teixeira neto, antonio. cartografia, território e poder

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  • Disponvel em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=337127145002

    Red de Revistas Cientficas de Amrica Latina, el Caribe, Espaa y PortugalSistema de Informacin Cientfica

    Teixeira Neto, AntnioCARTOGRAFIA, TERRITRIO E PODER: DIMENSO TCNICA E POLTICA NA UTILIZAO DE MAPAS

    Boletim Goiano de Geografia, vol. 26, nm. 2, julio-diciembre, 2006, pp. 50-69Universidade Federal de Gois

    Gois, Brasil

    Como citar este artigo Nmero completo Mais informaes do artigo Site da revista

    Boletim Goiano de Geografia,ISSN (Verso eletrnica): [email protected] Federal de GoisBrasil

    www.redalyc.orgProjeto acadmico no lucrativo, desenvolvido pela iniciativa Acesso Aberto

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  • CARTOGRAFIA, TERRITRIO E PODER: DIMENSO TCNICA E POLTICA NA UTILIZAO DE MAPAS

    CATOGRAPHIE, TERRITORIE ET POUVAIR, DIMENSION TRCHNIQUE ET POLITIQUE DANS LUTILISATION DE CARTES

    Antnio Teixeira Neto - [email protected]

    Resumo

    Imagem representativa da natureza visvel, o mapa a construo mais lgica e rigorosa do mundo das ima-gens. H, contudo, quem pense que ele obra apenas de especialistas e de acesso restrito a poucas pessoas. Por isso, ao longo da histria, ele tem sido objeto de usos dos mais diversos, sobretudo, no campo poltico e militar. No , portanto, de estranhar que o mapa, tambm, serve para fazer a guerra. Porm, sua maior utilidade para promover a paz, diminuir a discrdia e informar a todos os cidados indistintamente sobre a especificidade do territrio em que eles habitam. O mapa tem, portanto, vrias dimenses e, entre elas, a que mais inibe as pessoas quanto ao seu uso e leitura, a sua dimenso tcnica. Ora, quaisquer que sejam os recursos tecnolgicos utilizados na sua realizao se desenhados mo ou assistidos por computadores se-gundo os recursos da cartografia multimdia interativa o procedimento metodolgico um s: o respeito ir-restrito aos meios e s regras de construo grfica, ou seja, abordagem semiolgica da representao gr-fica segundo mostrado por Jacques Bertin h quese meio sculo.

    Palavras-chave: mapa, representao grfica, variveis visuais, tcnica, territrio, poltica, poder, guerra, paz.

    Rsum

    En tant quimage reprsentant la nature visible, la carte est la plus logique et, pour ainsi dire, la plus rigoureuse construction du monde des images. Nanmoins, il y a encore de nombreuses personnes qui pensent queelle est du domaine exclusif des spcialistes et dont laccs est restreint peu de gens. Rien de plus faux, car pour ceux qui commandent et qui dcident aux plus hauts niveaux politiques et militaires, il ne sagit que de vrai-ment restreindre lutilisation dun document qui sert ltablissement de stratgies de tout ordre, surtout cel-les concernat lutilisation de lespace gographique par les tats majeurs militaires et des grandes entreprises. Mais, la carte sert aussi dautres intrts, comme, par exemple, viter la guerre en faveur de la paix, combat-tre la faim et la misre au monde et, ainsi, diminuer la discorde entre les hommes. En outre sa dimension poli-tique, la carte porte aussi une dimension technique qui, faussement, fait encore peur pas mal de gens. Or, quoi quil en soit si faite la main ou si ralise laide de l ordinateur , la construction de ce document nest sou-mis qu un seul principe fondamental: lobissance in-conditionnelle aux rgles de la reprsentation graphique et son approche smiologique, comme nous la montr Bertin depuis presque un dmi sicle.

    Mots-cls: carte, reprsentation graphique, variables visuelles, technique, trritoire, politique, pouvoir, guerre, paix.

    Boletim Goiano de Geografia Goinia - Gois - Brasil v. 26 n. 2 p. 49-69 jul./dez. 2006

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    Consideraes preliminares

    O mapa principal produto da cartografia sempre despertou em todo tempo, em todos os lugares e em todas as pessoas interesses dos mais diver-sos, dentre os quais o mais almejado pelos homens foi o de fazer dele um poderoso instrumento de poder, conquista e dominao. Essa talvez a sua dimenso poltica mais conhecida. E no poderia ser diferente, pois, tanto no passado, como no presente, seja nos livros didticos, nos atlas escolares mais simples, nas publicaes de grande prestgio, como os atlas nacionais e regionais luxuosamente publicados em pases ricos, como a Sucia, a Sua, os Estados Unidos, etc, nas revistas especializadas e, sobretudo, nos gabine-tes dos altos comandos, militares ou no, o mapa adquire feies das mais diversas: por momentos no passa de um simples croqui pedaggico apa-rentemente ingnuo, mais adiante j um documento tcnico reservado a especialistas, na surdina segredo de Estado, que s pode ser visto e utilizado por comandantes e executivos de grandes corporaes militares ou civis. Muitos so os pretextos para no dar divulgao ampla a determinados mapas. Porm, qualquer que seja a utilidade que se lhe atribua, ele conserva, contudo, uma virtude que ningum pode lhe subtrair: o de ser um tesouro inestimvel nas mos de quem quer que seja. Por qu? Porque ele tem o dom de mistificar, criando em torno de si uma aura de mistrio e mito que poucos meios de comunicao so capazes faz-lo. O mapa encanta e desencanta as pessoas ao mesmo tempo. Encanta as que, atravs dele, viajam pelos mais recnditos confins do mundo cheios de mistrios jamais imaginados; desencanta as que s querem v-lo apenas como um instrumento de poder e cobia; encanta, quando elaborado como se fosse uma obra de arte; de-sencanta, quando ele portador de mensagens falsas e mentirosas, mesmo que graciosamente elaborado. Nesse sentido, ele uma faca de dois gumes: serve como instrumento de dominao para quem o realizou e desinforma e desorienta quem o utiliza.

