sociogênese dos conceitos

23

Upload: bebeldecastro6811

Post on 18-Jul-2015

186 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

5/16/2018 sociog nese dos conceitos - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/sociogenese-dos-conceitos 1/23

capitulo urn

DA SOCIOGENESE DOS CONCEITOS

DE uCIVILIZA<:=AO" E HCULTURA"

5/16/2018 sociog nese dos conceitos - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/sociogenese-dos-conceitos 2/23

parte I

Sociogenese da diferenea

entre "kultur" e "zivilisation"

no emprego alemao

I

Introdueao

1 . 0 conceito de "civilizacao" rcfere-se a uma grande variedade de

fatos: ao nivel da tecnologia, ao tipo de maneiras, ao desenvolvimento dos

conhecimentos cientificos, as ideias religiosas e aos costumes. Pode se re-

ferir ao tipo de habitacoes ou a maneira como homens e mulheres vivem

juntos, it forma de punicao determinada pelo sistema judiciario ou ao modo

como sao preparados os alimentos, Rigorosamente falando, nada ha que nao

possa SCl" feito de forma "civilizada" ou "incivilizada", Oaf ser sempre di-

ficil sumariar em algumas palavras tudo 0 que se pede descrever como ci-

vilizacao,

Mas se examinamos 0 que realrnente constitui a func;ao geral do con-

ceito de civilizacao, e que qualidade comum leva tcdas essas varias atitu-

des e atividades humanas a serem descritas como civilizadas, partimos deuma descoberta muito simples: este conceito expressa a consciencia que c Oci-

dente tern de si mesmo. Poderiamos ate dizer: a consciencia nacional. Ele

resume tudo em que a sociedade ocidental dos ultimos dois ou tres secufOS"

se julga superior a sociedades mais antigas ou a sociedades contemporaneas

"mais primitivas". Com essa palavra, a sociedade ocidental procura des-

crever 0 que the constitui 0 carater especial e aquilo de que se orgulha: 0

nfvel de ,sua tecnoillgia, a natureza de suas maneiras, 0 dcsenvolvimento de

sua cultura cientffica ou visao do mundo, e muito mais.

2. "Civiliza9aD'~, porem, nao significa a mesma coisa para diferen-

tes nacoes ocidentais. Acirna de tudo, e grande a diferenca entre a forma

como ingleses e franceses ernpregarn a palavra, por urn lado, e as alernaes,

por outro. Para os primeiros, 0 conceito resume em uma iinica palavra

5/16/2018 sociog nese dos conceitos - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/sociogenese-dos-conceitos 3/23

24a processo civil izador

scu orgulho pela importancia de suas nacoes para 0 progresso do Ocidente

e da humanidade. Ja no emprego que the e dado pelos alemaes Zivilisation,

significa algo de fato util, mas, apesar disso, apenas urn valor de segunda

c1asse, compreendendo apenas a aparencia extern a de seres human os, a su-

perffcie da existencia humana. A palavra pela qual os alemaes se interpretam,

que mais do que qualquer outra expressa-Ihes0

orgulho em suas propriasrealizacoes e no proprio ser, e Kultur.

3. Urn fenomeno peculiar: Palavras como "civiJiza«ao" em frances

.oJ!jQg~~ 0 alemao Kultur, sao inteiramente clms no emprego interno

da sociedade a que pertencem.- Mas a forma pela qual uma parte do mun-

do esta ligada a elas, a maneira pela qual incluem certas areas e exc1uem

outras, como a coisa mais natural, as avaliac;6es ocultas que implicitamente

fazem com elas, tudo isto torna dificil defini-las para urn estranho.

Q.;;onceito frances e in~~~~_.<?ivilizac;~~ode se refer!£_~fatosp()litic()s

ou economicos, religiosos ou tecnicos, morais ou sociais. 0 conceito alemao

d~~!:!.ltur_~ude basi~nte a-fatoslntelectuais, artfstfCOse religiosos e apre-

senta a tendencia de tr~c;ar umallitida 'Tinha"Ciivis6ri;en'tre'raios deste tipo,

por urn lado, e fatos politicos, economicos e sociais, por outro. 0 conceito

frances e ingles de civilizaC;aopode se referir a realizac;6es, mas tambem a

atitudes ou "comportamento" de pessoas, pouco importando se realizaram ou

nao alguma coisa. No conceito alemao de Kultur, em contraste, a referencia

a "comportamento", 0 valor que a pessoa tern em virtude de sua mera exis-

tencia e conduta, sem absolutamente qualquer realizacao, e multo secundario.1 < : > \ sentido especificamente alemao do conceito de Kultur encontra sua expres-

sao mais clara em seu derivado, 0 adjetivo kulturell, que descreve 0 carater

e 0 valor de determinados produtos humanos, e nao 0 valor intrinsecc da

~

essoa. Esta palavra, 0 conceito inerente a kulturell, porem, nao pode ser

raduzido exatamente para 0 frances e 0 Ingles.A palavra kultiviert (cultivado) aproxima-se muito do conceito ocidental

de civilizac;ao.Ate certo ponto, representa a forma rnais alta de ser civilizado.Ate mesmo pessoas e familias que nada realizaram de kulturell podem ser

kultiviert. Tal como a palavra "civilizado", kultiviert retere-se primariamente

a forma da conduta ou comportamento da pessoa. Descreve a qualidade

social das pessoas, suas habitag6es, suas maneiras, sua fala, suas roupas, ao

contrario de kulturell, que nao alude diretamente as proprias pessoas, mas

exclusivamente a realizacees humanas peculiares.4. Ha outra diferenc;a entre os dois conceitos estreitamente vinculada

a isto. "Civilizac;ao" descreve urn processo. ou, pelo menos, sell resultado.

Diz respcito~a--~i_2~~t~ e~~i~~nto£_oist~~~~?!llqvil1(io;s~·TQce:ssan-

>J,t.:l11t.:ptt:_~p.a[aa.frente". 0 conceito alemao de(~ultl1!' ~o emprego corrente,

i!ilplLr;1t..!lma relax.1lodifer~n~e_£()Il_l_movimentP.Reporta-se a produtos huma-nos que sao semelliantes 'a "flores do campo", 1a obras de arte, l ivros, siste-

conceitos de "civilizaciio" e "cultura" 25

mas religiosos ou filosoficos, nos quais se a individualidade de

g~~~ conceito .de .K w tur deliI1 1 ita. urn. Ate certo ponto, o~-onceito-d~'~iviliza ao minimi .

mus entre os povos' enfati ' g--.- ....__Il_l~J':a.~_dife!:.~gas naClO-__ -'.'--.'---r;:;--- ...z.:«: iza ?que e comumatodos .os...eres hu"riJ-;}-----·-··_ na oplmao dos que 0possuem d . '1 . '. ,.·.!!,,__..•J19

sou

de povos cujas frontei . -:- "~~~~l~~ o. Manifesta a autoconf~r

mente estabelecidos d~:~en:~~~7~~s~u~d~nt.ldaden~cional foram tao plena-discussao, povos qu~ ha muito se ~x andirelxaram e ser tema ~e qualquernizaram terras muitoalem dIP am fora de suas fronteiras e colo-

e as.

Em contraste, 0 conceito alemao de Kultur da .. f . .renc;as nacionais e ' .dentid . . -.-~. __..._~llJ!§~ especI~ a dife-_;_"~' ''--' '- '' '; ' '__. _. .a.l enti ade particular de grupos P' . 1 m . -- ~virtude disto 0concelt .... a - - - - . . . - . - - - . . . . - ' " ' . - , ' . .--.--~-=..:.nnclpa ente em

, . ' . 0 ~.9.1!. !!1~ em~ampQ§__£.omoa ResCluisaet ,]' .~E!ES?J?91oglcama significa<;:- . -I-:'~ -;--'~ · _ ' : 7 : : _ · . . . .----.!1Q;.O'gLc,.~·~

it ._ - c - ._ _ , , , - - _ - _ . , _ . , - . . . : -- .- - - . . . ~().11Jlllto.._.am .da.area lmgutstlca alema e dsi uacao em que se onginou 0conceito. Mas esta situaga~-'€--~quela de a

povo ~'-: de acordo com os padroes ocidentais conse . ~t~E<!t.: unificacao politica e . - ' _.-_gQ!.!!..ll!!~IJ.~.JE~.!?~,_._" __~_,. .'.."".,_._ ._ a consolidacao e de cUJas fronteiras d tseculos ou me ,. -- ...-..~--..~-... ;., :- ' , uran e

smo ate 0 presente, territories repetidamente se desprenderamou ameac;aram se separar Enqu t . . .d _., an 0 0 concerto de civilizacao inclui a fungact-t

e ~r expressao a uma tendencia continuamente expansionista de \colonizadores, 0 conceito de Kultur reflete a consciencia de si mesma dgrupos

nacao que teve d~ busca:. e constituir incessante e novamente suas f:o~:i~

~~' tanto. ~~ sentl?o POlItICOcomo espirituaI, e repetidas vezes perguntar aI m:_sma. Qual. e, realmente, nossa idcntidade?" A orientacao do .alemao de cultura de . " concerto ., com sua ten encia a demarcacao e enfase em diferen ~-"

e no seu detalhamento, entre grupos, corresponde a este processo historico.

As .pergu~tas "0 que e realmente frances? 0 que e realmente ingles?" h~

muito ~elxaram de ser assunto de discussao para franceses e ingleses Du-rante seculos porern a que C "0 ' ."s ao que e realmente alernao?" reclamousempre resposta. Uma resposta a esta pergunta - uma e t ...id . n re van as outrasresI e em urn aspectopeculiar do conceito de Kultur

" .5 :1' A~ ~,uto-imagens nacionais representadas por c~nceitos como Kulture CIVl~zac;ao assumem formas muito difcrentes. Por mais diferente que seja

; auto-imagem dos alemaes, que Ialarn com orgulho de sua Kultur e a de

cr::s~~~~a~ ~::~e~~;iC~u~U~e:s:: ~om orgu~ho em sua "civilizaga~", . . t 2 . 2 . ~ . ~.. , _._ __ .._.".._: _. .. a..JTI<inelra.comQ o mundo dos homenscomo urn todo quer ser VISo e J' 1 d 0 J - , _.__._.-0._ .' ' _. u ga o. a emao pode quem s be t

~xt~~ar a francesese i~g:reses a 'que entende pelo conc;ito de K:lt~r e~:~J ICI~ente pode comurucar 0 minimo que seja do meio formativo nar .especffico e valores ernocionais axiornaticos que para ele a p I clonal

Franc . I a avra reveste. eses ~u mg e.ses.poderao talvez dizer ao alemao que elemento~

tOT?am0 concerto de civilizacao a suma da auto-imagem nacional Mas 0

~~_r_!g.Q.~_Y_;~L~ ra.s:~~aLgl!~_.est_e...~oncej_tohes pareca, ele tambem nJ;c~"k_ ••••um.conjuruo ••cspeoifice de situacoes historicas, e esta cercado t~be~'-p~r"

5/16/2018 sociog nese dos conceitos - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/sociogenese-dos-conceitos 4/23

26 a processo civil izador

uma atmosfera emocional e tradicional dificil de definir, mas que apesar

disso constitui parte integral de seu significado. E a discussao descam~arealmente para a inutilidade quando 0 alemao tenta demonstrar ao frances

e ao Ingles por que 0 conceito de Zivilisation de fato representa urn valor

para ele, embora apenas de segunda classe, ,6. Conceitos como e sse s dois tern algo do carater de palavras que

. nalmente surgem em algum grupo mais estreito, tais como familia, seita,ocaSIO ... d ' .classe escolar ou associacao, e que dizem muito para 0 uncia 0 e pOUqUISSI-

ra 0 estranho. Assumem forma na base de experiencias comuns. Cres-mo pa . _ hi" dcern e mudam com 0 grupo do qual sao expressao. Situacao e stona 0

grupo refletem-se nelas, E permanecem in~olores, ~unca s~,to~nam plen:-mente vivas para aqueles que nan compartilham tars expenencias, que nao

falam a partir da mesma tradicao e da mesma situacao,

Os conceitos de Kultur e "civilizacao", para sermos exatos, portam 0

selo nao de seitas ou famflias, mas de povos inteiros ou talvez apenas ,~e

certas classes. Mas, em muitos aspectos, 0 que se aplica a pala~ras especifi-

cas de grupos menores estende-se tambem .a_eles: ~ao u~ados b.aslcamente pore para povos que compartilham uma tradicao e situacao particulares, .,

r - = - - Conceitos matematicos podem ser separados do grupo que os usa. Trian-

.I gulos admitem explicacoes sem refere~c~a.~ sit~a~6es historicas. Mas 0mesmo\ nao acontece com conceitos como civilizacao e Kultur. Talvez a~ont~<;a

que determinados individuos os tenham fonnado com base em matenal 1I~-

gUist ico ja disponivelde seu proprio grupo, ou pelo n;enos lhes tenham atri-

buido um novo significado. Mas eles lancaram raizes. Estabeleceram-se.

Outros os captaram em seu novo significado e fo.rma, desen~olvendo-os e

polindo-os na fala e na escrita. Foram usados repetidamente ~te se tornareminstrumentos eficientes para expressar 0 que pessoas expenmentar~ em

comum e querem comunicar . Tornaram-se palavras d~ rnoda, concertos de

emprego comum no linguajar diario de uma dada sociedade, Este fato. de-

t"U!onstra que nao represent am ~penas necessid.ade~ individuais, mas ~ol~t~vas,J de expressao. A historia colet iva neles se cristal izou e ressoa. 0 indivfduo

i' encontra essa cristal izacao ja em suas possibil idades de uSO.Nao sabe bern

por que este significado e esta delimitacao es~a? implicadas nas palavras, p~r

que, exatamente, esta nuance e aquela possibi lidade delas podern s~r ,der.l-

vadas. Usa-as porque lhe parece uma coisa natural, porque desde a mfan~la

aprende aver 0 mundo atraves da len~e des:>esc?nceitos. 0 pro_cessoSOCIal

de sua genese talvez tenha sido esquecido ha muito, Uma geracao as tr~ns-

mite a outra sem estar consciente do processo como urn todo, e os C?nCel~Os

sobrevivem enquanto esta cristalizacao de experiencias passadas e slt~a90es

retiver um valor existencial, uma funcao na existencia concreta da sociedade

- isto e, enquanto geracoes sucessivas puderem identificar suas proprias

experiencias no significado das palavras. Os termos morr?m aos po?"cos,quan-do as funcoes e experiencias na vida concreta da sociedade deixam de se

conceitos de "civilizaciio" e "cultura"27

vincular a eles. Em outras ocasioes, eles apenas adormecern, ou 0 fazem em

certos aspectos, e adquirem urn novo valor existencial com uma nova situa-

!;ao. Sao relembrados entao porque alguma coisa no estado presente da socie-

dade encontra expressao na cristalizacao do passado corporif icada nas pa-lavras.

II

Desenvolvimento «fa Antitese

entre Kultur e 'Zivilisation 2

7. E claro que a funcao do conceito gennanico de Kultur ganhou vidanova em 1919, enos anos precedentes, em parte porque uma guerra foi

travada contra a Alemanha em nome da "civilizacao", e por causa da auto-

imagem que os alemaes t iveram que redefinir na situayao criada pelo tratadode paz... .

Mas e igualmentc claro, e isto pode ser provado, que ate certo ponto asituacao historica da Alemanha apos a guerra apenas deu novo impulso a

uma antftese que ha muito tempo encontrara expressao atraves desses doisconceitos, retroagiq,gp,,,iss, ate 0' seculo XVIII.

Parece que € _ f Kan uern primeiro expressou uma experiencia e anti-teses especfficas de ociedade em conceitos correlacionados. Em 1784,

escreveu ele, nas Ideias sobre uma Historia Universal, do Ponto de Vista de

urn Cidaddo do Mundo: "Cultivados a urn alto grau pela arte e pela ciencia,

sornos civilizados a tal ponto que estarnos sobrecarregados por tOdDSos tiposde decoro e decencia social . .. "

"A ideia da moraJidade", acrescentava, "6 parte da cultura. A aplica-<;ao desta ideia, porem, que resulta apenas na analogia de moralidade no

amor it honra e it decencia visfvel, equivale apenas ao processo civilizador."

