species - revista de antropologia especulativa

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  • 7/24/2019 Species - Revista de Antropologia Especulativa

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    SPECIESREVISTA DE ANTROPOLOGIA ESPECULATIVA n1NOV2015

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    SPECIESREVISTA DE ANTROPOLOGIA ESPECULATIVA

    A publicao semestral do ncleo homnimo pretende abarcar arte, crtica, antropologia, psicanlise, filosofia,histria, na forma de ensaios visuais, poemas, fices, artigos, tradues, resgate de textos esquecidos ou poucoconhecidos, tendo como norte (ou sul) a figura da "antropologia especulativa", expresso pela qual Juan Jos Saercaracterizou a fico e a inseparabilidade ou reversibilidade entre subjetividade (viso) e objetividade (mundo)que esta comporta. O mundo vasto porque ele visto, porque ele caleidsocpio de mundos: quem o v?, como

    se o v?, que mundo se v? e o que o mundo v? Perguntas que no admitem seno respostas incompletas, e, porisso mesmo, inter-essantes.

    NMERO 1 | NOVEMBRO DE 2015A escolha dos materiais publicados na species feita pelos editores aps indicao do conselho editorial.

    editoresAlexandre Nodari e Flvia Cera

    conselho editorialAlexandre Nodari (UFPR), Andr Vallias (Radical livre), Dborah Danowski (PUC-Rio), Eduardo Sterzi (UNICAMP),Eduardo Viveiros de Castro (Museu Nacional/UFRJ), Emmanuele Coccia (EHESS), Fabin Luduea Romandini(UBA), Flvia Cera (Cultura e Barbrie), Guilherme Gontijo Flores (UFPR), Idelber Avelar (Tulane), Joo CamilloPenna (UFRJ), Juliana Fausto (PUC-Rio), Marco Antonio Valentim (UFPR), Marcos de Almeida Matos (UFAC), MiguelCarid (UFPR), Moyss Pinto Neto (ULBRA), Pedro de Niemeyer Cesarino (USP), Veronica Stigger (INST), VinciusNicastro Honesko (UFPR).

    fotograa da capaOrlando Calheiros (Mairaw Suru, Soror/PA, 2015)

    species - ncleo de antropologia especulativa

    http://speciesnae.wordpress.com/

    Sediado na Universidade Federal do Paran, o species um ncleo transdisciplinar co-ordenado por Alexandre Nodari, Flvia Cera, Guilherme Gontijo Flores, Juliana Fausto,Marco Antonio Valentim, Miguel Carid e Vincius Nicastro Honesko

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    sumrio

    04 | Carta de desachamentospecies - ncleo de antropologia especulativa

    07 | Do espectro da metafsica metafsica do espectro

    Fabin Luduea Romandini

    21 | Csmica cosmtica. Por uma cosmologia do paramentoBertrand Prvost

    45 |Aprendendo sobre os dilogos cerimoniais YanomamiJos Antonio Kelly Luciani

    66 | Montagem e formao do mundo nas artes verbais maruboPedro de Niemeyer Cesarino

    79 | Dois textos (quase) inditos de Paulo Leminski (1977)

    80 | Potica e imaginao da escassez Everton Moraes (apresentao)83 | Ascese e escassez Paulo Leminski85 | Paj Paulo Leminski

    89 |Arte absoluta e poltica absoluta (1921)Carl Einstein

    95 | O livroVeronica Stigger

    00 | lngua

    Andr Vallias

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    Carta de desachamento

    Os ltimos anos que precederam o 515 aps a Carta de Achamento oram de celebrados re-achamen-tos. Re-achamento, pelo governo e parte da sociedade, do Brasil Grande, simbolizado pela usina de BeloMonte projeto, diga-se de passagem, dos militares da ltima ditadura, que no conseguiram lev-lo a

    cabo , que destruiu e est destruindo incontveis modos de vida humanos e no-humanos. Re-acha-mento tambm do Gigante adormecido, que parece ter acordado apenas para se revelar um monstroque bate continncias aos homens ardados. Re-achamento, em suma, da perversa noo de Ptria,ainda mais perversa que aquela de Nao, e que pressupe uma origem e um destino de grandeza, umalinha de continuidade que se configura tambm como de destruio. udo isso em uma poca em queest cada vez mais claro que esse caminho para a maioridade o desenvolvimentismo, corolrio dodescobrimento (des-cobrir des-envolver) leva a um beco sem sada, ou, em bom portugus, cats-troe ambiental antropicamente produzida. Os vastos sertes espaos do entrelaamento, da ausncia

    de ronteiras: heterotopicidade anunciados por Caminha oram ou continuam sendo des-bravados,topicizados, medidos e enquadrados mesmo que ao custo de se converterem em desertos. A maiori-dade do homem, processo que se inicia em seguida ao achamento, culmina com a emergncia de uma

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    nova poca geolgica: o Antropoceno. Ungida por CO2, a erra ento batizada com o nome daqueles

    que pretenderam se liberar das garras do mundo (ou seja, literalmente emancipar-se) dispensando aelas o mesmo tratamento que outrora dispensaram queles que, por no reconhecerem suas ideias de

    propriedade, tomavam por ladres (quando eram os juzes mesmos os usurpadores) cortando-as ora.E se aqueles que se opem a essa via de mo nica do progresso so tachados de Minorias com Proje-tos Ideolgicos Irreais, talvez essa irrealidade a demanda do impossvel, daquilo que inconcebvel

    para certa viso da histria e do mundo seja justamente um dos possveis roteiros de que alava oManifesto Antropfago: 515 anos depois de nosso achamento, talvez seja hora de nos perdermos, nosdes-acharmos, nos des-realizarmos e nos re-embravarmos em novos e antigos sertes. Pararmos por um

    instante de abrir clareiras (esclarecer) para embrenharmo-nos; pararmos de mirar o alto e comearmosa descer. Em suma, inventarmos novas possibilidades, a partir de uma histria a contrapelo, vermos queno estamos seguindo uma linha necessria, mas apenas dando sequncia a um inaugural Erro de por-tugus: uando o portugus chegou / Debaixo duma bruta chuva / Vestiu o ndio / ue pena! Fosseuma manh de sol / O ndio tinha despido / O portugus. alvez, ento, seja a hora oportuna de inver-ter o erro, realizar a histria interrompida, que no oi dar poder imaginao para que a imaginao

    possa desafiar o poder: despir o portugus, a mquina colonial, que uma mquina do tempo, umaconcepo evolutiva do tempo, da histria, do pensamento. Isto implica construir umaErrtica, umacincia do vestgio errtico, que tambm uma antropologia especular e especulativa: imaginar, mastambm ver como diante dos outros nossa imagem retorna deormada dierente, dierida, como numespelho animado. Ou seja, especular sobre as imagens reais e possveis da nossa espcie e sua relaocom as outras espcies (imagens), sobre o que uma espcie e como ela se constitui enquanto variao(rerao) contnua do conjunto de espcies existentes e possveis. Uma espcie de renovada e errante

    patasica, a cincia das solues imaginrias, que simbolicamente atribui as propriedades dos objetos,descritos por sua virtualidade, aos seus traos, que nos coloque em contato com outras humanidades reais ou irreais justamente para desrealizar nossa concepo do Homem (moderno, demasiado mo-derno), nossa imagem do homem, nossaspecies para podermos pensar e experimentar outras. rata-se,

    para comear, de imaginar com os outros, partindo de um estado de esprito incerto, para no dizer deuma cincia das incertezas, aberto a um encontro que no seja de conquista e submisso, que, em vezde reduzir e explicar o outro, o implique, o oua, atento as suas possibilidades e, portanto, s nossas:uma antropologia que se inicie nas especulaes das dierentes coletividades e agenciamentos para azersurgir em nossas especulaes a semente da multiplicidade ontolgica. Ou seja, trata-se de reconhecerque a razo de Estado tambm um estado da razo, as mais das vezes monrquico e totalizante, sempre

    pronto para a interdio do outro sob o signo do Um, germe do poder no poder da razo. Pois o direitode autodeterminao ontolgica est diretamente relacionado com os modos de vida e no com nossas

    razes primeiras sobre as razes do outro. Anti-solipsismo: no h dilogo para valer sem a premissa daincompletude, que no questione as ronteiras do pensar e do viver, os muros, as incomensurabilidades,as histrias amiliares, que no seja um pensamento na ronteira. Pois sempre a mesma ronteira que

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    separa humanidade de animalidade e homens de outros homens, e os homens de seus duplos: o animal

    gmeo do escravo, e o especismo e o racismo, os dois aspectos indissociveis do mito da dignidadeexclusiva da natureza humana, espectros invocados pelo ciclo maldito que esse mito instaura e que

    pretende paradoxalmente excomungar todos os outros espectros cumprindo a era do triuno (do) Ab-soluto, o Antropoceno, na qual a dignidade alastra seu cheiro de morte. alvez todas as cincias dohomem, aquilo que chamamos de humanidades, sejam ou devam ser tambm cincias do inter-esse,cincias interessadas, interespecficas, do contato, cujos co-sujeitos no seriam s humanidades, masespcies, monstros. Cincias da traduo recproca entre virtualidades e atualidades. Cincias no maisocultas, cincias de aces monstruosas. Cincias inumanas. Cincias-fico. Cincias-poiesis.

    Curitiba, 22 de abril de 2015

    Alexandre NodariFlvia Letcia Biff Cera

    Guilherme Gontijo FloresJuliana Fausto

    Marco Antonio ValentimMiguel Carid

    Vinicius Honesko

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    Do espectro da metafsica

    metafsica do espectro

    Fabin Luduea RomandiniProfessor de ps-graduao na Faculdade de Cincias Sociais da

    Universidad de Buenos Aires e professor de filosofia da UADE

    Traduo de Alexandre Nodari

    Reviso de Marcos Matos e Juliana Fausto

    NOTA DO AUTOR Este texto uma verso modificada de uma conerncia proerida no VI CONECO, na UERJ,no dia 23 de outubro de 2013, e alguns temas constituem os primeiros esboos de uma "espectrologia" que sero objeto especfico de um uturo livro intitulado A comunidade dos espectros II. Ontosofia. Gostaramos deagradecer ao pro. Erick Felinto por seus comentrios a este texto.

    RESUMO Esse texto procura abordar a possibilidade de construir uma metasica para nossos tempos, em es-pecial, uma espectrologia. endo em vista esse objetivo, analisam-se as ormas pelas quais a filosofia modernaativamente encerrou a problemtica dos espectros como entes objetivamente existentes (Descartes, Hobbes,Espinosa). Em um segundo momento, buscamos investigar a ontologia regional dos sonhos e das imagens dafilosofia neoplatnica renascentista como uma orma de para-onto-sofia do Outside.

    PALAVRAS-CHAVEMetasica; espectrologia; imagens

    RESMENEl presente texto intenta abordar la posibilidad de construir una metasica para nuestro tiempo y,especialmente, una espectrologa. Con vistas a este objetivo, se analizan las ormas en que la filosoa modernaprodujo una clausura del problema de los espectros como entes objetivamente existentes (Descartes, Hobbes,Spinoza). En un segundo momento, intentamos adentrarnos en la ontologa regional de los sueos y las imge-nes de la filosoa neoplatnica renacentista como una orma de para-onto-soa del Outside.

