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Lars Svendsen Filosofia do tédio Tradução: Maria Luiza X. de A. Borges Jorge ZAHAR Editor Rio de Janeiro

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Page 1: SVENDSEN, LARS _ FILOSOFIA DO TÉDIO

Lars Svendsen

Filosofia do tédio

Tradução:Maria Luiza X. de A. Borges

Jorge ZAHAR EditorRio de Janeiro

Page 2: SVENDSEN, LARS _ FILOSOFIA DO TÉDIO

Título original:Kjedsomhetens filosofi

Esta obra foi originalmente publicada em 1999 por Universitesforlaget, de Oslo, Noruega

Copyright © 1999, Universitesforlaget

Copyright da edição brasileira © 2006:Jorge Zahar Editor Ltda.rua México 31 sobreloja

20031-144 Rio de Janeiro, RJtel.: (21) 2108-0808 / fax: (21) 2108-0800

e-mail: [email protected]: www.zahar.com.br

Todos os direitos reservados.A reprodução não-autorizada desta publicação, no todo

ou em parte, constitui violação de direitos autorais. (Lei 9.610/98)

Esta tradução foi publicada com apoio financeiro de NORLA

Capa: Dupla Design

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Svendsen, Lars, 1970-S974f Filosofia do tédio / Lars Svendsen; tradução, Maria Luiza X. de A. Borges. –

Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006

Tradução de: Kjedsomhetens filosofiISBN 85-7110-962-11. Tédio. 2. Tédio na literatura. I. Título.

CDD 152.406-3956 CDU 159.942

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Sumário

Prefácio 7

1. O problema do tédio 11

O tédio como problema filosófico, 11 | Tédio e modernidade, 21 |

Tédio e significado, 27 | Tédio, trabalho e lazer, 35 | Tédio e morte, 39 |

Tipologias do tédio, 43 | Tédio e novidade, 47

2. Histórias do tédio 52

Acédia: Tédio pré-moderno, 52 | De Pascal a Nietzsche, 55 | Tédio

romântico, de William Lovell a O psicopata americano, 64 | Sobre tédio,

corpo, tecnologia e transgressão: Crash, 87 | Samuel Beckett e a

impossibilidade do significado pessoal, 102 | Andy Warhol: A renúncia

ao significado pessoal, 110

3. A fenomenologia do tédio 118

Sobre os humores, 118 | Ontologia: A hermenêutica do tédio, 128

4. A ética do tédio 146

Que é um eu?, 146 | Tédio e história humana, 148 |

A experiência do tédio, 152 | Tédio e maturidade, 162

Posfácio 167

Notas 170

Índice onomástico 189

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O PROBLEMA DO TÉDIO

O TÉDIO COMO PROBLEMA FILOSÓFICO

Na condição de filósofos, temos de tentar, de vez em quando,tratar de grandes questões. Se não o fazemos, perdemos de vistao que, para começar, nos levou a estudar filosofia. Em minhaopinião, o problema do tédio é uma dessas grandes questões, esua análise deveria revelar algo importante sobre as condiçõesem que vivemos. Não deveríamos – e, de fato, não podemos –evitar considerar de quando em quando nossa atitude em rela-ção à questão do que significa ser. Pode haver muitas razões ini-ciais para refletirmos sobre nossa vida, mas o que há de especialnas experiências existenciais fundamentais é que elas noslevam, inevitavelmente, a questionar nossa própria existência.O tédio profundo é uma experiência existencial fundamental.Como Jon Hellesnes perguntou: “O que pode ser mais existen-cialmente perturbador que o tédio?”1

As grandes questões não são necessariamente as questõeseternas; o tédio, por exemplo, só passou a ser um fenômeno cul-tural central há cerca de dois séculos. É impossível, claro, deter-

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minar quando ele surgiu. Ademais, naturalmente teve precurso-res. Mas ele se destaca como um fenômeno típico da moderni-dade. Em geral, os precursores ficaram restritos a grupos pe-quenos, como a nobreza e o clero, ao passo que o tédio damodernidade tem amplo efeito e pode hoje ser encarado comoum fenômeno relevante para praticamente todos no mundoocidental.

Em geral, o tédio é considerado aleatório em relação ànatureza do homem, mas isto se baseia em suposições nomínimo duvidosas com respeito ao que seja esta última. Seriaigualmente possível afirmar que o tédio está incorporado ànatureza humana, mas, para isso, é preciso pressupor que existealgo que pode ser chamado de “natureza humana” – o que meparece problemático. A postulação de uma dada natureza tendea encerrar qualquer discussão adicional. Pois, como mostra Aris-tóteles, dirigimos nossa atenção, em primeiro lugar, ao que épassível de mudança.2 Ao postular uma natureza, estamos sus-tentando que ela não pode ser mudada. É também tentadorafirmar a existência de uma natureza humana completamenteneutra e atribuir ao homem um potencial igualmente grandepara experimentar tanto tristeza quanto felicidade, tanto entu-siasmo quanto tédio. Nesse caso, a explicação para este últimodeverá ser encontrada exclusivamente no ambiente social doindivíduo. Não acredito, contudo, que se possa fazer uma dis-tinção clara entre aspectos psicológicos e sociais quando se lidacom um fenômeno como o tédio, e um sociologismo redutivo étão insustentável quanto um psicologismo. Por isso, escolhoabordar o assunto de um ângulo diferente, adotando uma pers-pectiva baseada, em parte, na história das idéias e, em parte, nafenomenologia. Nietzsche salientou que “o erro hereditário detodos os filósofos” é basear-se no homem de uma época parti-cular e depois transformar isso numa verdade eterna.3 Assim,vou me contentar em declarar que o tédio é um fenômeno

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muito sério que afeta muita gente. Aristóteles insistiu em que avirtude não é natural, mas tampouco é antinatural.4 O mesmo seaplica ao tédio. Além disso, pode-se levar a cabo uma investiga-ção sobre esse tema sem pressupor nenhuma constante antro-pológica, isto é, qualquer coisa dada independentemente deum espaço especificamente social e histórico. Estamos lidandoaqui com uma investigação do homem numa situação históricaparticular. É sobre nós que estou escrevendo, nós que vivemosà sombra do Romantismo, como românticos inveterados, sem afé hiperbólica do Romantismo no poder da imaginação paratransformar o mundo.

Embora toda boa filosofia deva conter um elementoimportante de autoconhecimento, ela não precisa necessaria-mente tomar a forma de uma confissão inspirada nas Confissõesde santo Agostinho. Muitos me perguntaram se me envolvi comeste projeto porque sofria de tédio, mas o que sinto pessoal-mente não deveria ser de nenhum interesse para os leitores.5

Não concebo a filosofia como uma atividade confessional, vejo-a antes como uma atividade que trabalha para obter clareza –uma clareza que, reconhecidamente, nunca é mais que tempo-rária –, na esperança de que a pequena área sobre a qual temosa impressão de ter lançado luz venha a ser também relevantepara outros. De um ponto de vista filosófico, minha condiçãoparticular é irrelevante, ainda que, naturalmente, seja impor-tante para mim.

Fiz um pequeno levantamento, não científico, entre cole-gas, alunos, amigos e conhecidos, e revelou-se que, em geral,eles eram incapazes de dizer se estavam entediados ou não –embora alguns tenham respondido na afirmativa ou na negativae uma pessoa tenha até sustentado que nunca se sentira ente-diada. Aos leitores que, por ventura, nunca tenham se sentidoentediados, posso dizer, à guisa de comparação, que o tédio pro-fundo está relacionado, fenomenologicamente falando, à insô-

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nia, em que o “eu” perde sua identidade na escuridão, presonum vazio aparentemente infinito. Tentamos adormecer,damos talvez alguns passos hesitantes, mas não alcançamos osono, e acabamos numa terra de ninguém, entre o estado devigília e o sono. No Livro do desassossego, Fernando Pessoaescreveu:

Há sensações que são sonos, que ocupam como uma névoatoda a extensão do espírito, que não deixam pensar, quenão deixam agir, que não deixam claramente ser. Como senão tivéssemos dormido, sobrevive em nós qualquer coisade sonho, e há um torpor do sol do dia a aquecer a superfí-cie estagnada dos sentidos. É uma bebedeira de não sernada, e a vontade é um balde despejado para o quintal porum movimento indolente do pé à passagem. 6

O tédio de Pessoa é óbvio – é distinto em toda a sua faltade forma. No entanto, é da natureza das coisas que poucossejam capazes de dar uma resposta inequívoca quando pergun-tados se estão entediados ou não. Em primeiro lugar, estados deespírito, de maneira geral, raramente são objetos intencionaispara nós – são precisamente algo em que nos encontramos, nãoalgo para que olhamos conscientemente. Em segundo lugar, otédio é um estado de espírito tipificado pela falta de qualidade,o que o torna mais elusivo que outros. O pároco de aldeia deGeorge Bernanos fornece uma excelente descrição da naturezaimperceptível do tédio em Diário de um cura de aldeia:

Eu me dizia, assim, que os homens são consumidos pelotédio. Naturalmente, temos que refletir um pouco paraperceber isto – não é coisa que se veja de imediato. É umaespécie de poeira. Vamos para cá e para lá sem vê-la, a aspi-ramos, a comemos, a bebemos, e ela é tão fina que nem

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sequer range entre nossos dentes. Mas basta pararmos porum momento, e ela assenta como um manto sobre nossorosto e nossas mãos. Temos de estar a sacudir constante-mente de nós essa chuva de cinzas. É por isso que as pes-soas são tão agitadas.7

