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 UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE DOUTORADO EM SOCIOLOGIA Sidartha Soria e Silva INTERSECÇÃO DE CLASSES: FUNDOS DE PENSÃO E SINDICALISMO NO BRASIL Campinas Março de 2011

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS PROGRAMA DE DOUTORADO EM SOCIOLOGIA

Sidartha Soria e Silva

INTERSECO DE CLASSES: FUNDOS DE PENSO E SINDICALISMO NO BRASIL

Campinas Maro de 2011

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS PROGRAMA DE DOUTORADO EM SOCIOLOGIA

Sidartha Soria e Silva

INTERSECO DE CLASSES: FUNDOS DE PENSO E SINDICALISMO NO BRASIL

Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Estadual de Campinas sob a orientao do Prof. Dr. Ricardo Luiz Coltro Antunes rea temtica: Trabalho, Cultura e Ambiente Linha de pesquisa: Sociologia do Trabalho

Campinas Maro de 2011i

FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP Bibliotecria: Ceclia Maria Jorge Nicolau CRB n 3387

Si38i

Soria e Silva, Sidartha Interseco de classes: fundos de penso e sindicalismo no Brasil / Sidartha Soria e Silva. - - Campinas, SP : [s. n.], 2011.

Orientador: Ricardo Antunes Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Cincias Humanas.

1. Sindicalismo - Brasil. 2. Fundos de penso. 3. Previdncia social. 4. Estado. 5. Governana corporativa. I. Antunes, Ricardo, 1953- II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. III.Ttulo.

Ttulo em ingls: Classes intersection: pension funds and unionism in Brazil Palavras chaves em ingls (keywords): Syndicalism - Brazil Pension funds Social security State Corporate governance

rea de Concentrao: Sociologia do Trabalho Titulao: Doutor em Sociologia Banca examinadora: Ricardo Antunes, Maria Aparecida Chaves Jardim, Dari Krein, Edilson Graciolli, Andreia Galvo

Data da defesa: 02-03-2011 Programa de Ps-Graduao: Sociologia

ii

Agradecimentos e pedidos de desculpas Esta tese expressou um esforo solitrio e desgastante. Apesar de solitrio, contou com o apoio imprescindvel de algumas pessoas. Por ser desgastante, envolveu uma elevada dose de afastamento, sempre doloroso, de outras tantas, referente ao tempo em que se deveria estar com elas, mas que foi despendido na feitura da tese. Num e no outro caso, tratam-se de pessoas queridas e amadas, que merecem um agradecimento ou um pedido de desculpas. Assim, peo desculpas primeiramente aos meus filhos. Miguel, meu homenzinho, que tantas vezes ia minha mesa me puxar pra brincar, e se irritava com os impedimentos do pai. E Samantha, moa feita, mas que nem por isso deixar de ser minha eterna perolazinha brilhante. Entendia minhas ausncias, embora no as aceitasse, e nem deveria. Como os filhos so, de longe, o que de melhor existe na vida, e como no valeu a pena perder um s minuto em que poderia estar brincando com eles para fazer uma tese, devo-lhes muitas desculpas, alm da promessa de recuperar o tempo perdido. Minha esposinha querida, Darcilene, a quem peo desculpas pelo sumio, mas a quem tambm devo muitos agradecimentos pela ajuda inestimvel. Como pesquisador, nunca cheguei aos ps dela, sempre detentora das melhores idias, das melhores sacadas e da melhor crtica, o que foi vital para este autor. Amo voc, docinho. Agradeo minha sogrinha, Erizete. Na verdade, no existiria tese se no fosse por ela. Generosa e maternal, ela veio aqui e segurou as pontas com o Miguelzinho (alm, claro, de tirar muitas casquinhas com o netinho amado, porque ningum de ferro) e com a casa, nos abraando a todos com seu corao de me. Seu apoio foi decisivo, tal como os reforos que chegam no momento exato para virar a sorte da batalha. Todos os agradecimentos do mundo seriam poucos para retribuir a sua ajuda. Agradeo minha famlia, que sempre me apoiou em minhas escolhas. Minha me, minha av, meu pai, meu irmo, meu sobrinho novinho. Amo vocs. Agradeo ao meu orientador, Ricardo Antunes, que me deu toda a liberdade para desenvolver a pesquisa, mesmo que no raro tenhamos chegado a concluses distintas, o que apenas demonstra a sua grandeza de esprito, de carter e o seu apreo genuno pelo debate livre. Alm disso, dono de humildade e simplicidade absolutamente incomuns em

iv

um pesquisador de prestgio internacional. No por acaso to estimado por seus muitos orientandos, ex-orientandos e admiradores, entre os quais me incluo. Agradeo a alguns em particular, por considerar que tiveram um papel neste trajeto pessoal/intelectual. Entre os socilogos, Leonardo, Dany, Edilson e Adalberto, o primeiro pelas afinidades e o segundo pelas divertidas divergncias tericas, os ltimos pelos primeiros ensinamentos nas cincias sociais, e todos pela amizade. Entre os filsofos, meu amigo Edson Gil, por tantas conversas que me ajudaram a ver outros aspectos da realidade. Entre os economistas, Claudio e Cris, pela amizade, pelos papos, pelo interesse em comum no debate, ofcio dos cientistas sociais. Entre os sindicalistas, meu companheiro Dmerson; entre os jornalistas, Laerte; entre as poetizas, Eliana; entre os mdicos sanitaristas, Ricardo, todos socialistas de razo e humanistas de corao. Por fim, gostaria de agradecer a este ser que, no obstante sua imaterialidade essencial, manifesta sua onipresena, e com o qual conversei continuamente, embora tenha me limitado principalmente a ouvi-lo, dada a sua condio de fonte infinita de saberes contidos. Um ser sem o qual este estudo teria sido impossvel e que, portanto, teve o milagroso poder de tornar possvel o impossvel. Agradeo, portanto, Internet.

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Resumo

Esta tese discute as relaes existentes entre os fundos de penso e o meio sindical, concentrandose no perodo em que vigorou o Governo Lula (2003-2010), por se tratar de um momento histrico especialmente relevante, em que as foras polticas principais do governo tm suas bases sociais no sindicalismo-CUT e h um forte interesse destes sujeitos na temtica dos fundos de penso. A pesquisa foi estruturada metodologicamente em dois grandes eixos. Por um lado, considerou-se necessrio apreender o objeto realizando-se a uma investigao das experincias internacionais envolvendo as relaes entre sindicatos e fundos de penso, a fim de realizar estudos comparados com a experincia brasileira. Por outro lado, as relaes entre sindicalismo e fundos foram entendidas como uma realidade composta por trs dimenses, denominadas aqui como: 1) econmica (o papel dos fundos de penso no desenvolvimento econmico e social nacional); 2) poltica (os fundos de penso como fator de fortalecimento do poder sindical); e 3) social (o papel dos fundos de penso na proviso de direitos previdencirios). Perpassando estes dois eixos metodolgicos esto estudos e levantamentos historiogrficos, que iniciam a tese descrevendo o processo de reorganizao do capitalismo nas ltimas dcadas, em que a flexibilizao produtiva, a liberalizao e a financeirizao enfraquecem os pilares do Estado forte e do trabalho organizado, enquanto cresce a importncia e o poder do mercado livre. Neste contexto, em que a finana hegemoniza o sistema econmico, inserem-se a emergncia e o fortalecimento dos fundos de penso e o enfraquecimento e recuo do movimento sindical. Assediados pela conjuntura adversa e pela ofensiva cultural-ideolgica que d cobertura ao avano liberal, os sindicatos buscam alternativas concretas de atuao, em substituio ou adio s suas prticas tradicionais. Neste caminho, encontram os fundos de penso. Como os fundos so investidores institucionais, aparentemente eles seriam uma via de acesso a outros campos de interveno, como a gesto das empresas e a promoo do desenvolvimento econmico. Na especificidade brasileira, a opo das foras dirigentes da CUT, do PT e do Governo Lula pelos fundos de penso pode ser tributria tambm de uma cultura poltica reticente ou dbia em relao ao Estado republicano forte e interventor, e favorvel valorizao da autonomia dos sujeitos situados na sociedade civil. Isso abriria um espao de legitimao de entes no estatais e compostos com recursos dos trabalhadores, os fundos de penso.

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Abstract

This thesis discusses the relationship between pension funds and the unions, focusing on the period of Lulas Government (2003-2010), because its a historic moment particularly relevant, in which the main politic forces sustaining the government have their bases in social unionism-CUT, which have strong interests in the pension funds issue. The research was methodologically structured in two parts. On the one hand, it was considered necessary to apprehend the object by performing an investigation of international experiences involving the relationship between unions and pension funds in order to make comparative studies with the Brazilian experience. On the other hand, relations between unions and pension funds have been understood as a reality composed of three dimensions, known here as 1) economic (the role of pension funds in economic and social development), 2) politic (pension funds for the strengthening of union power), and 3) social (the role of pension funds in the provision of welfare rights). Running along these two methodological axes are historiography studies, which initiate the theses describing the reorganization of capitalism in recent decades, in which the productive flexibility, deregulation and financialization weaken the pillars of Strong State and organized labor, while growing importance and power of free market. In this context, in which finance dominates economic system, occurs the emergence and strengthening of pension funds and the weakening and retreat of the labor movement. Harassed by the adverse economic and cultural-ideological offensive which provides coverage to advance of liberalism, unions seek concrete alternatives for action, replacing or adding to their traditional practices. In this way, they find the pension funds. Because the funds are institutional investors, apparently they would be an access to other fields of intervention, such as corporate management and promotion of economic development. Specificity in Brazil, the option of driving forces of CUT, PT and Lulas Government for the pension funds may also be caused by a reticent or dubious political culture about the State, and favorable valuation of the autonomy of the social subjects situated in civil society. This would open a space of legitimating for non-state institutions, which are composed with workers resources.