    PALABRAS CLAVEMetasica; espectrologa; imgenes

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    SPECIES n1|Fabin Luduea | Do espectro da metafsica metafsica do espectro 8 |

    Ns, os modernos

    Gostaramos de partir de um consenso geral que se imps, progressivamente, no sensus communisdafilosofia do sculo XX. Diversas correntes do pensamento argumentaram que a theoriaenquanto ativi-dade filosfica geral impossvel e que a metasica, como cincia particular, chegou a seu cumprimentohistrico, seu desenvolvimento epocal definitivo e, consequentemente, est aberta somente possi-bilidade de sua destruio, desconstruo, desmascaramento genealgico ou crtica scio-lingustica.1Contrariamente a estas perspectivas, gostaria de situar meu trabalho como um modesto esoro dereabilitao da metasica. odavia, considero que tal tarea resulta absolutamente impossvel sem uma

    prounda reconsiderao do prprio sentido da filosofia enquanto tal e do problema de sua eventual fi-

    liao ao conjunto lgico de uma Escola, assim como da tarea premente de dar conta do que primeiravista poderia parecer uma tautologia, a saber, uma tica da prtica filosfica.No podemos expor aqui as razes pelas quais isso no de ato uma tautologia, embora uma vez

    tenha sido, mas necessrio sublinhar que, nos dias atuais, em que o Managementcomo paradigmagovernamental uma realidade que transormou no s a orbe globalizada, como tambm as relaessociais e me atreveria a dizer o estatuto mesmo do humano como tal, a considerao desse aspectose tornou urgente. Sem dvida, hoje vivemos uma era doManagement que introduz novas ormas deexerccio do poder em todas as eseras da vida poltica. Seu objetivo no ltimo, pen-ltimo digamos,no que concerne filosofia, consiste, precisamente, no periciamento da filosofia enquanto tal comodisciplina de pensamento e de vida. Ora, a filosofia no um saber que possa ser submetido percia (oque, evidentemente, no quer dizer que no seja um saber do dissenso e da discusso, o que representaum campo de anlise inteiramente dierente), mas, se no tomamos conscincia dos perigos de ela setransormar, enquanto saber, em objeto de percia, corremos o risco, hoje muito verdadeiro, da desapa-rio do filosoar ao menos nas ormas pelas quais at hoje o conhecamos.

    Postularemos, apenas, que a considerao da filosofia como saber alheio ao Managemente, por-tanto, tambm percia, envolve hoje, necessariamente, uma reabilitao do que antes era conhecidocomo pensamento metasico. Como dizamos, evidentemente h pensadores que se movem, ainda um

    tanto isoladamente, nessa direo. Nossa proposta, enunciemos de sada, no se inscreve nas ormas dorealismo especulativo, justamente diundido e apreciado atualmente, mas antes parte de pressupostosdivergentes e adota ormas dierentes.2udo isso no impede, contudo, as empatias, as coincidncias etambm as discusses filosficas.

    1 claro que isso no constitui um diagnstico unitrio, dado que muitas das mesmas correntes que questionarama histria da metafsica deixaram a porta aberta para um novo pensamento ou ento um novo comeo, que, con-tudo, ainda no se realizou. Cf., s a ttulo de exemplo, Martin Heidegger. Beitrge zur Philosophie (von Ereignis).Frankfurt a.M.: Vittorio Klostermann Verlag, 1989.2 O que hoje se entende por realismo especulativo um movimento filosfico geogrfica e conceitualmente variadoquanto aos objetivos e teorias em disputa. Cf., a ttulo de introduo de sua problemtica e, ao mesmo tempo, comoum bom testemunho de sua evoluo, Graham Harman. owards speculative realism. Essays and lectures. Park Lane:Zero Books, 2010.

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    Do espectro da metafsica metafsica do espectro| Fabin Luduea |SPECIES n1 | 9

    H j algum tempo tentamos desenvolver um projeto que denominamos A comunidade dos es-

    pectros, e que ser desenvolvido em vrios volumes. O primeiro buscar levar adiante uma indagaogenealgica (que acreditamos ainda ser necessria, dado que nossa proposta , em alguns aspectos, ps--genealgica mas no anti-genealgica) sobre a constituio do humano a partir da domesticao daanimalidade constitutiva do Homo sapiens, tomando como ponto de partida as antropotecnologias

    jurdicas e teolgicas que modelaram, no devir secular, a constituio da comunidade vital que os hu-manos ormamos e que hoje atinge um ponto crtico de sua histria antropotcnica, justamente devi-do possibilidade de novas manipulaes genticas da vida que comportam precisamente uma novametasica das dierenas (ontolgicas e sexuais).3Ao mesmo tempo, o trabalho prosseguiu com uma

    indagao sobre o que decidimos chamar de princpio antrpico subjacente concepo metasicapredominante e que tentamos questionar ou, ao menos, submeter a uma considerao crtica.4Ali, osconceitos de extino e de Outsideapresentam-se como possveis horizontes ou prolegmenos de umametasica utura. Em nossas pesquisas mais recentes, esse giro metasico comeou a tomar o lugar danecessria tarea genealgica precedente (que, por razes metodolgicas, preerimos chamar ultra-his-tria ontolgica).5

    Nosso ponto de partida toma como undamento uma constatao: a filosofia moderna pde seconstruir, para alm da enganosa cesura kantiana, a partir e s a partir de um postulado comum que seresume na proposio: no possvel a existncia dos espectros, e que, em sua orma mais sofistica-da, se enuncia como: a espectralidade apenas uma orma da conscincia transcendental que devmcondio de toda imagem. Comecemos pelo princpio. Ou ento por um princpio possvel, semprearbitrrio, naturalmente. No dia 14 de setembro de 1674, o filsoo Baruch Spinoza recebe uma cartade um personagem que, com certa ama em seu tempo, hoje aparece como mais uma vtima do esqueci-mento implacvel do tempo. rata-se do jurista Hugo Boxel, que ora secretrio da cidade de Gorcumde 1655 at 1659, bem como pensionrio da mesma at ser deposto do cargo em 1672, pelo Prncipe

    3 Fabin Luduea Romandini.A comunidade dos espectros I. Antropotecnia.raduo de Alexandre Nodari e LeonardoDvila de Oliveira. Desterro: Cultura e Barbrie, 2012.4 Fabin Luduea Romandini. Para alm do principio antrpico. Por uma filosofia doOutside. raduo de LeonardoDvila de Oliveira. Desterro: Cultura e Barbrie, 2012.5 Os caminhos de uma metafsica foram precocemente revisitados pelo pensamento brasileiro: precede-nos o clebrecogito canibal das metafsicas do devir enunciadas por Eduardo Viveiros de Castro (Mtaphysiques cannibales. Paris:Presses Universitaires de France, 2009), e se continuam nos trabalhos de Erick Felinto sobre a cartografia do imagin-rio cyber-cultural (cf., por exemplo, pasa a tenso entre materialidade e espiritualidade, Silncio de Deus, Silncio dosHomens. Babel e Sobrevivncia do Sagrado na Literatura Moderna. Porto Alegre: Editora Sulina, 2008). Por outro lado,no podemos deixar de assinalar os trabalhos de Alexandre Nodari (O extra-terrestre e o extra-humano: notas sobrerevolta ksmica da criatura contra o criador. Landa, vol 1, n 2, 2013. pp. 251-260) sobre o hetairismo ontolgico(herdeiros de Oswald de Andrade), os desenvolvimentos de Flvia Cera sobre o que gostaria de chamar de uma meta-

    fsica dos Parangols de Hlio Oiticica, assim como os trabalhos de Leonardo Dvila de Oliveira sobre as entidades(cf. Entidade. Sopro,n 79, 2012. pp. 11-16). Uma meno especial tambm deve ser feita, obviamente, s pesquisasde Idelber Avelar sobre os direitos no-humanos que se erguem sobre o pano de fundo do perspectivismo amerndiode Viveiros de Castro (Amerindian perspectivism and non-human rights.Alter/nativas, n1, 2013. pp. 1-21).

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    SPECIES n1|Fabin Luduea | Do espectro da metafsica metafsica do espectro 10 |

    de Orange aps a queda de Jan de Witt.6O motivo da missiva revelado pelo autor de imediato, pois

    desejava saber a opinio de Spinoza a respeito da existncia dos espectros, mas, certamente, no duvidaque, se o filsoo deendesse sua existncia, no creria que alguns deles so almas dos mortos, como

    pretendem os deensores da romana.7

    Certamente, Boxel pretende introduzir uma distino entre o espectro como tal e sua conceptuali-zao por parte da teologia (particularmente, a crist), de cuja desconstruo spinozana est muito beminormado. A primeira reao de Spinoza, que considera a pergunta uma mera bagatela , no entanto,corts. Limita-se a assinalar que dificilmente decorre de uma experincia que existam espectros, antesse inere que existe algo, que ningum sabe o que . E se os filsoos querem chamar de espectros s coi-

    sas que ignoramos, no os contestarei, pois h infinitas coisas ocultas a mim.8

    Elegantemente, Spinozaevita se pronunciar sobre a existncia dos espectros j que, argumenta, no se pode definir, para come-ar, de que tipo de entidade se est alando e, portanto, remete um pedido de esclarecimento a Boxel.

    Com eeito, Boxel no se surpreende com a resposta do filsoo. Embora tampouco seja especficoquanto ao tipo de entidade particular de que se est tratando, Boxel sustenta que os espectros so cria-dos por Deus, condizem com a pereio e a beleza do Universo, dado que o espao incomensurvelque est entre ns e os astros no est vazio, e sim cheio de espritos. Por outro lado, Boxel pensa que ossuperiores e mais remotos so verdadeiros espritos, enquanto os ineriores, que esto no ar inerior, socriaturas de uma substncia sutilssima e tenussima e, alm disso, invisvel.9oda uma tradio milenarque se sedimentou pouco a pouco no Ocidente ressoa nas palavras de Boxel. Logo teremos a oportu-nidade de voltar a isso. Por certo, o correspondente de Spinoza deende uma concepo filosfica doespectro e, portanto, quanto aos espritos maus, que atormentam os homens nesta vida e depois dela, outra questo, e o mesmo no que diz respeito magia: considero que os relatos sobre estas questesso bulas.10

    Diante da insistncia de Boxel, Spinoza levado a expor seu argumento mais claro sobre a inexis-tncia dos espectros em sua carta de outubro de 1674. Os pontos mais relevantes so os seguintes:

    a) A beleza no uma qualidade intrnseca de um objeto, mas sim o resultado de uma percepopor parte de um sujeito. Do ponto de vista de Deus, o mundo no , estritamente alando, nembelo nem eio. Estas propriedades do mundo dependem do temperamento e das circunstncias queaetem o sujeito preceptor pois a beleza no uma categoria objetiva independente de um sujeitoobservador.

    6 Sobre esse personagem, cf. Koenraad Oege Meinsma. Spinoza en zijn kring: historisch-kritische studin.s-Gravenha-ge: Martinus Nijhoff, 1896. pp. 388-389.7 Baruch Spinoza. Correspondencia.raduo ao castelhano de Atilano Domnguez. Madrid: Alianza, 1988. p. 311

    (carta 51).8 Ibid., p. 313 (carta 52).9 Ibid., p. 314 (carta 53).10 Ibid., p. 316 (carta 53).