    Neste breve trabalho, em que sero abordadas as dimenses tcnicas e polticas na utilizao do mapa, por um lado, me fundamentarei priorita-riamente na abordagem semiolgica da representao grfica proposta por Jacques Bertin para mostrar que, como imagem representativa do mundo, ele a construo mais lgica e racional do mundo das imagens e que o mau uso proposital ou por desconhecimento que ainda se faz das re-gras do sistema grfico, implica num sem nmero de mapas incorretos que abundam sistematicamente em todo tipo de publicao, principalmente nos

  • 52 Cartografia, territrio e poder: dimenso tcnica e poltica na utilizao de mapasAntnio Teixeira NetoBGGlivros didticos; por outro lado, me reportarei ao papel geopoltico do mapa em questes, sobretudo, territoriais, como as que, tanto no passado como no presente, envolveram e ainda envolvem no apenas o Brasil, mas tambm as novas entidades territoriais surgidas em decorrncia do desmoronamento de imprios coloniais na Amrica, na sia e na frica e de blocos e imprios territoriais enormes, como a ex-URSS, e corporaes militares poderosas, como fora o Pacto de Varsvia, espcie de OTAN dos antigos pases do bloco socialista. Tanto em um caso como em outro, as diferentes tcnicas utiliza-das na realizao do mapa dos desenhos clssicos feitos mo, s moder-nas tcnicas de tratamento da informao, como a cartografia assistida por computadores e a cartografia multimdia interativa1 o procedimento meto-dolgico a ser observado um s: o respeito irrestrito aos meios e s regras do sistema grfico. No h como fugir dessa verdadeira camisa de fora, na verdade benfica, pois o tratamento grfico da informao est submetido s leis rigorosas da percepo visual leis estas inerentes a todos os seres humanos, salvo rarssimas excees. Na verdade, o objetivo primeiro desse texto no o de insistir sobre esse lado tcnico-terico e metodolgico da linguagem grfica, mas, sobre a utilidade do mapa e, conseqentemente, da cartografia no cotidiano das pessoas e das instituies pblicas ou priva-das. Talvez isto sirva tambm para desmistificar um dos aspectos que mais desservios prestam ao mapa: o de que ele obra de especialistas e que a cartografia uma tcnica ao alcance de pouca gente. Em parte isto verdade, mas nada que no possa ser assimilado por qualquer pessoa. Os gegrafos sabem disto, ou pelo menos so obrigados a sab-lo, porque so usurios privilegiados do mapa.

    Consideraes interpostas

    Para as pessoas de um modo geral incluindo-se a uma boa parte de especialistas do espao, como os gegrafos , quando se fala em mapa, ime-diatamente um mundo misterioso e fantasioso lhes vem mente. Por qu? Acredito que seja por causa das muitas lendas que ainda esto a ele asso-ciadas. Realmente, nesse universo imagtico, o mapa um dos atores mais interessantes e no menos misteriosos. Quem j no ouviu falar do mapa da Ilha do Tesouro (que inspirou o escritor escocs Robert Louis Stevenson a redigir uma das obras de fico mais lidas do final do sculo XIX?), do mapa da mina, do mapa do mundo encantado ou at mesmo do mapa do mun-

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    do da utopia (por aluso Ilha da Utopia imaginada por Thomas Morus), como a ele se refere Roger Brunet em um livro cujo ttulo j um convite sua leitura O mapa: modo de usar? Por causa dessa aura que envolve o mapa que se criou em torno dele e, sobretudo, em torno da cartografia, uma srie de esteretipos, dentre os quais o mais difundido o que diz que mapa uma coisa ao alcance de pouca gente. Isto decorre talvez do fato de que, ao longo da histria, muitas so as histrias que tm o mapa como personagem cheio de enigmas e mistrios. No meu entender, isto advm, sobretudo, do fato de ele ser um documento que, realmente, pode esconder tesouros ao alcance de umas poucas pessoas aquelas que, conhecendo o seu valor poltico e informacional, o monopolizam. Nesse sentido, ele j no mais apenas um desenho, mas um precioso instrumento testemunhando a existncia de riquezas incalculveis, geogrficas e no geogrficas. Apenas por este lado, o mapa j fascina mais que mil palavras.

    Yves Lacoste em seu livro mais polmico dizia que a geografia ser-ve, primeiro, para fazer a guerra. Tenho em mente que, para cunhar essa assertiva, ele se baseou no nas mil e uma teses de geografia acerca das es-tratgias militares e territoriais em tempos de guerra, mas, principalmente, nos mapas. Portanto, diante dos diferentes usos que se faz dele, poder-se-ia afirmar, no sem constrangimento, que o mapa, tambm, que serve primeiro para fazer a guerra. A histria est repleta de exemplos em que ele era tido por muitos comandantes Napoleo frente como o mais importante dos generais no front da guerra. Sem que isto tenha sido documentado pelos historiadores, acredito que a derrota final das tropas do imperador francs em Waterloo foi antecipada em decorrncia no apenas da desmoralizao em que se encontravam seus exrcitos, mas, sobretudo, do extravio do ba em que eram guardados a sete chaves os seus mais estratgicos instrumentos de guerra: os mapas. Assim, no exagero afirmar que o mapa tambm instrumento de estratgia e que, antes de tudo, serve, tambm, para fazer a guerra. Contudo, uma afirmao como esta no deprecia o papel do mapa no mundo moderno, pois ele serve principalmente, como afirma Jacques Bertin em suas obras, para diminuir as discrdias, amenizar a fome e at mesmo reaproximar as pessoas. Muitas tragdias seriam evitadas se dispusssemos de bons mapas sobre os perigos reais e imaginrios que rondam o planeta terra enchentes devastadoras em conseqncia de uma m gesto do ter-ritrio, rotas de trfico de toda ordem, pontos e lugares do globo em perigo por causa da ao desenfreada e incontrolvel dos homens, e muitos outros males e perigos.