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SUMRIOLISTA DE GRFICOS, QUADROS E TABELAS.................................................................................... 5 INTRODUO ................................................................................................................................ 7 CAPTULO 1 AS TRANSFORMAES DO CAPITALISMO CONTEMPORNEO ...............................17 INTRODUO ...................................................................................................................................17 1. BREVE PANORAMA DO CONTEXTO ECONMICO E POLTICO NO FIM DOS ANOS DOURADOS .......................18 2. OS PILARES DA NOVA ORDEM CAPITALISTA: FLEXIBILIZAO, LIBERALIZAO E FINANCEIRIZAO ..............21 3. O PAPEL DA POLTICA NAS MUTAES DA ECONOMIA MUNDIAL, E A SIMBIOSE EXISTENTE ENTRE LIBERALIZAO, FINANCEIRIZAO E FLEXIBILIZAO......................................................................................................28 3.1 O COMPONENTE POLTICO DAS TRANSFORMAES ECONMICO-INSTITUCIONAIS 28 3.1.1 A questo fabril 28 3.1.2 A questo do Estado-providncia 30 3.1.3 A questo do pleno emprego 31 3.1.4 A questo da cidadania no capitalismo 33 3.2 O PAPEL DAS DIMENSES ESPECULATIVO-FINANCEIRA, DA FLEXIBILIZAO E DA LIBERALIZAO: A PACIFICAO DO TRABALHO E O RESTABELECIMENTO PLENO DA VIGNCIA DA ORDEM DO CAPITAL NAS SOCIEDADES CONTEMPORNEAS 36 4. A IMPORTNCIA PARTICULAR DO PILAR DA FINANCEIRIZAO E A POLMICA EM TORNO DO CAPITAL ESPECULATIVO-FINANCEIRO: ENTE FUNCIONAL OU PREJUDICIAL DINMICA ECONMICA? .............................42 CONCLUSES ...................................................................................................................................47 CAPTULO 2 FUNDOS DE PENSO: ORIGEM E IMPORTNCIA NO CAPITALISMO CONTEMPORNEO .......................................................................................................................49 INTRODUO ...................................................................................................................................49 1. OS INVESTIDORES INSTITUCIONAIS: FATORES DE CRESCIMENTO E SUA IMPORTNCIA NO CAPITALISMO CONTEMPORNEO ............................................................................................................................50 2. OS FUNDOS DE PENSO: DEFINIES BSICAS .....................................................................................59 2.1 FUNDOS DE PENSO SINDICAIS 62 3. OS FUNDOS DE PENSO AO REDOR DO MUNDO INDUSTRIALIZADO ..........................................................63 4. OS DIFERENTES SISTEMAS DE FINANCIAMENTO E VARIEDADES DE CAPITALISMO .........................................68 5. FUNDOS DE PENSO E A QUESTO DO DESENVOLVIMENTO ECONMICO...................................................77 5.1 O CIRCUITO FINANCE-INVESTIMENTO-POUPANA-FUNDING 78 5.2 MODELOS DE CAPITALISMO E MODELOS DE FUNDING 81 5.3 FUNDOS DE PENSO E O FINANCIAMENTO DO DESENVOLVIMENTO 83 CONCLUSES ...................................................................................................................................90

1

CAPTULO 3 SISTEMAS PREVIDENCIRIOS, REFORMAS E SINDICALISMO: A EXPERINCIA INTERNACIONAL ...........................................................................................................................93 INTRODUO ...................................................................................................................................93 1. NOTAS SOBRE O WELFARE STATE .....................................................................................................95 1.1 DEFINIES, ENFOQUES TERICOS E TIPOS DE WELFARE STATE 95 1.1.1 Definies de Welfare State 95 1.1.2 Correntes tericas de interpretao do Welfare State como fenmeno 96 1.1.3 Tipologias e condies histricas gerais para o surgimento de Welfare States 101 1.2 SOCIEDADE SALARIAL, REGIME DE RECURSOS E DIREITOS SOBRE OS RECURSOS 104 1.2.1 O sistema previdencirio sob a tica do regime de recursos 107 2. O CICLO DE REFORMAS PREVIDENCIRIAS.........................................................................................109 2.1 VISO GERAL DOS ARGUMENTOS DOS REFORMADORES 109 2.2 FRANA 115 2.3 ALEMANHA 119 2.4 ITLIA 123 2.5 SUCIA 127 2.6 ESTADOS UNIDOS 132 2.7 CHILE 138 3. REFORMA PREVIDENCIRIA, FUNDOS DE PENSO E PERSPECTIVAS DO SINDICALISMO: UM BALANO ............146 3.1 O DEBATE SOBRE A REFORMA PREVIDENCIRIA: FATOS E MITOS 146 3.2 TEORIZANDO SOBRE O PAPEL DO SINDICALISMO NAS REFORMAS PREVIDENCIRIAS: POTNCIA E IDEOLOGIA DO MOVIMENTO SINDICAL 149 CONCLUSES .................................................................................................................................153 CAPTULO 4 GOVERNANA CORPORATIVA, ATIVISMO ACIONARIAL E SINDICALISMO ........157 INTRODUO .................................................................................................................................157 1. GOVERNANA CORPORATIVA .....................................................................................................158 1.1 DEFINIES E ENFOQUES CONCEITUAIS 159 1.2 SISTEMAS NACIONAIS DE GOVERNANA CORPORATIVA 161 1.2.1 O sistema anglo-saxo de governana corporativa 162 1.2.2 O sistema germnico de governana corporativa 167 1.2.3 O sistema latino de governana corporativa 170 1.2.4 O sistema japons de governana corporativa 172 1.3 FUNDOS DE PENSO E SISTEMAS DE GOVERNANA CORPORATIVA DE TIPO CONTROLE EXTERNO/EQUITY E CONTROLE INTERNO/DBITO: EFEITOS SOBRE OS TRABALHADORES E O MEIO SINDICAL 175 2. ATIVISMO ACIONARIAL.................................................................................................................178 2.1 DEFINIO E BREVE HISTRICO 178 2.2 PERFIL GERAL DE ATUAO DO ATIVISMO ACIONARIAL 180 3. ATIVISMO ACIONARIAL SINDICAL ....................................................................................................182 3.1 CASOS EMPRICOS DE ATIVISMO ACIONARIAL SINDICAL 184 3.2 TIPOS DE ATIVISMO ACIONARIAL SINDICAL 189 4. NOTAS CRTICAS SOBRE O MODELO ANGLO-SAXO DE GOVERNANA CORPORATIVA..............................197 4.1 GOVERNANA CORPORATIVA E SOCIEDADE POR AES EM UMA PERSPECTIVA NO-MARXISTA 197 4.2 GOVERNANA CORPORATIVA E SOCIEDADE POR AES EM UMA PERSPECTIVA MARXISTA 200 CONCLUSES .................................................................................................................................206

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PARTE II FUNDOS DE PENSO E SINDICALISMO NO BRASIL.....................................................211 CAPTULO 5 HISTRICO DOS FUNDOS DE PENSO: DO SURGIMENTO S REFORMAS PREVIDENCIRIAS ......................................................................................................................213 INTRODUO .................................................................................................................................213 1. DOS MONTEPIOS AOS FUNDOS DE PENSO NA DCADA DE 1990 ..........................................................215 1.1 MONTEPIOS, CAPS E IAPS 215 1.2 O REGIME MILITAR E A UNIFICAO DA PREVIDNCIA 216 1.3 OS FUNDOS DE PENSO NA DCADA DE 1990 219 2. AS REFORMAS DO SISTEMA PREVIDENCIRIO BRASILEIRO: GOVERNOS FHC E LULA ..................................222 3. OS FUNDOS DE PENSO NO GOVERNO LULA .....................................................................................229 3.1 O SINDICALISMO BRASILEIRO E OS FUNDOS DE PENSO 229 3.2 A ELITE SINDICAL DOS FUNDOS DE PENSO 234 3.3 O GOVERNO LULA E SUA ESTRATGIA GERAL RELATIVA AOS FUNDOS DE PENSO 238 3.3.1 Fundos de penso como promotores do desenvolvimento 238 3.3.2 Parcerias Pblico-Privadas 242 3.3.3 Microcrdito e Economia Solidria 243 3.3.4 Bolsa Popular e FGTS 245 4. QUEM O PROPRIETRIO DA PREVIDNCIA PRIVATIZADA? ............................................................247 5. O FENMENO DA INTERSECO DE CLASSES .....................................................................................248 6. A SOCIALIZAO DO CAPITALISMO E SUAS CONTRADIES ...............................................................253 CONCLUSES .................................................................................................................................255 CAPTULO 6 OS FUNDOS DE PENSO BRASILEIROS EM TRS DIMENSES: ECONMICA, POLTICA E SOCIAL ......................................................................................................................259 INTRODUO .................................................................................................................................259 1. FUNDOS DE PENSO E DINMICA ECONMICA ..................................................................................260 1.1. OS FUNDOS DE PENSO BRASILEIROS NA ATUALIDADE: ALGUNS NMEROS 260 1.2. A REGULAO DOS INVESTIMENTOS DOS FUNDOS DE PENSO 266 1.3 O MODELO BRASILEIRO DE CAPITALISMO E SEU PADRO DE FINANCIAMENTO 269 1.4 LIBERALIZAO E DESENVOLVIMENTO DO MERCADO DE CAPITAIS 278 2. FUNDOS DE PENSO E PODER SINDICAL: GOVERNANA CORPORATIVA E ATIVISMO ACIONARIAL ..............288 2.1 A GOVERNANA CORPORATIVA NO BRASIL 288 2.2 SINDICALISMO, FUNDOS DE PENSO E GOVERNANA CORPORATIVA 293 3. FUNDOS DE PENSO E O CONTEXTO PREVIDENCIRIO BRASILEIRO .........................................................299 3.1 O SISTEMA PREVIDENCIRIO BRASILEIRO: ALGUNS NMEROS 299 3.2 O PERFIL SOCIOECONMICO DO PARTICIPANTE DA PREVIDNCIA PRIVADA 307 CONCLUSES .................................................................................................................................315

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CAPTULO 7 GOVERNO LULA, MUDANAS NO MODELO DE CAPITALISMO BRASILEIRO E OS POSSVEIS PAPIS DOS FUNDOS DE PENSO ..............................................................................319 INTRODUO .................................................................................................................................319 1. A QUESTO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E ECONMICO: MERCADO LIBERAL VERSUS MERCADO COORDENADO ..............................................................................................................................320 2. O GOVERNO LULA COMO ALTERNATIVA LIBERALIZAO: POSSIBILIDADES E LIMITES ...............................328 2.1 GOVERNO LULA, MERCADO E HIERARQUIA 328 2.2 AS ORIGENS HISTRICAS E TERICAS DO ANTI-ESTATISMO CUTISTA/PETISTA 331 2.3 O NOVO SINDICALISMO NO PODER: NEOCORPORATIVISMO E DESESTATIZAO DO ESTADO 342 2.4 ANATOMIA DO GOVERNO LULA: BREVE NOTA 345 3. AS MUDANAS NO CONTEXTO ECONMICO E OS INVESTIMENTOS SOCIALMENTE RELEVANTES DOS FUNDOS DE PENSO SOB O GOVERNO LULA .........................................................................................................348 3.1 A FACE HETERODOXA DA GESTO MACROECONMICA NO GOVERNO LULA: UMA NOVA FASE? 348 3.2 FUNDOS DE PENSO E INVESTIMENTOS SOCIAL E PRODUTIVAMENTE DIRECIONADOS 357 3.3 OS INVESTIMENTOS SOCIAIS DOS FUNDOS DE PENSO: ALGUNS CONTRA-EXEMPLOS 360 4. FUNDOS DE PENSO E PREVIDNCIA: ENTRE A SEGURANA DO ESTADO E A APOSTA NO MERCADO ..............363 4.1 A QUESTO DAS INFLEXES DO SINDICALISMO-CUT E DO GOVERNO LULA RELATIVAMENTE QUESTO PREVIDENCIRIA: UMA REFLEXO SOBRE O DEBATE 363 4.2 DISPUTAS NO INTERIOR DO UNIVERSO DOS FUNDOS DE PENSO: CASOS DA PETROS E PREVI 371 4.2.1 Tipos de planos previdencirios e o Ministrio da Previdncia 372 4.2.2 O caso da Petros: benefcio definido versus contribuio definida 373 4.2.3 O caso da Previ: a disputa pelo supervit 377 4.2.4 Os fundos de penso e a inverso entre fins e meios 380 CONSIDERAES FINAIS .............................................................................................................383 BIBLIOGRAFIA.............................................................................................................................397

