“sou caboquim da mata, quem manda na mata É eu”: … · dos povos e organizações indígenas...
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“SOU CABOQUIM DA MATA, QUEM MANDA NA MATA É EU”: UM POVO
RESSURGIDO, OS ÍNDIOS TABAJARA DE PIPIPIRI / PI E A LUTA POR SUA
IDENTIDADE
MARCUS PIERRE DE CARVALHO BAPTISTA
INTRODUÇÃO
Até meados dos anos 2000 a figura do nativo na historiografia piauiense é
representada como se tivesse sido completamente exterminada ao longo dos séculos XVII,
XVIII e XIX. Os que não foram mortos, de acordo com essa historiografia1, terminaram sendo
aculturados e assimilados à sociedade. A partir desta constatação pode-se formular a seguinte
questão: A identidade e a cultura de um povo pode ser completamente apagada ou assimilada
ao povo conquistador? Será que não seria possível perceber elementos na memória dos
remanescentes que remetem a sua identidade e cultura, inclusive enquanto uma maneira de
resistência ao opressor?
Apesar de autores como Machado (2002) enfatizarem o total extermínio da figura do
nativo em solo piauiense, existe na contemporaneidade algumas comunidades que são
pertencentes a estas culturas, como salienta Franco (2014: 6):
[...] há no estado três etnias indígenas com remanescentes identificados pela
FUNAI, são elas: os Tabajaras em Piripiri, os Cariris, em Queimada Nova, e os
Codó Cabeludo, em Pedro II. Mas pesquisas indicam que existem outras, como os
Pimenteiras em Uruçuí Preto.
Graduado em Licenciatura Plena em História pela Universidade Estadual do Piauí – UESPI. Especialista em
História Sócio-Cultural pela Faculdade do Médio Parnaíba – FAMEP. Cursando Mestrado em História do Brasil
na Universidade Federal do Piauí – UFPI, iniciado em 2017. 1 Sobre essa questão ver Baptista (2017). Este autor entende que a historiografia piauiense acerca dos indígenas
no Piauí pode ser dividida em três momentos: o primeiro indo dos anos 1950 o início dos anos 1980 no qual o
índio é percebido enquanto selvagem e inferior culturalmente ao branco, tendo sido já exterminado do Piauí; o
segundo momento do final dos anos 1980 até o começo dos anos 2000 no qual o indígena deixa de ser percebido
enquanto inferior no que tange a cultura, embora o discurso sobre o genocídio permaneça; e o terceiro momento
indo do início dos anos 2000 até a contemporaneidade no qual estudos com novas perspectivas para além da
questão do genocídio passam a ser produzidos. Paralelamente a este último momento, há o reaparecimento de
grupos indígenas no Piauí que passam a reivindicar direitos políticos e sociais, além do seu direito a
reconhecimento enquanto índios, a exemplo dos Tabajara em Piripiri/PI, objeto de estudo deste artigo. É preciso
lembrar também que as diferentes perspectivas sobre os indígenas no Piauí coexistem na contemporaneidade,
não havendo um consenso entre os pesquisadores sobre estes, uma vez que alguns defendem o genocídio,
enquanto outros apontam este pensamento enquanto um equívoco.
2
Deste modo, este artigo buscou discutir a construção da identidade dos Tabajara em
Piripiri/PI, ou seja, como estes indígenas percebem-se enquanto tais e quais elementos
pertencentes a sua cultura produzem significados para estes, consequentemente para sua
identidade. Esta discussão tornou-se possível a partir da análise das entrevistas temáticas
realizadas com o então representante da Fundação Nacional do Índio – FUNAI, Romeu
Tavares Lima Neto, no Piauí e com quatro integrantes da comunidade indígena Tabajara de
Piripiri, sendo dois caciques, um dos quais, o Cacique José Guilherme da Silva, responsável
pelo início do atual movimento indígena no estado e pela luta para o reconhecimento de sua
identidade enquanto indígenas.
A metodologia adotada neste trabalho constou de pesquisa bibliográfica buscando-se a
compreensão da perspectiva construída acerca do indígena no Piauí através da historiografia
piauiense para possibilitar o entendimento sobre este no presente. Além disso, utilizou-se
autores como Lang, Campos e Demartini (1998) e Meihy e Holanda (2007) para dar suporte
no que se refere a utilização da metodologia da história oral na pesquisa realizada e, por fim,
buscou-se também autores que possibilitassem a compreensão do conceito-chave que
permeou a produção deste artigo, no caso, o conceito de Identidade2.
Com relação a metodologia da história oral foram elaborados dois roteiros de
entrevistas, sendo que a direcionada ao representante da FUNAI tratou sobre o processo de
reconhecimento por esta instituição dos remanescentes indígenas no Piauí, sobre sua atuação
no estado até 2016. O segundo roteiro elaborado para os Tabajara de Piripiri abordou,
principalmente, sobre a criação do movimento indígena no Piauí no começo dos anos 2000 e
os elementos culturais que possibilitam sua identidade enquanto índios.