  • 54 Cartografia, territrio e poder: dimenso tcnica e poltica na utilizao de mapasAntnio Teixeira NetoBGGAo longo da histria, e nos dias atuais, o mapa tem se tornado um

    verdadeiro instrumento de guerra, no apenas a guerra que mata, mas tam-bm a que redime, como, entre outras, a guerra contra a fome e a misria no mundo. Em todos esses momentos, o mapa est presente, mostrando e localizando os problemas, assim como esteve presente na Primeira Guerra do Golfo, e est presente nesta segunda, em que o Iraque foi invadido pelo filho do primeiro invasor, Bush pai. Naquela ocasio (1991), ainda em Pa-ris, quando a guerra explodiu, eu fazia a leitura de um livro encantador so-bre a cartografia e o seu principal produto, o mapa Cartografia: 4.000 anos de aventuras e paixes de Thierry Lassalle2. Em uma das capas internas registrei o que, naquele momento, lamentava o mapa como instrumento de guerra e ao mesmo tempo evocava o mapa como linguagem universal da humanidade:

    No local em que, h 4.500 anos, foi descoberto o primeiro mapa de que se tem notcia gravado em uma placa de argila e que representa uma parte da Ba-bilnia entre os rios Tigre e Eufrates, a guerra explode, certamente apoiada por mapas inteligentes. O mapa, essa linguagem grfica que encanta os homens de todas as idades, serve, infelizmente, tambm para fazer a guerra. Porm, qual-quer que seja o papel que se lhe atribua, o mapa continuar nos encantando, pois, ele fala em uma linguagem que, doravante, tornou-se universal. Quando os homens falam uma mesma lngua, a reaproximao entre eles torna-se mais fraterna, mais humana e at mesmo mais potica. por isso que o mapa tam-bm uma linguagem potica na medida em que os versos no so feitos de rimas sonoras, mas de rigor tcnico e plasticidade visual.

    Na poca dos grandes descobrimentos, os primeiros mapas do Novo Mundo eram guardados a sete chaves, e o vazamento de sua existncia para o inimigo era punido com a morte. Portugal e Espanha travaram inmeras batalhas no campo da cartografia com o intuito de se dotarem dos melho-res mapas para prover as suas descobertas de autenticidade e, assim, fazer deles o instrumento jurdico que daria legitimidade posse das terras quan-do das questes de limites. Naquela poca, mais que a moeda, o mapa era um dos documentos mais falsificados, e a sua comercializao tornou-se um grande negcio. Dentre os comerciantes de mapas, os holandeses eram os mais poderosos e os mais hbeis em reproduzi-los, falsific-los e em enri-quec-los com iluminuras e informaes novas. Essa pirataria perduraria ainda por muito tempo, pois, mesmo hoje, quando se fala em um novo mapa do mundo, ou da mina, boa parte das pessoas se sentem curiosas e querem saber que segredos ele encerra.

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    O mapa tambm cercado de esteretipos. Um deles diz que se est no mapa, est correto. Nada mais falso que isto, mas, no momento, no h aqui espao para tratar de jarges dessa natureza. Outros dizem que mapa coisa tcnica e, como tal, obra de especialistas ou, enfim, trabalho de artista. Essa viso3, para mim falsa, que se tem do mapa ainda vai per-durar por muito tempo, pois o nmero de pessoas que o vem como uma coisa do outro mundo inexplicavelmente grande. Por qu? Simplesmente porque, como confessam as prprias pessoas, a maioria delas no sabe de-senhar ou no tem queda para o desenho. Ora, como toda gramtica, o mapa tambm redigido atravs de uma linguagem que tem suas regras, logo, sua sintaxe, linguagem esta que, como costumava enfatizar para seus alunos Jacques Bertin, est ao alcance de todos. esse o grande proble-ma para aquelas pessoas que vem o mapa apenas pelo seu lado, por assim dizer, tcnico. Na verdade, elas desconhecem que, como uma linguagem acessvel a todas as pessoas, sua construo e no o seu desenho est ao alcance de qualquer um, desde que assimile as regras e leis que regem o sistema grfico. Diferentemente de uma obra de arte, que exige talento de quem a executa, o mapa no uma construo livre, pois est submetido ao mais rigoroso respeito s leis de percepo visual, ou melhor, gramtica grfica. Para resumir as coisas, um lembrete banal: o mapa, como se sabe, constitudo de signos, cujos significados so rigorosamente definidos na legenda. Nesse sentido, a sua construo deve, obrigatoriamente, passar por uma abordagem semiolgica da representao grfica, cuja linguagem visual to ou mais universal que a linguagem verbal.