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    Do espectro da metafsica metafsica do espectro| Fabin Luduea |SPECIES n1 | 11

    b) Ao no existir uma dierena ontolgica de gradao entre as criaturas e a possvel transcendn-

    cia de um Deus criador, ento o infinito se expressa de igual modo em qualquer ser finito e, assim,o espectro no tem nenhum privilgio de pereio ontolgica. Os entes geomtricos, dos quaiso pensamento pode dar conta (como um tringulo ou um crculo), so, por sua clareza, criaesexistentes de Deus. Em contrapartida, a ideia do espectro provm no do pensamento, mas daimaginao, do mesmo modo que as harpias, os grios ou as hidras e portanto posso consider-loscomo sonhos, os quais se dierenciam de Deus tanto como o no-ser do ser.11O mundo onrico, pois, um reino do ontologicamente irrelevante, das quimeras da imaginao humana que no

    participam da pereio e da gravidade do ser. Nesse sentido, ruto da imaginao, o espectro seria

    inexistente.c) Por fim, no possvel estabelecer gradaes hierrquicas na matria infinita, portanto, no hlugar para entidades sutis materialmente distintas do resto do universo criado.

    Por conseguinte, o objetivo de Spinoza consiste em desmantelar as filosofias que haviam inventa-do as qualidades ocultas, as espcies intencionais, as ormas substanciais12, de cunho platnico-aristo-tlico aos olhos de Spinoza, para reivindicar o atomismo e o epicurismo. Por isso, seus propsitos no

    podem ser dissociados do que Spinoza enunciara em seu ractatus theologico-politicus, no qual escreveuque os enmenos que compreendemos clara e distintamente merecem se chamar obras de Deus e que

    se atribua a eles a vontade divina mais do que esses milagres que nos deixam na ignorncia absoluta,embora ocupem enormemente a imaginao das pessoas.13Do ponto de vista de Spinoza, a validaodo milagre equivaleria ao atesmo, na medida em que, de ato, introduziria uma ciso em Deus mesmo,considerado como realizao das leis naturais. O milagre, azendo com que algo exista contra ou acimada Natureza, eliminaria, consequentemente, a ideia de um Deus criador de leis naturais sobre as quaisele mesmo se desenrola de modo imanente.

    Rivalizando com Spinoza, Pierre Bayle detectou a enorme importncia que possua no sistemadaquele um elemento aparentemente to marginal quanto a questo espectral. Em certa medida, Bayle

    pde intuir que no lugar, apenas alsamente marginal, do espectro, se jogava todo o destino da filosofiamoderna. Por isso, no seu artigo do Dictionnaire historique et critique(1740), pde escrever que Spi-noza ignorou as consequncias inevitveis de seu sistema ao esquivar-se da apario de espritos, postoque no h filsoo com menor direito que ele para neg-la.14Do ponto de vista de Bayle, se Spinozaadmite que tudo na natureza pensa, ento torna-se necessrio que o homem no pode ser a intelignciamais esclarecida e que, portanto, os demnios devem existir.

    11 Ibid., p. 321 (carta 54).12 Ibid., p. 331 (carta 56).13 Baruch Spinoza. ractatus theologico-politicus. Em: Oeuvres compltes. raduo ao francs dede Roland Caillois,Madeleine Francs y Robert Misrahi. Paris: Gallimard, s/d. p. 698.14Pierre Bayle. Diccionario histrico y crtico.raduo ao castelhano de Fernando Bahr. Buenos Aires: El cuenco deplata, 2010. p. 336.

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    Conhecedor da correspondncia de Boxel e Spinoza, Pierre Bayle tem a inusitada coragem de de-

    clarar que no existe nenhuma ligao natural entre o entendimento e o crebro15; esta a razo pelaqual devemos crer que uma criatura sem crebro to capaz de pensar quanto uma criatura organizadacomo ns.16Bayle considera que Spinoza deveria declarar-se de acordo com uma afirmao do gnero,dado que, se afirma que o pensamento um atributo de Deus, no h razo para supor que ele deva serigual em toda a natureza e, portanto, se existem seres de pensamento inerior ao homem (os animais)tambm existem seres de inteligncia superior (demnios). Como se pode ver, a ousadia de Bayle noconsiste apenas em separar o crebro do entendimento, mas, alm disso, em postular que um espectro uma espcie de esse objectivum, mais precisamente uma entidade de pensamento puroe, portanto, um

    atributo possvel da natureza sob a modalidade do pensar.Certamente, Spinoza no oi o primeiro a rechaar o espectro do mundo do pensamento. J Des-cartes, quando tenta demonstrar que a memria permite distinguir contra o argumento enunciadona primeira de suasMeditaes metafsicas o sono da viglia mediante a restituio da cadeia causal dosatos, assinala que, se algum aparecesse durante a viglia sem poder dar-me conta da srie causal que oconduziu at minha presena, ento seria como as imagens que vejo ao dormir [...] e no sem razo asconsideraria um espectro ou um antasma ormado em meu crebro, e semelhante aos que se ormamquando durmo, em vez de um homem verdadeiro (non inmmerito spectrum potius, aut phantasma incerebro meo effictum, quam verum hominem esse judicarem).17

    Com eeito, o espectro no podia ser, apesar do que sustenta Pierre Bayle, assimilado por Spinoza sua doutrina, dado que este concebia o pensamento como uma univocidade na qual, eetivamente, po-dia existir o Pensamento como expresso infinita de Deus e o pensamento finito do homem individual.Contudo, a univocidade da concepo impedia a existncia de hierarquias entre uma e outra. E aindaque essa possibilidade no alterasse de todo o sistema spinozista, certamente a possibilidade de umaexistncia independente do espectro como pensamento se torna impossvel se este no pode ser remeti-do infinitude do pensamento divino e, deste ponto de vista, Spinoza nunca se maniestou avorvel

    prolierao das entidades pensantes.

    Entretanto, resulta ainda mais decisivo que, tanto para Descartes quanto para Spinoza, o espectrono pertence como prope Bayle dimenso do pensamento, mas sim da imaginao, na qual aessncia eidtica de uma quimera no acarreta, em absoluto, sua existncia necessria, como se podededuzir, ao contrrio, a necessariedade de que um tringulo tenha trs lados e, por ser uma pereiomatemtica, deva existir criado por Deus. Neste sentido, o espectro colocado para ora da ordem do

    pensamento e, como tal, ora da ordem do ser, para ser encarcerado em uma esera, a imaginao, em

    15 Algo que, certamente, no se poderia dizer to facilmente em relao captao do sensvel. Cf., nesse sentido,Ren Descartes. La Dioptrique, VI. Em: Oeuvres de Descartes.Editadas por Charles Adam y Paul annery. Paris: Vrin-

    -C.N.R.S. 1964-1974. vol. 5, p. 142: quando nosso olho ou nossa cabea voltam-se para algum lado, nossa alma notificada pela mudana que os nervos inseridos nos msculos usados nesses movimentos causam em nosso crebro.16 Bayle, Diccionario histrico y crtico, p. 380.17 Ren Descartes.Meditationes de prima philosophia.Em: Oeuvres de Descartes, vol. 7, p. 90.

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    que as imagens no possuem ora ontolgica, mas so uma maniestao emera de uma iluso.

    Contudo, no se deve imaginar isso como um deeito do homem: dado que se o esprito, imagi-nando como presentes coisas que no existem (res non existentes), soubesse ao mesmo tempo que essascoisas no existem realmente, consideraria esta potncia de imaginar (imaginandi potentiam) comouma virtude de sua natureza (virtuti suae naturae), e no como um vcio.18Como se pode ver, a po-tncia imaginativa do homem uma virtude, mas, quando se vincula a imagens plenas, ou seja, nocorrespondentes a imagens de coisas (rerum imagines) exteriores, os contedos imaginativos estodissociados completamente da esera do ser e, portanto, so evanescentes e potencialmente errneos.A esta esera, precisamente, como aculdade concomitante ao pensamento mas que no se conunde

    ontologicamente com ele, pertence o espectro como um exilado da ontologia, como um ser inexistente.A assimilao da imaginao ao reino dos sonhos no era patrimnio exclusivo de Spinoza, comotampouco a problemtica da distino entre sono e viglia um toposeminentemente cartesiano. oda afilosofia moderna est, em certo sentido, atravessada por estas questes. E sobre esse solo que se tratarde elucidar o problema do espectro como entidade metasica.

    A antropologia hobbesiana um exemplo undamental e undacional deste modo de raciocnio. Opostulado de Hobbes consistir, essencialmente, em argumentar que as vises de espectros so o meroresultado de um estado de ensonhao do sujeito (como a viso de Marco Bruto emPhilippirecordada

    pelo filsoo). Contudo, tambm possvel ser vtima de uma superstio e ver um espectro se o sujeitoest possudo pelo medo, que uma paixo poltica por excelncia: essa eventualidade no muitorara, pois mesmo os que esto pereitamente despertos, quando so temerosos e supersticiosos (if theybe timorous and superstitious), e se encontram possudos por terrveis histrias (possesed with fearfultales), ao estarem sozinhos na escurido veem-se sujeitos a tais antasias (fancies), e creem ver espritos eantasmas de homens mortos (spirits and dead mens ghosts) passeando pelos cemitrios.19

    Esse momento, em que o homem no pode distinguir os sonhos e outras antasias da viso e dassensaes (vision and sense), constitui, para Hobbes, o momento de origem das religies antigas e suaadorao de stiros, aunos, ninas e outras fices do gnero.20Ou seja, a fico, a conuso de um

    sonho com uma sensao real, constitui aarchde toda a religio pag. Se consideramos que a religio ea sacralidade concomitante no mundo antigo haviam definido o espao pblico e aetado as eseras dodireito, podemos ento deduzir, com Hobbes, a importncia poltica do sonho e de suas fices. Deste

    ponto de vista, todo regime de governo tambm uma poltica do sonho.De ato, o prprio Hobbes confirma esta hiptese quando argumenta que se este temor supers-

    ticioso pelos espritos osse eliminado, e com ele as previses baseadas em sonhos, as alsas proecias emuitas outras coisas que dependem deles, mediante as quais algumas pessoas astutas e ambiciosas abu-sam das pessoas simples, os homens estariam mais aptos do que esto para a obedincia civil (men would

    18 Baruch Spinoza. Ethica Ordine Geometrico demonstrata.Edio de Bernard Pautrat. Paris: Seuil, 1999. p. 136.19Tomas Hobbes. Leviathan.Editado por Richard uck. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. p. 18.20 Ibid., p. 18

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    be much more fitted tan they are for civil Obedience).21Como se pode ver, o problema do espectro no

    s um problema metasico, mas tambm, como no poderia deixar de ser, essencialmente poltico. Aeliminao do espectro do espao pblico e sua desacreditao metasica parecem ter sido algumas dascondies de possibilidade da poltica dos sonhos da Modernidade e, portanto, da constituio do Es-tado moderno. Do contrrio, por que Hobbes se veria levado a tratar amplamente dos espectros em umlivro dedicado ao poder e ao Estado como oLeviathan? O mistrio poltico do espectro na Moder-nidade uma das temticas que deveremos abordar se queremos entender sua verdadeira pregnncia.

