temas do ciclo troiano contributo para o estudo da ... do... · a platão, jesus, cícero, ovídio...

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Miguel Rúben Faria de Carvalho Abrantes Temas do Ciclo Troiano Contributo para o estudo da tradição mitológica grega Dissertação de Mestrado em Estudos Clássicos, na área de especialização em Culturas e Literaturas Clássicas, orientada pela Doutora Luísa de Nazaré Ferreira e coorientada pelo Doutor Robert S. J. Garland, apresentada ao Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Setembro 2015

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  • Miguel Rben Faria de Carvalho Abrantes

    Temas do Ciclo Troiano Contributo

    para o estudo da tradio mitolgica grega

    Dissertao de Mestrado em Estudos Clssicos, na rea de especializao em Culturas e Literaturas Clssicas,

    orientada pela Doutora Lusa de Nazar Ferreira e coorientada pelo Doutor Robert S. J. Garland, apresentada

    ao Departamento de Lnguas, Literaturas e Culturas da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

    Setembro 2015

  • Faculdade de Letras

    Temas do Ciclo Troiano Contributo

    para o estudo da tradio mitolgica grega

    Ficha Tcnica:

    Tipo de trabalho Dissertao de Mestrado

    Ttulo TEMAS DO CICLO TROIANO

    CONTRIBUTO PARA O ESTUDO DA TRADIO MITOLGICA GREGA

    Autor/a Miguel Rben Faria de Carvalho Abrantes

    Orientador/a Lusa de Nazar Ferreira

    Coorientador/a

    Jri

    Robert S. J. Garland

    Presidente: Doutor Jos Lus Lopes Brando

    Vogais:

    1. Doutor Delfim Ferreira Leo

    2. Doutora Lusa de Nazar Ferreira

    Identificao do Curso 2 Ciclo em Estudos Clssicos

    rea cientfica Estudos Clssicos

    Especialidade/Ramo Culturas e Literaturas Clssicas

    Data da defesa

    Classificao

    21-10-2015

    18 valores

  • Agradecimentos

    A Plato, Jesus, Ccero, Ovdio (Naso magister erat!), Porfrio, Santo Agostinho,

    Tzetzes, e todas aquelas incontveis figuras que me levaram a estudar as vrias reas dos

    Estudos Clssicos.

    s quatro pessoas que, uma e outra vez, me fizeram continuar.

    mais bela de todas as mulheres, ela sabe quem .

    A Elisabete Cao, pelas vrias questes a que me respondeu ao longo do mestrado.

    Aos Professores Robert S. J. Garland e Lusa de Nazar Ferreira, por terem aceitado

    acompanhar-me e coordenar-me nesta viagem.

    Aos Professores que, em Portugal e fora do pas, ao longo dos anos tanto me

    ensinaram, com um obrigado especial a Carlos F. Clamote Carreto, Delfim Ferreira Leo,

    Joo Rasga e Nair de Nazar Castro Soares.

    Aos colegas da Residncia Universitria da Alegria, que sempre me receberam to

    bem em Coimbra.

    A quem me criou, pela presena ou pela ausncia.

    A todos aqueles que, hoje e sempre, me inspiram.

  • 1

    ndice

    RESUMO ................................................................................................................................... 3

    NOTAS PRELIMINARES ......................................................................................................... 4

    1. Introduo e estado da questo ............................................................................................... 5

    2. O Ciclo Troiano e o problema do Eptome da Crestomatia de Proclo ................................. 13

    3. Algumas fontes do Ciclo Troiano ......................................................................................... 17

    3.1. A Ilada ......................................................................................................................... 18

    3.2. A Odisseia ..................................................................................................................... 19

    3.3. Os fragmentos da Etipida, da Pequena Ilada, do Saque de lion e dos Retornos ..... 19

    3.4. A Oresteia, de squilo .................................................................................................. 20

    3.5. As peas perdidas de squilo ........................................................................................ 21

    3.6. As odes de Pndaro ........................................................................................................ 21

    3.7. jax, de Sfocles .......................................................................................................... 21

    3.8. Filoctetes, de Sfocles .................................................................................................. 22

    3.9. As peas perdidas de Sfocles ...................................................................................... 22

    3.10. Andrmaca, de Eurpides ............................................................................................ 22

    3.11. Electra, de Eurpides ................................................................................................... 23

    3.12. Hcuba, de Eurpides .................................................................................................. 23

    3.13. Helena, de Eurpides ................................................................................................... 23

    3.14. As Troianas, de Eurpides ........................................................................................... 24

    3.15. Orestes, de Eurpides .................................................................................................. 24

    3.16. As peas perdidas de Eurpides ................................................................................... 24

    3.17. Alexandra, atribuda a Lcofron .................................................................................. 25

    3.18. Eneida, de Virglio ...................................................................................................... 26

    3.19. As Fbulas de Higino ................................................................................................. 26

    3.20. Paixes de Amor, de Partnio ..................................................................................... 27

    3.21. Cartas das Heronas, de Ovdio ................................................................................. 28

    3.22. Metamorfoses, de Ovdio ............................................................................................ 28

    3.23. Narraes, de Cnon .................................................................................................. 29

    3.24. Agammnon, de Sneca .............................................................................................. 29

    3.25. As Troianas, de Sneca ............................................................................................... 29

    3.26. A Biblioteca, atribuda a Apolodoro ........................................................................... 30

    3.27. Discursos de Dion Crisstomo ................................................................................... 30

    3.28. Nova Histria, de Ptolomeu Queno ............................................................................ 31

    3.29. Descrio da Grcia, de Pausnias ............................................................................ 32

    3.30. Dilogos dos Mortos, de Luciano ............................................................................... 32

    3.31. Acerca dos heris, de Filstrato .................................................................................. 33

    3.32. As Posthomricas, de Quinto de Esmirna .................................................................. 34

    3.33. Da Guerra de Tria, de Dctis de Creta ...................................................................... 35

    3.34. Histria da destruio de Tria, de Dares Frgio ....................................................... 35

    3.35. Tomada de lion, de Trifiodoro ................................................................................... 36

    3.36. As Mitologias, de Fulgncio ....................................................................................... 37

    3.37. O Excidium Troiae ...................................................................................................... 37

    3.38. Os Mitgrafos do Vaticano ......................................................................................... 38

    3.39. Antehomricas, Homricas e Posthomricas, de Tzetzes .......................................... 39

    3.40. Romance de Tria, de Benot de Saint-Maure ............................................................ 41

  • 2

    4. Alguns episdios do Ciclo Troiano ....................................................................................... 43

    4.1. A histria de Pentesileia ................................................................................................ 46

    4.1.1. O episdio de Pentesileia e sua posio face Ilada ........................................... 46

    4.1.2. A participao de Pentesileia na Guerra de Tria.................................................. 46

    4.1.3. Pentesileia em combate ......................................................................................... 47

    4.1.4. A morte de Pentesileia e de Tersites ...................................................................... 48

    4.2. A histria de Mmnon ................................................................................................... 51

    4.2.1. A chegada de Mmnon a Tria .............................................................................. 51

    4.2.2. Mmnon em combate, a morte de Antloco e o combate com Aquiles ................. 51

    4.2.3. A morte de Mmnon .............................................................................................. 53

    4.3. A morte e funeral de Aquiles ......................................................................................... 56

    4.3.1. A morte de Aquiles ................................................................................................ 56

    4.3.2. A recuperao do corpo de Aquiles ....................................................................... 59

    4.3.3. O funeral de Aquiles.............................................................................................. 60

    4.3.4. Os jogos fnebres de Aquiles e o desafio pelas suas armas .................................. 61

    4.3.5. O suicdio de jax ................................................................................................. 63

    4.4. O episdio de Eurpilo e Neoptlemo ........................................................................... 64

    4.4.1. A vinda de Eurpilo .............................................................................................. 64

    4.4.2. A vinda de Neoptlemo ........................................................................................ 65

    4.4.3. O combate de Eurpilo com Neoptlemo ............................................................. 66

    4.5. Filoctetes e a morte de Pris ......................................................................................... 67

    4.5.1. O retorno de Filoctetes .......................................................................................... 67

    4.5.2. A morte de Pris .................................................................................................... 69

    4.5.3. Pris e Enone ......................................................................................................... 69

    4.5.4. Heleno e os requisitos para a conquista de Tria .................................................. 71

    4.6. O estratagema do cavalo e a conquista de Tria ........................................................... 73

    4.6.1. A tomada do Paldio ............................................................................................. 73

    4.6.2. O estratagema do cavalo ....................................................................................... 74

    4.6.3. A deliberao dos Troianos ................................................................................... 78

    4.6.4. Helena e as vozes das mulheres dos Gregos ......................................................... 79

    4.6.5. O ataque inicial cidade ....................................................................................... 79

    4.6.6. A morte de Pramo ................................................................................................. 80

    4.6.7. O episdio de Antenor ........................................................................................... 81

    4.6.8. O episdio de Eneias ............................................................................................. 81

    4.6.9. Os destinos de Defobo, Helena e Etra.................................................................. 83

    4.6.10. jax Menor e a violao de Cassandra ............................................................... 84

    4.6.11. A morte de Astanax ............................................................................................ 86

    4.6.12. O destino de Polxena ......................................................................................... 87

    4.6.13. Os destinos de Cassandra, Andrmaca, Hcuba e Ladice ................................. 89

    4.7. Os Regressos ................................................................................................................. 90

    4.7.1. O regresso de jax Menor .................................................................................... 90

    4.7.2. O regresso de Helena e Menelau ........................................................................... 91

    4.7.3. O episdio de Nuplio ........................................................................................... 91

    4.7.4. O regresso de Agammnon ................................................................................... 92

    4.7.5. O regresso de Neoptlemo e Heleno ..................................................................... 93

    4.7.6. O regresso de Diomedes e Nestor ......................................................................... 94

    4.7.7. Os outros regressos ............................................................................................... 94

    CONCLUSO .......................................................................................................................... 97

    BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................... 101

  • 3

    RESUMO

    Esta dissertao de Mestrado tem como principal objectivo reconstruir os mltiplos

    eventos que tomavam lugar durante os episdios da parte central do Ciclo Troiano, ou seja,

    todos aqueles que ocorriam entre o final da trama da Ilada e o princpio da Odisseia. Com a

    inteno de se atingir esse objectivo primrio, iremos recorrer ao estabelecimento de mltiplas

    intertextualidades e leitura de diversas fontes iconogrficas.

    Esse trabalho principiar por discutir, sucintamente, a existncia de algumas

    fragilidades no Eptome da Crestomatia de Proclo, fonte que tende a ser considerada como

    uma das mais importantes evidncias para o que teve lugar nos episdios aqui em

    considerao.