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Lista de Grficos, Quadros e TabelasGRFICO 1 - ALOCAO DE ATIVOS FINANCEIROS DOS FUNDOS DE PENSO EM 2008 EM % ............................................ 67 GRFICO 2 ATIVOS TOTAIS DE EFPCS EM BILHES DE REAIS ................................................................................ 261 GRFICO 3 ATIVOS DE INVESTIMENTO DE EFPCS EM MILHES DE REAIS ................................................................. 262 GRFICO 4 EVOLUO DOS ATIVOS POR TIPO DE INVESTIMENTO EM % .................................................................. 263 GRFICO 5 TAXA SELIC NO GOVERNO LULA (MDIA ANUAL EM %) ....................................................................... 265 GRFICO 6 VALORIZAO DO NDICE BOVESPA (EM PONTOS) ................................................................................ 265 GRFICO 7 NMERO DE EMPRESAS COM CAPITAL ABERTO NA BOVESPA .................................................................... 283 GRFICO 8 PARTICIPAO DOS INVESTIDORES NO TOTAL DE ATIVOS NEGOCIADOS NA BOVESPA EM % ........................... 285 GRFICO 9 PORCENTAGEM DE OCUPADOS (16 A 59 ANOS) COM COBERTURA PREVIDENCIRIA EM % ............................ 301 GRFICO 10 EVOLUO DO VALOR MDIO DOS BENEFCIOS DO RGPS EMITIDOS PELA PREVIDNCIA SOCIAL ENTRE 2003 E 2010, MDIA DE JANEIRO A JUNHO EM R$ DE JUNHO DE 2010 (INPC) ................................................................... 302 GRFICO 11 BENEFCIOS CONCEDIDOS SEGUNDO AS FAIXAS DE VALOR EM PISOS PREVIDENCIRIOS EM % ....................... 302 GRFICO 12 FAIXA ETRIA DOS PARTICIPANTES DE FUNDOS DE PENSO EM %.......................................................... 308 GRFICO 13 SEXO DOS PARTICIPANTES DE FUNDOS DE PENSO EM % .................................................................... 309 GRFICO 14 SETOR DO EMPREGO DOS PARTICIPANTES DE FUNDOS DE PENSO EM % ................................................ 310 GRFICO 15 NMERO DE ANOS DE ESTUDO DOS PARTICIPANTES DE FUNDOS DE PENSO EM %.................................... 311 GRFICO 16 NATUREZA DA POSIO NA OCUPAO DOS PARTICIPANTES DE FUNDOS DE PENSO EM % ......................... 312 GRFICO 17 RENDIMENTO MENSAL FAMILIAR MDIO DOS PARTICIPANTES DE FUNDOS DE PENSO EM REAIS ................... 312 GRFICO 18 PERCENTUAL DE SINDICALIZAO ENTRE OS PARTICIPANTES DE FUNDOS DE PENSO EM % ......................... 313 GRFICO 19 TAXA SELIC ENTRE 1996 E 2009 (MDIAS ANUAIS EM %) ................................................................. 349 GRFICO 20 JUROS NOMINAIS EM RELAO AO PIB* - EM % ................................................................................ 350 GRFICO 21 DESPESA TOTAL E SUPERVIT PRIMRIO DO GOVERNO EM % DO PIB .................................................... 351 GRFICO 22 EVOLUO DO DESEMBOLSO DO BNDES EM BILHES DE REAIS ........................................................... 352 GRFICO 23 FORMAO BRUTA DE CAPITAL FIXO NO BRASIL EM % DO PIB ............................................................ 353 GRFICO 24 INVESTIMENTOS DAS EMPRESAS ESTATAIS FEDERAIS TOTALIZADAS NO ANO, 1995-2009 EM BILHES DE REAIS 354 GRFICO 25 NMERO DE SERVIDORES ATIVOS DO EXECUTIVO FEDERAL .................................................................... 355 GRFICO 26 EVOLUO DO SALRIO MNIMO REAL EM REAIS .............................................................................. 356 GRFICO 27 EVOLUO DO VALOR DE REPASSE DOS BENEFCIOS DE PROGRAMAS FEDERAIS DE TRANSFERNCIA DE RENDA EM BILHES DE REAIS ................................................................................................................................. 357 QUADRO 1 - SISTEMAS DE FINANCIAMENTO EM PERSPECTIVA COMPARADA.................................................................... 71 QUADRO 2 - PADRES NACIONAIS DE FUNDING ....................................................................................................... 82 QUADRO 3 REGIMES PREVIDENCIRIOS EUROPEUS .............................................................................................. 113 QUADRO 4 - PROBABILIDADES DE ESTABELECIMENTO DE SISTEMAS PREVIDENCIRIOS PBLICO/ESTATAIS AMPLOS E ROBUSTOS, CONSIDERANDO-SE A IDEOLOGIA E A POTNCIA DO SINDICALISMO NACIONAL ....................................................... 151 QUADRO 5 A ELITE SINDICAL E POLTICA DOS FUNDOS DE PENSO, NOMES, ATUAO E TRAJETRIA POLTICA..................... 236 QUADRO 6 RANKING DOS INVESTIMENTOS DAS 10 MAIORES EFPCS........................................................................ 266 QUADRO 7 LIMITES LEGAIS DE APLICAO DE RECURSOS DOS FUNDOS DE PENSO EM % ........................................... 267 QUADRO 8 SITUAO DO RPPS E DO RGPS ANTES DA REFORMA DE 2003 .............................................................. 299 QUADRO 9 MODALIDADES NACIONAIS DE ORGANIZAO SOCIAL E ECONMICA DO CAPITALISMO ................................... 323 TABELA 1 - TAXAS MDIAS DE DESEMPREGO POR PERODO EM % .............................................................................. 38 TABELA 2 - MONTANTES DE ATIVOS DE FUNDOS DE PENSO E SEU PESO NO PIB EM 1999 E 2009 ................................... 64 TABELA 3 EMISSES PRIMRIAS E SECUNDRIAS REGISTRADAS EM BILHES DE REAIS ................................................. 281 TABELA 4 SALDOS PREVIDENCIRIO, OPERACIONAL E FINAL DO RGPS ENTRE JAN. E JUN. DE 2010 EM R$ ...................... 304 TABELA 5 TOTAL (ABSOLUTO E RELATIVO) DE CONTRIBUINTES DE FUNDOS DE PENSO EM 2002 E 2007 .......................... 308 TABELA 6 COR DOS PARTICIPANTES DE FUNDOS DE PENSO EM % ........................................................................ 310 TABELA 7 RAMO DE ATIVIDADE EM QUE ATUAM OS PARTICIPANTES DE FUNDOS DE PENSO EM % ................................ 311 TABELA 8 VALORES MDIOS DOS BENEFCIOS PREVIDENCIRIOS PAGOS POR FUNDOS DE PENSO EM REAIS ...................... 314

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IntroduoO tema de pesquisa deste trabalho so as relaes existentes entre os fundos de penso e o meio sindical, concentrando-se de modo mais detalhado no perodo correspondente ao Governo de Lus Incio Lula da Silva. A vitria de Lula nas eleies presidenciais de 2002 significou a ascenso, ao poder central, do Partido dos Trabalhadores (PT) e de sua principal base social e sindical, expressa pela Central nica dos Trabalhadores (CUT). O triunfo do PT e da CUT, por sua vez, ocorre em uma conjuntura internacional cujas caractersticas estruturais vm sendo estabelecidas a partir dos anos de 1970. Tais caractersticas ou pilares estruturais expressam um amplo e profundo processo de transformaes ocorridas no sistema capitalista mundial, as quais se desdobram em efeitos que impactam, de modos e graus diversos, o conjunto de economias e sociedades nacionais, bem como suas dimenses constitutivas (social, poltico-institucional, terico-ideolgica, cultural, econmica). Considera-se aqui que estes pilares estruturais so basicamente trs: a financeirizao da economia ou mundializao financeira; a liberalizao das relaes econmicoprodutivas ou de seus marcos legais ou regulatrios; e a flexibilizao do processo e das relaes de trabalho. Tomam-se os trs pilares como fenmenos que se condicionam mutuamente, e que em seu rastro produzem uma reinveno da dinmica geral capitalista, a qual, embora preserve sua essncia secular, assume um formato que pode ser tomado como perodo histrico particular. Como j fartamente analisado por perspectivas tericas diversas, este conjunto de transformaes parece ter tido incio na dcada de 70, a partir de uma crise geral do sistema capitalista composta por fatores estruturais e conjunturais. Em termos muito genricos, parece razovel afirmar que o capitalismo, entre 1945 e os anos 70, havia se notabilizado pela emergncia, em importncia e poder, da figura do Estado. Este, alm de garantir as condies mnimas de funcionamento do mercado o que caracterizaria uma interveno negativa sobre o mercado e a sociedade civil em seu entorno , assumiu a condio de interventor direto, na forma de investidor e dirigente (ainda que de formas e contedos 7

diversos, relativos s peculiaridades do capitalismo em suas conformaes nacionais) do processo econmico-produtivo, bem como de regulamentador ativo do conjunto de relaes sociais em mbito extra-mercado. Nesta tese assumem-se, como pressupostos das transformaes sociais, polticas, econmicas e terico-ideolgicas ocorridas a partir dos anos 70, a emergncia das classes trabalhadoras como fator de poder nas sociedades capitalistas, e problemas de reproduo do prprio capital em sua conformao geral estatista/planejada. Na verdade, ambos os fatores teriam provocado uma crise de hegemonia do capital1, que o sujeitou a questionamentos diversos de extensas parcelas de indivduos e grupos sociais que o reproduziam cotidianamente. O ciclo de transformaes supramencionadas se inscreveria em um movimento geral de recomposio da hegemonia capitalista, ainda que no expressem apenas os intentos dos representantes sociais do capital, pois tambm correspondem efervescncia da crtica e do inconformismo de outros grupos sociais (trabalhadores, mulheres, jovens, minorias diversas, movimentos sociais etc.) com o cotidiano a que se submeteram nos Trinta Gloriosos ou na Era de Ouro do capitalismo. importante fazer esta ressalva. Embora esta tese se debruce sobre a anlise das transformaes enfocando a perspectiva do capital, no se deve ignorar a importncia central da perspectiva de outros sujeitos sociais no processo. Tambm eles, alm dos representantes do status quo da sociedade da mercadoria, levantaram-se contra a ordem de ento. Este fato no pode ser ignorado, sob pena de se reduzir a infinidade de movimentos operados pelos diversos sujeitos a uma dinmica de natureza estrutural-funcionalista, pela qual ocorreria uma pura orquestrao operada a partir do alto, das classes dominantes fiis lgica da valorizao do valor. Ou seja, as transformaes aqui analisadas no se inscrevem apenas nos parmetros correspondentes ao imperativo do valor, ou da lgica da reproduo social da formamercadoria. Elas ultrapassam a condio de serem apenas decorrncia de imperativos de natureza econmica, pois incorporam tambm outras perspectivas e outras demandas

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Entendendo-se, por hegemonia, simplesmente a capacidade que uma formao scio-histrica particular teria de garantir as condies materiais e ideolgicas para sua auto-reproduo. Daquelas deriva a organizao geral do processo produtivo, e destas derivam nveis gerais de consentimento ou de aceitao social da primeira, expressos pelas formas predominantes de conscincia cultural, poltica, terico-ideolgica etc.