Por mais que essa formulacao da antftese ja pareca, no memento de

sua genese, proxima da nossa, seu ponto de partida concreto nas experien-

cias e situacao de fins do seculo XVIII, ernbora nao careca de conexao his-

torica com as experiencias nas quais assenta seu uso presente, ela e, apesar

disso, muito diferente. 0 contraste aqui , caso em que os porta-vozes da bur-

* Referencia ao tratado de Versalhes, que pes firn 11Primeira Guerra Mundial _

11qual Elias , escrevendo antes da Segunda, se refere sernpre como "a guerra", exceto,

obviarnente, na introdu9ao por ele redigida em 1968 e que vai em apendice. Extre-

mamente lesivo para as potencias que haviam perdido a guerra, 0 tratado de Versalhes

causou muita revol ta e indignacao, especialmente entre os alernaes, (RJR)

5/16/2018 sociog nese dos conceitos - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/sociogenese-dos-conceitos 5/23

28 o processo civilizador

guesia alema em desenvolvimento, a intelligentsia 3 alema de classe media,

falam ainda em grande parte "do ponto de vista de um cidadao do mundo",

relaciona-se apenas vagamente, e na melhor das hipoteses secundariamente,

com urn eontraste nacional. Seu aspeeto principal e urn eontraste interne na

sociedade, urn contraste social que, apesar de tudo, porta dentro de si, deforma significativa, 0germe do contraste nacional: 0contraste entre a nobre-

za cortesa, que usava predominantemente a lingua francesae era "civilizada"

segundo 0 modelo frances, e urn estrato de intelligentsia de classe media que

falava alemao, recrutado prineipalmente entre os "servidores dos prfncipes",burgueses, ou funcionarios publicos no sentido mais amplo, e ocasionalmente

tambem em meio a nobreza proprietaria de terras.

Esta intelligentsia constituia urn estrato muito distante da atividade po-

litica, mal pensava em termos politicos, e apenas experimentalmente em

termos nacionais; sua legitimacao consistia principalmente em suas realizacoes

inteleetuais, cientificas ou artfsticas. Em contraposicao a ela ha uma classe

superior que nada "realiza", no sentido em que as outras 0 fazem, mas para

cuja auto-imagem e autojustificacao a modelagern de seu comportamento

caracterfstico e diferente e fundamental . E e nessa classe em que pensa Kant

quando fala de ser "civilizado a tal ponto que estamos sobrecarregados" de

mere "decoro e decencia social", e de "analogia de moralidade com amor ahonra". E e na polemica entre 0 estrato da intelligentsia alema de c1asse

media e a etiqueta da c1asse cortesa, superior e governante, que se origina

o contraste entre Kultur e Zivilisation na Alemanha, A polernica, no entanto,

era mais antiga e mais ampla do que sua cristalizacao nesses dois conceitos.

8. Suas origens podem ser buscadas em meados do seculo XVIII,

ainda que apenas como urn murrmirio do pensamento, muito mais abafado doque ficara na segunda metade do seculo, Uma boa ideia disto pode ser obtida

em artigos sobre !1g ib l iJ2mc_hl<~iLe"Hpfny.11,/1! Cc:()rte, Cor~~~i~~.(?~!!~!i~9)'excessivamente longos para aqui serem reproduzidos na integra:;"publicados

no Zedler Universal Lexicon tie 1736.4

A cortesia indubitavelmente deriva seu nome da corte e da vida cortesa. As

cortes dos grandes senhores sao teatros em que todos querem fazer sua fortuna.

I sto pode ser adquir ido conqui st ando-se 0 favor do prfncipe e dos membros

mais importantes de sua corte. 0 individuo, por conseguinte , nao poupa esforcos

para se tornar agradavel a eles. E nada reaIiza isto melhor do que fazer 0 outro

acreditar que estamos prontos para servi-lo ate 0 maximo de nossa capacidade

e em todas as condicoes. Nao obstante, nem sempre estamos em condicoes de

assim proceder e talvez, por boas razoes, nao queiramos assim agir. A cortesia

serve como substituto de tudo isto. Atraves dela damos ao outro tantas garan-

tias, atraves de nossa conduta visivel, que ele forma uma expectativa favoravel

de nossa disposicao de servi-lo, Isto the desperta.a confianca, da qual se desen-

volve imperceptiveimente uma afeicao por n6s, com 0 resultado de que ele

se torna ansioso para nos fazer 0 bern. Isto e tao comum no caso da cortesia

que confere urna vantagem especial aqueles que a possuem. Sem duvida, de-veriam realmente. ser a habiIidade e a virtude os fatores que nos conquistassem

concertos de "civillzaciio" e "cultura" 29

a estima da pessoa. Mas como sao poueos os juizes eorretos das duas! E quan-

tos menos as considerarn dignas de honra! As pessoas, preoeupadas demais com

exterioridades, Sao muito mais influenciadas pelo que atinge externamente seus

sentidos, especialmente quando as circunstancias concomitantes sao de ordem a

afetar-lhes especialmente. a vontade. Isto funciona com toda a precisao no caso

do cortesao.

Em termos simples, sem interpretacao fiIos6fica e em relacao clara com

configuracoes sociais especificas, e expressa aqui a mesil la antitese formulada

por Kant, refinada e aprofundada no contraste entre cultura e civilizacao:

"cortesia" externa enganadora vs. "virtude" autentica, Mas 0 autor apenas

rnenciona isto de passagem e com urn suspiro de resignacao, Apos os meados

do seculo 0 tom muda gradualmente. A autolegitimacao da c1assemedia pela

vir tude e as realizacoes tornam-se mais precisas e enfat icas e a polemica COn-

tra as maneiras externas e superficiais encontradas nas cortes fica mais

explicita.

HI

Exemplos de Atitudes de Corte

na Alemaooa

9. Nao e facil falar sobre a Alemanha em termos gerais, uma vez que

nessa epoca notam-se caracterfsticas especiais em cada urn de seus muitos

Estados. Mas apenas algumas serao, f inalmente, decisivas para 0 desenvol-

vimento do todo. Delas 0 resto se segue naturalmente. Alem disso, certos

fenornenos gerais apresentam-se mais ou menos c1aramente em toda parte .

Para comecar, ha 0 despovoamento e. a pavorosa devasta~ao ec?~6-

~i:~ csI .2"_. R\if~..ap?s . , a : (]~~F@ _C ig.i~Iil~~.:Ari_~~,o's€crilo"JCVrCe--"ainoa:-'mesmo no seculo XVIII, a Alemanha e, em particular, a burguesia alema

sao pobres em comparacao com os padroes frances e Ingles. 0 comercio, em

especial 0 comercio externo que fora altamente desenvolvido em partes do

pais no seculo XVI, esta em ruinas. Desmoronou a imensa riqueza das gran-

des casas mercantis, parcialmente devido a mudanca nas rotas de comercio

devido a descoberta de novas terras no ultramar e, ate certo ponto, em

conseqilencia do longo caos da guerra. 9"qlle sobrae umaburguesia de

pequenas cidades, de ~ori~o~t~~.estreitos, vIvendo"baslca'meriteddatendirilen:c· f ~ ( f D ; l ~ f i i s f d a : c t . e s = : i o e a l s ~ : · ~ · · " , , "

E poueo 0 dinheiro disponfvel para luxos tais como literatura e arte,

N~~cortes, nos c~sos,~nlqlleha recursos.~yti,£i&<nt\:"~,".1!s~p~soasmitam in-

s;ti'sfatoriam~~'~~nduta- d a " ~ o r t ede-fliis XIV e fal~m f~an~~:Q:l!r~~ao; ..•a lingua das classes baixa emedia;'e'pesadao e incomCi(lb:'I:eibili'z,0U l l 1 C ' O

5/16/2018 sociog nese dos conceitos - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/sociogenese-dos-conceitos 6/23

30 o processo civil izador

Jilosofo cortesao alemao, 0 unico grande alemao dessa epoca cujo nome des-

perta aplausos em circulos cortesaos mais amplos, escreve e fala frances ou

Jatim, raramente 0 idioma nativo, E 0 problema da lingua, 0 problema do

que pode ser feito com este desengoncado idioma, ocupa-o tambem, como

ocupou tantos outros.o frances espalha-se das cortes para a camada superior da burguesia.

Todas as honnetes gens (gente de bern), todas as pessoas de "conseqiiencia"

o falam. Falar frances e 0 simbolo de status de toda a classe superior.

Em 1730, a noiva de Gottsched escreve a seu prometido: "Nada e mais

plebeu do que escrever cartas em alemao." G

Se 0 individuo fala alemao, e considerado de born tom incluir tantas

palavras francesas quanta possivel. Em 1740, E. de Mauvillon escreveu em

suas Lettres Francoises et Germaniques: ""Ha apenas alguns anos, nao se

diziam quatro palavras de alemao sem se acrescentar duas francesas." Isso

era Ie bel usage (0 born emprego). 6 E ele tern mais a dizer sobre 0 aspecto

barbaro da lingua alema, Sua natureza, diz, e "d'etre rude et barbare" (ser

rude e barbara). 7 Saxonios afirmam que "qu'on parle mieux l 'Allemand en

Saxe, qu'en aucun autre endroit de l 'Empire" (0 alemao e mais bern falado

na Saxonia do que em qualquer outra parte do Imperio). Os austriaeos fazem

a mesma alegacao a respeito de si mesmos, no que sao acompanhados por

bavaros, brandenburguenses e suicos. Alguns estudiosos, continua Mauvillon,

querem estabelecer regras de gramatica, mas "il est difficile qu'une Nation,

qui contient dans son sein tant de Peuples independans les uns des autres,

se soumette aux decisions d'un petit nombre des Savans" (e dificil para uma

nacao que abrange tantos povos independentes entre si submeter-se as deci-

sees de urn pequeno mimero de sabios).Neste como em numerosos outros campos, a classe media, pequena e

impotente, couberam as tarefas que na Franca e Inglaterra eram desempe-

nhadas principalmente pela corte e pela classe alta aristocratica, Foram os

"servidores de prfncipes" eultos que tentaram, em primeiro lugar, criar, emuma classe intelectual particular, cs modelos do que 0 alemao e e, desta

maneira, estabelecer, pelo menos nesta esfera intelectual, uma unidade ale-

,. rna que ainda nao parece realizavel na esfera politica. 0 conceito de Kultur

l~em a mesma funcao.

. Mas, no' inicio, a maior parte do que ve na Alemanha parece tosco e

atrasado a Mauvillon, urn observador bern versado na civilizacao francesa.

Refere-se ele a literatura e a lingua nos termos seguintes: "Milton, Boileau,

Pope, Racine, Tasso, Moliere e praticamente todos os poetas importantes

foram traduzidos na maioria das linguas europeias. Os poetas alemaes, na

maior parte, sao apenas tradutores."

E continua: "Deem-me urn nome criativo em seu Parnaso, citem-me urn

poeta alemao que de dentro de si mesmo tirou uma obra de reputacao. De-safio-os a faze-lo." 8

conceitos de "civilizaciio" e "cultura" 31

10. Poderiamos dizer que est a era a opiniao Ieiga de urn frances mal-

orientado. Em 1780, porem, 40 anos ap6s Mauvillon e nove anos antes da

Revolucao Francesa, quando Franca e Inglaterra ja haviam ultrapassado as

fases decisivas de seu desenvolvimento cultural e nacional, quando as Iinguas

~l~:~~~/~iSp~;!:~e~~~e~~~~~::a~"~;!:~~~,~li;;~~~;;c~f;;7~i~~1;.~;~: ..fa litterature alemande, 9 na~qua-l~lamentl1 0 escasso e lIlsuflcleIltc"'C!esenV6f:'

·vtl:n:~fit(ra:tIJ:teratura'afema, alinha mais ou menos as mesmas afirmacoes so-

bre a lingua alema que haviam saido da pena de Mauvillon e explica como,

em sua opiniao, pode ser remediada a lamentavel situacao.

Sobre a lingua alema, diz: "Considero-a uma lingua semibarbara, que

se fraciona em tantos dialetos diferentes como a Alernanha tern provincias.

Cada grupo local esta convencido de que seu patois e 0 melhor". Descreve

o baixo nivel da literatura, lamenta 0 pedantismo dos intelectuais alemaes

e 0 pouco desenvolvimento da ciencia do pals. Mas encontra tambem uma

razao para isto: considera 0 empobrecimento alemao como resultado de

guerras incessantes e do insufieiente desenvolvimento do comercio e da bur-guesia.

"Nfio e", diz ele, "ao espirito ou ao genio da nacao que devemos atri-

buir 0 pequeno progresso que fizemos, mas por a culpa em uma sucessao

de fatos tristes, uma guerra apos outra que nos deixou arruinados e pobres

nao s6 em dinheiro, mas em homens, tarnbem."

Fala do len to comeco da recuperacao da prosperi dade: "0 Terceiro

Estado nao mais enlanguece em vergonhosa degradacao, Pais educam seus

fi!hos sem se endividarem. Eis que corneca a feliz revolucao que esperamos."

E profetiza que, com crescente prosperidade, ocorrera tambern urn floresci-

mento da arte e ciencia alemas, urn processo civilizador que dara aos alemaes

urn Iugar igual entre as demais nacoes: e e esta a feliz revolucao a que se

refere. E compara-se a Moises, que anteviu 0 renascimento de seu povo sem

exper;~.en~~a razao Frederico? Urn ano apos a publicacao de sua obrZ·~"{

em 1781, vern a luz Die Rauber (Os Bandidos), de Schiller, e a Critica da !

raziio pura, de Kant, seguidos em 1787 por Don Carlos, do primeiro autor, I I . . .

e Iphigenie, de Goethe. Dai se seguiu todo 0 florescimento da literatura e •

filosofia alema que conhecemos. E tudo isto parecia !he confirmar a pro- ,

fecia·E t floresce , . h ' . - _)s a nova e orescencia, porem, estrvera a muito tempo em gestacao,

A lingua alema nao adquiriu esse novo poder expressivo em apenas dois ou

tres anos. Em 1780, ana de publicacao de De fa litterature allemande, esta

lingua ha muito deixara de ser 0 patois semibarbaro a que se referia Fre-

derico.Jasurgira uma colecao completa de obras que hoje, em retrospecto,consideramos de grande importancia. 0 Got: von Berlinchigen, de Goethe,

5/16/2018 sociog nese dos conceitos - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/sociogenese-dos-conceitos 7/23

32 a processo civilizador

chegara as ruas sete anos antes, Werther ja estava em circulacao, Lessing ja

publicara a maior parte de suas obras dramaticas e te6ricas, incluindo

Laokoon (Laocoonte) em 1776 e Die Hamburgische Dramaturgie (Drama-

turgia de Hamburgo) em 1767. Frederico falecera em 1781, ap6s a publica-

«ao de seu trabalho. Os escritos de Klopstock haviarn side publicados muitoantes, como 0 Messias, que veio a lume em 1748. Tudo isto sem contar 0

Sturm und Drang, pe<;asde Herder, e uma serie completa de romances muito

lidos, tais como Das Fraulein von Sternheim, de Sophie de la Roche. Muito

tempo antes despontara na Alemanha uma classe de compradores, urn publi-

co burgues - mesmo que ainda relativamente diminuto - que se interessava

por essas obras. Ondas de grande agitacao intelectual varreram a Alemanha

e encontraram expressao em artigcs, livros, pe<;as de teatro e outras obras.

lingua alema tornara-se rica e flexfvel.

Nada disto Frederico sequer sugere em seu trabalho. Ou nao 0 ve ou

lhe atribui importancia. Menciona uma unica obra da jovem geracao, a

maior obra do periodo de Sturm uud Drang e do entusiasmo por Shakespea-

re, Giitz: von Berlinchingen, Caracteristicamente, alude a essa obra em cone-xao com a educacao e formas de divertimento das basses classes, os estratos

mais baixos da populacao:

A fim de se convencerem da falta de gosto que reina na Alemanha ate nossos

dias , basta comparecer aos espetaculos publ icos, Neles verao encenadas as obras

abominaveis de Shakespeare, traduzidas para nossa lingua; a plateia inteira entra

em extase quando escuta essas farsas, dignas dos selvagens do Canada. Des-

crevo-as nes tes termos porque elas pecam cont ra todas as regras do teat ro, regras

que nao sao em absolute arbit rar ias.

Olhem para os carregadores e coveiros que aparecem no palco e fazem dis-

cursos bern dignos deles; depois deles entram reis e rainhas. De que modo pode

esta mixordia de humildade e grandiosidade, de bufonaria e tragedia, ser como-

vente e agradavel?

Podemos perdoar Shakespeare por esses erros bizarros; 0 comeco das artesnunca e seu ponto de maturidade.

Mas vejam em seguida G61z von Berlinchingen, que faz seu aparecirnento

no palco, uma imitacao detes tavel dessas horrfveis obras inglesas , enquanto ?publico aplaude e entusiasticarnente exige a repeticao dessas nojentas imbeci-

lidades.

E continua: "Depois de me ter referido as classes baixas, e necessano

que eu prossiga com a mesma franqueza no tocante as universidades."