    Num segundo momento sero apresentadas outras fontes literrias que fazem

    referncia a cada um desses episdios incluindo textos de squilo, Pndaro, Eurpides,

    Virglio ou Ovdio, mas tambm obras muito menos conhecidas e estudadas, como o

    Excidium Troiae ou alguns dos textos de Tzetzes prestando-se particular ateno s vrias

    referncias e relaes que so feitas no contexto desses episdios que pretendemos

    reconstruir.

    Em terceiro lugar, as evidncias recolhidas sero usadas numa tentativa de

    reconstruo dos vrios eventos que teriam lugar nessa parte central do Ciclo Troiano, sendo

    essa sntese baseada nas diversas provas directas que os textos e imagens tm para nos

    oferecer.

    Palavras-chave: Ciclo Troiano, Proclo, Mitologia, Literatura, Iconografia.

    ABSTRACT

    This Masters' dissertation has as its main goal reconstructing the multiple events that

    took place during the episodes of the central section of the Trojan Cycle, that is, all the

    episodes that had occurred between the end of the plot of Iliad and beginning of the Odyssey.

    With the goal of reaching that primary objective, we will resort to the establishment of

    multiple intertextualities, and to the reading of diverse iconographical sources.

    This work will begin by succinctly debating the existence of some fragilities in the

    Epitome of the Chrestomathy of Proclus, a source that tends to be considered one of the most

    important evidence for what took place in each of these episodes.

    In a second moment we will present several other literary sources that reference each

    of these episodes including texts by Aeschylus, Pindar, Euripides, Virgil, or Ovid, but also

    texts a lot less known or studied, such as the Excidium Troiae or some of Tzetzes' productions

    always paying special attention to the several references, and relationships, that are created

    in the context of those episodes that we seek to reconstruct.

    In third place, the evidence collected will then be used in an attempt to reconstruct the

    several events which would have their place in that central section of the Trojan Cycle, with

    that synthesis being based in the multiple direct evidence that the texts and images have to

    offer us.

    Keywords: Trojan Cycle, Proclus, Mythology, Literature, Iconography.

  • 4

    Notas preliminares

    Dado que o autor desta dissertao no se licenciou em Clssicas, tem poucos

    conhecimentos de Latim e quase nenhuns de Grego antigo, s puderam ser trabalhados textos

    e estudos que j existiam em lngua portuguesa, inglesa, francesa ou espanhola. Apesar dessa

    dificuldade em aceder aos textos originais, o tema desta dissertao foi escolhido,

    principalmente, pelo fascnio que alguns dos episdios do Ciclo Troiano exercem no autor e

    pela vontade em continuar a desenvolver uma investigao centrada no estudo da mitologia

    greco-latina.

    As abreviaturas das obras gregas citadas so as de H. G. Liddell-R. Scott-H. Stuart Jones

    (eds.), A Greek-English Lexicon (Oxford, 1996). Para os autores latinos, as de P. G. W. Glare

    (ed.), Oxford Latin Dictionary (Oxford, 1982). No caso de obras e autores no mencionados

    nestes dicionrios, foram usadas referncias mais directas (por exemplo, Dict. para a obra

    de Dctis de Creta) ou simplificaes que permitem facilmente compreender qual a obra de

    que se fala (por exemplo, ET para o Excidium Troiae).

    Na traduo dos nomes gregos e latinos seguimos a obra de M. H. Urea Prieto et alii,

    ndices de nomes prprios gregos e latinos (Lisboa, 1995).

    Os artigos de The Oxford Classical Dictionary (Oxford, 31996, consultado atravs da

    verso digital 3.53, 2000) surgem identificados pela sigla OCD.

    Ao longo desta tese so feitas referncias a um Ciclo pico e a um Ciclo Troiano.

    Importa esclarecer que a segunda designao pretende fazer aluso, em exclusivo, aos

    episdios do Ciclo pico que se referiam directamente Guerra de Tria, principiando com

    aqueles que tomavam lugar antes da Ilada e terminando com a morte de Ulisses.

    Refira-se, em ltimo lugar, que as linhas desta dissertao no foram escritas ao abrigo

    do novo Acordo Ortogrfico.

  • 5

    1. Introduo e estado da questo

    Qualquer estudo da literatura grega e latina da Antiguidade dificilmente poder ser

    dissociado dos dois grandes Poemas Homricos, a Ilada e a Odisseia. Durante mais de um

    milnio, e at acabarem por ser suplantados pelos textos do Cristianismo, estas eram as duas

    obras que qualquer pessoa devia conhecer, e que os mais diversos autores nunca deixam de

    referir. Plato e Aristteles mencionam-nos repetidamente, da mesma forma que o fazem,

    vrios sculos mais tarde, Ccero, Ovdio, Cludio Eliano, Santo Agostinho ou Bocio, entre

    muitos outros. Quando os vrios apologistas cristos querem mostrar os muitos erros do

    Paganismo tambm tendem a recorrer a estas obras1.

    Contudo, se esses dois poemas picos eram, inegavelmente, os mais famosos, no

    eram nem os nicos atribudos a Homero nem os nicos que o sculo desse autor tinha

    produzido. famosa a histria de Margites, obra j atribuda quele poeta por Aristteles (Po.

    4.1448b-1449a), e que no nos chegou seno em escassos fragmentos, tal como o so os

    diversos episdios que ficaram de fora das produes homricas, mas que o seu autor j

    mostrava, pelo menos em parte, conhecer. Episdios como os da morte de Antloco por

    Mmnon, da morte de Aquiles, ou at a construo do cavalo de madeira, j s nos aparecem

    atestados, de uma forma directa, em poemas mais tardios, mas os versos atribudos a Homero

    mostravam conhec-los de algum forma e fazem-lhes diversas aluses, como veremos mais

    frente.

    Somos, ento, levados a perguntar o que ter acontecido a essas epopeias perdidas.

    Nos muitos anos que separam o tempo de Homero do sculo de Augusto, ainda hoje podem

    ser encontrados, aqui e ali, referncias subtis a cada uma delas. Por volta do sculo II a.C.

    Aristarco ainda parecia conhecer, pelo menos em parte, os seus contedos2. Se essas aluses

    continuam a ocorrer nos primeiros sculos da nossa era, em obras como as de Ateneu de

    Nucratis, depois tendem a cessar, como se esses antigos poemas, ou os seus contedos,

    tivessem desaparecido para sempre, algo que Joo Filopono, autor do sculo VI d.C., parece

    atribuir influncia de uma epopeia de Pisandro de Laranda (cf. West 2013: 51). Para ns, a

    mais antiga das obras que aborda esses temas de uma forma contnua a de Quinto de

    Esmirna3. Seguem-se outros, como Dctis de Creta e Dares Frgio, mas mais do que evocarem

    1 Ver, por exemplo, Lact. Inst. 1.5, August. C.D. 4.26.

    2 Ver Severyns 1928, que reconstri algumas partes do Ciclo pico recorrendo exclusivamente a evidncias

    retiradas dos comentrios da Escola de Aristarco. 3 Recorde-se que a atribuio deste autor ao sculo IV d.C. feita, exclusivamente, com base num smile

  • 6

    os poemas do tempo de Homero, muitas vezes limitam-se a fazer as suas prprias construes

    com um material que, muito possivelmente, ainda teriam sua frente.

    Quando Tzetzes, no sculo XII, escreve sobre os episdios do Ciclo Troiano, at

    menciona, pontualmente, as fontes em que se baseou para ter acesso a dadas informaes, e se

    algumas delas chegaram at aos nossos dias, outras resumem-se, para ns, a nomes vazios,

    fazendo-nos pensar, mais directamente, na quantidade de material sobre este tema que, ao

    longo dos sculos, foi perdida.

    Esse problema particularmente visvel numa outra obra produzida no mesmo sculo,

    mas num contexto cultural bastante diferente o Romance de Tria, de Benot de Sainte-

    Maure. Se esse autor at podia ter conhecido os Poemas Homricos, ou outras composies

    referentes ao Ciclo Troiano4, parece consider-los como secundrios, face aos relatos que se

    dizia terem sido escritos por testemunhas da prpria guerra, atribudos a Dctis de Creta e

    Dares Frgio. So esses, e somente esses, que o poeta francs nos diz seguir na criao do seu

    prprio poema, e no deixam de ser esses os mesmos textos usados pelos autores que o

    sucedem. Se existiam, nessa mesma altura, outras fontes, entretanto perdidas, Benot de

    Sainte-Maure nunca as refere de uma forma explcita.

    Face a essa contnua perda e seleco de fontes, poderamos pensar que os muitos

    episdios que no foram tratados por Homero estavam hoje totalmente perdidos. Isso seria um

    enorme erro da nossa parte, mas para o explicar importa fazer um pequeno retrocesso no

    tempo, at ao sculo IX da nossa era. Foi nessa altura que Fcio, patriarca de Constantinopla,

    leu cerca de 280 obras, escrevendo sobre cada uma delas nas pginas da sua Biblioteca.

    Nunca nos diz ter lido os Poemas Homricos ou outras criaes dessa mesma poca. Leu,

    porm, uma Crestomatia, que atribui a um Proclo5, e diz-nos que essa era uma obra em que

    estava descrito um Ciclo pico, uma associao artificial dos textos de diversos autores,

    feita com o objectivo de produzir uma trama contnua, que principiava com o nascimento dos

    antigos deuses, terminando com a morte de Ulisses6

    .

    Sobre os contedos deste Ciclo pico, Fcio s nos deixou quatro breves frases,

    insuficientes para que possamos saber seja o que for sobre cada um dos poemas envolvidos

    patente em Q.S. 6.532-536 e numa profecia referida em Q.S. 13.336-341, cf. James 2007: xviii-xix.

    4 Mencione-se que esse autor faz algumas referncias aos Poemas Homricos e s fontes que utilizou (vv. 71-

    74, 24397-24400), mas, atravs da leitura da obra, no totalmente claro se ele ainda teria outras fontes

    sua disposio. 5 Autor sobre o qual pouco sabemos, mas em relao ao qual Holmberg (1998: 458) diz, de uma forma

    categrica, que The Proclus who compiled the Chrestomathy was either a grammarian of the Antonine age

    or a Neoplatonist of the same name who died in 485 AD (Huxley 1969: 123-24; Severyns 1928: 245). 6 Ao texto que Fcio dedica s linhas de Proclo voltaremos no prximo captulo de uma forma mais detalhada.

