade (8-10)

Se a primeira divisão descreveo processo de mudança estado/temporal, à segunda foi reservadaa didática explicação do agente des-se processo: a graça divina. Esta nãoprima pelo ineditismo nesse con-texto, pois existe desde osprimórdios da relação entre Deuse os seres humanos. Antes, se ma-nifestou nas obras preparadas porDeus, pois revelou seu caráterapriorístico de transcendência aoromper com a temporalidade hu-mana racionalizada como passado/presente/futuro. Portanto, compre-ender a ação graciosa do Deus vivoé adentrar a atemporalidade datemporalidade divina. Em outraspalavras, é tornar-se eterno mesmocom a mortalidade inerente à con-dição humana.

1.2 Lugar vivencial(Sitz im Leben)

O texto refere-se à universali-dade da igreja e à necessidade dedotá-la de unidade. Cristo é colo-cado como a cabeça do corpo, o

ente ímpar que possibilita a igual-dade entre gentios e judeus conver-tidos, algo até então impensável porparte da igreja que florescia no sé-culo I. Essa preocupação era fun-dada em dois pilares, um de cará-ter institucional e outro de âmbitoteológico. O primeiro tinha o obje-tivo de mostrar à igreja a necessi-dade de se compreender comocontinuadora da tradição apostóli-ca, daí a busca pela unidade. O se-gundo, por sua vez, priorizava asorigens da fé cristã como algo co-mum a todo aquele que cria na açãodo Cristo: a teologia da graça é co-locada como algo universal a todamanifestação cristã, pois tinha oobjetivo de se contrapor ao gnosti-cismo que atacava o cristianismodo período.

Depreende-se dessa leitura queo lugar vivencial do texto, ou seja,o contexto no qual surgiu, seria oensino, a catequese da igreja dofim do primeiro século, com o pro-pósito de dirimir as controvérsiasentre gentios e judeus convertidosao cristianismo, com vistas à uni-dade universal da igreja por meioda graça de Cristo. Outra possibi-lidade, diretamente relacionada àprimeira, seria a defesa da fé(apologética) diante das investidasgnósticas.

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1.3 Intenção do texto

Genericamente, o texto tevecomo intenção instruir cristãos gen-tios acerca da necessidade de secompreenderem como iguais aosjudeus convertidos. A prioridade édesenvolver as concepções de uni-dade e universalidade entre todas asculturas cristãs, numa igreja una eapostólica.

Especificamente, o texto tencio-nava fortalecer a fé dos pagãos con-vertidos por meio da salvação pelagraça doada por Deus,desvinculando-a do esforço pessoalbaseado na lógica meritocrática.Dessa forma, a graça é apresentadacomo o elemento de inserção dos

gentios, assim como dos judeus con-vertidos, na comunidade universalcristã.

2- A estruturação dotexto

1.1 – Divisão

A divisão abaixo revela que o tex-to possui duas partes diferenciadaspela mudança de níveis de assunto.A narrativa comentada possui umaprimeira parte que mostra a mudan-ça estado/temporal do autor e deseus destinatários, e uma segundaque explica o elemento que provo-cou essa mudança.

Parte I – Mudança estado-temporal (1-7)

a – Condição de Morte – v. 1 a’ – Condição de Vida – v. 5

b – Processo da Morte – v. 2 b’ – Processo da Vida – v. 6

d - A açãoA açãoA açãoA açãoA açãode Deusde Deusde Deusde Deusde Deuscomo agentecomo agentecomo agentecomo agentecomo agenteda mudançada mudançada mudançada mudançada mudança– v– v– v– v– v. 4. 4. 4. 4. 4

c – Universalização da Morte c’ – Universalização da Vida– v. 3 – v. 7

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Parte II – Graça como agente da mudançaestado/temporal (8-10)

a - Conceituação da Graça – v. 8a

b - Procedência da Graça – v. 8b e 9

c - Função da Graça – v. 10

Observa-se, através desse esquema, que há uma estruturaçãoascendente das oposições na primeira parte do texto (1-7). A oposi-ção ocorre entre a morte e a vida dos que são objetos do texto(destinatários e autor). Deus é o elemento que faz convergir em si atransformação ascendente de estados (da morte para vida).

a-a’ – Condição de Morte X Condição de Vidab-b’ – Processo: Morte X Vidac-c’ – Universalização: Morte X Vidad – Deus é o centro do texto. Ele é quem provoca a mudança de

estado, da morte para a vida. Esta mudança ocorre por meiode um instrumento chamado graça.

A graça se encontra na segunda parte do texto, desmembradaem conceito, procedência e função. O v. 4 liga-se diretamente aosvv. 8, 9 e 10, pois Deus em sua misericórdia amorosa, por meio dagraça, opera a mudança de estado no homem, da morte para a vida.A essa mudança dá-se o nome de salvação.

2.2 - Segmentação do texto

A estrutura do texto também pode ser analisada por meio daforma de uso e ocorrência de palavras. Para isso, é mister realizaruma segmentação do texto, conforme segue:

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Parte I

1- E estando vósvósvósvósvós mortos

aos delitos e às ofensas

vossas

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2- nos nos nos nos nos quais outrora andastes

conforme a época deste mundo,

segundo o príncipe da potestade do ar,

do espírito (que) agora opera

nos filhosnos filhosnos filhosnos filhosnos filhos da desobediência.

___________________________________________________________________________

3- Entre os que também nós todos nos comportamos nós todos nos comportamos nós todos nos comportamos nós todos nos comportamos nós todos nos comportamos outrora,

nas paixõesnas paixõesnas paixõesnas paixõesnas paixões da

nossa carne,

fazendo as escolhas da carne e dos pensamentos;

e éramos éramos éramos éramos éramos (por) natureza

filhos da ira

como também os outros.

___________________________________________________________________

4- Mas Deus,

sendo rico em misericórdia,

por seu grande amor,

amou-nos.

___________________________________________________________________

5- E estando nós mortosnós mortosnós mortosnós mortosnós mortos

aos pecados,

deu-nosdeu-nosdeu-nosdeu-nosdeu-nos vida

ao Cristo,

graças

sois salvos.sois salvos.sois salvos.sois salvos.sois salvos.

___________________________________________________________________

6- E (nos) ressuscitou- E (nos) ressuscitou- E (nos) ressuscitou- E (nos) ressuscitou- E (nos) ressuscitou

juntamente com (Ele)

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e (nos) fez sentar

com (Ele)

nos celestesnos celestesnos celestesnos celestesnos celestes em Cristo Jesus.

___________________________________________________________________

7- A fim de mostrar nos tempos vindourosnos tempos vindourosnos tempos vindourosnos tempos vindourosnos tempos vindouros

a super-abundante riqueza da sua graça,

em bondade

para nóspara nóspara nóspara nóspara nós em Cristo Jesus.

___________________________________________________________________

Parte II

8- porque pela graça

sois salvos,sois salvos,sois salvos,sois salvos,sois salvos,

por meio da fé; e isto não (é)

de vós,de vós,de vós,de vós,de vós,

(é) dom de Deus.

___________________________________________________________________

9- Não do trabalho, para que de modo nenhum

alguém glorie-se.

___________________________________________________________________________

10- Pois dele

somos criação,

criados

em Cristo Jesus para boas obras, as quais

Deus preparou de antemão para que nelas

andemosandemosandemosandemosandemos.

___________________________________________________________________________

A análise acima mostra, reiteradamente, a dinâmica entre ospronomes “nós” e “vós” com o objetivo de enfatizar o caráter demudança do estado e da temporalidade de judeus e gentios con-vertidos ao cristianismo. A graça dada por Deus é o elo que unee iguala todos os cristãos, independentemente de sua origemsocioeconômica e/ou cultural.

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3 - Analisando oconteúdo

Para a análise de conteúdo dotexto será utilizada a divisão propos-ta na etapa de estruturação:

3.1 - Análise dassubdivisões

Parte I – Mudançaestado-temporal (1-7)

a – Condição de morte – v. 1

O trecho, que faz um paralelocom o v. 5, traça um contraste en-tre a nova vida dada por Deus e amorte imposta pelos pecados dosgentios. A similaridade dos termosimplica em várias manifestações depecado (relacionadas à moral, éticae à razão). O homem morto é aque-le que está imerso na universalida-de do pecado.

b – Processo da morte – v. 2

A morte moral, física e eterna édesvelada aqui em seu processo. Apalavra “andastes” refere-se, meta-foricamente, a um estilo de condu-ta diária mobilizado pela deteriora-

ção da vida. Já o termo “época des-te mundo” indica aqui a relação en-tre a temporalidade e o espaço. Otexto remete a uma prática malignaidentificada num espaço-tempo. O“príncipe da potestade do ar” é apersonificação do mal que se locali-za nesse “espaço-tempo” entre o céue a terra, e simboliza a maldade queopera nos humanos desobedientes.O processo de morte nada mais éque a reprodução, por parte dos se-res humanos, da desobediência aDeus, preconizada, protagonizada eidentificada com a personificação domal. Assim, se o processo de morteé decorrência da ação de alguém quese limita a um espaço-tempo exis-tente entre o céu e a terra, cuja fun-ção é limitar a temporalidade huma-na, somente algo ou alguém sem li-mites de tempo e espaço poderiaromper com o processo da morte.

c – Universalização da morte – v. 3

A universalização da reproduçãodo mal é aqui representada. Aque-les que se sujeitam ao príncipe pro-vedor da morte moral, física e eter-na é chamado de “filho da ira”. Oautor, colocando-se como judeu (oque é claramente perceptível no tex-to imediatamente posterior aEfésios 2.1-10) incluiu-se entre os

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que desobedeciam a Deus, comomais um reprodutor do mal, ou seja,da “época deste mundo”. Assim,todos que não refletiam a vontadede Deus em suas práticas, mas re-produziam os desejos do “príncipeda potestade do ar” por andaremsegundo a vontade humana, nãopossuíam a natureza divina.