É perfeitamente possível estar entediado sem ter consciên-cia disso. E é possível estar entediado sem ser capaz de apontarqualquer razão ou causa. Os que afirmaram, em meu pequenolevantamento, estar profundamente entediados foram, muitasvezes, incapazes de expor com precisão o motivo; não era isso ouaquilo que os afligia, tratava-se antes de um tédio sem nome, semforma, sem objeto. Isso lembra o que Freud disse acerca damelancolia, enfatizando uma semelhança entre esta e a tristeza,já que ambas contêm uma consciência de perda. Mas enquanto apessoa triste tem sempre um objeto de perda específico, o melan-cólico não sabe exatamente o que perdeu.8

Como a introspecção é um método com limitações óbviasquando se trata de investigar o tédio, decidi examinar critica-mente certo número de textos de natureza filosófica e literária.Vejo a literatura como uma excelente fonte de material paraestudos filosóficos, e para a filosofia da cultura ela é tão indispen-sável quanto os trabalhos científicos para o filósofo da ciência.Via de regra, a literatura é muito mais iluminadora que estudossociológicos ou psicológicos quantitativos. Isto não se aplicamenos ao nosso assunto: muitas pesquisas focalizaram de quemaneira a deficiência ou o excesso de estímulos sensoriais causatédio, sem que isso seja sempre particularmente esclarecedorem se tratando de fenômeno tão complexo.9 Como o psicanalistaAdam Phillips expressou: “Claramente, deveríamos falar não detédio, mas de tédios, porque a própria noção inclui uma multipli-cidade de humores e sensações que resistem à análise.”10

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Afirma-se muitas vezes que cerca de 10% das pessoassofrem de depressão no curso da vida. Qual é a diferença entretédio profundo e depressão? Meu palpite é que há considerávelsuperposição. Eu diria também que quase 100% da populaçãosofre de tédio alguma vez ao longo da vida. O tédio não pode sercompreendido simplesmente como idiossincrasia pessoal. Éum fenômeno amplo demais para ser satisfatoriamente expli-cado dessa maneira. Não é apenas um estado mental interior; étambém uma característica do mundo, pois participamos de prá-ticas sociais que estão saturadas de tédio. Por vezes, tem-se quasea impressão de que o mundo ocidental inteiro tornou-se Berghof,o sanatório em que Hans Castorp permaneceu durante sete anosno romance A montanha mágica, de Thomas Mann. Matamostempo e nos entediamos mortalmente. Assim, pode ser tentadorconcordar com Lord Byron: “Não sobrou muito senão ser ente-diado ou entediar.”11

Em minha pequena pesquisa, mais homens do quemulheres declararam ter sentido tédio. Investigações psicoló-gicas indicam também que os homens sofrem mais com issoque as mulheres.12 (Essas investigações corroboram ainda aafirmação de Schopenhauer de que a sensação de tédio dimi-nui com a idade.13) Não tenho nenhuma boa explicação paraisso. Pode ser que as mulheres expressem verbalmente o tédioem menor medida que os homens, mas sejam igualmente afe-tadas por ele. É possível que elas tenham necessidades e fon-tes de significado diferentes das dos homens e sejam, por isso,menos afetadas pelas várias mudanças culturais que dão ori-gem a esse sentimento. Como mencionado, fui incapaz deencontrar qualquer explicação satisfatória para essa diferençade gênero. Nietzsche também afirma que as mulheres sofremmenos tédio que os homens, e justifica dizendo que elas nuncaaprenderam a trabalhar propriamente14 – uma explicação maisdo que duvidosa.

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Acho que Kierkegaard exagerou quando disse que “otédio é a raiz de todo mal”,15 mas, certamente, contribui paramuito mal. Não acredito que um número assim tão grande dehomicídios seja gerado por ele, pois é sabido que os assassina-tos costumam ser atos de paixão. No entanto, ele é freqüente-mente citado como a razão para muitos crimes cometidos –inclusive o homicídio.

Tampouco podemos dizer que as guerras começam porcausa do tédio, embora seja fato que a deflagração de algumasdelas foi acompanhada por uma alegria manifesta, com multi-dões eufóricas enchendo as ruas, como se celebrando o fato deque alguma coisa finalmente quebrara a monotonia da vidacotidiana. Jon Hellesnes escreveu com sensibilidade a esserespeito.16 O problema com a guerra, no entanto, é que ela nãosó é mortal como se torna também, em pouco tempo, mortal-mente entediante. “Guerras sem interesse, o tédio de guerrasde cem anos”,17 escreveu Pound. Em A montanha mágica, é adeflagração da guerra que finalmente desperta Hans Castorpde sua modorra de sete anos, mas temos todas as razões paraacreditar que o tédio logo voltaria a afligi-lo. Numa tentativa dedizer pelo menos alguma coisa de positivo acerca do tédio, osociólogo Robert Nisbet afirmou que ele não só é a raiz de mui-tos males, mas também pôs fim a muitos males, pela simplesrazão de que eles se tornam, pouco a pouco, entediantesdemais. Toma como exemplo a prática de queimar feiticeiras,afirmando que tal costume não se extinguiu por razões legais,morais ou religiosas, mas simplesmente porque se tornaraentediante demais, e as pessoas pensaram: “Quando você viuuma pessoa sendo queimada, viu todas.”18 Nisbet provavel-mente tem razão nisso, embora dificilmente se possa dizer queo tédio é uma força redentora, pois, em seu argumento, estáimplícita a idéia de que o tédio foi também a causa da queimadas bruxas.

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O tédio veio a ser associado a coisas como abuso de drogas,abuso de álcool, fumo, distúrbios alimentares, promiscuidade,vandalismo, depressão, agressão, animosidade, violência, suicí-dio, comportamento de risco etc. Há fundamentos estatísticospara estabelecer essas conexões.19 Isso não deveria surpreenderninguém, pois os antigos patriarcas da Igreja já tinham plenaciência dessas ligações, considerando a acédia, o precursor pré-moderno do tédio, o pior dos pecados, já que todos os outrosderivavam dele. Não pode haver dúvida alguma de que o tédiotem sérias conseqüências não só para os indivíduos como para asociedade. Para os primeiros, o tédio envolve perda de signifi-cado, e isso é grave para a pessoa afligida. Não acredito que pos-samos saber se o mundo parece sem sentido porque estamosentediados, ou se ficamos entediados porque o mundo parecesem sentido. Há aqui uma relação de causa e efeito provavel-mente nada simples. Mas tédio e perda de sentido estão conec-tados de alguma maneira. Em A anatomia da melancolia, de1621, Robert Burton afirmou que “podemos falar sobre 88 esta-dos de melancolia, uma vez que diferentes pessoas são atacadasdiferentemente e mergulham ou são mergulhadas a profundi-dades maiores ou menores no abismo infernal”. Pessoalmente,sou incapaz de distinguir precisamente entre tantos estados detédio, mas ele abrange tudo, desde um ligeiro desconforto auma profunda perda de significado. Para a maioria de nós, é umasensação suportável – mas não para todos. Obviamente, é sem-pre tentador pedir a quem se queixa de tédio ou de melancoliaque se “reanime”, mas, como mostra Ludvig Holberg, essa éuma ordem que não é possível cumprir, “é como ordenar a umanão que fique um cúbito mais alto do que é”.20

Quase todos os que falam sobre tédio o consideram ummal, embora haja certas exceções. Johann Georg Hamann des-creveu-se como um “Liebhaber der Langen Weile” (um “apai-xonado pelo momento demorado”), e quando seus amigos o cri-

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ticavam por ser um inútil, respondia que trabalhar é fácil, aopasso que a ociosidade genuína realmente exige muito de umhomem.21 E.M. Cioran tem uma visão semelhante: “Ao amigoque me diz estar entediado porque não consegue trabalhar, res-pondo que o tédio é um estado superior e que associá-lo à noçãode trabalho é degradá-lo.”22

Não há cursos de tédio oferecidos nas universidades,embora, muitas vezes, nos entediemos durante nossos estudos.Tampouco é óbvio que o tédio ainda possa ser considerado umassunto filosófico relevante, embora outrora o tenha sido. Nafilosofia contemporânea, quase tudo se tornou variação emtorno do tema da epistemologia, e o tédio parece ser um fenô-meno que escapa à estrutura da filosofia como disciplina. Ocu-par-se com semelhante assunto será, aos olhos de alguns, claraindicação de imaturidade intelectual. É possível. Mas caso otédio não possa ser considerado um assunto filosófico relevantehoje em dia, talvez tenhamos boas razões para nos preocuparcom o estado da filosofia. Uma filosofia que se escusa de tratarda questão do significado da vida dificilmente merece que nosenvolvamos nela. Que “significado” seja algo que possamosperder escapa à estrutura da semântica filosófica, mas não deve-ria ficar de fora da estrutura da filosofia como um todo.

Por que deveria o tédio ser um problema filosófico e nãoapenas um problema psicológico ou sociológico? Tenho deadmitir aqui que sou incapaz de propor qualquer critério geralpara o que distingue um problema filosófico de um não filosó-fico. Segundo Wittgenstein, um problema filosófico tem aforma: “Não sei por onde ir.”23 De maneira semelhante, MartinHeidegger descreve a “necessidade” que impele alguém àreflexão filosófica como “um conhecimento não completo”.24 Oque caracteriza uma questão filosófica, portanto, é alguma espé-cie de desorientação. Não é isso também típico do tédio pro-fundo, em que não somos mais capazes de nos situar no mundo

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porque nossa própria relação com ele foi praticamente perdida?Samuel Beckett descreve esse estado existencial de Belacqua, oherói de seu primeiro romance, da seguinte maneira:

Ele estava atolado na indolência, sem identidade. ... Ascidades e florestas e os seres também não tinham identi-dade, eram sombras, não exerciam influência nem estí-mulo ... Seu ser estava sem eixo ou perfil, seu centro emtoda parte e a periferia em parte alguma, um pântano nãomapeado de preguiça.25

O tédio normalmente surge quando não podemos fazer oque queremos, ou temos de fazer o que não queremos. Mas, equando não temos nenhuma idéia do que queremos fazer, quan-do perdemos a capacidade de nos orientar na vida? Então pode-mos nos encontrar num tédio profundo, que lembra a falta deforça de vontade, porque a vontade não consegue se agarrar acoisa alguma. Fernando Pessoa descreveu isso como “sofrersem sofrimento, querer sem vontade, pensar sem raciocínio”.26

E, como veremos na análise da fenomenologia do tédio de Hei-degger, essa experiência pode nos conduzir à filosofia.