Dessa forma, considerando a pesquisa realizada foi possível apontar que, embora
compreendamos na contemporaneidade a Identidade enquanto algo fluído, para os índios
Tabajara de Piripiri, ser índio está relacionado a certos elementos ou aspectos culturais que,
em sua perspectiva, marcam sua identidade, tais como: o território, a língua, e os costumes,
indicando, assim, uma concepção essencialista que possuem de si mesmos.
2 Para a construção deste artigo utilizou-se a perspectiva de Identidade produzida a partir da pós-modernidade ou
modernidade líquida na concepção de autores como Stuart Hall (2005, 2014), Kathryn Woodward (2014), Tomás
Tadeu da Silva (2014) e Zygmunt Bauman (2005). Estes autores tangenciaram a discussão sobre Identidade no
sentido de possibilitar a compreensão desta enquanto algo fluído, fragmentada, múltipla, contraditória (s),
relacionada aos sistemas de representação podendo se transformar de acordo com a interpelação do sujeito, além
de sua compreensão enquanto um espaço de segurança em um mundo cada vez “menor” no qual as fronteiras
culturais e identitárias se dissolvem em função da globalização. Neste artigo não se discutiu a Identidade e
Diferença enquanto relacionais, no sentido de que uma só pode existir a partir da outra. No entanto, empregou-se
o conceito de Identidade Líquida ou como um “quebra-cabeça” incompleto na tentativa de compreender como os
índios Tabajara de Piripiri constroem sua própria identidade.
3
DE ONDE VENHO E PARA ONDE VOU? RESSURGIMENTO E IDENTIDADE DOS
TABAJARA EM PIRIPIRI / PI
Antes de discorrer sobre a forma como os Tabajara em Piripiri se percebem, bem
como a sociedade também o faz, ou seja, acerca da construção da identidade dessa
comunidade indígena piauiense, é preciso, primeiramente, compreender o que levou ao
“reaparecimento” desses grupos indígenas no Piauí.
Mas qual a importância disto? Por que se torna relevante a compreensão deste
acontecimento no Piauí? Primeiramente porque a partir deste aspecto coloca-se uma questão:
Se a historiografia piauiense afirmava veementemente até o final do século XX que os índios
que habitavam o território piauiense haviam sido completamente exterminados, restando dos
mesmos apenas alguns de seus aspectos culturais mesclados com a cultura do colonizador,
como estes teriam reaparecido em meados dos anos 2000 no Piauí?
Segundo, considerando que estes índios nunca foram completamente dizimados, o que
possibilitou o seu reaparecimento no começo dos anos 2000 no Piauí? O que levou estes a
ficarem tanto tempo em silêncio e “invisíveis” no convívio social e o que possibilitou o fim
disso, bem como uma eventual luta por seus direitos políticos e sociais?
Obviamente que a resposta para a primeira pergunta é: Os índios nunca foram
exterminados em sua totalidade no Piauí. A dizimação e o genocídio ocorreram sim. Isso é
inegável. Mas quando falamos de um extermínio total de indivíduos dessa cultura isso ocorreu
puramente no âmbito do discurso. Um discurso construído ao longo dos séculos pela
sociedade que buscou negar a cultura do Outro, no caso aqui, do indígena, bem como silenciar
os descendentes que continuaram a habitar o território piauiense.
É preciso ressaltar que não se busca aqui fazer juízo de valor. Não se pretende
determinar se a construção desse discurso3, não apenas pela historiografia, mas pela própria
sociedade, foi algo equivocado ou não. Não é essa a questão. O ponto é que este discurso
ocorreu e busca-se entender como o mesmo influenciou o “desaparecimento” e o
silenciamento dos indígenas no Piauí.
3 Aqui se entende discurso na perspectiva foucaultiana no que se refere à complexidade acerca da definição do
por que da construção de determinados discursos. Para o autor a “[...] questão que a análise da língua coloca a
propósito de qualquer fato de discurso: segundo que regras um enunciado foi construído e, consequentemente,
segundo que regras outros enunciados semelhantes poderiam ser construídos? A descrição de acontecimentos do
discurso coloca uma outra questão bem diferente: como apareceu um determinado enunciado, e não outro em seu
lugar? [...] A análise do campo discursivo [...] trata-se de compreender o enunciado na estreiteza e singularidade
de sua situação; de determinar as condições de sua existência, de fixar seus limites da forma mais justa, de
estabelecer suas correlações com os outros enunciados a que pode estar ligado, de mostrar que outras formas de
enunciação excluem. Não se busca, sob o que está manifesto, a conversa semi-silenciosa de um outro discurso:
deve-se mostrar por que não poderia ser outro, como exclui qualquer outro, como ocupa, no meio dos outros e
relacionado a eles, um lugar que nenhum outro poderia ocupar.” (FOUCAULT, 2008: 30 e 31).
4
Contudo, antes de discutir acerca do poder exercido a partir do discurso de negação da
cultura e da existência do próprio indígena sobre o mesmo é necessário compreender os
motivos que levaram ao “reaparecimento” e a luta dos povos indígenas no Piauí.
Dois motivos podem explicar o “ressurgimento” destes povos no território piauiense.