12. 0 homem que assim Iala e 0 que fez rnais do que qualquer de

seus contemporaneos pelo desenvolvimento politico e economico da Prussia

e talvez, indiretamente, pelo desenvolvimento politico da Alemanha. Mas a

tradicao intelectual em que se formou e que nele encontra expressao e a

comum a "boa sociedade" da Europa, a tradicao aristocratica da sociedadede corte, anterior a nacao, E ele the fala a lingua, 0 frances. Pelos padroes

conceitos de "civilizaciio" e "cultura" 33

de seu gosto, mede a vida intelectual da Alemanha. Os modelos prescritos

Ihe determinam 0 julgamento. Outros desta soeiedade, muito tempo antes,

referiam-se a Shakespeare de forma bastante parecida. Em 1730, por exem-

plo, Voltaire deu expressao a pensamentos muito semelhantes no Discours

sur La tragedie, no qual apresenta a tragedia Brutus: "De modo algum finjoaprovar as irregularidades barbaras que a saturam (a tragedia Julio Cesar,

de Shakespeare). Surpreende apenas que nao haja ainda mais disto numa

obra escrita em uma era de ignorancia por urn homem que nem mesmo

conhecia latim e que nao teve mestre, exceto seu pr6prio genio."

o que Frederico, 0Grande, diz sobre Shakespeare e, na verdade, a opi-niao geral da classe alta da Europa, que s6 se expressava em frances. Elenem "copia" nem "plagia" Voltaire. 0 que escreve e sua sincera opiniao

pessoal. Nao acha graca nos chistes rudes e incivilizados de coveiros e gente

da mesma laia, ainda mais se aparecem rnisturados com os grandes senti-

mentos tragicos de principes e reis. Acha que nada disso tern forma clara econcisa e que sao "prazeres das classes baixas", E desta maneira que se~~"wIcomentarios devem ser compreendidos: nao sao nem mais nem menos indi- /

vid~ais que a ~ingua francesa que usa. Como ela, atestam sua filiacao a uma

sociedade particular. E 0 paradoxo de que, enquarito sua polftica era prus-

siana, sua tradicao estetica era francesa (ou, mais exatamente, absolutista de f.

corte), nao e tao acentuado como os atuais conceitos de uniformidade nacio-

nal poderiam sugerir. Ele esta inseparavelmente Iigado a estrutura peculiar \

dessa sociedade de cor~e, cujas. i?sti~ui!<6ese interess~s cram multifariamente \fragmentados, mas cuja estratificacao SOCIalse fazia em estamentos cujo \

gosto, estilo e .li~gua eram, de ~an:ira ger~l, os mesmos por toda a Europ0As peculiaridades dessa situacao ocasicnalmente geravam conflitos In-

timos no jovem Frederico e, aos poueos, ele se deu conta de que os interesses

do governante da Prussia nem sempre podiam ser conciliados com a reve-

rencia pela Franca e -a observancia de costumes cortesaos. 10 Durante toda

sua vida, esses conflitos .ocasionaram certa desarmonia entre 0 que ele faziacomo governante e 0 que escrevia e publicava como ser humane e fi16sofo.

Os sentimentos da intelligentsia burguesa alema em relacao a ele mos-

travam as vezes um igual paradoxo, Seus sucessos militares e politicos deram

it auto-consciencia alema urn tonico de que ha muito carecia, e para muitos

ele se transformou em heroi nacional. Mas sua atitude em quest6es de lingua

e gosto, que encontrou expressao na obra sobre a literatura alema, embora

nao apenas nela, era exatamente 0 que a intelligentsia do pais, melhor dizen-

do, enquanto intelligentsia alemii, tinha que combater.

A situacao dessa classe tinha seu analogo em quase todos os maiores

Estados alernaes e em muitos dos menores. No topo, por quase toda a Ale-

manha, situavam-se individuos ou grupos que falavam frances e decidiam a

politica, No outro lado, havia uma intelligentsia de fala alema que de modogeral nenhuma influencia exercia sobre OS fatos politicos, De suas fileiras

5/16/2018 sociog nese dos conceitos - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/sociogenese-dos-conceitos 8/23

34 o processo civil izador

sairam basicamente os homens por conta dos quais a Alemanha foi chamada

de terra de poetas e pensadores. E deles, CO}1c;,ft.i lQs.; J Jm Q " , .B i .l d Il J :1 g , •.J,~~K!JJlpr.

receberam seu cunho e substancia especificamente alemaes..

IV

A Classe Media e a N obreza de Code na Alemanha

13. Constituiria urn projeto notavel (e sobremaneira fascinante) ~e-

monstrar 0 quanta as condicoes espirituais e ideais especfficas de uma SOCle-

dade absolutista de corte encontraram expressao na tragedia francesa, que

Frederico, 0 Grande, contrap6e as tragedies de Shakespeare, e 0 Gbtz:

p07ta~~ia d~J?g5!.....Qrma,.~a..m?J:ca. .G . f ! r i ! £ ! . e , E f ~ . ! ! ~ ~. ~ . e , . t()~.~•::~()~.ie~!l.cl~:'...~te,~_·

tica;··o"'controle dos sentimentos iIl?~yiduais.pela razao, esta ~~.~.~:~:~s~~~£~vital para todos oscortesaos;~ocomportamento reservado e a elimma9ao..ge

'todas'as expressoes plebeias,. sinal especifico de uma fase particulil1:na~p~a.paraa"Clvi1iZa~a()"':::"": tudo' Isto tern sua mais pura manifestacao na ~rageQ.!fI

classica. 9 que tern que ser ocultado na vida cortes a , todos os sentimentose atit~des vulgares, tudo 0 que "a pessoa" nao diz, tampo~c~ .aparece ?atragedia, Gente de baixa posicfio social, que para esta classe significa tambem

carater viI, nela nao tern lugar. Sua forma e clara, transparente, precisamenteregulada, tal como a etiqueta e a vida cortesa em geral. 11 AR!~!:E.!~.osmernbrosda corte. coIIlo elesgostariam de ser e, ao mesmo tempo, comiL()~_

princi~s"'absoT~osos"q~erem ver -..H'fodos os que viveram SO? 0molde

oest'isitu:l9[osocialfossem ingleses, prussianos ou franceses, trveram seu

gosto conformado a; mesmo padrao. 0 pr6prio Dryden, que depois de Pope

e 0 mais conhecido poeta cortesao da Inglaterra, escreveu sobre 0 te~troprimeiro Ingles quase na mesma veia que Frederico, 0 Grande, e Voltaire;

leiamos 0 epilogo de Conquest o f Granada:

Tendo a finura (wit) atingido urn mais alto grau,

E nossa lingua nativa se tornado mais refinada e livre,

Mulheres e homens ora falam com mais graca (wit)

Em suas conversas do que os poetas as descrevem.

o vinculo com a estratificacao social e muito clara no juizo estetico.

Frederico, igualmente, defende-se da falta de gosto de se justapor no palco

a "grandeza tragica" de principes e rainhas com a "rudeza" de carrega-

dores e coveiros. Como poderia ter ele compreendido e aprovado uma

obra dramatica e literaria que focalizava, acima de tudo, a luta contra di-ferencas de c1asse, urn trabalho que tinha a intencao de mostrar que nao

conceitos de "civilizaciio" e "cultura" 35

s6 os sofrimentos de principes e reis e da aristocracia cortesa, mas tambem

os de pessoas situadas mais baixo na classe social, tern sua grandeza e suatragedia?

'Na Alemanha, igualmente, a burguesia torna-se mais prospera, 0 r~

da Prussia percebe este fato e diz a si mesmo que ele levara ao despertar .da arte e da ciencia, a uma "feliz revolucao". A burguesia, porem, fala

uma lingua diferente da usada pelo rei. Os ideais e gosto da juventude bur- (

guesa, seus modelos de conduta, sao quase 0 oposto dos seus.

Em Dichtung und Wahrheit (Poesia e verdade), Livro 9, escrevef

(~"Em Estrasburgo, na fronteira francesa, Iibertamo-nos imediatarifen

~spirito dos franceses. Descobrimos- que seu estilo de vida era regula-

mentado e aristocratico demais, fria a sua poesia, destrutiva sua critica li-

teraria, e abstrusa e insatisfatoria sua filosofia." '

Escreve Giitz com este estado de espirito. Como poderia Frederico, OfGrande, 0hornem do gosto esc1arecido, do absolutismo racional e aristo-/

I

cratico-cortesao, te-lo compreendido? De que modo poderia 0 rei ter apro-.

vado as pecas e teorias de Lessing, que elogia em Shakespeare exatamente]o que Frederico condena: que as obras do dramaturgo Ingles ajustam-s1"

muito mais ao gosto do povo do que os classicos franceses?

"Se alguem houvesse traduzido as obras-prirnas de Shakespeare ...

para os nossos alemaes, sci com certeza que teria colhido melhores resul-

tados do que Iazendo-os conhecer Corneille ou Racine. Para comecar, aspessoas sentiriam muito mais prazer nele do que neles."

Lessing escreve estas palavras em suas Cartas sabre a literatura mais

recente (Parte 1, carta 17) e pede, e escreve, dramas burgueses apropria-

dos a recem-despertada autoconsciencia da classe burguesa, porque acredita

que os membros da corte nao possuem 0 direito exclusivo de serem gran-

des. "Esta odiosa distincao que os homens tracaram entre si," diz, "a na-

tureza desconhece. Ela distribui as qualidades do coracao sern qualquer pre-

ferencia pelos nobres e· pelos ricos."12Todo 0 movimento literario da segunda metade do seculo XVIII e

produto de uma classe social - e, conseqiienternente, de ideais estet icos -

que se opoe as inclinacoes sociais e esteticas de Frederico. Por isso mesmo,

nada tern a the dizer, e ele, por seu lado, ignora as Iorcas vitais ja ativas a

sua volta e condena a que nao pode ignorar, tal como 0 Gotz. Este movis.c->

mento litcrario alemao, cujos expoentes incluem Klopstock, Herder, Les-

sing, os poetas do Sturm und Drang, os poetas de "sensibilidade" e 0 cir-

culo conhecido como Gallinger Rain, 0 jovem Goethe, 0 jovem Schiller e

tantos outros, certamente nao e urn movimento politico. Com raras exce-

coes, nao encontramos na A]emanh~, ~n!~Lg~, ,)Z§2,ideia alguma de acao

l?,':?l!!~C~Iefi\, ..na2Lq_~~.T~_IE.§:r§::~=~()rl11<1C;;a~.epaitido-p·oITfr~g.5.lli:~

Mas de fato ell£5;).nlI.9JnQS.,,,,,s.oh.r:etudo..no.....mu!1do~.Qfic;j;;tlf:'.:~.~~:~.~~~~~.::~=)~~.~;cl:'.~:'~~~~~,~etarn.lJ§~..().inicio pratico, dereformas em ter~2~=d.s= - s- ,

5/16/2018 sociog nese dos conceitos - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/sociogenese-dos-conceitos 9/23

36 a processo civil izador

./

absolutismo esclarecido. Em .filosofos como Kant deparamos com 0 desen-

'~oIvimento(IepririapTos basicos gerais que, em parte, se opoem diretamen-

te as condicoes vigentes. Nos trabalhos da jovem geracao do Gettinger

Hain surgem manifestacoes de violento odio a prmcipes, cortes, aristocra-

tas, afrancesadores, a imoralidade das cortes e a frigidez intelectual. E por

toda a parte, entre os jovens da classe media, identificamos sonhos vagos

c ? de uma nova Alemanha unida, de uma vida "natural" -, "natural" emcontraste com a vida "antinatural" da sociedade de corte -, e freqiiente-

mente urn irresistfvel deleite com sua propria exuberancia de sentimentos.

Pensamentos, sentimentos - mas nada que pudesse, em quaIquer

sentido, ,culminar em a<;ao politica concreta, A estrutura desta sociedade

absolutista de pequenos Estados nao proporcionava uma abertura a eIa. Ele-

mentos burgueses adquiriram autoconfianca, mas 0 arcabouco dos Estados

absolutistas permaneceu inabalado. Os elementos burgueses foram excluidos

de toda e qualquer atividade. Na melhor das hipoteses, podiam "pensar e

escrever" independentemente, mas nao agir da mesma forma.

Nessa situacao, a:lit~rat!ll'a tor?a-se 0escoadouro .mais. importante.Nela, a nova autoconfl;U;-9~'~ · · · ~ - v a g o ·escontentanicnto' 'com'['Corderrf'vi-

gente expressam-se de forma mais ou menos encoberta, Nela, que 0 apa-relho dos Estados absolutos havia liberado ate certo ponto, a geracao jo-

vern da classe media contrapunha seus novos sonhos e ideias contrarias, e

com eles a lingua alema, aos ideais cortesaos,

t " " - ' _ . - , Conforme dito acima, 0 movimento Iiterario da segunda metade do

\ seculo XVHI nao tern carater politico, embora, no sentido 0mais amplo

\ possivel, constitua manifestacao de urn movimento social, uma transform a-

\. c;;aoda sociedade. Para sermos exatos, a burguesia como urn todo nele ain-

'Iia nao encontrava expressao, Ele comecou sendo a efusao de uma especie

de vanguarda burguesa, 0 que descrevemos aqui como intelligentsia de

classe media: numerosos individuos na mesma situacao e de origens sociais

semelhantes espalhados por todo 0 pais, pessoas que se compreendiam por-

que estavam na mesma situacao. So raramente membros dessa vanguardase reuniam em algum lugar como grupo durante urn periodo maior ou me-

nor de tempo. Quase sempre viviam isolados ou sos formando uma elite em

relacao ao povo, mas pessoas de segunda classe aos olhos da aristoeracia

cortesa,

Repetidamente, encontramos nessas .obras a Iigacao entre tal posicao

social e os ideais nelas postulados: 0 amor a natureza e a Iiberdade, a exal-

tacao solitaria, a rendicao as emocoes do coracao, sem 0 freio da "razao

fria". No Werther, cujo sucesso demonstra como esses sentimcntos eram

tipicos de uma dada geracao, isto e dito de maneira bern clara e inequivoca.

Em data de 24 de dezernbro de 1771, lemos: "0 sofrimento resplen-

decente, 0 tedio reinante entre as pessoas detestaveis aqui reunidas, a com-

conceltos de "civilizaciio" e "cultura" 37

peticao entre elas por posicao, a maneira como constantemente procurammeios de urn passar na frente do outro ... "

E em 8 de janeiro de 1772: "Que tipos de pessoas sao estas cuja almainteira se radica no cerimonial e cujos pensamentos e desejos 0 ana inteiro

centralizam-se em como podem aproximar uma cadeira da mesa?"

E em 15 de margo de 1772: "Rilho os dentes... Apos 0 jantar na

casa do conde, andamos de urn lado para 0 outro no grande parque. Apro-xima-se a hora social. Penso, sabe Deus sobre nada." Ele permanece ali, os

nobres chegam. As mulheres murmuram entre si, alguma coisa circula entre

os homens. Finalmente, 0 conde, urn tanto embaracado, pede-lhe que se re-

tire. A nobreza sente-se insultada ao ver urn burgues entre seus membros.

"Sabe", diz 0 conde, "'acho que os convivas estao aborrecidos em

ve-Io aqui.'... Afastei-rne discretamente da ilustre companhia e me dirigi

a M., a fim de observar 0 per-do-sol do alto da colina, enquanto lia no

meu Homero 0 canto que celebra como Ulisses foi hospitaleirarnente rece-bido pelos exceIentes guardadores de porcos."

Por urn lado, superficialidade, cerimonia, conversas formais; por ou-

tro, vida interior, profundidade de sentimento, absorcao em Iivros, desen-

volvimento da personalidade individual. Temos 0 mesmo contraste referidopor Kant, na antitese entre Kultur e civilizaciio, aplicado aqui a uma sima-

<;ao social muito e~pecff:ica:;·"

No Werther(Goeth~m1stra tambern com particular cIareza as duas

frentes entre as quais-vrv(( 'a burguesia. "0 que mais me irrita", lemos na

anotacao de 24 de dezembro de 1771, "e nossa odiosa situacao burguesa.

Para ser franco, sei tao bern como qualquer outra pessoa como sao neces-

sarias as diferencas de classe, quantas vantagens eu mesmo lhes devo. Ape-

nas nao deviam se levantar diretamente como obstaculos no meu caminho."

Coisa alguma caracteriza melhor a consciencia de c1asse media do que essa

declaracao. As portas debaixo devem permanecer fechadas. A s que ficam

acima tern que estar abertas. E como todas as classes medias, esta

aprisionada de uma maneira que the era peculiar: nao podia pensar em

derrubar as paredes que bloqueavam a ascensao por medo de que as que

a separavam dos estratos mais baixos pudessem ceder ao ataque.",",- ,,",~

Tod~ 0 movimen:o foi .de ascensao pa.ra a nobr:za: .0 bisavo d(Go~the)fora ferreiro.w seu avo alfaiate e, em seguida, estalajadeiro, com uma'e1Ien~tela cortesa, e maneiras cortesas-burguesas. Ja abastado, seu pai tornou-se

conselheiro imperial, burgues rico, de meios independentes possuidor de ti-r- ,

tulo. Sua mae era ,.!iJ1ia,deuma familia patricia de Frankfurt.

o pai de ~,era cirurgiao e, mais tarde, major, mal remunerado;

mas seu avo, bisavo e tataravo haviam sido padeiros. De origens sociais se-

melhantes, ora mais proximas ora mais remotas, dos oficios e da adminis-

trac;ao de nfvel medio vieram .Schubart, Biirger, Winkelmann, Herder, Kani'~'\

Friedrich August Wolff, Fichte;'e muitos outros membros do movimento,

5/16/2018 sociog nese dos conceitos - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/sociogenese-dos-conceitos 10/23

(<,

a processo civil izador8

I 14. Na Franca, ocorria urn movimento analogo. Ali, tambem, ern

[conexao com mudanca social semelhante, grande mimero de homens nota-

fveis emergiram de circulos da classe media, entre eles Voltaire e Diderot.