O tédio carece do encanto da melancolia – um encantoassociado ao vínculo tradicional desta com a sabedoria, a sensi-bilidade e a beleza. Por essa razão, é menos atraente para osestetas. Falta-lhe também a óbvia gravidade da depressão, oque o torna menos interessante para psicólogos e psiquiatras.Comparado à depressão e à melancolia, parece simplesmentetrivial ou comum demais para merecer investigação aprofun-dada. É surpreendente, por exemplo, que o estudo de 600 pági-nas de Peter Wessel Zapffe, Om det tragiske (Sobre o trágico), de1941, não contenha uma só discussão sobre o tédio.27 Zapffemenciona claramente o fenômeno em vários pontos, mas nãolhe dá seu nome usual. Encontramos, contudo, discussões

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sobre o tédio desenvolvidas por filósofos importantes comoPascal, Rousseau, Kant, Schopenhauer, Kierkegaard, Nietzs-che, Heidegger, Benjamin e Adorno. E, na literatura, temosGoethe, Flaubert, Stendhal, Mann, Beckett, Büchner, Dos-toievski, Tchekhov, Baudelaire, Leopardi, Proust, Byron,Eliot, Ibsen, Valéry, Bernanos, Pessoa... A lista está incompleta;o tema é descrito de maneira tão ampla que qualquer relaçãoque se faça é arbitrária. Devemos notar, no entanto, que todosesses escritores e filósofos pertencem ao período moderno.

TÉDIO E MODERNIDADE

Disse Kierkegaard: “Os deuses estavam entediados; por issocriaram o homem. Adão ficou entediado por estar só; por isso Evafoi criada. Desde então, o tédio penetrou no mundo e cresceuem proporção exata ao crescimento da população.”28 A idéia deNietzsche era de que Deus sentira-se entediado no sétimo diada Criação;29 segundo ele, até os deuses lutavam em vão contrao tédio.30 De minha parte, posso assegurar que Adão não se sen-tiu entediado. O tédio é um fenômeno muito mais recente.Nesse caso, a questão de por que Adão e Eva resolveram provarda árvore do conhecimento continua sem solução. No Paraíso,o tédio não teria tido lugar, pois o espaço estava preenchido porDeus, cuja presença era tal que tornava supérflua qualquernecessidade de busca por sentido. Ainda assim, Henry DavidThoreau corroborou a idéia de Kierkegaard (“Sem dúvida, aforma de tédio e lassidão que se imagina ter esgotado toda a feli-cidade e a variedade da vida é tão antiga quanto Adão.”31) eAlberto Moravia afirmou que Adão e Eva estavam entedia-dos,32 ao passo que Kant declarou que Adão e Eva teriam seentediado se tivessem permanecido no Paraíso.33 Para RobertNisbet, Deus baniu Adão e Eva do Paraíso para salvá-los dotédio que, com o tempo, os afligiria.34

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É razoável supor que certas formas de tédio existiramdesde o início dos tempos, entre as quais a que será discutidamais tarde como “tédio situacional”, decorrente de algo espe-cífico a uma situação. Mas o tédio existencial ressalta-se como umfenômeno da modernidade. Há exceções aqui também. Tome-mos, por exemplo, o capítulo de abertura do Eclesiastes, quecontém a afirmação “Tudo é vaidade...” e também “O que foitornará a ser, o que foi feito se fará novamente; não há nada denovo sob o sol.”35 Não é despropositado, contudo, dizer queSalomão está fazendo aqui mais uma profecia que um diagnós-tico de seu tempo. E o Pastor Løchen em Trette menn (Homenssaturados), de Arne Garborg, parece estar certo ao afirmar queesse livro do Antigo Testamento foi escrito para as pessoas daépoca atual.36 Há também escritos de Sêneca em que, atravésdo conceito de tedium vitae (cansaço da vida), ele descreve algoque lembra muito o tédio moderno.37 É praticamente impossí-vel encontrar textos anteriores que pareçam antecipar o fenô-meno. Não afirmo que haja alguma ruptura clara e nítida emalgum ponto da história, mas insisto em que o tédio não eraobjeto de reflexão em extensão considerável antes da faseromântica. Com o advento do Romantismo, ele é, por assimdizer, democratizado e encontra amplas formas de expressão.

O tédio é “privilégio” do homem moderno. Emboratenhamos razões para acreditar que a alegria e a ira permanece-ram razoavelmente constantes ao longo da história, o volume detédio parece ter crescido de maneira espetacular. Aparente-mente, o mundo se tornou mais entediante. Antes do Roman-tismo, o tédio parece ter sido um fenômeno marginal, reservadoaos monges e à nobreza. Durante muito tempo, foi um símbolode status, como prerrogativa dos escalões superiores da socie-dade, uma vez que estes eram os únicos que possuíam a basematerial necessária para ele. À medida que se espalhou portodos os estratos sociais, o fenômeno perdeu sua exclusividade.Há ainda outras razões para acreditarmos que ele se encontrarazoavelmente bem distribuído por todo o mundo ocidental.

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O tédio sempre contém um elemento crítico,38 porqueexpressa a idéia de que dada situação ou a existência como umtodo são profundamente insatisfatórios. Como François de laRochefoucauld já assinalou em suas Máximas – que são, sobre-tudo, descrições argutas da vida na corte francesa – , “quasesempre somos entediados por pessoas para as quais nós mesmossomos entediantes”.39 Na corte francesa, o tédio era privilégioexclusivo do monarca, pois, se alguma outra pessoa ali o expres-sasse, isso provavelmente seria interpretado de uma únicamaneira: a de que o monarca a entediava. De maneira seme-lhante, a acédia anterior, em que os monges caíam num vazioinsondável em seu encontro com a Escritura Sagrada, era neces-sariamente considerada um insulto sem precedentes a Deus.Como podia Deus, em Sua perfeição, ser alguma vez conside-rado entediante? Estar entediado de Deus é afirmar implicita-mente que falta alguma coisa a Ele.

Se o tédio aumenta, isso significa que há uma falha gravena sociedade ou na cultura como transmissores de significado.É preciso compreender o significado como um todo. Somossocializados dentro de um significado global (não importa queforma ele assuma) que dá sentido aos elementos individuais denossas vidas. Outra expressão tradicional para designar isso é“cultura”. Muitos teóricos da modernidade concluíram que acultura desapareceu e foi substituída, por exemplo, pela “civi-lização”.40 Se o tédio aumenta, é presumivelmente porque osignificado global desapareceu. Naturalmente, há uma relaçãomútua entre o significado global e os subsignificados, isto é, entrecultura, por um lado, e produtos culturais, por outro – e podemostambém nos perguntar em que medida as coisas ainda são porta-doras de cultura. Citando Heidegger: as coisas ainda coisam?Em outras palavras: as coisas ainda têm influência coesiva sobrea cultura?

Não há estudos completamente confiáveis sobre que por-centagem da população se sente entediada. Os números va-riam consideravelmente segundo os diferentes estudos, pois

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se trata de um fenômeno difícil de diagnosticar de maneiraobjetiva.41 Assim, não podemos, com base em dados “concre-tos”, decidir se o tédio está diminuindo, aumentando ou é está-vel na população. Mas será que a extensão da indústria doentretenimento e o consumo de tóxicos, por exemplo, nãoseriam claros indícios da prevalência do tédio? As pessoas quevêem televisão quatro horas por dia não se sentem nem se con-fessam necessariamente entediadas, mas por que outra razãodespenderiam dessa maneira 25% das horas que passam acor-dadas? O lazer, naturalmente, apresenta-se como uma explica-ção: dispomos de muito tempo de sobra, que tem de ser consu-mido de alguma maneira – e poucos tipos de aparelhodestroem o tempo com mais eficiência que uma televisão. Emúltima análise, dificilmente haverá qualquer outra razão parase assistir à televisão durante muitas horas, à noite, que se livrarde um tempo supérfluo ou desagradável. Ao mesmo tempo,muitos de nós nos tornamos, pouco a pouco, incrivelmentecompetentes em nos livrarmos do tempo. Os mais hiperativossão precisamente os que têm os mais baixos limiares de tédio.Eles possuem uma falta quase completa de tempo ocioso, cor-rendo de uma atividade para outra, pois não são capazes deenfrentar um tempo “vazio”. Muito paradoxalmente, essetempo repleto parece muitas vezes assustadoramente vazioquando visto em retrospecto. O tédio está associado a umamaneira de passar o tempo, em que o tempo, em vez de ser umhorizonte para oportunidades, é algo que precisa ser consu-mido. Ou, como coloca Hans-Georg Gadamer: “O que real-mente passa quando o tempo passa? Certamente não é o tempoque passa. E, no entanto, é tempo que se quer dizer, em suapersistência vazia, mas que, como algo que perdura, é longodemais e assume a forma de penoso tédio.”42 Não sabemos oque fazer com o tempo quando estamos entediados, pois é pre-cisamente então que nossas capacidades ficam inertes enenhuma oportunidade real se apresenta.