    A dimenso poltica do mapa

    Um exemplo brasileiro. A vitria no foi minha, foi dos mapas, dizia para os jornalistas e reprteres da poca o Baro do Rio Branco cada vez que, nos tribunais internacionais, ganhava mais uma batalha nesta guerra interminvel que foi, e ainda a da formao territorial de um pas continental e expansivo como o Brasil. No creio que exista no pla-neta uma nao cujos domnios territoriais foram garantidos e ampliados a custas de um general que jamais disparou uma arma sequer contra o ini-migo: o mapa. No plano diplomtico, o Brasil legou aos outros pases um princpio jurdico incontestvel o uti-possidetis (literalmente, significa o que possuis, mas em linguagem popular pode ser traduzido como direito

  • 56 Cartografia, territrio e poder: dimenso tcnica e poltica na utilizao de mapasAntnio Teixeira NetoBGGde posse). Nas questes de limites enfrentadas contra naes poderosas da poca (sculo XIX), como a Frana e a Inglaterra, nem a retrica dos mais fortes e nem suas falsificaes cartogrficas venceram a verdade e os direitos brasileiros estampados nos mapas dos sculos anteriores, porque, sem falsidades geogrficas, histricas ou ideolgicas, eles atestavam a con-quista, posse e alargamento dos domnios territoriais nacionais por parte de luso-brasileiros. Tudo isto resultou em um dos projetos geopolticos mais bem elaborados ao longo da histria do Brasil: o da preparao diplo-mtica, tcnica e cientfica do Tratado de Madrid assinado em 1750 entre Portugal e Espanha , que deu forma, solidez e legitimidade s fronteiras e limites do Brasil e ocupao, povoamento e urbanizao de todas as ter-ras que hoje formam o Centro-Oeste e a Amaznia brasileiros. Numerosas, ento, foram as vitrias alcanadas por essa geopoltica brasileira, como, entre outras, a que envolveu o Amap e a Guiana Francesa. Nesta questo de limites, os franceses fizeram todo tipo de falseamento cartogrfico para provar que o rio Araguari que corta o Estado do Amap ao meio era o rio Oiapoque, fato que daria Frana a metade do territrio atual daquele Estado. Influentes que eram na Europa, a Frana, contudo, amargou uma contundente derrota diplomtica e cartogrfica, pois o rbitro da questo o chefe do governo Suo reconheceu que a verdade estava nos mapas brasileiros e no nos mapas franceses. Em minha tese de doutorado4 dedi-quei um captulo a esse assunto.

    De um modo geral, nutre-se um grande desprezo pelas coisas anti-gas. Na realidade, pouca gente reconhece o valor inestimvel que possuem os mapas antigos. Alm de serem tachados de incorretos e imprecisos, a maioria das pessoas se esquece de que o seu valor inestimvel no apenas como fonte histrica, mas tambm como testemunho vivo do que fizeram as geraes anteriores para a construo presente do territrio que habitamos e chamamos de ptria. O jargo popular que diz que papel aceita tudo pode levar o leitor a pensar que nos mapas antigos pouca coisa verdadei-ra. Parte disto verdade, pois, no passado, quando as grandes viagens de descobertas estenderam os limites do mundo para alm do Mar Mediter-rneo, o mapa era, depois da moeda, o objeto mais falsificado que existia. Ideologicamente, cada civilizao, cada sociedade, elaborava seus mapas segundo os paradigmas e dogmas que organizavam sua vida social, pol-tica e religiosa, como, entre outros, o ecmeno no habitado, a terra como centro do universo e a primazia de Jerusalm como centro do mundo nos mapas cristos, ou a da cidade de Meca, nos mapas dos rabes. Alis, at

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    hoje eles continuam a exibir falsidades, tanto ideolgicas quanto tcnicas. Por exemplo: para confundir o inimigo, a maioria dos mapas de interesse militar contem informaes falsas sobre lugares e regies tidas como de segurana nacional.

    At recentemente, no Brasil, era praticamente impossvel ao cidado comum ter acesso a documentos rotulados arbitrariamente de estratgicos ou secretos, como certas folhas da carta topogrfica cobrindo zonas mi-litares, por exemplo, ou at mesmo exemplares das cartas ao milionsimo do projeto RADAM. Em muitos pases, reas de segurana nacional so camufladas com informaes falsas campos cultivados, por exemplo ou simplesmente apagadas do mapa, como se tratasse de ausncia de informa-o. Desse modo, fechava-se e ainda fecha-se o acesso informao aos cidados comuns, e at mesmo pesquisa universitria, enquanto que o ter-ritrio nacional escancarado como nos mostra, por exemplo, o site Google Earth, disponvel na internet a quem dispe de recursos tecnolgicos para espion-lo palmo a palmo.

    As dificuldades no param por a, pois as filtragens ideolgicas che-gam s raias da estupidez, para no dizer do besteirol, como, entre outras, as que atribuem a certas projees cartogrficas o propsito de diminuir delibe-radamente as reas territoriais dos pases situados na frica e na Amrica do Sul para fazer sobressair as dos pases, digamos, ricos. Tudo falsidade, pois, em certas projees, como a de Mercator, por exemplo, destinada essencial-mente navegao area e martima, os paralelos e meridianos se cortam ortogonalmente para permitir que as loxodrmicas linhas que unem dois pontos no globo terrestre e que determinam as rotas de navegao sejam retas, e no curvas. Por ter essas caractersticas matemticas e geomtricas, nesta projeo todas as reas terrestres situadas alm dos paralelos 45 graus norte ou sul se deformam exageradamente, fazendo com que territrios de dimenses bem menores que as do Brasil, como a Groelndia, cortada pelo crculo polar rtico, sejam quatro vezes maiores no mapa. Ora, como a maior parte das terras emersas situa-se no hemisfrio norte, natural que as defor-maes das reas sejam mais expressivas naquela regio, e no no Equador ou nas proximidades dele , como acontece com as terras do hemisfrio sul, particularmente as do Brasil. As projees cartogrficas tm proprie-dades geomtricas e matemticas que lhes so peculiares. Na de Marcator, a principal a de conservar os ngulos, e no as reas dos pases. Por esse motivo, nenhuma projeo melhor ou pior que a outra e, geomtrica e matematicamente, nenhuma portadora de conotao, digamos, ideolgica.

