sobrecultura_ch331_entrevista

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Quando decidiu inspirar seu trabalho na biotecnologia e na engenharia genética? Minha mãe foi diagnosticada com câncer quando eu era adolescente e, apesar de ela ter vivido por mais 10 anos após o diagnós- tico, a sombra da doença e a esperança de que surgisse algum tipo de tratamento mé- dico revolucionário foram uma constante na minha vida. Depois que ela morreu, co- mecei a acompanhar as notícias e os resul- tados do Projeto Genoma Humano [que bus- ca sequenciar todos os genes que codificam as proteínas do corpo humano, assim como as sequências de DNA que não são genes], que parecia ser a última esperança de cura para as diversas enfermidades. No entanto, minhas experiências com a medicina me tornaram uma pessoa cética. E a maior parte do meu trabalho gira em torno dessa tensão entre o altruísmo da pesquisa científica e o ceticismo e o pragmatismo cruel do mundo industrializado. Sua obra está no limiar entre a ficção e a realidade, e muitas de suas esculturas provocam, ao mesmo tempo, atração e repulsa. O que pretende mostrar com essa abordagem limítrofe? Para mim, as minhas criações são todas muito belas, mas elas são muito diferentes daquilo que o público está acostumado a ver. As pessoas tendem a temer a diferença, e esse medo leva, com frequência, a resulta- dos negativos. Entretanto, todas as minhas criaturas reservam uma beleza e vulnerabi- lidade por trás da estranheza que desper- tam quando as pessoas entram em contato com elas pela primeira vez. Eu adoro ver o público nessa viagem que vai da aversão à simpatia. Gosto de assistir à empatia que surge depois de passado o choque inicial de estranhamento. Ser testemunha desse pro- cesso me dá esperança. Se as criaturas fos- sem apenas ‘fofinhas’, penso que meu tra- balho seria muito brando; mas é justamente seu lado grotesco que o faz forte. Que tipo de público pretende atingir com sua obra, e de que forma? Todo mundo me interessa. Embora meu traba- lho seja fruto, definitivamente, da arte mun- dial contemporânea, acho que ele ecoa além do público especializado. Procuro alcançar pessoas que tenham olhos, corações e mentes. Como tem sido a reação das pessoas a sua obra ao redor do mundo? Meu trabalho tem provocado respostas fortes em todos os lugares onde foi exibido. Acredi- to que ele opera em uma série de níveis. Em um determinado nível, pode ser considerado apenas como uma história estranha que quase todos po- dem apreciar. ENTREVISTA PATRICIA PICCININI Elas podem ser doces, estranhas, sedutoras, até repulsivas. Uma série de emoções vêm à tona quando se está frente a frente com as criaturas da artista australiana Patricia Piccinini. Sua vasta imaginação, impregnada das inúmeras possibilidades que a engenharia genética oferece, se materializa em seres facilmente reconhecíveis como reais. É essa proximidade com a vida cotidiana que assusta – ativa um sinal de alerta em – e provoca os espectadores. Se para alguns parece desconcertante e para outros, elucidativa, sua obra é, definitivamente, inquietante e perturbadora. Ela habita o limiar entre ficção e realidade, entre ciência e ética, entre o palpável e o inatingível. O trabalho de Piccinini já foi exposto em diversas galerias ao redor do mundo, com destaque nas bienais de Liverpool (Inglaterra), Berlim (Alemanha), Havana (Cuba) e Veneza (Itália). Agora, é a vez de ser apresentado ao público brasileiro na exposição individual intitulada ‘ComCiência’ no Centro Cultural Banco do Brasil, de São Paulo, até o fim do ano. Nesta entrevista ao sobreCultura , Piccinini fala sobre o que inspira sua obra, suas influências artísticas, sua relação com o público. Segundo ela, não há nada de ‘especulativo’ sobre as tecnologias genéticas que imagina em seu trabalho. “Tudo isso está acontecendo a nossa volta.” Entrevista concedida a Alicia Ivanissevich |sobreCultura | RJ | FOTOS DIVULGAçãO

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Page 1: SobreCultura_CH331_ENTREVISTA