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É revelador observar a freqüência do uso da palavra tédio.Não há ocorrência do substantivo boredom, na língua inglesa,antes da década de 1760, e, desde então, seu uso aumentou pro-gressivamente.43 A versão alemã Langeweile entrou em cenacerca de duas décadas antes, e tem reconhecidamente precurso-res no alemão antigo, que, entretanto, denotam apenas umlongo período de tempo, não uma experiência do tempo. Osdinamarqueses foram rápidos, com kedsomhed, verbete regis-trado pela primeira vez num dicionário manuscrito e sem data deMatthias Moth (c.1647-1719);44 é concebível que o dinamar-quês ked seja etimologicamente relacionado ao latim acedia.Normalmente, as palavras que denotam tédio em várias línguastêm etimologias incertas. O francês ennui e o italiano noia, ambosatravés do provençal enojo, têm raízes no latim inodiare (odiar oudetestar) e remontam ao século XIII. Mas essas palavras sãomenos usáveis para nosso propósito, porque são estreitamenteemaranhadas com o conceito de acédia (acedia), melancolia etristeza geral. O mesmo se aplica ao inglês spleen, que remonta aoséculo XVI. O dicionário padrão da língua norueguesa não men-ciona nenhuma ocorrência de kjedsomhet anterior às obras deIbsen e Amalie Skram, embora seja muito improvável que nãotenha havido usos mais antigos.45 O primeiro “romance dotédio” norueguês foi provavelmente Trette Menn (1891), de ArneGarborg, que trata da vida de Gabriel Gram, constantementefugindo do tédio, e de sua ânsia por libertação, seja proporcio-nada por uma mulher ou por Deus. No fim das contas, decidi res-tringir-me a boredom, Langeweile e kjedsomhet, porque aparecemaproximadamente no mesmo momento e são mais ou menossinônimos. É óbvio, no entanto, que pertencem a um grandecomplexo conceitual com longas raízes históricas.

A palavra entediante é usada com incrível freqüência paradenotar uma variedade de limitações emocionais e falta desentido em várias situações. Muitas descrições do tédio naliteratura são extremamente semelhantes, consistindo, sobre-tudo, numa afirmação de que não há nada capaz de gerar qual-

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quer interesse, juntamente com uma queixa sobre o quantoisso torna a vida intolerável. Kierkegaard o descreve assim:

Como o tédio é terrível – terrivelmente entediante; nãoconheço expressão mais forte, expressão mais verdadeira,pois somente o semelhante conhece o semelhante. Se pelomenos houvesse uma expressão mais elevada, mais forte;isso pelo menos indicaria uma mudança. Deito-me esti-cado, inativo; a única coisa que vejo é: vazio; a única coisaque assimilo: vazio; a única coisa em que me movo: vazio.Nem sequer sinto dor.46

Posso mencionar também, aqui, a canção de Iggy Pop,“I’m bored”, que inclui o seguinte trecho:

I’m boredI’m boredI’m the chairman of the boredI’m sickI’m sick of all my kicksI’m sick of all the stiffsI’m sick of all the dipsI’m boredI bore myself to sleep at nightI bore myself in broad daylight‘Cause I’m boredI’m boredJust another dirty bore…∗

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∗ “Estou entediado/ Estou entediado/ Sou o presidente dos entediados/Estou enjoado/ Estou enjoado de todas as minhas queixas/ Estou enjoado detodos os bêbados/ Estou enjoado de todos os idiotas/ Estou entediado/ Ànoite, me entedio até conseguir dormir/ Entedio-me à luz do dia/ Porqueestou entediado/ Estou entediado/ Apenas a porcaria de um tédio a mais...”

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Ao que parece, o conceito de tédio pode ser usado paraexplicar ou mesmo desculpar muita coisa. O homem subterrâ-neo de Dostoievski, por exemplo, afirma que “tudo teve ori-gem no tédio”.47 É comum usá-lo como desculpa para quasetudo. Uma formulação típica pode ser encontrada no conto deGeorg Büchner, Leonce und Lena: “O que as pessoas não inven-tam por tédio! Elas estudam por tédio, jogam por tédio e final-mente morrem de tédio.”48 Uma versão ainda mais forte éencontrada no mais trágico Lenz, de Büchner: “A maioria daspessoas faz coisas por puro tédio, algumas se apaixonam portédio, outras são virtuosas, outras ainda dissolutas. Quanto amim, absolutamente nada – não tenho vontade sequer de levarminha própria vida, é entediante demais.”49 De maneira seme-lhante, Sthendal escreve em Sobre o amor: “O tédio nos tiratudo, até o desejo de tirar nossa própria vida.”50 Para FernandoPessoa, ele é tão radical que não pode ser superado sequer pelosuicídio, mas apenas por uma coisa completamente impossível:simplesmente não ter existido.51 O tédio é usado como explica-ção para todo tipo de ação e para a total incapacidade de ação.Está subjacente à vasta maioria das ações humanas, de naturezatanto positiva quanto negativa. Para Bertrand Russell, “o tédioé um fator no comportamento humano que recebeu, em minhaopinião, muito menos atenção do que merece. Foi, acredito,uma das maiores forças motrizes ao longo de toda a época histó-rica e, até hoje, continua sendo, mais do que nunca.”52

TÉDIO E SIGNIFICADO

Podemos verificar que o tédio está provavelmente mais disse-minado que nunca observando que o número de “placebossociais” também é o maior de todos os tempos.53 Se há maissubstitutos para o significado, deve haver mais significado que

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precisa ser substituído.54 Onde há falta de significado pessoal,todas as espécies de diversão têm de criar um significado subs-tituto, artificial. Outra solução é o culto às celebridades, em queficamos completamente envolvidos nas vidas dos outros, por-que a nossa própria carece de significado. Será que nossa fasci-nação pelo estranho, alimentada diariamente pelos meios decomunicação de massa, não é resultado de nossa percepção doentediante? A corrida desordenada às diversões, ao lazer, indicaprecisamente o medo do vazio que nos cerca. Essa corrida, anecessidade de satisfação e a falta de satisfação estão inextrica-velmente entrelaçadas. Quanto mais a vida individual se tornao centro do foco, mais forte se torna a insistência no significadoem meio às trivialidades da vida cotidiana. Uma vez que ohomem, há cerca de dois séculos, começou a se ver como um serindividual que deve se realizar, a vida cotidiana parece agorauma prisão. O tédio não está associado a necessidades reais, masa desejo. E esse é um desejo de estímulos sensoriais. Estímulossão a única coisa “interessante”.

A enorme ênfase que damos à originalidade e à inovaçãorevela que a vida, em grande medida, é entediante.55 Hojeparece-nos mais relevante algo ser “interessante” do que teralgum “valor”. Considerar alguma coisa exclusivamente doponto de vista do “interesse” que gera é considerá-la a partir deuma perspectiva puramente estética. O olhar estético registraapenas a superfície, e esta é julgada segundo o interesse ou otédio que desperta. Em que medida uma coisa recai em uma ououtra categoria será, muitas vezes, uma questão de potência doefeito: se uma música parece entediante, às vezes aumentar ovolume ajuda. O olhar estético tem de ser despertado pelaintensidade aumentada ou, preferivelmente, por algo novo, esua ideologia é o superlativismo. Vale a pena notar, contudo,que esse olhar tem uma tendência a recair no tédio – um tédio quedefine todo o conteúdo da vida de maneira negativa, porque é o

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que precisa ser evitado a qualquer preço. Isso talvez tenhaficado particularmente evidente na teoria pós-moderna, emque vimos uma série de estetas da jouissance, com mantras como“intensidade”, “delírio” e “euforia”. O problema foi que oestado pós-moderno não se manteve tão eufórico e deleitosopor muito tempo. Logo se tornou entediante.

Não podemos adotar uma atitude em relação a algo semque haja um interesse subjacente, pois é o interesse que for-nece a direção.56 Mas, como enfatizou Heidegger, o interesseatual é dirigido apenas para o interessante, e o interessante éaquilo que, um momento depois, nos parece indiferente ouentediante.57 A palavra “entediante” está inseparavelmenteligada à palavra “interessante”; os dois termos se disseminarammais ou menos ao mesmo tempo e sua freqüência cresce apro-ximadamente na mesma proporção.58 Foi só a partir do adventodo Romantismo, perto do final do século XVIII, que surgiu anecessidade de que a vida fosse interessante, com a pretensãogeral de que o eu deveria se realizar. Karl Philipp Moritz, cujaimportância para o Romantismo alemão só há pouco foi verda-deiramente reconhecida, afirmou, em 1787, que existia umaligação entre interesse e tédio, e que a vida devia ser interes-sante para se evitar “o tédio insuportável”.59 O “interessante”tem sempre um prazo de validade curto, e realmente nenhumaoutra função senão ser consumido para que o tédio possa sermantido à distância. A principal mercadoria da mídia é a “infor-mação interessante” – signos que são puros bens de consumo,nada mais.