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(crtica dos costumes, inconformismo diante da asfixia determinada pela lgica da vida administrada, burocratizada, hierarquizada, etc.). A insistncia neste ponto justifica-se por conta da prpria necessidade de compreender ou interpretar mais adequadamente os fenmenos empricos da realidade observada. Ignor-lo implica o risco de se recair em interpretaes reducionistas entre as quais estaria, por exemplo, o entendimento de que as aes dos sujeitos nos contextos social, econmico e poltico seriam mera expresso de sua rendio aos valores e prticas socialmente dominantes. Feita esta ressalva, retomemos a exposio geral do contexto histrico e das maneiras pelas quais se pretende apreend-lo. No obstante as motivaes dos diversos sujeitos sociais presentes na evoluo histrica recente, consideraremos especialmente a ordem de transformaes correspondentes s aspiraes postas pela perspectiva do capital, inclusive por serem estas obviamente predominantes em uma dinmica tipicamente capitalista. Na esteira da financeirizao, da flexibilizao e da liberalizao, ganham relevo as formas de reproduo do capital que colocam em causa a posio do Estado neste processo. De sua crtica fundamental, ressurgem com fora valores e prticas alinhadas com o iderio liberal. O mercado deve ser realado condio de mecanismo scio-regulador por excelncia, devendo ser restringidas quaisquer modalidades de interveno extramercado. A organizao flexvel deve assumir o lugar do burocratismo engessante, a liberdade (econmica) do indivduo deve assumir o lugar das restries prprias das instncias coletivas. E as finanas livres, lquidas e hipertrofiadas devem irrigar este novo arranjo, fazendo florescer dele a prosperidade econmica e social. As formas concretas de reproduo do capitalismo mais prximas do ideal acima descrito so as do mundo anglo-saxo, com seus mercados de trabalho flexveis, Estados sociais restritos e poderosos sistemas financeiros privados, considerados ao mesmo tempo como termmetros da mquina produtora de riquezas e combustvel da mesma. Do mundo anglo-saxo vm os fundos de penso, que se pretendem uma sntese entre Estado de contas equilibradas, benefcios sociais e financiadores do desenvolvimento econmico. Paralelamente a isso, a deteriorao dos mercados de trabalho e dos mecanismos estatais de seguridade social coloca a classe assalariada e suas instncias representativas em posio defensiva. Com uma margem de manobra estreitada pela conjuntura adversa, e 9

tambm alvos do novo ambiente cultural e ideolgico que d cobertura aos avanos dos trs pilares, os sindicatos buscam alternativas concretas de atuao, em substituio ou adio s suas prticas tradicionais. Neste caminho, encontram os fundos de penso, reservatrios de recursos oriundos da classe trabalhadora e formalmente destinados garantia de sua vida aps o perodo laboral. Tendo os fundos de penso como pauta adicional em sua agenda, os sindicatos se vem diante de um conjunto de novas formas de atuao. Dada a caracterstica dos fundos de serem investidores institucionais, aparentemente eles seriam uma via de acesso a outros campos de interveno, como a gesto das empresas e a inverso de recursos para investimentos produtivos, e, portanto, interessantes para uma classe que vive do trabalho (Antunes, 1995, 2000) particularmente sensibilizada pela escassez de empregos e de renda. Na particularidade brasileira, o campo de poder majoritrio na Central nica dos Trabalhadores assumir a dianteira neste processo de aproximao dos fundos de penso, e da converso dos mesmos em bandeira de luta. J presentes nos conselhos de fundos pelo voto de seus participantes, a vitria do Partido dos Trabalhadores presidncia da Repblica oferece a oportunidade sem precedentes de se avanar naquele intento original, dadas as particularidades dos fundos de penso brasileiros.

Percurso metodolgico A pesquisa foi estruturada metodologicamente em dois grandes eixos. Por um lado, considerou-se necessrio apreender o objeto realizando-se a uma investigao das experincias internacionais envolvendo as relaes entre sindicatos e fundos de penso, a fim de realizar estudos comparados com a experincia brasileira. Por outro lado, as relaes entre sindicalismo e fundos foram entendidas como uma realidade composta por trs dimenses: 1) econmica (o papel dos fundos de penso no desenvolvimento econmico e social nacional); 2) poltica (os fundos de penso como fator de fortalecimento do poder sindical); e 3) social (o papel dos fundos de penso na proviso de direitos previdencirios). Perpassando os dois eixos estruturais do trabalho, foram realizados estudos e levantamentos historiogrficos, fundamentais no processo de elaborao de proposies tericas que objetivassem identificar e explicar aproximadamente a existncia de dinmicas de funcionamento relativas aos fenmenos aqui observados. 10

A tese estrutura-se em duas partes. Na primeira sero enfocadas as transformaes sociais, polticas e econmicas operadas no capitalismo contemporneo, a emergncia dos fundos de penso e as novas formas correspondentes de atuao do sindicalismo, em perspectiva internacional. E na segunda parte ser focado o tema dos fundos de penso e do sindicalismo no Brasil, tomando-se como corte temporal exatamente a conjuntura representada pelos dois governos de Lula. A primeira parte desdobra-se em quatro captulos. O primeiro discorre sobre as transformaes ocorridas no capitalismo ao longo dos ltimos trinta ou quarenta anos. Sero apresentados os pilares desta nova ordem, a saber, a flexibilizao, a liberalizao e a financeirizao. Tambm neste captulo ser feito um levantamento analtico relativo s motivaes das foras representativas do capital em impulsionar aqueles fenmenos, bem como as implicaes sobre os planos econmico-produtivo, laboral e poltico-institucional. Ao final deste captulo, uma reflexo devida particularmente importncia do pilar da financeirizao na dinmica macroeconmica. O segundo captulo discute, em mbito internacional, a origem e importncia dos fundos de penso no capitalismo contemporneo, apresentando seus fatores de crescimento e definies bsicas. Como, por outro lado, a emergncia dos fundos de penso caminha paralelamente expanso de uma determinada forma geral de organizao do capitalismo o modelo anglo-saxo , considerou-se necessrio incorporar tambm a discusso em torno das diversas variedades de capitalismo e correlatos sistemas nacionais de financiamento. Por fim, feita uma anlise sobre o papel dos fundos de penso na questo do desenvolvimento econmico. O terceiro captulo nos levar a outra ordem de questes postas pela emergncia dos fundos de penso: o tema da previdncia social. Em seu caminho, como ser visto, os fundos de penso correm em paralelo ao debate em torno da reforma dos sistemas de previdncia nacionais, os quais remetem, em ltima anlise, ao questionamento dos Estados de Bem-Estar Social. Foram selecionadas algumas experincias internacionais de reforma da previdncia, bem como as posturas do sindicalismo frente a elas, nos seguintes pases: Frana, Alemanha, Itlia, Sucia, Estados Unidos e Chile. Os quatro primeiros pases foram selecionados por exibirem amplos e generosos sistemas pblico-estatais de previdncia, ainda que difiram entre si quanto anatomia dos mesmos. No obstante, todos possuem 11

fortes movimentos sindicais, tendo sido interessante levantar como cada um deles se portou no processo de reformas. Tambm forte o movimento sindical norte-americano, embora dotado de um iderio poltico-ideolgico significativamente distinto de seus pares europeus, o que por sua vez leva existncia de uma outra ordem de coisas neste pas. E o Chile foi selecionado por apresentar uma experincia radical de reforma previdenciria, que ocorreu, no por acaso, em um contexto de fortssima represso governamental ao sindicalismo e aos demais movimentos sociais. O final do captulo traz uma reflexo terica de natureza geral acerca do papel do sindicalismo no apenas no contexto histrico de reformas do sistema, mas da prpria constituio do mesmo. O captulo 4 ocupa-se em discutir os novos campos de atuao do sindicalismo por intermdio de sua aproximao com os fundos de penso. Trata-se do universo empresarial, expresso nos campos da governana corporativa e dos mercados acionrios. Assim, conceitos o de governana corporativa e ativismo acionarial sindical, ao entrarem na agenda sindical por conta de seu envolvimento com os fundos de penso, mereceram um espao de anlise neste trabalho. Da a abordagem de modelos nacionais diversos de governana corporativa e como os fundos de penso interagem com os mesmos. E, na segunda metade do captulo colocada em foco a questo do ativismo acionarial sindical. O levantamento de experincias existentes no plano internacional, notadamente Estados Unidos e Austrlia (e em menor grau no Reino Unido), e a consequente descoberta de importantes diferenas entre elas, levou proposio de uma tipologia dos modelos de ativismo acionarial sindical. No captulo 5, j adentrando a segunda parte da tese, inicia-se a discusso dos fundos de penso e do sindicalismo no contexto brasileiro. A partir de um breve histrico dos fundos de penso nacionais, ser enfocado tambm o ciclo de reformas previdencirias promovido pelos governos FHC e Lula. Particularmente em relao a este ltimo, ser levantada a trajetria de envolvimento do sindicalismo nacional principalmente o sindicalismo-CUT com os fundos de penso. A seguir, apresenta-se a aparente estratgia geral do Governo Lula relativa aos fundos. Por fim, feita uma reflexo terica em torno da questo do proprietrio da previdncia privatizada, em cuja raiz estariam os fundos de penso, sugerindo-se a noo de interseco de classes como conceito capaz de se apreender analiticamente o fenmeno em destaque. 12