    Certamente, Hobbes compreende que os antigos e os medievais definiam os espectros como t-nues corpos areos (thin arall bodies) e, deste ponto de vista, eram substncias reais e externas (real

    and externall Substances).22

    Seja dito de passagem, precisamente esta tendncia metasica que le-vou, segundo Hobbes, definio do Deus cristo como incorpreo, isto , Infinito, Onipotente eEterno, ou seja, acima da compreenso humana, posio que Hobbes rechaa com veemncia. Estaalegao assume uma nova importncia sobretudo se levamos em considerao que, segundo muitasinterpretaes, bem provvel que Hobbes tenha pensado na existncia de um Deus corporal (aindaque invisvel, infinito e eterno), como consta no apndice includo na traduo latina doLeviathan. Aomesmo tempo, a agncia, a ora causante que estas entidades poderiam ter, no se justifica, aos olhosde Hobbes, a no ser pela ora do costume.

    Precisamente, da admisso (para Hobbes, metafisicamente equvoca) da existncia de espectros sederiva, como havamos assinalado, a religio antiga: a ideia dos espritos, ignorncia das causas segun-das, devoo por aquilo que os homens temem (Devotion towards what men fear) e admisso de coisascausais como prognstico, a semente natural da religio (naturall seed of Religion).23Evidentemente,torna a diz-lo Hobbes, o propsito de tal impostura espectrolgica oi, contudo, nobre (mesmo es-tando errada) pois buscava tornar os homens mais aptos para a obedincia, as leis, a paz, a caridadee a sociedade civil (more apt to Obedience, Lawes, Peace, Charity, and civill Society).24Por isso, semquaisquer ambiguidades, Hobbes conclui que a religio da primeira espcie [a pag] uma parte da

    poltica humana (human Politiques) e ensina parte do dever (duty) que os reis terrenos (Earthly Kings)

    requerem de seus sditos (Subjects).25Do ponto de vista metasico, ao rechaar a substancialidade do espectro, Hobbes o situa, tal qual

    Spinoza, como uma orma a mais da imaginao. Uma imagem, para Hobbes, a aparncia de uma coi-sa visvel (Resemblance of some thing visible).26Agora, um antasma no tem existncia, no se encontradentro do mundo ntico, portanto, disso fica maniesto que no existe nem pode existir uma imagem

    21 Ibid., p. 19.22 Ibid., p. 77.23 Ibid., p. 79.24 Ibid., p. 79.25 Ibid., p. 79.26 Ibid., p. 447.

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    eita de uma coisa invisvel (there neither is, nor can bee any Image made of a thing Inisible).27Como

    se pode ver, o rechao metasico da espectralidade revela-se o gesto poltico que inaugura o nomosdaModernidade, dado que age sobre a imaginao, que, ao mesmo tempo, constitui, segundo Hobbes,a archltima sobre a qual os homens operam para constituir regimes polticos e assegurar a paz dasociedade civil.

    A metafsica, ainda...?Claramente, a filosofia posta em xeque pelos modernos, entre os quais devemos incluir Spinoza eHobbes, a metasica antiga e medieval que encontrara no neoplatonismo renascentista sua ltima

    e mais sofisticada articulao no pensamento da Europa ps-medieval. Se h uma corrente da filosofiaque tenha se ocupado justamente em conceber uma metasica da espectralidade como uma espcie deontologia regional de uma metasica da imaginalidade mais ampla, este mrito cabe, sem sombrade dvida, ao neoplatonismo de Marslio Ficino (1433-1499) e aos seguidores de sua obra.

    evidente que uma das tradies determinantes para a compreenso da teoria ficiniana da imagem a platnica. Esta Escola, como sabemos, desenvolveu uma complexa teoria ptica que, em ltima ins-tncia, tem sua origem em Empdocles. Nos seus Comentaria in Platonis Sophistam, uma obra poucoestudada mas undamental de Ficino, o filsoo dedica um captulo inteiro a comentar este problema a

    partir do imeu. Com eeito, neste dilogo platnico, lemos que: uando a luz do dia circula ao redordos fluxos que brotam dos olhos, ento o ogo interior se escapa, o semelhante se dirige ao semelhante,e depois de se combinar com a luz do dia se constitui um s corpo que tem as mesmas propriedadesao longo da linha sada dos olhos, qualquer que seja o lugar em que o ogo que sai do interior entre emcontato com o ogo que provm dos objetos exteriores. Forma-se assim um todo que tem propriedadesuniormes em virtude de sua homogeneidade; se este todo entra em contato com o que quer que seja ouse qualquer outra coisa entra em contato com ele, transmite seus movimentos atravs de todo o corpoat a alma e nos proporciona esta sensao graas qual dizemos precisamente que ns vemos.28

    Como podemos perceber, aqui se desenvolve a teoria platnica da sensao. A saber, como Harold

    Miller demonstrou29, as impresses que atingem os rgos dos sentidos devem, por meio de uma cadeiade movimentos cuja transmisso garantida pelo sangue, chegar assim alma e sua parte racional parase transormar em sensaes associadas aos sentimentos do prazer ou da dor. 30Por certo, aqui a teoriade base platnica sore influxos provenientes de Demcrito, Herclito, dos estoicos e dos aristotlicos,entre outros. Em meio a estas influncias, resulta de particular interesse a identificao ficiniana do

    27 Ibid., p. 448.28 Plato. ime.raduo ao francs de Luc Brisson. Paris: Flammarion, 1992. p. 141 (45b).29Harold Miller. Te Flux of body in Platos imaeus. ransactions and Proceedings of the American Philological

    Association,88, 1957. pp. 103-113.30 Sobre isso, aclara Marsilio Ficino. Commentaria in Platonis Sophistam (Opera Omnia. Basilea: Ex Officina Hen-ricpetrina, 1576. p. 1472): Ibi igitur in unam speciem cum hoc lumine coalescens siquid attingerit quod quoquomodoresistat quasi resilit prorsus in spiritum, atque ex hoc ad animam.

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    spiritus animalis com o ogo interior por sua natureza solar e, portanto, semelhante ao raio. Esta iden-

    tificao provm da leitura ficiniana de Calcdio (filsoo platnico cristo do sculo IV que escreveuum comentrio justamente ao imeuplatnico, o qual exerceu grande influncia sobre Ficino).31

    Como se pode constatar, esta teoria da viso , do ponto de vista filosfico, do maior interesse, poisse constitui, ao mesmo tempo, para alm de toda enomenologia e de todo realismo. De um ponto de

    vista ontolgico, preciso admitir que o mundo no meramente uma realidade objetiva que se impea um sujeito perceptor pela ao direta sobre os sentidos. Por outro lado, as capacidades do aparatosensorial do perceptor so, por si s, incapazes de captar, de orma direta ou transcendental, a realidadeenomnica do mundo que, de ato, a rigor, no existeper sena filosofia ficiniana. Ao contrrio, a per-

    cepo tem lugar graas a uma medialidade32

    que se produz pela interseco do ogo interior que emanado sujeito com o ogo exterior que emana dos objetos. Desta maneira, no se conhece um objeto, massim o ogo imaginal que emana deste, assim como um sujeito no percebe pelas suas prprias potnciassensitivas, mas sim, rigorosamente, pela uso de seu raio interior com o raio exterior.

    Exatamente nesse ponto, produz-se um meiono qual o mundo pode se maniestar. Neste sentido, omundo tem lugar somente na medialidade. Dito de outro modo, o mundo no se maniesta nem no ob-

    jeto nem no sujeito, mas sim em um lugar extra-objetivo e extra-subjetivo que o meio gneo. Estamos,pois o mnimo que podemos dizer , na presena de uma metasica que contm uma viso tridicado existente, na qual o mundo no pertence, propriamente, nem ao objeto nem ao sujeito, mas que,antes, abre lugar em um espao ontologicamente terceiro e independente cuja geografia ainda no oiinteiramente descrita.

    De ato, aqui se torna necessrio relembrar a obra pioneira de Andr Festugire, que ressalta comoa contemplao do mundo sensvel por vezes supera a importncia, na obra platnica, da contemplaodo mundo inteligvel.33 por isso que, indubitavelmente, Plato pode, no imeu, postular a contem-

    plao sensvel do cosmos atravs da medialidade da viso como a origem da disposio filosfica nohomem, qualificando, no mesmo gesto, a filosofia como o maior dom que os deuses nos concederam.

    Portanto, a ptica da medialidade gnea constitui o primeiro elo, sensvel, diramos, da teoria ima-

    ginal de cunho platnico-ficiniano que az da capacidade ptica uma condio de acesso filosofiacomo tal. Nesse sentido, no um exagero afirmar que a filosofia ocidental no oi apenas um primadodoLgos, mas que igualmente desempenhou um papel decisivo o dispositivo da medialidade visual que,na orma da luz cognitiva, traou um curso em queLgose viso se transormam em co-dependentes. O

    Lgosfilosfico, portanto, est plenamente enraizado em uma tradio do sensvel que s a Modernida-de ilustrada ir querer colocar em xeque.

    31 Jan Hendrik Waszink. Studien zum imaioskommentar des Calcidius, I. Die erste Hlfte des Kommentars (mit Aus-

    nahme der Kapitel ber die Weltseele). Leiden: Brill, 1964.32 Para a mais importante e sutil filosofia da medialidade dos ltimos anos, cf. Emanuele Coccia.A vida sensvel. ra-duo de Diego Cervelin. Desterro: Cultura e Barbrie, 2010.33Andr-Jean Festugire. Contemplation et vie contemplative selon Platon.Paris: Vrin, 1936.

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    Certamente, os platnicos tambm aproximaram o problema dos sonhos ao dos espectros (pois,

    em ambos os casos, a imagem e a medialidade carregam uma importncia poltica). A origem da espe-culao remonta a Numnio de Apameia, e podemos ler o trecho seguinte nesse pice do pensamentoneoplatnico que a obra de Proclo: Por outro lado, afirma [Numnio] que Plato, como se disse, rea-liza uma descrio das portas quando menciona os dois abismos e que, ao definir a luz que ele chama delao do cu, est se reerindo justamente Via Lctea [...] Afirma que os signos dos rpicos, o duploabismo e as duas portas, so dierentes unicamente quanto ao homem, e que tambm a Via Lctea, aluz semelhante ao arco-ris, e o povo dos sonhos so todos uma mesma coisa, pois o poeta Homerocompara as almas desencarnadas com os sonhos.34

    Vemos aqui como Proclo postula uma identidade entre a antiqussima tradio homrica do demosoneirn e o arco-ris platnico da Repblica. rata-se, verdadeiramente, do ato de que os espectroshabitam e ormam, eles mesmos, uma comunidade poltica. A politicidade, no mundo pr-moderno,no era, em absoluto, um patrimnio exclusivo do homem. Ao contrrio, em certo sentido, as ormas

    polticas, em muitos casos, eram estrangeiras a ele e surgiam como uma orma de imitao de algumasocietas inra ou supra-humana que determinava as ormas e os modelos de seu exerccio. Nesse caso,a tese deendida por Proclo ainda mais radical, dado que suas palavras no so metaricas e tentamdizer que existe uma orma poltica que consubstancia e outorga sentido associao de almas quehabitam o cosmos. O povo dos sonhos a orma pereita daquilo que a orma sensvel do demos hu-mano s pode alcanar como cpia impereita. Ao mesmo tempo, pode-se ver que at mesmo o que oshomens pensam ser o mais prprio de sua condio material, como, por exemplo, sua organizao emcomunidades para garantir sua subsistncia e a reproduo de sua espcie, teorizado, ao menos emmuitas tradies (entre elas, a do platonismo) como uma orma associativa que no oi originalmenteinventada pelo homem.