Em seu ensaio “The storyteller” [O contador de histórias],Walter Benjamin insistiu que a “experiência decaiu em valor”.60

Isso está ligado à emergência de uma nova forma de comunica-ção no capitalismo avançado: a informação. “A informação ... rei-vindica uma verificabilidade imediata. O principal requisito éque ela pareça ‘compreensível em si mesma’ ...; nenhum evento

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chega mais até nós sem já ter sido instilado com uma explica-ção.”61 Embora a experiência forneça significado pessoal, este ésolapado pela informação.62 Mais ou menos na mesma época emque Benjamin fez sua observação, T.S. Eliot escreveu: 63

Where is the Life we have lost in living?Where is the wisdom we have lost in knowledge?Where is the knowledge we have lost in information?∗

Sabemos que informação e significado não são a mesmacoisa. Em geral, significado consiste em inserir pequenas par-tes num contexto maior e integrado, ao passo que informação éo oposto. A informação é idealmente comunicada como umcódigo binário, enquanto o significado é comunicado mais sim-bolicamente. A informação é manipulada ou “processada”, aopasso que o significado é interpretado.64 Ora, é óbvio que nãopodemos simplesmente escolher dispensar a informação emfavor do significado, pois, para sermos razoavelmente funcio-nais no mundo de hoje, precisamos ser capazes de lidar critica-mente com uma abundância de informação transmitida atravésde muitos meios diferentes. Alguém que insistisse em compi-lar pessoalmente todas as experiências se tornaria, sem sombrade dúvida, um fracasso. O problema é que, cada vez mais, a tec-nologia moderna nos torna consumidores e observadores passi-vos, e cada vez menos participantes ativos. Isso nos dá um défi-cit de significado.

Não é lá muito fácil explicar o que entendo por “signifi-cado”. Numa semântica filosófica, há um sem-número de teo-rias sobre o significado que – especialmente após os trabalhosde Gottlob Frege – procuram fornecer uma explicação em ter-

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∗ “Onde está a Vida que perdemos vivendo?/ Onde está a sabedoria que per-demos no conhecimento?/ Onde está o conhecimento que perdemos na infor-mação?”

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mos de expressão lingüística. Mas o conceito a que estou mereferindo tem uma perspectiva adicional, porque estamosfalando sobre um significado que é, inextricavelmente, um sig-nificado para alguém. Peter Wessel Zapffe tentou expressar esseconceito da seguinte forma:

Que uma ação ou algum outro fragmento da vida tenha sig-nificado quer dizer que nos dá uma sensação muito especí-fica, que não é fácil traduzir em pensamento. Seria talvezalgo como uma boa intenção que animaria essa ou aquelaação: uma vez atingido o objetivo, a ação seria “justificada”,equilibrada, confirmada – e o sujeito recobraria a calma.65

Esse é um estranho tipo de definição, mas contém o ele-mento vital – que o significado está ligado à relação que umapessoa motivada mantém com o mundo. Neste ponto, valemencionar que uma importante diferença entre o conceito designificado de Zapffe e o meu é que ele justifica o seu biologi-camente, ao passo que eu o faço mais historicamente. ComoZapffe também indica, essas ações apontam igualmente paraalgo mais – para a vida como um todo. Não pretendo retraçaraqui suas considerações; vou me contentar em declarar que osignificado que estamos procurando – ou mesmo exigindo – é,em última instância, um significado existencial ou metafí-sico.66 Este pode ser procurado de várias maneiras e existe sobvárias formas. Pode ser concebido como algo já dado, do qualpodemos participar (numa comunidade religiosa, por exem-plo), ou como algo que precisa ser construído (como uma socie-dade sem classes). É concebido como algo coletivo ou algoindividual. Eu afirmaria também que a concepção de signifi-cado particularmente prevalente no Ocidente, do Roman-tismo em diante, é a de um significado individual que tem deser realizado. É a esse sentido que me refiro quando falo de sig-

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nificado pessoal, mas poderia chamá-lo também significadoromântico.

O homem é viciado em significado. Todos nós temos umgrande problema: nossas vidas têm de ter alguma espécie de con-teúdo. Não suportamos viver sem algum tipo de conteúdo quepossamos ver como constituidor de significado. A falta de sentidoé entediante. E o tédio pode ser descrito metaforicamente comouma perda do significado. O tédio pode ser compreendido co-mo um desconforto que comunica que a necessidade de signifi-cado não está sendo satisfeita. Para eliminar esse desconforto,atacamos os sintomas, em vez de atacar a própria doença, e pro-curamos todas as espécies de significados substitutos.

Uma sociedade que funcione bem promove a capacidadedo homem de encontrar significado no mundo; uma que fun-cione mal não o faz. Nas sociedades pré-modernas, há, em geral,um significado coletivo que é suficiente.67 Para nós, “românti-cos”, as coisas são mais problemáticas, pois mesmo que abrace-mos modos coletivistas de pensamento, como o nacionalismo,eles sempre acabam por parecer lamentavelmente insuficien-tes. Continua havendo significado, é claro, mas parece havermenos. Informação, por outro lado, existe em abundância. Amídia moderna tornou possível uma enorme busca por conhe-cimento – isso tem aspectos positivos inegáveis, mas a maiorparte desse conhecimento é ruído irrelevante. Por outro lado, seescolhermos usar a palavra “significado” em sentido amplo, nãohá falta de significado no mundo – há superabundância. Esta-mos positivamente imersos em significado. Mas este não éaquele que procuramos. O vazio do tempo no tédio não é umvazio de ação, pois há sempre alguma coisa nesse tempo, aindaque seja apenas a visão de tinta secando. O vazio do tempo é umvazio de significado.

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Horkheimer e Adorno defenderam uma idéia próxima àasserção de Benjamin com respeito ao crescimento da informa-ção. Em continuação à teoria da interpretação de Kant, o esque-matismo, eles escreveram:

A contribuição que o esquematismo kantiano ainda espe-rava dos sujeitos – relacionando antecipadamente a diver-sidade sensorial aos conceitos subjacentes – lhe foi tomadapela indústria. Ela realiza o esquematismo como um ser-viço para o freguês ... Para o consumidor, não resta nada aclassificar que já não tenha sido antecipado no esquema-tismo da própria produção.68

Acredito que o tédio é resultado de uma falta de signifi-cado pessoal, e que isso se deve, em grande medida, precisa-mente ao fato de que todos os objetos e ações chegam a nósinteiramente codificados, enquanto nós – como descendentesdo Romantismo – insistimos num significado pessoal. ComoRilke escreveu na primeira de suas Elegias de Duíno, é óbvio “...que não estamos completamente à vontade no mundo inter-pretado”. O homem é um ser formador de mundo, um ser queconstitui ativamente seu próprio mundo; assim, quando todasas coisas já estão inteiramente codificadas, a constituição ativado mundo torna-se supérflua, e perdemos atrito na relação como mundo. Nós, românticos, precisamos de um significado cons-truído por nós mesmos – e a pessoa preocupada com auto-rea-lização tem inevitavelmente um problema de significado.Esse não é mais um significado coletivo na vida, um significadode que cabe ao indivíduo participar. Também não é fácilencontrar um significado próprio na vida. O significado que amaioria das pessoas abraça é a auto-realização como tal, masnão é óbvio que tipo de eu deve ser realizado, nem qual pode-ria ser o resultado disso. A pessoa segura com relação a si

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mesma não perguntará quem ela é. Só um eu problemáticosente necessidade de realização.

O tédio pressupõe subjetividade, isto é, consciência de si.A subjetividade é uma condição necessária mas não suficientepara o tédio. Para ser capaz de se entediar, o sujeito deve sercapaz de se perceber como um indivíduo apto a se inserir emvários contextos de significado, e esse sujeito reclama signifi-cado do mundo e de si mesmo. Sem tal demanda, não haveriatédio. Animais podem carecer de estímulos, mas quase certa-mente não podem se entediar.69 Como Robert Nisbet afirmou:

O homem, ao que parece, é único em sua capacidade detédio. Partilhamos com todas as formas de vida a apatiaperiódica, mas apatia e tédio são diferentes ... O tédio estámuito acima da apatia na escala das aflições, e provavel-mente só um sistema nervoso tão desenvolvido quanto odo homem é sequer capaz de senti-lo. E dentro da espéciehumana, um nível de mentalidade pelo menos “normal”parece ser um requisito. O idiota pode conhecer a apatia,não o tédio.70

Goethe observou em algum lugar que os macacos merece-riam ser considerados humanos se fossem capazes de se ente-diar – e é bem possível que tivesse razão. Ao mesmo tempo, otédio é inumano porque rouba significado da vida humana ou,possivelmente, é uma expressão da ausência de tal significado.

Com o Romantismo, todos os olhares se voltaram paraesse déficit de significado que nos ameaça constantemente. Aexpansão do tédio está ligada ao crescimento do niilismo, masa história e o problema do niilismo, e possivelmente seu fim,é uma questão imensamente complexa em si mesma e não tra-taremos dela em nenhuma profundidade. O tédio e o niilismoconvergem na morte de Deus. O primeiro uso importante do

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conceito de niilismo na filosofia está em “Brief an Fichte”(Carta a Fichte), de F.H. Jacobi, escrito em 1799.71 Uma dasprincipais idéias defendidas por Jacobi é que o homem esco-lheu entre Deus e o nada, e ao escolher o nada fez de si mesmoum deus. Essa lógica é mais tarde reiterada, mas, dessa vez, noafirmativo, por Kirilov em Os possessos, de Dostoievski: “SeDeus não existe, eu me torno Deus.”72 Como sabemos, esco-lhemos o nada, embora a palavra “escolher” seja provavel-mente enganosa aqui – isso aconteceu. Mas o homem nãodesempenhou o papel de um deus assim com tanto sucesso.Kirilov afirma também que na ausência de Deus “sou obri-gado a expressar minha própria obstinação”. Na ausência deDeus, o homem assumiu o papel de centro gravitacional parao significado – mas só conseguiu desempenhá-lo em pequenamedida.