  • 7

    nessa composio, at porque o texto dessa Crestomatia no nos chegou de uma forma

    completa. Toda esta histria at poderia ter ficado por aqui se, alguns sculos mais tarde, no

    tivessem sido encontrados vrios eptomes desse texto de Proclo, descrevendo parte das

    aces que tomavam lugar nos Poemas Cprios7, na Etipida, na Pequena Ilada, no Saque de

    lion, nos Retornos e na Telegonia, poemas de diversas autorias, mas que, quando associados

    entre si e s produes homricas, permitiriam ao leitor conhecer toda uma histria contnua

    do Ciclo Troiano.

    com o objectivo de dar a conhecer os episdios que os Poemas Homricos no nos

    contam directamente que, ainda hoje, este Eptome da Crestomatia de Proclo8 tende a ser

    repetidamente mencionado. G. Nagy f-lo numa sua obra e em pelo menos um dos cursos que

    lecciona (e.g. 2013: 74-77, 114), como tambm o fazem qualquer boa edio, ou curso

    acadmico, sobre os contedos dos Poemas Homricos (cf. Dowden 2006). Assim, e face s

    evidncias dadas por esse eptome, seria tentador concatenar os fragmentos de cada uma

    dessas obras para as tentarmos reconstruir. Recentemente, M. L. West (2013: v-vi),

    especialista bem familiarizado com os fragmentos, argumentos e testemunhos de cada uma

    delas, tentou faz-lo, mas ao consultarmos a sua obra acabamos por constatar que as certezas

    que tem so muito tnues, tornando-se essa reconstruo mais um exerccio de criatividade do

    que uma associao de provas concretas e difceis de refutar, mesmo quando ligadas a fontes

    iconogrficas, cuja importncia o mesmo especialista tambm tem em conta. Por diversas

    vezes, M. L. West acaba por cair num jogo de probabilidades9, porque, face s evidncias

    dadas pelo eptome da obra de Proclo, e mesmo quando essas tambm so associadas aos

    fragmentos ainda existentes dos respectivos textos, continuamos a saber muito pouco sobre os

    seus contedos originais.

    A enorme falta de informao , indubitavelmente, um problema difcil de colmatar,

    mas que quase toda a bibliografia existente sobre o Ciclo pico consultada no decurso deste

    estudo no parece deixar de repetir. Uma e outra vez, linhas relativas aos episdios troianos

    7 A justificao mais conhecida para este nome parece provir do local de origem do poema ou do nome do seu

    autor. No entanto, esta uma autoria disputada desde a Antiguidade e, como veremos mais frente, tambm

    Proclo estava ao corrente dessa controvrsia. Sobre este tema, ver Allen 1908b: 81, Bernab Pajares 1979:

    94-97, Burgess 2001: 163 e West 2013: 32-34. 8 Convm esclarecer que a obra, segundo nos diz Fcio (Bibl. 239.1), se chamava apenas Crestomatia, sendo

    esta designao aqui usada para permitir a qualquer leitor reconhecer, sem quaisquer dificuldades, o estado

    em que o texto se encontra, nessa sua forma actual. 9 Recorde-se que M. L. West, ao longo da sua edio, diversas vezes frisa que est a indicar possibilidades,

    mais do que assentar em certezas, como quando, nas pginas 168-169, atribui um conjunto de dias trama

    da Pequena Ilada, mas refere que after day 7 the poet might have said..., e quanto diviso por livros,

    assume-a como imprudente, antes de referir que a possible allocation would be....

  • 8

    deste ciclo tendem a repetir-se, focando-se nos resumos atribudos a Proclo ou nas (poucas)

    citaes dos textos originais que ainda nos chegaram. Isto gerou uma situao que, h j mais

    de um sculo, assim foi resumida por T. W. Allen (1908a: 64): Enough and too much has

    been written about the Epic Cycle. Upon scanty quotations and a jejune epitome a tedious

    literature has been built. The older writers, such as Welcker, tried to reconstruct as

    profitable and satisfying a task as inferring a burnt manor-house from its cellars; later scholars

    have gone out in tracing the tradition of the poems through the learned age of Greece a

    scaffolding without ties, by which this or that conclusion is reached according to

    temperamental disposition to this or that fallacy.

    Estaria este autor correcto? Vejamos, neste seguimento, mais alguma bibliografia

    existente sobre o tema, para que possamos compreender a forma como os diversos autores se

    dedicaram ao estudo do Ciclo pico.

    D. B. Monro (1883, 1884), em dois artigos publicados na revista The Journal of

    Hellenic Studies, explorou os resumos de Proclo e a forma como nos chegaram, bem como

    cada um dos poemas que formavam parte do Ciclo pico, cujo contedo tentou reconstruir

    atravs desses mesmos resumos. Se este autor regressou ao mesmo tema de uma forma mais

    detalhada em 1901, de algum relevo o facto desses seus trabalhos, anteriores ao artigo de T.

    W. Allen, j apresentarem uma grande parte das informaes que ainda temos, dando-nos a

    entender que o cerne da pesquisa sobre o Ciclo pico se manteve, ao longo de mais de um

    sculo e at aos dias de hoje, relativamente estvel.

    J. M. Paton (1908) examinou uma rara representao da morte de Tersites,

    demonstrando que o episdio se encontrava intimamente ligado figura de Aquiles, mas

    referindo tambm a inexistncia de evidncias iconogrficas suficientes para concluses

    definitivas sobre a forma como a sequncia literria se desenvolvia. Este um estudo de

    alguma importncia visto que o episdio de Tersites se relaciona com a figura de Pentesileia,

    de que falaremos mais frente, mas a sua representao na arte muito pouco frequente.

    O j citado estudo de T. W. Allen (1908a, 1908b) comea por apresentar a informao

    ento existente sobre a obra de Proclo, desenvolvendo-a atravs da anlise de uma possvel

    autoridade desse texto. Na segunda parte, o autor foca-se, separadamente, em cada um dos

    poemas que constitua esse Ciclo, dissertando sobre eles, sendo este um estudo que, de uma

    forma geral, tambm parece preservar grande parte da informao que temos sobre o tema.

    A. Severyns (1928) estudou a totalidade do Ciclo pico recorrendo aos comentrios da

    autoria da Escola de Aristarco, usando-os como evidncias para a reconstruo de alguns

  • 9

    episdios. Se isso lhe permite recriar algumas das sequncias mais famosas, outras esto

    totalmente ausentes10

    , permitindo-nos constatar que j no tempo do gramtico alexandrino

    alguns episdios do Ciclo Troiano eram mais conhecidos do que outros. O mesmo estudioso,

    nas suas Recherches sur la Chrestomathie de Proclos (1938a, 1938b, 1953, 1963),

    explorou detalhadamente tanto o texto de Fcio sobre a Crestomatia quanto os prprios

    resumos atribudos a Proclo, sendo esse um trabalho fundamental para o estudo de ambos os

    temas, que a so analisados de uma forma muito precisa.

    B. A. Sparkes (1971) examinou a representao do episdio do cavalo de Tria na arte

    clssica, e f-lo com ilustraes, permitindo-nos compreender alguns importantes aspectos da

    recepo artstica desse elemento mitolgico ao longo de quase um milnio.

    J. Griffin (1977) explorou alguns dos aspectos menos realistas de episdios do Ciclo

    pico, comparando-os com sequncias patentes nos Poemas Homricos. Face presena de

    histrias singulares, como a imortalizao de Mmnon, a possvel invulnerabilidade de jax

    ou as propriedades mgicas do Paldio11

    , levado a concluir o seguinte: In the [Epic] Cycle

    both heroism and realism are rejected in favour of an over-heated taste for sadistically

    coloured scenes. (p. 45).

    Esta uma afirmao com a qual somos obrigados a concordar, dado que, pela sua

    inverosimilhana, alguns dos episdios mencionados parecem destoar no contexto geral dos

    poemas atribudos a Homero.

    T. Gantz (1993) abordou mais de 18 sequncias mticas, sendo aqui particularmente

    relevantes os seus captulos 16 e 17, em que o autor examina todos os acontecimentos da

    Guerra de Tria e os regressos dos diversos heris, referindo para cada um dos episdios no

    s os testemunhos literrios, mas tambm mltiplas fontes iconogrficas, pelo que constitui

    tambm uma obra de grande importncia para o estudo do Ciclo Troiano.

    M. J. Anderson (1999) procedeu ao estudo da queda de Tria, definindo-a como: a

    cluster of elements and episodes, among them the wooden horse, the attack on Kassandra, the

    murder of Priam () [which lie] at a pivotal point within a much larger story (p. 3).

    Para tal, procurou evidncias dessas histrias nos Poemas Homricos, nas tragdias de

    autores como squilo e Eurpides, e na iconografia da mesma poca, focando-se num

    conjunto de episdios que, como repetidamente nos informa, teriam o seu lugar no perdido

    10

    Por exemplo, o episdio de Eurpilo, que acabaria por morrer em combate contra o filho de Aquiles, no

    mencionado. 11

    Uma pequena imagem da deusa Atena que caiu do cu e que protegia Tria, tornando a cidade

    inconquistvel. Vide J. Linderski, OCD, s.v. Palladium.

  • 10

    Saque de lion. Esta trata-se, assim, de uma obra importante para o estudo desses momentos

    finais da Guerra de Tria.

    J. Burgess escreveu sobre diversos aspectos do Ciclo Troiano, mas merece particular

    destaque uma das suas mais recentes obras, The Death and the Afterlife of Achilles, publicada

    em 2009. O autor tenta reconstruir o episdio da morte de Aquiles, usando como evidncias

    no s a Ilada mas tambm outras produes da Antiguidade, dedicando ainda ateno a

    temas como o destino do heri aps a morte ou a localizao do seu tmulo, sendo, portanto,

    um estudo relevante para essa sequncia em concreto.

    J. G. C. Grillo (2011) considerou o rapto de Cassandra por jax Menor, de forma a

    explorar, atravs das pinturas de vasos ticos, se esta filha de Pramo teria, efectivamente, sido

    violada pelo heri grego. Acaba por concluir, com base no testemunho da cermica tica, que

    sim.

    I. F. Gatti (2012) focou-se na Crestomatia de Proclo, discorrendo sobre esta no s

    atravs do cdice 239 da Biblioteca de Fcio, como o ttulo do trabalho poderia indicar, mas

    tambm apresentando e traduzindo para portugus a Crestomatia, atravs dos poucos

    elementos que dela ainda nos chegaram uma Vida de Homero e os famosos resumos dos

    poemas do Ciclo pico.