    O demoshumano s pode alcanar seu sustento real se busca imitar o povo dos sonhos. Desteponto de vista, a assim chamada teologia poltica no inventou absolutamente nada que no estivessepresente j no mundo antigo: toda politicidade humana por definio transbordada e inacabada: a

    stasis reina no mundo da poltica humana e s o mistrio dos sonhos, no mundo antigo assim comono neoplatonismo renascentista, oerece uma via de acesso s origens do que se entende comopoliteia.Portanto, no h ato humano que no seja uma orma de ex-tasis e de inacabamento, posto que o ani-mal humano no habita nuncaapenasum mundo: vive simultaneamente ou sucessivamente em vriasdimenses (por exemplo, a viglia e o sonho), e o que a filosofia pode tomar como tarea o mistrio deexplicar a unificao da agncia humana e o paradoxo de sua articulao.

    Em certo sentido, a filosofia pr-moderna tentou explicar esta dessubjetivao radical de todasas ormas viventes e o princpio de sua unificao. E, consequentemente, o Aberto muito mais que

    o acesso do homem a uma esera do Ser e da linguagem: o abismo que o conduz a uma pluralidade34 Proclo. Procli Diadochi in Platonis Rem publicam commentarii, 2 vols. Edio de Wilhelm Kroll. Leipzig, eubner,1909. vol. 2, p. 128-129.

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    ontolgica que resulta em uma contnua desterritorializao de sua identidade. Os antigos pensavam

    que esta multiplicao de mundos e esta exploso de qualquer concepo echada do sujeito deveria serdomesticada pelas oras da filosofia (uma antropotecnologia par excellence). No mundo moderno tentamos demonstr-lo em um livro sobre H.P. Lovecraf35, a viso cosmolgica antiga substituda

    pela cincia moderna, produzindo uma mudana substancial para a filosofia: o horror e o desassossegoseriam, para os tempos hiper-modernos, as Stimmungenmais prprias.

    Agora, precisamente, esta concepo do sonho, segundo Ficino, de tipo hermtico-rfica, masque chamaramos neoplatnica (sem que haja contradio alguma entre essas nomenclaturas), com-

    porta uma proposio undamental: a mente humana no se encontra em uma unidade completamente

    intrnseca consigo mesma. Como postula Ficino, o territrio dos sonhos, equivalente ao domnio dosespectros, a esera de outro mundo, uma terra povoada de seres de razo completamente independen-tes da mente humana. Neste sentido, a experincia do sonho a orma mais extrema de uma dessubje-tivao da agncia humana. Evidentemente, a liberdade no aetada, dado que as vozes sugerem semordenar e o homem quem aceita ou denega os pressgios e torna prprio seu destino.36odavia, oessencial consiste em assinalar que, no momento do sonho, do descanso, o homem no se encontra, na

    proposta de Ficino, com o mais ntimo de si mesmo, mas, ao contrrio, com o mais exterior a si mesmo,com um mundo radicalmente outro mas sem o qual a sua posio como agente de seus atos no mundose tornaria impossvel.

    Portanto, longe de toda enomenologia da conscincia transcendental e de uma unidade pura dointelecto (que, no obstante, em outro nvel Ficino poderia deender), a mente humana, aqui, se des-territorializa, literalmente, ao entrar no mundo dos sonhos. A mente, neste ponto, permanentementehabitada pelas vozes divinas e espectrais e a intimidade do eu (o que os modernos chamariam de self) simplesmente o acesso a uma multiplicidade infinita de outros seres de razo que o habitam e o as-sediam. O homem nunca plenamente si mesmo, jamais pode echar-se sobre sua prpria autonomia

    porque, de modo contnuo, assediado pelas oras de um exo-mundo ao qual permevel. A ora doeiticeiro natural (ou do demonaco) consistir, precisamente, em realizar uma tarea de mediao e,

    eventualmente, de controle das relaes dos homens com os radicalmente outros que so os deuses emrelao aos homens.

    Contudo, para compreender um pouco melhor a sutileza do processo onrico e da complexa me-tasica que Ficino tenta delinear, devemos voltar sobre um elemento essencial para a explicao dosonho, do espectro e tambm das relaes do homem com a medialidade e o mundo. Refiro-me noode idolum. Plato j estabelecera que os idolano coincidem com os corpos e, por isso, no possuemmatria. A doutrina ficiniana do idolumtem uma notvel influncia no s de Plato, como tambm

    35 Fabin Luduea Romandini. H.P. Lovecraft: a disjuno no Ser.raduo de Alexandre Nodari. Desterro: Culturae Barbrie, 2013.36 Nesse sentido, Ficino responde aqui sua teoria da Providncia em sua relao com o livre arbtrio. Cf. Michael

    Allen. Synoptic Art. Marsilio Ficino on the History of Platonic Interpretation. Firenze: Leo Olschki, 1998.

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    doDe Animade eorasto, de Jmblico e do menos conhecido Prisciano de Ldia, traduzido por Ficino

    por volta de 1488. Evidentemente, tambm undamental o Comentrio de Proclo Repblica, vistoque, como sabemos, o manuscrito se encontrava na biblioteca privada dos Mdici, onde Ficino o tomouemprestado em 7 de julho de 1492.37

    A partir destas ontes se configura a posio ficiniana que se traduz na rmula: as imagens visveisconsistem em certas substncias de certos simulacros que so abricadas pela maquinao demonaca.38Partindo de Proclo, Ficino extrai a concluso, decisiva, de que, aetando as imagens, se pode aetar as

    prprias coisas por meio da compassio. Aqui, claro, Ficino est pensando na essncia mesma do en-meno mgico. Como assinalou Michael Allen, no podemos simplesmente crer que aqui Ficino esteja

    pensando em algum tipo de magia natural, dado que os demnios exercem uma soberania absolutasobre o reino das sombras e das imagens. Portanto, a simples afiliao de Ficino magia natural setorna um pouco mais dicil de atestar com absoluta nitidez como outros intrpretes pretenderam no

    passado.39

    A estas ontes, devemos acrescentar o De rerum natura, em que lemos: Vou tratar agora do quechamamos simulacros das coisas (quae rerum simulcra uocamus), os quais, como pelculas desprendidasda pele exterior dos corpos, voam pelos ares de c para l; eles so os que nos aterrorizam aparecendos nossas mentes, na viglia ou tambm nos sonhos (atque in somnis), quando cremos ver ormas prodi-giosas e os espectros dos que j esto privados de luz [...] Digo, pois, que as coisas emitem egies de simesmas e tnues figuras a partir de sua supercie (dico igitur rerum effigias tenuisque figuras mittier abrebus, summo de cortice eorum).40

    Certamente, Ficino reter, aqui, a teoria dossimulacraticos e no a doutrina sobre a finitude daalma. Sabemos, de ato, do entusiasmo de Ficino pelo epicurismo em sua juventude e o posterior recha-o parcial de suas doutrinas (um rechao acompanhado tambm de um aastamento de Demcrito edos atomistas).

    Neste caso, vemos como o sonho, os idolum(como espectro e como medialidade) borram a dis-tino entre sujeito, objeto e mundo, gerando no tanto uma zona de indistino, mas sim uma zona

    ontologicamente delimitvel que abre a regio daquilo que queremos explorar sob o nome do Outside(ora do sujeito, ora do objeto, ora do mundo), e, por isso mesmo, constitutivo de todos eles. O es-

    pectro como simulacro, neste sentido, uma espcie de andaime metasico que articula os graus doser, a escala dos seres, sem pertencer a nenhuma. Nas palavras de Ficino, a linguagem comum doshomens e dos deuses e, portanto, um objeto terceiro que, ao se maniestar (por exemplo, mas no s)

    37 Paul Oskar Kristeller.Marsilio Ficino and his work after five hundred years. Firenze: Leo Olschki, 1987. pp. 126-127.38 Ficino, Opera, p. 941: Dicendum ergo secundum sententiam Platonicam in Sophista aparentes imagines esse substan-tias quasdam quorundam simulachrorum machinatione quadam daemonica fabricatas.39 a concluso que se extrai do melhor estudo sobre a questo, que o de Michael Allen. Icastes. Marsilio Ficinos In-terpretation of Platos Sophist.Berkeley: University of California Press, 1989.40 Lucrecio, De rerum natura.Edio e traduo ao espanhol de Valent Fiol. Barcelona: Acantilado, 2012. p. 322 (IV,30 e ss).

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    no sonho, constitui a cira e o mistrio da metasica do ser como lao e sela a impossibilidade de um

    sujeito autnomo ou de uma conscincia individualizada enquanto identificvel inteiramente com ascaractersticas do si mesmo.

    Assim, o espectro, como tentaremos mostrar em nossas prximas investigaes, comporta al-gumas das chaves para a compreenso do modo de abordar uma nova metasica em que o primado daconscincia seja completamente subvertido pela disjuno do Ser. Contudo, e isso por ora s podemossugerir, a disjuno no Ser, sua irremedivel multi-versidade que torna impossvel a coincidncia doconjunto de suas propriedades com um Um completamente homogneo, talvez assinale o caminhono tanto para uma metasica, como dissemos at agora, mas sim para uma espcie de regio nem para

    aqum nem para alm do Ser, mas que, espreitando-o desde o seu interior, o torna habitado por inten-sidades que denominamos espectralidades. Se a ontologia e a metasica no podem, em ltima instncia, dar conta dos espectros, talvez

    seja pelo ntimo pertencimento da metasica a um saber logolgico do aparecer como enmeno e dapresena como atributo do dizer. por isso que talvez seja necessrio pensar, para a cincia dos espec-tros, em umapara-onto-sofiaque desvele um novo reino do in-sistente independente do pensamento,dos objetos do mundo e das qualidades sensveis das espcies ou mesmo dos inexistentes.41Em suma,um espao pouco explorado, ou requentado esquivamente, pelas geografias da metasica do Ser e quese constitui em completa independncia de toda subjetividade mas que, ao mesmo tempo, torna poss-

    vel a existncia desta. Nesse sentido, podemos alar de um reino do ultra-ser, do qual a subjetividade seu acontecer precrio e seu resto ltimo que ainda devemos compreender, dado que s a partir dessergil espao em que nos situamos possvel aceder ao Outside.

    41 Nesse sentido, trata-se de um espao diferente do proposto por Alexius Meinong. eora del objeto y presentacinpersonal. Madrid/Buenos Aires: Mio y Dvila editores, 2008.

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    Csmica cosmtica.

    Por uma cosmologia do paramento

    Bertrand PrvostProfessor da Universit Bordeaux-Montaigne

    Traduo de Felipe Vicari de CarliReviso de Fernando Scheibe e Vincius Honesko

    Texto originalmente publicado em images re-vues, 10 (2012)Nota dos editores: agradecemos Amyr Hamud e Hugo Simes pela pesquisa das imagens.

    RESUMOPerguntamo-nos aqui acerca da dimenso csmica do paramento: o que h de mundano numa coia,numa maquiagem, num ornamento de guerra? Em que a dobra de um vestido afina-se com o mundo? Nodevemos nos deixar enganar pela tonalidade gregadessa questo. Os gregos antigos ormalizaram decerto aarticulao do csmico e do cosmtico, mas essa articulao ultrapassa largamente este quadro, operando naesttica ornamental crist medieval, na obra de Gottried Semper ou at mesmo no grande livro de Gombrich

    sobre o ornamento. Para ser mais preciso, tentamos nos colocar para alm do princpio que ainda preside a con-juno csmico-cosmtico, a saber: uma analogia da ordem. O desafio , portanto, colocar as condies de umdevir-mundo do paramento reale contnuo. A questo da adequao entre corpo e paramento, ou melhor, de suainadequao, serve notadamente de erramenta crtica para pensar uma impessoalidade do paramento pela qualo corpo se descorpora e devm anorganicamente com o mundo.