d – A ação de Deus como agenteda mudança – v. 4

Este é o ponto fulcral da primei-ra parte do texto. A conjunçãoadversativa “Mas” provoca revira-volta. O doador da vida é agora des-crito pela riqueza de sua compaixão,criada com amor impossível de semedir. Misericórdia significa com-paixão. A compaixão abundante deDeus é expressa em seu amor paracom todos os homens. Deus, o su-premo altruísta, concede seu amorpara o resgate de todos (judeus egentios) por meio da graça – açãodescrita sistematicamente na segun-da parte do texto (vv.8-10).

a’ – Condição de vida – v. 5

A vida mencionada aqui é a dopresente, já foi dada pela misericór-dia de Deus. Mas também se reme-te ao futuro, por meio da ressurrei-

ção. A expressão “juntamente comEle” indica a participação na vidaressurreta de Cristo, o que implicatanto sua ascensão como sua glori-ficação (como vemos no sextoversículo) e, de igual modo, remeteà inclusão plural de judeus e gentiosna ressurreição salvífica de Jesus,por meio da graça de Deus.

b’ – Processo da vida – v. 6

O processo da passagem da mor-te para a vida ocorre por meio deCristo, como observamos nas trêsexpressões atreladas a “juntamentecom Ele” - são elas: “deu-nos vida”;“nos ressuscitou”; “nos fez sentar”.Aquilo que Deus fez por Jesus Cris-to também faz a todos quantos cre-rem na ação divina. Assim comoCristo se identificou com a huma-nidade em sua vivência histórica, ahumanidade se identificará com Eleem sua ressurreição e glória.

A expressão “nos celestes” secontrapõe ao versículo 2 em seuconteúdo mundano, controlado pe-los poderes espirituais malignos.Espaço mundano que era lugar dodestinatário. No entanto, a partir daremissão de nossos pecados, pormeio da misericórdia graciosa doCristo, somos elevados aos lugarescelestiais. Ocorre então o processo

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de vivificação, ou seja, a transforma-ção da natureza humana segundo aimagem de Cristo.

c’ – Universalização da vida – v. 7

Este versículo mostra o ápice dadinâmica da passagem da morte paraa vida. É o grande desdobramentoda graça, nos lugares celestiais, naeternidade. A graça que opera eter-namente nos lugares celestiais tam-bém opera aqui. Ela começa na vidaterrestre e se prolongará por todaeternidade. Em contraposição aoversículo 3, aqueles que andavamcomo os demais, desde o início, ouseja, que eram por natureza “filhosda ira”, têm a vida transformada.Agora são objetos, “nos tempos vin-douros”, da “superabundante rique-za da Sua graça”.

Parte II – Graça comoagente da mudança

estado/temporal (8-10)

a. Conceituação: A graça divinaé a causa da salvação. É o fator quedá aos homens e mulheres os donsgratuitos de Deus. Ela é o meio desalvação, é uma forma de vida quecontrasta com o sistema de vidalegalista.

b. Procedência: Esse sistema quegera a salvação é proveniente única eexclusivamente de Deus. A salvaçãoocorre por meio da graça. Graça queocorre por meio da fé. Fé que é dadapor Deus. A graça originária de Deuscontrasta com o sistema humano dalógica meritocrática de vida baseadanas obras, ou seja, na lei.

A salvação é uma dádiva deDeus. A expressão “e isto não é devós” deixa claro essa oposição en-tre Deus e os homens no queconcerne à procedência da graça, dafé e, consequentemente, da salva-ção. Essa rejeição ao mérito huma-no é reforçada pelo v. 9 “não do tra-balho, para que de modo nenhumalguém glorie-se.” As obras (traba-lho) são evidenciadas aqui com ointuito de mostrar aos gentios que,mesmo com toda sua capacidaderacional e física não podem aproxi-mar-se de Deus por meio de seuspróprios méritos. Em curtas pala-vras: não é o trabalho humano quegera salvação, mas a graça divina quea proporciona. Isso ocorre para quenão se dê espaço para a soberbahumana. O homem não deve glori-ar-se de si mesmo com respeito àsalvação, pois ela procede inteira-mente de Deus. Somente através daação divina, por meio de sua mise-ricordiosa graça, é possível enten-

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der a transformação do cristão se-gundo a imagem de Cristo, fatorque leva ao compartilhar total de suanatureza e herança, como se verifi-ca na última parte do texto.

c. Função: A condição de ima-gem, pertença à natureza e partici-pação da herança divina só é reco-nhecida a partir da identificação dosseres humanos com Deus. É nessecontexto que se insere a função dagraça. Ela, por meio da redençãoperpetrada pelo sacrifício vicário doCristo e sua ressurreição em glória,concedeu aos seres humanos a con-dição de reconhecimento da depen-dência divina. Somos criação deDeus, feitura sua. Deus nos tornouo que somos, dependemos dele. Eleforma em nós a imagem de Cristoao conceder-nos sua própria natu-reza e atributos, como se observaem Efésios 3.19: “e conhecer o amorde Cristo, que excede todo entendi-mento, para que sejais tomados detoda a plenitude de Deus” (A.R.A.)Ora, ser tomado pela plenitude di-vina é algo impossível de ser efetua-do pelo trabalho humano. Somentea graça divina pode oferecer tama-nha modificação na estrutura huma-na. Somos feitura, criação de Deus.É interessante perceber que a pala-vra portuguesa “poema” advém da

palavra grega “feitura/criação”, ci-tada no versículo 10. Nesse senti-do, é possível compreender que osseres humanos, mediante a graça mi-sericordiosa divina, são uma espéciede “poema composto pelo próprioDeus”, mesmo que não seja possívelcomprovar totalmente que tal ideiaesteve presente no autor quando dacomposição do texto.

Claro está que a graça entra aquicomo algo proveniente de Deus. Elatem a função de proporcionar aosseres humanos a salvação. Salvaçãoque gera no crente a motivação pararealizar o trabalho de levar à frentea mensagem cristã. Assim, as obrasnão são provenientes do mérito, masse constituem com o reflexo da gra-tidão que os seres humanos têm pelasalvação graciosamente concedidapelo Deus vivo. É a graça de Deus aoperadora da ação divina na huma-nidade, ação que ocorre por meiodas obras, expressões da nova natu-reza, da criação divina. Portanto, elaé parte necessária do destino dosindivíduos transformados pela gra-ça divina. Assim como Jesus prati-cou o altruísmo, fomos “antecipa-damente” preparados para andar-mos, vivermos nas boas obras. Há,portanto, uma inversão na lógicameritocrática: as obras não são pré-requisitos para a salvação, mas

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consequência da graça de Deus navida humana.

3.2 - Integridade ecoesão do texto

Efésios 2.1-10 não tem proble-mas maiores de integridade e coe-são. Sua construção ascendente que

tem em Deus sua centralidade e aGraça como o instrumento da mu-dança do estado humano é clara-mente observável pela ligação entreo v.4 e o bloco 8-10. O v. 7 é impor-tante, pois insere o termo graça queserá explicado nos versículos pos-teriores. A salvação como o fim doprocesso (a mudança de estado) in-dica a uniformidade do texto:

SalvaçãoSalvaçãoSalvaçãoSalvaçãoSalvaçãoMorte à ação de Deus por meio da Graça Vida

3.3 - Uso defontes

Para o exercício do uso de fon-tes em Efésios 2.1-10, comparou-se o texto com alguns excertos daEpístola aos Colossenses, tido por

muitos biblistas como fonte da Epís-tola aos Efésios. Esse exercício pre-tende verificar em que medida ocor-reu esse procedimento. A compa-ração abaixo utilizou-se da traduçãoda versão em português Revista eAtualizada de Almeida (A.R.A).

Colossenses (excertos)Colossenses (excertos)Colossenses (excertos)Colossenses (excertos)Colossenses (excertos)2,13- E a vósoutros, que estáveis mortos pelas vossastransgressões e pela incircuncisão davossa carne, vos deu vida juntamente comele, perdoando todos os nossos delitos;

1,21 – e a vós outros também que,outrora, éreis estranhos e inimigos noentendimento pelas vossas obrasmalignas,2:10 – Também, nele, estaisaperfeiçoados. Ele é o cabeça de todoprincipado e potestade.3:6 - por estascoisas é que vem a ira de Deus [sobre osfilhos da desobediência].

Efésios 2,1-10

1-Ele vos deu vida, estando vós mortosnos vossos delitos e pecados,

2-nos quais andastes outrora, segundo ocurso deste mundo, segundo o príncipe dapotestade do ar, do espírito que agoraatua nos filhos da desobediência;

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3-entre os quais também todos nósandamos outrora, segundo as inclinaçõesda nossa carne, fazendo a vontade dacarne e dos pensamentos; e éramos, pornatureza, filhos da ira, como também osdemais.

4-Mas Deus, sendo rico em misericórdia,por causa do grande amor com que nosamou,

5-e estando nós mortos em nossosdelitos, nos deu vida juntamente comCristo, - pela graça sois salvos,

6-e, juntamente com ele, nos ressuscitou,e nos fez assentar nos lugares celestiaisem Cristo Jesus;

7-para mostrar, nos séculos vindouros, asuprema riqueza da sua graça, embondade para conosco, em Cristo Jesus.

8-Porque pela graça sois salvos,mediante a fé; e isto não vem de vós; édom de Deus;

9-não de obras, para que ninguém seglorie.

10-Pois somos feitura dele, criados emCristo Jesus para boas obras, as quaisDeus de antemão preparou para queandássemos nelas.

2,13- E a vós outros, que estáveismortos pelas vossas transgressões epela incircuncisão da vossa carne, vosdeu vida juntamente com ele, perdoandotodos os nossos delitos;

2,12 – tendo sido sepultados,juntamente com ele, no batismo, no qualigualmente fostes ressuscitadosmediante a fé no poder de Deus que oressuscitou dentre os mortos.