O captulo 6 traz uma apreenso da temtica dos fundos de penso nacionais em trs perspectivas ou dimenses: econmica, poltica e social. Na dimenso econmica ser descrita a situao atual dos fundos de penso brasileiros e temas correlatos: a regulao dos investimentos dos fundos; o modelo brasileiro de capitalismo e seus padres de financiamento; e a liberalizao e desenvolvimento do mercado de capitais nacional. Na dimenso poltica ser tratada a relao entre fundos de penso e campos de atuao do sindicalismo, fazendo-se necessria uma referncia ao tema da governana corporativa no Brasil e s possibilidades de ampliao da influncia sindical sobre os prprios fundos. Por dimenso social ser denominada a faceta propriamente previdenciria dos fundos de penso, tomados aqui em sua atividade-fim a proviso de benefcios previdencirios. Sero apresentadas estatsticas sobre o sistema previdencirio brasileiro, bem como um perfil socioeconmico dos participantes tpicos da previdncia complementar brasileira. Por fim, no ltimo captulo pretende-se a partir da recuperao de dados levantados e anlises realizadas nos captulos anteriores enfrentar a questo referente s mudanas potenciais do capitalismo brasileiro e os possveis papis a serem desempenhados pelos fundos de penso neste processo. Tratar-se- das possibilidades abertas pelo Governo Lula no uso dos fundos de penso para promover o desenvolvimento social e econmico. Para tanto, inicialmente feito um debate terico sobre as noes de mercado liberal e mercado coordenado, as quais apontariam para distintos modos de se conceber um projeto de desenvolvimento. A seguir, enfoca-se o Governo Lula e seus limites enquanto uma alternativa liberalizao, considerando-se conforme sustentado por esta pesquisa a existncia de uma cultura poltica anti-estatista recorrente nas direes cutistas e petistas. Tal caracterstica teria um papel importante no fato de inexistir um projeto estratgico capaz de integrar, de modo articulado e coeso, as aes do Estado, resultando em polticas contraditrias e na convivncia, no mesmo Governo, de orientaes terico-ideolgicas dspares. A partir do levantamento da face heterodoxa da gesto macroeconmica do Governo Lula, faz-se um levantamento dos investimentos social e produtivamente relevantes dos fundos de penso, bem como de contra-exemplos que demonstrariam a complexidade e as ambigidades presentes neste plano. O levantamento dos contra13

exemplos foi restrito s carteiras de investimentos dos dois maiores fundos brasileiros, Previ e Petros. E, no final do captulo, feita uma reflexo em torno do aspecto previdencirio dos fundos de penso, em que se discutem as implicaes potenciais trazidas pela introduo dos fundos de penso como complemento obrigatrio do sistema pblico de previdncia. Com o fundo de penso ocupando-se simultaneamente de prover recursos para a atividade econmica e benefcios previdencirios, discutem-se os riscos de se confundir ou de se inverter as prioridades a serem satisfeitas por um fundo de penso. Dado que os fundos de penso, observados por este prisma, ensejam perspectivas e interesses especficos a saber, do meio sindical, das empresas patrocinadoras, dos participantes e assistidos, e do governo , ser feita uma exposio do quadro de disputas existentes entre estes agentes, tomandose o caso emprico da Previ e da Petros. Para a realizao da pesquisa foram utilizados os seguintes recursos metodolgicos: 1) Pesquisa bibliogrfica. Trata-se do recurso produo de estudos historiogrficos, sociolgicos, econmicos e da cincia poltica referentes s temticas do sindicalismo, dos fundos de penso, do Estado de Bem-Estar Social contemporneo, da financeirizao da economia internacional e do

desenvolvimento econmico em contextos nacionais. 2) Pesquisa relativa ao objeto emprico mesmo. A coleta de dados constitutivos do objeto em questo compreende o levantamento de documentos referentes ao universo dos fundos de penso brasileiros, com dados estatsticos ou quantitativos referentes aos objetivos desta pesquisa. Tais documentos sero coletados nos bancos de dados de instituies ou agncias governamentais voltadas para o campo dos fundos de penso (ANAPAR2, ABRAPP3, SPC, MPS4, Ministrio da Fazenda etc.). Documentos produzidos pelo Partido dos Trabalhadores, Governo federal e Central nica dos Trabalhadores, alm de sindicatos envolvidos na temtica dos fundos, associaes de participantes e beneficiados (aposentados e pensionistas) dos fundos de penso, tambm sero incorporados ao material de anlise. No ltimo caso (sindicatos e associaes de participantes de fundos de2 3

Associao Nacional dos Participantes de Fundos de Penso. Associao Brasileira das Entidades Fechadas de Previdncia Complementar. 4 Ministrio da Previdncia Social.

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penso), optou-se por uma coleta restrita aos dois maiores fundos de penso nacionais, Previ (fundo de penso dos funcionrios do Banco do Brasil) e da Petros (fundo de penso dos funcionrios da Petrobras, empresas subsidirias e outras). Foram realizadas entrevistas com conselheiros da Petros e tambm de outro fundo, a Funcespe (fundo de penso dos funcionrios de empresas do setor energtico paulista), com o objetivo de comparar as impresses entre si e em relao s descobertas feitas na pesquisa documental.

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CAPTULO 1 As transformaes do capitalismo contemporneo

Introduo Os esforos

empreendidos

na

tentativa

de

compreenso

do

capitalismo

contemporneo produziram, nos campos da sociologia do trabalho, da economia e da cincia poltica, um amplo conjunto de anlises. Muitos destes trabalhos, ao fixarem, para tais anlises, um ponto de partida situado entre os anos 60 e 70 do sculo XX, desenvolveram-se em trs frentes, as quais corresponderiam aos trs grandes pilares em torno dos quais teria se estruturado a dinmica do capitalismo mundial na atualidade, quais sejam, os fenmenos da flexibilizao dos processos de trabalho, da liberalizao econmica e da financeirizao da economia mundial. No tendo qualquer pretenso em esgotar qualquer dos trs fenmenos, o objetivo deste captulo ser descrev-los, bem como sugerir a existncia de relaes necessrias entre eles, investigando as formas como os trs pilares comunicam-se entre si. Ser desenvolvida a hiptese segundo a qual financeirizao, flexibilizao e liberalizao estabeleceriam uma espcie de simbiose entre si, e, assim, tentar-se- descobrir como as dinmicas internas de cada fenmeno condicionam-se mutuamente, permitindo uma compreenso mais abrangente e completa do capitalismo atual e de seus efeitos. deste modo que se buscar caracterizar os trs fenmenos como constituintes do capitalismo nos ltimos 30 anos. Este captulo subdivide-se em quatro itens. Primeiramente ser feito um breve resgate do contexto histrico do fim dos anos dourados do capitalismo, considerado como ponto de partida das transformaes no mbito da organizao produtiva, da economia e da institucionalidade poltica. A segunda parte dissertar, tambm sucintamente, sobre o processo de constituio dos trs fenmenos. A terceira parte abordar a simbiose existente entre a ortodoxia liberalizante, os paradigmas produtivos flexveis e a dimenso especulativo-financeira. Esta simbiose ser enfocada em funo dos condicionantes e 17

implicaes polticas presentes nas transformaes econmica e poltico-institucional, visando-se o restabelecimento de uma normalidade social traduzida pelo fortalecimento da hegemonia dos valores e da lgica econmica capitalista. Por fim, far-se- um dilogo entre distintas concepes tericas acerca da presena do capital financeiro na dinmica econmica atual, aproveitando-se o ensejo para tecer uma reflexo acerca da utilidade (ou no) do capital especulativo/financeiro dinmica econmico-produtiva. 1. Breve panorama do contexto econmico e poltico no fim dos anos dourados O perodo compreendido entre o trmino da II Guerra Mundial e o fim dos anos 60 geralmente lembrado como o perodo dos anos dourados do capitalismo, dados a grande recuperao e expanso econmica que se irradiava dos pases centrais, a elevao da produtividade e da renda e os altos ndices de lucratividade e de acumulao de capital. Vigoravam, especialmente no mundo desenvolvido, formas diversas do binmio geral keynesianismo-fordismo, na conformao econmico-produtiva e poltico-estatal. O taylorismo-fordismo, como organizao determinada do processo de trabalho, predominava na indstria de montagem5, e seus princpios organizacionais espraiavam-se para dimenses diversas da sociedade. Como parte do modo de vida fordista, tornou-se igualmente importante o Estado interventor, resultado histrico tanto do fracasso do liberalismo econmico em definir a natureza das relaes entre Estado e mercado no que foi superado, ao longo das dcadas de 1930 e 1940, pelo pensamento econmico keynesiano , quanto do avano poltico das foras reformadoras do proletariado a socialdemocracia. Nestes termos, o Estado atuava nos moldes da teoria econmica keynesiana ou seja, em busca do fomento demanda efetiva, regulamentava a ao do capital de modo a permitir e garantir patamares de lucratividade seguros. Ao mesmo tempo, era um agente garantidor do acesso cada vez maior dos trabalhadores aos bens coletivos bsicos (educao, sade, etc.) e ao mercado de consumo, dada a elevao tendencial das rendas do trabalho. Por fim, reprimia a ao de

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O termo indstria de montagem se refere aos setores em que o trabalho manual elemento central no processo produtivo. Utilizamos como sinnimo de processos produtivos de natureza discreta, entre os quais se destaca a indstria metal-mecnica (Moraes Neto, 1989).

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movimentos operrios anticapitalistas, reafirmando, a, seu compromisso original bsico de defesa da ordem social capitalista.6 A crise deste padro de acumulao ter incio no fim da dcada de 60, intensificada por fatores conjunturais as crises do petrleo , mas dada principalmente por fatores estruturais. Conforme Bihr (1999) h uma crise de acumulao do capital, no final dos anos 60 e incio dos anos 70, em que devem ser observados quatro fatores fundamentais: 1) a diminuio dos nveis de produtividade, para a qual contriburam fatores tcnicos o aprofundamento das tcnicas tayloristas-fordistas era cada vez mais difcil, limitando sobremaneira a fluidez e a flexibilidade do processo laboral quanto sociopolticos a ocorrncia de uma verdadeira revolta operria, na forma de faltas ao servio, greves, sabotagens, etc., contra a intensificao do trabalho; 2) a elevao da composio orgnica do capital, ou seja, da relao entre a massa do trabalho morto matrias-primas e meios de trabalho e a do trabalho vivo fora de trabalho que aquele mobiliza; 3) a saturao da norma social de consumo, na forma da saturao relativa do consumo de certos bens durveis, e da elevao dos custos dos bens e benefcios coletivos; 4) e o desenvolvimento do trabalho improdutivo, do conjunto de despesas devidas s condies sociais, institucionais e ideolgicas da reproduo do capital. O conjunto destes quatro fatores ir provocar uma reduo da taxa mdia de lucro, limitando a valorizao do capital. Polemizando com a viso que entende a crise do fordismo como expresso de uma crise de superproduo, para Lipietz (apud Druck, 1999) o final dos anos 60 assistiria, na verdade, a uma crise de rentabilidade. Esta se manifestaria na queda nos ndices de produtividade conjugada com os aumentos reais dos salrios, obtidos pela presso sindical, o que provoca a elevao nos custos de capital fixo. No entanto, ainda que tal fenmeno tenha ocorrido, no anula a possibilidade de ser ele prprio entendido como elemento agravante ou desdobramento de uma crise de superproduo, uma vez que esta argumentao de Lipietz no explica o que teria levado queda de produtividade, e sim6

O binmio keynesianismo-fordismo, assim apresentado em linhas muito breves, domina no s o conjunto de pases centrais como tambm se manifesta, em variantes e com nfases diversas, em boa parte dos pases capitalistas existentes como demonstram a existncia de experincias como o nacional-desenvolvimentismo em alguns pases perifricos , e tambm em boa parte dos pases ento submetidos rbita da Unio Sovitica, em que chamam a ateno os processos de industrializao tipicamente fordistas, bem como a infalvel presena do Estado nas mais diversas instncias da vida scio-econmica. Em relao especificamente socialdemocracia, o captulo 3 trar um maior aprofundamento deste tema, quando for abordado o processo de tentativa de reforma dos sistemas estatais de bem-estar social europeus.

