sr. francisco josé eguiguren praeli relator sobre os...
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20 de outubro de 2017
Sr. Francisco José Eguiguren Praeli Relator sobre os Direitos dos Povos Indígenas
Comissão Interamericana de Direitos Humanos
Organización de los Estados Americanos
Sr. Paulo Abrão Secretário Executivo
Comissão Interamericana de Direitos Humanos
Assunto: audiência “Situação de direitos
humanos dos povos em isolamento voluntário e
contato inicial na Amazônia e o Gran Chaco”
Prezados Srs. Francisco José Eguiguren Praeli e Paulo Abrão:
As organizações indicadas se dirigem respeitosamente à Comissão Interamericana de
Direitos Humanos, com a finalidade de entregar relatório sobre a situação de direitos humanos
dos povos em isolamento voluntário e contato inicial no Brasil, tema que será abordado durante
a audiência convocada para o dia 23 de outubro de 2017, na cidade de Montevidéu, durante o
165º Período de Sessões da CIDH.
I. INTRODUÇÃO
Há pouco menos de 30 anos o Estado brasileiro viveu um importante ponto de inflexão
em sua relação histórica com os povos indígenas. Se no plano geral a promulgação da
Constituição Federal de 1988 em 08 de outubro de 1988 consagrou o fim da ditadura civil-
militar e foi o mais importante marco no processo de redemocratização do país, no que diz
respeito aos povos indígenas significou a ruptura com o paradigma da tutela e com a perspectiva
integracionista que pautavam as políticas públicas dirigidas aos povos indígenas até então.
No que concerne especificamente aos povos indígenas isolados e de recente contato, em
1987 já havia sido operada internamente à Fundação Nacional do Índio (Funai) uma mudança
crucial de orientação na ação indigenista até então adotada por este órgão de Estado (e,
anteriormente, pelo Serviço de Proteção ao Índio – SPI). Diante das graves consequências das
práticas de “atração” e de inúmeros contatos forçados promovidos pelo Estado ao longo de
2
décadas – que causaram centenas de mortes e até mesmo o desaparecimento de povos inteiros –,
um grupo de sertanistas propôs aquelas que seriam as bases para a institucionalização da política
de proteção de povos indígenas isolados, tendo como diretrizes fundamentais o imperativo do
não-contato e o desenvolvimento de ações de proteção territorial. Data deste momento o
conjunto de portarias que instituiu o Sistema de Proteção ao Índio Isolado, aprimorado
posteriormente por meio de outros atos administrativos do órgão indigenista e decretos
relacionados à estrutura do órgão indigenista1.
Todo o conjunto de práticas acumulado e empregado até então pelo Estado para contatar
povos ou grupos em isolamento foi reorientado para o desencadeamento de ações visando à sua
localização e proteção territorial em respeito à manifesta recusa destes povos/grupos em
estabelecer contatos permanentes. Essa mudança de perspectiva foi sendo gradativamente
incorporada e aprimorada ao longo dos anos subsequentes e teve como principais resultados o
avanço expressivo no processo de investigação e sistematização de informações sobre povos
indígenas isolados, consolidando uma metodologia que é ainda hoje referência no tema; a
constituição de Frentes de Proteção Etnoambiental em substituição às antigas Frentes de
Atração e Frentes de Contato; a ampliação de ações permanentes de proteção territorial em
diferentes regiões da Amazônia brasileira; e avanços na regularização fundiária de terras
indígenas com a presença confirmada de índios isolados.
No que diz respeito às políticas de pós-contato, embora ainda restem desafios imensos
para o seu desenvolvimento e implementação à luz dos direitos inaugurados com a Constituição
Federal de 1988, também houve avanços significativos – atestados, por exemplo, pela
baixíssima mortalidade verificada nos processos de contato ocorridos desde 1996, em
comparação com inúmeros contatos promovidos pelo órgão em décadas anteriores.
Esse conjunto de mudanças conferiu ao Brasil papel de liderança no desenvolvimento
de políticas públicas de proteção e promoção de direitos de povos indígenas isolados, inspirando
outros países na América do Sul e servindo de importante referência em processos de consulta
que subsidiaram a elaboração de recomendações e diretrizes sobre o tema no plano
internacional2.
1 Em ordem cronológica: Portaria Funai nº 1900/87, que estabelece as diretrizes para o então Departamento de Índios
Isolados – DII (substituída pela Portaria Funai nº 281/2000); Portaria Funai nº 1901/87, que cria o Sistema de
Proteção ao Índio Isolado – SPII e aprova competência do então Departamento de Índios Isolados (substituída pela
Portaria Funai nº 290/2000, que estabelece que a execução da política de localização e proteção de índios isolados
seja efetivada pela Frentes de Proteção Etnoambiental, dentre outras providências); Portaria Funai nº 1047/88, que
regulamenta o Sistema de Proteção ao Índio Isolado; Portaria Funai nº 277/2000, de 20 de abril de 2000, que altera a
nomenclatura das Frentes de Contato para Frentes de Proteção Etnoambiental; Portaria Funai nº 230/2006; que
constitui o Comitê de Gestão com a finalidade de apoiar, coordenar e assessorar nas atividades, a nível nacional,
pertinentes à localização e proteção dos grupos indígenas isolados e de recente contato; Decreto nº. 7056, de 28 de
dezembro de 2009, que aprova o Estatuto e o Quadro Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções
Gratificadas da Fundação Nacional do Índio (substituído pelo Decreto nº 7.778, de 27 de julho de 2012); Portaria
Funai nº 501/2016, que institui o Conselho da Política de Proteção e Promoção dos Direitos dos Povos Indígenas
Isolados e de Recente Contato; Portaria Funai n° 148/2017, que nomeia os membros do Conselho mencionado
anteriormente.
2 De que são exemplo os seminários e consultas realizados pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os
Direitos Humanos (ACNUDH) e Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que culminaram,
respectivamente, na elaboração das Diretrizes de Proteção para os Povos Indígenas em Isolamento e em Contato
Inicial da Região Amazônica, o Grande Chaco e a Região Oriental do Paraguai e no relatório Povos Indígenas em
Isolamento Voluntário e Contato Inicial nas Américas: Recomendações para o Respeito Integral a Seus Direitos
Humanos.
3
É importante destacar que os avanços mencionados não se deram de maneira uniforme
em todas as regiões onde há informações sobre a presença de índios isolados no Brasil. O
número e a área de atuação das Frentes de Proteção Etnoambiental, por exemplo, sofreram
oscilações ao longo do tempo, deixando povos e respectivos territórios sujeitos a diversos tipos
de violência e pressão. Os avanços mencionados tampouco foram suficientes para reverter o
quadro de violações de direitos sofridas pelos povos/grupos indígenas isolados e de recente
contato no país.
