smith, anthony d. myths and memories of the nation. new york, oxford university press, 1999

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SMITH, Anthony D. Myths and Memories of the Nation. New York, Oxford University Press, 1999, 288 p. João Paulo G. Pimenta Mestre e doutorando em História-USP enômeno histórico de abrangência mundial e inscrito na longa duração, o pro- blema nacional tem sido, pelo menos nos últimos cinqüenta anos, contemplado pelas preocupações de uma vasta gama de especialistas, que inclui historiadores, soció- logos, atropólogos, filósofos, geógrafos e psicólogos. Da extrema diversidade de abordagens investigativas propostas – concretizadas em enfoques genéricos, estudos de caso relativamente restritos ou estudos comparativos, todos às voltas com a perma- nente tensão entre geral e particular – resulta um conjunto nem sempre fácil de ser compreendido enquanto tal, o que por vezes induz à estagnação conceitual e à dificul- dade de se propor categorias teóricas adequadas a realidades históricas precisas. Esta diversidade, que indica a complexidade inerente ao tema, parece desencorajar os trabalhos essencialmente voltados à discussão conceitual, do que resulta estes serem incômodamente escassos. É justamente neste ponto que a obra de Anthony D. Smith configura-se singular. Sociólogo de formação, professor do European Institute da London School of Economics, Smith tem se dedicado ao estabelecimento de tipologias e categorias teóricas para o trata- mento do problema do nacionalismo e, por conseguinte, da nação. Já o fizera anteriormente em The Ethnic Revival in the Modern World (Cambridge, 1981), The Ethnic Origins of Nations (Oxford, 1986), e sobretudo em Theories of Nationalism (London e New York, 1971), sua obra mais conhecida, mas é em Myths and Memories of the Nation, uma coletâ- nea de artigos anteriormente publicados em revistas especializadas ao longo dos anos noven- ta, que suas posições conhecem as mais cristalizadas formulações. F

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SMITH, Anthony D. Myths and Memories of the Nation. New York, Oxford University Press, 1999.

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  • SMITH, Anthony D. Myths and Memories of the Nation. New York,Oxford University Press, 1999, 288 p.

    Joo Paulo G. PimentaMestre e doutorando em Histria-USP

    enmeno histrico de abrangncia mundial e inscrito na longa durao, o pro-blema nacional tem sido, pelo menos nos ltimos cinqenta anos, contemplado pelaspreocupaes de uma vasta gama de especialistas, que inclui historiadores, soci-logos, atroplogos, filsofos, gegrafos e psiclogos. Da extrema diversidade deabordagens investigativas propostas concretizadas em enfoques genricos, estudosde caso relativamente restritos ou estudos comparativos, todos s voltas com a perma-nente tenso entre geral e particular resulta um conjunto nem sempre fcil de sercompreendido enquanto tal, o que por vezes induz estagnao conceitual e dificul-dade de se propor categorias tericas adequadas a realidades histricas precisas.Esta diversidade, que indica a complexidade inerente ao tema, parece desencorajaros trabalhos essencialmente voltados discusso conceitual, do que resulta estesserem incmodamente escassos.

    justamente neste ponto que a obra de Anthony D. Smith configura-se singular.Socilogo de formao, professor do European Institute da London School of Economics,Smith tem se dedicado ao estabelecimento de tipologias e categorias tericas para o trata-mento do problema do nacionalismo e, por conseguinte, da nao. J o fizera anteriormenteem The Ethnic Revival in the Modern World (Cambridge, 1981), The Ethnic Origins ofNations (Oxford, 1986), e sobretudo em Theories of Nationalism (London e New York,1971), sua obra mais conhecida, mas em Myths and Memories of the Nation, uma colet-nea de artigos anteriormente publicados em revistas especializadas ao longo dos anos noven-ta, que suas posies conhecem as mais cristalizadas formulaes.

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    A primeira grande peculiaridade da obra de Smith, presente em Myths andMemories, reside no fato de que, nela, tudo o que exposto e discutido parte declaras definies de nacionalismo (an ideological movement for attaining and main-taining identity, unity and autonomy of a social group some of whose members deemit to constitute an actual or potential nation, p.18) e de nao (a named humanpopulation with shared myths and memories occupying an historic territory or home-land, and possessing a common public culture, a single unified economy andcommon legal rights and duties, cf.p.259-260). Esta uma postura metodolgicabem mais arrojada daquela que o prprio autor demonstrara antes em Theories ofNationalism, e bastante distinta da preferida pelos historiadores (como EricHobsbawm e Benedict Anderson, para citarmos apenas dois dos mais importantesestudiosos da questo). Estes, estrategicamente, evitam de antemo definies preci-sas e, ao adotar formulaes preliminares vagas, procuram conceitos construdos apartir da prpria historicidade do fenmeno nacional em suas variveis.