TÉDIO, TRABALHO E LAZER

O tédio está associado à reflexão, e, em toda reflexão, há a ten-dência a uma perda do mundo. As distrações perturbam a refle-xão, que, no entanto, será sempre um fenômeno passageiro. Otrabalho é, muitas vezes, menos entediante que o lazer, masquem defende o trabalho como tratamento contra o tédio estáconfundindo a supressão temporária de um sintoma com a curade uma doença. E não há como escapar do fato de que muitasformas de trabalho são mortalmente entediantes. O trabalho é,com freqüência, opressivo, muitas vezes sem potencial parapromover qualquer significado na vida. A resposta à perguntade por que as pessoas se entediam não reside no trabalho ou noócio. Uma pessoa pode ter muito ócio sem se sentir notavel-mente entediada e pode ter muito pouco ócio e morrer de tédio.O aumento da lucratividade na indústria moderna e a conse-

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qüente redução das horas de trabalho e prolongamento do ócionão levaram necessariamente a nenhuma melhora da qualidadede vida. O tédio não é uma questão de ócio, mas de significado.

Em seu Livro do desassossego, Fernando Pessoa expressouisso da seguinte maneira:

Dizem que o tédio é uma doença dos inertes, ou que atacasó os que nada têm que fazer. Essa moléstia da alma é,porém, mais sutil: ataca os que têm disposição para ela, epoupa menos os que trabalham ou fingem que trabalham(o que para o caso é o mesmo) que os inertes deveras.

Nada há pior que o contraste entre o esplendor naturalda vida interna, com as suas Índias naturais e os seus paísesincógnitos, e a sordidez, ainda que em verdade não sejasórdida, de quotidianidade da vida. O tédio pesa maisquando não tem a desculpa da inércia. O tédio dos grandesesforçados é o pior de todos.

Não é o tédio a doença do aborrecimento de nada terque fazer, mas a doença maior de se sentir que não vale apena fazer nada. E, sendo assim, quanto mais há que fazer,mais tédio há que sentir.

Quantas vezes ergo do livro onde estou escrevendo, eque trabalho, a cabeça vazia de todo o mundo! Mais mecustara estar inerte, sem fazer nada, sem ter que fazer nada,porque esse tédio, ainda que real, ao menos o gozaria. Nomeu tédio presente não há repouso, nem nobreza, nembem-estar em que haja mal-estar: há um apagamentoenorme de todos os gestos feitos, não um cansaço virtualdos gestos por não fazer.73

Pessoa está certo ao dizer que o trabalho árduo é muitasvezes tão entediante quanto a ociosidade. Pessoalmente, nuncame senti tão entediado como quando estava no processo de com-

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pletar uma grande dissertação após vários anos de trabalho. Otrabalho entediava-me tanto que tive de mobilizar toda a minhaforça de vontade para continuar, e o que senti, graças a isso, foiapenas um cansaço extraordinário. O trabalho me parecia com-pletamente sem sentido e eu o concluí quase como um autô-mato. Quando entreguei a dissertação, senti um enorme alívio,e pensei que a vida voltaria a me parecer cheia de significado,agora que podia ter ócio. E foi o que aconteceu durante algumassemanas; depois as coisas voltaram a ser como antes.

O ócio em si mesmo não é mais cheio de significado que otrabalho, e a questão mais básica é como uma pessoa escolheficar ociosa. De fato, poucos de nós temos qualquer razão paraviver em total ociosidade, e nos revezamos entre trabalho efolga. Começamos trabalhando durante o dia todo, depoisvemos televisão durante as primeiras horas da noite para dormirnas horas restantes. Este é um padrão de vida bastante comum.Adorno associou o tédio à alienação no trabalho, em que otempo livre corresponde à ausência de autodeterminação noprocesso de produção.74 Tempo livre é um tempo em que a pes-soa está livre, ou pode estar livre. De que tipo de liberdade esta-mos falando? Uma liberdade do trabalho? Nesse caso, é o traba-lho que fornece uma definição negativa de liberdade. Somosmais livres durante nosso tempo livre do que enquanto traba-lhamos? É inegável que temos um papel ligeiramente dife-rente, pois enquanto somos produtores em nossas horas de tra-balho, somos sobretudo consumidores em nosso tempo livre.No entanto, não somos necessariamente mais livres ao desem-penhar um papel ou outro, e um não é necessariamente maissignificativo que o outro. Como já foi mencionado, o tédio nãoé uma questão de trabalho ou de liberdade, mas de significado.

O trabalho que não confere muito significado à vida éseguido por tempo livre do mesmo tipo. Por que o trabalho nãofornece nenhum significado real? Naturalmente, seria tentador

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simplesmente nos referirmos à alienação, mas prefiro falarsobre indiferença, pois não acredito que o conceito de alienaçãoainda seja muito aplicável. Retornarei a isso na última parte dolivro. Em A identidade, de Milan Kundera, o personagem Jean-Marc diz:

Eu diria que a quantidade de tédio, se o tédio for mensurá-vel, é muito maior hoje do que no passado. Porque as pro-fissões antigas, pelo menos a maioria delas, eram impensá-veis sem um envolvimento apaixonado: os camponesesapaixonados por sua terra; meu avô, o mágico de belasmesas; sapateiros que conheciam de cor os pés de cadaaldeão; os madeireiros; os jardineiros; provavelmente atéos soldados matavam com paixão naquela época. O signifi-cado da vida não era uma questão; estava lá com eles, muitonaturalmente, em suas oficinas, em seus campos. Cadaprofissão havia criado sua própria mentalidade, sua própriamaneira de ser. Um médico pensava de maneira diferentede um camponês, um soldado comportava-se diferente deum professor. Hoje somos todos semelhantes, todos uni-dos por nossa apatia compartilhada em relação a nosso tra-balho. Essa mesma apatia tornou-se uma paixão. A únicagrande paixão coletiva de nosso tempo.75

Nesse trecho, Kundera romantiza o passado consideravel-mente, mas, apesar disso, acredito que captou algo de essencialao chamar atenção para o nivelamento das diferenças e a indife-rença resultante. Isso indica também por que o trabalho em simesmo não pode mais ser considerado uma espécie de lista derespostas. Ele deixou de ser parte de um contexto mais amploque lhe conferia significado. Se o trabalho pode ser consideradouma cura para o tédio hoje, é na mesma medida que uma inje-

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ção de narcótico ou uma garrafa de bebida alcoólica – como umatentativa de escapar do próprio tempo.

TÉDIO E MORTE

Seria a vida moderna acima de tudo uma tentativa de escapar dotédio? O tédio nos impele a transcender barreiras – que em Bau-delaire são identificadas, sobretudo, com perversidades e como novo. As flores do mal termina em “A viagem”, em que a morteé a única coisa nova que resta: 76

Ô Mort, vieux capitaine, il est temps! levons l’ancre!Ce pays nous ennuie, ô Mort! Appareillons!Si le ciel et la mer sont noirs comme de l’encre,Nos coeurs que tu connais sont remplis de rayons!

Verse-nous ton poison pour qu’il nous réconforte!Nous voulons, tant ce feu nous brûle le cerveau,Plonger au fond du gouffre, Enfer ou Ciel, qu’importe?Au fond de l’Inconnu pour trouver du nouveau!∗

Como disse Walter Benjamin em Zentralpark: “Para aspessoas de hoje só há uma coisa radicalmente nova – e é semprea mesma: a morte.”77

Os eventos, seja qual for sua importância, são cercadospor lentes de câmeras e microfones, e podem ser ampliados a

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∗ “Ó Morte, velho capitão, é hora! Levantemos âncora!/ Este país nos enfada,ó Morte! Desfraldemos as velas!/ Se o céu e o mar são negros como tinta,/ Nos-sos corações que tu conheces estão repletos de luz!/ Entorna sobre nós teuveneno para que ele nos console!/ Queremos, de tal modo este fogo nosqueima o cérebro,/ Mergulhar no fundo do abismo, Inferno ou Céu, queimporta?/ No fundo do Desconhecido para encontrar o novo!”

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proporções enormes. Tudo é potencialmente visível – nadaestá escondido. Podemos falar de uma pantransparência, poistudo é transparente. A transparência e as interpretaçõesempacotadas do mundo estão inter-relacionadas. A transpa-rência é precisamente não imediata, sempre mediada, namedida em que o mundo é visto através de alguma coisa, istoé, uma interpretação já existente que o esvazia de segredos. Omundo se torna entediante quando tudo é transparente. É porisso que algumas pessoas anseiam pelo perigoso e pelo cho-cante. Elas substituíram o não-transparente pelo extremo.Provavelmente é por isso que muitas são tão obcecadas pela“violência das ruas” e a “violência cega” que a imprensa sen-sacionalista não se cansa de noticiar. Como a vida seria ente-diante sem violência!

Isso está bem expresso em um poema escrito por um ex-skinhead: 78

Everywhere they are waiting. In silence.In boredom. Staring into space.Reflecting on nothing, or on violence. . .Then suddenly it happens. A motor-cycleExplodes outside, a cup smashes.They are on their feet, identifiedAt last as living creatures,The universal silence is shattered,The law is overthrown, chaosHas come again.∗

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∗ “Eles esperam em toda parte. Em silêncio./ No tédio. Fitando o espaço./Pensando em nada, ou na violência.../ Então, de repente, ela acontece. Umamotocicleta/ Explode lá fora, uma xícara se quebra./ Eles estão de pé, identi-ficados/ Por fim, como criaturas vivas,/ O silêncio universal é estilhaçado,/ Alei é derrubada, o caos/ Chegou novamente.”