As situações de alta vulnerabilidade dos povos isolados em toda a região amazônica são
em larga medida um dado estrutural em função do histórico de colonização e modelos de
desenvolvimento adotados pelos Estados nacionais, intimamente relacionados aos interesses
sobre os territórios indígenas por parte de setores do agronegócio, da grilagem e especulação
fundiária, da mineração, de empreendimentos de infraestrutura de modo geral e de diversas
cadeias produtivas ilícitas, além da ação proselitista missionária. Na atual conjuntura
nacional, contudo, tais setores ganharam força e institucionalidade, impondo retrocessos
no plano legislativo por meio de suas representações no Congresso Nacional e ocupando e
comandando setores estratégicos do governo federal especialmente afetos aos povos
indígenas no Brasil – o que motivou, inclusive, pedido de audiência por parte de um conjunto
amplo de organizações indígenas e da sociedade civil por ocasião do 162º Período de Sessões da
Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em 24 de maio de 2017, na cidade de
Buenos Aires3.
Como consequência, os efeitos dessas pressões sobre os povos indígenas e seus
territórios têm se agravado, resultando no aumento da violência e de violações de direitos
fundamentais destes povos. No caso específico dos povos/grupos indígenas isolados e de
recente contato tais efeitos são particularmente graves, verificando-se atualmente risco
iminente de genocídio em diferentes regiões da Amazônia brasileira.
II. POVOS INDÍGENAS ISOLADOS E DE RECENTE CONTATO NO BRASIL –
INFORMAÇÕES GERAIS
Atualmente o Estado brasileiro reconhece a existência de 113 registros de índios
isolados no Brasil (Tabela 1) 4. 'Registro' é a unidade básica utilizada pela Fundação Nacional
do Índio (Funai) no processo de investigação e sistematização de dados sobre a presença de
índios isolados. A metodologia de investigação utilizada pela Funai envolve pesquisa
documental e bibliográfica, levantamento de relatos junto a populações indígenas e não
indígenas, análise de imagens de satélite, sobrevoos e expedições em campo5.
3 Audiência “Mudanças em políticas públicas e leis sobre povos indígenas e quilombolas no Brasil”. Informações
detalhadas constam em relatório encaminhado à CIDH na ocasião.
4 Para mais informações, ver os seguintes documentos: “I Reunião do Conselho da Política de Proteção e Promoção
dos Direitos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato – Documento de subsídios”, CGIIRC/Funai,
Brasília, maio de 2017; e “Povos indígenas isolados em território brasileiro: documento de atualização do banco de
registros”, Fabrício Amorim, CGIIRC/Funai, maio de 2016. 5 Para maiores informações sobre a metodologia de localização de povos/grupos indígenas isolados desenvolvida e
utilizada no Brasil, bem como sobre o histórico da política de proteção e promoção dos direitos dos povos indígenas
isolados e de recente contato, ver, além dos documentos citados na nota anterior, o documento “Isolados no Brasil –
Política de Estado: da tutela para a política de direitos - uma questão resolvida?”, de Antenor Vaz, Informe 10,
4
Os registros são classificados de acordo com sua situação, que corresponde ao grau de
conhecimento que se tem sobre a presença de povos/grupos indígenas isolados em determinada
região, fruto de investigação sistemática realizada pelas Frentes de Proteção Etnoambiental
vinculadas à Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC/Funai). Dos
113 registros de índios isolados reconhecidos atualmente pelo Estado brasileiro, 26 são
Referências Confirmadas (ou seja, povos/grupos cuja existência foi administrativamente
comprovada); 26 são Referências em Estudo (quando há fortes evidências da existência de
povo/grupo indígena isolado em determinada região, no entanto ainda não comprovada); e 51
Informações (que correspondem a relatos previamente qualificados sobre a existência de índios
isolados em determinada região, mas que demandam investigação mais aprofundada para que
sejam considerados Referências em Estudo).
Tabela 1 - Registros de Índios Isolados no Brasil (quantitativo geral)6
Referências Confirmadas 26
Referências em Estudo 26
Informações 51
TOTAL 113
Atualmente há vinte terras indígenas no Brasil com presença confirmada de
povos/grupos indígenas isolados, todas no bioma Amazônia. Parte expressiva dos registros de
índios isolados que constam na base de dados da Funai ainda carece de estudos conclusivos
sobre a existência dos respectivos povos/grupos, bem como de ações protetivas por parte do
Estado (77 dos 113 registros reconhecidos pelo Estado atualmente). Destes 77 registros ainda
em fase de investigação pela Funai, 17 encontram-se fora de terras indígenas delimitadas,
em regiões com altas taxas de desmatamento e/ou afetadas por empreendimentos de
infraestrutura no norte do estado do Mato Grosso, no oeste do estado do Maranhão, no
centro-sul do estado do Pará e em Rondônia. A insegurança territorial também afeta
atualmente povos/grupos que se encontram em terras indígenas sob restrição de uso7 e que
aguardam a conclusão do processo de regularização fundiária.
IWGIA – 2011, disponível no endereço http://www.servindi.org/pdf/informe_10.pdf (acesso em 17 de outubro de
2017).
6 Adaptado do documento “I Reunião do Conselho da Política de Proteção e Promoção dos Direitos dos Povos
Indígenas Isolados e de Recente Contato – Documento de subsídios”, CGIIRC/Funai, Brasília, maio de 2017. 7 Instrumento previsto no Decreto 1.775, de 8 de janeiro de 1996 (que dispõe sobre o procedimento de demarcação de
terras indígenas no Brasil): “Art. 7° O órgão federal de assistência ao índio poderá, no exercício do poder de polícia
previsto no inciso VII do art. 1° da Lei n° 5.371, de 5 de dezembro de 1967, disciplinar o ingresso e trânsito de
terceiros em áreas em que se constate a presença de índios isolados, bem como tomar as providências necessárias à
proteção aos índios” (texto integral disponível no endereço http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D1775.htm,
acessado em 18 de outubro de 2017). Este instrumento é temporário e tem a finalidade de assegurar as condições
básicas para a reprodução física e cultural de povos/grupos isolados, bem como para o desenvolvimento de trabalhos
de localização de índios isolados e de estudos de identificação e delimitação no âmbito do processo de regularização
fundiária da terra indígena respectiva.
Fonte: Funai, 2017.