    M. L. West dedicou diversos trabalhos ao Ciclo pico, merecendo especial destaque

    pelo menos dois deles, uma traduo dos fragmentos de vrios poemas picos (entre eles os

    eptomes de Proclo relativos ao Ciclo pico), para a Loeb Classical Library, e uma tentativa

    de reconstruo dos poemas do Ciclo Troiano, que j foi referida acima.

    Esta breve resenha de alguma bibliografia consagrada ao Ciclo Troiano permite-nos

    estabelecer, com maior confiana, dois grandes plos de atraco do tema: um estudo mais

    geral, focado nos resumos de Proclo e nos fragmentos literrios que ainda nos chegaram, e um

    estudo de episdios mais especficos, com base em elementos literrios ou iconogrficos. So

    essas duas reas que se pretende relacionar nesta dissertao, associando no s um conjunto

    de fragmentos a um breve eptome, tarefa que j se provaria repetida e muito pouco

    conclusiva, mas trabalhando o tema atravs do conhecimento do Ciclo Troiano que, ao longo

    de mais de um milnio, os diversos autores demonstram dele ter. Se, por um lado, este poderia

    parecer um caminho imprudente, j que o conhecimento que Aristteles tinha desses vrios

    episdios pouco provavelmente seria o mesmo que Ovdio, vrios sculos mais tarde,

    demonstra ter, essa uma dificuldade que pode ser colmatada se tivermos em conta os

  • 11

    mltiplos pontos em que os diversos autores, ao longo dos sculos, concordam e discordam.

    Suponha-se, a ttulo de exemplo, que dez diferentes autores mencionam um mesmo

    episdio, como o Julgamento de Pris. Se nove dissessem que a deusa vencedora foi

    Afrodite, mas um deles referisse a vitria de Hera, difcil seria que esse nico autor

    representasse a opinio da maioria ou estivesse a preservar-nos uma verso que,

    originalmente, seria a mais atestada. No por ser diferente que essa sua opinio dever ser

    descartada, mas, quando associada s nove restantes, permite-nos tambm saber que a opinio

    da maioria no era a nica. Nesse sentido, sempre que, ao longo deste estudo, forem

    descobertas verses menos conhecidas de um dado evento principal, elas sero mencionadas,

    nem que seja somente para frisar a sua existncia.

    Porm, num espao to limitado como o permitido para esta dissertao, tambm seria

    difcil abordar a totalidade da trama do Ciclo Troiano. Faz-lo implicaria no s estudar e

    analisar um nmero proibitivo de fontes, mas tambm reconstruir uma sequncia que

    principiaria pouco antes da primeira destruio de Tria por Hracles e terminaria depois da

    morte de Ulisses. Para isso at existiria, imperativamente, a necessidade de considerar todas

    as evidncias retiradas de ambos os Poemas Homricos, cada um deles, por si s, difcil de

    tratar no espao de uma s dissertao. Foi para evitar esses dois grandes problemas que se

    impuseram, portanto, algumas limitaes ao estudo do tema.

    Em primeiro lugar, as obras analisadas ao longo deste trabalho foram escolhidas por

    serem as que mais informao directa apresentam em relao ao tema em estudo ou por

    conterem alguns pormenores de especial importncia. Se as informaes relativas ao Ciclo

    Troiano no se esgotam nestas obras, ou mesmo nas referncias que aqui sero analisadas, a

    constituio desse corpus foi uma condio sine qua non para a reconstruo dos vrios

    episdios, j que, sem essa limitao, as obras em anlise teriam, muito provavelmente, de ser

    quase tantas quantas as que nos chegaram da Antiguidade.

    Depois, os episdios a serem estudados foram limitados queles que tomavam lugar

    entre os dois Poemas Homricos. Essa foi uma limitao imposta para evitar o estudo de toda

    a trama da Ilada e da Odisseia o que, por si s, j seria uma tarefa herclea mas tambm

    para permitir que qualquer leitor pudesse, no futuro, pegar nestas linhas para apreender o que

    tomava lugar entre os dois textos que, muito provavelmente, at j conhece com alguma

    profundidade. Em seguida, de entre esses dois limites basilares, foram escolhidos os episdios

    mais significativos, de forma a que nenhum dos eventos principais fosse esquecido, mas que,

    tambm, no viesse a existir uma preocupao demasiado grande com a explorao de

  • 12

    elementos secundrios, caindo-se no erro de, por exemplo, dedicarmos longas linhas s armas

    usadas por Pentesileia ou anlise de extensos catlogos dos heris que ocuparam o interior

    do cavalo de Tria.

    Uma outra deciso tomada na realizao dessa dissertao foi o estudo da relao da

    literatura com a iconografia, pelo menos em relao aos episdios mais atestados na arte, por

    se tratar de elementos que no podem ser desprezados no estudo do Ciclo Troiano, visto que

    existem verses dos vrios mitos que somente nos chegaram atestadas dessa forma e sem as

    quais este estudo no poderia ficar completo.

    Assim se justifica o mtodo de trabalho seguido ao longo de toda esta dissertao, que

    muito deve importante obra de West (2013), mas pretende sobretudo tratar o tema do Ciclo

    Troiano assentando menos em conjecturas e mais nas evidncias directas fornecidas por

    diversas obras da Antiguidade.

  • 13

    2. O Ciclo Troiano e o problema do Eptome da Crestomatia de Proclo

    Ao longo do nosso percurso pessoal e acadmico provvel que tenhamos tido, por

    diversas vezes, de ler os Poemas Homricos e todos aqueles que j o tenham feito

    provavelmente tero notado que a trama constante nessas obras est incompleta. Para dar dois

    exemplos, na Ilada a morte de Aquiles repetidamente profetizada e Antloco tem um papel

    importante no canto 23. Ambas as figuras continuam vivas no final dessa obra, mas so

    representadas como estando mortas no decurso da Odisseia, e sobre a segunda dessas figuras

    apenas nos dito que a sua morte proveio do filho da clara Aurora (4.188). O que se ter

    passado, visto que o poeta nada de conclusivo nos diz em relao a esses desaparecimentos?

    para colmatar dificuldades como estas que ao estudo dos Poemas Homricos tende a

    ser tambm associado um Eptome da Crestomatia de Proclo, que, de uma forma geral,

    poder parecer a mais completa referncia aos eventos mitolgicos a terem lugar entre a

    Ilada e a Odisseia. Fala-nos da trama dos Poemas Cprios, da Etipida, da Pequena Ilada,

    do Saque de lion, dos Retornos e da Telegonia, um conjunto de obras que, quando associadas

    aos Poemas Homricos, cobririam ento toda a histria da Guerra de Tria. No entanto, este

    um texto que no pode ser aceite sem alguma relutncia, como iremos ver.

    Em primeiro lugar, o cdice Venetus A12

    preserva vrios esclios de textos homricos,

    juntamente com uma Vida de Homero, atribuda a Proclo, e os resumos dos vrios poemas

    picos mencionados acima (tambm atribudos ao mesmo autor), com excepo do relativo

    aos Poemas Cprios, cuja perda nesse cdice Severyns (1953: 121) atribuiu a um accident

    matriel, mas que ainda temos preservado em pelo menos oito outros manuscritos13

    . Na sua

    forma mais completa, esta sequncia de contedos consistente com o que sabemos da

    Crestomatia de Proclo, sobre a qual Fcio nos deixou escritas estas linhas essenciais:

    15. Os mais egrgios poetas do epos so Homero, Hesodo, Pisandro, Panasis e Antmaco.

    16. Desses, discorre, na medida do possvel, acerca da origem, da ptria e de algumas histrias

    particulares.

    17. Ento faz consideraes sobre o chamado ciclo pico, que se inicia pelo intercurso

    mitolgico entre Cu e Terra, a partir do qual geram a ele trs filhos centmanos e trs

    Ciclopes.

    12

    Tambm conhecido como Codex Marcianus Graecus 454. 13

    Sobre esses diversos manuscritos, e o que compe cada um deles, ver o completo estudo por A. Severyns

    (1953).

  • 14

    18. Passa por diversos aspectos concernentes s narraes mticas sobre os deuses dos gregos,

    e diz o que inclusive pode, at certo ponto, ser verdade em referncia histria.

    19. Fecha-se o ciclo pico medida que completo pela contribuio de diferentes poetas at

    o desembarque de Odisseu em taca, quando morto por seu filho Telgono, que no o

    reconhecera.

    20. Fala como os poemas do ciclo pico tm se conservado e recebido ateno de muitos no

    tanto por sua virtude quanto pela sequncia das aces nele contidas.

    21. Fala ento o nome e a ptria dos que se dedicaram ao ciclo pico.

    22. Fala ento acerca de certos poemas Cprios, como alguns os atribuem a Estasino de

    Chipre, outros lhes inscrevem Hegesino de Salamina. Outros dizem que Homero escreveu-

    os; deu a Estasino por obter-lhe a filha e, por causa de sua ptria, nomeou Cprias a obra. 14

    Sobre esta referncia que Fcio faz a essa obra de Proclo, no podemos deixar de

    frisar dois elementos importantes: se, inicialmente, o patriarca de Constantinopla nos diz que

    a obra que teve sua frente era composta por quatro livros, deles s resume os dois primeiros,

    dando-nos a entender que a fonte que consultou poderia j no se encontrar completa ou, por

    qualquer razo que no esclarece, decidiu apenas resumir os dois primeiros (cf. Severyns

    1938b: 258-260). Alm disso, Fcio refere esse ciclo pico constante na obra de Proclo,

    mas nunca diz quais eram as obras que o compunham, deixando-nos com um enorme vazio de

    informao, j que s nos reporta os eventos iniciais e finais dessa sequncia, sendo certo que

    os Poemas Cprios faziam parte daquele corpus.

    Tenha-se igualmente em conta que quase nada sabemos em relao ao autor desta

    Crestomatia. Desconhecemos em que fontes se baseou para construir o seu resumo desses

    poemas, se teria diante dos seus olhos as obras originais ou se antes recorreu a uma sinopse j

    existente. Tambm no evidente, alm da necessidade de continuidade temtica, qual teria

    sido o critrio para a escolha dos diversos poemas, levando-nos ao grande problema das

    fontes desse autor. Face ausncia de dados, s podemos julgar estes textos de Proclo pela

    tnue informao que eles nos oferecem e a que comeam a surgir inconsistncias. Se

    compararmos cada um desses resumos com os fragmentos e contedos dos textos que

    pretendiam resumir, iremos notar que contm diversas falhas, como j mostrava Monro

    (1884), de que damos alguns exemplos a seguir.

    Nas Histrias, Herdoto refere um episdio a ter lugar nos Poemas Cprios, em que a

    14

    Phot. Bibl. 239.15-22. Traduo de Gatti 2012: 112-113.