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parte desta constatao para identificar a crise de rentabilidade do capital. A produtividade do trabalho, obtida graas ao desenvolvimento tecnolgico e intensificao fordista prpria do Welfare State, propiciou um salto na produo, que, para ser acompanhado na ponta da realizao do valor de troca, exigiria um crescente mercado consumidor. Este crescimento, por sua vez, demandaria a incorporao do trabalho vivo, movimento este que, alm de ser contrrio tendncia histrica do capitalismo, encontrou limites nos fatores lembrados por Bihr, anteriormente mencionados. Como reao ao aumento dos custos, segundo o prprio Lipietz (apud Druck, 1999), a sada foi tentar elevar as margens de lucro atravs do aumento dos preos de venda, o que ocasionaria inflao. J nos anos 70, a elevao de preos ultrapassava a elevao dos salrios, e a conseqente queda do poder aquisitivo conduziu diminuio da demanda, desnudando, assim, a crise de superproduo. Para Harvey (1996), a rigidez que caracterizava o regime de acumulao fordista rigidez em investimentos, nos mercados, na alocao e nos contratos de trabalho, dos compromissos assumidos pelo Estado, que presumiam taxas estveis de crescimento e mercados e realidades macroeconmicas invariantes, elementos cada vez menos provveis com o aumento da crise , de condio para um crescimento estvel passou a ser um entrave ao movimento do capital. Europa e Japo, recuperados economicamente, atingiram a saturao de seus mercados internos e passaram a dar impulso extra s exportaes. A diferena entre os gastos estatais crescentes e sua captao de recursos em queda acabava provocando uma espiral inflacionria, pois o Estado era obrigado a emitir cada vez mais moeda a fim de cobrir seus dficits oramentrios. No obstante, a formao do Euromercado (mercado do eurodlar), bem como a industrializao fordista de diversos pases em desenvolvimento, acirrando a competio internacional, acabaram por colocar em xeque o poder de regulamentao do sistema financeiro mundial, ancorado no acordo de Bretton Woods. As corporaes viram-se com muita capacidade produtiva ociosa, e num momento em que a competio se intensificava, entraram num perodo de reestruturao e racionalizao da produo, bem como de intensificao do controle e explorao do trabalho. A mudana tecnolgica, o avano da automao, a busca de novas linhas de produto e nichos de mercado, a disperso geogrfica a fim de buscar um maior controle

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sobre o trabalho e as fuses de empresas firmam-se como estratgias vitais sobrevivncia das corporaes. 2. Os pilares da nova ordem capitalista: flexibilizao, liberalizao e financeirizao Ao destacar a emergncia da flexibilizao, da liberalizao e da financeirizao como sendo os pilares em torno dos quais se constitui a nova conformao do sistema capitalista mundial, no este o lugar para uma investigao exaustiva de cada um dos trs temas, o que fugiria aos propsitos mais modestos deste trabalho. Pretende-se, neste item, to somente destacar algumas caractersticas essenciais dos trs fenmenos, caractersticas estas que possam ser alinhavadas de modo a se apresentar, mais adiante, uma viso geral ou abrangente do capitalismo atual.

Flexibilizao Com a crise do fordismo inicia-se a era dos novos processos de trabalho, que, sempre em funo de melhor adequar a produo lgica econmica capitalista, buscam recuperar os antigos patamares de produtividade e lucratividade (Antunes, 2000). A flexibilizao dos processos de trabalho, ainda que no houvesse substitudo inteiramente o fordismo, expande-se em modos e graus diversos. Para Harvey (1996), a acumulao flexvel apresenta-se como uma contestao do capital rigidez que havia assumido quando se reproduzia segundo o modelo fordista, e caracteriza-se pela flexibilizao dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padres de consumo. Algumas reas industriais passam a funcionar segundo processos produtivos distintos dos moldes tradicionais fordistas-tayloristas, como as experincias da Terceira Itlia, do sul da Alemanha, do Vale do Silcio nos Estados Unidos, da regio sueca de Kalmar e do toyotismo japons. Estas, se no chegam a substituir completamente a experincia fordista-taylorista, retiram-lhe o carter de padro nico de organizao produtiva. Nestas regies ensaiam-se modalidades de

desconcentrao industrial e novos padres de gesto da fora de trabalho. Entre as experincias da acumulao flexvel, o toyotismo ou ohnosmo (elaborado em seus princpios originais por Taichi Ohno, engenheiro e vice-presidente da fbrica de automveis Toyota) foi a que causou o maior impacto, pela propagao de alguns de seus 21

pontos bsicos ou por sua expanso pura e simples em escala mundial. Antunes (1995) destaca alguns elementos fundamentais do toyotismo: produo orientada estritamente segundo a demanda, prevendo o estoque mnimo; o just in time garante o melhor aproveitamento possvel do tempo de produo; o kanban7 largamente utilizado; o trabalhador multifuncional, e o trabalho em equipe; e a horizontalizao origina as modalidades de trabalho terceirizadas, com custos salariais rebaixados. O salto tecnolgico, que invade o universo fabril, orientado tanto para eliminar postos de trabalho quanto para intensificar a explorao do trabalho daqueles que ainda permanecem na empresa. A intensificao do trabalho ultrapassava seus prprios limites anteriores. Exemplos disso so a substituio da relao um homem/uma mquina para a relao uma equipe/um sistema (no qual cada indivduo opera em mdia cinco mquinas) e o gerenciamento by stress, que fora uma elevao constante do ritmo de produo (Gounet, 1999). A poltica bsica sempre usar o mnimo de trabalhadores e o mximo de horas de trabalho por trabalhador. A flexibilizao dos processos de trabalho caminha paralelamente s tentativas de flexibilizao das relaes de trabalho, entre as quais a flexibilizao da remunerao, da alocao/contratao e da jornada de trabalho, o que se inscreve, no plano institucional, no retorno do liberalismo, o que ser abordado a seguir.

Liberalizao Ao lado das presses oriundas da dimenso produtiva que exigem maior flexibilizao dos processos e das relaes de trabalho, a emergncia do liberalismo se inscreve tambm no contexto de crise do keynesianismo e do sistema estatal, tipicamente socialdemocrata, de proteo social. Como se sabe, o iderio liberal caracteriza-se, em geral, por uma crtica agressiva interveno do Estado na economia, no que procura demonstrar a superioridade do mercado e do mecanismo concorrencial frente ao estatal. 8 A crise econmica mundial que se d7 8

Placas ou senhas de comando para reposio de peas e de estoques (Antunes, 2000, p. 54). Analisando o ressurgimento do pensamento liberal, Rosanvallon (1997) destaca que sua fora, tendo adquirido ares de uma doutrina de crtica social, adviria do fato de que os novos liberais (Friedrich Hayek, Milton Friedman, John Willianson, etc.) passaram a reconhecer o carter relativo de sua doutrina. No procuram mais descrever o mercado como perfeito ou ausente de falhas, e tampouco a gerncia concorrencial como absolutamente melhor do que a gerncia estatal. Buscam reiterar apenas que as falhas do mercado so

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no fim dos anos 60 e no incio dos 70 ser apresentada como decorrente de falhas inerentes ao Estado-providncia. Por um lado, argumentam os liberais, os sistemas estatais de bemestar teriam se constitudo como fatores desestimulantes aos que vivem do trabalho, pois estes, tendo garantido o acesso a mecanismos estatais de proteo social, no veriam razo para intensificar seu ritmo de trabalho e reafirmarem sua laboriosidade. Por outro lado, a interveno estatal na economia, ao tentar substituir o mercado como agente alocador, teria promovido uma alocao de recursos ruim, permitindo o funcionamento de capitais de baixa rentabilidade. A crtica liberal ao Estado-providncia sintetizada nos seguintes termos por Gomes (2000):Nega-se o intervencionismo estatal sancionado na poltica econmica keynesiana e nas instituies de bem-estar. Essa negao parte da argumentao que o intervencionismo negativo por vrios motivos: por provocar crise fiscal, por desestimular o capital a investir e o trabalhador a trabalhar, de levar a um monoplio estatal e defesa dos interesses de grupos produtivos organizados. O intervencionismo tambm passou a ser apontado como ineficiente por no eliminar a pobreza e at mesmo agrav-la atravs da abolio das tradicionais formas de proteo social (Gomes, 2000, p. 53).

Dentro deste esprito de recuperao dos princpios originais do liberalismo, abre-se um leque de crticas aos direitos sociais e trabalhistas existentes. Os altos custos do trabalho, representados por encargos sociais e trabalhistas, devem ser diminudos ou eliminados em nome da eficincia e da produtividade. De acordo com Antunes (1999, p. 72), as novas formas de produo trazem desdobramentos no que diz respeito aos direitos do trabalho, os quais seriam desregulamentados, flexibilizados, de modo a dotar o capital do instrumental necessrio sua nova fase. Direitos e conquistas histricas do mundo do trabalho so substitudos e eliminados do mundo da produo. Igualmente, o Estado, tido como ente muito dispendioso, o que oneraria em demasia a produo e o lucro, deve sofrer um ajuste fiscal. O ajuste, de acordo com os princpios da ortodoxia econmica neoclssica, seria uma importante evidncia de que o Estado estaria se empenhando em manter-se dentro de suas atribuies por excelncia (segurana, estabelecimento e vigilncia de regras jurdico-legais em mbitos determinados, etc.), favorecendo ao mximo o livre curso do mercado na alocao dos recursos produtivos.menores que as da burocracia, e que ele seria um alocador melhor das informaes, conhecimentos e recursos, do que o Estado.

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Analisando o pensamento liberal, h autores que o concebem como uma doutrina que seria anti-estatista apenas em fatores e situaes convenientes intensificao das taxas de rentabilidade e acumulao, como Boito Jr. (1999). E h autores para os quais o pensamento liberal, em sua reflexo sobre as relaes entre Estado e economia, mesmo paradoxal e insustentvel, como Pierre Rosanvallon9. A nosso ver, a militncia acadmicointelectual liberal, buscando combinar seus princpios com tendncias observadas na evoluo do capitalismo no ltimo quartel do sculo passado, possui motivaes e aspectos polticos, os quais sero abordados no item trs deste captulo.

Financeirizao A crise de acumulao do capital, que no mbito da organizao produtiva levou crise do fordismo, e que no mbito poltico-institucional viu o keynesianismo sofrer o assalto das polticas liberalizantes, tambm estar no cerne do fenmeno da financeirizao da economia capitalista nas ltimas dcadas do sculo XX. O fenmeno da financeirizao da economia capitalista descrito, nos termos de Chesnais (1998, p. 12), pela expresso mundializao financeira. Por mundializao financeira define-se a rede de interligaes entre os sistemas monetrios e os mercados financeiros nacionais, que resultou da liberalizao e desregulamentao adotadas inicialmente pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido, no fim da dcada de 70 e at meados dos anos 80, que foram acompanhadas pelos demais pases industrializados nos anos seguintes. A abertura interna e externa dos sistemas nacionais promoveu a emergncia de um espao financeiro mundial. Contudo, tal abertura no eliminou os sistemas financeiros nacionais, e tampouco os dissolveu em um todo homogneo. Pelo contrrio, persistiu um carter fortemente hierarquizado neste todo, com a praa financeira norte-

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Para este autor, o liberalismo clssico (Smith, Bentham, Burke, Humboldt) incorre em um paradoxo: ao elaborarem uma teoria econmica da auto-regulao do social pelo mercado, no conseguem escapar da necessidade de se instituir um Estado-protetor, que, a despeito de seu carter de mnimo, contm em si mesmo o germe da regulao poltica e da expanso de si mesma, em um movimento contraditrio com o princpio da auto-regulao pelo mercado. Por outro lado, os neo liberais, como Nozick, Buchanan e John Rawls, s conseguem escapar quela contradio do liberalismo clssico ao produzirem uma teoria do noEstado mnimo, dissolvendo totalmente o fator poltico e a subjetividade no clculo racional ou em uma lgica mecnica. Sua concepo a-sociolgica da sociedade, ao negar o social em sua dinmica contraditria e conflituosa, implicaria a supremacia plena de uma razo econmica, o que o autor v, seno como uma iluso perigosa (a utopia da razo), como uma tentativa praticamente destinada ao fracasso. Para maiores detalhes, ver Rosanvallon (1997).

