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SIRLEI ALVES MADEIRA A ESCRITA CALEIDOSCÓPICA DE GRACILIANO RAMOS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA DEPARTAMENTO DE LETRAS, ARTES E CULTURA Novembro de 2007

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SIRLEI ALVES MADEIRA

A ESCRITA CALEIDOSCÓPICA DE GRACILIANO RAMOS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA

DEPARTAMENTO DE LETRAS, ARTES E CULTURA

Novembro de 2007

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SIRLEI ALVES MADEIRA

A ESCRITA CALEIDOSCÓPICA DE GRACILIANO RAMOS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de São João del-Rei, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras. Área de Concentração: Teoria Literária e Crítica da Cultura Linha de Pesquisa: Literatura e Memória Cultural Orientadora: Prof. Dra. Suely da Fonseca Quintana

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: TEORIA LITERÁRIA E CRÍTICA DA CULTURA

DEPARTAMENTO DE LETRAS, ARTES E CULTURA

Novembro de 2007

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SIRLEI ALVES MADEIRA

A ESCRITA CALEIDOSCÓPICA DE GRACILIANO RAMOS

Banca Examinadora:

Profa. Dra. Suely da Fonseca Quintana – UFSJ

Orientadora

Prof. Dra. Constância Lima Duarte - UFMG

Prof. Dra. Adelaine La Guardia Resende - UFSJ

Prof. Dra. Magda Veloso

Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Letras

Teoria Literária e Crítica da Cultura

Novembro de 2007

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Ao meu filho Pedro e ao meu pai (in memorian)

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AGRADECIMENTOS

À Suely da Fonseca Quintana, pela orientação, em especial, por considerar o

objeto de pesquisa inicial e, por agir como uma mediadora dos “bichos” do nosso

“subterrâneo”.

À CAPES, por financiar a pesquisa;

À família Alves Madeira, em especial, à minha mãe, pela constante presença e

pelos seus muitos deslocamentos para cuidar de Pedro, em minhas ausências;

É necessário agradecer aos amigos e familiares, os quais, além do apoio, não

mediram esforços para tomarem conta de Pedro, devido às minhas faltas: família

Diniz Borges; Maria Camila Batista e família; família Lima; Mercês; Filó e,

ultimamente, Penha e filhos;

À Claudia Borges Miranda, por ter concedido, incondicionalmente, o uso do seu

computador pessoal nas emergências;

Aos amigos, Estela e Imaculada Lobato, Daise, Marta Lopes, Eliana Silva,

Andréa, Zé e Gabriel, Diana Silva, Ayana, Wanderson e Aender Assis, pela

indispensável cooperação emocional;

À Tita e esposo, pela concessão de sua casa de campo para primeira

hospedagem em São João Del Rei;

À Denise do Nascimento, Jeanne Botelho e Cristia Rodrigues, pela segunda

hospedagem em São João, pelas discussões intelectuais e pela amizade;

Ao Francisco Novaes, pela sua quase chegada já nos proporcionar uma intensa

alegria e através dela nos sentirmos mais animados e renovados para a vida;

Ao Maximiliano Silva, pela companhia paciente, incentivadora e, sobretudo, pelo

amor que muito contribui para amenizar os desafios.

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RESUMO

O objetivo dessa dissertação é analisar a escrita das crônicas e das cartas de

Graciliano Ramos, relacionadas aos aspectos da política, da sociedade e da

literatura; escritas nas primeiras décadas do século XX. Através desses escritos

muito específicos, um por seu caráter público, as crônicas, e outro por seu caráter

íntimo, as cartas -- notam-se os posicionamentos do autor de forma semelhante e

coerente, a respeito da política, da literatura e da sociedade; fatores que são

objetos de análise em todos os capítulos. A dissertação está dividida em três

capítulos. O primeiro capítulo trata do estudo crítico sobre as crônicas coletadas

no livro, Linhas tortas, ressaltando a condição do escritor e a crítica literária. No

segundo capítulo evidenciam-se a participação política do escritor e os aspectos

sociais transportados por ele para a literatura. No terceiro capítulo buscou-se,

através das cartas escritas por Graciliano Ramos, aproximar sua escrita íntima

dos seus textos em geral, mostrando a coerência crítica do autor. O suporte

teórico para a análise das crônicas se fundamenta, sobretudo, em Afrânio

Coutinho, Antonio Candido e Jorge de Sá; a discussão do papel do intelectual e

do escritor é refletida com os teóricos e críticos: Daniel Pécaut, Norberto Bobbio,