  • 58 Cartografia, territrio e poder: dimenso tcnica e poltica na utilizao de mapasAntnio Teixeira NetoBGGTudo depende do uso que se faz delas, se para conservar silhuetas de pa-ses e territrios cartografados ou se para conservar reas, por exemplo. Na verdade, as projees s tm mesmo utilidade quando se trata de cartografar continentes, pases e estados de grandes dimenses em escalas pequenas. Quando se cartografa em escalas grandes, qualquer projeo , teoricamente, utilizvel, pois as deformaes que decorrem da passagem de uma superfcie curva, como a superfcie terrestre, para uma superfcie plana, como a folha de papel, so mnimas ou mesmo desprezveis.

    Como se v, os exemplos de mapas politicamente incorretos so mui-tos e uma das omisses mais vergonhosas , invariavelmente, a ausncia de mapas temticos transcrevendo estatsticas que retratam os dramas e as injustias sociais relacionados a minorias tnicas, pobreza, misria, prosti-tuio, alcoolismo, trfego e consumo de drogas, subnutrio, aborto, de-semprego, suicdios etc. Na verdade, ningum nem as pessoas e nem o governo e nem as instituies que os domina gosta de exibir o lado feio de si mesmo, da ptria ou da sociedade. Problema de imagem ou de omisso e tica? Qualquer que seja o motivo, essa uma atitude de lesa-majestade, porque se escondem da sociedade informaes que lhes dizem respeito.

    Um exemplo europeu. A Europa que acaba de ganhar contornos geo-polticos novos em virtude do desmoronamento do Imprio Sovitico ainda no fechou suas feridas abertas pelas guerras incontveis, principalmente as guerras tnico-religiosas que a abalaram aps a Reforma Protestante. O seu mapa atual e a estabilidade poltica de suas fronteiras nacionais resultaram de muitas conquistas e derrotas, de muitos avanos e recuos de fronteiras e limites. As causas foram numerosas:

    primeiramente, com a expanso e o desmoronamento do Imprio Romano, cujas provncias Itlia, Glia (Frana), Espanha, Inglaterra, Ger-mnia (Alemanha), etc se tornaram no embrio da Europa Ocidental;

    depois, aps a queda do Imprio Romano, com o esfacelamento do continente em reinos, feudos e principados. Alguns deles perduraram at re-centemente (como os principados, ducados e reinos alemes e italianos, cuja reunificao s ocorreu na segunda metade do sculo XIX) e outros ainda persistem (como o Gro-Ducado de Luxemburgo, os principados de Mnaco, Andorra e do Liechtenstein e a Serenssima Repblica de San Marino, encra-vada nos Apeninos italianos ao sul da cidade de Rimini);

    em seguida, com o surgimento dos Estados Nacionais e, consequen-temente, o desaparecimento dos domnios feudais. Nessa ocasio, os limites

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    e fronteiras dos Estados avanaram e recuaram segundo o poder aglutinador de novas ordens religiosas e ticas surgidas, como a Reforma Protestante de Martinho Lutero e a Contra-Reforma Catlica dos Jesutas;

    mais tarde um pouco, com as guerras napolenicas, que redundaram no redesenho do mapa de uma nova Europa sada do Congresso de Viena em 1815, ocasio em que foram literalmente leiloados os territrios ocupados pelos franceses fora da Frana. Este novo arranjo territorial traria poucas modificaes no mapa da Europa at o advento da Primeira Guerra Mundial (1914);

    depois, com a Primeira Guerra Mundial confrontando rivais hist-ricos sobretudo alemes e franceses que se bateram pela reconquista e integrao de posse de territrios que cada qual considerava como historica-mente seus a Alscia e a Lorena;

    em seguida, com o advento da Segunda Guerra Mundial (1939), o mundo se dividiu em dois blocos de poder antagnicos o mundo socialista e o mundo capitalista que sobreviveram por quase meio sculo sob o fogo da Guerra Fria;

    finalmente, com a ruptura da ordem poltica da Europa do Leste, a nova ordem territorial e poltico-econmica que disso resultou constitui um mosaico de povos e naes e de entidades tnico-lingsticas e culturais de fragilidade territorial evidente.

    Essa atomizao do territrio e esse novo mapa europeu talvez sejam ainda heranas tardias de paradigmas geogrficos ultrapassados, como os que marcaram a escola alem clssica de geografia, que concentrou no es-tudo da paisagem Landschaft todo o seu contedo ideolgico. Em um trabalho despretencioso sobre paradigmas da geografia, de ttulo delibera-damente provocante5 chamava a ateno para alguns aspectos dessa geo-poltica, como, entre outros, o que diz que, atravs da paisagem, possvel individualizar os espaos modelados por um povo. No foram poucas as vezes que esse conceito foi levado ao extremo, gerando conflitos geo-carto-grficos, alimentando propsitos expansionistas o pangermanismo ou criando heresias antropolgicas a de nacionalidade tnica, por exemplo que redundaram em polticas de expanso territorial fundada no que se presumia ser histrica e geograficamente legtimo: uma pretensa hegemonia do povoamento de origem germnica em volta do rio Reno. Paul Guichonet e Claude Raffestin6 mostram o infundado dessa noo atravs de uma outra essencialmente geogrfica, a de fronteiras:

  • 60 Cartografia, territrio e poder: dimenso tcnica e poltica na utilizao de mapasAntnio Teixeira NetoBGGDe essncia pragmtica, a concepo alem de fronteiras mergulha suas razes em uma historicidade sensvel forte homogeneidade do povoamento germ-nico entre os rios Reno e Elba, logo, entre os Alpes e o Bltico [...] Ficht siste-matizou a teoria do Estado fechado territorium clausum , cujo denominador comum a lngua fora vital que conduz o indivduo. A fronteira, contorno externo do Estado, deve fechar a rea lingstica, porque quem fala a mesma lngua constitui um todo que a natureza pura uniu com antecedncia atravs de ligaes mltiplas e invisveis. Essa concepo [...] postula, ento, a expanso do Estado at que ela recubra o domnio etnogrfico, englobando, em fronteiras de traados arbitrrios, populaes que s podem ter apenas uma nacionalida-de, a nacionalidade inconsciente.

    Ernest Renan, historiador e ensasta francs que se contraps de ma-neira contundente ideologia de uma nacionalidade tnica, a esse respeito enftico7:

    O que faz uma Nao no falar uma mesma lngua ou pertencer a um mesmo grupo tnico, mas ter feito grandes coisas no passado e querer faz-las mais ainda no futuro.

    Contudo, a idia de um continente europeu unido, que surgiria dos escombros da Segunda Guerra Mundial, levou meio sculo de discusses e de avanos e recuos antes de a Comunidade Europia se fortalecer e adqui-rir a coeso continental necessria sua estabilidade, pelo menos no plano econmico e comercial. Na passagem do Estado Nacional para o de Estado Supranacional impossvel evitar o enfraquecimento dos enclaves tnicos e culturais e o fortalecimento dos laos de cooperao mtua, fatores estes que arrefecem o carter nacional dos povos. O mapa ao lado (Figura 1) uma anteviso do que poder vir a ser a Europa do futuro.

    Segundo o autor, como imagem forte, mostrando e localizando os grandes elementos do territrio europeu, esse mapa surpreendeu e interes-sou s mdias e aos homens de negcio e foi objeto de muitos comentrios, chegando mesmo a inspirar estratgias polticas e econmicas de ocupao e gesto do territrio. Entre outras coisas, ele mostra que:

    a) a Europa integrada e mesmo dominada pela megalpolis INGLA-TERRA-RENO-ITLIA DO NORTE. Esta megalpolis desenvolveu-se a par-tir dos caminhos dos mercadores do sculo XIII, poca de Marco Plo. Ela uma inveno do capitalismo, como tambm fruto da acumulao das riquezas que se efetuaram um pouco margem de uma Frana ento muito concentrada, rgida mesmo, sob uma realeza que havia expulsado do seu territrio os protestantes;

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  • 62 Cartografia, territrio e poder: dimenso tcnica e poltica na utilizao de mapasAntnio Teixeira NetoBGGb) essa dorsal a megalpolis induziu, na sua proximidade, uma

    rede de relaes ativas e, a certa distncia, eixos paralelos de desenvolvi-mento de um certo modo dependentes;

    c) nos dias de hoje, a regio bordejando, ao norte, o mar Mediterrneo e tendo como referncia o arco formado pelas cidades de Valncia, Barcelo-na, Marseille, Nice e Roma constitui um novo espao atrativo de desenvol-vimento e se tornou no centro de gravidade da Europa, enquanto que a crise afeta, sobretudo, o norte da megalpolis;

    d) a uma certa distncia do antigo centro de gravidade esboou-se uma rbita de cidades ativas e renovadas pelas tecnologias avanadas (Nice, Montpellier, Toulouse, Bordeaux, Nantes, Rennes, Edimburg), en-quanto que, mais distante dela, situa-se o que se poderia chamar de cintu-ro menos desenvolvido na verdade, uma rbita do sub-desenvolvimento europeu;

    e) a fachada atlntica, no momento um pouco margem dessas din-micas, procura seu caminho;

    f) o despertar da Europa do Leste poderia servir novamente aos in-teresses das megalpolis ou, o que desejvel, se constituir em um novo espao de desenvolvimento, fazendo, assim, nascer uma Europa policn-trica, melhor equilibrada pela expanso do Sudoeste e, com mais vigor, do arco mediterrneo e do Oeste. A incorporao recente de mais pases do Leste Europeu Comunidade Econmica Europia uma confirmao disto.

    Para o autor, este mapa que em ltima instncia descreve as linhas de fora no traduz nenhuma fatalidade. Ao contrrio, pode inspirar mui-tos programas de ao.

    A dimenso tcnica do mapa. Pouca coisa teria a acrescentar ao que, ao longo dos ltimos trinta anos, venho sistemtica e insistentemen-te pregando sobre a abordagem semiolgica da representao grfica, tal qual ela foi estabelecida por Jacques Bertin. Muitos autores seguiram o seu rastro, outros, sem diz-lo abertamente, deram nomes diferentes a bois que j tinham nomes. A verdade que, no fundo, ningum conseguiu mudar a essncia dessa linguagem: ela e nunca deixar de ser rigo-rosamente codificada, porque fundamentada nas leis mais elementares da percepo visual. Como a matemtica, ela tambm monossmica, pois,

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    cada signo, cada smbolo expresso na legenda tem um, e somente um sig-nificado, segundo a natureza do dado que ele representa se quantitativo (Q), ordenado (O) ou seletivo (=/=). Ao processo que vai da coleta visu-alizao dos dados, passando pelas fases intermedirias de sua anlise e de sua reduo s dimenses abordveis pela cartografia, d-se o nome de tratamento grfico da informao, qualquer que seja o mtodo utilizado para esse fim se artesanalmente ou atravs de mquinas poderosas e inteligentes.