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americana dominando as demais. Tambm se manteve e at se acentuou, o desenvolvimento desigual dos pases. Finalmente lembrando a terceira peculiaridade deste sistema financeiro mundial , a unidade dos mercados financeiros assegurada pelos operadores financeiros, revelando o carter econmico e institucional do fenmeno 10. Discutindo a gnese da mundializao financeira, Guttmann (1998) destaca a questo da moeda e da atividade bancria em sua caracterizao da crise econmica que levou ao incio da financeirizao. O fim da hegemonia do padro-ouro, no incio dos anos 30, levou a moeda a se libertar de seu limite metlico o lastro em ouro que impunha aos agentes econmicos uma disciplina monetria automtica , e instituiu-se a moeda de crdito, mais flexvel, e j integrada expanso do crdito no sistema bancrio. O sistema monetrio seguinte, baseado na moeda de crdito, na estruturao do sistema bancrio e na administrao/regulao direta e indireta das autoridades monetrias do Estado, foi um dos responsveis pela expanso econmica sem precedentes nos anos 50 e 60, ao orientar o crdito bancrio produtivamente, de modo a financiar dficits estatais, investimentos produtivos e as normas sociais de consumo. Este sistema de equilbrios administrados pelo Estado (Guttmann, 1998, p. 65), contudo, desgasta-se em fins da dcada de 60. A rentabilidade das empresas baixa repentinamente, causando a estagnao relativa de lucros e salrios. Novos emprstimos bancrios e reajustes de preos intensificam uma contnua criao monetria, ocasionando inflao. O processo inflacionrio, ainda que custa de uma depreciao gradativa do valor da moeda, impede a macia destruio de capital, mas dar origem a conflitos na relao entre capital industrial e capital financeiro. Enquanto os preos dos produtos industrializados aumentavam, caam os preos dos ativos financeiros. Alm disso, a inflao prejudicava particularmente aqueles que concediam emprstimos, agravando as perdas potenciais dos credores. Plihon (1998) tambm destaca a derrocada dos mecanismos de regulao das economias industriais como causa da ruptura do regime de crescimento baseado na relao salarial fordista, nas polticas de estabilizao macroeconmicas e nos sistemas financeiros administrados pelas autoridades monetrias. Tal transformao seria, em grande medida, endgena s economias industrializadas, segundo o paradoxo da tranqilidade de10

Seria errneo, portanto, derivar esta unidade do desenvolvimento tecnolgico em reas como telecomunicaes e informtica. Tais inovaes tecnolgicas so antes efeito do que causa da integrao financeira mundial (Chesnais, 1998).

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Minsky (apud Plihon, 1998). De acordo com tal raciocnio, as economias capitalistas acabam necessariamente por se autodesequilibrar economias em perodos de crescimento regular (a fase da tranqilidade) levam os agentes econmicos a adquirirem confiana, o que leva ao aumento de emprstimos e investimentos; os preos elevam-se, assim como os endividamentos. As avaliaes pessimistas aparecem e as empresas reduzem suas atividades, caracterizando a estagflao. Em sentido semelhante, alis, situa-se Michal Kalecki, para quem um dos notveis paradoxos da economia capitalista est justamente no fato de que a ampliao dos nveis de investimentos e de equipamentos de capital, responsvel pela recuperao econmica, contm a semente de uma depresso (Kalecki, 1983, p. 27). Aqui, importante reter dois elementos importantes. Um deles a existncia de uma inequvoca crise econmica que se manifesta tambm como uma crise do sistema financeiro orientado pelos marcos do binmio keynesianismo-fordismo. Esta crise funcionar como elemento motivador inicial de determinadas aes do Estado, como o crescimento das operaes com ttulos do governo, uma forma de financiar os crescentes dficits pblicos. E o outro elemento que tal crise traz prejuzos maiores particularmente para o setor financeiro e para os credores. A estabilidade monetria ser, doravante, o objetivo prioritrio, e os preceitos do liberalismo e do monetarismo os meios utilizados para atingi-lo. Este segundo fator evidencia a responsabilidade das polticas pblicas nas mutaes que desestabilizaro a economia mundial (Plihon, 1998). A relao salarial fordista foi sacrificada em favor de uma regulao salarial concorrencial. A poltica keynesiana de sustentao de juros baixos deu lugar a polticas monetaristas com eixo na elevao de juros e na progressiva eliminao de tetos para transaes bancrias e emprstimos, o que originou uma maior instabilidade financeira. Tambm contriburam de modo decisivo para a instabilidade do sistema o crescimento da finana direta e a conseqente transformao dos bancos. A desregulamentao dos mercados financeiros conduz, nos anos 80, ao crescimento intenso da finana direta, atravs da prtica da securitizao. Por securitizao entende-se a operao de financiamento pela qual o emprstimo/dvida convertido em ttulos negociveis, os quais so lanados com determinada garantia de pagamento aos seus compradores os quais se tornam emprestadores/credores. A emisso de tais papis, que 26

podem ser negociados em mercado, se d com lastro em um ativo ou em uma carteira de ativos, que gerar receitas baseadas em fluxos de caixa correspondentes queles. Tal operao tem o objetivo de diluir o risco do negcio ao diversificar as fontes originrias do crdito , ao se comparar com uma operao no securitizada, em que h uma nica origem do crdito (um banco ou um pequeno nmero de investidores). Com a securitizao vo sendo substitudas as fontes de fundos captados externamente pelas corporaes dos tradicionais emprstimos bancrios para a colocao de ttulos transacionveis (securities), cujo valor lastreado em fluxos de caixa de ativos especficos (Raimundo, 2002). A securitizao abre caminho para o fenmeno da desintermediao bancria, o que fora os bancos a tambm mudarem sua forma de atuao. Sua posio de agente canalizador de financiamento se esgara, mas eles ainda mantm o papel de medidores, administradores e redutores de riscos dos agentes envolvidos nas transaes. Para tanto, eles diversificam suas fontes de receita passando tambm a atuar como os demais agentes financeiros (Raimundo, 2002). Em suma, a concorrncia com os agentes da finana direta tirou dos bancos a sua tradicional exclusividade como agentes responsveis pelo financiamento, forando-os a diversificarem suas atividades, e passando a fazer concorrncia com os novos atores financeiros em seu prprio campo. Tal confuso de atribuies responde pela proliferao de formas de moeda e de servios de pagamento relativamente pouco regulamentados. Isso refora a dimenso da moeda como mercadoria privada, crescendo a sua orientao pelas motivaes de lucro dos bancos, investidores institucionais e credores/rentistas em geral (Guttmann, 1998). Farnetti (1998) destaca, neste contexto, a posio central a que so alados gigantescos fundos de penso e outros fundos de investimento. A converso progressiva das grandes corporaes em grupos financeiros (Serfati, 1998, Braga, 1993) explicada por uma prevalncia cada vez maior da lgica especulativa sobre a lgica da produo, com a ampliao da natureza financeira e fictcia da riqueza no capitalismo central (Braga, 1993, p. 34), convivendo ao lado do declnio da expanso das atividades produtivas e da elevao do desemprego no conjunto dos pases capitalistas industrializados (Pochmann, 2001). A elevao crnica do desemprego e do trabalho precarizado ter um papel-chave na

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reorganizao do sistema econmico e produtivo, conforme ser visto mais adiante (item 3.2). Mencionadas as principais caractersticas em torno das quais passou a se estruturar o capitalismo a partir das ltimas dcadas do sculo XX at hoje, faz-se necessria uma reflexo sobre os propsitos e interesses objetivos que so atendidos pela confluncia dos trs pilares acima descritos, bem como estes se relacionam entre si. 3. O papel da poltica nas mutaes da economia mundial, e a simbiose existente entre liberalizao, financeirizao e flexibilizao A importncia da reflexo que se prope a seguir justifica-se pela crena na hiptese de que os interesses e motivaes polticas oriundas de determinadas foras e/ou classes sociais guardam uma decisiva relao com o conjunto de mutaes experimentadas no mbito produtivo e econmico mundiais, mutaes essas referenciadas aqui como classificveis na ressurreio do liberalismo, na hipertrofia financeira e na flexibilizao dos processos de trabalho. 3.1 O componente poltico das transformaes econmico-institucionais 3.1.1 A questo fabril Em fins dos anos 60 o sistema produtivo engendrado pelo paradigma fordista d fortes sinais de crise. Conforme assinalado anteriormente, constata-se uma queda da produtividade no trabalho, para a qual contribui, sobremaneira, a revolta dos trabalhadores contra o despotismo fabril instaurado pela organizao taylorista-fordista. Druck (1999) destaca que, no mbito do processo de trabalho, assiste-se a um movimento generalizado de lutas e resistncias nos locais de trabalho. Seria evidncia disso a elevao dos ndices de absentesmo, de turn over, dos defeitos de fabricao e a quebra de ritmo na produo. Antagonismos como este, que atuavam no cenrio produtivo fordista, acirravam-se. O trabalhador, despertando para o componente intelectual, 11 se sentia mais confiante para

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O regime produtivo taylorista-fordista condicionou um perfil particular de trabalhador, chamado por Bihr (1999) de operrio-massa o trabalhador tpico do perodo fordista, cujas caractersticas essenciais seriam a sua concentrao elevada no espao scio-produtivo, sua relativa homogeneizao e, por fim, sua rigidez e atomizao em funo da organizao fordista do trabalho e realizava, como j observado, uma expropriao intensificada da fora de trabalho, buscando privar-lhe de qualquer participao na organizao/concepo do processo de trabalho. Contraditoriamente, porm, chamava constantemente este mesmo operrio a corrigir os defeitos e os enganos cometidos pela gerncia cientfica taylorista (Antunes, 2000).