Edward Said, Pierre Bourdieu e Silviano Santiago; quanto ao gênero epistolar,

nos aproximamos das reflexões de Michel Foucault e Roland Barthes. A prática

da escrita de Graciliano Ramos pode ser associada a uma mediação crítica entre

os acontecimentos do seu tempo e o público das crônicas veiculadas, num

primeiro momento, em jornais e revistas e também entre o público familiar das

cartas, assim configurado até sua publicação.

Palavras-chaves: crônicas, cartas, crítica da cultura, Graciliano Ramos.

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ABSTRACT

The objective of this dissertation is to analyze the writing of the chronicles and the

letters of Graciliano Ramos, related to the aspects of the politics, of the society

and of the literature; written in the first decades of the 20th century. Through these

very specific writings, the chronicles for their public character, and the letters for

their intimate character - the author's positioning can be noticed in a similar and

coherent way, regarding politics, literature and society; factors object analyzed in

all the chapters. The dissertation is divided into three chapters. The first chapter

includes a critical study of the chronicles collected in the book, Linhas Tortas,

pointing out the writer's condition and his literary criticism. In the second chapter,

the writer's political participation and the social aspects which were transported by

him to the literature are evidenced. In the third chapter an attempt was made to

approach Graciliano Ramos’ the intimate writing in his letters, showing the author's

critical coherence. This work finds theoretical support chronicles especially in

Afrânio Coutinho, Antonio Candido and Jorge of Sá; the discussion of the roles of

the intellectual and the writer is done based in the following critics: Daniel Pécaut,

Norberto Bobbio, Edward Said, Pierre Bourdieu and Silviano Santiago.

Concerning the epistolary gender, we approached Michel Foucault's and Roland

Barthes’ thoughts. The practice of Graciliano Ramos' writing can be associated to

a critical mediation between the events of his time and the public of the transmitted

chronicles which were published in newspapers and magazines in the beginning,

and can also be associated to a critical mediation among the public related to the

letters, which were configured like this until their publication.

Key-words: chronicles, letters, cultural critical, Graciliano Ramos.

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO..................................................................................................................... 9 Capítulo 1 – Linhas Tortas: escrita diversa .................................................................... 16

1.1 – O intelectual, o escritor e a crítica .......................................................................... 18 1. 2 – O gênero crônica.................................................................................................... 29 1. 3 - A escrita como remédio ou como veneno .............................................................. 32 1.4 – A situação do escritor no Brasil: a não existência da profissão de “literato”. ....... 34 1.5 - A discordância com a política e a economia brasileiras: a ironia ........................... 38 1.6 - Valorização comedida do nacional ......................................................................... 40 1.7 - Literatura nacional x Literatura estrangeira ............................................................ 44 1.8 - Crítica literária: a objetividade versus a amizade.................................................... 47

Capítulo 2 -Viventes das Alagoas: regionalismo, tradição e crítica.......................... 53

2.1 - A existência e a sobrevivência do cangaço nordestino ........................................... 64 2.2 – A morte de Lampiao: metáfora da desilusão de Ramos frente aos problemas brasileiros ........................................................................................................................ 70 2.3 – Seca x chuva x jogo: desastre e esperança ............................................................. 74

Capítulo 3 - Graciliano Ramos: escritos da intimidade............................................... 80

3.1 - O menosprezo de Graciliano Ramos por si mesmo e por sua produção literária.... 94 3.2 – A predominância da produção literária em detrimento do político ........................ 96 3.3 – Literatura e mercado de trabalho .......................................................................... 102 3.4 – Realidade vivenciada transformada em literatura ................................................ 104

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 108 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 118 BIBLIOGRAFIA DO CORPUS ........................................................................................ 121 BIBLIOGRAFIA GERAL................................................................................................. 122