  • 15

    chegada de Pris15

    a Sdon teria sido acompanhada por leves ventos e um mar calmo (2.116-

    117), mas o resumo de Proclo diz-nos que uma tempestade enviada por Hera antecedia essa

    mesma chegada (cf. Monro 1884: 2).

    O resumo de Etipida relata que a morte de Tersites era seguida por uma purificao

    de Aquiles na ilha de Lesbos, mas nenhuma outra fonte que nos tenha chegado menciona

    qualquer vestgio desse episdio. Se nesta mesma obra que um esclio das stmicas de

    Pndaro dizia ter lugar a morte de jax (Aith. fr. 6), tanto um esclio dos Cavaleiros de

    Aristfanes como o resumo sequencial de Proclo transportam essa sequncia para os

    momentos iniciais da obra seguinte, a Pequena Ilada (Il. Parv. fr. 2). Sobre esta obra j

    sabemos um pouco mais, visto que Aristteles (Po. 1459a37) d um exemplo de vrias

    tragdias em que se poderiam basear os seus temas, que iriam desde o confronto pelas armas

    de Aquiles at aos regressos dos heris gregos. Seguia-se, segundo Proclo, a trama do Saque

    de lion e os Retornos. Pausnias (10.28.7) refere que este poema pico continha uma

    descrio do reino de Hades, mas o resumo que nos chega no faz qualquer referncia a esse

    episdio (cf. Monro 1884: 12, 19-20, 37).

    Estas divergncias, que apenas aqui so tratadas de uma forma muito geral, permitem-

    nos constatar dois problemas no eptome desta obra de Proclo. Face aos testemunhos relativos

    disputa pelas armas de Aquiles, podemos notar que no era apenas uma a obra que tratava

    cada episdio, havendo, portanto, por parte deste autor, ou das fontes a que ele teve acesso, a

    necessidade de truncar alguns passos das vrias obras, de forma a conseguir criar uma trama

    contnua e uniforme. Depois, e face ao testemunho da existncia de episdios que Proclo no

    menciona ou altera, podemos depreender que, por uma qualquer razo, esse autor (ou algum

    editor mais recente, como menciona Severyns 1928: 357-358) nem sempre seguiu os textos

    originais, seja por seu desejo prprio ou porque as fontes que tinha sua disposio tambm

    no os mencionava.

    Neste ltimo ponto, claro que se poderia argumentar em favor de uma possvel pouca

    importncia dos episdios alterados ou suprimidos, mas esse tambm seria um argumento que

    nos levaria a uma ainda maior imperfeio dos resumos, tornando-os ainda menos fiis, j que

    a trama dos textos originais, indubitavelmente, j tinha sido alterada para produzir um texto

    contnuo, em que nada se repetisse, mas em que tambm nada deixasse de fazer sentido.

    Por todas essas razes, parece-nos justo concluir que estes eptomes da Crestomatia de

    Proclo nem sempre respeitavam os textos originais que pretendiam resumir e, portanto, no

    15

    Tambm conhecido como Alexandre, sendo o nome Pris adoptado ao longo desta dissertao devido ao

    facto de ser o mais usual para esta figura.

  • 16

    totalmente correcto v-los como representantes fidedignos dos eventos mitolgicos que

    tomavam lugar entre os Poemas Homricos. Esta era uma ideia apoiada j h mais de um

    sculo por D. B. Monro, que afirmou o seguinte: we have to reckon with the possibility that

    the abstracts or arguments as given by Proclus are incomplete, if not erroneous that they

    have been tampered with in the interest of historical teaching (1901: 345).

    Como se ver ao longo desta dissertao, so muitos os autores que seguem as linhas

    gerais constantes nos resumos de Proclo, tornando evidente que alguns episdios estavam to

    patentes na mente dos leitores (e, num perodo anterior, ouvintes) que seria impossvel ignor-

    los. No entanto, como procuraremos mostrar no captulo seguinte, outros autores tambm

    optaram por se afastar, por uma ou outra razo, dessas ideias basilares, produzindo mltiplas

    verses dos mesmos episdios, numa tendncia que se propaga por muito mais de um milnio

    e que urge explorar, para que a reconstruo de cada um dos episdios a ter lugar entre os dois

    famosos Poemas Homricos seja to fiel quanto possvel.

  • 17

    3. Algumas fontes do Ciclo Troiano

    Este captulo da dissertao pretende examinar um conjunto de fontes relevantes para

    a reconstruo dos episdios que tomavam lugar na parte central do Ciclo Troiano. Estas

    fontes foram compiladas com base em dois critrios essenciais: a importncia geral da obra

    para o estudo do tema e a referncia a episdios especficos, de algum interesse, em obras que

    podero no se relacionar directamente com o tema em estudo. por essa segunda razo que,

    abaixo, sero apresentadas, de uma forma muito sucinta, cada uma das obras, para que o leitor

    tambm possa conhecer o contexto em que cada referncia tem lugar.

    Se somente se dissesse, por exemplo, que Partnio faz uma grande referncia ao mito

    de Pris e Enone, sem se frisar que feita numa obra que compila diversas histrias de amor,

    tornar-se-ia difcil associar o tema s Cartas das Heronas, de Ovdio, e essa uma ligao de

    alguma importncia, j que nos permite constatar que aquelas duas figuras, enquanto par

    romntico, tinham alguma expressividade no primeiro sculo da nossa era. No entanto,

    mesmo esta ligao tambm pouco nos diria sobre a totalidade dos episdios do Ciclo Troiano

    que incluem ambas as personagens e da a necessidade de a associar a textos como os de

    Quinto de Esmirna e de Tzetzes, que do maior nfase e detalhe aos vrios momentos em que

    Pris e Enone se cruzam.

    Importa esclarecer, porm, que algumas obras no foram consideradas neste estudo, ou

    pelo estado fragmentrio em que nos chegaram ou por no estarem disponveis, neste

    momento, numa traduo completa. Textos mais antigos, como os de Simnides e Baqulides,

    embora apresentem algumas referncias a episdios do Ciclo Troiano16

    , dado o estado actual

    do corpus que se preserva, nem sempre permitem conhecer as circunstncias em que estas

    ocorriam, o que impossibilitaria o seu estudo de forma contextualizada, como proposto no

    pargrafo anterior. Us-las nesta reconstruo, nessa forma fragmentria, poderia levar-nos a

    cometer erros. Seria como, dispondo somente de alguns fragmentos exguos de Satyricon,

    deduzssemos que existia uma verso dos mitos de Tria em que Diomedes e Ganimedes eram

    irmos, em que os inimigos dos Troianos no eram os Aqueus e em que era Agammnon a

    raptar Helena (cf. Petr. 59) algo que somente o conhecimento do contexto na obra latina

    permite verificar ser totalmente falso, uma vez que os episdios retratados constituem stiras

    dos seus originais homricos.

    16

    Vejam-se, a ttulo de exemplo, a chamada Elegia de Plateias, de Simnides, que parece evocar a morte de

    Aquiles (cf. Ferreira 2013a: 295-298), e o fragmento 20D de Baqulides, que contm uma possvel referncia

    ao mito de Enone.

  • 18

    Tambm o comentrio de Srvio Eneida, que seguramente poderia dar mais alguma

    luz ao tema, visto no ser de fcil acesso nem existir uma traduo integral, no pde ser

    consultado para esta pesquisa. De forma semelhante, as Quiladas, de Tzetzes, tiveram de ser

    deixadas de parte, no s pela obra ainda no existir traduzida, mas tambm porque o autor

    abordava o tema nas suas Posthomricas, sendo muito provvel que pouco de adicional, ou de

    diferente, aqui tivesse para oferecer.

    Segue-se, ento, o elenco das obras utilizadas para o estudo dos vrios episdios da

    parte central do Ciclo Troiano, bem como o resumo das informaes que, de um modo geral,

    podem ser extradas de cada uma17

    . Procurmos estabelecer, na medida do possvel, uma

    organizao cronolgica, mas h que ter em conta que, como sabido, para muitas delas

    bastante difcil atribuir uma data concreta. Nestes casos, optou-se por uma data aproximada,

    podendo haver sobreposies cronolgicas entre duas obras, sem que isto queira dizer que a

    apresentada em primeiro lugar foi, sem margem para quaisquer dvidas, composta antes da

    segunda.

    3.1. A Ilada

    Sendo que o limite inferior para o tema tratado nesta dissertao o do trmino da

    Ilada, a um leitor comum poderia parecer estranho que esta obra j tivesse informao sobre

    os eventos que tomam lugar aps o final da sua trama, mas isso at ocorre neste poema

    homrico. E toma lugar, no s atravs do que nos vai sendo revelado pelo narrador, mas

    tambm pelas vozes dos deuses e dos heris.

    O poeta revela-nos os eventos passados com Filoctetes, sugerindo que a figura voltaria

    a ser necessria para os Aqueus (2.718-725). Menciona tambm a queda de Tria aps 10

    anos de conflito (12.13-16). O adivinho Calcas diz-nos que a guerra durar 10 anos (2.323-

    329), Heitor parece j conhecer alguns dos eventos futuros (6.448-455), Zeus diz que a cidade

    troiana ser tomada por conselho de Atena (15.69-71), o deus dos mares anuncia que Eneias

    sobreviver a todo o confronto (20.302-308), Hera e Xanto referem antecipadamente o fogo

    destruidor de Tria (20.313-317, 21.375-376), e o modo como morrer Astanax acaba por ser,

    de alguma forma, profetizado (24.727-735).

    Uma meno especial dever ser feita morte de Aquiles. Embora esse episdio j no

    tenha lugar, de forma directa18

    , na Ilada, referido com frequncia19

    , chegando a ser

    17

    As informaes recolhidas neste captulo sero discutidas no captulo seguinte. 18

    Poderia ver-se na morte de Ptroclo uma referncia indirecta de Aquiles, cf. Nagy 2013: 146-168.

  • 19

    anunciado pela voz dos cavalos divinos do heri (19.408-410, 416-417), e sendo inclusive

    revelado o local da sua morte (22.359-360). A insistncia neste tema, importa frisar, parece

    relacionar-se directamente com as estratgias narrativas do poema homrico, em especial com

    a necessidade de introduzir algum suspense na trama, como observa Scodel (2006: 52).

    3.2. A Odisseia

    A Odisseia tem como tema o nostos de Ulisses, o ltimo dos heris gregos a regressar

    a casa aps a queda de Tria. Sendo essa partida o limite superior para o tema tratado nesta

    dissertao, tal como no poema pico anterior, poderamos supor que pouca informao

    relevante se encontraria nesta obra. Ainda assim, se o seu autor nunca relata, de uma forma

    completa, todos os eventos da guerra, esta obra que nos d mais informaes sobre algumas

    peripcias do conflito.