5
III. RETROCESSOS NA POLÍTICA DE PROTEÇÃO DE POVOS INDÍGENAS ISOLADOS E DE
RECENTE CONTATO E VIOLAÇÕES DE DIREITOS
Verifica-se no presente um processo de enfraquecimento e precarização do órgão
indigenista sem precedentes desde pelo menos o processo de redemocratização do país. A
dotação orçamentária geral da Funai, que teve expressivo aumento entre 2006 e 2013 – de R$
475.981.373 para R$ 819.092.988, respectivamente – entrou em queda a partir de 2014,
chegando a R$ 553.031.192 em 20168, com graves consequências para a política indigenista
como um todo (Gráfico 1).
No que concerne à Coordenação Geral de Índios Isolados, o orçamento foi de R$
1.411.995 em 2006 (quando havia apenas 06 Frentes de Proteção Etnoambiental – atualmente
são 11), chegou a R$ 7.944.246 em 2014, caindo para R$ 3.584.089 em 2016 e R$ 2.657.699
em 2017 (Gráfico 2). Estimativa do governo federal indica que o orçamento em 2018 será
de R$ 2,2 milhões (23% a menos que 2017), quando seriam necessários pelo menos R$ 3,5
milhões para manter minimamente as atividades desenvolvidas pelas 11 Frentes de
Proteção Etnoambiental existentes hoje.
8 Fonte: Instituto Socioambiental, a partir de dados do Siop/Ministério do Planejamento, de 2017 (orçamentos anuais
apresentados correspondem à soma dos valores para custeio e investimentos reajustados, corrigidos pelo IPCA-
IBGE), disponíveis no endereço https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/isolados-e-
desprotegidos (acessado em 18 de outubro de 2017).
Gráfico 1 - Orçamento da Funai (série histórica 2000-2017)
Fonte: Instituto Socioambiental, 2017 (a partir de informações do Siop/Ministério
do Planejamento). Orçamentos anuais apresentados correspondem à soma dos
valores para custeio e investimentos reajustados, corrigidos pelo IPCA-IBGE.
Gráfico 1 - Orçamento para proteção de povos indígenas isolados e de recente contato (série histórica 2000-2017)
6
A situação é ainda mais grave diante da recente aprovação no Congresso Nacional da
Emenda Constitucional nº 95/2016, que institui novo regime fiscal e estabelece teto de gastos
públicos do governo federal nos próximos 20 anos. A Emenda limita os gastos dos poderes
executivo, legislativo e judiciário em 2017 à despesa primária paga no exercício de 2016,
corrigida em 7,2%9. Para os próximos 19 anos, os gastos não poderão ultrapassar o valor do
limite do ano anterior, corrigido pela inflação (medida pela variação do Índice de Preços ao
Consumidor Amplo – IPCA). Os impactos desta medida sobre a política indigenista são
brutais, uma vez que o patamar orçamentário da Funai que servirá de referência para os
próximos vinte anos já se encontra defasado em uma década e é insuficiente para que o
órgão cumpra minimamente sua missão institucional. Também é importante ressaltar a
desproporcionalidade dos cortes de gastos entre os diferentes setores do governo federal e
respectivas políticas públicas: em 2017, primeiro ano em que passou a vigorar a EC nº
95/2017, sequer foi garantida ao orçamento da Funai a correção inflacionária de 7,2% em
relação ao ano anterior.
Atualmente há 19 Bases de Proteção Etnoambiental (BAPE) em funcionamento,
vinculadas às 11 FPE. Destas, 03 têm contado com equipes apenas em caráter intermitente.
Cinco BAPE foram fechadas entre 2012 e 2014 em função de limitações financeiras e de
recursos humanos – uma delas, a BAPE Jandiatuba, era responsável pela proteção de indígenas
isolados em setor da TI Vale do Javari onde possivelmente ocorreu um massacre impetrado por
garimpeiros em agosto de 2017, caso que se encontra em investigação por parte do Ministério
Público Federal e Polícia Federal.
O quadro de recursos humanos do órgão indigenista, historicamente deficitário,
também tem sido gravemente impactado. No início de 2017 o Governo Federal extinguiu 87
cargos comissionados, impactando, sobretudo, Coordenações Técnicas Locais (CTL) e a
Coordenação Geral de Licenciamento Ambiental (CGLIC) do órgão10
. Entre os anos de 2011 e
2015, a CGIIRC realizou a análise e o acompanhamento de pelo menos 23 processos de
licenciamento ambiental de empreendimentos, subsidiando a CGLIC na elaboração de
manifestações técnicas. Atualmente há pelo menos 24 registros sobre a presença de povos
indígenas isolados em área de influência de projetos de infraestrutura – 07 destes
registros correspondem a povos/grupos isolados com existência confirmada pelo Estado
brasileiro. Além disso, 06 povos de recente contato são atingidos atualmente por
empreendimentos: Awá Guajá (duplicação da Ferrovia dos Carajás), Arara, Parakanã e
Araweté (Usina Hidrelétrica Belo Monte), Amondawa (Rodovia BR-429), Waimiri-Atroari
9 O texto integral da Emenda Constitucional nº 95/2016 está disponível no endereço
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/emecon/2016/emendaconstitucional-95-15-dezembro-2016-784029-
publicacaooriginal-151558-pl.html (acessado em 19 de outubro de 2017). Informações sobre a tramitação da Proposta
de Emenda Constitucional nº 55/2016, que originou a EC 95/2016 estão disponíveis no endereço
https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/127337 (acessado em 19 de outubro de 2017). Para
uma análise mais detalhada sobre os cortes orçamentários na Funai e impactos da PEC 55 na política indigenista, ver
a “Nota técnica 190 - Orçamento e Direitos Indígenas na Encruzilhada da PEC 55”, do Instituto de Estudos
Socioeconômicos (Inesc), disponível no endereço http://www.inesc.org.br/noticias/biblioteca/publicacoes/notas-
tecnicas/nts-2016/nota-tecnica-190-orcamento-e-direitos-indigenas-na-encruzilhada-da-pec-55/view (acessado em 18
de outubro de 2017). Para uma análise das violações dos direitos indígenas promovidas pela política de austeridade
econômica adotada pelo Brasil no presente, ver páginas 62 a 75 da publicação “O Impacto da Política Econômica de
Austeridade nos Direitos Humanos”, da Plataforma DHESCA Brasil, disponível no endereço
http://austeridade.plataformadh.org.br/files/2017/10/publicacao_dhesca_preliminar_2_baixa.pdf (acessado em 18 de
outubro de 2017). 10 Decreto nº 9.010, de 23 de março de 2017, disponível no endereço http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-
2018/2017/Decreto/D9010.htm (acessado em 18 de outubro de 2017).