Quando decidiu inspirar seu trabalho na biotecnologia e na engenharia genética?Minha mãe foi diagnosticada com câncer quando eu era adolescente e, apesar de ela ter vivido por mais 10 anos após o diagnós-tico, a sombra da doença e a esperança de que surgisse algum tipo de tratamento mé-dico revolucionário foram uma constante na minha vida. Depois que ela morreu, co-mecei a acompanhar as notícias e os resul-tados do Projeto Genoma Humano [que bus-ca sequenciar todos os genes que codificam as proteínas do corpo humano, assim como as sequências de DNA que não são genes], que parecia ser a última esperança de cura para as diversas enfermidades. No entanto, minhas experiências com a medicina me tornaram uma pessoa cética. E a maior parte do meu trabalho gira em torno dessa tensão entre o altruísmo da pesquisa científica e o ceticismo e o pragmatismo cruel do mundo industrializado.

Sua obra está no limiar entre a ficção e a realidade, e muitas de suas esculturas provocam, ao mesmo tempo, atração e repulsa. O que pretende mostrar com essa abordagem limítrofe?

Para mim, as minhas criações são todas muito belas, mas elas são muito diferentes daquilo que o público está acostumado a ver. As pessoas tendem a temer a diferença, e esse medo leva, com frequência, a resulta-dos negativos. Entretanto, todas as minhas criaturas reservam uma beleza e vulnerabi-lidade por trás da estranheza que desper-tam quando as pessoas entram em contato com elas pela primeira vez. Eu adoro ver o público nessa viagem que vai da aversão à simpatia. Gosto de assistir à empatia que surge depois de passado o choque inicial de estranhamento. Ser testemunha desse pro-cesso me dá esperança. Se as criaturas fos-sem apenas ‘fofinhas’, penso que meu tra-balho seria muito brando; mas é justamente seu lado grotesco que o faz forte.

Que tipo de público pretende atingir com sua obra, e de que forma?Todo mundo me interessa. Embora meu traba-lho seja fruto, definitivamente, da arte mun-dial contemporânea, acho que ele ecoa além do público especializado. Procuro alcançar pessoas que tenham olhos, corações e mentes.

Como tem sido a reação das pessoas a sua obra ao redor do mundo?Meu trabalho tem provocado respostas fortes em todos os lugares onde foi exibido. Acredi-to que ele opera em uma série de níveis. Em um determinado nível, pode ser considerado

apenas como uma história estranha que quase todos po-

dem apreciar.

EntrEvista PATRICIA PICCININI

Elas podem ser doces, estranhas, sedutoras, até repulsivas. Uma série de emoções vêm à tona quando se está frente a frente com as criaturas da artista australiana Patricia Piccinini. Sua vasta imaginação, impregnada das inúmeras possibilidades que a engenharia genética oferece, se materializa em seres facilmente reconhecíveis como reais. É essa proximidade com a vida cotidiana que assusta – ativa um sinal de alerta em – e provoca os espectadores. Se para alguns parece desconcertante e para outros, elucidativa, sua obra é, definitivamente, inquietante e perturbadora. Ela habita o limiar entre ficção e realidade, entre ciência e ética, entre o palpável e o inatingível.

O trabalho de Piccinini já foi exposto em diversas galerias ao redor do mundo, com destaque nas bienais de Liverpool (Inglaterra), Berlim (Alemanha), Havana (Cuba) e Veneza (Itália). Agora, é a vez de ser apresentado ao público brasileiro na exposição individual intitulada ‘ComCiência’ no Centro Cultural Banco do Brasil, de São Paulo, até o fim do ano.

Nesta entrevista ao sobreCultura, Piccinini fala sobre o que inspira sua obra, suas influências artísticas, sua relação com o público. Segundo ela, não há nada de ‘especulativo’ sobre as tecnologias genéticas que imagina em seu trabalho. “Tudo isso está acontecendo a nossa volta.”