    Entre os eventos relevantes, -nos aqui contada a partida de Tria (3.137-201), o

    casamento do filho de Aquiles com uma filha de Menelau (4.1-14), a morte de Antloco

    (4.188), a invaso nocturna da cidade por Ulisses (4.235-264), dois episdios que tomaram

    lugar no interior do cavalo de Tria (4.265-289, 11.504-537), a viagem de Menelau ao Egipto

    e as aventuras que l ocorrem (4.351-586), a construo do cavalo e a invaso de Tria

    (8.482-520), a morte de Agammnon (11.404-434, 24.95-99), a zanga de jax que parece

    manter-se aps a morte do heri na sequncia do julgamento pelas armas de Aquiles

    (11.541-567), a recuperao do corpo de Aquiles, bem como o seu funeral (24.35-94).

    3.3. Os fragmentos da Etipida, da Pequena Ilada, do Saque de lion e dos Retornos

    Se, como foi anteriormente referido, o Eptome da Crestomatia de Proclo preserva um

    resumo do contedo de quatro poemas que cobriam os episdios do Ciclo Troiano aqui em

    anlise, a referncia a elas no se esgota nesse recurso. A mais recente publicao da Loeb

    Classical Library sobre o tema, editada por Martin West e publicada em 2003, acolhe seis

    fragmentos da Etipida, trinta e dois da Pequena Ilada20

    , sete do Saque de lion e treze dos

    Retornos. No entanto, h que frisar que esses fragmentos, salvo raras excepes, pouco

    podem contribuir para a reconstruo dos episdios onde provavelmente se inseriam.

    Para dar um pequeno exemplo ilustrativo dessa situao, o fr. 2 da Etipida preserva

    19

    Il. 9.410-416, 18.59-60, 18.96, 18.282-283, 18.329-335, 18.440-441, 19.420-422, 21.110-113, 21.277-278,

    23.80-81, 24.83-86, 24.131-132. 20

    O nmero pode ser ilusrio, porque nem todos estes textos so, de facto, fragmenta. Os frs. 15-27, por

    exemplo, correspondem descrio de Pausnias (10.25.5-27.2) da pintura mural da Lesche dos Cndios,

    edificada em Delfos, da autoria de Polignoto.

  • 20

    duas frases dirigidas a uma personagem feminina, muito provavelmente Pentesileia (cf.

    Bernab Pajares 1979: 152), mas no sabemos em que circunstncias ocorriam nem quem as

    dirigia herona, tornando esse fragmento importante para o estudo do texto dessa obra, mas

    pouco relevante para a reconstruo de quaisquer episdios relativos famosa Amazona.

    No obstante, visto que, em muitos casos, tambm constituem as mais antigas fontes

    que temos para alguns desses episdios, e que estes fragmentos pertenciam, segundo

    sabemos, s obras que inicialmente tratavam as mais diversas sequncias relevantes para o

    estudo aqui empreendido, os testemunhos que essas linhas tm para nos facultar sero usados

    no captulo seguinte desta dissertao sempre que os elementos preservados o justifiquem.

    3.4. A Oresteia, de squilo

    A Oresteia, de squilo, trilogia composta por trs tragdias Agammnon, Coforas e

    Eumnides revela o destino do rei de Micenas aps o seu retorno a casa, a que se seguem as

    desventuras da sua famlia. O regresso propriamente dito ocorre logo na primeira pea, com

    Agammnon e a troiana Cassandra a serem mortos por Clitemnestra, que procurava no s

    vingar o sacrifcio da filha, Ifignia, e a evidente traio do marido, mas tambm prolongar a

    sua relao com o seu amante Egisto. Na segunda pea, Orestes, filho de Agammnon,

    regressa e, por ordem de Apolo, vinga a morte do pai, manchando as suas mos com o sangue

    da vingativa me e do amante desta. Depois, na terceira pea desta trilogia, Orestes que

    acaba por buscar a sua prpria redeno, face s perseguidoras Ernias.

    Mais do que se tentar resumir o contedo das trs tragdias de uma forma que no

    perca todos os seus elementos essenciais, o importante acaba por ser o facto de estas peas

    serem as mais antigas que nos chegaram, e que preservam toda a trama do regresso de

    Agammnon, bem como os eventos que se lhe seguem, podendo ser usadas para obter mais

    informao sobre cada um desses episdios. Deve-se, porm, ter a prudncia de supor que o

    tragedigrafo, como os que se lhe seguiram, ter feito alteraes aos mitos originais21

    , pelo

    que os seus versos no preservam, necessariamente, uma sequncia de eventos como estes

    teriam lugar em fontes mais antigas.

    21

    A essas alteraes, que so de grande importncia no episdio do regresso e da morte de Agammnon, se

    prestar ateno no captulo seguinte, quando discutirmos esse episdio.

  • 21

    3.5. As peas perdidas de squilo

    A notcia da Suda sobre squilo regista que produziu noventa peas, e se so apenas

    sete as que nos chegaram de forma completa, mesmo a pouca informao que temos em

    relao s restantes j nos permite constatar que o poeta ateniense teria criado vrias obras

    sobre outros temas do Ciclo Troiano. Segundo West (2000) e Sommerstein (2009), entre elas

    contavam-se, pelo menos, o Concurso pelas Armas, Filoctetes (a histria da ida desse heri

    para Tria), Mmnon, Mulheres da Trcia (o suicdio de jax), e Proteu (o confronto de

    Menelau com este deus, durante o regresso a casa), entre mltiplas peas relativas s

    aventuras de Aquiles. Se delas ainda subsistem alguns fragmentos, importa frisar que as

    informaes que nos podem dar so muito limitadas, pouco revelando sobre os mitos em que

    se baseavam.

    3.6. As odes de Pndaro

    Compostas por quatro livros de cantos triunfais, as odes de Pndaro22

    louvam os

    vencedores dos jogos pan-helnicos, mas nos seus versos fundem-se os actos dos vencedores

    elogiados com os prprios mitos dos Gregos. A I Olmpica, por exemplo, elogia Hiero,

    vitorioso na corrida de cavalos, mas trata tambm o mito de Plops (vv. 17-100), e atravs

    dessas narrativas mitolgicas que o autor acaba por evocar diversos episdios do Ciclo

    Troiano, sendo aqui de especial importncia a morte de Antloco por Mmnon (Pyth. 6.25-35)

    e as mortes de jax e Neoptlemo (Nem. 7.25-45, 8.20-32).

    Frise-se que, se o poeta tambm refere muitos outros episdios do Ciclo Troiano,

    como a construo das muralhas de Tria pelos deuses (Ol. 8.31-52), ou algumas das batalhas

    de Aquiles (Ol. 2.81-83, Isth. 5.38-44), esses j so elementos pouco relevantes para o

    trabalho que se ir empreender no captulo seguinte, mas que, ainda assim, nos permitem

    constatar a contnua popularidade dos temas troianos no tempo de Pndaro.

    3.7. jax, de Sfocles

    nesta tragdia que Sfocles23

    aborda o tema da loucura e suicdio de jax, sendo

    esta uma das que melhor preserva esses episdios. O seu tratamento comea pouco depois do

    desafio pelas armas de Aquiles, com o heri a, eventualmente, reconhecer a sua prpria

    22

    Registe-se o que afirma sobre este poeta Bernab Pajares (1979: 73), que o considera normalmente muy fiel

    a la temtica del Ciclo. 23

    provvel que este tragedigrafo tenha escrito as suas peas sem fazer grandes alteraes aos mitos

    originais, cf. West 2013: 45.

  • 22

    loucura, e a acabar por se suicidar, usando como arma a espada que lhe tinha sido dada por

    Heitor. Naquela que poderemos considerar uma segunda parte da intriga, surge a potencial

    traio desse heri (recorde-se que quando, enlouquecido, matou o gado, pretendia atingir os

    seus companheiros), com a possibilidade de ele no ser sepultado, mas atravs de um

    discurso final de Ulisses que Menelau e Agammnon acabam por aceitar enterrar o falecido

    companheiro.

    A tragdia sofocliana constitui, assim, uma fonte fundamental para o estudo do

    episdio do suicdio de jax, bem como dos eventos que se lhe seguiram.

    3.8. Filoctetes, de Sfocles

    Sfocles retomava nesta tragdia o episdio do Ciclo Troiano em que o heri

    homnimo persuadido a voltar Guerra de Tria. Nesta verso, ele interpelado mais

    directamente por Neoptlemo, mas tambm tem de enfrentar a figura de Ulisses, que aqui age

    como opositor, defendendo a obteno do arco e flechas de Hracles atravs de um

    subterfgio. Inicialmente Filoctetes pretendia voltar Grcia, mas aps uma apario do

    famoso heri dos doze trabalhos acaba por ser convencido a ir para Tria (vv. 1408-1454). Se

    essa interveno divina poder ter sido uma inovao de Sfocles, o resto da pea permite-nos

    ter acesso a, pelo menos, uma das verses do episdio. Contudo, sabemos que no era a nica,

    variando as peas dos diversos autores tambm na principal figura que dialogava com o

    protagonista24

    .

    3.9. As peas perdidas de Sfocles

    A Suda indica que Sfocles produziu, pelo menos, 123 peas. De entre os ttulos que

    nos chegaram (cf. Lloyd-Jones 1996), contam-se outras peas sobre figuras como Mmnon,

    jax, Aquiles, Andrmaca, Cassandra, Eurpilo e at Polxena. Apesar de ser pouca a

    informao que temos sobre cada uma delas, isto permite-nos compreender que tambm para

    este tragedigrafo os temas do Ciclo Troiano eram de uma grande importncia.

    3.10. Andrmaca, de Eurpides

    Esta pea de Eurpides apenas aborda uma parte do final do Ciclo Troiano. Centra-se

    em Andrmaca, a antiga esposa do falecido Heitor, mas numa fase da sua vida muito posterior

    24

    Como veremos mais frente, Don Crisstomo compara trs diferentes peas baseadas neste mesmo tema e

    esta uma das divergncias mais importantes.

  • 23

    queda de Tria, quando se torna cativa de Neoptlemo. dessa anterior relao que nasce

    uma animosidade com Hermone, filha de Menelau e Helena, e actual esposa do heri, tema

    de que trata grande parte desta tragdia. Porm, nos seus instantes finais, tambm nos conta a

    morte de Neoptlemo e a forma como esta acaba por surgir das mos de Orestes (vv. 1080-

    1160), sendo uma fonte importante para esse episdio especfico.