    PALAVRAS-CHAVEAmaznia, esttica, etologia, Ornamento, etnologia, paramento, cosmtica, camuflagem.

    RESUMOn interroge ici la dimension cosmique de la parure: quy a-t-il de mondain dans une coiffe, un ma-quillage voire un ornement guerrier? En quoi le pli dune robe saccorde-t-il avec le monde? Il ne aut pas semprendre sur la tonalit grecquede cette question. Les Grecs Anciens ont certes ormalis larticulation ducosmique et du cosmtique, mais cette articulation outrepasse largement ce cadre pour tre encore luvredans lesthtique ornementale chrtienne mdivale, dans luvre de Gottried Semper ou mme jusque dans legrand livre de Gombrich sur lornement. Plus prcisment, on tente de se placer au-del du principe qui prsidetoujours lajointement cosmique-cosmtique, savoir: une analogie dordre. out lenjeu est alors de poser lesconditions dun devenir-monde de la parure relet continu. La question de ladquation entre corps et parure,ou plutt de son inadquation, sert notamment de cheville critique pour penser une impersonnalit de la parurepar laquelle le corps se dcorpore et devient anorganiquement avec le monde.

    MOTS-CLAmazonie, esthtique, thologie, Ornement, ethnologie, parure, cosmtique, camouflage.

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    Em que termos o paramento pode ser objeto de uma cosmologia? Naquilo que em que h algo de csmi-co no cosmtico, de mundano no paramento. Os gregos antigos haviam desenvolvido todo um aparelhosemntico e conceitual para dar conta desta articulao.Kosmos, com eeito, significa em grego tanto omundo, ou antes a ordem do mundo, quanto o paramento, o ornamento corporal: por exemplo, o epis-dio em que Hera se eneita para seduzir Zeus, naIlada: tendo assim adornado seu corpo com todo seu

    paramento (kosmon), ela deixou seu quarto.1Mas kosmospode igualmente remeter ao equipamento deguerra (o soldado paramentado [kosmthis] com suas armas e armadura, fig. 1), ou ainda ao preparo

    do morto, ao silncio como ornamento das mulheres, etc. Em suma, em todos essas hipteses, trata-se depensar o ornamento como um acrscimo que no suprfluo, mas harmoniosamente complementar. Oornamento, quando designado por kosmos, remete a um arteato que aparece para completar o mundosegundo a convenincia, um arteato (mas tambm eventualmente uma atitude) que, a um s tempo,

    portanto, completa e convm.2A beleza do paramento no se deve a uma qualidade intrnseca, mas aseu valor de ajustamento, de adjuno tanto sica quanto moral: uma bela ordenao.

    No de surpreender que os primeiros cristos tenham vomitado seu dio ao mundo e sua conde-nao do paramento em um mesmo movimento (fig. 2). A comear, evidentemente, por ertuliano:

    A toalete eminina apresenta um duplo aspecto: o paramento (cultum) e os cuidados de beleza (ornatum).Chamamos de paramento aquilo com que se nomeiam os atavios das mulheres (mundum muliebrem),cuidados de beleza, o que deveria ser chamado de sua conspurcao (immundum muliebrum). O primeiroconsiste no ouro, na prata, na pedraria, na vestimenta; os segundos no cuidado com o cabelo, com a pele eas partes do corpo que atraem os olhares. Ns acusamos um de orgulho, os outros de luxria.3

    1 Homero. Ilada, XIV, 187.2 M. Constantini. Kosmosau sicle de Pricls. Em: Histoires dornement(editado por P. Ceccarini, J-L Charvet, F.

    Cousini, C. Leribault). Paris, Roma, Klincksieck: Academia de Frana em Roma, Villa Mdicis, 2000. p. 45.3 ertuliano. La toilette des femmes. raduo ao francs de M. urcan. Paris: Cerf, 1971. p. 62-63 [I, 4, 1-2]. Sobrea fundao csmica da esttica grega, ver ainda a apresentao sinttica de G. Lombardo. LEsthtique antique. Paris:Klincksieck, 2011. p. 13-24..

    FIGURA 1: O escudo de Aquiles, reconstituiofrancesa do sculo XVIII, gravura.

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    A posio crist no corresponde aqui oposi-

    o grega do cosmos ao caos, da ordem desordem,mas denuncia uma podrido intramundana, pelaqual o paramento no az mais mundo, mas se tor-na, literalmente, imundcie. A eficcia dialtica des-sa crtica do paramento consiste assim em no maisopor exteriormente o ordenamento csmico e seudeslocamento, mas em postular que o mundo ven-cido, a partir do interior, por um trabalho do nega-

    tivo que o torna imundo: a cosmtica uma cosmo-logia decada.4O raciocnio unciona, na verdade,sobre uma inverso tipicamente crist; por exemplo,quando o mesmo ertuliano, um pouco mais adian-te em seu tratado, condena o paramento em nomede um paramento mais autntico:

    Grande blasmia quando se diz de algum: Desde o momento em que ela se tornou crist, sua aparncia mais pobre! emers parecer mais pobre (pauperior) quando te tornaste mais rica (locupletior), ou mais

    desleixada (sordidior) quando ests mais paramentada (mundior)? A aparncia dos cristos deve reger-sepelo bom prazer dos pagos ou pelo de Deus?5

    Deve-se compreender que, se o paramento das mulheres remete a uma conspurcao, porque overdadeiro paramentose liga ao despojamento: azer da nudez sua mais pura vestimenta, a exemplo danudez admica e crstica: seguir nu o Cristo nu (nudus nudum Christum sequi).6

    A ordem do ornamento corporalSempre que se trata da mundanidade do ornamento corporal, o assunto passa undamentalmente poruma questo de ordem. Do csmico cosmtica, uma mesma ordem que se estende a todas as escalas,das eseras celestes at as menores prolas de um colar, das trajetrias astrais at a regularidade das es-trias deixadas pela passagem do pente nos cabelos. emos a, decerto, aquilo que, dos gregos at ns,trabalha em proundidade toda ideia de cosmtica. que todas as teorias do ornamento corporal, ou

    4 P-A Micaud. Fashion victims. Mode et martyre selon ertulien (vers 160-aprs 220). Em: Le Peuple des images.Essai danthropologie figurative. Paris: Descle de Brouwer, 2002. p. 223.5 ertuliano, La oilette des femmes, p. 156-157 [II, 12, 3].6 Sobre a nudez e a vestimenta crists, ver sobretudo G. Bartholeyens. Lhomme au risque du vtement. Un indicedhumanit dans la culture occidentale. Em: Adam et lastragale. Essais danthropologie et dhistoire sur les limites delhumain(editado por G. Bartholeyens, P. O. Dittmar, . Golsenne, M. Har-Peled, V. Jolivet). Paris: Ed. de la MSH,2009. p. 105-113.

    FIGURA 2: Busto Fonseca, sculo II d.C.,mrmore, Roma, Museus Capitolinos.

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    mesmo do ornamento tout court, inscrevem-se nessa concepo da ordem: dos antigos a Leon Battista

    Alberti e os renascentistas (incluindo os medievais), dos tericos do sculo XIX (de Gottried Sempera Charles Blanc) aos modernos historiadores e tericos da arte (de Ernst Gombrich, Jacques Solilou a

    Jean-Claude Bonne, para citar apenas alguns), trata-se sempre de pensar o ornamento para alm de suasubstancializao em um vocabulrio, vendo-o antes como o trabalho de um ornamental7 ligado auma ordem estrutural.

    Se o ornamento serve para pr ordem, escreve Jacques Soulilou, isso ocorre no sentido em que ele permite ordemaparecer, como se diz de uma coisa que ela aparece na luz. [...] A apario de uma ordem no seiode um meio constitudo por uma mirade de ornamentos comparvel ao enmeno da cristalizao, em

    que, a partir de um germe, uma estrutura se propaga pouco a pouco a todo um campo. A conjuno re-pentina do ornamento e da ordem em um meio dado produz um mundo kosmos. [...] H kosmosquandoo ornamento permite boa ordem maniestar-se. , ao contrrio, acsmico e eio o que desarrumae perturba a boa ordem.8

    Para alm do ornamento, prpria arte que se ligaria essa questo da ordem, no que diz respeitonotadamente a um antiqussimo pano de undo indo-europeu. mile Benvniste trouxe assim luz aimportncia semntica de um conceito indo-europeu de ordem:

    a Ordem que rege tanto a ordenao do universo, o movimento dos astros, a periodicidade das esta-es e dos anos quanto as relaes dos homens e deuses, e, enfim, dos homens entre si. Nada do que tocaao homem, no mundo, escapa ao imprio da Ordem. , portanto, o undamento tanto religioso quantomoral de toda sociedade; sem este princpio, tudo voltaria ao caos.9

    Ora, essa raiz que, dentre inmeros derivados, ormou o gregoararsk (ajustar, adaptar, harmo-nizar) assim como o latimars,artis(disposio natural, qualificao, talento),artus(articulao),ritus(ordenao, rito) ou ainda o grego arthron(articulao, membro). Em toda parte, comentaBenvniste, a mesma noo ainda sensvel: a ordenao, a ordem, a adaptao ntima entre as partesde um todo [...].10

    O ornamental medieval cristo (fig. 3) inscreve-se pereitamente nessa esttica da ordem universal,mas na medida em que ele

    exige menos uma interpretao que o undaria do que unda ele prprio um pensamento da ordem oumesmo da organizao [...]. que este pensamento da ordem naturalmente indissocivel, na herme-nutica crist, da ideia de um princpio criador, e pode-se interpret-lo como uma maneira de definir as

    7 Para falar como Jean-Claude Bonne. O ornamental manteria com o ornamento a mesma relao que o figural com

    o figurativo.8 J. Soulilou. Le livre de lornement et de la guerre.Marselha: Parenthses, 2003. p. 96-97.9 E. Benvniste. Le vocabulaire des institutions indo-europennes. 2. Pouvoir, droit, religion. Paris: Minuit, 1969. p. 100.10 Ibid., p. 101.