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(Linha de Transmissão Manaus-Boa Vista). O enfraquecimento de CTLs e da CGLIC impacta
diretamente a proteção destes povos, ao reduzir a capacidade da Funai de realizar análises
técnicas e de desenvolver ações junto aos mesmos.
Além dos cortes, os riscos inerentes ao trabalho nas FPE e a falta de regulamentação
para o exercício das atividades desenvolvidas têm provocado a evasão de servidores, seja por
desligamento ou por transferências para outras unidades do órgão. Apenas 62,5% dos 120
servidores que ingressaram na Funai em 2010 por meio de concurso público para atuar
especificamente nestas unidades do órgão encontram-se em serviço em 2017. A maioria das
BAPE existentes hoje só tem funcionado por contar com a dedicada colaboração de indígenas
e não indígenas, de caráter temporário e não raras vezes voluntária. Parte expressiva de
servidores da FPE na ativa, incluindo a maioria dos Coordenadores, não são funcionários do
quadro permanente do órgão e, portanto, encontram-se mais sujeitos a desligamentos
motivados por razões políticas.
Ingerências políticas sobre o órgão por parte das bancadas ruralista e evangélica no
Congresso Nacional, inclusive em áreas técnicas, também têm impactado a política de
proteção e promoção dos direitos dos povos indígenas isolados e de recente contato. Na gestão
do presidente Michel Temer, o cargo de presidente do órgão tem sido abertamente negociado11
em troca de apoio no Congresso contra as graves denúncias de corrupção que recaem sobre o
presidente e o círculo de políticos mais próximos a ele, incluindo alguns de seus ministros.
O atual presidente e seu antecessor foram indicados pela bancada do Partido Social
Cristão (PSC) na Câmara dos Deputados, proeminente na bancada evangélica e historicamente
pouco afeita, senão contrária, às pautas prioritárias dos povos e organizações indígenas no
legislativo. A Diretoria de Proteção Territorial (à qual estão vinculadas as áreas técnicas
responsáveis pelo reconhecimento e regularização fundiária de terras indígenas, sua proteção e
monitoramento territorial e também a proteção e promoção de direitos de povos indígenas
isolados, além da coordenação geral de geoprocessamento) e a Ouvidoria do órgão são
atualmente ocupadas por indicações de parlamentares da ala mais radical da bancada ruralista
na Câmara dos Deputados12
– grupo político que tem promovido a criminalização de pessoas e
instituições que atuam na defesa e na afirmação de direitos indígenas no país.
A Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato também está sob
ameaça de ingerência política. Encontra-se em tramitação no órgão indigenista o pedido de
exoneração da atual Coordenadora Geral de Índios Isolados e de Recente Contato e da
11 A este respeito, ver as seguintes matérias: http://politica.estadao.com.br/blogs/coluna-do-estadao/na-verdade-funai-
e-do-psc-do-deputado-andre-moura-diz-ministro-da-justica/;
https://www.cartacapital.com.br/blogs/parlatorio/ministro-da-justica-admite-que-entregou-a-funai-ao-psc;
https://brasil.elpais.com/brasil/2017/04/20/politica/1492722689_804462.html;
http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/05/1881355-exonerado-ex-chefe-da-funai-ataca-governo-e-fala-em-
ditadura.shtml; http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/05/1881397-serraglio-diz-que-ex-chefe-da-funai-demorou-
a-autorizar-obra-em-terra-indigena.shtml; http://trabalhoindigenista.org.br/funai-vive-uma-ditadura-diz-presidente-
exonerado/; http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/05/1882392-general-e-nomeado-para-presidir-a-funai.shtml
(acessadas em 18 de outubro de 2017).
12 A este respeito, ver as seguintes matérias: http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,servidora-acusada-de-
favorecer-porto-de-eike-batista-em-terra-indigena-e-indicada-para-a-funai,70001754741;
https://www.cartacapital.com.br/blogs/cartas-da-esplanada/governo-indica-envolvida-em-violacao-de-direitos-
indigenas-para-cuidar-da-demarcacao-de-terras-na-funai (acessadas em 18 de outubro de 2017).
8
Coordenadora de Planejamento e Apoio às FPE, e de nomeação de indicações políticas para os
respectivos cargos.
Em carta divulgada em setembro de 2017, um conjunto amplo de servidores da
Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato e das Frentes de Proteção
Etnoambiental manifestou preocupação com o fato: “caso haja intenção real de nomeações
sem diálogo com as FPEs, como é de costume, e de pessoas sem o devido preparo técnico
necessário, consideraríamos que seria um desmonte técnico, ou eventual ingerência política
na CGIIRC e FPEs. (...) As ações de proteção territorial e de promoção de direitos são
norteadas por uma metodologia de trabalho extremamente criteriosa, consolidada ao longo de
30 anos e orientada por princípios como o do não contato, da precaução, da garantia da
posse plena e da proteção ambiental dos territórios indígenas. (...) Em especial, gostaríamos
de alertar Vossas Senhorias [Presidente e Diretora de Proteção Territorial da Funai]
sobre as consequências que as indicações meramente políticas na CGIIRC podem acarretar
para o bem-estar físico e cultural dos povos indígenas isolados e de recente contato no
Brasil, haja vista que alguns desses povos estão submetidos a situações vulnerabilidade
extrema, incluindo o risco de genocídio (por exemplo, nas TIs Vale do Javari - AM,
Araribóia-MA e Yanomami - RR e AM)”.
O documento também alerta para as graves consequências dos recentes cortes
orçamentários na Funai sobre povos indígenas isolados e de recente contato: “Conforme
proposta de distribuição interna de recursos para o Projeto de Lei Orçamentaria (PLOA) -
2018 encaminhada recentemente pela gestão da Funai, o orçamento previsto para a política
pública direcionada aos povos isolados e de recente contato, para o ano de 2018, será cerca
de 60% menor em comparação com a LOA de 2015 ficando, desta forma, bastante abaixo da
linha de cortes gerais da Funai. Nesse sentido, caso o orçamento destinado à
operacionalização das FPEs não seja imediatamente readequado em função de nossas
atribuições regimentais, ocorrerá o fechamento de Bases e paralisação geral das atividades
das FPEs, acarretando num aumento vertiginoso de invasões ilegais aos territórios
ocupados pelos povos indígenas isolados, sob atuação das FPEs, culminando em situações
de conflitos, massacres e de consequente genocídio dos povos indígenas isolados. Todos os
avanços pós-constitucionais e de reconhecimento da política indigenista brasileira serão
derrubados, colocando o Estado brasileiro definitivamente no quadro de países violadores
de direitos humanos. Será, sem dúvida, um dos maiores retrocessos da história indigenista
brasileira”13
.