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INTRODUÇÃO

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O presente estudo tem como objetivo analisar e acompanhar a formação

de Graciliano Ramos, no tocante aos seus posicionamentos relacionados ao

escritor e ao intelectual no Brasil, no período configurado nas primeiras décadas

do século XX; de acordo com as suas concepções políticas, literárias e sociais,

através de suas obras Linhas Tortas (1975), Viventes das Alagoas: quadros e

costumes do Nordeste (1983), e Cartas (1986). Junto a esses textos, busca-se

teorizar a respeito dos gêneros tido como menores, de acordo com a crítica

literária mais tradicional, tais como a crônica e a carta. As duas primeiras obras

são crônicas e a terceira, um conjunto de cartas escritas pelo autor aos seus

familiares e a um amigo. Discutimos sua postura intelectual, quando atuou como

prefeito de Palmeira dos Índios e também como diretor da Imprensa Oficial de

Alagoas.

Neste sentido, torna-se relevante explicitar que, para abordar a discussão

sobre o intelectual, nos apoiamos em diversos críticos. Daniel Pécaut (1990)

classifica o intelectual do Brasil como um mediador entre a sociedade e o Estado,

mas que não deixa de pertencer à elite pensante. Considera a geração dos

intelectuais dos anos de 1920 -1940 preocupada, em especial, com o problema

da identidade nacional, portanto imbricada com assuntos entre o cultural, o social

e o político. Já Edward Said (2005) define o papel público do intelectual como

sendo o de uma figura que representa um determinado ponto de vista, agindo, de

forma crítica, através da fala, da escrita, do ensino ou aparecendo na televisão.

Norberto Bobbio (1997), além de definir o intelectual no âmbito da política,

apresenta uma possível junção entre ideólogos e expertos, para a eficiência entre

a prática e a teoria em relação à função dos intelectuais. Pierre Bourdieu (1996)

concebe o intelectual como uma pessoa imbricada com as questões políticas e

sociais com determinada autoridade e autonomia para intervirem na sociedade

independente dos poderes religiosos, políticos, e econômicos. Sergio Miceli

(2001) analisa a relação de cooptação dos escritores brasileiros do período entre

1920-1945 com os aparelhos do Estado.

Em relação ao escritor, nos aproximamos das reflexões de Antonio

Candido (2000), por considerar que uma das principais funções do escritor seria

exercer uma função social assim como apresentar um estudo sobre a condição do

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escritor no Brasil; e o crítico Silviano Santiago (2004), por refletir sobre a tradição

da formação da cultura brasileira.

Teorizando sobre a crônica, nos aproximamos da reflexão de Afrânio

Coutinho (1990), o qual a considera um gênero específico e autônomo contendo

uma forma literária de estimável valor estético, sendo também uma forma de arte

com as palavras. Eduardo Portela (1990) a concebe como uma construção que

ultrapassa o caráter jornalístico, devendo praticar uma escrita privilegiando o dado

objetivo da notícia. A reflexão de Antonio Candido (1992), por considerar a

crônica como um gênero que tratando das questões “miúdas” do cotidiano, as

transforma numa produção escrita elevada. Em sua composição aparentemente

solta discute questões sérias, podendo utilizar do recurso do humor para tal. Por

fim, Jorge de Sá (1987) apresenta o cronista como um mediador dos

acontecimentos cotidianos de determinada sociedade.

Em relação ao gênero epistolar, nos aproximamos das reflexões, em

especial, de Michel Foucault (1992) por colocar a correspondência implicada

numa exposição do eu e, dessa forma, mostrar que a escrita de si adquire um

papel de companheiro, agindo como uma maneira de dissipar o inimigo,

revelando-se ao outro; e de Roland Barthes (1988), o qual fazendo um

diagnóstico do Diário o concebe como sendo uma deliberação pessoal.

A dissertação está dividida em três capítulos. Nos dois primeiros,

analisamos as crônicas, presentes nas obras Linhas Tortas e Viventes das

Alagoas; no terceiro, tratamos de parte da correspondência recolhida no livro

Cartas.