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    relaes harmoniosas entre o criador divino, suas criaturas e todos os nveis da criao. De modo que a

    esttica ornamental medieval animada pela dupla exigncia contraditria, ou ao menos paradoxal, deuma ordem a um s tempo mundana e divina, finita e infinita (trabalhada pela similaridade e pela multi-plicao de um como ao infinito).11

    Sabemos, alis, de que conceito, bem como de que onte es-ttica a Idade Mdia crist ter se valido para expressar a abstra-o dessas relaes de proporo entre regies descontnuas ouopostas: musica. Inspirados tanto por Santo Agostinho quanto

    por Bocio, a musicanomeava para os medievais um princpio de

    harmonia universal que se articula em medida, nmero, ritmo.12Oornamental torna-se ento o que Jean-Claude Bonne chama muito

    judiciosamente de poder de orquestrao [...] capaz de uncionarcomo uma espcie de transcodificador abstrato.13

    Gottried Semper, em meados do sculo XIX, oi sem dvidaquem levou mais longe um pensamento do ornamento entendidosegundo essa dimenso csmica14, na qualidade daquilo que elemesmo chamar de umaKunstphysik, uma sica da arte.15O que

    Semper buscava era, de ato, a ordem de uma legalidade natural(Naturgesetzlichkeit), significando com isso que os mesmos princ-

    pios naturais devem aplicar-se ao uncionamento tanto do maiorcomo do menor, que as mesmas leis presidem s ormas naturaiscomo s ormas artificiais. uando o homem adorna um objeto,ele apenas acentua de modo mais ntido, de maneira mais ou me-nos consciente, uma legalidade natural j presente no objeto que

    ele decora.16Mas, acima de tudo, devemos a Semper a articulao dessa cosmologia do ornamento, no

    mais ao ornamento em geral, mas mais precisamente ao ornamentocorporal, ornecendo assim o esboo

    11 J.-C. Bonne. De lornamental dans lart medieval (VIIe-XIIesicle). Le modle insulaire. Em: J.-Baschet e J.-C.Schmitt. Limage. Fonctions et usages des images dans loccident medieval. Paris: Cahiers du Lopard dor 5, 1995. p. 237.12 Edgar de Bruyne insistiu longamente sobre este sentido genrico de musica: sobre as propores que se funda aviso esttica do mundo. Os prprios antigos a chamaram de musical. Mas evidente que esse termo aqui no tem emabsoluto a significao moderna: ele simplesmente sinnimo de esttica e designa toda harmonia, no importa qualseja, cf. E. de Bruyne. Etudes desthtique mdivale(1946). Paris: Albin Michel, 1998. t. I, p. 11. Sobre a esttica mu-sical, ver I, p. 306-338, I, 478-502, II, 227-238 epassim, e sobre a harmonia universal segundo Bocio, cf. I, p. 9-26.13 Bonne, De lornamental dans lart mdival, p. 238.14 G. Semper. De la dtermination formelle de lornement et de as signification comme symbole de lart (1856).

    Em: Du style et de larchitecture. Ecrits, 1834-1869. Editado e traduzido ao francs por J. Soulilou. Marselha: Paren-thses, 2007. p. 235.15 Citado por J. Soulilou em Introduction (Semper, Du style et de larchicteture, p. 27).16 Semper, De la dtermination formelle de lornement, p. 236.

    FIGURA 3Livro de Kells, frontispcio doEvangelho de Marcos, sculo IX, Dublin,Trinity College Library, Ms 58, fo30r.

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    de uma vasta morologia do paramento, na medida em que essa morologia no teria mais nada a ver

    com uma estrita tipologia das ormas e das matrias, mas com as linhas de partilha entre trs grandesprincpios sicos. O primeiro conjunto concerne, para Semper, ao ornamento pingente (der Behang):ornamentos de nariz e de orelha e outros berloques; ou ainda o cuidado com relao barba ou ao ca-belo; e tambm os panos que caem em dobras retas e regulares (fig. 4, 5). Simtrico em si mesmo, oornamento pingente est ligado de preerncia a essa propriedade ormal dos enmenos sensveis quechamamos de simetria.17

    O segundo conjunto diz respeito ao ornamento anular (der Ringschmuck) e abarca um amploleque de paramentos: coroa, diadema, fita, colar, cinta, braadeira, bracelete, bainha, anel... (fig. 6) Aespecificidade desses ornamentos se deve ao ato de que em geral eles so dispostos sob a orma de umarranjo peririco ou peririco-radial em torno do objeto decorado, que ocupa a posio de corao ou

    ponto central das relaes que estruturam o espao.18

    17 Ibid., p. 240.18 Ibid., p. 243.

    FIGURA 4:Ornamento nasal, marfim, Nova-Guin

    FIGURA 5:ndio Waiwai, Amaznia brasileira

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    Enfim, o ltimo conjunto concerne ao orna-

    mento direcional (der Richtungschmuck): essa es-pcie de paramento que serve para realar a direoe o movimento do corpo (...) que remete principal-mente oposio entre o adiante e o atrs de umenmeno, e joga de preerncia com a perspectivado perfil.19Assim o capacete de guerra, sobretudoquando equipado com um penacho, o cabelo soltodeixado a flutuar, as roupas largas movendo-se livre-

    mente, as fitas (quando caem) ou ainda o colchete, obroche, etc. (fig. 7, 8).Pingente, anular e direcional no remetem ape-

    nas a categorias de objetos, mas mais proundamente aorientaes sicas ou dimenses naturais que Semper apresentar de maneira sistemtica nos Prole-gmenos a Der Stil, seu opus major.20 Com eeito, simetria dos ornamentos pingentes correspon-der (logo voltaremos a essa palavra correspondncia) uma dimenso vertical ou um eixo de altura,mantido pela polaridade sica e orgnica da gravitao e do crescimento. Semper tomar aqui comomodelo o mundo vegetal, e a planta, simtrica antes de tudo em sua projeo vertical21, que figurarum princpio de simetria. Da mesma maneira, os ornamentos anulares atualizaro uma dimenso ligada largura, que o terico nomear proporcionalidade e que encontrar sua figura natural no mundocristalino: o princpio da proporcionalidade (das Gesetz der Proportionalitt) j perceptvel na ormaradial e echada dos cristais, os raios individuais aparecendo por vezes articulados.22Enfim, os orna-mentos direcionais determinaro uma dimenso de comprimento ou de proundidade, segundo umeixo mantido entre inrcia e vontade, entre peso, de um lado, e ora vital ou ora de livre vontade,de outro.23

    Por meio dessa tripla determinao ornamental, comenta Jacques Soulilou, o homem inscreve sua ativida-de criadora no corao do kosmos, conceito chave da teoria esttica de Semper, na medida em que se enla-am nele as noes de ordem, de paramento e de mundo. Adornar equivale a reconhecer e a inscrever-senessa ordem csmica, tornando visveis as oras sicas subjacentes.24

    19 Ibid., p. 247.20 G. Semper. Der Stil in den technischen und tektonischen Knsten oder praktische sthetik: ein Handbuch fr echni-ker, Knstler und Kuntsfreunde. Munique, 1860; traduo francesa parcial de J. Soulilou em: Semper, Du style et delarchicteture, p. 235-338.21 Ibid., p. 291.22 Ibid., p. 294.23 Ibid., p. 294.24 J. Soulilou. Introduction. Em: Semper, Du style et de larchicteture, p. 28.

    FIGURA 6: Coroa relicrio conhecida como "Coroade Lige", sculo XIII, Paris, Museu do Louvre.

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    Da unidade csmica lei natural

    evidente que tal sica, mesmo articulada aos enmenos estticos,no resiste um instante sequer aos progressos contemporneos das cin-cias sicas e ao mundo totalmente renovado que eles deram luz a partirdo final do sculo XIX, acabando com a ideia de um cosmos ortonorma-lizado, simples e regular, ou melhor, ao pr termo, pura e simplesmente, prpria ideia de cosmos como mundo unificado. exatamente por issoque diremos ser undamentalmentegregaessa concepo do paramentoarticulado com a unidade natural de um cosmos organizado, o que Sem-

    per, de resto, reivindicava de modo explcito.25

    Viso caduca? seja. Por mais datada que parea, tal posio teri-ca se estende muito alm da situao histrica de seu arauto, assim comodo conservantismo de suas escolhas estticas. a Ernst Gombrich quedevemos, em seu grande livro sobre o ornamento Te Sense of Order ,uma verso moderna, modernizada, desta posio.26A que se deveriatal modernidade? Ao ato de ter expurgado a ideia de ordem da questoda unidade csmica, ou, para diz-lo de outra orma, de ter passado doCosmos Natureza. Ao p da letra, a posio de Gombrich deve serchamada de naturalista. Te Sense of Order: toda a tese de Gombrich,com eeito, retoma por sua conta a antiga oposio entre a ordem e adesordem, o cosmos e o caos: [...] o contraste entre a desordem e aordem que alerta nossa percepo.27Mas se a oposio ordem-desor-dem conservada, no mais a ttulo de uma ordenaofsicageral domundo, mas a ttulo da pura legalidadede suas regras e princpios: aordem expressa ento o conjunto das leis da natureza.28O paramento,e alm dele todo o conjunto ornamental, obedecea leis naturais, cuja or-

    dem se deve to-somente legalidade destas, e no sua articulao emum todo unitrio. Dir-se- ento que o ornamento antes natural quecsmico. De ato, Gombrich levava em conta a virada moderna pela quala cincia, de Galileu a Newton, e a filosofia, de Descartes a Kant, tinham eito explodir o cosmos dosantigos, passando a apreender sua totalidade apenas na unidade de aplicao de regras. No por acaso,

    25 A conferncia de 1856 se colocava desde suas primeiras linhas sob a invocao do cosmos grego. Cf. Semper, Dela dtermination formelle de lornement, p. 235.26E. Gombrich. Te Sense of Order. A study in the Psychology of decorative Art. Londres: Phaidon, 1979. A averso de

    Gombrich por Semper, em algumas pginas que ele lhe consagra (Semper is pedantic and soporific, p. 47), no nadamenos que surpreendente.27 Ibid., p. 6.28 Gombrich escreve, na p. 5, laws of physics.

    FIGURA 7: Capacete romano"Imperial-Gauls" com penacho,

    sec. I d.C. (rplica contempornea).

    FIGURA 8: Cocar de guerra Lakota,sec. XX, Londres, Museu Britnico.

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    Te Sense of Orderse abre com Kant29, este mesmo Kant que ter criticado a cosmologia racional ao

    colocar a unidade natural no mais num mundo objetivo mas no corao da subjetividade.30Ora, quando se retira da ordem sua unidade ou sua coerncia, o que resta? Restam regularidades

    (fig. 9). muito logicamente, portanto, que Gombrich voltava seu olhar quase exclusivamente paraas ormas simples e regulares, ou seja, para as ormas geomtricas, a fim de inscrever o ornamental emuma ordem natural: a criao de ordens se unda sobre as leis da geometria31 jeito este de reencontraraquele velho undo pitagrico que subjazia a todo pensamento da ordem csmica. Da o proundogeometrismo de Gombrich, que no parece querer reconhecer como ornamento seno quadriculados,trelias, espirais e simetrias, sempre redutveis a algumas figu-

    ras regulares, o mais das vezes o crculo e o quadrado, e queno pode seno relegar os marginaliamedievais, os grotescosrenascentistas e as volutas rococs beira do caos32(fig. 10).

    Mas no undo parece logo evidente que a prpria regularidade pode muito bem prescindir dafigura, tomada em sua extenso, seja ela geomtrica, seja ela regular, para no consistir mais do que em

    puras regras lgicas. , portanto, undamentalmente sob a orma de uma espcie de tabela de categoriasque se poder pensar a ordem ornamental e suas possibilidades naturais. Os princpios de tal tabela

    29 Ibid., p. 1.30 I. Kant. Critique de la raison pure(1787). raduo ao francs de A. remesaygues e B. Pacaud. Paris: PUF, 1993.p. 142: O entendimento no , portanto, simplesmente um poder de se fazer regras pela comparao dos fenmenos,

    ele mesmo uma legislao para a natureza, ou seja, sem entendimento no haveria em lugar algum natureza, querodizer, unidade sinttica da diversidade de fenmenos de acordo com regras.31 Gombrich, Te Sense of Order, p. 117.32 Para retomar o ttulo do ltimo captulo, Te Edge of Chaos.