O primeiro deles relaciona-se à aproximação dos Tabajara de Piripiri com outros grupos
indígenas brasileiros, como se pode notar a partir do trecho de entrevista realizada com o
representante da Coordenação Técnica Local – CTL da Fundação Nacional do Índio – FUNAI
em Piripiri. Para ele não apenas a FUNAI, mas a própria sociedade em geral toma
conhecimento da existência de indígenas no Piauí a partir da
[...] participação de algumas lideranças indígenas no movimento indígena nacional,
especificamente na APOINME, que é a Articulação dos Povos Indí... Articulação
dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo. E
ele... é... com essa participação e envolvimento no movimento indígena nacional, né,
passou a ter mais visibilidade, que inclusive chegou ao órgão indigenista, uma
iniciativa do próprio movimento indígena, né, local em Piripiri com o movimento
indígena nacional e aí ganharam essa visibilidade... [...] o Sr. José Guilherme, o
cacique, ele retoma... 2004/2005, né. Eles participaram de uma reunião da
APOINME lá em Olinda, onde funciona a sede da APOINME e lá ele teve o contato
com outras lideranças. O Zé Guilherme teve o reconhecimento do movimento, né...
como liderança e a partir daí passou a ter mais visibilidade a organização indígena,
como grupo indígena.4
Nesse sentido pode-se dizer que a luta pelos direitos políticos e sociais empregada
pelo movimento indígena, bem como a tomada de conhecimento desta pelos Tabajaras em
Piripiri, influenciou no reaparecimento e participação efetiva nesta luta por estes últimos.
Além disso, ressalta-se a importância que o Cacique José Guilherme da Silva teve na
organização e no reaparecimento dos Tabajaras em Piripiri, considerando que foi a partir de
seu reconhecimento enquanto uma liderança indígena que se possibilitou essa visibilidade dos
povos em Piripiri e a participação na luta por seus direitos e pela retomada de sua identidade
indígena.
Indaga-se aqui se este momento pode ser considerado relevante no que se refere a
construção da identidade indígena. Levando em conta que até essa ocasião, ou seja, até o
começo dos anos 2000 afirmava-se categoricamente que não existiam mais índios no Piauí,
com o ressurgimento dos Tabajaras em Piripiri nessa época questiona-se o discurso do
extermínio tão presente no Piauí e volta a entrar em pauta a questão de que se essa
4 Entrevista concedida por Romeu Tavares Lima Neto, indigenista da FUNAI, a Marcus Pierre de Carvalho
Baptista, discente da Universidade Estadual do Piauí – UESPI na cidade de Teresina em 2016.
5
comunidade que agora lutava por seu reconhecimento e por sua identidade realmente era
indígena.
Para o representante da FUNAI em Piripiri esse é um problema que ocorre não apenas
no Piauí, mas em todo o Brasil, visto que em sua perspectiva
[...] o problema, aí não é só Piripiri, né e nem é só o Piauí, é a sociedade brasileira
de entender o indígena como uma categoria transitória, como se a pessoa deixasse
de ser índio, como se o negro deixasse de negro, o japonês deixasse de ser japonês
[...]5
Para ele a sociedade brasileira como um todo possui uma perspectiva similar àquela
discutida por Machado (2002) ao pensar a questão do etnocídio indígena no Piauí, ou seja, a
ideia de que uma cultura pode desaparecer. Ao afirmar que as pessoas percebem o indígena
como se este fosse capaz de deixar de ser índio significando dizer que em sua visão a
sociedade acredita que a identidade é passível de ser perdida.
Pode-se perceber esse problema também a partir do próprio discurso dos indígenas.
Durante a aplicação das entrevistas, ao serem questionados sobre a reação das pessoas quando
os mesmos afirmavam serem indígenas, as respostas foram unânimes: a total descrença na
possibilidade de eles serem índios, muito menos a da existência de indígenas no Piauí,
conforme podemos observar na fala do Cacique José Guilherme da Silva:
Poucos. Poucos dão reconhecimento... dão reconhecimento para nós e muitos nem
dão... dizem: “Ah, onde que aí em Piripiri tem índio... Tudo já estão como se diz, já
não são... não tem a história como naquela época.” [...] Rapaz, é o seguinte, eles
vão e dizem assim: “Rapaz, é o seguinte, eu conheço índio é na mata.”6
Fica evidente na fala do Cacique dois aspectos já comentados anteriormente. O
primeiro seria a ideia por parte da sociedade de que todos os índios que habitavam o território
do Piauí foram completamente exterminados, discurso este construído ao longo do tempo e
fortalecido pela historiografia piauiense até meados do século XX. O segundo aspecto refere-
se a perspectiva sobre o indígena, também construída ao longo do tempo, do período de
conquista e devassamento do território até o século XXI, esta sendo a figura do índio
enquanto selvagem, como um habitante da selva ou da mata, conforme visto na fala do
Cacique.
5 Entrevista concedida por Romeu Tavares Lima Neto, indigenista da FUNAI, a Marcus Pierre de Carvalho
Baptista, discente da Universidade Estadual do Piauí – UESPI na cidade de Teresina em 2016. 6 Entrevista concedida pelo Cacique José Guilherme da Silva da comunidade indígena Tabajara de Piripiri a
Marcus Pierre de Carvalho Baptista, discente da Universidade Estadual do Piauí – UESPI na cidade de Piripiri
em 2016.