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O caos e a violência representam o motor que nos impeledo tédio para a vida, acordando-nos, conferindo à vida algumaespécie de significado. Temos uma atitude estética em relaçãoà violência, e essa estética era claramente visível na antiestéticado modernismo, com seu foco no chocante e no medonho. Alémdisso, temos uma atitude moral em relação à violência, que que-remos ver reduzida – mas não sei se o olhar moral sobrepujanecessariamente o estético. O conflito de valores nas socieda-des modernas não ocorre somente entre grupos sociais dissimi-lares – talvez haja conflitos igualmente no interior dos sujeitosindividuais, que participam de diferentes esferas de valores,como, por exemplo, a moral e a estética. Tal como os conflitosentre os vários grupos, os conflitos no interior dos sujeitos indi-viduais não podem ser resolvidos por referência a uma instâncianeutra, mais elevada.

A violência é “interessante”, não importa o que estejaenvolvido. Quase no final de seu ensaio “A obra de arte na erade sua reprodutibilidade técnica”, Benjamin observou que “ahumanidade ... que no tempo de Homero era um objeto decontemplação para os deuses do Olimpo, agora o é para simesma. Sua auto-alienação atingiu um grau em que ela é capazde experimentar sua própria destruição como um prazer esté-tico de primeira ordem.”79 O tédio faz tudo, ou quase tudo,parecer uma alternativa tentadora, e tem-se a impressão deque o que realmente precisamos é de uma nova guerra, emdecorrência de uma grande catástrofe. “O tédio pode se tornara principal fonte de infelicidade do homem ocidental. So-mente a catástrofe parece ser a liberação mais segura do tédio,e, no mundo de hoje, a mais provável.”80 O problema é que nãohá nenhuma razão particular para se acreditar que aqueles quesobreviverem a uma catástrofe serão poupados do tédio. Paraquem está fora dela, porém, o mundo atingido parecerá umaalternativa interessante. Em Diário de um cura de aldeia, Geor-

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ges Bernanos profetiza que o tédio será a causa mais óbvia dadestruição da humanidade:

Pois se a raça humana desaparecer, será por enfado, tédio.A humanidade será lentamente devorada como uma vigapor um fungo invisível. ... Veja estas guerras mundiais, porexemplo, que aparentemente atestam uma vitalidade vio-lenta ao homem, mas, na verdade, provam sua crescenteletargia. Isso terminará com multidões inteiras sendo con-duzidas ao cadafalso em certas épocas.81

O tédio proporciona uma espécie de antecipação pálida damorte, e poderíamos imaginar que a morte real violenta seriapreferível, que gostaríamos mais que o mundo acabasse comuma explosão que com uma mísera lamúria. Nietzsche mencio-nou também o prazer e a sublimidade associados a um mundoque desaparece.82

Uma propriedade do tédio é fornecer uma espécie de pers-pectiva da existência, permitindo-nos compreender que somoscompletamente insignificantes em tão vasto contexto. JosephBrodsky conclui que “o tédio fala a linguagem de hoje, e ele nosensinará a mais importante lição de nossa vida ... que somoscompletamente insignificantes”.83 Como seres finitos, estamoscercados por uma infinidade de tempo desprovido de con-teúdo. A experiência do tempo muda, com o passado e o futurodesaparecendo e tudo se tornando um implacável agora. Ogrupo Talking Heads canta: “Heaven is a place where nothing everhappens.”∗ Sob esse aspecto, o tédio parece celeste. É como se ainfinidade tivesse se transferido para este mundo vinda doalém. Mas essa infinidade, ou monotonia, é diferente daquela

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∗ “O céu é um lugar onde nada jamais acontece.”

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descrita por místicos. Simone Weil estende-se sobre a diferençaentre as duas:

A uniformidade é, ao mesmo tempo, a mais bela e a maisrepulsiva coisa que existe. A mais bela se refletir a eterni-dade. A mais feia se for um sinal de algo interminável eimutável. Tempo conquistado ou tempo infértil. O sím-bolo da uniformidade bela é o círculo. O símbolo da unifor-midade cruel é o tique-taque de um pêndulo.84

O tempo no tédio não é fruto de uma conquista: é aprisio-nador. O tédio está relacionado à morte, mas essa é uma relaçãoparadoxal, porque o tédio profundo assemelha-se a uma espé-cie de morte, ao passo que a morte assume a forma do únicoestado possível – uma ruptura com o tédio. O tédio tem a vercom finitude e com o nada. É a morte em vida, uma não-vida.Na inumanidade do tédio ganhamos uma perspectiva de nossaprópria humanidade.

TIPOLOGIAS DO TÉDIO

Muito tédio deriva da repetição. Fico muitas vezes entediado, porexemplo, quando vou a museus e galerias e só encontro pálidasimitações de obras que já vi muitas vezes. Entedio-me quandoouço um conferencista pela quarta vez, e entedio-me quando eudou uma conferência pela quarta vez.

Pode acontecer de aceitarmos incumbências para as quaisnão estamos realmente qualificados, simplesmente porquevamos certamente aprender algo de novo no processo. Vistoassim, o tédio é uma fonte positiva de desenvolvimentohumano, embora não necessariamente de progresso. Podemosnos entediar de muitas maneiras. Podemos nos entediar com

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objetos e pessoas, podemos nos entediar com nós mesmos. Masexiste também uma forma anônima de tédio, em que nada emparticular nos entedia. Sente-se tédio, porque ele não temnenhum conteúdo que o torne meu. Neste último caso, talvezfosse correto dizer, num verdadeiro estilo heideggeriano, que otédio se entedia.

Há muitas diferentes tipologias do tédio. Milan Kundera,por exemplo, arrola três: o tédio passivo, como quando alguémboceja, sem interesse; o tédio ativo, como quando alguém sededica a umhobby; e o tédio rebelde, como quando alguém – diga-mos, um jovem – quebra vitrines de lojas.85 Essa tipologia não meparece particularmente iluminadora. Nada faz além de enfatizarque se pode reagir passiva ou ativamente, e não é capaz de distin-guir qualitativamente entre várias formas de tédio.

Prefiro a tipologia de Martin Doehlemann, que distinguequatro tipos de tédio: o tédio situacional, que sentimos ao espe-rar alguém, ao ouvir uma conferência ou ao tomar o trem; o tédioda saciedade, quando obtemos demais da mesma coisa e tudose torna banal; o tédio existencial, em que a alma está sem con-teúdo e o mundo em ponto morto; e o tédio criativo, que é carac-terizado menos por seu conteúdo que por seu resultado: sen-timo-nos forçados a fazer algo de novo.86 Esses quatro tipos sesuperpõem, mas há distinções claras.

Flaubert diferenciou o “tédio comum” (ennui commun) do“tédio moderno” (ennui moderne),87 que correspondem grossomodo a nossa distinção entre tédio situacional e existencial.Não é muito fácil, no entanto, determinar qual desses doistipos de tédio aflige os personagens de seus romances. Será otédio que aflige Bouvard e Pécuchet “comum” ou “mo-derno”? É comum no sentido de que eles se entediam quandoimpedidos de fazer algo concreto, como, por exemplo, devotar-se a seus estudos insanos de tudo que existe entre o céu e aterra; mas é mais “moderno” no sentido de que afeta a existên-

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cia deles como um todo.88 Apesar disso, inclino-me a dizer queambos sofrem de tédio “comum”. O tédio experimentado porEmma Bovary, por outro lado, parece ser mais do tipo “mo-derno”, ainda que também tenha relação com um objeto, nocaso a sexualidade. Uma maneira de distinguir entre tédiosituacional e existencial seria dizer que, enquanto o primeirocontém um desejo por algo específico, o segundo contém umanseio por todo e qualquer desejo.

Podemos observar que o tédio situacional e o existencialtêm diferentes modos simbólicos de expressão, ou melhor:enquanto expressamos o tédio situacional através de um bocejo,remexendo-nos na cadeira, esticando os braços e as pernas, otédio existencial profundo é mais ou menos desprovido deexpressão. Enquanto a linguagem corporal do tédio situacionalparece indicar que podemos abandonar a submissão, nos des-vencilhar e seguir adiante, no tédio existencial é como se a faltade expressão contivesse a intuição implícita de que ele não podeser superado por nenhum ato de vontade. Se há alguma formaclara de expressão para o tédio profundo é por via de algum com-portamento radical e inovador, indicando negativamente o tédiocomo seu pré-requisito. Realmente ajuda remexer-se na cadeiradurante uma conferência ou uma reunião; viajar também fun-ciona. Ganha-se um alívio temporário. Como diz o narrador noromance La noia, de Alberto Moravia, comparando seu própriotédio com o que flagelava seu pai:

Meu pai havia realmente sofrido de tédio, também ele,mas, em seu caso, esse sofrimento havia se expressadonuma feliz existência de vagabundagem por váriasregiões. Seu tédio, em outras palavras, era um tédio vul-gar, como normalmente entendemos o termo, um tédioque, para ser mitigado, nada exige além de experiênciasnovas, incomuns.89

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O próprio narrador, por outro lado, sofre de um tédio muitomais profundo, e uma forma mais profunda de tédio requerobviamente um remédio mais forte, isto é, um comportamentomais radical, que transponha fronteiras. Georges Bataillecomentou: “Não há sensação mais estimulante que a consciên-cia do vazio que nos cerca. Isto não significa em absoluto quenão experimentamos um vazio dentro de nós mesmos, ao con-trário, mas superamos essa sensação e ingressamos numa cons-ciência da transgressão.”90 A consciência de um vazio é o pré-requisito para a transposição de fronteiras, mas, como veremos,cruzar fronteiras não ajuda a longo prazo, pois como podemosescapar de um mundo entediante?91