A atual situação dos povos indígenas isolados e de recente contato no Brasil é de fato
extremamente grave. Em diferentes regiões da Amazônia brasileira verifica-se uma escalada de
violência alarmante. A seguir serão relatados alguns casos críticos que ilustram essa situação e
revelam, em seu conjunto, alguns dos principais desafios enfrentados para a proteção de povos
isolados e de recente contato no Brasil. Em vista da existência de 77 registros sobre a presença
de índios isolados que ainda não dispõem de investigações conclusivas, é possível que estejam
em curso neste momento muitos outros casos similares aos que por ora serão apresentados.
No Maranhão, isolados Awá têm sido severamente impactados pela ação madeireira e
incêndios florestais, sobretudo na Terra Indígena Arariboia. Entre 1988 e 2015, o Maranhão
13 Carta dos servidores das Frentes de Proteção Etnoambiental e da Coordenação-Geral de Índios Isolados e de
Recente Contato da Funai – 12 de setembro de 2017.
9
teve 2,4 milhões de hectares (24 mil km2) de florestas desmatados; 21,7 mil hectares (217 km
2)
foram desmatados apenas no ano de 201514
. As poucas áreas de florestas preservadas no estado
do Maranhão concentram-se nas terras indígenas, que têm sido assoladas por incêndios
florestais nos últimos anos, com graves impactos sobre isolados15
. A TI Arariboia teve 225 mil
hectares queimados em 2015 (54,4% de sua área total). O fogo atingiu área habitada por
grupo em isolamento do povo Awa, que ficou encurralado. Durante os incêndios as
equipes de brigadistas encontraram diversos vestígios dos isolados (tapiris, utensílios,
rastros) 16
. Esta terra indígena permanece intensamente invadida por madeireiros e
impactada por incêndios florestais. Também foi constatada a dificuldade de oferta de água
potável para os indígenas isolados e há graves riscos de contatos e conflitos com
madeireiros. A atividade madeireira e incêndios florestais também têm grassado em outras
terras indígenas onde há registros de índios isolados no Maranhão: os incêndios de 2015
atingiram 75 mil hectares da TI Alto Turiaçu (14,1% de sua área); 67 mil hectares da TI Awa
(57,5% de sua área) e 11 mil hectares da TI Caru (6,3% de sua área), impactando, além dos
isolados, os povos Guajajara-Tenetehara, Ka’apor e Awa Guajá de recente contato.
Na TI Vale do Javari há fortes indícios de que tenha ocorrido um massacre de indígenas
isolados no rio Jandiatuba em agosto de 2017, impetrado por garimpeiros17
. Foi constatada a
atividade ilegal de garimpo de ouro no alto curso deste rio, em área habitada exclusivamente por
indígenas isolados cuja existência é comprovada desde a década de 1970 pelo Estado brasileiro.
Ao menos seis balsas foram identificadas dentro da terra indígena. Em sobrevoo realizado pela
Funai em conjunto com o Exército no mês de setembro, foi identificada uma balsa de
garimpo abandonada a poucos quilômetros de malocas e roçados de indígenas isolados;
tapiris e malocas haviam sido queimados recentemente e foram identificados pontos azuis
em um dos roçados (possivelmente pedaços de lonas plásticas), o que comprova a
ocorrência de interação entre garimpeiros e indígenas isolados e corrobora a hipótese de
conflitos com mortes de isolados. A investigação do caso pelo Ministério Público Federal e
Polícia Federal segue em curso. Caso seja confirmado, este será o mais grave crime de
genocídio conhecido na América do Sul desde o Massacre de Haximu, quando 16
Yanomami (incluindo crianças, velhos e mulheres) foram brutalmente assassinados por
garimpeiros brasileiros na Venezuela, em área fronteiriça com o Brasil – caso que foi apreciado
pela CIDH (Petição 11.745).
Passados 24 anos desde o referido massacre, a invasão garimpeira segue sendo o maior
problema enfrentado pelos Yanomami, provavelmente o mais populoso povo de recente contato
do mundo (apenas no Brasil vivem hoje cerca de 25 mil Yanomami, em mais de 240 aldeias).
Estima-se que há atualmente 4 mil garimpeiros atuando no interior da TI Yanomami, no
Brasil. As invasões aumentaram drasticamente após o fechamento das três Bases de
Proteção Etnoambiental da Funai: Serra da Estrutura, Demarcação e Korekorema. O
fechamento deixou o grupo isolado yanomami conhecido como Moxihathethea (cuja
existência é confirmada pelo Estado brasileiro) totalmente vulnerável à ação garimpeira
constatada nas imediações da Serra da Estrutura. As aldeias yanomami nos rios Mucajaí e
14 Dados do Projeto de Monitoramento do Desmatamento da Amazônia Legal (Prodes), 2016. 15 Para mais informações, ver http://boletimisolados.trabalhoindigenista.org.br/2016/03/22/estado-de-alerta-
incendios-no-ma-afetam-indigenas-e-acuam-isolados/ (acessado em 17 de outubro de 2017). 16 Ver http://www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&action=read&id=8410 (acesso em 17 de outubro de 2017). 17 Ver http://trabalhoindigenista.org.br/nota-de-repudio-acao-garimpeira-e-possivel-genocidio-de-indigenas-isolados-
no-rio-jandiatuba/ (acessado em 17 de outubro de 2017). O caso foi amplamente noticiado na imprensa nacional e
internacional.
10
Uraricoera também se encontram extremamente vulnerabilizadas após a desativação das
BAPE Demarcação e Korekorema. Essa situação motivou o Ministério Público Federal a
propor uma Ação Civil Pública contra a União, a Funai e o Estado de Roraima para o a
reativação destas bases e o restabelecimento das atividades de proteção em caráter
permanente18
. Um dos trechos desta ação destaca que “[a] permanência de não índios nestes
locais exercendo o garimpo ilegal, viola o usufruto exclusivo dos indígenas [determinado pela
Constituição Federal de 1988], ocasiona graves interferências em seu modo tradicional de vida,
transmissão de doenças – como malária e DSTs -, exploração sexual, desorganização social,
além de prejuízo à paz da comunidade, especialmente de grupos isolados ou com pouco contato
com não índios”. O garimpo também têm causado graves danos ambientais e à saúde dos
Yanomami19
- a TI Yanomami detém os piores índices de mortalidade geral e infantil no Brasil.