Em Linhas Tortas tomamos as crônicas que se relacionam com as

concepções do autor diante da política, dos costumes, das tradições, da literatura

e do fazer literário. Investiga-se o processo da formação de Graciliano Ramos,

nesses aspectos, no recorte temporal brasileiro inserido no período da

constituição da Primeira República entre os anos de 1889 a 1930, destacado pela

presença do coronelismo; até meados da Segunda República de 1930 em diante,

marcado pelo Governo Vargas. Nas crônicas de Linhas Tortas predominam

características como as de ironia, de uma crítica às produções literárias

contemporâneas com um forte teor de objetividade e um desacordo com

importações estrangeiras, vindas principalmente de Portugal, tais como o livro

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infantil e o fado, e o futebol inglês, as quais não encontravam associações com a

nossa realidade. Neste capítulo, discutimos, ainda, a condição, muitas vezes,

precária do escritor e do intelectual brasileiros.

A obra Viventes das Alagoas, analisada no segundo capítulo, apresenta a

colaboração do escritor na Revista Cultura Política, veiculada pelo (DIP)

Departamento de Imprensa e Propaganda do Governo de Getúlio Vargas, para a

divulgação propagandística dos feitos políticos do governo desse período. Tinha

como proposta a definição e o esclarecimento das transformações sócio-

econômicas por que passava o país. Graciliano Ramos, descrevendo os

costumes e as tradições do Nordeste, denuncia o Governo pelo descaso político

encontrado em sua região. Denuncia a questão das diferenças sociais

encontradas no país, o que acarreta um debate a respeito da cooptação política

no Brasil. Analisa-se, também, sua colaboração num veículo de comunicação

presidido pelo Governo que o aprisionou na década de 1930. Evidenciam-se

duas discussões abordadas nessas crônicas: uma delas diz respeito ao ambiente

político brasileiro desse período; a segunda refere-se ao caráter regional na

literatura do país.

No terceiro capítulo, analisamos as cartas escritas pelo autor aos seus

familiares e ao amigo, seu conterrâneo e jornalista, Joaquim Pinto da Mota Filho,

no sentido de averiguar como a escrita íntima retrata aspectos relacionados

também com questões que perpassam a literatura, a sociedade, a política; porém

voltados para um “eu” que, mesmo involuntariamente, está exposto a todo

instante nessas cartas. Destacam-se nas cartas de Graciliano Ramos, questões

como o “eu”, a política, o escritor brasileiro assim como a gênese de sua

literatura. Percorrer essas questões em Ramos torna-se instigante por serem

recorrentes em sua escrita. Essa recorrência se faz presente nos três momentos

do corpus analisado nesta dissertação. Além disso, não deixa de ser curioso

analisar a escrita íntima de um autor que, em vida, não admirava expor a sua

individualidade, sendo avesso a qualquer manifestação de publicidade pessoal.

Cabe evidenciar que analisamos as crônicas como uma escrita em jornais,

portanto uma escrita pública, direcionada ao público leitor, no geral, assim como a

escrita privada do autor, ou seja, as cartas destinadas às pessoas íntimas, mas

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que foram particulares até o instante de sua publicação em livro, na década de

1980. No entanto, notam-se discussões e posicionamentos semelhantes tanto em

um gênero quanto no outro.

Graciliano Ramos, no decorrer de sua vida pessoal e literária, manteve

uma preocupação com a realidade brasileira, a partir da sua região de

nascimento, o Nordeste e uma intensa prática de escrita, conservando uma

linguagem concisa e enxuta que supera o local por atingir o humano. Aos doze

anos de idade, inicia o trabalho no jornal que ajudou a fundar, denominado O

Dilúnculo, em Palmeira dos Índios, em companhia de um primo e com o apoio do

agente dos Correios e professor do Internato Alagoano, Mário Venâncio,

considerado um literato na cidade.

Alguns anos depois, Graciliano Ramos passou a escrever sonetos para a

revista O Malho do Rio de Janeiro, para o Jornal de Alagoas e para o Correio de

Maceió. Em 1914, parte para o Rio de Janeiro a fim de tentar o ingresso em

jornais cariocas. Consegue emprego no Correio da Manhã, como foca e depois

como suplente de revisão; ao mesmo tempo trabalha como suplente de revisão

em O Século. Em 1915, é contratado como revisor no jornal A Tarde. Nesse

mesmo ano, escreve crônicas para o Jornal de Alagoas e para o Paraíba do Sul.