Schopenhauer descreveu seu tédio como um “anseio insí-pido sem nenhum objeto particular”.92 No tédio profundo, per-demos a capacidade de encontrar qualquer objeto que deseje-mos. O mundo murchou e morreu. Kafka queixou-se, em seudiário, de que experimentava algo que era “como se tudo que eupossuísse tivesse me deixado, e como se tudo isso dificilmentepudesse ser o bastante caso retornasse”.93 Em La noia, Moraviadiz que o tédio é “como uma doença das próprias coisas, umadoença que faz toda vitalidade murchar e morrer, desapare-cendo quase de repente”.94 Ele é como um “nevoeiro”.95

Encontramos essa expressão também em Heidegger, que serefere a um tédio profundo como um “nevoeiro silencioso”, quemistura todas as coisas e pessoas, inclusive a si mesmo, numaestranha indiferença.96 Garborg faz outra descrição perspicaz:“Não consigo encontrar nenhuma maneira melhor de me referira ele do que como um frio mental – um frio que atingiu minhamente.”97 As descrições variam, atribuindo torpor e vazio ora aoego, ora ao mundo, presumivelmente porque ele pertence aambas as esferas. Freud afirma que “no luto, é o mundo que setornou pobre e vazio; na melancolia, é o próprio ego”.98 AdamPhillips assinala ao comentar essa passagem: “E no tédio, pode-

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ríamos acrescentar, são ambos.”99 É impossível determinar se ascoisas nos parecem entediantes porque por acaso estamos ente-diados ou se nos sentimos entediados porque o mundo é ente-diante. É impossível estabelecer qualquer distinção entre a con-tribuição feita pelo sujeito e pelo objeto ao tédio, uma vez que ovazio do sujeito e o do objeto estão interligados. Segundo Fer-nando Pessoa, entediar-se é como ter a ponte levadiça sobre ofosso que cerca o castelo de nossa alma subitamente erguida, demodo que deixa de haver qualquer conexão entre o castelo e osterrenos circundantes. Diz ainda:

Assisto a mim. Presencio-me. As minhas sensações passamdiante de não sei que olhar meu como coisas externas.Aborreço-me de mim em tudo. Todas as coisas são, até àssuas raízes de mistério, da cor do meu aborrecimento.100

A certa altura, Dostoievski fala sobre o tédio como uma“aflição bestial e indefinível”.101 Esta descrição aparente-mente vaga é, na realidade, muito precisa. O tédio é praticamen-te indefinível porque carece da positividade típica da maioriados demais fenômenos. Deve ser entendido basicamente comouma ausência – uma ausência de significado pessoal. E, co-mo direi mais tarde na discussão da análise de Heidegger, essaperda de significado reduz a vida humana a algo análogo a umaexistência puramente animal.

TÉDIO E NOVIDADE

Martin Doehlemann afirmou que o tédio se caracteriza por umacarência de experiências.102 Isso se aplica ao tédio situacional,no qual algo específico, ou a falta de algo específico, nos ente-dia (embora deva ser esclarecido que tanto um excesso quanto

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um déficit de experiências podem levar ao tédio).103 O tédioexistencial, por outro lado, deve ser entendido fundamental-mente com base num conceito de falta de experiência acumulada.O problema é que tentamos superar esse tédio acumulandosensações e impressões cada vez mais novas e mais fortes, emvez de nos darmos tempo para acumular experiência. É como seachássemos que somos capazes de estabelecer um eu substan-cial, livre de tédio, bastando para isso que conseguíssemosenchê-lo com um número suficiente de impulsos. Quando nosjogamos sobre tudo que é novo, é na esperança de que o novoseja capaz de ter uma função individualizante e de dotar a vidade um significado pessoal; mas tudo que é novo logo se tornavelho, e a promessa de significado pessoal nem sempre é cum-prida – pelo menos, não mais que apenas no momento presente.O novo sempre se transforma rapidamente em rotina, e, então,também o novo entedia, pois é sempre o mesmo; entediaquando se descobre que tudo é intoleravelmente idêntico “sobas falsas diferenças das coisas e das idéias”,104 como acreditaPessoa, porque o que está na moda sempre se revela como “amesma velha coisa numa carroça nova em folha”, como cantaDavid Bowie em “Teenage Wildlife”.

A modernidade teve a moda como um princípio, e a moda,como disse Benjamim, é “a eterna recorrência do novo”.105 É umfenômeno imensamente importante.106 Num mundo que a temcomo princípio, recebemos mais estímulos, mas também mais té-dio, mais emancipação e correspondente escravidão, mais indi-vidualidade e mais impessoalidade abstrata. A única individua-lidade na moda é aquela que consiste em fazer um lance maisalto que o dos outros, mas, precisamente por essa razão, termina-se sendo completamente controlado por ela. Como Georg Sim-mel salientou um século atrás, é realmente verdade que o líderacaba por ser liderado.107 E aquele que decide adotar uma ati-tude negativa em relação à moda, desviando-se deliberada-

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mente dela – por exemplo, recusando-se a ser moderno – estásendo igualmente regido pela moda, porque seu estilo pessoal édefinido simplesmente como negação.

Um objeto em moda não precisa, estritamente falando,ter nenhuma qualidade exceto ser novo. Qualidade vem dolatim qualitas, que talvez possa ser traduzido como naturezaou caráter.108 A qualidade de um objeto está relacionada àespécie de coisa que ele é, e um objeto sem qualidade não temidentidade. Para sociedades mais antigas, as coisas eram por-tadoras de continuidade e estabilidade, mas isso é o opostodiametral do princípio da moda: criar um ritmo cada vez maisrápido, tornar um objeto supérfluo tão logo quanto possível,de modo a poder adotar um novo. Kant provavelmente estavacerto ao dizer que é melhor ser um idiota que está na moda doque ser apenas um idiota,109 mas todo idiota na moda maiscedo ou mais tarde será abandonado. E, sendo impessoal pornatureza, a moda não pode nos fornecer o significado pessoalpelo qual lutamos.

Quando tudo se torna intercambiável e, em termos devalor, não-diferente (leia-se: indiferente), preferências genuí-nas tornam-se impossíveis, e terminamos em total aleatorie-dade, ou em total paralisia da ação. Lembra-se do asno de Buri-dan, que morre de fome porque não é capaz de escolher entredois montes idênticos de comida? Decisões racionais pressu-põem diferenças, e preferências pressupõem diferenças. Oromance que mais bem apresenta essa mania decadente de dis-tinção é provavelmente À Rebours (1884), de J.-K. Huysmans.Nele, o conde de Esseintes, doente de tédio, só consegue darconteúdo a sua vida através de distinções hipersutis e da mon-tagem de elaborados ambientes artificiais.110 Em O psicopataamericano, de Bret Easton Ellis, a diferença entre, por exemplo,dois tipos de água mineral ou duas produções de Os miseráveistorna-se mais importante que qualquer outra coisa. Distingui-

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mos uma marca de roupa de outra, um uísque de outro, uma prá-tica sexual de outra. Ficamos desatinados em nossa procura pordiferenças. Felizmente, ou lamentavelmente, a indústria dapropaganda está aí para nos salvar, com novas distinções. Fazerpublicidade, em essência, nada mais é que criar diferençasqualitativas ali onde não existe nenhuma. Os produtos de certotipo (roupas, carros) são, em sua maioria, quase completa-mente idênticos e, portanto, sem qualitas, sem natureza pró-pria. Por isso mesmo, torna-se ainda mais importante criar umadiferença que possa distingui-los uns dos outros. O importanteé a distinção em si, não o conteúdo, pois ao estabelecer taisdiferenças esperamos manter a crença de que o mundo aindatem qualidades.

Tornamo-nos grandes consumidores de coisas novas epessoas novas para quebrar a monotonia da mesmice. Demaneira um tanto enigmática, Roland Barthes escreveu: “Otédio não está muito distante do desejo: é desejo visto do terri-tório do prazer.”111 Acho que o prazer deveria ser entendidoaqui com o significado de o “mesmo”, enquanto o desejo deviaser entendido como o que vai além do “mesmo”, aquilo queestá “fora” – transcendência. O tédio é imanência em sua formamais pura. O antídoto deve aparentemente ser transcendência.Mas como é a transcendência possível dentro de uma imanência –e imanência que consiste em nada? Pois uma transcendência temque ser alguma coisa. Como escapar de nada para alguma coisa?E o que caracteriza o tédio em sua forma mais profunda não énossa crescente indiferença à existência de alguma coisa?112

Jean Baudrillard afirma que enquanto a pergunta filosófica tra-dicional costumava ser “por que há alguma coisa em vez denada?”, a pergunta real hoje é “por que há apenas nada em vezde alguma coisa?”113 Essas indagações brotam de um tédio pro-fundo. E nesse tédio a realidade inteira está em jogo.

Fernando Pessoa descreve esse vazio belamente:

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Tudo isso está vazio, até na idéia do que é. Tudo isso estádito em outra linguagem, para nós incompreensível, merossons de sílabas sem forma no entendimento. A vida é oca,a alma é oca, o mundo é oco. Todos os deuses morrem deuma morte maior que a morte. Tudo está mais vazio que ovácuo. É tudo um caos de coisas nenhumas.

Se penso isto e olho, para ver se a realidade me mataa sede, vejo casas inexpressivas, caras inexpressivas, gestosinexpressivos. Pedras, corpos, idéias – está tudo morto.Todos os movimentos são paragens, a mesma paragemtodos eles. Nada me diz nada. Nada me é conhecido, nãoporque o estranhe mas porque não sei o que é. Perdeu-se omundo. E no fundo da minha alma – como única realidadedeste momento – há uma mágoa intensa e invisível, umatristeza como o som de quem chora num quarto escuro.114

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