    3.11. Electra, de Eurpides

    Eurpides tratou nesta obra o regresso de Orestes que, juntamente com a irm, acabar

    por matar Egisto e a prpria me, Clitemnestra, com a inteno de vingar o assassnio do pai,

    que tinha sido planeado pelos deus amantes (vv. 10-20), como recordado no incio da

    tragdia. Poderamos, ento, pensar que esta pea apenas desenvolve o tema da morte de

    Agammnon, mostrando exclusivamente os eventos que a esta se seguem, mas so vrios os

    momentos em que os heris recordam a morte do pai, dando-nos pistas preciosas sobre como

    esse episdio se desenrolou na viso deste poeta.

    3.12. Hcuba, de Eurpides

    Os eventos tratados nesta tragdia de Eurpides ocorrem aps a queda de Tria e

    podem ser divididos em trs sequncias principais: o sacrifcio de Polxena (vv. 59-669); a

    descoberta do corpo de Polidoro e a vingana de Hcuba (vv. 670-1239); e as profecias do

    futuro (vv. 1240 sqq.), ou seja, uma anteviso da metamorfose de Hcuba e do assassnio de

    Cassandra e Agammnon. Esta , nesse sentido, uma obra que nos relata os vrios episdios

    que tiveram lugar aps a conquista de Tria, mas antes da partida dos Gregos, sendo de

    grande importncia na reconstruo dessa sequncia.

    3.13. Helena, de Eurpides

    Esta a tragdia de Eurpides que nos preserva, mais directamente, a ideia singular de

    que Helena no estava presente na cidade durante a Guerra de Tria. A mulher de Menelau

    estaria, ento, no Egipto, enquanto que a figura vista em Tria era apenas um mero fantasma

    (eidolon) enviado por Hera e outras duas deusas (vv. 700-735). Partindo dessa premissa, o

    autor depois conta-nos como Menelau escapa das terras do Egipto com a sua verdadeira

    esposa (que, segundo esta verso, nada teria a ver com a guerra).

    Esta fonte remete-nos, portanto, para o episdio do regresso de Menelau, mas importa

    tambm mencion-la como a mais conhecida das obras que referem a ideia da ausncia de

  • 24

    Helena de Tria25

    , o que a desculpabilizaria de toda a guerra.

    3.14. As Troianas, de Eurpides

    Abordando as ltimas horas das cativas troianas na terra em que viveram, esta tragdia

    poderia bem ser definida como uma colectnea de lamentos, em que Hcuba vai sendo

    confrontada com os ltimos eventos a terem lugar em Tria, at ao momento em que a anci e

    as suas companheiras so levadas para os navios. Nesse sentido, As Troianas constituem uma

    obra complexa, pois, atravs das muitas menes de personagens, revelam-nos muita

    informao sobre vrios episdios do Ciclo Troiano, quer sobre aqueles que j tinham

    ocorrido quer sobre os que viro a ter lugar mais tarde, aqui notavelmente anunciados atravs

    das profecias proferidas por Cassandra.

    3.15. Orestes, de Eurpides

    Se nesta tragdia que Eurpides continua a histria de uma outra obra, Electra,

    poderia parecer-nos que o tema se comea a afastar demasiado do cerne do Ciclo Troiano e

    isso seria difcil de negar. Porm, os instantes finais desta pea tambm apresentam uma

    verso menos conhecida sobre o destino de Helena: condenados morte pelo matricdio,

    Orestes e Plades decidem matar a rainha de Esparta e raptar a sua filha; porm, a esposa de

    Menelau desaparece misteriosamente e Apolo quem acaba por revelar que Helena foi

    colocada entre as estrelas, como uma nova deusa, pelo que Menelau deveria tomar uma nova

    esposa (vv. 1629-1639). Nenhum outro autor parece preservar esta verso do episdio, sendo

    essa a principal razo para a sua meno aqui.

    3.16. As peas perdidas de Eurpides

    Em relao s obras de Eurpides, a notcia da Suda pouco segura, registando que o

    poeta comps 75 ou 92 peas, sobre as quais nos dito que 77 (sic) sobreviviam na poca de

    escrita desse lxico, ou seja, no final do sculo X. At ao nosso tempo, porm, chegaram

    menos de 20, mas o estudo dos fragmentos existentes, como as edies de Collard (2008,

    2009), revela-nos algumas informaes sobre as peas perdidas. Com ttulos como Epeu ou

    Filoctetes, seria improvvel que este autor no tivesse escrito mais algumas peas sobre temas

    25

    consensual, porm, que este tema seja anterior ao tragedigrafo ateniense, tendo sido tratado por

    Estescoro num ou mais poemas, de que apenas nos chegaram fragmentos (fr. 192 PMG; cf. Pulqurio 1974,

    West 2013: 92-93). Relembre-se que esta verso do episdio tambm foi retomada por Lcofron (vv. 109-

    138) e Filstrato (Her. 25.10), entre outros.

  • 25

    do Ciclo Troiano.

    3.17. Alexandra, atribuda a Lcofron

    Possivelmente escrito por Lcofron26

    , este poema de 1474 versos pretendia ser um

    delrio proftico por parte de Cassandra27

    , que um escravo depois reconta ao pai desta, o rei

    Pramo. O facto de se tratar de um orculo, em que aos eventos futuros so feitas diversas

    aluses veladas, justifica a complexidade de estudo desta obra, com quase todos os versos a

    serem de difcil compreenso, mantendo-se um pouco dbios mesmo quando se decide

    recorrer a esclios.

    No obstante essa dificuldade, e o facto de a obra fazer referncias indirectas a um

    nmero elevado de mitos, muitos deles pouco conhecidos, h que ter em considerao que

    este texto tambm retrata, de forma mais compreensvel, vrios episdios do Ciclo Troiano,

    especialmente aqueles que tinham lugar aps a destruio da cidade de Tria, ou seja, os

    nostoi dos heris gregos. Visto que, como os instantes finais de Alexandra nos do a entender

    (vv. 1451-1474), este delrio ocorria antes da tomada da cidade, esse destaque faz todo o

    sentido, j que nos apresenta a figura da profetisa ainda a tentar evitar os acontecimentos que,

    como sabemos e como ela prpria tem conscincia, estavam destinados a suceder.

    , portanto, para o estudo desses ltimos episdios, mais do que para o tratamento de

    todo o Ciclo Troiano, que esta obra se mostra importante. Apesar de tambm fazer referncia

    a eventos anteriores conquista da cidade, a informao que sobre eles nos dada muito

    escassa. Se aos feitos de Pentesileia e morte de Tersites o autor dedica pouco mais que trs

    versos (vv. 994 sqq.), o nostos de Menelau abordado com alguma ateno (vv. 820-876) e o

    de Ulisses em mais de 150 versos (vv. 648-819), exemplo que permite constatar a importncia

    da obra para o estudo dos regressos, que aqui no se esgotam com as figuras principais, mas

    abordam tambm as aventuras de personagens secundrias e menos conhecidas, como Nireu

    (vv. 1011-1026) ou Epstrofo (vv. 1067-1082).

    26

    O artigo do OCD revela alguma incerteza relativa a esta autoria, referindo que The author, whose true name

    and place of origin are probably concealed beneath the impenetrably enigmatic biographical tradition

    concerning Lycophron, probably used the name, and some of the literary substance, of Lycophron (a) [autor

    alexandrino do sculo III a.C.], not in emulation, but as an ironic reminiscence of the earlier writer, who had

    combined the practice of tragedy and the elucidation of comedy, cf. P. M. Fraser, OCD, s.v. Lycophron (2). 27

    Tambm conhecida por Alexandra, nome de onde provm, naturalmente, o ttulo da obra. Vide H. J. Rose, J.

    R. March, OCD, s.v. Cassandra or Alexandra.

  • 26

    3.18. Eneida, de Virglio

    O mais famoso dos poemas picos latinos tem como tema central a viagem que o

    troiano Eneias empreendeu aps a destruio da sua ptria, tornando possvel colocar a sua

    trama, cronologicamente, como tendo lugar aps o trmino do Ciclo Troiano. No entanto, se a

    demanda deste heri s se concretiza aps a queda de Tria, ao longo da obra tambm surgem

    diversas aluses aos eventos que a antecederam, algo de natural numa epopeia que, como se

    sabe, pretendeu seguir o modelo homrico. Alm dessas menes pontuais, de notvel

    importncia todo o contedo do segundo livro, no qual o filho de Anquises, j na corte da

    rainha Dido, relata as aventuras por que passou at ento, principiando a sua narrativa com a

    histria do famoso estratagema do cavalo e prolongando-a at eventos que ultrapassam os

    temas abordados nesta dissertao.

    Nesse contexto, parece-nos pertinente saber quais teriam sido as fontes de Virglio

    para os vrios episdios da queda de Tria que trata no seu poema. Se, como observa Knight

    (1932), lgico considerar que muito provavelmente o poeta latino teria ao seu dispor o

    mesmo material que, sculos mais tarde, tambm seria usado por Quinto de Esmirna, nada nos

    permite saber, pelo menos com base nas informaes que agora ainda temos, quais teriam sido

    essas fontes especficas, sendo esta uma questo de impossvel resoluo (cf. Knight 1932:

    189).

    3.19. As Fbulas de Higino

    A colectnea, pela vasta quantidade de mitos que preserva, anuncia-se, partida, um

    manancial da maior importncia, mas contm um grave problema que reside no tratamento

    pouco sistemtico que o autor28

    d ao tema. Se, muitas vezes, mostra adoptar uma sequncia

    lgica, associando mitos que, pela sua trama, se deveriam suceder, noutros casos tambm os

    separa. Alm disso, ignora elementos que seriam importantes, simplificando demasiado a

    narrativa mitolgica, e chega at a referir verses contraditrias.

    Ainda assim, as Fabulae transmitem-nos numerosos detalhes relativos a personagens e

    eventos da Guerra de Tria Anquises (94), Filoctetes (102), a morte de Aquiles e a disputa

    pelas armas desse heri (107), o estratagema do cavalo (108), Polxena (110), Hcuba (111),

    28

    Pouco se sabe sobre este autor, com o OCD a apenas nos dizer que Two extant Latin works are attributed to

    a Hyginus [Fabulae e Astronomica] who cannot be identified with Augustus freedman (Hyginus (1)) or with

    the gromaticus (Hyginus (4), e que a obra sobre mitologia was abbreviated, perhaps for school use, and

    has suffered later accretions; its absurdities are partly due to the compiler's ignorance of Greek, cf. C. J.