!Na Franca, porem, esses talentos eram recebidos e assimilados sem maiores

dificuldades pela grande sociedade de corte de Paris . Ja na Alemanha, aos

fi~2~~~_£!l~_cellJ~.._clgsse.media.que .se distinguiam pelo tile~'io~'e-Infeng~'il:'~

cia era negado acessotlla.,s_u_a grande r n . ~ i ( ) J i f l : ' .it vida cortesa-aristocratiea.Dns poucos;'com06o.ethe, conqulstaram 'certa-pi:eeminencia nesses reireu-

los. Mas, Ii parte 0 fato de a corte de Weimar ser pequena e relativamente

pobre, Goethe Ioi uma excecao. De modo geral, permaneceram muito altas

segundo os padroes ocidentais, as paredes entre a intelligentsia de classe

media e a cJasse superior aristocratica na Alemanha, Em 1740, 0 frances

Mauvillon anota que "observamos nos gentil-homens alemaes urn ar alta-

neiro que chega ao ponto da arrogancia, Emproados de uma linhagem cuja

extensao estao sempre prontos a provar, desprezam todos aqueles que nao

sao analogamente bern dotados". "Raramente", continua, "contraem m e -salliances. Mas nao menos raramente sao vistos comportando-se de forma

simples e afavel com membros da cJasse media. E se desdenham comibiocom eles, ainda menos lhes procuram a companhia, quaisquer que sejam

seus meritos.">'

Nesta divisao social muito nitida entre nobreza e cJasse media, confir-

mada por incontaveis documentos, urn Iator decisivo era sem duvida a in-

digencia relativa de ambas. Isto levava os nobres a se isolarem, utilizando

a prova de ancestralidade como 0 instrumento mais importante para Ihes

preservar a existencia social privilegiada. Por outro lado, bloqueava it clas-

se media alema a principal rota pela qual ascendiam os elementos burgue-

ses de pafses ocidentais casavam e cram recebidos pela aristocracia: atra-

ves do dinheiro.

Mas quaisquer que tenham side as causas - sem diivida altamente

cornplexas - dessa separacao muito nitida, 0resultante baixo grau de fu-

sao entre os modelos aristocraticos de corte e os valores baseados no me-ri to intrinseco, por urn lado, e os modelos e valores burgueses fundamenta-

dos nas realizacoes, por outro, influenciou durante longo tempo 0 carater

nacional alemao, a medida que este foi emergindo desde entao. Esta divisao

explica por que uma corrente Iingiiistica principal, a linguagem dos alemaes

educados, e quase toda a tradicao intelectual recente enfeixada na literatura,

receberarn seus impulsos decisivos e aprovacao de urn estrato intelectual de

cJasse media. que era muito mais pura e especificamente c1asse media que

a correspondente intelligentsia francesa emesmo mais que a inglesa, esta

ultima parecendo ocupar uma posicao intermediaria entre as da Franca eAlemanha,

A postura de auto-isolarnento, 0 destaque ao especffico e ao distintivo,

que antes vimos na comparacao entre 0 conceito alemao de Kultur e 0 oci-

conceuos de "civ ili zac ii o" e "cu lt ura" 39

dental de "civilizacao", aqui reaparecem como caracterfsticos do desenvol-vimento hist6rico alemao,

Mas nao foi so externamente que a Franca se expandiu e colonizou

outras terras mais cedo em comparacao com a Alemanha, Internamente

tambem, movimentos analogos sao muitas vezes identificados em sua histo-

ria mais recente. De particular importancia neste sentido foi a difusao demaneiras aristocraticas de corte, a tendencia da aristocracia de corte a as-

similar e, por assim dizer, colonizar elementos de outras classes. 0 orgulho

social da aristocracia frances a e sempre muito grande e a enfase em dife-

rencas de classes nunca perde importiincia para ela. As paredes que a cer-

cam, porem, tern mais aberturas e 0acesso it aristocracia (e assim a assi-

milacao de outros grupos) desempenha aqui urn papel muito maior do quena Alemanha.

A e~~ansao mais vigorosa do imperio alemao ocorre, em contraste, na+-Idade Media, A part ir dessa epoca, 0 Reich alemao diminuiu lenta mas inin-

terrupt~~e~te. Mesmo antes da Guerra dos Trinta Anos, e muito mais apos,

os .terntonos alemaes sao confinados de todos os lados e forte pressao e

aplicada em quase todas suas fronteiras externas. PorIsso mesmo, as lutasdentro ~a Alerna~ha entre os varies grupos sociais que competiam por

oportull1dad~s.11l1~ltadase pela sobrevivencia e, por conseguinte, as tenden-eras para distincoes e exclusoes mutuas em geral foram mais intensas do

que. ~~s paise: ocidentais em expansao. Tanto quanto a fragmentacao doterntono alemao em grande mimero de Estados soberanos, foi este Iso _

mento. ~xtremo de grandes segmentos da nobreza face it classe media alemaque dificultou a formacao de uma sociedade unificada, central, que esta-

belecesse urn rnodelo, 0 que em outros pafses adquiriu importiincia decisi-

va, pelo menos como fase no caminho da nacionalidade pondo sua marcat f ' "em cer as ases, na Iingua, nas artes, nas maneiras, e na estrutura das emo-

I(oes.

v

Exemplos Literarios d a Rela.;;ao entre a Intelligentsia

de Classe Media Alema e a Corte

. 15., Os Iivros de c1asse media que obtiveram grande sucesso de pu-

blico apos mea~os do seculo-.XVIII - isto e , no periodo em que essa

classe se expandia em prospendade e autoconfianca - mostram com muita

clareza a que profundidade eram sentidas essas diferencas, Demonstram

tambem que as diferencas entre a estrutura e a vida da classe media, por

5/16/2018 sociog nese dos conceitos - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/sociogenese-dos-conceitos 11/23

40 o processo civilizador

urn lado, e a cIasse superior cortesa, por outro, eram acompanhadas por

diferencas na estrutura do comportamento, vida emocional, aspiracoes e

moralidade. E indicam - por torca, unilateralmente - como elas eramvistas no campo da cIasse media.

Temos urn exemplo disto no conhecido romance de S02hie de 1a.,. .BQ:__

,,~s Fraulein von Sternheim, 15 que tornou a autora uma das mulheresmais famosas de seu tempo. "Todo 0 meu ideal de jovem mulher," escreveu

Caroline Flachsland a Herder depois de ler Sternheim, "suave, delicada,

caridosa, orgulhosa, virtuosa, e enganada. Passei preciosas e maravilhosas

horas lendo 0 livro. Ai de mim como ainda estou longe de meu ideal, demim mesma."16

11-0 curioso paradoxo existente no fato de que Caroline Flachsland,

i como tantas outras mulheres de formacao semelhante, ama seu proprio so-

'l" frimento - que incluia ser enganada, juntamente com caridade, orgulho e

" vir tude, entre as qualidades da heroina ideal com que deseja se parecer

'l - e altamente caracterfstico do estado emocional da intelligentsia de classe

Imedia e, em especial, das mulheres entre ela, nessa era de sensibilidade. A

Iheroina de classe media e enganada por urn cortesao aristocratico. A adver-"'tencia, 0 medo de urn "sedutor" socialmente superior, que nao pode ca-

sar-se com a moca por causa da distancia social, 0 desejo de receber sua

atencao, 0 fascfnio da ideia de penetrar no cfrculo fechado e perigoso c,

finalmente, a empatia identificadora com a moca enganada, tudo isto cons-

titui exemplo da ambivalencia especifica que obcecava a vida emocionaJ

dos membros da c1asse media - e nao apenas de mulheres - no tocante

Iiaristocracia. Das Friiulein von Sternheim e, neste aspecto, a contrapartida

feminina de Werther. Ambas as obras tratam de emaranhamentos especifi-

cos de classes que se traduzern em sentimentalismo, sensibilidade, e nuan-

cas correlatas de emocao,

o problema de que trata 0 romance: Urna moca do campo, de altos

principios, originaria de uma classe de proprietar ies de terra , chega a corte.

o principe, aparentado com ela pelo lado da mae, a deseja como amante ,

Nao vendo Dutra escapatoria, ela busca protecao junto ao "vilao" do ro-

mance, urn lorde Ingles que vive na corte e que fala exatamente COmo

numerosos circulos de classe media teriam imaginado que fala urn "sedu-

tor aristocratico" e que produz urn efeito cornico porque, em seus pensa-

mentos, ele se censura usando expressoes de classe media. Mas gracas a ele,

tambem, a herofna conserva sua virtude, sua superioridade moral , compen-

sacoes por sua inferioridade de classe, e morre.

E e assim que fala a heroina, Fraulein von Sternheim, filha de urn co-ronel agraciado com urn tf tulot '?

Ver como 0 tom, 0 est ado de espfrito que esta na moda na corte, reprlme os

anseios mais nobres de urn coracao admiravel por natureza, ver como evitar as

zombarias de senhoras e cavalheiros elegantes signifiea rir e concordar com

conceitos de "civilizaciio" e "cultura"

eles, enche-me de desprezo e piedade, A sede de distracoes, de novos atavios,

de adrniracao por urn trajo, uma peca de mobiliario, urn novo prato absurdo,

oh, minha Emilia, como se agita e adoece minha alma ... Nao vou falar da faIsa

arnbicao que trama taut as intrigas vis, rasteja diante do peeado oeultado pela

prosperidade, considera com desprezo a virtude e 0 merito e, indiferente, faz

com que outros se sintam infelizes.

"Estou convencida, tia", diz e1a apos alguns dias no palacio, "de que

a vida da corte nao se coaduna com meu carater. Meus gostos, minhas in-

clinacoes, divergem dela de todas as maneiras. E confesso a minha bondosa

tia que iria embora mais feliz do que aqui cheguei."

"Querida Sophie", responde a tia; "voce e realmente uma moca ex-

traordinariamente encantadora, mas 0 velho vigario lhe encheu a cabeca de

ideias pedantes. Esqueca-as urn pouco." 18

Em outro trecho, Sophie escreve: "Meu amor pela Alemanha acaba

de me envolver em uma conversa na qual tentei defender os meritos da

mae-patria. Falei com tanto entusiasmo que minha tia me disse depois que

eu tinha feito uma bela demonstracao de ser neta de urn professor. .. Esta

repreensao me deixou mortificada. Foram insultadas as cinzas de meu pai

e avo." ~o clerigo e 0professor estes sao realmente os dois representantes

mais importantes da intelligentsia administr~t~va de classe ~6dia,. du~s fi-guras sociais que desempenharam papel decisivo na formacao e difusao de

uma nova lfngua alema culta. Este exemplo mostra com muita clareza

como 0 vago scntimento nacional desses cfrculos, com suas inclinacoes es-

pirituais, nao-polfticas, parece burgues a aristocracia das pequenas cortes.

Ao mesmo tempo, clerigo e professor chamam atencao para 0 centro so-

cial mais importante na modelacao e disseminacao da cultura de c1asse me-

dia alema: a universidade, Dela, geracao apos geracao de estudantes disse-

minaram pelo pais, como mestres, clerigos e administradores de nivel me-

dio, urn complexo de ideias e ideais marcados de uma maneira particular.A universidade alema foi , nesse sentido, 0 contrapeso da classe media J . . . - - -corte.

Desta maneira, e nas palavras com que 0 pastor poderia fulmina-lo do

pulpito que 0vilao da corte se expressa na imaginacao da classe media: 19

Voce sabe que nunea coneedi ao amor qualquer outro poder sobre meus sentidos,

cujos mais delicados e vivos prazeres propicia... Todas as classes de beleza se

entregaram a mim ... Delas fiquei saeiado... Os moralistas ... podem dizer 0

que quiserem sobre as finas redes e armadilhas com as quais capturei a virtude

e 0 orgulho a sabedoria e a frigidez, 0 coque tismo e mesmo a re ligiosidade

de todo 0 rnundo feminino... 0 amour satisfez minha vaidade. Trouxe do mais

atrasado Iugar do campo uma filha de coronel cujo corpo, mente, e carater

sao tao eneantadores que ..•

5/16/2018 sociog nese dos conceitos - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/sociogenese-dos-conceitos 12/23

42 0 processo civilizador

-: Vinte e cinco anos depois, antiteses, ideias e problemas correlatos se-

( melhantes ainda podem merecer um sucesso de livraria. Em 1796, 0 Agnes

\ von Lilien.t" de Caroline von Volzogen, aparece nas Horen, * de Schiller.

" Neste romance, a mae, da alta aristocracia, que por razoes misteriosas tem

, que mandar educar a filha fora do circulo da corte, diz:

Iinto-ms quase grata pela prudencia que me obriga a mante-la longe do cfrculo

no qual me tornei infeliz, Uma formacao seria e solida da mente e rara na

alta sociedade. Voce poderia ter-se transformado em uma pequena boneca que

danca de urn lado para 0 outro ao sabor da opiniao.

E a.heroina diz de si mesma.s-

Eu pouco sabia da vida convencional e da Iinguagern de pessoas mundanas. Meus

principios simples achavam paradoxais muitas coisas que uma mente tomada

mais maleavel pelo habito aceita sem esforco. Para mim era tao natural como

a noite seguindo-se ao dia lamentar a jovem enganada e odiar 0 enganador,

preferir a virtude a honra e a honra a vanta gem pr6pria. Na opiniao dessa

sociedade cu via todas essas ideias de cabeca para baixo.

Ela descreve em seguida 0 prfncipe, um produto da civilizacao fran-

cesa:22

o prfncipe, que tinha entre 60 e 70 anos de idade, oprimia a si mesmo e aos

demais com a rigida e antiga etiqueta que os filhos dos principes alemaes

haviam aprendido na cor te do rei f rances e transplantado para seu proprio solo,

embora, reconhecidamente, em dimensoes algo reduzidas. 0 prlncipe aprendera

pela idade e habito a mover-se quase com naturalidade sob esta pesada arma-

dura de cerim6nia. Com relacao as mulheres, observava a cortesia elegante,

exagerada, da era preterita da caval aria andante, de modo que sua pessoa nao

lhes era desagradavel, mas ele nao podia deixar nem por urn instante a esfera

das boas maneiras sem se tomar insuportavel. Seus filhos... viam no pai apenas

o despota,

As maneiras caricaturais, entre os membros da corte, ora me pareciam ri-

diculas ora lamentaveis, A reverencia com que' podiam, ao aparecimento de seu

senhor, convocar imediatamente do coracao para as maos e pes, 0 olhar gra-

cioso ou raivoso que Ihes t respassava 0 corpo como urn choque eletrico... a

concordancia imediata de suas opini6es com as pa lavras mais recentes caidas dos

labios principescos, tudo isto achei incompreensivel. Pareceu-me que estava

assistindo a urn teat ro de marionetes .

I, Cortesia, submissao, boas maneiras, por um Iado, e educacao solida e

preferencia pela virtude antes da honra, por outro: a literatura alema na

I segunda metade do seculo XVIII abunda dessas antiteses. Em data recen-

Ite como 23 de outubro de 1828, Eckermann diz a Goethe: "Uma educacao

~tao completa como 0 Grao-Duque parece ter recebido e sem diivida rara en-

• Revis ta li terar ia: Horas. (RJR)

conceitos de "civilizaciio" e "cultura" 43

tre personagens principescos". "Muito rara", responde Goethe. "Ha muitos,

para ser exato, que podem conversar inteligentemente sobre qualquer as-

sunto, mas nao possuem conhecimentos profundos e apenas arranham a su-

perficie. E isto nao e de espantar, se pensamos nas espantosas distracoes e

truncamentos que a vida da corte acarreta". ..-

Em uma ocasiao, utiliza com grande cIareza 0 conceito de Kultur nes- \

te contexto: "As pessoas com quemconvivi", diz, "nao tinham ideia d~'que seja erudicao, Eram cortesaos alemaes e esta classe nao possui nenhu-

ma Kultur''P« E Knigge observa certa vez explicitamente: "Onde mais do

que aqui (na Alemanha) os cortesaos formam uma especie separada?"