6
Deriva-se disso uma questão no que se refere a visão da sociedade sobre o elemento
nativo e talvez deste último também sobre si. Neste sentido, na discussão sobre Identidade
compreende-se que esta também pode se configurar a partir das relações de alteridade7, ou
seja, ela não diz respeito apenas ao o que o “Eu” pensa de si mesmo, mas também de como o
“Outro”, no caso, a sociedade também o percebe.
Dessa forma quando identificamos no discurso dos indígenas a forma como as outras
pessoas que compõem a sociedade brasileira os percebem podemos ter uma noção da
percepção de identidade por parte da coletividade na qual estes índios estariam inseridos. No
caso em questão, apesar do entendimento de que a identidade é um processo histórico,
estando sempre em constante mudança ao longo do tempo e do espaço, jamais sendo algo
cristalizado e tornando-se múltipla à medida que entra em contato com outras culturas, não é
dessa forma, segundo os Tabajara de Piripiri, que a sociedade piauiense a percebe,
A percepção de identidade que se tem aqui seria a de uma identidade imóvel,
podendo-se dizer que seria uma visão essencialista8 sobre a mesma. Essa perspectiva, sendo
adotada pela sociedade, de certa forma termina provocando e legitimando esses
questionamentos, sobre quem pertence e quem não pertence a determinados grupos
identitários. Questões como: Quem é e quem não é índio? Como ainda podem existir
indígenas se houve o genocídio e etnocídio? Que índio é esse que mora na cidade e não no
mato?
Podem-se elencar dois problemas a partir daí: o primeiro refere-se ao poder do
discurso do extermínio e do etnocídio. É impossível aceitar a possibilidade de o índio deixar
de ser índio sem antes conceber que isso é uma construção social, sem antes entender que isso
deriva de séculos e séculos de uma vinculação do índio à selva, fazendo com que o indígena
que se inserisse na cultura do colonizador deixasse de ser índio, o que teria sido posto em
prática a partir de um etnocídio. Percebe-se isso claramente na obra literária Mandu Ladino9,
por exemplo.
7 Compreende-se aqui Alteridade considerando o pensamento de Tzvetan Todorov (2010) na medida em que este
constrói sua perspectiva a partir das relações estabelecidas entre os nativo-americanos, principalmente os
Astecas, e os europeus, no caso, os Espanhóis, no início do processo de Conquista da América. 8 Segundo Woodward (2014) a perspectiva essencialista sobre a identidade refere-se àquela que sugere a
existência de um conjunto de elementos de coesão a qual todos indivíduos pertencentes a certo grupo
compartilham entre si e que estes aspectos não se transformam ao longo do tempo, acreditando então na
possibilidade de uma essência da identidade. 9 Romance histórico de caráter indigenista de autoria de Anfrísio Neto Lobão Castelo Branco publicado em 2008
que retrata, principalmente, a vida e a trajetória de Mandu Ladino, indígena que viveu no Piauí no início do
século XVIII e que teria sido responsável pelo “Grande levante dos Tapuias” registrado em diversas obras da
historiografia piauiense na tentativa de expulsar os colonizadores do território que viria a ser o Piauí.
7
O segundo ponto a se destacar refere-se à ideia de uma identidade cristalizada para
com o indígena. Não apenas acredita-se na possibilidade de perda cultural, mas ao aceitar isso
há também uma corroboração com a identidade enquanto estática. Exclui-se o indígena
enquanto um ser cultural, passível de ter sua cultura e identidade transformadas a partir do
contato com outras culturas, o que dificulta a sociedade a reconhecer os indígenas enquanto
tais.
No que se refere ao discurso de vinculação do indígena à selva, do índio enquanto
selvagem, construído no início do processo colonizador a partir dos viajantes europeus e
endossado ao longo dos séculos por diversos setores sociais, é interessante ressaltar que ele
pode ser percebido também no discurso dos indígenas Tabajara que habitam o território do
Piauí sobre eles próprios. Vejamos o trecho a seguir da entrevista com a Cacique Raimunda
Maria da Silva:
É... olhassem mais a gente, melhor a gente, porque nós somos indígenas, mas nós
somos a merma pessoa, somos gente também, nós não somos assim um bicho
desconhecido do mato, né. Nós somos índios, mas nós somos índios mansos. Índio
bravo do mato é aquele que come gente, nós não comemos gente, né.10
Índio manso. Índio bravo do mato que come gente. Por que a cacique diz isso? Por que
ela se coloca enquanto índio manso admitindo a existência de um índio bravo que vive na
selva, um indígena selvagem? Nada é por acaso, tampouco é sua própria ideia acerca do
indígena. Não é à toa que ela afirma isso. Seu discurso remonta séculos de uma construção
social acerca do indígena. Há aí uma retomada do índio enquanto “silvícola” ou “selvagem”
em detrimento do europeu enquanto civilizado, conforme nos lembra Maestri (2013).
Não apenas isso, mas reforça a ideia de que o indígena precisou ser “pacificado”, ser
“amansado”, ser “civilizado” uma constante durante o processo de colonização do Brasil.