    Fordyce, OCD, s.v. Hyginus (3).

  • 27

    Nuplio (116), Clitemnestra (117), Proteu (118), Neoptlemo (123), Laocoonte (135) e a

    morte de Defobo (240) permitindo constatar que estava bem familiarizado com os vrios

    episdios do Ciclo Troiano, conhecendo inclusive mltiplas verses de alguns deles. Isto

    particularmente evidente nas menes morte de Aquiles, pois se, numa primeira sequncia,

    afirma que este heri foi morto por Apolo sob a forma de Alexandre Pris (107),

    posteriormente tambm atribui esse feito s figuras de Pris e Defobo (110), estando o deus

    completamente ausente da cena. No nos dada qualquer explicao para essa divergncia de

    relatos, sendo a falta de comentrios por parte do autor uma das caractersticas desta

    colectnea mitolgica.

    3.20. Paixes de Amor, de Partnio

    O poeta grego, do sculo I a.C., principia a sua obra explicando o porqu de a ter

    escrito segundo afirma, pretendia preservar, numa forma muito simples, diversas histrias

    de amor, para que o seu amigo Cornlio Galo tivesse fontes de inspirao para a sua poesia

    e com frequncia chega a mencionar os recursos consultados para cada episdio. Entre esses

    vrios relatos contam-se a breve referncia a um filho de Ladice que acabaria por sobreviver

    a toda a guerra (16) e dois relativos s figuras de Enone, Pris e Helena (cf. Leo 2012: 25),

    que aqui se apresentam com alguma importncia adicional.

    O primeiro desse relatos (4) refere os amores de Enone e Pris, com a ninfa j a

    profetizar o seu prprio abandono e o filho de Pramo a negar que alguma vez o viesse a fazer.

    Anos mais tarde, quando j amava Helena, Pris atingido por uma seta de Filoctetes e,

    lembrando-se das profecias da ninfa, aproxima-se novamente dela, em busca de uma cura.

    Enone recusa prestar-lhe ajuda, deixando-o falecer antes de tirar a sua prpria vida.

    No segundo relato (34) menciona a existncia de um filho de Pris com Enone, Crito,

    que enviado para Tria e acaba por se apaixonar por Helena. Quando o prprio pai descobre

    essa inteno amorosa, mata-o. Uma outra verso, citada por Partnio e atribuda a

    Nicandro29

    , d a este jovem a mesma paternidade, mas indica como me Helena.

    Estes dois relatos de Partnio levam-nos a supor que o tringulo amoroso Helena

    Enone Pris tinha alguma popularidade no sculo I a.C.30

    , chegando a ser atribudo a este

    um filho com um dos elementos femininos.

    29

    Provavelmente Nicandro de Clofon, poeta do sculo II a.C. Dele nos chegaram dois poemas didcticos,

    nenhum deles a fonte referida por Partnio. Vide J. Scarborough, OCD, s.v. Nicander. 30

    Como veremos em seguida, tambm Ovdio e Cnon mencionam as mesmas figuras.

  • 28

    3.21. Cartas das Heronas, de Ovdio

    As Heroides de Ovdio assumem a forma de quinze epstolas, dirigidas por heronas

    famosas aos seus amados ausentes, sendo que trs cartas incluem a resposta do elemento

    masculino. Se so cinco as relativas a eventos da Guerra de Tria, somente duas destas nos

    apresentam informaes que podem ser consideradas relevantes para os temas em estudo.

    Na carta com que se inicia a obra Penlope faz uma aluso a Antloco ser derrotado

    por Heitor (vv. 15-16), mas poder tratar-se de uma mera possibilidade avanada pela saudosa

    rainha, mais do que uma verso menos conhecida da morte do guerreiro grego. Embora a

    esposa de Ulisses no faa qualquer referncia directa aos regressos dos outros heris, d a

    entender que todos se encontram j em casa e menciona diversos eventos que tm lugar nos

    Poemas Homricos.

    Na quinta epstola recontada parte do mito de Enone, que acima j resumimos. Pelas

    aluses que faz, nomeadamente figura de Heitor, depreende-se que a ninfa teria redigido a

    carta quando os eventos da Ilada ainda estavam a ter lugar, mas j deixa transparecer a

    mgoa que sentir mais tarde, quando for novamente abordada pelo heri que amou e por

    quem foi deixada a favor da legtima esposa de Menelau.

    3.22. Metamorfoses, de Ovdio

    De uma forma muito sucinta poderamos dizer que este poema de Ovdio um dos

    mais preciosos para o estudo da mitologia grega e latina, j que preserva um grande

    quantidade de mitos, muitos deles pouco conhecidos, e f-lo de uma forma conexa, invulgar

    nas obras que nos chegaram. O valor da obra pode ser facilmente constatado se tivermos em

    conta a sua influncia na Idade Mdia, em que serviu de inspirao para obras como Ovide

    Moralis, nas quais aos antigos mitos eram atribudas moralizaes apropriadas para uma

    audincia crist.

    Por conseguinte, se so muitos os mitos que o poeta latino tratou nesta obra, no

    contexto do Ciclo Troiano acabam por ser especialmente importantes os livros 12 e 13, nos

    quais o autor narra os episdios da morte de Mmnon (13.576-622) e de Aquiles (12.579-

    628), o desafio pelas armas deste heri (13.1-381), a morte de jax (13.382-398), a queda de

    Tria (13.399-428), a morte de Polxena (13.429-480) e o destino final de Hcuba (13.481-

    575).

    De uma forma geral, os episdios retratados por Ovdio tendem a seguir as linhas

    gerais dos seus predecessores, acrescentando, por vezes, algumas metamorfoses trama,

  • 29

    como o caso da flor gerada quando jax se suicida. A presena de uma transformao

    poder, em muitos casos, ter sido uma inovao de Ovdio, no se tratando, indiscutivelmente,

    de um elemento que j ocorria nas verses mais antigas dos mesmos mitos.

    3.23. Narraes, de Cnon

    Este um texto que no nos chegou, mas que Fcio leu e resume, de uma forma

    alargada, na sua Biblioteca, cdice 186. Entre os vrios episdios mitolgicos tratados por

    Cnon31

    estariam o da relao entre Pris e Enone (186.23) e o destino de Helena aps a

    morte do prncipe troiano (186.34). Esta obra permite-nos, portanto, continuar a estabelecer a

    importncia da relao entre Pris e Enone no incio da nossa era.

    3.24. Agammnon, de Sneca

    Se so vrios os autores que se focaram no regresso e morte de Agammnon, esta

    tragdia de Sneca f-lo com maior nfase nas figuras de Clitemnestra e Egisto, cuja relao

    ocupa grande parte da pea e d-nos pistas sobre as ideias esticas do autor, para quem a

    morte acaba por ser uma espcie de libertao (v. 797). A trama, de uma forma mais geral,

    segue o tratamento do mito dos seus antecessores, mas no deixa de ser curioso o facto de

    Cassandra no morrer logo aps Agammnon, sendo levada para a sua morte nos momentos

    finais da pea (v. 1012ff.).

    3.25. As Troianas, de Sneca

    Esta obra retoma a mesma temtica de duas tragdias de Eurpides, As Troianas e

    Hcuba. Nesse sentido, tanto a morte de Astanax como a de Polxena tem aqui um papel

    central e so esses os dois eventos, mais do que os lamentos das Troianas (que ento se viam

    no seu ltimo dia nessa cidade ento cada), que vo desenvolvendo o enredo, no qual tm

    papel relevante as reflexes filosficas sobre a vida e a morte (ver, por exemplo, os vv. 371-

    409), como parece ser caracterstico das tragdias de Sneca.

    31

    Sobre Cnon o OCD informa que era author of 50 mythical 'Narratives' (Diegeseis) dedicated to King

    Archelaus (5) Philopator (or Philopatris) of Cappadocia (36 BCAD 17), sendo possvel atribuir-lhe uma

    data prxima ao incio da nossa era. Vide J. S. Rusten, OCD, s.v. Conon (3).

  • 30

    3.26. A Biblioteca, atribuda a Apolodoro

    Este texto, que j era atribudo a Apolodoro por Fcio (Bibl. 186.52), pretendia

    preservar todas as histrias dos Gregos, como informava um epigrama a constante32

    , e,

    mesmo na sua forma incompleta, talvez constitua uma das mais importantes compilaes

    mitolgicas que nos chegaram at aos dias de hoje.

    O primeiro livro comea com a criao dos deuses e o ltimo, preservado parcialmente

    sob a forma de um eptome, termina com os eventos respeitantes a Ulisses aps a sua chegada

    a taca. Face a esse extenso e contnuo contedo temtico, torna-se claro que os episdios

    relevantes para esta dissertao aparecem representados na Biblioteca e, mesmo no estado em

    que agora se encontra, no deixa de ser bastante detalhada, estabelecendo uma viso geral

    bastante precisa do encadeamento temtico que separava os dois Poemas Homricos. Por isso

    dever, imperativamente, ser usada em qualquer tentativa de reconstruo do Ciclo Troiano.

    Se a sequncia de temas tratados na obra atribuda a Apolodoro at nos poderia levar a

    pensar num Ciclo pico, como o que Fcio afirma estar preservado na Crestomatia de

    Proclo, e as semelhanas entre os dois eptomes so significativas, devemos concordar com

    Burgess (2001: 16-17) e West (2013: 13-16), que defendem ter existido alguma relao entre

    as duas obras. Se no preservam uma trama totalmente igual, dificilmente se poder negar as

    aproximaes detectadas entre elas, sendo legtimo supor que os seus autores tero consultado

    uma fonte comum.

    3.27. Discursos de Don Crisstomo

    De entre os oitenta tpicos que Don Crisstomo abordou nos seus discursos contam-

    se alguns que podem ser vistos como relevantes para o tema tratado neste trabalho.

    O discurso 11 representa alguma complexidade, na medida que o autor critica Homero

    e as suas obras, sendo, porm, difcil compreender se estaria a faz-lo de uma forma sincera

    ou a recorrer stira. Ao longo dessas linhas refere-se a diversos eventos que tm lugar no

    Ciclo Troiano, mas, eventualmente, decide expor a verso verdadeira dos acontecimentos,

    reportada por um egpcio, segundo a qual, por exemplo, Aquiles perde a vida em combate

    contra Heitor (11.97). Como esta pequena observao demonstra, este discurso apresenta um

    tratamento dos mitos troianos muito diferente do adoptado pela maioria dos seus antecessores.

    Nesse sentido, os testemunhos deste texto s foram considerados quando no se afastam

    32