16. Em todas essas citacoes ha.uma situacao social bem definida. E

a mesma que se observa por tras do contraste que Kant estabelece entre

Kultur e civilizacao, Mas mesmo independentemente desses conceitos, essa

fase e as experiencias dela derivadas gravaram-se com profundidade na tra-

di9ao alema, 0 que se manifesta n e s s . e _ c Q I l C n t Q _ Q £ l K~."!!.\L\lJ!!ilJ<~>~"<"(mtre

pr~erfici~lidaq£I ••~,~em~!!l~,i!<!'~"""£Q!1"Q.«i1p);_J';PJ:r,~laiQ&.,~,"

~~~l!l<;!:!Ta£~_~~,.!.,~!!!!£"",!~~!~~~~!~~l~~~""~~~~ia. Esta e uma ca-mada relativamente delgada que se estende por toda " 3 , art\a e, por conse-guinte, e individualizada em alto grau e em uma forma particular. Nao

constitui, como acontece com a corte, um circulo fechado, uma "socieda-

de". Compoe-se predominantemente de administradores, de servidores civis

no sentido mais amplo da palavra - isto e, de pessoas que direta ou indi-retamente obtem sua renda da corte, mas que, com poucas excecoes, nao

pertencem a "boa sociedade" cortesa, a classe alta aristocratica, E uma

c1asse de intelectuais com ampla formacao de c1assemedia. A burguesia co-

mercial, que poderia ter servido como publico para os escritores, e relati-

vamente subdesenvolvida na maioria dos Estados alemaes no seculo XVIII.

A ascensao para a prosperidade apenas ensaia os primeiros passos nesse pe-

dodo. Ate certo ponto, por conseguinte, os escritores e intelectuais alemae~"

como que flutuam no ar. Mente e livros sao seu refugio e dominio, e asrealizacoes na erudicao e na arte seu motivo de orgulho. Dificilmente exis-

te para esta classe oportunidade de a~ao politica, de metas politicas. Para

ela, 0 cornercio e a ordem economica , em conformidade com a estrutura da

vida que Ievam e da sociedade onde se integram, sao interesses marginais. \

o comercio, as comunicacoes e as indiistrias sao relativamente subdesenvol- Ividos e ainda necessitam, na maior parte, de protecao e promocao mediante (

uma politica mercantilista, e nao de libertacao de suas restricoes. 0 que I'

legitima a seus pr6prios olhos a intelligentsia de c1asse media do seculo i,

XVIII, 0 que fornece os alicerces a sua auto-imagem e orgulho, situa-se ,

alem da economia e da politica. Reside no que, exatamente por esta razao,

e chamado de das rein Geistige (0 puramente espiritual) em livros, traba-

lho de erudicao, religiao, arte, filosofia, no enriquecimento interno, na for-

macfio intelectual (Bildung) do individuo, principalmente atraves de livros, . .)

5/16/2018 sociog nese dos conceitos - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/sociogenese-dos-conceitos 13/23

o processa civilizador

na personalidade. Em conseqiiencia, os lemas que expressam essa auto-ima-

gem da classe intelectual alema, termos tais como Bildung e Kultur, ten-

dem a tracar uma nitida distincao entre realizacoes nas areas que acabamos

de mencionar, esta esfera puramente espir itual (concebida como a iinica de

valor autentico), e a esfera politica , econ6mica e social, em contraste fron-tal como os lemas da burguesia ascendente na Franca e Inglaterra. 0 des-

tino peculiar da burguesia alema, a sua longa impotencia politica, e a tar-

dia unificacao nacional, atuaram continuamente na mesma direcao, refor-

cando conceitos e ideais desse tipo. Desta -naneira, 0 desenvolvimento do

conceito de Kultur e os ideais que 0 mesmo corporificava reflet iram a po-

sicao da 'intelligentsia alema, destituida de uma hinterlandia social impor-

tante e que, sendo a primeira formacao burguesa no pais, desenvolveu um,a

auto-imagem manifestamente burguesa, ideias especificamente de classe m:-

dia e um arsenal de conceitos incisivos dirigidos contra a classe alta cortesa.

Ainda de acordo com a situacao em que vivia, delineava-se 0 que esta

intelligentsia considerava comO mais merecedor de oposicao na classe supe-

rior como sendo a antitese da Bildung e da Kultur. Mas 0 ataque so e diri-gid~ rara, hesitante e em geral resignadamente contra os privilegios politicos

ou sociais da aristocracia . Em vez disso, volta-se predominantemente contra

seu comportamento humano. ".Uma descricao muito esclarecedora da diferenga entre esta classe inte-

lectual alemae sua contrapartida francesa e rarnbcm encontrada nas con-

versas de Goethe com Eckermann: Ampere chega a Weimar. (Goethe nao

o conhecia pessoalmente, mas com freqiiencia 0elogiara para ~ckerman~.)

Para espanto de todD mundo, descobre-se que 0 festejado M_0nsleurAmpere

e "urn alegre jovem na casa dos 20 anos". Eckermann manifesta surpresa e

Goethe responde (quinta-Ieira, 23 de maio de 1827):

Nao tern sido facil para voce em sua terra nativa, e ~o s no centr~ da Ale-

manha tivemos Que pagar muito caro pela pouca sabedona que possmmos. Isto

porque, no fund~, Ievamos uma vida isolada, pauperrima! Pouquiss~ma .cultura

nos chega do proprio povo e todos nossos homens de tale~to estao", d~spersos

pelo pais. Urn esta em Viena, outro em Berlim, urn tercerro em KOnlgs~erg,

o quarto em' Bonn ou Dusseldorf, todos separados entre si por 50 ou 100 n:ll~as,

de modo que e uma raridade 0 contato pessoal ou uma troca pessoal de ideias.

Sinto 0 que is to s ignif ica quando homens como Alexander. von H~m.boldt . pas-

sam por aqui e fazern com que meus estudos progridam I_UalsnuI_U,~leo dia do

que se eu tivesse viajado urn ano inteiro em .meu caminho solltano: "

Mas agora imagine uma cidade como Pans, onde as men.tes m,als .notaveis

de todo 0 reino estao reunidas num unico lugar, e em seu mtercambl?, com-

peticao e rivalidade diarias eles se ensinam e se estimulam a prosseguir, onde

o melhor de todas as esferas da natureza e da arte de toda a superffcie da

terra pode ser visto em todas as ocasioes, Imagine essa metropole onde cada

ponta que se transp6e e cada praca que se cruza evocam urn grande passado.E em tudo isto nao pense na Paris de uma epoca monotona e embotada, mas

na Paris do seculo XIX, onde durante tres gerac6es, gracas a hornens como

conceitos de "civilizaciio" e "culture" 45

Moliere, Voltaire, e Diderot, essa riqueza de ideias foi posta em circulacao

como em nenhuma outra parte de todo 0 globo, e compreendera que uma boa

mente como a de Ampere, tendo se desenvolvido em meio a tal abundancia,

pode muito bern chegar a ser alguma coisa no seu 24.0 ano de vida.

Mais adiante, diz Goethe com referencia a Merimee: "Na Alemanhanao podemos ter esperanca de produzir obra tao madura em idade tao

jovem, Isto nao -e culpa do individuo, mas do estado cultural da nacao e

da grande dificuldade que todos experimentamos em, sozinhos, abrir ca-

minho",

A vista de tais palavras, que neste contexto introdut6rio tern que ser-

vir como documentacao, toma-se multo claro como a fragmentacao poli-

tica da Alemanha se ligou a uma estrutura bem especifica, tanto da classe

intelectual quanto de seu comportamento social e maneira de pensar. Na

Franca, os membros da intelligentsia estao reunidos em urn unico lugar,

sao mantidos juntos em uma "boa sociedade" mais ou menos unificada e

central; na Alemanha, com suas numerosas e relativamente pequenas ca-

pitais, nao ha essa "boa sociedade" central e unificada. Neste caso, a intel-ligentsia esta dispersa por todo 0 pais. Na Franca, a conversa e urn dos

mais importantes meios de comunicacao e, alem disso, ha seculos e uma

arte; na Alemanha, 0 meio de comunicacao mais importante e 0 livro, e

e uma lingua escrita unificada, e nao uma falada, que essa cJasse inte-

lectual desenvolve. Na Franca, ate os jovens vivem em urn ambiente de

rica e estimulante intelectualidade; mas 0 jovem membro da cJasse media

alerna tern que subir a muito custo em relativa solidao e isolamento, Os

mecanismos de progresso social sao diferentes nos dois paises. E, final-

mente, as palavras de Goethe mostram com grande cJareza 0 que real-

mente significa uma intelligentsia de classe media sem uma hinterlandia

social. Anteriormente, citamos um trecho em que ele atribui pouca cuJtura

a cortesaos. Nesta ultima, ele diz 0 mesmo a respeito do povo comum.

Kultur e Bi/dung sao os lemas e caracterfsticas de um delgado estrato in-

terrnediario que nasceu do povo. Nao so a pequena c1asse cortesa acima

dela, mas ate mesmo 0 estrato mais amplo em baixo ainda demonstram

relativarnente pouca compreensao pelas realizacoes de sua propria elite.

Nao obstante, exatarnente este subdesenvolvimento de uma cJasse bur-

guesa mais amp la, profissional, e uma das raz6es por que a luta da van-

guarda da c1asse media, a intelligentsia burguesa, contra a cJasse cortesa

superior, e dirigida predormnantemente contra a conduta da mesma, contra

caracteristicas humanas gerais como "superficialidade", "polidez. de fachada",

"insinceridade", e assim por diante. Ate mesmo as poucas citacoes aqui

transcritas mostrarn com extrema clareza essas conexoes. Reconhecidamen-te, so em raros casos e sem grande enfase 0 ataque se volta contra conceitos

5/16/2018 sociog nese dos conceitos - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/sociogenese-dos-conceitos 14/23

46 o processo civilizador

especfficos, contraries aqueles que serviram para a autolegitimacao da clas-

se intelectual alema, conceitos tais como Bildung e Kultur. Um dos poucos

conceitoscontnirios especificos e "civilizacao", no sentido kantiano.

VI

o Becuo do Elemento Social e 0 Progresso

do Social na Antitese entre Kultur e Zivilisation

17. Se a antitese e expressa por estes ou por outros conceitos, uma

coisa fica sempre clara: 0 contraste de caracteristicas humanas particula-

res, que mais tarde servem principalmente para patentear uma antftese na-

...£.ional,surge aqui principalmente como manifestacao de uma antitese social.

\ Como experiencia subjacente a formulacao de pares de opostos tais como

<~"profundeza" e "superficialidade", "honestidade" e "falsidade", "polidez de

(fachada" e "autentica virtnde", e dos quais, entre outras coisas, brota a

,,?'antftese entre Zivilisation e Kultur, descobrimos, em uma fase particular do

'~'desenvolvimentoalemao, a tensao entre a intelligentsia de classe media e

. ' i t aristocracia cortesa. E verdade que nunca se esquece por completo a liga-

" ' 9 f f o entre 0 refinamento cortesao e a vida francesa. G. C. H. Lichtenberg

!·trata disso com grande clareza em um de seus aforismos, ao falar da dife-

j renca entre a ~!1~il:. e a Versprechung alema (Parte 3, 1775-

1779).24 "A ultima e cllmpJiQ\!:~L<liz,,~~~i£~.~ A utilidade das

lpalavras francesa'sno'alemao! 0 que me surpreende e que isto nao tenha

[sido notado. A palavra francesa da a ideia alema com uma mistura de

Ifraude, ou no seu significado cortesao... Uma invencao (Erfindung) e algo

{novo e uma decouverte algo velho com um novo nome. Colombo descobriu

(entdeckte) a America e ela foi a decouverte de Americo Vespucio, Naverdade gout e gosto (Geschmack) sao quase antiteticas e pessoas de gout

,.raramente tern muito bom gosto".

Mas s6 depois da Revolucao Francesa e que a ideia da aristocracia

cortesa alema indubitavelmente recua, e a ideia da Franca e das potencias

ocidentais em geral passa ao primeiro plano. no conceito de "civilizacao"

e ideias semeIhantes.

Vejamos um exemplo tfpico: em 1797 foi publicado um pequeno livro

de autoria do emigre frances Menuret, intitulado Essai sur la ville d'Ham-

bourg. Um cidadao de Hamburgo, 0 conego Meyer, escreve 0 seguinte co-

mentario sobre a obra:

Harnburgo e ainda atrasada. Apos uma epoca famosa (bern famosa e quando

grandes numeros de imigrantes se es tabelecerarn aqui ) , eia fez progressos (real -

47

mente~); mas para aumentar ,. ~~o digo completer sua felicldade (isto ter ia que

se pedir a Deus), mas sua civilizacao, seu avanco na carreira da ciencia e da

arte (nas ~uais, como sabem, continuamos ainda no Norte), eia ainda precisa

de certo numero de anos ou de eventos que atraiam para si novas multidoes

de cst rangeiros (contanto que nao sejam mais mul tidoes de seus civilizados com-

patrtotas) e urn aumento da opulencia,

Aqui, por conseguinte, os conceitos de "civilizado" e "civilizacao" ja

estao inequivocamente ligados a imagem do frances.

Com a Ienta ascensao da burguesia alema, de classe de segunda cate-

goria para depositaria da consciencia nacional e, finalmente _ muito tarde

e .com .reservas - para classe governante, de uma classe que, no infcio,

fO I obrigada a se ver ou legitimar principalmente se contrastando com a

cJasse superior aristocratica de corte e, em seguida, definindo-se contra

n.a!;~~sconcorrentes, a antitese entre Kultur e Zivilisation, com todos seus

significados ~orrelatos, muda em significagao e funcao: de antitese prima-rtamente social torna-se primariamente nacional.

E urn .d.esenvolvimentoparalelo e experimentado por aquilo que e jur:-'"

gado especificamente alemao: aqui, igualmente, numerosas caracteristicas

s~ciai~ origi~ariamente de cIasse media, estampadas nas pessoas por sua

situacao social, transformam-se em caracteristicas nacionais. A honestidade

e a sinceridade, por exemplo, sao neste momento contrastadas como carac-

teri~ticas alemas, a cortesia dissimuladora. A sinceridade, por6m, da forma

aqui usa?~, ernergia inicialmente como traco caracterfstico de pessoa da

~Ias.semedia, em contraste com 0 mundano ou 0 cortesao, Isto, igualme~t~,

e VIstOCom clareza em uma conversa entre Eckermann e Goethe. .""

"Eu em geral leva para a sociedade", diz Eckermann no dia 2 de maio

de 1824, "minhas simpatias e antipatias e uma certa necessidade de amar

e ser amado. Procuro uma personaIidade que se conforme a minha natu-

reza. A essa pessoa eu gostaria de me entregar inteiramente e nada ter a

ver com as dernais.""Essa sua tendencia natural", responde Goethe, "na verdade nao e do

tipo sociavel, Ainda assim, 0 que seria de toda nossa educacao se nao es-

tivessemos dispostos a superar nossas tendencias naturais? E uma grande

tolice exigir que outras pessoas se harmonizem conosco. Eu nunca fiz isso.

Consegui por esta razao desenvolver a capacidade de conversar com todas

as pessoas; s6 assim obternos conhecimento do carater humano bern como

a necessaria habilidade na vida. Isto porque perante naturezas opostas

temos que nos controlar, se queremos nos dar bem com elas. Voce deveria

agir da mesma maneira. Nao ha como evitar isso, voce tem que viver em

sociedade, nao importa 0 que diga."

" Sao ainda, em sua maior parte, desconhecidas a ~Q._Gi_Qg~e a psico- Ig~~ do comportamento humano. Ate mesmo colocar quest5esa esseres::'" •peito pode parecer estranho. Ainda assim, e fato observavel que pessoas de \

\;f '

5/16/2018 sociog nese dos conceitos - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/sociogenese-dos-conceitos 15/23

48 a processo civil izudor

unidades sociais diferentes comportam-se de forma diferente e em maneiras

muito especificas. Acostumamo-nos a .considerar isto naturaL Fala~os do

camp ones ou do cortesao, do Ingles ou do alernao, do homem medl~val e

do homem do seculo XX, e queremos dizer que as pessoas das unidades

sociais indicadas por tais conceitos comportam-se uniformemente de uma

maneira especifica que transcende todas as dif'erencas individuais quando

comparadas com as de individuos de grupos comparativ?s: por exemplo,o camp ones em muitos aspectos comporta-se de modo diferente do corte-

sao, 0 ingles ou 0 frances do alemao, e 0 ~omem medieval do homern do

seculo XX, pouco importando 0 qpanto mais possam ter em comum como

seres humanos,Modos de comportamento que diferem dessa maneira sao visiveis na

conversa cit a da acima entre Eckermann e Goethe. Este ultimo e urn homem

individualizado em grau particularmente elevado. Em decorrencia de seu

destino social, mod os de comportamento com origens sociais diferentes

fundem-se nele em uma unidade especifica. Ele, suas opinioes e seu com-

portamento certamente nao sao nunca, de todo, tipicos de quaisquer grupos

sociais e situacoes pelas quais passou. Mas, nessa citacao ele fala com gran-

de conhecimento como homem do mundo, como cortesao, com base em