Entrevista concedida a Alicia Ivanissevich |sobreCultura | rJ |

fOTOS dIVULgAçãO

Page 2: SobreCultura_CH331_ENTREVISTA

Em outro nível, minha obra se conecta com ideias da vida contemporânea – ideias sobre ciência, ética ou meio ambiente. Ainda em outro patamar, apresenta reflexões sobre pre-ocupações artísticas, como forma e matéria, abstração e figuração. Muitas dessas reações parecem surpreendentemente universais, e eu tenho obtido respostas muito fortes e se-melhantes dos diversos públicos, seja na Coreia, na Austrália ou no Peru. É claro que sempre há diferenças sutis, e estou animada para ver como será a reação dos brasileiros a minha obra.

O que espera do público brasileiro nesta primeira exposição no país?Realmente, não sei o que esperar. Mas as ideias com as quais trabalho e os modos de expressão que uso para discuti-las, assim como meu foco na empatia com o público, são todas coisas que atravessam as culturas. Espero que as pessoas recebam meu trabalho com abertura e honestidade, e isso poderia começar, ou expandir, o debate sobre uma série de questões presentes no mundo hoje.

Que tipo de materiais utiliza para fazer suas esculturas? Quanto tempo leva para construir uma peça?Meu trabalho é criado a partir de uma varieda-de de materiais e técnicas, que vão do simples desenho ao vídeo e à escultura. Minhas escul-turas figurativas são construídas com técnicas especiais, que usam silicone, fibra de vidro e cabelo humano. Outros trabalhos são feitos em bronze, fibra de vidro e tinta automotiva. Todas as minhas peças começam com ideias e desenhos. Depois, eu decido qual será o meio que vai representar melhor as ideias que estou interessada em desenvolver.

Eu conto com um fantástico grupo de téc-nicos que trabalham comigo em meu ateliê para me ajudar a fabricar as peças. Uma coisa comum a todos os meus trabalhos é que eles são produzidos com muita dedicação e extre-mo cuidado, independentemente de se tratar de um desenho ou de uma escultura.

As obras podem levar de semanas a meses para serem feitas; até anos, se considerar todo o tempo investido em sua concepção.

Quais são suas influências artísticas?Minhas principais influências são o surrea-

lismo e os artistas contemporâneos que herdaram essa abordagem: a francesa Louise Bourgeois, o alemão Hans Bellmer e os norte-americanos Man Ray e Matthew Barney são alguns deles. Eu adoro a combinação de estranha-mento e interesse na vida contemporâ-nea. Também me interessa a pintura barroca da italiana Artemesia Gentiles-chi e o realismo social inglês do século 19. Estou realmente conectada com as características emotivas e em-páticas desses trabalhos. Duas das minhas pinturas favoritas são O pesadelo, do anglo-suíço Henry Fuseli [1741–1825], e Angústia, do teuto-fran-cês August Schenck [1828-1901].

Quando sabe que teve ou está tendo um insight?Como meus trabalhos requerem muito tempo e esforço para serem criados, te-nho que ter plena certeza do que quero fazer antes de decidir fazê-lo. Levo muito tempo pensando, esboçando e desenhan-do. É um processo demorado e deliberado.

Como os críticos de arte avaliam as suas obras? O que pensa sobre as resenhas e críticas de arte? Como elas afetam seu trabalho? Para ser honesta, não é, realmente, algo sobre o que pense muito. Minha vida gira mesmo em torno da minha casa e de meu ateliê.

Você acredita que seu trabalho levante questões éticas e filosóficas?Sem dúvida. Esse é o ponto crucial da minha obra. Não há nada de particular-mente ‘especulativo’ sobre os tipos de tecnologias genéticas que eu imagino no meu trabalho. Tudo isso está acon-tecendo a nossa volta. Minhas obras não dizem às pessoas o que pensar sobre essas tecnologias, mas as con-vida a fazê-lo por conta própria e procura lembrá-las de que não exis-tem respostas simples.

EntrE DELÍriOs E MOnstrOs

MIx

Na página ao lado, The Long Awaited (2008).

À esquerda, The Welcome Guest (2011) e abaixo The

Observer (2010). As obras estão em exposição no Centro

Cultural do Banco do Brasil (CCBB) de São Paulo até dezembro

deste ano e seguem para o CCBB de Brasília no início de 2016.