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administrar sistemas produtivos, bem como para orientar e conduzir as suas prprias lutas, prescindindo cada vez mais de representaes sindicais. Estas, ento grandemente permeadas pelo iderio do compromisso fordista, ignoravam quaisquer pretenses polticas das classes trabalhadoras que transcendessem os limites da ordem social capitalista. Houve um grande aumento nos conflitos e nas mobilizaes dos trabalhadores no final dos anos 60 (Bernardo, 1997; Bihr, 1999). Sintomtico neste sentido o apelido com o qual as instncias patronais, sindicais e governamentais referiam-se a tal movimento de contestao greves selvagens. De fato, pelo fato destas serem decididas quase sempre exteriormente aos sindicatos, tais lutas s poderiam ser consideradas brbaras pela civilizao patronal, sindical e estatal. Assim, no centro do sistema capitalista, as greves selvagens assustavam governantes, empresrios e sindicatos socialdemocratas, expressando a revolta de extensas parcelas de trabalhadores contra os pilares do compromisso fordista 12. Por colocar em questo o controle capitalista dos meios de produo, inegvel o carter poltico adquirido pelos movimentos rebeldes. Entretanto, estas aes encontraram limites que no conseguiram superar. Primeiramente, era difcil se contrapor ao iderio de perfil socialdemocrata, consolidado durante dcadas na subjetividade proletria. Alm disso, a luta dos trabalhadores, denunciando o despotismo fabril taylorista-fordista, no conseguiu se estender efetivamente para as esferas sociais fora do trabalho, tampouco se articular com os novos movimentos sociais que emergiam, como as lutas ecolgica, urbana, feminista, racial, etc. O refluxo da mar revolucionria deu tempo aos representantes polticos do capital de reorganizarem suas foras. No tendo sido vencido pela luta operria, o capital busca se fortalecer apropriando-se de atributos recm-descobertos nos trabalhadores, como sua inteligncia, iniciativa, versatilidade e capacidade de gesto, intensificando seu carter manipulatrio sobre eles (Bernardo, 1997). Ser o incio do processo de reestruturao no mbito dos processos de trabalho.

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Druck (1998) lembra que o esprito de contestao no se circunscrevia ao mbito fabril, com suas greves, manifestaes de rua, ocupaes de fbricas, etc. Havia outros focos de rebeldia, que variaram de pas para pas, como o Maio francs, a Primavera de Praga, a luta contra a guerra no Vietn, o movimento hippie. Tal rebeldia, cujo ponto alto foi o ano de 1968, indicava uma recusa aos padres dominantes de organizao econmica e sociopoltica. Era uma luta contra formas institucionalizadas de poder e, centralmente, contra o autoritarismo presente nestas instituies, bem como as formas de controle social predominantes (Druck, 1999, p. 69).

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3.1.2 A questo do Estado-providncia Um legado fundamental do sindicalismo socialdemocrata e das lutas reformistas dos trabalhadores foi o chamado Estado-providncia. Bihr (1999) destaca que, durante todo o perodo fordista, a classe trabalhadora no parou de pressionar para melhorar, a seu favor, os termos do compromisso fordista. E, neste perodo, os gastos sociais do Estado, em que foram estruturadas as redes de proteo social e trabalhista e a universalizao do acesso aos bens coletivos fundamentais (sade, educao, etc.), cresceram incessantemente. Como j foi destacado no item 2, a presso dos argumentos liberalizantes pela flexibilizao dos direitos trabalhistas e pela diminuio dos gastos com o aparato de proteo social ou, no jargo liberal, a substituio do carter universal dos bens e servios pblicos pela focalizao dos gastos sociais , buscava se revestir de motivaes to somente econmicas e tcnicas. O Estado de Bem-Estar Social teria atingido um tamanho grau de gigantismo que isso teria causado a diminuio da eficcia econmica e social, e o conseqente prejuzo no desenvolvimento. Para fundamentar seu raciocnio, associavam a crise econmica ao fato de que o ritmo de crescimento das despesas pblicas ligadas ao aparato social era maior que o da produo nacional. 13 Contudo, ao analisar os fundamentos deste argumento, Rosanvallon (1998) chega a concluses diversas. Embora reconhea a eloqncia dos dados apresentados, ele sustenta que no se pode depreender da, necessariamente, que haja uma relao de causalidade entre elevao dos gastos sociais e crise econmica. Para o autor, a questo central saber se h um limite absoluto para o desenvolvimento do Estado-providncia, bem como para o grau de redistribuio que o seu financiamento implica. E ele mostra, ao longo da histria, a sucesso de economistas que viam os limites do Estado-providncia sendo supostamente atingidos, quando estes, de fato, no cessavam de se expandir. 14 Esta e outras evidncias13

Veja-se, por exemplo, a situao francesa, abordada por Rosanvallon (1998). Registra a elevao das cotizaes sociais entre 1959 e 1970 (de 9,7% para 20% do PIB), ainda que a presso fiscal permanecesse relativamente estvel no perodo (de 23,1% para 25%). No conjunto dos descontos obrigatrios (impostos + cotizaes sociais), estes passaram de 35% para 45% do PIB francs entre 1959 e 1970. O autor tambm traz, em anexo a esta obra, a evoluo das taxas de descontos obrigatrios em vrios pases desenvolvidos, constatando a elevao, em todos eles, das taxas. 14 Nas palavras de Rosanvallon (1998, p.16): Recordemos que, em 1926, Keynes escrevia uma carta aberta ao Ministrio das Finanas francs, na qual considerava impossvel, do ponto de vista poltico, que as despesas pblicas pudessem atingir um quarto do rendimento nacional [quando, em 1970, elas j batiam em 45% do PIB]. longa a lista de economistas que, de Lon Say, no sculo XIX, a Colin Clark, no sculo XX, consideravam estruturalmente insuportvel para o sistema um novo crescimento das despesas sociais. Por sinal, o autor tambm considera notvel o modo como a especulao liberal sobre os limites do Estado-

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permitiram a Rosanvallon (1998, p. 17) afirmar que, no se pode fixar a priori limites intransponveis para o Estado-providncia que se deduziriam de uma anlise estritamente econmica e financeira. Por outro lado, a existncia de uma rede de segurana, expressa no conjunto de auxlios-desemprego e demais programas de auxlio social existentes no marco do Estado-providncia, antes de representarem um fator negativo para a economia em crise, na verdade contriburam para atenuar sua intensidade, ao impedir o desmoronamento da demanda interna dos grandes pases capitalistas, como obrigado a reconhecer Lipietz (1991). Para Rosanvallon, se existem limites, estes s podem ser societais ou culturais (Idem, p. 17). Dentro destes, realaramos os limites polticos. Parece claro que, em certa altura do desenvolvimento do aparato estatal de proteo social e do trabalho, este se torna um importante fator desfavorvel para as classes proprietrias, na dinmica de suas relaes com a classe trabalhadora. medida que, atendendo ao cnone keynesiano da demanda efetiva, o Estado-providncia trabalha para a manuteno do nvel de vida e da segurana do assalariado, isso progressivamente se converte em um fator de relativa fora para a classe trabalhadora, j que diminui o grau de sua dependncia estrutural aos movimentos e decises da classe patronal. 3.1.3 A questo do pleno emprego precisamente neste contexto que se situa a questo do pleno emprego nas economias capitalistas. Na hiptese de um governo saber como atingir e manter o pleno emprego, ele necessariamente far isso? Kalecki taxativo: falsa a suposio de que um Governo manter o pleno emprego em uma economia capitalista se ele sabe como faz-lo. E a explicao para isso est na postura das classes patronais. 15 Tal atitude, como reconhece o autor, no fcil de explicar. Afinal, o aumento da produo e do emprego beneficiam, de um ponto de vista estritamente econmico, no apenas os trabalhadores, mas tambm os empresrios, porque seus lucros crescem. Alm do mais, a poltica de pleno emprego baseada na despesa governamental financiada por emprstimos no usurparia os lucros, uma vez que no envolve tributao adicional.providncia aproxima-se dos impasses do discurso marxista clssico sobre as crises e as contradies do capitalismo: a maior parte das anlises marxistas do Estado-providncia baseia-se igualmente, com efeito, nesta idia de limite-ruptura (idem, p. 16). 15 Conforme Kalecki (1983, p. 54). A partir daqui, as referncias feitas basear-se-o nesta obra.

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Kalecki agrupa os motivos para a oposio dos lderes industriais ao pleno emprego decorrente da despesa governamental em trs categorias: 1) a reprovao interferncia pura e simples do governo no problema do emprego; 2) a reprovao direo da despesa governamental (para investimento pblico e subsdio ao consumo); e 3) a reprovao s mudanas sociais e polticas resultantes da manuteno do pleno emprego. A reprovao patronal interferncia do governo na questo do emprego relaciona-se com a questo do estado de confiana. Em um sistema regulado predominantemente pelo mecanismo concorrencial, o nvel de emprego depende, em boa medida, do estado de confiana. Se este cai, o investimento declina, e com ele o emprego. Tal estado de coisas funciona como um potente controle indireto dos capitalistas sobre a poltica governamental: o que quer que abale o estado de confiana deve ser evitado, da a funo da doutrina da finana sadia. Mas, uma vez que o governo aprenda a gerar emprego por meio de seus gastos, esse controle capitalista perde eficcia. A reprovao empresarial a uma poltica estatal de investimento e de subsdio ao consumo baseia-se em dois posicionamentos. No caso do investimento pblico, ainda que o governo o orientasse ou o limitasse a objetos que no concorressem com o capital privado para no enfraquecer a rentabilidade deste , haveria o risco de o Estado ser tentado a prosseguir em tal poltica, diversificando seus investimentos e o impulso nacionalizante de servios de utilidade pblica, etc. E no caso do subsdio ao consumo, este colocaria em questo um princpio fundamental da tica capitalista, qual seja, a do indivduo que deve ganhar o po com o suor do rosto, a menos que tenha meios privados. Consideramos que esta ltima crtica do patronato, no obstante a explicao sugerida por Kalecki, est intimamente relacionada com a terceira categoria de reprovaes patronais interveno do Estado no mercado de trabalho, qual seja, o das implicaes sociais quanto manuteno do pleno emprego. Nas palavras do autor,De fato, sob um regime de permanente pleno emprego, a demisso de empregados deixaria de exercer sua funo de medida disciplinar. A posio social do patro estaria minada e cresceriam a autoconfiana e a conscincia da classe trabalhadora. As greves por aumentos salariais e melhoria nas condies de trabalho criariam tenso poltica. verdade que os lucros seriam mais elevados em um regime de pleno emprego (...); e mesmo o crescimento das taxas de salrio, resultante do mais forte poder de barganha dos trabalhadores, provavelmente causaria menos uma reduo dos lucros do que um aumento de preos, e assim afetaria adversamente apenas os interesses rentistas. Mas os lderes empresariais

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apreciam mais a disciplina nas fbricas e a estabilidade poltica do que os lucros. (Kalecki, 1983, p.56 [grifos nossos]).

Esta passagem particularmente interessante. Destaca-se, claro, o papel da demisso como medida disciplinar disposio do patro, medida esta praticamente incua em um regime de pleno emprego. Ou seja, os lderes empresariais, no podendo admitir a perda deste mecanismo de presso e controle sobre os trabalhadores, cedo ou tarde se oporiam veementemente manuteno do pleno emprego e o fim da relao salarial dos anos dourados comprovaria isso. J o outro trecho grifado, referente ao prejuzo dos interesses rentistas, se encaixa perfeitamente nas reflexes e anlises atuais (algumas delas exibidas anteriormente neste trabalho), que apontam para os prejuzos sofridos pelos setores financeiros do capital, os rentistas, como sendo uma das chaves para as reformas econmicas e institucionais que conduziriam grande financeirizao da economia mundial no fim do sculo passado. De fato, Kalecki, escrevendo em meados da dcada de 50, como se estivesse a predizer o futuro que aguardaria o capitalismo dos anos dourados, concluiria: nessa situao [de pleno emprego] provvel a formao de um poderoso bloco de grandes empresrios e ren