experiencias que necessariamente sao estranhas a Eckerm~n~. E!e en~endc

a c~e_abafaros--pr6prios .-sentime~Jo_s,._Q~§ll.P~.m]Jx _ _slmpa!~s. e

;mtipatias, comp~l~~.o inerentea vida cortesa e que frequentemente e. m-

ierPretaaa··lmr-p.ess.Qas_d.e_~~i1lH!.C;Q.§_s.Qciai&-"difeFentes,.-.e,_.pOLJ;gg,§egulnte,

~diferente. estrutura af~th:l!,_._c.omo.sendQ.Q.t:sol}(!~ti<i_a.clt :.mLj!!~

cer idacf;-E'c-; ;; ;' -- ;; --grau .de c~~sciencia que 0 distingue como urn relativo

- e s t r a ~ h ; ; a todos os grupos sociais, ele enfatiza 0 aspecto benefice, huma-

no, de sua mcderacao em afetos individuais. Seu comentario e urn dos

poucos pronunciamentos alemaes dess~ epoc~. a reconhecer ~l~o do va!or

social da "cortesia" e dizer alguma coisa positiva sobre a habilidade social.

Na Franca e na Inglaterra, ondc a "sociedade" desempenhou papel muito

mais imnortante no desenvolvimento global da nacao, as tendencies de com-

portamento de que ele fala tiveram tam bern - embora menos consciente-

mente do que no seu caso - uma importancia muito maior. E ideias de

tipo semelhante, incluindo a de que pessoas d~ve~, se harmonizar entre si

e demonstrar consideracao reciproca, que 0 individuo nem sempre deve

dar vazao as suas emoc;6es, reaparecem com grande freqiiencia, com 0

mesmo significado especificamente social que em Goeth~, n~ literatura COf-

tesa da Franca, por exemplo. Como urn reflexo, por assim ~Izer, _esses ~e~-

samentos eram propriedade individual de Goethe. Mas srtuacoes s~clals

semelhantes, a vida no monde, geraram em toda a Europa preceitos e

mod os de comportamento semelhantes.

Analogamente, 0 comportamento descrito por Eckermann como seu -

em comparacao com a serenidade aparente e a afabilidade que ocultam

conceitos de "civilizaciio' e "cultura" 49

sentimentos reprimidos, que se desenvolveu inicialmente nessa fase do mun-

do aristocratico de corte - claramente pode ser reconhecido como orrgi-

nando-se na esfera de classe media de pequenas cidades da epoca. E cer-

tamente nao e encontrado apenas na Alemanha, nesta esfera. Nesse pais,

porem, devido a representacao, com grande clareza, do ponto de vista de

classe media pela intelligentsia, estas e atitudes semelhantes tornam-se vi-

siveis em grau excepcional na literatura. E se repetem nesta forma relati-vamente pura, produzida na divisao mais nitida e mais rigorosa entre os

circulos da corte e da classe media e, acima de tudo, no comportamento

social dos alemaes ,

As. unidades sociais que ch~!.l};-tmQ§~.J)_;;t.c;_i,ks...diieLeJU.J1lJJit.o na, ....strutura

qll_persQI1alidade~·.de:.=seUs'Wembros, nos esquemas atraves OOS _quais a vida,

emocional do indivfduo e mold ada sob pressao da tradicao institucionali-

z~da .e da situacao vigente, 0 tfpico no comportamento descrito porEcker~<

man e uma-lormaespedfica de "economia de afetos", que consiste na

clara adrnissao de inclinacoes individuais que Goethe considera insociaveis I

e contrarias a forma.S:: iCt. ;q.yc,fetos necessar ia para que haja "sociedade".~.J

Na opiniao dy''Nietzsch~f muitas decadas mais tarde, esta atitude sem- -:

pre foi tipica e n'aClonai<dos alemaes, Por certo sofreu modificacoes no <curso da historia e nao tern mais a mesma finalidade social que no tempo

de Eckermann, Nietzsche a ridiculariza. "0 alemao, diz em Alem do Bern

e do Mal (Aforismo 244), "adora a 'sinceridade' e a 'integridade'. Como.

e confortador ser sincero e Integro. Este e talvez 0 mais perigoso e enga- f

nador de todos os disfarces no qual 0 alemao e perito, esta honestidade(

alema confidencial, obsequiosa, que sempre mostra suas cart as. 0 alemao

se entrega, olhando ao ~es~o t~mpo com seus confiantes e azuis o~h~l

alemaes - e os estrangeiros imediatamente 0 confundem com seu camlsa9

de dormir." Este - deixando de lado 0 juizo de valor unilateral - e urn;

dos muitos exemplos de' como, com a lenta ascensao da classe media, sua~

caracteristicas sociais especfficas se transformaram em caracteristicas na-\

cionais...,,··'<~- __.,,'o mesmo e claro na opiniao seguinte d(for:!3!lt~,.)Obre a Inglaterra,

encontrada em Ein Sommer in London (Dessau:~1'8'52))

i' A Inglaterra e a Alemanha se relacionam da mesma '<';~:ei~a que forma e con-

\

teUdO, aparencia e realidade, Ao contrario das coisas, que em nenhum out.ro

pafs do mundo exibem a mesma soIidez que na Inglaterra, as pessoas se dIS-

tinguem pela f~rma, pela aparenci!l mais visfvel, 0 indi_viduo nao precisa ser. u~

cavalheiro, precisa apenas dos meios para parecer que e, e se torna tal. 0 indi-

vfduo nao precisa ter razao, precisa apenas colocar-se dentro das formas da

razoabilidade, e tera razao... Por toda a parte, aparencia. Em nenhum lugar

inclina-se mais 0 homem a abandonar-se cegamente ao mero brilho de urn

nome. 0 alemao vive para viver, 0 Ingles para representar. 0 alemao vive para

si mesmo, 0 ingles vive para os outros,

5/16/2018 sociog nese dos conceitos - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/sociogenese-dos-conceitos 16/23

50 o processo civilizador

Talvez seja necessario mostrar com que exatidao esta ult ima ideia coin-

cide com a antitese entre Eckermann e Goethe: "Dou plena expressao as

minhas simpatias e antipatias", diz Eckermann. "Temos que procurar, mes-

mo a contragosto, harmonizar-nos com os demais", argument a Goethe.

"0 Ingles", observa Fontane, "tern mil confortos, mas nenhum confer-to. 0 Iugar do conforto e tomado pela ambicao, Ele esta sempre pronto para

ser recebido e conceder audiencias ... Muda de roup a tres vezes ao dia; a

mesa observa - e tambem na sala de estar e de visitas - certas leis pres-

critas de decoro, E um homem distinto, urn fenomeno que nos impressio-

na, urn mesrre de quem recebemos licoes. Mas com nosso assombro se

mistura uma nostalgia infini ta de nossa Alemanha pequeno-burguesa, onde

as pessoas nao tern mesmo uma vaga ideia de como representar mas sao

capazes de tao esplendida, confortavel e aconchegantemente viverem."

o conceito de "civilizacao" nao e mencionado. E a ideia de Kultur

alema aparece nesse trecho apenas remotamente. Mas vemos nesse exemplo,

como tambem em todas essas reflexoes, que a antitese alema entre Zivili-

sation e Kultur nao se sustenta sozinha: e parte de um contexte mais amplo . .E, em suma, a expressao da auto-imagem alema, E aponta para as dife-

rencas em autolegitimacao, em carater e comportamento total que, no inf-

cio, exist iram preponderantemente, embora nao exclusivamente, entre de-

terminadas classes e, em seguida, entre a nacao alema e outras nacoes.

parte II

Sociogenese do conceito de

civilisa tion na Franca

I

rIntroducao

1. Seria incompreensfvel que, na antitese alema entre Bildung e Kultur,

por um lado, e a mera Zivilisation extern a, por outro, a antitese social

interna recuasse e' a nacional se tornasse dominante, nao tivesse 0 desen-

volvimento da burguesia francesa seguido, em certos aspectos, exatamente

o curso oposto ao tomado pela alema.

Na Franca, a intelligentsia burguesa e grupos importantes da classe

media foram atraidos relativamente cedo para a sociedade cortesa, 0 velho

meio de distincao da nobreza alema, a prova de ancestralidade * - que

mais tarde, numa transformacao burguesa, assumiu nova vida na Iegisla-

~ao racial alema -, certamente nao esteve de todo ausente na tradicaofrancesa, mas, sobretudo depois do estabelecimento e consolidacao da "mo-

narquia absoluta", nao desempenhou mais um papel decisivo como barrei- ,

ra entre as classes. A infil tracao de cfrculos burgueses por tradicoes especic, '

ficamente aristocraticas (que na Alemanha, com a separacao mais rigorosa

entre as classes, produziu efei to profundo apenas em certas esferas. como

a militar, sendo nas demais muito limitada) teve proporcoes muito diferen-

tes na Franca. Nela, ja no seculo XVIII , nao havi .~_J.!!&L.illg!J.9!!~L~

diferen~aerrr~cost~mes. entre os princlpaIsgrupos burgueses '? . a .aristocra:;_Ci~. . c t e .co:te. E meSiii(r-que~-com'-a-'ascerrS'a(nnaistOrte'~d~"~l~s'se'~;;ldi~-;

partlr"a~='meados do seculo XVIII - ou, em outras palavras, com a am-

.. Referencia II Iegislaeao anti-semita imposta pelos nazistas, nos anos 30. (RJR)

5/16/2018 sociog nese dos conceitos - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/sociogenese-dos-conceitos 17/23

52 o processo civllizador

pliacao da sociedade aristocratica atraves da maior assimilacao de grupos

importantes de classe media - comportamento e costumes mudassem de-

vagar, isto aconteceu sem ruptura, como continuacao direta da tradicao

aristocratica de corte do seculo XVII. Tanto a burguesia de corte como a

aristocracia de corte falavam a mesma lingua, liam os mesmos li~os eobservavam, com gradacoes particulares, as mesmas maneiras. E quando as

disparidades sociais e economicas explodiram 0 contexto insti tucional do

ancien regime, quando a burguesia tornou-se uma nacao, muito do que ori-

ginariamente fora carater social especifico e distintivo da aristocracia de

corte e depois tambem dos grupos burgueses, de corte, tornou-se, em urn

movimento cada vez mais amplo, e sem diivida com alguma modificacao,

carater nacional. As convencoes de estilo, as formas de intercambio social,

o controle das emocoes, a estima pela cortesia, a importancia da boa fala

e da conversa, a eloqiiencia da linguagem e muito mais - tudo isto e ini-

cialmente Iorrnado na Franca dentro da sociedade de corte, e depois, gra-

dualmente, passa de carater social para nacional.

Aqui, tambem, Nietzsche percebeu claramente a diferenca. "Em todos

os lugares onde havia uma corte", diz ele em Para Alem. do Bern e do Mal

(Aforismo 101), "havia uma lei da fala certa e, por conseguinte, tambem

uma lei de estilo para todos os que escreviam. A linguagem de corte, alem

disso, e a lfngua do cortesao que nao tern urn tern a especial e que mesmo

em conversas sobre assuntos eruditos proibe todas as expressoes tecnicas

porque elas tern urn ressaibo de especializacao; este 0 motivo por que, em

paises que possuem uma cultura de corte, 0 termo tecnico e tudo 0 que

trai 0 especialista e uma macula estilistica, Agora que todas as cortes se

transformaram em caricaturas. .. ficamos surpreendidos ao descobrir que

mesmo Voltaire era muito exigente neste particular. 0 fato e que todos es-

tamos emancipados do gosto da corte, enquanto que Voltaire era a sua

-eonsnmacao!"

Na Alemanha, a intelligentsia de cIasse media cheia de aspiracoes doseculo XVIII, formada em universidades que se especializavam em deter-

minados assuntos, desenvolveu auto-expressao e cultura proprias nas artes

e ciencias, Na Franca, a burguesia js. era desenvolvida e prospera em urn

grau inteiramente diferente, A emergente intelligentsia possuia, alem da aris-

tocracia, tambem urn numeroso publico burgues, A propria intelligentsia,

; como outras Iormacoes de c1asse media, foi assimilada pelo circulo de corte.

I E aconteceu que a cIasse media alema, com sua ascensao muito lenta para

! 0 espfrito nacional, cada vez mais identificou como carater nacional da vi-

i zinha nac;ao aqueles t ipos de comportamento que havia observado primeira

\ e predominantemente em suas proprias cortes. E tendo ou julgado esse

\comportamento como de segunda classe ou 0 rejeitado como incompativel

jcom sua propria estrutura afetiva, desaprovou-o tambem em maior ou me-nor grau nos vizinhos.'--

conceitos de "civilizaciio" e . "culture" (' '0 \ 53

2. Talvez pareca paradoxa! que na Alemanha, onde as barreiras so:;_·,

ciais entre a c1asse 'media e a aristocracia eram mais altas, menos numero- Isos os contatos sociaise mais consideraveis as diferencas em maneiras, !durante multo tempo as discrepancias e tensoes entre as classes nfio tenham

tido expressao polftica, ao passo que na Franca, onde eram mais baixasas barreiras de classe e incomparavelmente mais int irnos os contatos sociais

entre elas, a , atividade politica da burguesia tenha se 'desenvolvido mais

cedo e chegado a uma precoce solucao politica a tensao entre elas. ~..-

o paradoxo, no entanto, e apenas aparente. A longa recusa da poHti~j

ca real a conceder 0 exercicio de funcoes polit icas a nobreza francesa, 0

envolvimento desde cedo de elementos burgueses no governo e na adminis-

tracao, 0 acesso deles ate mesmo as mais altas funcoes goveniamentais,

sua influencia e promocoes na corte - tudo isto teve duas conseqiiencias:

por urn lado, 0 contato social Int imo e continuo entre elementos de origem

social diferente e, por outro, a oportunidade de elementos burgueses· se

cmpenharem em atividade politica logo que amadureceu a situacao social

e, antes dis so, urn forte treinamento politico e uma tendencia a pensar em

termos politicos. / Nos Estados alemaes, de modo geral, aconteceu quase

exatamente 0 oposto, Os mais altos cargos do goveruo eram, via de regra,

reservados a nobreza. No minimo, ao contrario de sua contrapartida fran-

cesa, a nobreza alema desempenhou urn papel decisivo na mais alta admi-

nistracao do Estado. Sua forca como classe autonoma nunca foi tao radi-

calmente quebrada como na Franca. Em contraste, a forca de classe da

burguesia, em conformidade com seu poder economico, permaneceu rela-

tivamente fraca na Alemanha ate bern dentro do seculo XIX. A separacao

mais radical entre os elementos de c1asse media e a aristocracia de corte

refletia-lhes a fraqueza economica comparativa e a exclusao dos cargos mais

importantes do Estado.

3. A estrutura social frances a tornou possivel que a oposicao mode-

rada, que veio crescendo lentamente desde meados do seculo XVIII, se fi-zesse representar com certo sucesso nos circulos mais internos da corte.

Seus representantes, porem, ainda nao formavam urn partido. Outras for-

mas de luta polit ica ajustavam-se melhor a estrutura institucional do ancien

regime, Formavam eles na corte uma camariIha, embora sem organizacao

definida, mas eram apoiados por pessoas e grupos que formavam a socie-

dade de corte mais ampla e no proprio pais. A grande variedade de inte-

resses sociais encontrava expressao, na corte, em conflitos entre essas cliques,

reconhecidamente de forma urn tanto vaga e com forte infusao de interesses

pessoais os mais diversos, mas, ainda assim, esses conflitos vinham a lurne

e eram solucionados.

o conceito frances de civilisation, exatamente como 0 conceito alemao

correspondente de Kultur, emergiu nesse movimento de oposicao na segun-da metade do seculo XVIII. Seu processo de formacao, funcao e significa-

5/16/2018 sociog nese dos conceitos - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/sociogenese-dos-conceitos 18/23

a processo civilizador

do foram tao diferentes dos implfcitos no conceito alemao como as cir-

eunstancias e costumes da classe media nos dois paises.

Nao deixa de ser interessante observar como 0 conceito frances de

civilisation, tal como surge inicialmente na literatura, assemelha-se ao con-

ceito ao qual muitos anos depois Kant opos seu conceito de Kultur. Aprimeira evidencia li teraria da evolucao do verbo civiliser para 0 conceito

de civilisation e encontrada, de acordo com descobertas modernas.s' na

obra de Mirabeau, 0 pai, na decada de 1760.

"Maravilho-me de ver", diz ele, "como nossas opini6es cultas, falsas

em todos os sentidos, se enganam no que consideramos ser civilizacao.

Se perguntar 0 que e civilizacao, a maioria das pessoas responderia: sua-

vizacao de maneiras, urbanidade, polidez, e a difusao do conhecimento

de tal modo que inc1ua 0 decoro no lugar de leis detalhadas: e tudo isso

me parece ser apenas a mascara da virtu de, e nao sua face, e civilizacao

nada faz pela sociedade se nao the da por igual a forma e a substancia da

virtude." 26 Isto parece-se muito com 0 que entao se dizia, na Alemanha,

sobre os costumes de corte. Mirabeau, igualmente, compara 0 que a maio-

ria das pessoas, segundo ele, considera ser civilizacao (isto e, polidez e

boas maneiras) com 0 ideal em cujo nome a classe media em toda a Eu-