    Apesar da lgica e da clareza das regras gerais de construo grfi-ca que so repassadas aos alunos em sala de aula ou atravs de trabalhos e artigos de vulgarizao da semiologia grfica, os erros e equvocos na elaborao dos documentos principalmente de mapas, como lembrado acima , so inadmissveis. Nunca demais insistir em um ponto funda-mental: atualmente, com o aporte precioso dos computadores e de pro-gramas (softs) facilmente acessveis, qualquer pessoa, indistintamente, sabendo ou no desenhar artisticamente este ou aquele smbolo como se fazia antigamente , capaz de realizar seus mapas com clareza e plas-ticidade. Agora, sua eficincia, isto , se ele corretamente elaborado, segundo os princpios fundamentais da percepo visual, s depende do indivduo, porque, por mais inteligente que seja a mquina, ela s exe-cuta ordens de quem sabe dar corretamente as ordens. Ela no raciocina e nem toma decises sozinha. Quem tem que ter bem claras as regras de construo e realizao grfica do mapa o autor e no o crebro do computador.

    Isto posto, e tendo em vista que a representao grfica est ao al-cance de qualquer pessoa, o que se questiona se os erros e equvocos cartogrficos estampados em livros didticos, atlas escolares, atlas de pres-tgio, como os atlas nacionais e regionais dos pases ricos, indistintamente, so cometidos intencionalmente ou por desconhecimento do bvio. O pri-meiro caso caracteriza m f, ou melhor, falsidade ideolgica, por querer enganar o leitor atravs de uma imagem falsa do territrio mapeado. Aqui, o artifcio mais usado o que transcreve uma informao quantitativa (Q) ou ordenada (O) por uma varivel apenas seletiva (=/=), e vice-versa. Exemplo: transcrever graficamente quantidade de habitantes e densidade de populao atravs de variao de forma e de variao de cor, respecti-vamente. A regra clara: uma informao apenas seletiva (tipos de vege-tao, de indstria, de uso do solo, de categorias scio-profissionais, etc.)

  • 64 Cartografia, territrio e poder: dimenso tcnica e poltica na utilizao de mapasAntnio Teixeira NetoBGGs transcrita corretamente atravs de uma varivel tambm seletiva (cor, orientao ou forma), independentemente do modo de implantao que a informao requer se pontual, linear ou zonal. Do mesmo modo, uma informao quantitativa (estatsticas de produo, populaes, etc.) ou or-denada (densidades, taxas de crescimento, evolues, hierarquias, etc.) s pode ser transcrita por uma varivel quantitativa (tamanho) ou ordenada (valor, gro ou textura), respectivamente. Tudo o que foge a esta regra ele-mentar , como diz Bertin9, figurao, ou seja, uma conveno que des-tri as propriedades significativas dos dados e que s comporta um nvel elementar de leitura.

    Se os erros so cometidos por desconhecimento do bvio, h que al-fabetizar os indivduos que no aprenderam e reeducar os que esqueceram a gramtica grfica, pois, eis o bordo que deve ser repetido exausto, a linguagem visual do mesmo modo que a linguagem verbal regida por regras assimilveis por qualquer pessoa.

    Os exemplos abaixo apresentados (Figuras 2 e 3) nada mais so que a expresso correta do que deve ser a transcrio grfica de informaes segundo a natureza dos dados. Foram feitos mo, mas poderiam ter sido feitos automaticamente, como os que j so realizados atravs de tcnicas modernas, como a visualizao cartogrfica e a cartografia multimdia assis-tidas por computadores.

    A imagem que salta aos olhos No mapa abaixo10 (Figura 2), o olho no tem dificuldade em captar num tempo mnimo de percepo a com-partimentao do relevo e da hidrografia do territrio goiano-tocantinense. Por qu? Simplesmente porque, em sua realizao, foram levadas em con-ta as propriedades significativas das variveis utilizadas. Assim, por uma variao de tamanho dos crculos, assegurou-se visualmente a hierarquia das cidades. Pela variao de valor (as diferentes espessuras e espaamento das hachuras), percebe-se que o relevo do Tocantins predominantemente constitudo de terrenos cujas altitudes variam entre 200m e 500m. Por seu lado, Gois abriga em seu territrio a maior parte do relevo que constitui o Planalto Central. A grande dorsal de direo geral SW-NE formada pelos alinhamentos das Serras do Caiap, Santa Marta ou das Divises, Pirineus e Serra Geral de Gois nada mais que o grande divisor de guas, separando trs grandes bacias hidrogrficas brasileiras: a Tocantnia (T), que corre em direo Amaznia, a Paranaica (P), que forma a Bacia Platina, e a Sanfran-ciscana (S), que escoa suas guas para o Leste.

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    Figura 2: Relevo e hidrografia Gois-Tocantins.

  • 66 Cartografia, territrio e poder: dimenso tcnica e poltica na utilizao de mapasAntnio Teixeira NetoBGGFigura 3: Os caminhos de ontem e de hoje em direo a Gois-Tocantins.