A comparação entre os textosmostra a utilização, em Efésios,de alguns excertos e termos dotexto de Colossenses. Embora notrecho objeto dessa exegese nãoexista a profusão de termosoriundos da fonte citada, a com-

paração da estrutura organiza-cional dessas epístolas remete,com maior propriedade, àinferência de que a Epístola aosColossenses serviu de fonte paraa Epístola aos Efésios, como seobserva no quadro abaixo:

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Saudação 1,1-2

Ação de graças 1,3-14

Cântico 1,15-20Cântico 1,15-20Cântico 1,15-20Cântico 1,15-20Cântico 1,15-20

Evangelho do apóstolo 1.21-23Evangelho do apóstolo 1.21-23Evangelho do apóstolo 1.21-23Evangelho do apóstolo 1.21-23Evangelho do apóstolo 1.21-23

Revelação apostólica de umRevelação apostólica de umRevelação apostólica de umRevelação apostólica de umRevelação apostólica de ummistério 1,24-2,3mistério 1,24-2,3mistério 1,24-2,3mistério 1,24-2,3mistério 1,24-2,3

O problema do falso ensinamentoO problema do falso ensinamentoO problema do falso ensinamentoO problema do falso ensinamentoO problema do falso ensinamento2 , 4 - 2 32 , 4 - 2 32 , 4 - 2 32 , 4 - 2 32 , 4 - 2 3

Várias exortações baseadas em listas devícios e virtudes 3,1-17

Deveres domésticos 3,18-4,1

Oração 4,2-6

Anúncio da chegada de Tíquico eOnésimo 4,7-9

Saudações dos colaboradores deSaudações dos colaboradores deSaudações dos colaboradores deSaudações dos colaboradores deSaudações dos colaboradores dePPPPPaulo 4,10-14aulo 4,10-14aulo 4,10-14aulo 4,10-14aulo 4,10-14

Comentários e bênçãos finais 4,15-18

Efés iosE fés iosE fés iosE fés iosE fés ios

Saudação 1,1-2

Louvor de Deus 1,3-14

Ação de graças 1,15-23

O plano de Deus para os pagãos-cristãos2,1-22

Papel do apóstolo 3,1-13

Unidade de corpo e diversidade de dons4,1-16

Várias exortações baseadas em listas devícios e virtudes 4,17-5,20

Deveres domésticos 5,21-6,9

Preparação para o combate com asforças universais 6,10-17

Oração 6,18-20

Anúncio da chegada de Tíquico eOnésimo 6,21-22

Comentários e bênçãos finais 6,23-24

Nessa comparação observa-seque boa parte de Efésios baseou-seem material extraído de Colossenses.As palavras destacadas em negritomostram claramente que as epísto-las se assemelham no que se relacio-na à estrutura organizacional dos te-mas abordados. Efésios utiliza algunsblocos de material de Colossenses

como a lista de vícios, virtudes e de-veres domésticos e os amplia con-forme a necessidade de seu contex-to vital. Além disso, cita Colossensestextualmente em alguns momentos,como podemos notar comparandoEfésios 1.21-22 com Colossenses4.7-8, ou mesmo no trecho analisa-do nessa exegese.

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4 – O texto e suateologia

Ao estudar os paralelos teológi-cos do texto objeto de análise, ob-serva-se que se apresentam váriosaspectos da tradição paulina, utili-zados e relidos para seu contexto.A concepção de personificação domal, representada na figura do“príncipe da potestade do ar”, quetambém é citada em outra passagemda epístola (Efésios 6.12), se cons-titui num exemplo, pois a Epístolaaos Colossenses (2.10 e 15) cita otriunfo de Cristo (“o cabeça de todoprincipado e potestade”) na cruz,despojando de qualquer poder osprincipados e potestades do mal.

O autor da epístola aos Efésiosmostra, inicialmente, àqueles queviviam segundo os desejos da carnee dos maus pensamentos adestinação à ira e cólera divinas. Noentanto, posteriormente, apresentao livramento por conta do amormisericordioso de Deus em Cristo.Tal situação também se observa em1 Tessalonissenses 1.10 quando seenfatiza à igreja de Tessalônica anecessidade de reconhecimento doDeus vivo, do abandono dos ídolosmortos e da preparação para o divi-no julgamento universal, fatores que

levarão ao livramento da ira vindou-ra por meio da ação de Cristo.

Nos versículos 5 e 6 o autor re-laciona acontecimentos históricosda vida de Cristo (a ressurreição dosmortos e entronização à direita deDeus). Tais acontecimentos sãoidentificados com os cristãos. Essaidentificação também foi realizadano texto de Colossenses 3.1-4 queenfatiza a união dos crentes com oCristo glorificado. Em Romanos8.11 a ênfase é na identificação deCristo com os crentes em sua res-surreição. Identificação que permi-te uma nova mentalidade na vida(Efésios 4.23-24 e Romanos 12.2),uma nova identidade como filhos deDeus (Romanos 8.14-17) e umanova força para libertar-se da açãodo mal (Romanos 8.1-4 e 2Coríntios 5.17).

No que concerne à temporali-dade da salvação, há uma evolução(no sentido de posterioridade) emrelação à tradição do pensamentopaulino. A expressão “sois salvos”(v.8) mostra a salvação como umaação concluída que tem efeito pre-sente. Pensamento similar existe napassagem de Romanos 8.24 (“...naesperança, somos salvos...”) que secaracteriza como exceção. A regraé a referência à salvação ou comoevento futuro (Romanos 5.9-10) ou

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como um processo presente (1Coríntios 1.18 e 2 Coríntios 2.15).

A ação salvadora é um domde Deus que ocorre por meio da fée não depende do ser humano. Nes-se sentido, as boas obras por si sónão salvam, mas constituemconsequência e evidência da vidacristã. Mentalidade que se relacio-na diretamente com passagens comoas de Tito 2.14 e 3.14).

Conclusão: domérito humano à

graça divina

A análise de Efésios 2.1-10revela a amplitude do alcance de suamensagem. A fé é apresentada comodoação de Deus. Ela é o mecanismocriado por Deus que move os sereshumanos em direção à sua graça. Épor meio dela que nos despimos doegocentrismo humano e aceitamoshumildemente a salvação divina emnossas vidas. O Deus criador quetorna o ser humano “feitura sua”expressa o esforço divino na missãode retornar a humanidade à sua ori-ginalidade, à condição deimaculação, à imagem e semelhan-ça divina.

É nesse sentido que deve ser com-

preendida a ação amorosa de Deus.Ele, em sua infinita misericórdia,por meio da morte e ressurreiçãode Cristo, nos IDENTIFICA comseu Filho. Pela fé o ser humano com-preende que tem vida como o pró-prio Cristo teve; que será ressusci-tado assim como Cristo o foi; e quejá se encontra assentado (e se assen-tará) nos lugares celestiais assimcomo ocorre com o Filho de Deus.Este mistério da temporalidade éuma das belezas do cristianismo! Aação de Deus é para “JÁ” e para o“NÃO AINDA”. Compreender aação de Deus em Cristo e o moverdo Espírito Santo na vida faz os se-res humanos viverem desde já oReino de Deus e ao mesmo tempoansiar por sua plenitude que se rea-lizará na glória com Cristo. Vida,morte, ressurreição e glorificação deCristo são identificadas com o cris-tão através da síntese destes elemen-tos em uma só palavra: GRAÇA.

A graça de Deus é que permite atranscendência, o transporte tempo-ral que leva o cristão desde já a vi-ver abundantemente, mesmo emmeio a lutas e desafios que a morta-lidade lhe relega. Ela é a expressãoque define o alcance do amor deDeus para com seu povo. A graçapermite ao homem finito e mortalse tornar infinito e imortal. No en-

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tanto, tal proeza se dá somente pelaintrojeção da fé e da graça como ele-mentos decorrentes única e exclu-sivamente da ação divina. Assim, oque é próprio do esforço humanodeve ser deixado em segundo pla-no. A obra válida é a decorrente doreconhecimento da soberania e dagraça de Deus. Logo, viver na graçaé doar-se ao próximo como o pró-prio Cristo doou-se a cada um.

O texto estudado aponta para adimensão humana, tanto sob o as-pecto pessoal, como social e eclesial.Chama a atenção para a igualdadeentre todos os que creem em Cristo(todos são salvos pela graça de Deus).Liga a rejeição a Deus ao não reco-nhecimento da graça divina e à reali-zação da vontade humana (ego-centrismo) que é simbolizada no con-trole do príncipe da potestade do ar(a personificação do mal). Os quetêm vida são aqueles que reconhece-ram a graça por meio da fé comoatribuição divina em suas vidas. Es-tes têm visão diferenciada acerca davida. O amor passa a ser seu princi-pal referencial. Amor que se mostraatravés da expansão da graça de Deusna humanidade. O cristão então, setorna instrumento anunciador da gra-ça divina. Graça demonstrada porseus atos de amor. Atos identifica-dos com a ação do Cristo.