Além disso, aponta o índio “selvagem” como sendo aquele que praticava antropofagia, ou
seja, de uma cultura inferior à do europeu. Nada surge do nada e o mesmo vale para o
discurso, sua origem está em algum lugar, em algum tempo, e existe por um motivo
específico, segundo Foucault (2008). No caso dos indígenas o ideário construído sobre estes
perpassou séculos e influenciou não somente a perspectiva da sociedade sobre eles, mas eles
próprios também.
10
Entrevista concedida pela Cacique Raimunda Maria da Silva da comunidade indígena Tabajara de Piripiri a
Marcus Pierre de Carvalho Baptista, discente da Universidade Estadual do Piauí – UESPI na cidade de Piripiri
em 2016.
8
Para além do conflito entre civilizado e não civilizado presente na construção da
identidade indígena pela sociedade e também pelo índio, há também a associação do indígena
à selva ou à mata. Nesse caso não entra em pauta a discussão da civilidade, mas sim do
espaço que o índio deveria ocupar e como a não ocupação do mesmo significaria a perda de
sua identidade indígena.
Já vimos que a não ocupação deste espaço, ou seja, da mata pelo índio, para a
sociedade significaria afirmar que este indivíduo já não poderia mais se autodenominar
enquanto tal, conforme expresso na fala do Cacique José Guilherme da Silva. Questiona-se,
porém, qual a perspectiva da própria comunidade sobre esse aspecto? Há uma vinculação de
sua identidade a selva ou a mata pelos índios, assim como há pela sociedade? Observemos o
trecho a seguir: “Rapaz, é o seguinte, eles vão e dizem assim: ‘Rapaz, é o seguinte, eu
conheço índio é na mata’. Eu digo: ‘Mas aí nós não temos, nós não temos ainda para poder a
gente ir para as matas.’.”11
.
Este segmento refere-se à resposta sobre a reação das pessoas quando estes afirmam
que são índios. O primeiro momento da fala já foi visto anteriormente e também discutido. O
interessante aqui é a segunda parte da resposta, na qual o Cacique afirma que os indígenas não
voltaram ainda para mata ou para a selva justamente por não possuírem ainda estas terras.
Aqui se entende a vinculação da mata à identidade indígena dos Tabajara de Piripiri com as
terras sendo percebidas enquanto um elemento de coesão para a comunidade. Não somente no
discurso dos indígenas identifica-se isso, mas também nas próprias músicas do ritual do
Toré12
, conforme expresso a seguir.
“Sou caboquim da mata, quem manda na mata é eu. Sou caboquim da mata, quem
manda na mata é eu. É eu, é eu, é eu, quem manda na mata é eu. É eu, é eu, é eu, quem
manda na mata é eu.”13
. Nota-se neste trecho de uma das músicas cantadas no Toré
justamente essa identificação do indígena com a mata, visto que esta reitera sobre o espaço14
que ele deve ocupar, tornando-se um elemento de coesão para a comunidade.
11
Entrevista concedida pelo Cacique José Guilherme da Silva da comunidade indígena Tabajara de Piripiri a
Marcus Pierre de Carvalho Baptista, discente da Universidade Estadual do Piauí – UESPI na cidade de Piripiri
em 2016. 12
Dança de roda realizada por diversos grupos indígenas, geralmente acompanhada por instrumentos musicais,
como tambores e maracás. 13
Música cantada pelo Cacique José Guilherme da Silva, pela Cacique Raimunda Maria da Silva, por José
Maria de Oliveira Silva e Maria dos Remédios da Silva durante entrevista concedida a Marcus Pierre de
Carvalho Baptista, discente da Universidade Estadual do Piauí – UESPI na cidade de Piripiri em 2016. 14
Neste contexto o espaço assume conotação de pertencimento e significado, constituindo-se em lugar (TUAN,
2013).
9
Ressalta-se na questão da delimitação do território uma necessidade de reafirmar sua
conexão com a terra, pois não havendo ainda sido definido as áreas que reivindicam, o grupo
conseguiu adquirir com recursos próprios um pequeno terreno na zona urbana de Piripiri, no
qual estão construindo uma Maloca15
com o objetivo de praticar o Toré, produzir artesanato e
agricultura no seu entorno.
Neste caso a Maloca representa um espaço identitário, constituindo-se em um lugar
para os índios, no qual eles pretendem não somente realizar seus rituais, mas também
desenvolver atividades relacionadas a produção de artesanato na busca de consolidar sua
cultura.
Voltando a discussão sobre a mata, ao mesmo tempo em que esta é percebida,
associada à sua identidade16
, ela também é vista como um meio de sobrevivência para a
comunidade Tabajara de Piripiri. Quando questionada sobre a demarcação de terras, a
Cacique Raimunda Maria da Silva respondeu o seguinte:
É importante porque aí nós temos terra para nós trabalharmos, para fazer nosso
plantio, para tirarmos de dentro para comermos, dar de comer à nossa família,
nossos filhos e render para pegar naquele dinheirinho para a pessoa ir botando
para frente.17
Muito além de uma necessidade cultural, a demarcação de terras para a comunidade
Tabajara em Piripiri também significa a busca por sua sobrevivência e, juntamente a
necessidade de seu reconhecimento enquanto indígenas, uma luta por seus direitos políticos e
sociais, conforme assegurados pela Constituição Federal de 198818
.