    Imagem do passado e do presente de um territrio que todos ns conhe-cemos Eis um mapa11 que comporta uma anlise e uma reflexo seguras. Primeiramente, porque ele foi construdo em obedincia estrita s regras da representao grfica. Em segundo lugar, porque ele a imagem do que foi no passado a Capitania de Gois e o que so no presente os atuais Estados de Gois e do Tocantins. Para se chegar a essa compreenso, ele tem como pano de fundo alguns elementos que ajudaram a criar e a moldar o territ-rio: os caminhos antigos que serviram de guias para os caminhos modernos de hoje e as cidades que nasceram da principal atividade econmica no s-culo XVIII a minerao que, com a agropecuria tradicional e as rodovias, principalmente as modernas, se constituram nos fatores de povoamento e urbanizao mais importantes do territrio goiano-tocantinense. Indo mais longe ainda, este mapa mostra a forma, ou seja, a maneira como esse territ-

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    rio se organizou ao longo do tempo e o papel elo entre o litoral e o interior que ele representa no momento presente do Brasil. Como sublinha Roger Brunet12, esta a verdadeira aprendizagem da leitura de mapas [...], porque as formas tm sentido.

    Consideraes finais

    O que acabamos de escrever no deveria constituir nenhuma novida-de e nenhuma fatalidade para um pblico especializado, como o dos gegra-fos. Quanto aos outros o grande pblico , cabe a ns os especialistas do espao e de sua representao grfica difundir e mostrar que o mapa no nenhum bicho de sete cabeas e que, com um pouco de cultura geogrfica, qualquer pessoa capaz, seno de realiz-lo, pelo menos de ler e compreen-der atravs dele o espao que o rodeia, espao este que, mesmo sem sab-lo, constitui para cada indivduo o territrio de sua sobrevivncia material e de suas aspiraes sociais, culturais e espirituais. Ento, os tabus, preconceitos e dificuldades que rondam o mapa no passam de manipulaes ideolgicas de um documento que diz respeito a todo e qualquer cidado.

    Em sua concepo mais banal, mapa a imagem da forma como o espao ou foi organizado pelos indivduos que o habitam. Se ele as-sim entendido, mais do que justo que ao mapa deve ter livre acesso todo cidado, indistintamente. Mas no assim que acontece, pois, ao longo do tempo, e em momentos histricos ora turbulentos, ora mais calmos, o mapa teve usos dos mais diferentes e foi como ainda portador de fantasias, verdades e mentiras. Fantasias, quando ele evoca os sonhos, os desejos e as fabulaes prprios do ser humano. Todos ns j sonhamos com uma Ilha do Tesouro, com um mundo distante e misterioso, cujo mapa ns construmos mentalmente. Verdades, quando, como imagem fiel do espa-o geogrfico natural ou humano, ele elaborado corretamente. Mentiras, quando, deliberadamente, portador de uma mensagem falsa sobre a rea-lidade do territrio, seja por uso incorreto dos meios e recursos da repre-sentao grfica, seja por falsidade ideolgica, deturpando o seu contedo informacional.

    O mapa , em suma, uma imagem do mundo do mesmo modo que somos a imagem de ns mesmos. Alis, como sublinha Pierre Guiraud13 em um trabalho de vulgarizao da semiologia, a noo de imagem um

  • 68 Cartografia, territrio e poder: dimenso tcnica e poltica na utilizao de mapasAntnio Teixeira NetoBGGdos conceitos chaves de nossa cultura; todos e cada um tm a sua [...] e somos ciosos em constru-la, preserv-la e proteg-la. Eu diria que no campo da cartografia, tanto os autores de mapas, como as instituies que os encomendam o Estado, por exemplo , a preocupao com a boa imagem, isto , com o mapa que encanta, mais que mera vaidade, mes-mo uma forma de auto-afirmao. Nesse terreno, pude constatar, quando pesquisava sobre os atlas nacionais e regionais, que a maior preocupao dos pases na elaborao de seus monumentos cartogrficos era fazer dos atlas nacionais obras de prestgio e plasticidade inigualveis. A abundn-cia de cores, a execuo de mapas que superpem mais de uma centena de caracteres geogrficos, a impresso luxuosa e em formato de grandes dimenses, a exaltao da natureza e dos habitantes do pas estavam aci-ma das preocupaes sobre o por qu, ou seja, a utilidade do documento. S por este lado j se podia dizer que o atlas era mais um instrumento de propaganda poltica do Estado que uma coleo de mapas informando correta e fielmente sobre a especificidade do pas e das projees espaciais de sua populao.

    Para finalizar, uma pergunta at certo ponto intrigante: para que serve a cartografia, ou melhor, para que serve o mapa no contexto da sociedade da revoluo tecnolgica que estamos vivendo? Embora haja quem faa dele em instrumento de guerra, ele serve, sobretudo, para promover a paz. Por qu? Porque, como cdigo de valor universal, ele lido da mesma maneira por todas as pessoas.

    Notas

    1 Cf. RAMOS (2005). 2 Cf. LASSALE (1990).3 Cf. TEIXEIRA NETO (1982).4 Cf. TEIXEIRA NETO (1975).5 Cf. TEIXEIRA NETO (2001-a).6 GUICHONET & RAFFESTIN (1974), p. 84.7 Id., ibid., p. 88.8 BRUNET (1990), p. 57.9 BERTIN (1977), p. 187.10 Tirado de GOMES, TEIXEIRA NETO & BARBOSA (2004), p. 155. 11 Id. Ibid., p. 76.12 Op. cit., p. 141.13 GIRAUD (1983), p. 137.

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    TEIXEIRA NETO, Antnio. A representao cartogrfica e a construo do saber geogrfico. In: Anais do VI Congresso Brasileiro de Gegrafos. Goinia: AGB, 2004.

    ANTONIO TEIXEIRA NETO - Licenciado em histria, engenheiro agrimensor, doutor em geografia e cartografia e professor da Universidade Catlica de Gois.

    Recebido para publicao em setembro de 2006Aceito para publicao em outubro de 2006