No norte do Mato Grosso, especulações sobre a redução da TI Kawahiva do Rio Pardo
têm provocado aumento de invasões de grileiros e madeireiros20
. Após 17 anos desde a
publicação da primeira portaria de restrição de uso e de disputas judiciais, a TI Kawahiva do
Rio Pardo finalmente teve sua portaria declaratória publicada pelo Ministério da Justiça em 20
de abril de 201621
. Em abril de 2017, contudo, o então Ministro da Justiça e Segurança Pública,
Osmar Serraglio, sinalizou para uma comitiva composta por vereadores e pelo prefeito do
município de Colniza-MT que iria avaliar a portaria22
. Serraglio é um expoente parlamentar da
bancada ruralista na Câmara dos Deputados, onde foi relator da PEC 215. Em sua curta
passagem pelo ministério, deu declarações contrárias à demarcação de terras indígenas que
contribuíram para o acirramento de conflitos23
. Os rumores de que a TI Kawahiva do Rio
Pardo seria reduzida foram suficientes para desencadear disputas entre grileiros e
fazendeiros na região. O município de Colniza já liderou a lista de municípios com maior
índice de homicídios no país, no início dos anos 2000, e recentemente foi palco de uma chacina
que vitimou brutalmente 09 trabalhadores rurais em disputas por terra24
. A invasão de
madeireiros a partir do distrito de Guariba tem se intensificado no presente e representa
sério risco à vida dos isolados Kawahiva. Os dois últimos sobreviventes Piripkura
Kawahiva também têm enfrentado o aumento de invasões de madeireiros em seu
território, que se encontra desde 2008 sob sucessivas portarias de restrição de uso.
Entre 2014 e 2015 ocorreram 04 processos de contato no Brasil. O primeiro deles
ocorreu em junho de 2014, na TI Kampa e Isolados do Rio Envira, estado do Acre, na região de
fronteira Brasil-Peru. Um grupo até então conhecido como "Isolados do Xinane" (em alusão ao
18 Ver http://www.mpf.mp.br/rr/sala-de-imprensa/noticias-rr/mpf-propoe-acao-para-reativar-bases-de-protecao-
etnoambiental-da-terra-yanomami (acesso em 18 de outubro de 2017). 19 Ver https://brasil.elpais.com/brasil/2017/04/20/politica/1492722067_410462.html e
https://brasil.elpais.com/brasil/2014/12/26/politica/1419618934_407302.html (acessados em 18 de outubro de 2017). 20 Ver https://povosisolados.wordpress.com/2017/05/27/especulacoes-sobre-diminuicao-da-ti-kawahiva-do-rio-pardo-
acirra-conflitos-e-disputas-por-terras-na-regiao/ (acesso em 17 de outubro de 2017). 21 Portaria nº 481, de 19 de abril de 2016, disponível no endereço
http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=41&data=20%2F04%2F2016. Para mais
informações, ver http://boletimisolados.trabalhoindigenista.org.br/2016/05/02/isolados-do-rio-pardo-a-historia-de-
sobrevivencia-do-ultimo-grupo-kawahiva/, http://www.funai.gov.br/index.php/comunicacao/noticias/3727-mj-
declara-as-terras-indigenas-estacao-parecis-mt-kawahiva-do-rio-pardo-mt-sissaima-am-e-murutinga-tracaja-am,
https://globoplay.globo.com/v/2754692/ e https://globoplay.globo.com/v/2757398/ (acessados em 17 de outubro de
2017). 22 Ver http://racismoambiental.net.br/2017/04/11/revelado-plano-genocida-para-abrir-territorio-de-tribo-isolada-na-
amazonia/ (acessado em 17 de outubro de 2017). 23 Ver http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/03/1865209-ministro-da-justica-critica-indios-e-diz-que-terra-nao-
enche-barriga.shtml (acessado em 17 de outubro de 2017). 24 Ver https://g1.globo.com/mato-grosso/noticia/mp-denuncia-cinco-por-chacina-que-matou-nove-trabalhadores-
rurais-em-colniza-mt.ghtml (acessado em 17 de outubro de 2017).
11
nome de um afluente do rio Envira) travou contato com indígenas Ashaninka e, em seguida,
com a Funai25
. A partir da década de 2000 houve um aumento expressivo da atividade
madeireira e do narcotráfico no lado peruano desta região de fronteira, inclusive em áreas
protegidas, como o Parque Nacional Alto Purus e a Reserva Territorial Murunahua (criada para
a proteção de indígenas isolados). A TI Kampa e Isolados do Rio Envira também foi invadida:
em 2011, a equipe da FPE Envira teve que abandonar a BAPE Xinane em razão da presença de
um grupo de narcotraficantes fortemente armados no local; um narcotraficante de origem
portuguesa chegou a ser preso em duas ocasiões ao tentar passar por esta terra indígena, vindo
do Peru26
. Estes indígenas de recente contato do Xinane (34 atualmente) relataram a
ocorrência de conflitos com homens que portavam armas de fogo, que teriam vitimado
membros de seu grupo. Também há evidências de que conflitos entre diferentes
povos/grupos isolados nesta área de fronteira entre o Brasil e o Peru estão sendo
potencializados pela ação de narcotraficantes e madeireiros.
Em dezembro de 2014, duas mulheres e um homem do povo Awa que viviam isolados
foram encontrados por indígenas Awa de recente contato da aldeia Awa, na TI Caru (estado do
Maranhão), durante uma caçada. As duas mulheres apresentavam sintomas de gripe,
estavam febris e extremamente debilitadas (uma delas pesava 38 kg na ocasião).
Relataram estar em constante fuga de madeireiros que atuam ilegalmente na TI Caru,
bem como de outro grupo familiar Awa que ainda vive em isolamento e com o qual teriam
ocorrido relações de agressão. Após o contato, passaram a viver nas aldeias Awa e Tiracambu,
na TI Caru. As duas mulheres foram diagnosticadas com tuberculose e em maio de 2015 foram
removidas para São Luís, onde permaneceram em tratamento durante meses. Em julho de 2016
as duas mulheres decidiram "isolar-se" novamente, deixando a aldeia Tiracambu para viver na
mata. Recentemente uma delas foi encontrada novamente por indígenas Awa de recente contato,
também durante uma caçada. A outra mulher faleceu por causa ainda desconhecida,
provavelmente associada ao seu quadro de saúde que já era bastante debilitado. A TI Caru segue
sofrendo intensa ação madeireira.