É a “feitura” de Deus que se ma-nifesta. A humanidade inundadapela graça divina retorna à condiçãooriginal da criação: perfeita, sempecado – imagem e semelhança deDeus. Assim o cristão, tanto no as-pecto eclesial quanto no social, setorna referencial. A humildade, ab-negação e altruísmo divinos tornam-se manifestos através de sua ação nomundo. Torna-se, portanto, agenteda esperança. Em tal contexto asobras passam a ser inerentes à prá-tica cristã. Não numa religiosidadevã que acredita na lógica do mérito,mas num cristianismo completo queage na sociedade sem querer algoem troca. Como Deus. Como oCristo identificado com o cristão notexto de Efésios 2.1-10. Para sinte-tizar e concluir, fiquemos com asbelas e sábias palavras de DietrichBonhoeffer:

[...] O ser humano é aqueleaceito na encarnação de Cris-to, amado, julgado e reconci-liado em Cristo; Deus é aque-le que se fez ser humano. Nãohá, também, nenhum relacio-namento com seres humanossem relacionamento com Deuse vice-versa. Por outra, o rela-cionamento com Jesus Cristoconstitui a base para nosso

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASREFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASREFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASREFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASREFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

- ALLMEN, J. J. von. Vocabulário Bíblico. São Paulo: ASTE, 2001.- BEEGANT, Dianne e KARRIS, Robert J. Comentário Bíblico. São Paulo: Edições Loyola, 1999.

vol III.- BERGER, Klaus. As Formas Literárias do Novo Testamento. São Paulo: Edições Loyola, 1998.- BONHOEFFER, Dietrich. Ética. 5a.ed. São Leopoldo: Editora Sinodal, 2001.- BORN, A. V. Den. Dicionário Enciclopédico da Bíblia. Petrópolis: Vozes, 1987.- CHAMPLIN, Russell Norman. O Novo Testamento Interpretado – versículo por versículo. 10ª.

ed. São Paulo: Candeia, 1995, vol.4.- WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento: Manual de Metodologia. 2º ed. São Leopoldo:

Sinodal: São Paulo: Paulus, 1998.

relacionamento com os sereshumanos e com Deus. Assimcomo Jesus Cristo é nossavida, da mesma forma agorapode ser dito também, a par-tir dele, que o outro ser huma-no e que Deus são nossa vida;isto significa que nosso encon-tro com o outro, como nossoencontro com Deus, estão sobo mesmo sim e não como nos-

so encontro com Jesus Cristo.Nós “vivemos” quando, emnosso encontro com os seme-lhantes e com Deus, o sim e onão se fundem para formaruma contraditória unidade,uma auto-afirmação altruís-ta, auto-afirmação na auto-entrega a Deus e aos seres hu-manos. (BONHOEFFER,2001, 124).

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Resenhas

O que Jesus disse? O que Jesus não disse? Quemmudou a Bíblia e por que

Cânon e História Social.Ensaios sobre o Antigo Testamento

Cuidando de quem cuida: um olharde cuidado aos que ministram a

Palavra de Deus

Influências da Religião sobrea Saúde Mental

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O que Jesus disse? O que Jesus nãodisse? Quem mudou a Bíblia e por que

início do século passado AlbertSchweitzer tentou pôr um fimnesta especulação.1 Vinte anosdepois, porém, com a adoçãode novos métodos de críticatextual e literária e as novas des-cobertas de manuscritos bíbli-cos o assunto retornou maisforte e hoje, nas palavras do au-tor resenhado, “vemos uma ex-plosão de pesquisas sobre o Je-sus histórico ...temos uma enor-me gama de opiniões sobrecomo Jesus deve ser encarado:como um rabi, um revolucio-nário social, um insurgente po-lítico, um filósofo cínico, umprofeta apocalíptico: as opçõessão inúmeras”.2 O texto aqui re-senhado bem como o seu títulovem nesta avalanche de inter-

*Lysias Oliveira dos Santos é bacharel em Teologia,licenciado em Letras e Pedagogia pela Universidadede Sorocaba, Mestre em Lingüística, pela PontífíciaUniversidade Católica de São Paulo, tem especiali-zação em cultura judaica pelo Instituto da IgrejaEvangélica da Holanda em Jerusalém. Mestre emTeologia pelo Seminário Presbiteriano de Pittsburg(EUA), Mestre em Ciências da Religião pela Univer-sidade Metodista de São Paulo. Professor na Fa-culdade de Teologia de São Paulo, da IPI do Brasil.

EHRMAN, Bart D. O queJesus disse? O que Jesus nãodisse? Quem mudou a Bíbliae por que. Tradução deMarcos Marcionilo. Rio deJaneiro: Prestígio Editorial,2006, 3ª impressão.

Desde a segunda metade doséculo XVIII, a discussão sobrea prioridade entre os Evange-lhos, o surgir de nova historio-grafia, a influência das corren-tes filosóficas e principalmenteo idealismo hegeliano, desper-taram nos pesquisadores o in-teresse em reproduzir o verda-deiro perfil de Jesus, seus atos,sua fala, seus reais objetivos. No

1 Ver minha resenha do livro do autor: A Busca doJesus Histórico na revista Teologia e Sociedade 2,2005, p. 94.2 Op. cit. p. 197

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pretações.3

Bart D. Ehrman é doutor emTeologia pela Universidade dePrinceton e professor na Univer-sidade de Carolina do Norte, es-pecialista em Novo Testamentocom foco em pesquisas sobre aigreja primitiva, documentos an-tigos e a vida de Jesus. É autor dediversos livros e artigos sobre es-tes temas e seu livro de introdu-ção ao Novo Testamento, The NewTestament: a historical intro-duction to the early christianwritings, tem sido usado há algumtempo pelos professores de NovoTestamento da Faculdade de Teo-logia da Igreja Presbiteriana Inde-pendente do Brasil. Na capa do li-vro, sob o nome do autor consta:“a maior autoridade em Bíblia domundo”.

Na introdução o autor declaraque seu objetivo é escrever paraum público leigo. Em quatro itensdiz o que quer destes leitores: quepercebam que o Novo Testamen-to por eles utilizado não mais re-produz o texto original e que se-jam introduzidos no trabalho rea-lizado pelos especialistas para seaproximarem o mais possível dotexto primitivo, hoje alterado.Notamos porém que esta tarefapara os leigos não é tão fácil assim

porque, com exceção do primeirocapítulo, os demais reproduzem deforma abreviada a evolução dapesquisa neotestamentária até osnossos dias, conforme exposta emmaior amplitude no seu livro deintrodução ao Novo Testamento,acima referido.

O livro compõe-se de seis ca-pítulos. O primeiro é um depoi-mento pessoal expondo como oautor chegou a ser um especialis-ta em crítica bíblica. Os demaistratam de temas do currículo deIntrodução ao Novo Testamento:a tarefa dos copistas; as diferen-ças nos textos existentes do NovoTestamento; evidências para ava-liação destas diferenças; breve his-tória da busca pelo texto mais pri-mitivo; métodos de pesquisa tex-tual; alterações por influência te-ológica; a importância das mudan-ças sociais na alteração dos textos.

Seu depoimento, no primeirocapítulo, segue o esquema dos tes-temunhos de conversão: “Nasciem um lar evangélico”, descreven-do a trajetória de sua vida, oucomo um jovem convertido emuma igreja conservadora veio a se

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3 Entre eles, por exemplo, o livro de Norman Perrin, Oque Jesus ensinou realmente. São Leopoldo: EditoraSinodal, RS, 1977.

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tornar um especialista em críticabíblica. Os quatro trilhos de suaevolução têm o seguinte percurso:o crente “renascido” e participan-te ativo dos movimentos do tipo“Mocidade para Cristo” e que tema Bíblia como um li-vro sagrado, passa aperceber, pelos es-tudos de história efilosofia, o lado “hu-mano” do Livro Sa-grado.

A formação edu-cacional do autorvai da experiênciacomo aluno doMoody BiblicalInsititute, passandopor escolas secula-res de sua cidade atéchegar ao Seminá-rio Teológico dePrinceton. Os ori-entadores de sua formação vão deBruce, líder do grupo Mocidadepara Cristo, seu professor de gre-go, até chegar em Bruce M.Metzger, a quem dedica o livroaqui resenhado. O objetivo destetestemunho é encorajar os leito-res a buscar a pesquisa bíblica sé-ria no contexto onde ainda impe-ra forte influência funda-

mentalista. Nosso parecer, porém,é que depoimentos como este nãosão de grande necessidade, por-que a tarefa do pesquisador, alta-mente científica, não deve se con-fundir com as suas convicções re-

ligiosas.No segundo capítulo dedica

bom tempo à figura do copista, jáque ele é o principal responsávelpelas alterações nos textos bíbli-cos. Ao se discutir a inserção dosagrado no texto bíblico, admitin-do-se que autor foi inspirado, sur-ge a questão: o tradutor tambémo foi? Ehrman introduz um tom

Vemos uma explosão depesquisas sobre o Jesushistórico ...temos umaenorme gama de opiniõessobre como Jesus deve serencarado: como um rabi,um revolucionário social,um insurgente político, umfilósofo cínico, um profetaapocalíptico...

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menor nesta discussão. E oscopistas, eles também foram ins-pirados? O assunto é mais relevan-te porque os primeiros copistas daigreja primitiva eram amadores,comprometidos com a igreja à qualserviam e faziam cópias para usopróprio ou para um pequeno gru-po de sua comunidade. Somenteséculos mais tarde, o trabalho pas-sou a ser feito por profissionais,por encomenda, principalmentepelos monges, nos conventos. As-sim a incidência de erros era mai-or nas primeiras cópias. O proble-ma só foi resolvido com o adven-to da imprensa.

Dois assuntos de nosso interes-se são tratados no terceiro capítu-lo. O primeiro é o papel da oposi-ção conservadora ao aprofun-damento do trabalho da críticatextual. Os líderes reformados, porexemplo, achavam que o levanta-mento dos erros nos manuscritosbíblicos davam margem aos cató-licos para ensinarem que a Bíbliapor si só é insuficiente para a ori-entação do magistério da igreja edaí a necessidade de ser comple-tada com a tradição. Este assuntoleva a outro, ou seja, a questão dotexto autorizado. Exemplo inte-ressante neste sentido é que a igre-

ja ocidental, acostumada a ter naVulgata latina o texto autorizado,identificava tudo o que estivesseescrito em grego como pertencen-te à igreja ortodoxa oriental. As-sim a edição poliglota do cardealXimenes de Cisneros trazia, noAntigo Testamento, a Vulgata nocentro, ladeada pela BíbliaHebraica e pela Septuaginta, comose fosse Jesus entre os dois ladrões.