Neste contexto o próprio ritual do Toré legitima a mata e suas terras enquanto
elementos de identidade e também se torna um componente de concordância e união da
comunidade, mas antes de comentar sobre o Toré em si, é preciso primeiramente indicar que
os Tabajaras que se encontram em Piripiri vêm passando por um processo de hibridização
cultural. É inegável que os indígenas piauienses não foram totalmente dizimados, muito
15
Segundo Maestri (2013) Maloca é o nome dado a aldeia indígena com habitação para várias famílias
pertencentes a mesma comunidade. Contudo, utiliza-se este termo, pois é assim que o indigenista entrevistado da
FUNAI se refere a esta. 16
Nesse caso o termo refere-se a Identidade territorial, esta sendo associada à posse de um espaço comum que
remete a identidade de um povo pela delimitação de fronteiras e multiplicação de suas marcas (CLAVAL, 2007). 17
Entrevista concedida pela Cacique Raimunda Maria da Silva da comunidade indígena Tabajara de Piripiri a
Marcus Pierre de Carvalho Baptista, discente da Universidade Estadual do Piauí – UESPI na cidade de Piripiri
em 2016. 18
O Artigo 231 da Constituição Federal de 1988 reconhece às comunidades indígenas suas organizações sociais,
crenças, tradições, línguas e o direito às terras originalmente ocupadas por estes. (BRASIL, 1988). Ainda assim,
até o ano de 2016, mesmo com o reconhecimento da FUNAI e do IBGE da Comunidade Tabajara em Piripiri e
apesar do direito a demarcação assegurada pela Constituição, as demarcações de terras ainda não foram feitas.
10
menos sofreram um processo total de etnocídio. Afirma-se, no entanto, que o que resultou
desta relação violenta que se impôs ao nativo foi um processo de Tradução19
, ou seja, os
nativos que habitavam e que ainda vivem foram forçados a assimilarem os valores culturais
dos europeus transformando e hibridizando, assim, sua cultura e sua identidade sem, contudo,
apagá-la.
Dessa forma, aspectos de sua cultura, como o Toré, se “perderam” ao longo do tempo,
ou mesmo sua religião, considerando que todos os entrevistados afirmaram ser católicos, e
nos últimos anos estes elementos passam a ser retomados pelos Tabajara. No que se refere ao
reaprendizado do Toré pela comunidade Tabajara em Piripiri, Lima Neto, indigenista da
FUNAI, nos diz o seguinte:
[...] um processo que foi iniciativa deles, né, de resgate de um ritual que é o Toré,
né. Isso se deu a partir da aproximação também com a comunidade de Poranga que
fica a 120 km de Piripiri, depois de Pedro II mais 58 km, né, a cento e poucos
quilômetros lá de Piripiri. E aí a gente tem apoiado essa aproximação, esse
movimento, né. Traz o pessoal de Poranga pra Piripiri, leva o pessoal de Piripiri
pra Poranga, eles tão... porque o pessoal de Poranga que é do mesmo grupo étnico,
Tabajara, né. Lá é Tabajara e Calabaça, mas a maior parte da comunidade é
Tabajara. Eles já estão dentro de um contexto de movimento indígena com maior
experiência que é o movimento indígena do Ceará, né. E eles trocaram experiência
e apoiaram num processo de resgate cultural do Toré. Então em Piripiri hoje você
tem grupos que já... é... de forma espontânea, né, e autônoma eles não precisam
mais do pessoal de outros grupos pra assim, pra poder conduzir um Toré. Eles
mesmo conduzem agora um Toré.[...]. 20
O “reaprendizado” do Toré torna-se, então, uma maneira da comunidade de “retomar”
sua identidade indígena. Mesmo que em nossa percepção a identidade não seja algo estático e
esteja em constante transformação, não é dessa forma que os Tabajara de Piripiri percebem
essa questão. Sendo assim, quando questionados sobre a importância do Toré foram unânimes
as respostas que apontavam a relevância do mesmo para a comunidade e a necessidade do
índio de ter o seu “cante”, referindo-se assim ao Toré. Observemos a fala da Cacique
Raimunda Maria da Silva ao ser questionada sobre a importância do Toré: “Rapaz, a
19
A partir de Stuart Hall (2005) entende-se o conceito de Tradução da seguinte maneira: Refere-se as identidades
construídas a partir de sujeitos que ultrapassaram as fronteiras “naturais” ou se encontram no limiar destas, no
sentido de perceber esses sujeitos enquanto pessoas que se dispersaram de suas terras de origem, mantendo, no
entanto, um significativo vínculo com estas e com suas tradições. Estas condições exigem uma negociação com
novas culturas com as quais passam a conviver, para não serem por elas assimiladas e não perderem totalmente
suas identidades. Estes sujeitos trazem em si aspectos de suas culturas, tradições, linguagens, memória e histórias
que marcam suas trajetórias, tendo como diferença a percepção que estes aspectos nunca mais serão unificados
ou significados da mesma maneira, pois passam a ser o produto de diversas histórias e culturas interligadas,
pertencendo a vários grupos e não somente a um em particular. Estes sujeitos passam a formar uma cultura
híbrida, sendo obrigados a abdicar da ideia de uma cultura pura, ou seja, da possibilidade de retomar uma
essência que na prática nunca existiu, configurando, deste modo, em uma Tradução. 20
Entrevista concedida por Romeu Tavares Lima Neto, indigenista da FUNAI, a Marcus Pierre de Carvalho
Baptista, discente da Universidade Estadual do Piauí – UESPI na cidade de Teresina em 2016.