ropa se alinhava contra a aristocracia de corte e atraves do qual se legi-

timou - 0 ideal da virtude. Ele, tambem, exatamente como Kant, vin-

cula 0 conceito de civil izacao as caracteristicas especificas da aristocracia

de corte, e com razao: isto porque 0 homme civilise nada mais era do

que uma versao urn tanto ampliada daquele tipo bumano que representava

o verdadeiro ideal da sociedade de corte, 0 honnete homme.

Civilise era, como cultive, poli, ou police, urn dos muitos termos, nao

raro usados quase como sinonimos, com os quais os membros da corte

gostavam de designar, em sentido amplo ou restrito, a qualidade especifica

de seu proprio comportamento, e com os quais comparavam 0 refinamento

de suas maneiras sociais, seu "padrao", com as maneiras de individuos maissimples e socialmente inferiores.

Conceitos como politesse ou civilite tinbam, antes de formado e fir-

mado 0 conceito civilisation, praticamente a mesma funcao que este ultimo:

expressar a auto-imagem da classe alta europeia em comparacao com ou-

tros, que seus membros consideravam mais simples ou mais primitivos, e

ao mesmo tempo caracterizar 0 tipo especifico de comportamento atra-

yes do qualessa c1asse se sentia diferente de todos aqueles que julgava mais

simples e mais primitivos. As palavras de Mirabeau deixam muito clara a

extensao em que 0 conceito de civilizacao foi inicialmente uma continuacao

direta de outras encarnacoes da autoconsciencia de corte: "Se eu pergun-

tar 0 que e civilizacao, a maioria das pessoas responderia: suavizacao de

maneiras, polidez, e coisas assim." E Mirabeau, da mesma forma que Rous-seau, embora talvez com mais moderacao, inverte as valorizacoes existen-

conceitos de "civiliz.aciio' e "cultura" 55

tes. VOCe e sua civilizacao, diz ele, da qual se sente tao orgulhoso, acre-

ditando que 0 eleva acima do homem simples, tern pouquissimo valor: "Em

todas as linguas... em todas as ida des, a descricao do amor de pastores

por seus rebanhos e seus caes toea nossa alma, por embotada que esta esteja

peJa busca do luxo e de uma falsa civilizac,:ao.""2fI_A atitude da pessoa em relacao ao "homem simples" - e, acima d~~'~\

tudo, em relacao ao "homem simples" na sua forma mais extrema, 0 "sel- Ivagem" - e em toda parte, na segunda metadej.9~e\:l-l~VIII, urn sim- Ibolo de sua posicao no debate interno, social.~ ,nc,:ou 0 ataquejrL

mais radical a ordem de val ores dominante em seu tempo e exatamente-#-'"

por este motivo sua importancia direta para 0 movimento de reforma de

corte/classe media da intelligentsia francesa foi menor do que poderia ser

sugerido por sua ressonancia entre a apolitica, embora intelectualmente

mais radical, intelligentsia de classe media da Alemanha, A despeito de

todo 0 radicalismo de sua critica social, porern, Rousseau nao chegou a

f?rjar urn contrac8~Cei1:o~i)clu_siv~e unificado contra ? qua~ lancar as , c r i -

ncas acumula~asz..MAr~~:!:),llal cna-o, ou .pelo menos e 0 pnrneiro a usa-loem seus escntos/Talvez ele houvesse circulado antes em conversas. , - J 2 . Q . ~

homme_civilisif.~e deriva uma caracteristica geral da sociedade: civilisation..,~ ......_-= ._~ . ''''''" ''_~" '''', '.~ .. ,,_"., .,_ . ._ .~ ,''''''.~~._ ,~.., "~...-_..,.,c__ " "_~=<"~_" , , , , , , ·~= . . , · -~_

Sua critica social, como a de outros fisiocratas, porem, e moderada. Per-

manece inteirarnente .dentro do contexto do sistema social vigente. fI, na

verdade, a critica de urn reformador. Enquanto os membros da intelligentsia

alerna de classe media, pelo menos na mente, nos devaneios de seus li-

vros, forjam conceitos que divergem frontalmente dos modelos da classe

alta, e desta maneira lutam em territorio politicamente neutro todas as ba-

talhas que nao podem travar no plano politico e social porque as institui-

coes e relacoes de poder existentes lhes negam instrumentos e mesmo alvos,

enquanto eles, em seus livros, op6em as caracteristicas humanas da c1asse

alta seus proprios novos idea is e model os de comportamento, a intelli-gentsia reformist a de corte da Franca permanece durante muito tempo no

contexto da tradicao de corte. Esses franceses desejam melhorar, modificar,

adaptar. A parte alguns estranhos, como Rousseau, nao op6em ideais e mo-

delos radicalmente diferentes a ordem dominante, mas ideais reformados e

modelos dessa ordem. As palavras "falsa civilizacao" con tern tudo 0

a diferencia do movimento alemao, Os escritores franceses sugerem que

falsa civil izacao deve ser substituida pela autentica, Nao op6em ao homme

civilise urn modclo humano radical mente diferente, como faz a intelligentsia

burguesa alema com 0 termo gebildeter Mensch (homem educado) e com

a ideia de "personalidade". Em vez disso, escolhem modelos de corte a

fim de desenvolve-los e transforma-los, Dirigem-se a uma intelligentsia cri-

tica que, direta ou indiretamente, escreve e luta dentro do amplo contextode uma sociedade de corte.

5/16/2018 sociog nese dos conceitos - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/sociogenese-dos-conceitos 19/23

56 o processo civilizador

II

Sociogenese da Eisiocracia e do Movimentode Reforma Frances

4. Recordemos a situacao da Franca apos meados do seculo XVIII.

Os principios mediante os quais era governada e sobre os quais, em

part icular , fundamentavam-se a tr ibutacao e os direi tos alfandegarios eram

de modo geral os mesmos que nos tempos de Colbert. As relacoes inter-

nas de poder e interesses, a estrutura social da propria Franca, porem, ha-

viam mudado radicalmente. 0 protecionismo rigoroso, a defesa da industr ia

nacional e da atividade comercial contra a concorrencia estrangeira ha-

viam, na verdade, contribuido decisivamente para 0 desenvolvimento da

vida economica, aumentando, assim, 0 que importava mais que tudo para

o rei e seus representantes - a capacidade tributaria do pais. As barreirasao comercio de cereais, os monopolies, 0 sistema de armazenamento, e os

muros tarifarios entre as provincias protegiam, em parte, os interesses 10-

cais, mas, acima de tudo, haviam, de tempos em tempos, preservado a

parte mais importante para a paz do rei e talvez a de toda a Franca, Paris,

das conseqiiencias extremas das mas colheitas e dos pre«;os em alta - da

fome e da revolta.

Mas, entrementes, haviarn-se expandido a capital e a populacao do

pais . Comparadas com 0 tempo de Colbert, as relacoes de comercio ha-

viam se tornado mais densas e amplas, a atividade industr ial mais vigorosa,

as comunicacoes melhores, e mais int imas a integracao economica e a inter-

dependencia do territorio frances. Segmentos da burguesia comecaram a

achar incomodos e absurdos a tributacao tradicional e 0 sistema de direitosaduaneiros, sob cuja protecao tinham crescido. A pequena nobreza rural

e lat ifundiarios como Mirabeau viam nas restricoes mercanti lis t as a econo-

mia agricola urn impedimento e nao urn incentivo a producao do campo.

Nisto aproveitaram bastante as licoes de urn sistema comercial Ingles mais

livre. E, mais importante que tudo, uma parte da propria alta adrninistra-

<;ao reconhecia os efeitos nocivos do sistema vigente: a frente desses admi-

nistradores despontavam os seus tipos mais progressistas, os intendentes

de provincia, representantes da iinica forma modern a de burocracia que 0

ancien regime produzira, a unica fun<;ao administrativa que nao era, como

as demais, negociavel e, portanto, hereditaria. Esses elementos progres-

sistas da administracao formaram uma das mais importantes pontes entre

a exigencia de reforma, que se Iazia sentir no pais, e a corte. Direta ou in-

conceitos de "civilizaciio" e "cultura" 57

diretamente, representaram, na Iuta entre os grupos de corte por posicoes

polfticas decisivas (principaimente, os ministerios), urn papel de grandeimportancia.

Ja notamos acima que essas lutas nao eram ainda os conflitos mais

impessoais, politicos, que se tornaram mais tarde, quando os varies inte-resses seriam represent ados por partidos em urn sistema parlamentar. Os

grupos da corte que, pelas mais diversas raz6es, competiam nela por in-

fluencia e cargos, porem, eram, ao mesmo tempo, micleos sociais atraves

dos quais os interesses de grupos e classes maiores podiam encontrar ex-

pressao no centro controlador do pais. Desta maneira, tendencias reformis-

tas eram tambem representadas na corte;

Pela segunda metade do seculo XVIII, os reis nao mais governavam

arbitrariamente. Muito mais visivelmente do que Luis XIV, por exemplo,

eram prisioneiros de processos sociais e dependentes de cliques e faccoes

da corte, algumas das quais se prolongavam extensa e profundamente pelo

pais e nos circulos de cIasse media.

A fisiocracia c;2mstituiuma das manifestacoes teoricas dessas lutas in-testinas. Nao se limita em absoluto a economia, sendo na verdade urn sis-

tema em grande escala de reforma polftica e social, Contem, de forma in-

cisiva, abstrata, dogmatica, endurecida, ideias que - expressas de maneira

menos teorica, dogmatica e precisa, isto e como exigencias prat icas de re-

Iormas - caracterizam todo 0 movimento do qual Turgot, na ocasiao

encarregado das financas, foi urn dos expoentes. Se est a tendencia (que

nem tinha nome nern organizacao unif icada) t ivesse que recebe-lo, poderia

ser chamada de burocracia reformista. Mas esses administradores tinham

tarnbem indubitavelmente por tras de si segmentos da intelligentsia e da

burguesia comercial.

Entre os que desejavam e exigiam reforma, de resto, lavravam consi-

deraveis diferencas de opini6es sobre 0 t ipo de reforma necessaria . Alguns

eram inteiramente a favor de uma reforma do sistema de tributacao e da

maquinaria estatal, mas, tambem, muito mais protecionistas do que os fi-

siocratas, por exemplo. Forbonnais foi urn dos principais representantes

dessa tendencia, mas seria interpreta-lo mal, e a outros das mesmas ideias,

inclui-los, por causa de sua ati tude mais fortemente protecionista , sem mais

ressalvas entre os "mercantil is t as". A polemica entre Forbonnais e os fisio-

cratas e a antevisao de uma divergencia que, na moderna sociedade indus-

trial, levaria a repetidos choques entre os defensores do livre comercio e

os do protecionismo. Mas ambos os lados fazem parte do movimento refer-

mista de c1asse media.

Por outro lado, nao era em absoluto verdade que toda a burguesia de-

sejasse a reforma e que apenas a aristocracia a ela se opusesse. Houve certo

numero de grupos claramente identificaveis de classe media que resistiramate 0 fim a qualquer tentativa de reforma e cuja existencia, na verdade, es-

5/16/2018 sociog nese dos conceitos - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/sociogenese-dos-conceitos 20/23

58 o processo civil izador

tava ligada a preservacao do ancien regi~e. na sua for~a original. Esses

grupos incluiam a maioria dos altos administradores, a ~oblesse de robe,

cujos cargos eram propriedade de familia no ~~st_no sentI~o em qu~ uma

Iabrica ou empresa e hoje propriedade hereditaria, Incluiarn tambem as

guildas de oficios e, em born .mimero, os f~nancist~s. E se a refonna fra-

cassou na Franca, se as disparidades da sociedade finalmente romperam de

forma violent a 0 tecido da estrutura institucional do ancien regime, grande

parte da responsabilidade coube a oposicao desses grupos ~e c1asse media.

Esta descricao mostra com grande clareza urn aspecto importante neste

contexto: ao passo que na Franca dessa epoca a classe media ja repre-

sentava urn papel politi co, 0 mesmo nao acontecia na Alemanha. Nest~, 0

estrato intelectual l imita-se a esfera da mente e das ideias; na Franca, jun-

tamente com todas as demais questoes human as, os problemas sociais, eco-

nomicos, administrativos e politicos se situavam dentro da faixa de interes-

ses da intelligentsia de corte/classe media. Os sistemas alernaes de pensa-

mento, em contraste, eram apenas academicos, Tinham por base social as

universidades, Ja a base social de onde ernergiu a fisiocracia eram a corte

e a sociedade de corte, onde 0 esforco intelectual visava a objetivos con-

cretos especffi cos, tais como influenc iar 0 rei ou suas amantes, . .

5. Sao bern conhecidas as ideias basic as de Quesnay e dos fisiocra-

tas No seu Tableau economique (1758), Quesnay descreve a vida econo-

mica da sociedade como urn processo mais ou menos autonomo, um circulo

fechado de producao, circulacao, e reproducao de bens. Fala das leis natu-

rais de uma vida social em harmonia com a razao. Baseando sua argumen-

tacao nessa ideia, Quesnay opoe-se a intervencao arbitrari a ~os govern~n-

tes no ciclo economico. Deseja que estejam conscientes das leis deste, a fim

de guiar-lhes os processos, em vez de baixar decretos desinforrnados ao s~-

bor do capricho. Exige a liberdade de comercio, em particular do comercio

de cereais, porque a auto-regulacao, 0 livre jogo de forcas, criam em sua

opiniao uma ordem mais benefica para consumidores e produtores do quea regulamentacao tradicional vinda de cima e as incontaveis barreiras ao

comercio entre provfncias e entre pafses.

Mas admite francamente que os processos auto-reguladores devem ser

compreendidos, e orientados, por uma burocracia sabia e escJarecida. Temos

aqui, acima de tudo, a diferenca na maneira como os ~eforma~ores fra~-

ceses e os ingleses reagiram a descoberta da auto-regulacao na VIda econo-

mica. Quesnay e seus seguidores permanecem sem excecao no contexto do

sistema monarquico vigente. Deixam intocados os elementos basicos do an-

cien regime e de sua estrutura institucional. E isto se aplica ainda mais. aos

segmentos da administracao e intelligentsia cujas posicoes mais se aproxima-

yam da sua e que, de forma menos abstrata, menos extremada e de cunho

mais pratico, chegam a resultados semelhantes aos do grupo. pr~ncipal dos

fisiocratas. No fundo, a posicao cornum a todos eles e por demais SImples: em

conceitos de "civilizuciio" e "cultura" 59

tennos aproximados, nao e verdade que os governantes sejam todo-podero-

sos e possam regular todos os assuntos humanos como julguem conveniente.

A sociedade e a economia tern leis pr6prias que resistem a interferencia

irracional de governantes e da torca. Por conseguinte, deve ser fonnada

uma adrninistracao escJarecida, racional, que governe de acordo com as"leis naturais" dos processos sociais e, destarte, de acordo com a razao.

6. 0 termo civilisation, no momento em que foi cunha do , era urn

claro reflexo dessas ideias reformistas. Mesmo que neste termo a ideia de

homme civilise conduza a urn conceito indicativo de costumes e condicoes

da sociedade vigente como urn todo, ele e, em primeiro lugar e acima de

tudo, urna expressao de oposicao, de critica social. A isto se adiciona a

compreensao de que 0 governo nao pode baixar decretos a seu talante, mas

enfrenta resistencia automatica de Iorcas sociais anonimas se suas determi-

nacoes nao forem orientadas por urn exato conhecimento dessas forcas e

leis, a cornpreensao de que ate mesmo 0 governo mais absoluto e impo-

tente diante do dinamismo do desenvolvimento social, e de que 0 desastre

e 0 caos 0 sofrimento e a aflicao, sao deflagrados pelo governo arbitrario,

"antinatural", "irr~cional". Conforme ja foi dito acima, esta compreensao

se expressa na ideia fisiocrata de que os fat os sociais, tais como os Ieno-

menos naturais, sao partes de urn processo ordenado. Esta mesma compre-

ensao manifesta-se na evolucao do anterior civilise para 0 termo civilisa-

tion, contribuindo para the dar urn significado que transcende 0 individuo.

As dores de parto da revolucao industrial, que nao podiam ser mais

compreendidas como resultado de acao do governo, ensinaram ao homem,

por urn curto momento e pela primeira vez, a pensar em si mesmo e em

sua existencia social como urn processo. Se estudamos inicialmente 0 termo

civilisation na obra de Mirabeau, percebemos cIaramente que esta desco-

berta 0 leva a considerar a uma nova luz, toda a moralidade de seu tempo.