Em setembro de 2014 um grupo de seis pessoas do povo Korubo foi contatado por
indígenas Kanamari nas proximidades da aldeia Massapê, no rio Itaquaí, Terra Indígena Vale do
Javari. Em outubro do mesmo ano ocorreu o contato com os outros 15 membros deste mesmo
grupo, na mesma região do rio Itaquaí. Este segundo contato foi realizado por equipe da Funai,
com a participação ativa dos Korubo contatados anteriormente. O grupo contatado relatou ter
havido mortes por doenças no período que antecedeu os dois eventos de contato,
provavelmente associadas às frequentes invasões de pescadores e no rio Itaquaí. Uma
equipe da Funai constatou que seus roçados haviam sido abandonados. Após o contato, o grupo
passou a viver no rio Ituí, com os Korubo contatados em 1996, com os quais têm relações
próximas de parentesco.
No final de 2014 ocorreram conflitos entre indígenas Matis e outro grupo isolado do
povo Korubo na bacia do rio Coari, com mortes de ambos os lados. Nas últimas décadas
ocorreram rearranjos territoriais envolvendo estes dois povos. Desde meados da década de 2000
esse processo envolveu mudanças de aldeias e diversos encontros e interações entre os Matis e
25 Ver http://g1.globo.com/ac/acre/noticia/2014/08/funai-suspeita-que-indios-isolados-buscaram-contato-apos-
agressao.html e http://boletimisolados.trabalhoindigenista.org.br/2015/12/09/envira-das-correrias-aos-projetos-de-
integracao-economica/ (acessado em 17 de outubro de 2017). 26 Ver http://apiwtxa.blogspot.com.br/2011/08/segue-tensao-na-fronteira-brasil-peru.html (acessado em 17 de outubro
de 2017)
12
os Korubo no Coari27
. Ambos os povos têm relações imbricadas, envolvendo guerras, raptos e
outras modalidades de troca ao longo de sua história. Embora a Funai tenha monitorado as
dinâmicas territoriais dos dois povos e acompanhado esse processo nos últimos anos, a
precarização do órgão certamente contribuiu para o acirramento do conflito.
Em 2015 os Matis estabeleceram contato com 21 Korubo (o mesmo grupo com o qual
se deram os conflitos mencionados) entre as aldeias Tawaya e Bukuwak, no rio Branco. Após
intervir neste processo de contato, a equipe da Funai constatou grande apreensão dos Korubo de
permanecer junto aos Matis, em razão dos conflitos ocorridos anteriormente. Os Korubo
manifestaram o desejo de se juntar aos grupos contatados, o que ocorreu após período de
quarentena, seguindo protocolo rígido para a prevenção de surtos epidêmicos recorrentes em
casos de contato. Atualmente os grupos contatados em 1996, 2014 e 2015 estão vivendo nas
aldeias Talaoca e Tapalaya, no rio Ituí, e somam uma população de 82 pessoas. Tem sido
verificada alta incidência de malária entre eles.
Os contatos relatados põem em evidência a complexidade de contextos de vizinhança e
compartilhamento territorial entre isolados e “contatados” no presente, sobretudo em regiões
habitadas por diferentes povos, como é o caso do Vale do Javari. Embora os processos de
contato tenham possibilitado à Funai e à Sesai a elaboração de protocolos de atuação e Planos
de Contingência para cada caso, a falta de normatização e entraves burocráticos para
operacionalizar ações que demandam curto tempo de resposta ainda constituem sérios
obstáculos. Também é preciso que se assegure a qualificação das equipes e estrutura adequada
para o atendimento continuado à saúde junto a povos/grupos de recente contato.
Contudo, as transformações nas dinâmicas territoriais verificadas em diferentes
contextos na Amazônia brasileira demandam não apenas o fortalecimento orçamentário e de
recursos humanos de órgãos do Estado, mas um aprimoramento da política indigenista voltada à
proteção de povos/grupos isolados, o que passa pela ampliação do diálogo dessa política pública
com os povos, comunidades e organizações indígenas e suas políticas, bem como pela
ampliação da participação destes povos, comunidades e organizações não apenas nos trabalhos
de campo, mas nos espaços de tomada de decisão e de reformulação permanente dessa política e
das respectivas estratégias para a sua implementação28
. Infelizmente o que tem se verificado por
parte do Estado brasileiro é o esvaziamento e a paralização de espaços de participação dos
povos indígenas e organizações da sociedade civil nas políticas públicas, na contramão dos
desafios enfrentados em distintas regiões.
Na atual conjuntura brasileira a política de proteção de povos indígenas isolados e de
recente contato e os avanços obtidos nas últimas três décadas não se encontram apenas
ameaçados, mas em franca desconstrução, impossibilitando o enfrentamento de velhos e novos
desafios neste campo específico da política indigenista no Brasil. Como consequência, casos de
27 Para mais informações sobre essa questão, ver http://trabalhoindigenista.org.br/nota-do-cti-sobre-reivindicacao-
matis/ e https://povosisolados.wordpress.com/2017/06/18/nos-tapiris-korubo-uma-perspectiva-indigenista-das-
tensoes-e-distensoes-korubo-e-matis/ (acessados em 18 de outubro de 2017). 28 Essa questão foi tema central do encontro internacional “Olhares sobre as Políticas de Proteção aos Povos
Indígenas Isolados e de Recente Contato”, que reuniu representantes de diversos povos e organizações indígenas e da
sociedade civil da Colômbia, Brasil, Paraguai, Peru e Venezuela. Resultado das mesas de debate, grupos de trabalho e
discussões em plenária ao longo do evento, a Carta de Brasília – Manifesto em defesa dos povos indígenas isolados
e de recente contato na Bacia Amazônica e Gran Chaco apresenta um conjunto amplo de propostas (ver
http://trabalhoindigenista.org.br/encontro-olhares-sobre-as-politicas-de-protecao-aos-povos-indigenas-isolados-e-de-
recente-contato-reafirma-o-compromisso-pela-garantia-da-protecao/, acessado em 17 de outubro de 2017).
13
violação de direitos fundamentais destes povos têm aumentado drasticamente, verificando-se
riscos reais de crimes de genocídio em diferentes regiões da Amazônia brasileira.
O ajuste fiscal e outras medidas que vêm sendo adotadas pelo atual governo para o
enfrentamento da crise econômica no Brasil têm impactado de maneira desproporcional os
povos indígenas, e servido de pretexto para promover o desmonte da política indigenista e dos
direitos indígenas, atendendo sobretudo interesses da bancada ruralista no Congresso Nacional,
mas também de setores da mineração, de infraestrutura e de grupos missionários.