11
importância do Toré é porque nós que somos índios temos que ter um cante nosso, né. Todo
índio tem que ter seu cante”21
.
Em sua perspectiva, a relevância do ritual do Toré dentro da comunidade é justamente
a de reforçar sua identidade. A partir do momento em que a Cacique afirma que todo indígena
tem que ter seu “cante” ela significa o Toré enquanto um ritual de identidade.
Dessa forma, o ritual do Toré apresenta uma significação mais profunda no que se
refere aos Tabajara de Piripiri, e esta está intrinsicamente conectada a identidade deste povo.
Vale lembrar que segundo Catroga (2005) um dos papeis da religião é a produção de um
espírito de coesão e de identidade dos quais as pessoas se utilizam para construção de uma
sociedade. Entretanto, segundo Eliade (1972) os rituais de sociedades “arcaicas” podem ter as
mais distintas significações, nem sempre atrelados a religiosidade. Esse parece ser o caso do
Toré.
A partir da análise da percepção do Toré pelos indígenas retomamos a questão de uma
visão essencialista sobre a identidade destes. Não apenas o Toré representa essa perspectiva
considerado como um aspecto da cultura que todo índio deve ter, mas outros elementos
também podem ser inseridos nesse ideário, como a linguagem, por exemplo. Vejamos o
trecho a seguir:
E aí a gente foi e perdeu por causa da mudança do povo que aí se aquele, como se
diz, eu se eu casar uma filha minha com outro dacolá, aí já a família já vem, como
se diz, no estudo já é do outro jeito, já é inglês e tudo. Aí o índio perdeu a, como se
diz, a etnia... a identidade da língua, né. A língua como os que são do Pará e aqui
nós aqui, já somo, como se diz, já somo regalizado... se diz é, né, regalizado, é?
Sobre a linguagem que aí tamo o índio branco, bem dizer, bem dizer, aí os índio
branco como vocês. Perdemo, né, a linguagem dos índio antigo e daí por diante.
[...] Sobre essas escolas indígena é o seguinte é sobre pra voltar a linguagem do
tempo antigo dos velho pai da gente porque aí gente tem que aprender e aí se
formar como eu vejo no Pará e no Amazonas [...]22
Ao falar sobre a “perda” de sua identidade indígena, de não terem mais a História dos
seus ancestrais, o Cacique José Guilherme da Silva comenta também sobre o esquecimento da
linguagem. Aponta igualmente para o processo de Tradução que sofreram ao afirmar que
atualmente encontram-se como “índios brancos como nós”, ou seja, refere-se à hibridização
das culturas e a assimilação de valores culturais dos brancos, no caso em específico a
21
Entrevista concedida pela Cacique Raimunda Maria da Silva da comunidade indígena Tabajara de Piripiri a
Marcus Pierre de Carvalho Baptista, discente da Universidade Estadual do Piauí – UESPI na cidade de Piripiri
em 2016. 22
Entrevista concedida pelo Cacique José Guilherme da Silva da comunidade indígena Tabajara de Piripiri a
Marcus Pierre de Carvalho Baptista, discente da Universidade Estadual do Piauí – UESPI na cidade de Piripiri
em 2016.
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linguagem. Vale ressaltar que esse processo de hibridização é perceptível também em outros
aspectos, como, por exemplo, a religião, visto que todos os entrevistados afirmaram ser
católicos quando questionados se tinham religião e qual seria esta.
No entanto, no caso da linguagem, percebe-se uma preocupação do Cacique em
retomar a “linguagem antiga” dos seus ancestrais. Mais uma vez pode-se afirmar a partir disso
uma percepção essencialista sobre o ser índio por parte da comunidade Tabajara em Piripiri.
Acredita-se em uma essência da identidade indígena, pautada pela sua presença na mata, por
seus rituais, como o Toré, e também pela linguagem utilizada por seus ancestrais. E, em
virtude disso, a necessidade da retomada destes elementos para a autoafirmação de sua
identidade enquanto indígenas.