Vern a considerar esta moralidade, esta "civilizacao", tambem como uma

manifestacao cfcIica e deseja que os governantes lhes percebam as leis a

fim de usa-las. Este 0 sentido do terrno civilisation nessa fase inicial de

seu emprego.

No seu Ami des hommes, argumenta Mirabeau em certa altura que

'1 superabundancia de dinheiro reduz a populacao, de modo que aumenta

o consumo por individuo. Acha que esse excesso de dinheiro, caso se

torne zrande demais, "expulsa a industria e as artes, lancando, desta ma-b _ •

neira, os Estados na pobreza e no despovoamento". E continua: "A VIsta

disto. notamos como 0 cieJo de barbarie a -decadencia, passando pela civi-

lizacao e a riqueza, poderia ser invertido por urn ministro alerta e habil,

e nova corda seria dada a maquina antes que ela parasse." 28 Esta Irase

real mente sumaria tudo 0 que se tom aria caracterfstico, em termos muito

gerais, do ponto de vista fundamental dos fisiocratas: a concepcao de eco-nomia, populacao e, finalmente, costumes como urn todo inter-relacio-

5/16/2018 sociog nese dos conceitos - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/sociogenese-dos-conceitos 21/23

60 o processo civilizador

nado, desenvolvendo-se ciclicamente; e a tendencia politica reformist a que

dirige finalmente este conhecimento aos governantes, a fim de capacita-Ios,

pela compreensao dessas leis, a orientar os processos sociais de uma rna-

neira mais esclarecida e racional do que ate entao,

Na dedicatoria que Mirabeau faz ao rei em 1760 de seu Theorie de

l'Impot, no qual recomenda ao monarca 0 plano fisiocrata de reform a

tributaria, continua presente a mesma ideia: "0 exemplo de todos os im-

perios que precederam 0 de Vossa Majestade, e que completaram 0 cicIo

de civilizacao, seria prova detalhada do que acabo de propor."

A critica de Mirabeau, nobre proprietario de terras, a riqueza, ao Iuxo.

e a todos os costumes vigentes da uma coloracao especial a suas ideias.

A verdadeira civilizacao, pensa, situa-se em urn ciclo entre a barbaric e

a falsa civilizacao, "decadente", ge.rada pela superabundancia de dinheiro.

A missao do governo esclarecido e dirigir este automatismo, de modo que

a sociedade possa florescer em urn curso medic entre a barbarie e a de-

cadencia, Aqui, toda a faixa de problemas Iatentes em "civilizacao" ja ediscernivel no momenta da formacao do conceito. Ja nessa fase ela esta

Iigada a ideia de decadencia ou "declinio", que reemerge repetidamente,

em forma visivel ou velada segundo 0ritmo das crises ciclicas. Mas pode-

mos tambem ver claramente que este desejo de reforma permanece sem

excecao dentro do contexto do sistema social vigente, manipulado de cima,

e que nao opoe, ao que critic a nos costumes do tempo, uma imagem ou

conceito absoIutamente novos, mas, em vez disso, parte da ordem existen-

te, desejando melhora-la: atraves de medidas habeis e esclarecidas toma-

das pelo governo a "falsa civilizacao" mais uma vez se tornara boa e au-

tentica.

7. Nesta concepcao de civilizacao talvez haja inicialmente numero-

sas nuances isoladas de significado. Mas eIa contem elementos que atendem

as necessidades gerais e experiencia dos circulos reformistas e progressistas

da sociedade parisiense. E 0 conceito ganha umemprego cada vez maiornesses cfrculos, a medida que se aceIera 0 movimento de refornia com a

crescente comercializacao e industrializacao,

o ultimo periodo do reinado de Luis XV constitui uma epoca de vi-

sivel debilidade e desordem no veIho sistema. Crescem as tensoes internas

e extern as. Multiplicam-se os sinais de transformacao social.

Em 1773, caixotes de cha sao lancados ao mar no porto de Boston,

Em 1776, as colonias americanas da Inglaterra declaram sua independen-

cia: 0 governo, proclama ela, e nomeado para assegurar a felicidade do

povo. Caso nao obtenha sucesso neste particular, a maioria do povo tern

o direito de destitui-Io.

Os cfrculos da c1asse media francesa simpaticos a reforma observam

com a maior atencao 0 que acontece no outro lado do mar, e tarnberncom uma simpatia na qual suas tendencies sociais reformistas se misturam

conceitos de "civilizaciio" e "cultura" 61

com a crescente hostilidade nacional contra a Inglaterra, mesmo que suas

mentes mais influentes pensem em tudo, menos na derrubada da monar-

quia.

Simultaneamente, a partir de 1774, ha a crescente impressao de que

e inevitavel 0 confronto com a Inglaterra e de que preparativos devem ser

feitos para a guerra. No mesmo ano, 1774, morre Luis XV. Sob 0 novo

monarca, a luta pela reforma dos sistemas administrativo e tributario eimediatamente reiniciada com renovado vigor tanto nos circulos mais res-

tritos quanto mais amplos da corte. Como resultado desses conflitos, Tur-

got e aclamado no mesmo ano, ao se tomar controleur general des finan-

ces, por todos as elementos reformistas e progressistas do pais.

"FinaImente chegou a tao. retardada hora da justica", escreveu 0 fisio-

crata Bandeau, sobre a nomeacao de Turgot. Na mesma ocasiao, afirmou

D'Alembert: "Se 0 bern nao prevalecer agora, e porque 0 bern e impos-

sivel", E Voltaire lamenta estar as portas da morte no momenta em que

pode observar que a "virtude e a razao foram postas em seus Iugares".29

Nesses mesmos ;ianos, a palavra civilisation, surge pela primeira vez

como urn conceito ampIamente usado e mais au menos preciso. Na pri-meira edicao da Histoire philosophique et poliiique des etablissements et

du commerce des Europeens dans les deux Indes (1770), do padre Ray-

naI, a palavra nao ocorre nem uma tinica vez; na segunda (1774), ela e"usada freqiientemente e sem a menor variacao de significado como termoindispensavel e geralmente entendido".ao

No Systeme de lanature, de Holbach, publicado em 1770, nao -apa-

rece a palavra civilisation. Mas no seu Systeme social, editado em 1774,

eIa e usada 'Comfreqiiencia. Diz ele, par exempIo: "Nada ha que oponha

mais obstaculos no caminho da felicidade publica, do progresso da razao

humana, de toda a civilizacao dos homens do que as guerras contfnuas

para os quais principes estouvados sao atrafdos a cada memento." 31 Ou,

em outro trecho: "A razao humananao e ainda suficientemente exercitada:a civilizaciio dos povos 000 se completou ainda; obstaculos inumeraveis s~

opuseram ate agora ao progresso do conhecimento iitil, cujo avanco s6

podera contribuir para 0 aperfeicoamento de nosso governo, nossas leis,nossa educacao, nossas instituicoes e nossa moral."32

o conceito subjacente a esse movimento esclarecido de reforma, social-

mente critico, e sempre 0 mesmo: que 0 aprimoramento das instituicoes.

da educacao e da lei sera realizado pelo aumento dos conhecimentos. Isto

nao significa "erudicao" no sentido alemao do seculo XVIII, porquanto os

que aqui se expressam niio sao professores universitarios, masescritores,

funcionarios, intelectuais, cidadaos refinados dos mais diversos tipos, uni-

dos atraves do medium da "boa sociedade", os salons. 0 progresso sera

obtido, por conseguinte, em primeiro Iugar pela ilustracao dos reis e gover-nantes em conformidade com a "razao" ou a "natureza", 0 que vern a ser

5/16/2018 sociog nese dos conceitos - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/sociogenese-dos-conceitos 22/23

62 o processo civilizador

a mesma coisa, e em seguida pela nomeacao, para os principais cargos,

de homens esclarecidos (isto e, reformistas), Certo aspecto desse pro-

cesso progressista total passou a ser designado por um conceito fixo: civi-

lisation. 0 que era visivel na versao individual que Mirabeau tinha do con-

ceito, 0 que nao fora ainda polido pela sociedade, e que era caracteristico

de todos os movimentos de reforma, era iencontrado tambem aqui: uma

mcia afirmacao e uma meia negacao da ordem vigente. A sociedade, deste

ponto de vista, atingira urna fase particular na rota para a civilizacao.

Mas era insuficiente. Nao podia ficar parada nesse ponto. 0 processo con-

tinuava e devia ser levado adiante: "a civilizacao dos povos ainda nao

se completou."

Duas ideias se fundem no conceito de civilizacao. Por urn lado, ela

constitui urn contraconceito geral a outro estagio da sociedade, a barba-

rie, Este sentimento ha muito permeava a sociedade de corte. Encontrara

sua expressao aristocratica de corte em termos como politesse e civilite.

Mas os povos nao estao ainda suficientemente civilizados, dizem os

homens do movimento de reform a de corte/classe media. A civilizacao nao

e apenas um. estado, mas urn processo que deve prosseguir. Este e 0 novoelemento manifesto no termo civilisation. Ele absorve muito do que sempre

fez a corte acreditar ser - em comparacao com os que vivem de maneira

mais simples, mais incivilizada ou mais barbara - urn tipo mais elevado

de sociedade: a ideia de urn padrao de moral e costumes, isto e, tato social,

consideracao pelo proximo, e numerosos complexos semelhantes. Nas maos

da classe media em ascensao, na boca dos membros do movimento refor-

mista, e ampliada a ideia sobre 0 que e necessario para tornar civilizada

uma sociedade, 0 processo de civilizacao do Estado, a Constituicao, a edu-

cacao e, por conseguinte, os segmentos mais numerosos da populacao, a

el iminacao de tudo 0 que era ainda barbaro ou irracional nas condicoes

vigentes, fossem as penalidades legais, as restricoes de classe a burguesia

ou as barreiras que impediam 0 desenvolvimento do comercio - este pro-cesso civilizador devia seguir-se ao refinamento de maneiras e a pacifica-

~ao interna do pais pelos reis.

"0 rei conseguiu", disse certa vez Voltaire a respeito da era de Luis

XN, "transformar urna nacao ate entao turbulenta em urn povo pacifico,

perigoso apenas para seus inimigos. .. As maneiras foram suavizadas ... " 33

Mais tarde veremos com mais detalhes como foi importante essa pacifica-

~ao interna para 0 processo civilizador. Condorcet, contudo, que era em

comparacao a Voltaire urn reformista de geracao mais [ovem e. ja muito

mais inclinado a oposicao, comenta da seguinte maneira a reflexao acima

de Voltaire: "A despeito da barbaric de algumas das leis, a despeito das

falhas dos principios administrativos, do aumento dos impostos, de sua

forma pesada, da dureza das leis fiscais, a despeito das maximas perni-

ciosas que pautam a Iegislacao governamental sobre comercio e industria

conceitos de "civilizaciio" e "cultura" 63

e, finalmente, a despeito da perseguicao aos protestantes, podemos obser-

var que 0povo no reino vivia em paz sob a protecao da lei."

Essa enumeracao, que nao deixa de ser uma justificacao integral da

ordem vigente, da ideia de muitas coisas que se pensa carecer de reforma.

Fosse ou nao 0 termo civilisation usado aqui explicitamente, ele se rela-

ciona com tudo isso, com tudo 0 que ainda e "barbaro".

Esta discussao mostra com muita clareza a divergencia entre os fatos

que ocorriam na Alemanha e os conceitos vigentes no pais: demonstra que

os membros da emergente intelligentsia de classe media situam-se na Franca

parcialmente no circulo da corte e, assim, na tradicao aristocratica de

corte. Falam a lingua desse circulo e a desenvolvem ainda mais. Seus com-

portamentos e emocoes sao, com algumas modificacoes, modelados segun-

do 0padrao dessa tradicao, Seus conceitos e ideias nao sao em absoluto

meras antiteses aos da aristocracia, Em torno de conceitos aristocraticos

de corte, como a ideia de "ser civil izado", cristalizam-se, de conformidade

com sua posicao social no circulo da corte, mais ideias que apontam rei-

vindicacoes politicas e ) economicas, ideias que, devido a situacao social di-

ferente e a diferente' .faixa de experiencia da intelligentsia germanica, eramem grande parte estranhas a e1a e, de qualquer modo, para ela menos re-levantes. .

A burguesia francesa - politicamente ativa, pelo menos parcialmente

desejosa de reformas, e ate, durante urn curto periodo, revolucionaria _

permaneceu estreitamente vinculada a tradicao de corte em seu comporta-

mento e no controle de suas emocoes, mesmo depois de demolido 0 edifi-

cio do velho regime. Isto porque, gracas a estreito contato entre cfrculos

aristocraticos e de classe media, grande parte das maneiras cortesas muito

tempo antes da revolucao haviam sido tambem aceitas pela classe media.

Pode-se depreender, entao, que a revolucao burguesa na Franca, embora

destruindo a velha estrutura politica, nao subverteu a unidade dos costu-

mes tradicionais.A intelligentsia alema de classe media, de to do impotente na esfera

polit ica, embora intelectualmente radical , forjou uma tradicao propria pu-

ramente burguesa, divergindo radicalmente da tradicao da aristocracia de

corte e de seus modelos. 0 carater nacional alemao, que aos poucos des-

pontou no seculo XIX, nao era, para sermos exatos, inteiramente destitui-

do de elementos aristocraticos assimilados pela burguesia. Nao obstante,

no tocante a grandes areas da tradicao cultural e do comportamento, as

caracterfsticas especificamente de cIasse media predominaram, sobretudo na

divisao social mais nitida entre os circulos burgues e aristocratico e, com

ela, uma heterogeneidade relat iva nos costumes alemaes sobreviveu muitodepois do seculo XVIII.

o conceito frances de civilisation reflete 0 fado social especifico da

burguesia da nacao exatamente como 0 conceito de Kultur reflete 0 ale-

5/16/2018 sociog nese dos conceitos - slidepdf.com

http://slidepdf.com/reader/full/sociogenese-dos-conceitos 23/23

o processo civil izador

mao. 0 conceito de civilisation e inicialmente, como acontece com 0 de

Kultur, urn instrumento dos circulos de classe media ---'-acima d e tudo, da

intelligentsia de classe media - no conflito social interno. Com a ascen-

sao da burguesia, ele veio, tambem, a sintetizar a nagao, a expressar a

auto-imagem uacional. Na propria revolucao, a civilisation (que, natural-

mente, refere-se sobretudo a um processo gradual, a uma evolucao, e naoabandonou ainda seu significado original como programa de reforma) nao

desempenha qualquer papel de relevo entre os slogans revolucionarios. Tor-

nando-se a revolucao mais moderada, pouco depois da virada do seculo,

ela inicia sua jornada como um brado de uniao por todo 0 mundo. Ja em

uma epoca tao remota como essa, atingia um myel de.significado que justi-

ficava as aspiracoes francesas de expansao nacional ecolonizagao. Em

1798, partindo para 0Egito, Napoleao grita para suas tropas: "Soldados,

estais iniciando uma conquista de conseqiiencias incalculaveis para a civi-

Iizacao", Ao contrario da situacao vigente ao ser formado 0 conceito, a

partir de entao as nacoes consideram 0 processo de civilizacao como ter-

minado em suas sociedades; elas sao as transmissoras a outrem de uma ci-

vilizacao existente ou acabada, as porta-estandartes da civilizacao emmarcha, Do processo anterior de civilizacao nada resta na consciencia da

sociedade, exceto um vago residuo, Seus resultados sao aceitos simples-

mente como expressao de seus proprios talentos mais altos; nao interessa

o fato e a questao de como, no decorrer dos seculos, 0 comportamento

civilizado se cristalizou. E a consciencia de sua propria superioridade, dessa

"civilizacao", passa a servir pelo menos as nacoes que se tornaram con-

quistadoras de colonias e, por conseguinte, urn tipo de c1asse superior para

grandes segmentos do mundo nao-europeu, como [ustificativa de seu do-

minio, no mesmo grau em que antes os ancestrais do conceito de civiliza-

gao, politesse e civilite, serviram de justificacao a aristocracia de corte.

Na verdade, uma fase fundamental do processo civilizador foi conclui-

da no exato momenta em que a consciencia de civilizacao, a conscienciada superioridade de seu proprio comportamento e sua corporificacao na

ciencia, tecnologia ou arte comecaram a se espraiar por todas as nacoes

do Ocidente.

Esta fase primitiva do processo civilizador, aquela em que a conscien-

cia do processo mal existia e 0 conceito de civilizacao sequer surgira ainda,

sera discutida no capitulo seguinte,