Consideramos que o acompanhamento e a ação de organismos multilaterais como a
CIDH são de fundamental importância para frear este processo de deterioração dos direitos
humanos dos povos indígenas no Brasil, que tem efeitos particularmente graves sobre os
povos/grupos isolados e de recente contato. Neste sentido, a seguir apresentamos um conjunto
de recomendações de caráter urgente à CIDH.
IV. RECOMENDAÇÕES À COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS:
1. Que se inste o Estado Brasileiro a vedar cortes e o contingenciamento de recursos
destinados às ações de proteção e promoção dos direitos dos povos indígenas isolados e
de recente contato, de responsabilidade do Ministério da Justiça e Segurança Pública e
executadas pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), por meio da Coordenação Geral
de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC) e Frentes de Proteção Etnoambiental
(FPE). Esta medida é fundamental porque, no caso específico dos povos indígenas
isolados e de recente contato, os sucessivos cortes e contingenciamentos orçamentários
impostos à FUNAI desde 2014 têm implicado não apenas retrocessos nas políticas
públicas, mas também graves violações de direitos humanos destas populações e o risco
iminente de genocídio em diferentes regiões da Amazônia brasileira – sendo as
situações de maior risco verificadas atualmente nas áreas de atuação da FPE Madeirinha
Juruena (Estado do Mato Grosso), da FPE Awa (Estado do Maranhão), da FPE Vale do
Javari (Estado do Amazonas) e da FPE Yanomami/Yekuana (Estado do Amazonas).
2. Que o Estado brasileiro adote a mesma medida acima recomendada visando à garantia
dos recursos destinados à Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) para o
atendimento à saúde dos povos indígenas, notadamente aqueles recursos destinados a
povos de recente contato e povos contatados que vivem em terras indígenas também
habitadas por povos indígenas isolados ou em terras contíguas a estas.
3. Tendo em vista os contatos ocorridos em 2014 e 2015 e a iminência de novos contatos
em diferentes regiões da Amazônia brasileira, é urgente que se inste o Estado brasileiro
a garantir os recursos financeiros e humanos necessários para a implementação de
planos de contingência e o adequado manejo de situações de contato e de surtos e
epidemias. Neste sentido, é fundamental que situações de contato sejam consideradas
casos emergenciais similares a outros casos de calamidade pública em que se dispõe de
mecanismos e instrumentos que agilizam a ação de órgãos de Estado.
14
4. Que o Estado brasileiro, por meio da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) e
da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), publique Portaria Conjunta que defina os
princípios, diretrizes e estratégias para a atenção à saúde dos povos indígenas isolados e
de recente contato, nos termos já consensuados entre os dois órgãos mencionados e
consolidados em redação pronta para assinatura e publicação; e que assegure as
condições para a sua imediata implementação.
5. Que se inste o Estado Brasileiro a reativar em caráter de urgência a Base de Proteção
Etnoambiental Jandiatuba, vinculada à Frente de Proteção Etnoambiental Vale do
Javari, na Terra Indígena Vale do Javari, face à gravíssima constatação de atividade de
garimpo em área habitada exclusivamente por índios isolados nesta terra indígena, à
constatação de interações entre garimpeiros e isolados nesta área que corroboram a
denúncia de possível massacre promovido por garimpeiros, bem como à iminência de
genocídio caso esta atividade ilícita não seja efetivamente coibida na bacia do rio
Jandiatuba.
6. Que medida similar seja adotada visando à reativação das Bases de Proteção
Etnoambiental Cautário e Mirante da Serra (vinculadas à FPE Uru-Eu-Wau-Wau);
Jacareúba/Katawixi, Piranha e Canuaru (vinculadas à FPE Madeira-Purus); e Serra da
Estrutura Demarcação e Korekorema (vinculadas à FPE Yanomami e Ye’kuana). E,
ainda, que sejam envidados esforços igualmente urgentes para o fortalecimento das
onze FPE existentes atualmente, bem como das Coordenações Regionais e respectivas
Coordenações Técnicas Locais cuja atuação também é fundamental para a proteção e
promoção dos direitos de povos indígenas isolados e de recente contato.
7. Que o Estado brasileiro seja exortado a concluir os processos de regularização fundiária
das terras indígenas com presença confirmada de povos indígenas isolados, a saber:
Terra Indígena Kawahiva do Rio Pardo, Terra Indígena Piripkura e Terra Indígena
Apiaká do Pontal e Isolados, no Estado do Mato Grosso; Terra Indígena Pirititi, no
Estado de Roraima; Terra Indígena Kaxuyana-Tunayana e Isolados e Terra Indígena
Ituna/Itatá, no Estado do Pará; Terra Indígena Igarapé Taboca do Alto Tarauacá, no
Estado do Acre; Terra Indígena Jacareúba/Katawixi, no Estado do Amazonas; e Terra
Indígena Tanaru, no Estado de Rondônia.
8. Que o Estado brasileiro assegure as condições necessárias para que a Fundação
Nacional do Índio desenvolva ações de qualificação e localização29
das 26 Referências
em Estudo e das 51 Informações sobre a presença de índios isolados, registros estes que
carecem de estudos conclusivos sobre a existência de índios isolados.
9. Que o Estado brasileiro destine recursos financeiros e humanos específicos para que o
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Renováveis (IBAMA) e a Polícia
Federal desenvolvam ações de prevenção e combate a ilícitos em terras indígenas,
29 “Qualificação” e “Localização” correspondem às fases iniciais do processo de investigação e sistematização de
dados sobre a existência de povos indígenas isolados, de acordo com a metodologia adotada pelo Estado Brasileiro.
15
especialmente naquela habitadas por povos indígenas isolados e de recente contato em
razão da alta vulnerabilidade destes povos.
10. Que o Estado brasileiro assegure e amplie a participação dos povos, comunidades e
organizações indígenas, bem como de outras organizações da sociedade civil, na
orientação e deliberação das políticas públicas dirigidas à proteção de povos indígenas
isolados e de recente contato. Neste sentido, é fundamental que sejam convocadas
reuniões regulares do Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), criado por
meio do Decreto nº 8.593, de 17/12/15; e do Conselho da Política de Proteção e
Promoção dos Direitos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato da
Fundação Nacional do Índio, criado por meio da Portaria nº 501/PRES, de 31/05/2016.
Atenciosamente,
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – Apib
Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira – Coiab
Centro de Trabalho Indigenista – CTI
ANEXO:
Mapa Geral de Registros de Índios Isolados no Brasil (Funai, 2017).
16
Anexo 1 - Mapa Geral de Registros de Índios Isolados no Brasil (Funai, 2017)