O interessante aqui é que a “recuperação” destes aspectos de sua cultura são relevantes
não apenas para a comunidade, mas para que a própria sociedade os reconheça enquanto
indígenas, visto que ela também tem essa percepção cristalizada da cultura e do ser índio. No
que se refere ao resgate do Toré, Lima Neto nos diz o seguinte:
Então com essa revitalização do Toré eles também passaram a ter mais notoriedade
inclusive em Piripiri, então eles participam de eventos culturais nas escolas, né, nas
rádios, então eles tão agora tendo mais visibilidade que também era um outro projeto
nosso, né, da CTL também em discussão com a comunidade de dar visibilidade para
esse grupo, né, dentro do estado. Dentro de Piripiri já começou esse processo, já tem
amplo, ampla participação diante da... E antes disso, antes disso, eles já eram
reconhecidos, né, eles já eram reconhecidos como índios, antes de terem uma
associação indígena, pelos traços físicos deles, né. Lá em Piripiri ainda tem uma
marca biotípica muito forte, né, os traços... que isso não é determinante pra
reconhecimento de um indígena, né, mas isso tem um peso, né, visual. Então eles
são reconhecidos como índios pelos traços deles, inicialmente e depois pela forma
também de se organizarem, né. Esse é um ponto. 23
Fica notório para o indigenista a relevância do resgate do Toré para uma maior
aceitação da sociedade piripiriense da comunidade enquanto indígenas. De maneira similar, os
próprios índios também pensam assim como podemos observar no trecho a seguir: “O Toré é
bom aqui pra nós porque onde a gente chega a gente representa, né, o Toré da gente aí o
pessoal vai mais reconhecendo nós aqui em Piripiri.”24
Dessa forma, o “resgate” de elementos culturais vinculados à etnia indígena não
apenas apresenta uma percepção essencialista de sua identidade, mas também se torna uma
forma de legitimá-los perante a sociedade enquanto indígenas. Notou-se então, ao longo das
23
Entrevista concedida por Romeu Tavares Lima Neto, indigenista da FUNAI, a Marcus Pierre de Carvalho
Baptista, discente da Universidade Estadual do Piauí – UESPI na cidade de Teresina em 2016. 24
Entrevista concedida por Maria dos Remédios da Silva da comunidade indígena Tabajara de Piripiri a
Marcus Pierre de Carvalho Baptista, discente da Universidade Estadual do Piauí – UESPI na cidade de Piripiri
em 2016.
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entrevistas, que, segundo a comunidade indígena de Piripiri, a sociedade se encontra
fortemente marcada pelo discurso do extermínio e etnocídio, não acreditando na existência de
índios em 2016, reconhecendo-os apenas pelo fenótipo e não por sua identidade.
CONCLUSÃO
Evidentemente nada acontece de imediato e transformações levam tempo,
principalmente quando estamos tratando de um discurso construído ao longo de séculos, mas
a partir das lutas empregadas pelos povos Tabajara em Piripiri certas mudanças começam a
ser percebidas no âmbito da sociedade. Embora a Constituição Federal assegure o direito a
demarcação de terras e mesmo com as políticas públicas federais direcionadas a populações
marginalizadas que surgiram nos últimos anos, é indiscutível que o Estado, em sua esfera
federal, continua a negar para alguns grupos sua identidade, bem como os próprios direitos
que este haveria de assegurar, sendo o caso da comunidade Tabajara em Piripiri.
Contudo, no que se refere ao Estado, no âmbito estadual, o governo do Piauí lançou
em 2016 um projeto denominado “O Piauí tem índio sim” (PIAUÍ, 2016), que, inicialmente,
visa pesquisas sobre a identificação das populações indígenas e a criação de um polo especial
de saúde para estes. A relevância de projetos como este é justamente a ruptura com o discurso
de etnocídio e de genocídio que antes prevalecia na sociedade. É o Estado aceitando e
afirmando que ainda existem índios no Piauí e, não apenas isso, reconhecendo a importância
de sua cultura e identidade, em contrapartida ao discurso anterior.
Embora a perspectiva apresentada pelos índios Tabajara de Piripiri remeta a uma
identidade essencialista, o que se pode observar é uma Tradução e Hibridização de sua cultura
com a do conquistador, indicado a partir da prática da religião católica, que influencia seus
rituais e também a própria língua, já que não mais conhecem seu “idioma original”, mas sim
falam o português.
Destarte, os indígenas de Piripiri ainda têm um percurso significativo na consolidação
de sua identidade, uma vez que permanece o predomínio do discurso pelo caráter do
extermínio e da inexistência de seus remanescentes no Piauí, embora com herança
reconhecida na sociedade em função de diversos costumes derivados do encontro ocorrido
entre o branco e o nativo indígena que habitava o território piauiense. O ressurgimento de
comunidades indígenas no Piauí desconstrói esse discurso e estabelece novas possibilidades
para se pensar a história indígena piauiense.
Certa vez Ribeiro (2015) disse que para além das fronteiras da civilização os indígenas
brasileiros poderiam ser encontrados isolados em micro tribos ao longo do território nacional.
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No caso dos indígenas que habitam o Piauí o mais acertado seria dizer que para além das
fronteiras dos livros eles permanecem, lutam e sobrevivem e à sociedade falta a sensibilidade
para compreendê-los e aceita-los.
São índios? São!
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FONTES
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Entrevistador: Marcus Pierre de Carvalho Baptista. Teresina/PI, 2016. Gravação digital.
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Entrevistador: Marcus Pierre de Carvalho Baptista. Piripiri/PI, 2016. Gravação digital.
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em: http://www.piaui.pi.gov.br/noticias/index/categoria/2/id/25103. Acesso em: 08 set. 2016.