O capitulo quarto faz um resu-mo da história da crítica bíblica,desde Orígenes até os dias atuais.Curiosamente, ele se detém noexame da obra realmente impor-tante dos pesquisadores B. F.Westcott e F. J. A . Hort, mas nãofaz qualquer referência às famíli-as Nestle e Aland, com obra bas-tante divulgada em sucessivas edi-ções. O autor aponta como fun-damentação teológica à base doaperfeiçoamento dos métodos decrítica bíblica a necessidade de sechegar ao texto único da solascriptura. Uma importante contri-buição sua também é a preocupa-ção em mostrar como as diferen-tes circunstâncias históricas influ-enciaram na evolução da críticabíblica, chegando-se até àpriorização dos textos produzidosna Idade Média, com a negação do

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valor da cópias mais antigas.No quinto capítulo são discuti-

dos, com exemplos, dois critériosusados na avaliação dos manuscri-tos: as evidências externas e inter-nas. O aproveitamento destes cri-térios é ilustrado com longa expo-sição de três textos do Novo Tes-tamento. Em Mc 1.41 defende atradução “...Jesus irritando-se ...”contra a que mais aparece em nos-sas Bíblias: “...Jesus sentindo com-paixão...”. Em Lc 22.43-44, quedescreve a agonia de Jesus e o suorde seu rosto correndo em formade sangue, ele conclui que tal pas-sagem é original e nãointerpolação. Finalmente, em Hb2.8-9, aceita como original a tra-dução: “...assim sendo, semDeus,...” à preferida: “...pela graçade Deus...”. As alterações nestestextos, conclui ele, foram feitaspara evitar a figura de um Jesus ira-do, impassível e abandonado.

O autor discute então a influ-ência de três controvérsias teoló-gicas na alteração do texto bíbliconos dois primeiros séculos: o con-fronto com os adocionistas, comos docetistas e com os separa-cionistas. Nos três casos ele segueum esquema, fazendo breve ex-posição de cada uma destas posi-

ções teológicas para, em seguida,apresentar exemplos das altera-ções textuais provocadas pela opo-sição a elas.

Enfrentando grupos adocio-nitas, como os ebionitas, queafirmvam ter Jesus recebido o es-pírito divino por ocasião do batis-mo, os copistas alteraram textoscomo 1 Tm 3.16 registrando“..Deus, tornado manifesto...” emvez de “...Cristo que foi manifes-to...”. Tomando Marcião como oprincipal dos docetas, que nega-vam a natureza humana de Jesus,o autor vê oposição ao docetismono próprio texto de Lc 22.43-49,onde a agonia e o suor derramadoem forma de sangue, mostram queele era realmente humano.Separacionistas, para o autor eramos que afirmavam que Jesus eraalternadamente humano e divinoPara combater esta posição algunsmanuscritos mudaram a expres-são: “..meu Deus, por que medesamparastes?” para: “...porquezombaste de mim”.

O livro encerra-se com exem-plos de alterações textuais moti-vadas pelas mudanças sociais. Sãoescolhidos três problemas sociaisda época: o tratamento para comas mulheres, o conflito com os ju-

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4 História Eclesiástica, S. Paulo: Novo Século, 1999, p.99.

deus e a oposição dos pagãos. Naexposição ele segue o mesmo es-quema do capítulo anterior. Notratamento para com as mulheresele conclui que 1 Co 14. 33-36 éuma interpolação, dada a seme-lhança com 1 Tm 2.11-15, livrocuja autoria paulina vem sendocontestada a longo tempo. O con-flito com os judeus causou altera-ções, como a supressão em algunsmanuscritos da oração de Jesus nacruz pedindo o perdão de Deuspara os judeus (Lc 23.33-34). Noconfronto com os pagãos o autorusa principalmente a controvérsiade Origem contra o pagão Celso.Um exemplo disto é a alteraçãode Mc 6.36 de “... não é este o car-pinteiro...” para “...o filho do car-pinteiro...”, alteração que já foifeita por Mateus (6.3). Este capi-tulo ofereceria boa oportunidade

par discutir alguns evangelhos re-jeitados: o de Maria Madalena,hoje bastante comentado e o dosHebreus, cuja importância é reco-nhecida por Eusébio de Cesareia4.

Na conclusão o autor faz umresumo do conteúdo do livro, umabreve exposição da teologia decada Evangelho, de Paulo, bemcomo referências aos demais li-vros do Novo Testamento. A tra-dução da obra aqui resenhada é degrande importância para a divul-gação do pensamento do autor epara a investigação deste capítulotão importante no currículo teo-lógico, que é a crítica textual. Jul-gamos contudo, que é de grandeurgência a tradução da já referidaintrodução ao Novo Testamento,deste autor, por ser maisabrangente e porque já é utilizadanas classes de Novo Testamento.

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Cânon e História Social. Ensaiossobre o Antigo Testamento

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CRÜSEMANN, Frank. Cânon eHistória Social. Ensaios sobreo Antigo Testamento. TraduçãoMilton Camargo Mota. SãoPaulo: Loyola, 2009. 493 p.

*Marcos Paulo Monteiro da Cruz Bailão, doutor emCiências da Religião, pastor, professor da Faculdadede Teologia de São Paulo (IPIB).

Frank Crüsemann já é conhe-cido do público brasileiro porduas outras obras, Preservação daLiberdade. O Decálogo numaperspectiva histórico-social(Sinodal / Cebi 1ª. edição 1995)e A Torá. Teologia e história soci-al da lei do Antigo Testamento(Vozes, 1ª. edição de 2002). Eleé professor emérito de estudos doAntigo Testamento na KirchlicheHochschule Bethel, em Bielefield,Alemanha.

Neste livro, como nos anteri-

ores, fica explícita a opção do au-tor pela aproximação de exegesebíblica com história social, con-forme indicam os títulos. Cânone história social não é propria-mente um trabalho, mas sim umacoletânea de textos queCrüsemann publicou como arti-gos em revistas ou como capítu-los de obras conjuntas ao longode mais de vinte anos, visto que omais antigo deles remonta a 1980e os mais recentes, a 2002.

A linguagem dos textos emgeral, é clara e agradável de se ler,o que torna o livro acessível nãosó aos especialistas. A identifica-ção das publicações originais e oíndice das referências bíblicas, aofinal do livro, são ferramentasúteis e refletem cuidado no pre-paro da obra.

A obra está dividida tematica-mente em cinco partes: Gênesis,Profetas, Salmos, Temas e, porfim, Hermenêutica do Antigo

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Testamento. A primeira, Gênesis,é composta por seis artigos: “Hu-manidade e povo”, “A independên-cia da proto-história”, “Autonomiae pecado”, “Eva – a primeira mu-lher e sua ´culpa`”, “Abraão e oshabitantes da terra” e “Domínio,culpa e reconciliação”. Os textos “Aindependência da proto-história”...”e “Autonomia e pecado”, por sinalos mais antigos desta parte, remon-tam ao início dos anos 80 e estãoem sintonia com a discussão daépoca sobre a hipótese docu-mentária. Já o texto “Domínio, cul-pa e reconciliação”, com o seu sub-título – A contribuição da históriade Jacó do Gênesis para a éticapolítica - indicam uma das carac-terísticas de vários artigos destacoleção, além de ser mais que umasimples exegese, pois faz aplicaçãoa uma importante questão contem-porânea.

A segunda parte, intitulada Pro-fetas, consta de cinco artigos: Re-presentação de aporias, “a terracheia de prata e ouro, armas e ído-los” (Is 2.7s), Oséias e o surgimentoda imagem da história bíblica, -“Agora” e Israel, os povos e os po-bres. Nesta seção as questões acer-ca da história compõem importan-te espaço na temática dos artigos.

A terceira parte, Salmos, é for-

mada por quatro artigos: “Na rede”,“O poder das criancinhas”, “O lu-gar de Deus”, e “Só contra ti pe-quei !?”. O primeiro, “Na rede”, édiferente dos outros por apresen-tar estudo de um grupo de salmosbíblicos, os salmos de lamentaçãoindividual, ao invés de se dedicarao sentido de uma única peça poé-tica. Nesse artigo, Crüsemann de-bate com os antigos comentaristasdos salmos, especialmente Gunkel,o tipo de sofrimento que acometecom o orante, contestando a posi-ção dos antigos estudiosos. Ao ana-lisar o texto com auxílio da antro-pologia, o autor mostra que não sepode pensar em uma única formade aflição, mas que as aflições, noplural, formam uma espécie derede à volta daquele que sofre ebusca em Deus a solução para suasdores. Assim fazendo, ele quebrauma possível visão idealista do textobíblico e o recoloca no mundo realdas pessoas, em especial dos quesofrem.

A parte seguinte tem o título deTemas por ser composta por seisartigos com pouca ligação entre si.São trabalhos em que Crüsemanndiscute questões de carátermetodológico ou hermenêutico, ouseja, definições que estão por tráse na base dos seus estudos. Talvez

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por isso mesmo seja a seção queconcentra os textos mais importan-tes do livro. São eles: “Liberdadepela narração da liberdade”, no qualtrabalha a narrativa do êxodo, “Is-rael no tempo dos persas”, A “pá-tria portátil”, em que analisa a ques-tão canônica, “História da religiãoou teologia?”, “Ensaio sobre o ame-açador isolamento de Deus”, e“Deus de Abraão, Deus de Isaac,Deus de Jacó”.

No artigo “História da religião”ele discute com estudiosos do pas-sado e do presente, como von Rad,Childs, Rendtorf e, principalmen-te (ou quase exclusivamente),Albertz, a respeito de pressupostoshermenêuticos e sua influência nosestudos do Antigo Testamento.