    O distanciamento em relao atitude cautelosa corrente na historiografia tornaa proposta de Smith ambiciosa: tendo como suporte uma extensa crtica da produointelectual voltada para o problema nacional, prope um novo modelo terico deinterpretao do nacionalismo. Trata-se de considerar mitos, memrias, tradies esmbolos herdados do passado (portanto, elementos histricos e culturais) e apro-priados por uma determinada comunidade social como o substrato a partir do qualse constroem identidades nacionais modernas, num processo que acarreta a consti-tuio real da prpria nao. Esta alternativa, denominada pelo autor de etno-simb-lica, implica uma crtica frontal ao conhecido axioma (adotado por Hobsbawm eErnest Gellner, dentre outros) de que as naes e nacionalismos so fenmenosessencialmente modernos, posteriores formao dos Estados nacionais ps-revolu-es burguesas do sculo XVIII, o que implica a assertiva de que nao e identidadenacional no so questes que se colocam anteriormente existncia dos Estadosmodernos. Para Smith, pelo contrrio, se os mitos, memrias e tradies construdos,apropriados e reiventados por uma comunidade so elementos centrais de sua ascenso condio de nao, no prprio passado muitas vezes um passado antigo,

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    medieval, pr-moderno que se encontram naes e identidades nacionaisdeterminantes da configurao daquelas outras, essencialmente modernas. As portasque se fecham para uma nica equao envolvendo nacionalismo, Estado, nao eidentidade nacional, abrem-se para a questo da ancestralidade destes fenmenos.

    Na primeira das duas partes que o constituem (precedidas por uma introduo),Myths and Memories apresenta artigos mais diretamente voltados para estes e outrosproblemas de teoria e mtodo: alm daquele que talvez possa ser considerado comoum dos pontos altos da coletnea (o captulo 3, uma discusso sobre a modernidadedo fenmeno identidade nacional, mas amparados em naes e identidades anteriorespresentes nos mundos Antigo e Medieval), h um balano crtico do estudo de naoe nacionalismo empreendido por historiadores dos sculos XIX e XX (captulo 1);uma anlise da importncia dos mitos de origem na formao de naes e identidadesnacionais modernas a partir dos casos de Inglaterra, Frana, Grcia, Turquia e Israel(captulo 2), questo retomada sob o prisma da apropriao de idias de eleioe desgnio por nacionalismos modernos (captulo 4); e um estudo do papel dosterritrios como integrantes fundamentais do arcabouo histrico-cultural de gruposnacionais (captulo 5).

    Na segunda parte do livro, os estudos possuem um carter mais emprico, comnfase em temticas contemporneas: os debates acerca do nacionalismo, tomadopelo autor como um tipo de arqueologia poltica por meio da qual os nacionalistas(segundo ele, basicamente membros de intelligentsias) voltam-se para o passado embusca de elementos construtores do presente (captulo 6); as conexes entre nacionalismoe segregao de grupos sociais (captulo 7); disporas nacionais, como as sofridas porarmnios, gregos e judeus (captulo 8); o problema da formao da Unio Europia emcontradio com identidades nacionais (regionais do ponto de vista continental),abordando em que medida mitos, memrias, tradies e smbolos europeus podemsobrepor-se ou associar-se aos particulares de cada nao (captulo 9); e finalmente umaavaliao do nacionalismo e seu impacto no mundo aps o colapso da Unio Sovitica,tomado como um de seus elementos caractersticos, ainda que no fundamental (captulo10). Um ndice remissivo temtico e onomstico encerra a edio.

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    Em se tratando de uma coletnea de artigos, o leitor pode relevar a exaustivarepetio de alguns pontos presentes em todos estudos de Myths and Memories,como por exemplo a crtica historiogrfica ou as definies de nao e nacionalismo.Mesmo porque, destes desdobram-se outros merecedores de particular ateno,inclusive por parte do leitor brasileiro.

    Smith extremamente competente em distinguir nao de nacionalismo. A cons-truo ideolgica do fenmeno nao, tomado portanto em sua dimenso de con-ceito, no a equivale ao fenmeno em si. Ainda que a modernidade do Estado-nao,das identidades nacionais e do prprio nacionalismo que a eles se atrela seja reco-nhecida por Smith, sua preocupao em estabelecer continuidades histricas entreo moderno e o pr-moderno conduz a uma perspectiva na qual mitos no sosimples distores histricas com a finalidade de legitimar um presente: so a prpriabase sobre a qual grupos humanos se constituem em naes. Isto, por seu turno,recoloca a discusso das periodizaes para o estudo da questo nacional, no maislimitadas ao perodo aberto pelas revolues do sculo XVIII, mas passeando notempo aonde quer que um dado da realidade seja fundamental para a formao deuma nao. evidente que cada caso um caso, e as pretenses categorizantes deSmith no o levam a desconsiderar esta regra da boa prudncia. No se trata, portanto,de atribuir ao fenmeno nacional uma importncia equnime em perodos to dis-tintos entre si como a Antiguidade, o mundo feudal e o mundo moderno, ao longodos quais grupos sociais criaram e organizaram formas especficas de identidades ede atitudes perante elas (ainda que Smith seja passvel de crtica no que respeita auma certa concepo continusta do nacionalismo na histria, conforme bem assi-nalou John Breuilly). Mas como e aqui vale novamente uma referncia particularao universo brasileiro os estudos tm avanado cada vez mais na tese da moder-nidade do nacionalismo e da nao (nesta ordem, respectivamente), talvez a obrade Smith possa servir de advertncia para a pertinncia de as atenes se voltaremtambm para perodos e processos histricos at este momento praticamente igno-rados no conjunto dos estudos sobre a questo nacional.