    FIGURA 9: Ornamentos chineses, lmina tirada deOwen Jones, The Grammar of Ornament, Londres, 1856.

    FIGURA 10: Decorao rococ, sex. XVIII,Palcio Rohan, Estrasburgo.

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    no tm em si mesmos nada de ornamental. uando Charles Blanc, por exemplo, em seu tratado de

    1875 LArt dans la parure et dans le vtement distingue cinco princpios undamentais cuja aplicaoengendra os motivos sem nmero que os homens inventaram at hoje e aqueles que ainda inventaro

    para adornar suas pessoas, suas residncias ou seus templos, a saber, a repetio, a alternncia, a si-metria, a progresso, a conuso33, a constituio deuma ordem se deve apenas a relaes lgicas entre ter-mos cuja natureza, no undo, pouco importa. De res-to, justamente essa naturalidade dos princpios, suanatureza lgica, para diz-lo de uma vez, que lhes d

    uma legalidade universal: os enmenos de repetio,de progresso, de simetria, de radiao, de gradao,etc. se encontram em todos os nveis do universo, emtodos os estratos csmicos, material, orgnico, sim-blico, humano, animal, microscpico, macrosc-

    pico, etc. De modo que o ornamental ornecer oparadigma de uma mathesisda ordem universal, umamathesis que encontrar sua figura no ornamento,mas que poder se dizer em qualquer linguagem or-mular: assim, por exemplo, as tabelas de permutaode Dominique Douat, em Mthode pour faire uneinfinit de desseins diffrents avec des carreaux mi-par-tis de deux couleurs par une ligne diagonale[Mtodo

    para azer uma infinidade de desenhos dierentescom quadrados bipartidos de duas cores por uma li-nha diagonal], de 1722, que encontram sua cira na

    permutao das quatro primeiras letras do alabeto

    (fig. 11).34

    33Charles Blanc. Lart dans la parure et le vtement.Paris: Librairie Renouard, 1875. p. 4: ...os motivos sem nmeroque os homens inventaram at hoje e aqueles que ainda inventaro para adornar suas pessoas, suas residncias e seustemplos so engendrados pela aplicao de um destes cinco princpios que vamos enunciar: a repetio, a alternncia,a simetria, a progresso, a confuso. Estas so as fontes s quais podemos trazer todos os ornamentos cuja ideia foitomada da natureza, e que o homem submeteu s leis de seu esprito e ao imprio de sua liberdade; e p. 41: mas cadaum desses princpios est acompanhado por um elemento secundrio que dele deriva e que, vindo ainda multiplicaros recursos do decorador, permite-lhe variar suas combinaes ao infinito. (Assim) repetio se associa a consonn-cia; alternncia, o contraste; simetria, a radiao; progresso, a gradao; confuso ponderada, a complicaorefletida.34 Ver Gombrich, Te Sense of Order, p. 70-72. Sabemos a fortuna que um artista como Sol LeWitt ter reservadoao esgotamento metdico do cubo. Ver, acerca deste assunto, o belo estudo de R. Krauss. LeWitt in progress. Em:LOriginalit de lavant-garde et autres mythes modernistes. raduo ao francs de J.-P. Criqui. Paris: Macula, 1993. p.335-350.

    FIGURA 11: Tabela de permutaes, lmina tirada deD. Douat, Mthode pour faire une infinit de desseins

    diffrens avec des carreaux mi-partis de deux couleurs

    par une ligne diagonale, Paris, 1772.

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    Crtica do analogismo: qual unidade csmica?

    ocamos aqui, sem dvida, no undo crtico do problema: do diagrama de Semper tabela de Blanc es anlises de Gombrich, trata-se sempre de pensar a relao do paramento com o mundo sob um modo

    analgico. Em todos os exemplos apresentados, sempre pela analogia que a cosmtica csmica. Denovo, mesmo que o princpio tenha sido claramente expresso pelos gregos, ele opera em muitas regiesdo planeta. por analogia, entre outros mil exemplos, que os Caiap da Amaznia associam seu grande

    paramento dorsal krokrokti ao astro solar (fig. 12): as centenas de penas caudais de arara que o com-pem so armadas segundo uma disposio radial anloga aos raios do sol.35

    Porm, por mais pregnante que seja,

    histrica, antropolgica, filosoficamente,tal modelo no pode seno mostrar-seinsuficiente, e mesmo ilusrio. Sabemosque a analogia, em sua acepo mais sim-

    ples, mas tambm mais eficaz, repousasobre uma semelhana de proporo: A

    para B o que C para D. O modelo ana-lgico permite assim pensar a mundani-dade de um paramento na relao entreduas ordens.36O que equivale a dizer quea continuidade entre os dois no real,mas que se mantm somente por uma re-

    presentao, e portanto que, no undo, ocosmtico s csmico atravs de uma vi-so do esprito: preciso sempre um ter-ceiro termo em comum, uma mediao,

    para que a analogia possa se sustentar e

    para que se estabelea a correspondnciaentre as duas ordens. exatamente essa

    viso de esprito que impe ao paramen-to, bem como ao mundo, um pesado preo a pagar: o de uma idealizao, ou, dito de outra orma,uma simplificao. er sido preciso, com eeito, simplificar o paramento, reduzi-lo a ormas regulares,

    35 Sobre este extraordinrio paramento, sem dvida o maior que se encontra na Amaznia, ver G. Verswijver. Kaiapo,Materielle Kultur-spirituelle Welt. Material culture-spiritual world.Frankfurt: Museum fr Vlkerkunde, 1995. p. 114-124.36 Coisa que observava corretamente Ernst Gombrich: in adorning the body an order is surimposed on an existing order,respecting or sometimes contradicting the symmetries of the organic form [ao adornar um corpo, uma ordem sobreim-posta a uma ordem existente, respeitando ou s vezes contradizendo as simetrias da forma orgnica] ( Te Sense ofOrder, p. 65).

    FIGURA 12:Mulheres kayap portando o krokrokti, Brasil, foto G. Verswijver.

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    geomtricas no mais das vezes, tanto quanto a uma orma global para lig-lo ordem do mundo. Mas

    qual ornamento corporal se reduz a um simples crculo, a um simples plano regular (para no alar domovimento de que o paramento dotado ao ser portado, ainda que Semper tenha levado em contaessa dimenso dinmica)? A partir da, todos os paramentos se assemelham de maneira aproximada e aincomparvel variedade das ormas cosmticas se v muito rapidamente reduzida a um catlogo de trsou quatro entradas. Ao ligar analogicamente a regularidade cosmtica regularidade csmica, asingu-laridadedo paramento em geral, tanto quanto a singularidade desteparamento singular, que se dissolve.

    Seria um engano, porm, crer que a singularidade inversamente proporcional abertura csmi-ca do paramento. No que no haja regularidades na cosmtica, mas certamente no por elas que se

    assinala sua dimenso csmica. Pois se trata, em primeiro lugar, de pensar uma mundanidade do para-mento que seja real; trata-se de experimentar uma relao entre o mundo e o ornamento corporal queno passe mais pela mediao de uma analogia, mas que se imponha em sua soberana continuidade. A

    via que se delineia toma assim um caminho duplamente antpoda ao que se viu at agora. Ela inringede incio a ideia antiga (e diundida em larga escala sobre o planeta) de uma ordem csmica concebidacomo um belo arranjo. Nisso, ela se inscreve pereitamente na modernidade dos sculos XVII e XVIII esua crtica do cosmos como universo echado.37O mundo no tem contedos significantes, pelos quaisse poderia sistematiz-lo, nem significaes ideais, pelas quais se poderia orden-lo, hierarquiz-lo.38Mas ela inringe igualmente essa mesma modernidade e seu leitmotiv da perda do mundo, ao consi-derar notadamente como nula e malsucedida a crtica kantiana da cosmologia racional. De Nietzschea Deleuze, passando por Whitehead, Bergson e ainda outros, todo um ramo (por certo minoritrio)da metasica ocidental, uma outra metasica39, que num s gesto recusou a subjetivao modernado mundo sem por isso voltar objetividade grega de uma ordem transcendente. A rigor, poderamosdizer que nossa tarea o exato inverso daquela que se atribuiu Ernst Gombrich: enquanto, modernonaturalista, o historiador da arte expurgava a ordem (ornamental e natural) de toda e qualquer unidadecsmica, conviria expurgar a unidade csmica de toda e qualquer ideia de ordem, se verdade que talunidade deve de agora em diante pensar-se menos como cosmos a ideia de ordem estando-lhe talvez

    irremediavelmente ligada do que, para alar como Joyce, caosmos.

    Os tormentos da projeooda essa bela metasica restar, porm, como um voto piedoso enquanto no tivermos colocado aquesto crucial de saber como se determina morfologicamentea cosmicidade do paramento. uais so

    37 Ver a obra clssica de Alexandre Koyr. Du Monde clos lunivers infini.Paris: Gallimard, 1973 [edio brasileira:Do mundo fechado ao universo infinito. 4. ed. revista. raduo de Donaldson M. Garschagen. Rio de Janeiro: ForenseUniversitria, 2006].38G. Deleuze. Proust et les signes. Paris: PUF, 1964. p. 193-194 [ed. bras.: Proust e os signos. 2.ed. raduo de AntonioPiquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2003. p. 153].39 Para falar como Pierre Montebello, em seu livroLAutre mtaphysique. Essai sur Ravaisson, arde, Nietzsche et Berg-son. Paris: Descle de Brouwer, 2003.

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    as ormas de um devir-mundo dos ornamentos corporais? evidente que a questo no comporta uma

    resposta direta, mas supe que se volte a outras questes capazes de sacudir algumas evidncias sobre oque um paramento.40

    muito significativo que, em seu Manuel dethnographie [Manual de etnografia], Marcel Mausstenha desejado azer divises no conceito de cosmtica, julgando talvez actcia sua unidade esttica. Oetnlogo distinguia assim entre a cosmtica propriamente dita, concebida como ornamntica diretado corpo e o paramento concebido como ornamntica indireta do corpo.41 Enquanto a primeiratoma diretamente o corpo como objeto plstico e abrange, grosso modo, todas as prticas de arranjo edesfigurao corporais (do penteado s escarificaes, das deormaes cranianas s tatuagens, de todas

    as ormas de depilao s peruraes nasais, etc.42

    ), o paramento consiste, por sua parte, na adiode adornos ao corpo e se estende da indumentria a todos os tipos de coias, passando pelas msca-ras, pelas joias, etc.43Essa diviso muito significativa, na medida em que, para retomar os termos deMauss, a ornamntica que conere cosmtica seu trao undamental: sua natureza de acrscimo, deelemento aposto. Em ambos os casos, com eeito, o corpo sempre concebido como osuporte de uma

    adio exterior: um objeto, de matrias e ormas incontveis, para a ornamntica, enquanto que para acosmtica a prpria beleza que az as vezes de objeto exterior.44No undo, de se admirar que essadistino, que parecia decorrer do senso comum primeira vista, acabe por negar sua evidncia sensvel:o que que pode, ento, se adicionarao corpo no arranjo dos cabelos, na depilao das sobrancelhas,numa deormao?45Materialmente, nada. Porm, o antroplogo ter logo interpretado essa adiocomo uma marca significan