Penso que o artigo mais impor-tante, não obstante ter sido publi-cado há cerca de quinze anos, é “Is-rael no tempo dos persas”. Nele,Crüsemann revê a obra de MaxWeber sobre a sociedade judaíta noperíodo de dominação aque-mênida. Ele contesta Weber, masnão a partir dos elementos socio-lógicos do seu trabalho, mas de-monstrando que as suas fontes parao estudo do Antigo Testamento es-tão hoje ultrapassadas e suas con-clusões, então aceitas no meio aca-

dêmico, hoje são substituídas poroutras pesquisas de distintos fins.

Mas o autor não se limita a cri-ticar Weber. Tendo em mão pesqui-sas mais apuradas, apresenta outraconfiguração social para Judá sobdomínio persa. Não obstante, opouco espaço que Crüsemann dáaos grupos marginais do períododepois de tantos anos de sua publi-cação, tendo este esquema seus crí-ticos e merecendo revisão a partirde estudos ainda mais recentes, éum texto que não pode ser esque-cido por ninguém que estuda a so-ciedade judaíta no período da do-minação persa.

A última parte, intituladaHermenêutica do Antigo Testa-mento apresenta quatro artigos queleem o Novo Testamento, ou tre-chos dele, a partir de suas raízes noAntigo. Inicia com um artigo cujotítulo já é uma inquietante pergun-ta: “Quão veterotestamentária deveser a teologia evangélica?”. Seguemoutros três artigos na mesma linha:“A eles pertencem... as alianças”(Rm 9.4), “A nova aliança no NovoTestamento” e “Escritura e ressur-reição”. Todos esses trabalhos têmcomo pano-de-fundo a preocupa-ção do autor com o diálogo judai-co-cristão em torno das Escrituras

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Sagradas, preocupação esta queestá presente em outros de seusescritos, como A Torá.

O último dos artigos desta se-ção, e de todo o livro, é uma leitu-ra do episódio dos discípulos a ca-minho de Emaús,das pregações dePedro (At 2.22-26)e Paulo (At. 13.16-41) em Atos e 1Coríntios 15.13-19à luz de tradições doAntigo Testamento.A partir dessas lei-turas, apresenta trêsteses: de que a res-surreição dos mor-tos é um predicadode Deus, de que asnarrativas de apari-ção de Jesus ressus-citado têm a missãode conquistar as na-ções para o Deus deIsrael e que o Novo Testamento unea nascente igreja gentílica-cristã àsEscrituras.

Os artigos desta última partenão só fomentam o diálogo judai-co-cristão como são relevantespara uma aproximação, em nívelacadêmico, do Antigo e do NovoTestamentos.

Ao analisar o texto comauxílio da antropologia, oautor mostra que não sepode pensar em uma únicaforma de aflição, mas queas aflições, no plural,formam uma espécie derede à volta daquele quesofre e busca em Deus asolução para suas dores.

Deste modo, Cânon e HistóriaSocial. Ensaios sobre o Antigo Tes-tamento é mais uma relevante pu-blicação que vem contribuir com opensamento teológico em línguaportuguesa e merece ser lida tantopor especialistas quanto pelo públi-co em geral.

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A experiência e a linguagempastoril estão presentes em toda aBíblia. Uma das páginas mais co-nhecidas das Sagradas Escriturasgravou indelevelmente em nossamemória a imagem de Deus en-quanto pastor: “O Senhor é o meupastor; nada me faltará” (Sl 23.1).Para os cristãos (que têm a JesusCristo como Senhor e modelo)também é inevitável essa associa-

ção: Jesus mesmo se auto-intitula“o bom pastor”, que dá a vidapelas ovelhas (Jo 10.11). Nosprimórdios da Igreja Cristã vamosencontrar recomendações para opastoreio. Por exemplo: “Eu, quetambém sou presbítero, dou ago-ra conselhos aos outros pres-bíteros que estão entre vocês.(...) Aconselho que cuidem bemdo rebanho que Deus lhes deu...”(1Pe 5.1-2). Aliás, dos lábios dopróprio Jesus ouvimos as palavrastrês vezes dirigidas a Pedro e queressoam nos ouvidos dos lídereseclesiásticos ainda hoje: “Tomeconta das minhas ovelhas!” (Jo21.15-17). Essa metáfora bíblicado pastor é muito poderosa e pos-sui uma grande influência sobre afigura do líder espiritual que atuana igreja.

À semelhança do pastor deovelhas, o pastor de pessoas éaquele que possui a grande res-ponsabilidade de: conduzir o re-

*Emerson R. P. dos Reis, pastor , professor da Facul-dade de Teologia de São Paulo (IPIB), graduado emTeologia e Psicologia.

OLIVEIRA, Roseli M. Kühnrich de.Cuidando de quem cuida: umolhar de cuidado aos queministram a Palavra de Deus.São Leopoldo: Sinodal, 2006, 2ª.edição, série Teses e Dissertações, v. 28, 147 p.

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banho de Jesus Cristo pelo melhorcaminho; prover o alimento; prote-ger de ameaças. Tudo isto o pastorfaz, especialmente, por vocação epor amor. Em resumo, ele é umcuidador de ovelhas, é um cuidadorde pessoas. Ao pregar, ao lecionar,ao escrever, ao visitar, ao ouvir, aoaconselhar, ao exortar, ao repreen-der, ao administrar etc, o que o pas-tor faz é cuidar de pessoas. Isto co-loca o ministério pastoral ao ladodas profissões ligadas às relações deajuda. O pastor, assim como o pro-fissional da medicina, da enferma-gem, da psicologia, da pedagogia,entre outros, é um cuidador.

O trabalho do pastor é um tra-balho de cuidados dispensados aooutro. Esta afirmação nos leva apensar na seguinte questão: o quan-to o pastor cuida de si mesmo e oquanto o pastor é cuidado pelos ou-tros? Não é incomum encontrarpastores com sérios problemas emsuas vidas: enfermidades físicas, di-ficuldades financeiras, relaciona-mentos afetivos conturbados, frus-trações, solidão etc. Quem é quecuida disso? Ninguém está livre dascrises previsíveis e imprevisíveis davida. Nem mesmo o cuidador reli-gioso! Quando o pastor entra emcrise, quem ele procura, com quemele se desabafa? Quem cuida do

cuidador? Quem pastoreia o pas-tor? Eis o assunto tratado no pre-sente livro.

A autora, Roseli MargaretaKühnrich de Oliveira, é batista, psi-cóloga clínica, especialista em Tera-pia Familiar, mestre em Teologia edocente da Pós-Graduação da Es-cola Superior de Teologia (EST), emSão Leopoldo, RS. Nessa institui-ção, ela integra um grupo de pes-quisa na área de Aconselhamento ePsicologia Pastoral. Também émembro do Corpo de Psicólogos ePsiquiatras Cristãos (CPPC). Cui-dando de quem cuida é resultado desua experiência como terapeuta epesquisadora bibliográfica sobre otema do cuidado relacionado à vidadaqueles que se dedicam a cuidardos outros. O livro provém de suadissertação de mestrado (disponívelna internet), na área de TeologiaPrática, defendida em 2004, no Ins-tituto Ecumênico de Pós-Gradua-ção (IEPG), da EST. O título origi-nal da dissertação, um pouco modi-ficado no livro, é: Cuidando de quemcuida: propostas de poimênica aospastores e pastoras no contexto dasigrejas evangélicas brasileiras. Aautora possui a especial e louvávelintenção de apresentar sugestõespara o cuidado dos que ministram aPalavra de Deus.

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O livro possui um sumário mi-nucioso, apresentando as divisões eas subdivisões dentro de cada capí-tulo, o que, por si só, dá uma boaidéia ao leitor dos assuntos que aliserão tratados. Após a página de“apresentação” da obra, assinadapelo Dr. Sidnei Vilmar Noé (pro-fessor da EST/IEPG e orientador dapresente dissertação de mestradopublicada) e a página de “agradeci-mentos” da autora (típica dos tra-balhos de mestrado e doutorado),entramos propriamente no conteú-do do livro. A dissertação está divi-dida, basicamente, em introdução,seguida de três capítulos, mais asconsiderações finais. Ao término dotexto constam numerosas referên-cias bibliográficas (muito úteis parao aprofundamento do assunto tra-tado no livro), mais um anexo comum questionário aplicado pela au-tora junto a pastores e pastoras paralevantamento de dados.

O primeiro capítulo do livro édedicado a tratar da categoria do“cuidado” a partir de contribuiçõesda teologia e da psicologia. Tais áre-as do conhecimento humano se re-lacionam, dialogam, e, como sabe-mos, contribuem para a formaçãodo campo do Aconselhamento e daPsicologia Pastoral. É nesse campo

de relação e diálogo que a autora semovimenta, entendendo que a apro-ximação entre os referenciais teoló-gicos e psicológicos enriquecem a vi-são sobre o ser humano complexo.

A tentativa da autora é lançar umolhar abrangente sobre o tema docuidado ao cuidador espiritual (opastor). Para isto, busca na Bíblia eem contribuições teóricas da teolo-gia e da psicologia os subsídios quepossam sustentar o seu empreendi-mento. A autora é psicóloga; não éteóloga e nem pastora. Realmente,parece mais à vontade quando tratados princípios psicológicos. No cam-po da teologia, lança mão de contri-buições de teólogos contemporâne-os, como Leonardo Boff (católico)e Gottfried Brakemeier (luterano).No campo da psicologia, a autoraelege como referenciais os teóricosErik Erikson (e sua psicologia dodesenvolvimento) e Carl Rogers (esua abordagem centrada na pessoa).

Se no primeiro capítulo é consi-derado o tema do cuidado, no se-gundo, nossa atenção é dirigida parao seu reverso: o descuido. Já no pri-meiro capítulo fica claro que o pas-tor é um cuidador que cuida dosoutros, mas não cuida de si mesmoe, muitas vezes, não busca, não acei-ta e nem recebe o cuidado de ter-

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ceiros. Na tentativa de dar visibili-dade e expressar de maneira maisconcreta as questões relacionadas aodescuido na vida dos cuidadorespastorais, um questionário foi pre-parado e distribuído a trinta e oitopastores da Igreja Evangélica deConfissão Luterana no Brasil(IECLB).

Dezoito pastores devolveram osquestionários devidamente respon-didos. A autora tem consciência deque os resultados da pesquisa nãosão representativos de todo o uni-verso pastoral das igrejas evangéli-cas brasileiras, mas não deixa deutilizar tais resultados em seu tra-balho por considerar que eles dãovoz às hipóteses levantadas. Umdesafio que permanece é o de am-pliar o universo dessa pesquisa paraoutras denominações.

Os resultados obtidos pela auto-ra são apresentados com vários de-talhes através de gráficos e tabelase, em seguida, discutidos e interpre-tados com base nos referenciais te-óricos mencionados anteriormente.Sem dúvida, esse é o momento dolivro em que a autora coloca o pas-tor “diante do espelho” e o obriga aolhar para si mesmo, para a sua fa-mília, para os seus sofrimentos, paraa sua vida como um todo. Um olhar

honesto, sincero e humilde diantedesse espelho faz com que os pasto-res e pastoras cheguem à inevitávelconclusão e reconhecimento de que,de modo geral, os cuidadores religi-osos descuidam de si mesmos. Essedescuido se evidencia em todas asáreas da vida: vai desde a falta deatenção para com a alimentação, osono, o descanso, o lazer (por exem-plo), passando pelos desequilíbriosemocionais e as turbulências na vidaafetiva e chegando até as crisesvocacionais e espirituais. Por vezes,o resultado dessa falta de cuidado éo desgaste, a exaustão, o esgotamen-to do cuidador (aqui se discute achamada “Síndrome de Burnout”).

Segundo a autora, no pequenouniverso dos dezoito pastoresluteranos que participaram da pes-quisa sobre a sua vida pastoral, qua-tro, demonstraram estar bem con-sigo mesmos e equilibrados, treze,apresentaram dados preocupantes,que faziam deles candidatos em po-tencial para o esgotamento, e umdeles oferecia elementos convincen-tes para ser considerado vítima dasíndrome de Burnout. Caso a pes-quisa fosse estendida às demais de-nominações, seria esse o resultadoencontrado no universo maior doministério pastoral dentro das igre-

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jas evangélicas brasileiras? Não te-mos como afirmar. Porém, a expe-riência da autora como psicóloga econselheira de líderes cristãos, pas-tores e seus familiares parece apon-tar para essa mesma conclusão.

No último capítulo do livro, sãoapresentadas propostas de cuidadoaos cuidadores. Como mencionadono próprio título do referido capí-tulo, o que se pretende é um “cui-dado integral” com pastores e pas-toras. Por cuidado integral entenda-se um cuidado que abranja as di-mensões “biopsicossocioecoes-piritual” (conceito utilizado pela au-tora neste capítulo), ou seja, cuida-do físico, cuidado emocional, cuida-do social e cuidado espiritual. Aespiritualidade funciona como eixointegrador de todas essas dimensõesrumo a um crescimento contínuo eintegral do ser humano (aqui a au-tora se inspira no trabalho deHoward Clinebell). Todo esse esfor-ço deve ser inspirado pela miseri-córdia, que, segundo a autora, é acaracterística maior do cuidado“matricial” de Jesus.

A autora está convencida da ne-cessidade de cuidar dos cuidadorespastorais de modo preventivo e demodo terapêutico. Suas propostaspressupõem esses dois tipos de cui-

dado. Aqui, é importante que se diga:o livro não tem a pretensão de apre-sentar nenhuma fórmula mágica ouinédita para acabar com os casos depastores esgotados ou em vias deesgotamento no exercício de seuministério. As propostas apresenta-das têm base na realidade. Algumasdelas são simples e não demandamgrandes investimentos. Outras, im-plicam em um maior esforço e ummaior investimento de recursos paratransformação de realidades crista-lizadas. São mencionados desde ospequenos cuidados consigo mesmoaté os cuidados maiores que os pas-tores poderiam receber das institui-ções onde estão inseridos e labutan-do (igrejas locais e denominações).

Dentre as propostas apresenta-das e as possibilidades de cuidadopodemos destacar, como exemplo,a mentoria (supervisão, orientação,direção espiritual). Psicólogos pos-suem supervisores com quem po-dem discutir os casos clínicos queestão atendendo e com quem po-dem tratar de suas próprias limita-ções e dificuldades. Pastores, emgeral, não têm ninguém! Ninguémcom quem dividir uma dúvida, com-partilhar uma dificuldade, desaba-far, pedir ajuda... Pastores jubilados,entre outros, poderiam servir como

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mentores de pastores mais jovens.Para a autora, Teologia e Psicologia(além de outras ciências) podem seunir para fornecer recursos para oenfrentamento desse grande desa-fio: cuidado integral àqueles quecuidam dos outros, mas não sãocuidados por ninguém, nem mesmopor si próprios.

O pastor não pastoreado dificil-mente deixará de enfrentar algummomento de insatisfação, esgota-mento ou crise em sua vida. Cui-dando de quem cuida, portanto, tocaem questão altamente relevante. Sópode cuidar dos outros quem rece-be cuidados. O livro é útil, especial-mente, aos próprios pastores (poisauxilia no caminho da reflexão e doautoconhecimento) e àqueles quetêm a responsabilidade pela forma-ção desses cuidadores pastorais(pois denominações e escolas de te-ologia precisam formar pastorespreocupados com o cuidado integral

dos outros sem negligenciar o cui-dado integral de si mesmos).

Pastores não pastoreados, sãocuidadores não cuidados. Estes ne-cessitam ouvir mais o testemunhobíblico: “Cuidem de vocês mesmose de todo o rebanho que o EspíritoSanto entregou aos seus cuidados,como pastores da Igreja de Deus,que ele comprou por meio do san-gue do seu próprio Filho” (At20.28). A igreja pertence a Deus.O rebanho que os pastores huma-nos pastoreiam pertence ao bompastor, Jesus Cristo. Pastores pre-cisam cuidar direito daquilo quenão lhes pertence, mas lhes foi en-tregue pelo Espírito Santo. Paraisto precisam começar atentandopara a Bíblia: “Cuidem de vocêsmesmos e de todo o rebanho”. Ocuidado de si mesmo precede ocuidado do outro. Quem não cuidade si mesmo, não pode cuidar deninguém.

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*Leontino Farias dos Santos, Mestre em Ciências daReligião, pastor, professor da Faculdade de Teologiade São Paulo (IPIB).

Influências da Religião sobre aSaúde Mental é um texto relevan-te, apropriado para leitores preo-cupados com as influências do fe-nômeno religioso no contexto dasociedade. Seus autores, ao se es-forçarem no sentido de produziruma obra de caráter científico,agregaram ao seu conteúdo infor-mações estatísticas e argumentosque devem ser considerados, ten-do em vista que procuram mos-trar o quanto a religião pode cu-rar e ao mesmo tempo promovero “adoecimento” de seus fiéis.

Dividido em doze capítulos, olivro contempla a discussão deproblemas ligados ao fenômenoreligioso, que incluem fé,espiritualidade, psiquiatria e reli-gião através da história, psicolo-gia e psicoterapia no século XX, arelação entre psicologia e saúdemental no Brasil, o benefício ouprejuízo que a religião pode trazeràs pessoas, o impacto da religiãosobre a saúde como um todo e asituação dos transtornos mentaisna vida de pastores e líderes reli-giosos. Termina com uma aborda-gem sobre o estudo cientifico dareligião em relação à sua meto-dologia.

Considerando a relevância dareligião como objeto de pesquisascientíficas, com ofertas de cura eprosperidade, o texto é um desa-fio à reflexão diante de questio-namentos que têm sido levantadossobre o fenômeno religioso emrelação à saúde mental.

NETO, Francisco Lotufo,JÚNIOR, Zenon Lotufo,MARTINS, José Cássio.Influências da Religião sobre aSaúde Mental. Santo André:ESETec Editores Associado,2009. 269 p.

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A primeira observação que faze-mos, está relacionada ao fato da re-ligião ser apresentada como um fe-nômeno ambivalente. A princípio,o texto mostra que a religião temservido tanto para edificar e mos-trar possibilidades para a realizaçãodas pessoas, como pode estar asso-ciada à opressão dos seus seguido-res, à perseguição dos que seguemoutras crenças ou dos que não crê-em em nada. Isto aconteceu no pas-sado e continua no presente. Destaforma, percebe-se que a religião émesmo um fenômeno paradoxal.

O texto, no seu todo, trabalhacom a tese de que as influências dareligião tanto podem gerar bem-es-tar, como comprometer negativa-mente a vida dos indivíduos. A par-tir dessa realidade, os autores pro-curam mostrar como a religião temsido paradoxal. Um exemplo dissoé quando sustentam que a religiãopode ser classificada sob vários as-pectos, de maneira dicotômica: areligião neutralizada (Adorno); areligião humanista e autoritária(Fromm); a religião funcional e adisfuncional (Spilka); a religião sau-dável e a doentia (James); a religiãointrínseca e a extrínseca (Allport),entre outras. Nestes vários tipos dereligião, os indivíduos podem tornar-se doentes, neuróticos, saudáveis,

equilibrados, frustrados, qualquercoisa!

Na análise do conceito de saúdemental, a abordagem está voltada,a princípio, para a questão da nor-malidade ou anormalidade doindivíduo em sociedade. Por “nor-mal”, diz o texto, entenda-se “o queestá de acordo com determinadasnormas, regras ou padrões”. Assim,normais ou anormais, são os que seaproximam ou se afastam da mé-dia das pessoas consideradas nor-mais por um grupo social.

A abordagem da questão nos fazlembrar a posição de Karen Horney,psicanalista culturalista, embora nãolembrada no texto, quando discute,de maneira mais circunstanciada, arelatividade do conceito de norma-lidade, à vista de padrões culturaisde determinados grupos sociais. Eladiz que o que é considerado numadada cultura, varia no decurso dotempo e nas diversas classes que acompõem. Horney entende que oser humano normal não existe.

No texto, o conceito de saúdemental indica que o ser humano nãopode ser padronizado, desde que seleve em consideração o fato de quesão muitas as dificuldades para aconceituação de normalidade. Poroutro lado, o conceito de doençamental também é vulnerável, pois

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todos somos sujeitos aos desequi-líbrios emocionais.

No capítulo que se refere à psi-quiatria e religião através da histó-ria, os autores fazem uma descri-ção de personagens antigos que dealguma forma eram portadores dealguma debilidade. É o que se podever com Nabucodonosor, impera-dor da Babilônia, quando comeugrama, como se fosse um boi; comSaul, quando viveu uma profundadepressão; com Jeremias, quandoandava com uma canga em seu pes-coço; com Davi, rei de Israel, quan-do comportou-se como um loucodiante do rei de Gath, que teria tidouma doença mental; com Ana, mãedo profeta Samuel, que vivia aflitapor causa de depressão e ansieda-de, além de nações consideradasdoentias como a dos hindus, a doschineses e japoneses na antiguidade.

Problemas que impressionavamna época, conforme a narrativa,eram a possessão de demônios e asalucinações que sempre ocorriamquando certos rituais religiososeram praticados. Nestes casos, areligião era ao mesmo tempocurandeira e determinante para asdoenças mentais, sendo frequentesos casos de neurose, paranóias,esquizofrenias, entre outros. Na Ida-

de Média são registrados inúmeroscasos de alucinações visuais, mas osque expressavam de maneira religi-osa os seus distúrbios de pensamen-to e comportamento não eram con-siderados psicóticos, mesmo em si-tuação de autodestruição, isolamen-to social ou comportamentos visio-nários, bem como consideradosheréticos.

Há alusões aos tempos moder-nos, levando-se em consideração ocomportamento tido como doentiode homens que marcaram a histó-ria como Lutero e suas crises dedepressão, Santo Inácio de Loyolae as crises de dúvidas em relação àssuas depressões espirituais. Sobre aIdade Moderna e Contemporânea,o texto mostra uma descrição dediagnósticos psiquiátricos com in-fluência religiosa, destacando-se oque foi chamado de insanidade reli-giosa, marcada pelo zelo excessivo,os movimentos religiosos reavi-valistas na Europa, Estados Unidos,inclusive no Brasil e a chamada lou-cura masturbatória, caracterizadapor práticas, publicações, vícios,deturpações, condenações e atribui-ção de insanidade aos praticantes damasturbação.

No estudo sobre religião e psi-quiatria, vale o destaque dos quatro

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movimentos que exerceram grandeimpacto sobre a saúde mental e areligião:

a) a psicanálise , para a qual areligião tem várias funções: é umailusão e serve para domar os instin-tos associais; preserva a civilização;projeta a necessidade humana deuma figura paterna e protetora; re-presenta a neurose compulsiva dahumanidade, conforme seuidealizador, Freud.

b) a análise junguiana - com oestudo dos arquétipos e do incons-ciente coletivo, e que conclui que ohomem possui uma função religio-sa natural que afeta a saúde psíqui-ca e a sua estabilidade. Para Jung, areligião não é uma ilusão, como di-zia Freud, mas uma força com gran-de influência sobre a humanidade.Fica claro no texto que Jung reco-nhece o valor da religião e da ideiade Deus para o ser humano em meioàs suas necessidades de realizaçãopessoal, o que favoreceu o novo di-álogo entre Religião e Psicologia.

c) a fenomenologia – valoriza-da, por considerar que a essênciareligiosa é inacessível e deveria seravaliada pela Filosofia e pela Teolo-gia, embora o comportamento e asexperiências religiosas tenham umadimensão psicofísica, acessível à pes-

quisa psicológica e psicopatológica. d) o existencialismo - finalmen-

te, também reconhecido como umfenômeno marcante no estudo so-bre religião e psiquiatria, sem mai-ores comentários.

Na abordagem sobre a Psicolo-gia e Saúde Mental no Brasil, sãodescritos, por sua importância, osestudos de Nina Rodrigues sobre ospreconceitos raciais, com a citaçãode que, para ele, é notória a inferio-ridade do negro, sua incapacidadepara integrar a civilização ocidentalcom suas manifestações histéricascaracterísticas dos adeptos do can-domblé, por exemplo. Outras con-tribuições significantes, reconheci-das com características conservado-ras, são citadas nos trabalhos doCorpo de Psicólogos e PsiquiatrasCristãos (CPPC): as influências decatólicos e protestantes com concei-tos e práticas de “cura interior”; asterapias comunitárias e os trabalhosde umbanda e candomblé, da NovaEra, dos espíritas, entre outros.

Lamentamos, todavia, a omissãodo trabalho de Nise da Silveira, umapsiquiatra junguiana, brasileira, fun-dadora do Serviço de TerapêuticaOcupacional (1946) e criadora doMuseu de Imagens do Inconsciente(1952), que introduziu um método

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terapêutico, não convencional, quepressupunha o tratamento daesquizofrenia a partir de novas con-cepções de estudo do psiquismo dopaciente e de sua inserção na reali-dade. Ela trabalhou com a terapêu-tica ocupacional (ver o caso clínicode Fernando Diniz, um psicótico,esquizofrênico, que produziu signi-ficativas obras de arte, com a cria-ção de desenhos e óleos), apoiadanos conceitos da psicologia de Jungque, tanto quanto ela, acreditava nareligião como fator importante para“religar o consciente com certos fa-tores poderosos do inconsciente”.Graças a esse trabalho diferencia-do de Nise da Silveira, Jung veio aoBrasil conhecer a sua obra.

Depois do enfoque acima, osautores, na defesa de sua tese ini-cial, reafirmam que a religião éambivalente. Numa visãojunguiana, mostram que a religiãoé tida como um fenômeno positi-vo, capaz de causar bem-estar, saú-de física e mental, conforme dizemLevin e Vanderpool (1987) quan-do concluem: “Em resumo, pare-ce claro que ir frequentemente aserviços religiosos é um fator pro-tetor contra grande variedade dedoenças...” Todavia, o texto nãoesconde que ao longo da história,

práticas religiosas têm sido estres-santes, geradoras de hipertensão,preconceitos, autoritarismo, de-pendência, intolerância, desajustespessoais, transtornos mentais, de-pressão, suicídio e até facilitadorado homossexualismo, entre outrosdanos.

Mas, como citado acima, se afreqüência aos serviços de cultos,com regularidade, pode proteger oindivíduo contra doenças e dos pro-blemas que a religião, também exis-tem “mecanismos através dos quaisa religião influencia a saúde.” Ficaclaro que esta sempre influenciaráa saúde das pessoas dependendo dotipo, qualidade do comportamen-to e estilo de vida, do apoio social,do sistema de crenças, dos rituaisreligiosos, dos segmentos litúrgicos(tipos de oração, meditação, con-fissão, busca do perdão, técnicas deconvencimento em busca de con-versões, práticas exorcistas, entreoutras), das experiências místicasempreendidas. Dependendo decomo as práticas e teorias ocorrem,assim se terá a cura e a vida saudá-vel dos fiéis.

O texto reconhece também quecertas influências superempíricasrelacionadas à cura espiritual, nãosão bem vistas por estudiosos da

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atualidade. Vejamos um de seus pa-rágrafos: “O impacto que a religiãopode ter sobre a saúde pode acon-tecer de diversas maneiras. A reli-gião pode influenciar certos com-portamentos aumentando ou dimi-nuindo os riscos para a saúde. Podecriar uma rede de apoio social, ouoperar reduzindo o impacto doseventos vitais estressantes comodoença, luto, mudanças residen-ciais involuntárias e institucio-nalização” (p. 192).

No capítulo que trata dos Trans-tornos Mentais, constata que há lí-deres religosos a serem consideradospsicóticos, entre eles Lutero,Maomé, Orígenes, Bunyan, Tolstoi,Santo Agostinho e George Fox, porapresentarem momentos dedesequilíbrio em sua personalidade.Juntamente com estes, o livro mos-tra estatísticas referentes à situaçãode sacerdotes e freiras que se tor-naram viciados em bebidas alcoó-licas, com diversos tipos de neuro-ses e psicoses. Vale destacar a refe-rência à sexualidade de religiosos,envolvendo masturbação, homos-sexualismo, prostituição e, por con-ta disso, os problemas que envol-vem a busca de solução para o sen-timento de culpa e livramento do

pecado. É notório que os religiososestão tão afeitos a transtornos emsua vida material, afetiva, psicoló-gica, moral e espiritual, quanto osfiéis de suas respectivas religiões.

Finalmente o texto discute acientificidade dos estudos relacio-nados à religião. Mostra dificulda-des encontradas, começando pelodestaque à espiritualidade, quandoesta tem sido definida por aquiloque não é, e as dificuldades quedevem ser reconhecidas para estu-dos adequados sobre misticismo,iluminação, identificação divina oudiabólica, entre outros. No meio detudo isso, não se pode esquecer osdiversos tipos de patologias implí-citas como a histeria, alucinações,psicoses maníaco-depressivas,esquizofrenia, etc. O texto reco-nhece as principais críticasmetodológicas aos trabalhos sobrepsiquiatria e religião, deixando cla-ro que problemas de método, pro-blemas epistemológicos e de análi-se persistem nesse processo. Con-firma-se aqui, então, que a religiãoé um fenômeno extremamentecomplexo, por conta de suas práti-cas, organização e busca do sobre-natural numa sociedade enferma,como diz Erich Fromm.

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