Os sonetos, que também escreve nessa época, podem ser identificados como

parnasianos; já as crônicas revelam um escritor inclinado a refletir criticamente

sobre o cotidiano problemático nos âmbitos político, social e econômico, assim

como a discorrer sobre a literatura e a condição do literato brasileiro num país que

não valorizava o profissional das letras.

A importância que conferimos aos objetos tratados nesta dissertação

refere-se, sobretudo, por reconhecermos nesses gêneros assim como em seus

romances, uma forma recorrente da temática da reflexão sobre questões

relacionadas com as vivências do seu tempo, sendo observadas critica e

detalhadamente. Estudar a sua produção “menor”, ou seja, tanto as crônicas

como as cartas, em relação aos temas aqui abordados, tais como a política, a

sociedade e a literatura, torna-se uma possibilidade de ampliar e contribuir para a

crítica da Literatura Brasileira, vindos de um escritor que privilegiou o “pequeno”, a

“gente miúda”, em sua escrita como um todo.

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Hoje, os Estudos Culturais possibilitam tomar as cartas e as crônicas como

objetos de estudo, mesmo não pertencendo ao que se chamaria cânone. São

gêneros que, além de expor a individualidade do autor, expõem também sua

visão da vida política, literária e social de sua época. Com os Estudos Culturais, a

discussão do cânone passa a ser revista. Os valores culturais são também

conferidos a gêneros que não eram considerados canônicos, como cartas,

crônicas, entrevistas, dentre outros. Steven Connor (1994) argumenta a respeito

do valor como sendo inescapável a qualquer pessoa ou objeto. De acordo com o

autor, não há como vivermos sem o valor e a valoração. Eles nos são inerentes

da mesma forma que a lei da natureza e a condição humana.

Conforme Connor, tradicionalmente, questões relacionadas ao valor têm

ocupado um lugar central nas disciplinas das ciências humanas e sociais e não

nas disciplinas científicas. O cientista busca conhecimento acerca de objetos e de

processos considerados independentes dos seus procedimentos de observação.

Em contrapartida, as ciências humanas e sociais dirigem-se a objetos e

processos culturais que só podem ser compreendidos em termos sociais e

culturais. Nesse sentido, afirma que em ambos os casos não se pode recusar as

questões de valor, intrínseco em qualquer disciplina. Steven Connor perpassa

teóricos como Habermas, Lyotard, Booth, Miller, Easthope e Barbara Smith para

afirmar que o valor é historicamente construído.

As reflexões de Steven Connor acerca do valor, nos ajudam a pensar os

gêneros por uma perspectiva dos Estudos Culturais, os quais atribuem valor

também a gêneros considerados menos nobres, por exemplo, para os Estudos

Literários tradicionais. Dessa forma, tanto as cartas quanto as crônicas de

Graciliano Ramos nos permitem discutir os valores da cultura de determinada

época, como um documento enriquecido pela abordagem do escritor aqui

estudado.

Enfatiza-se que tratamos esses escritos com traços pessoais de acordo

com a crítica biográfica contemporânea, sobretudo, considerando a reflexão de

Eneida de Souza (2002), a qual avalia o campo biográfico pela construção da

linguagem e não apenas pela vida do autor em si, no sentido de que a vida do

autor deve ser pensada como um recorte do contexto e/ou lugar de produção e

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não como a obra sendo um reflexo da vida. Deve-se analisar o ato da escrita de si

como um discurso construído.

Por tratarmos de obras publicadas postumamente, cabe ressaltar que a

família Ramos cumpriu o pedido do escritor, o qual, em vida, pediu atenção e

cuidado na seleção dessa publicação. Esclarece-se que a organização procurou

seguir as instruções de Graciliano Ramos. tanto em Linhas Tortas, Viventes das

Alagoas e Cartas. A seleção das crônicas, para publicação, no início da década

de 1960, foi feita, em especial, por Heloísa e Ricardo Ramos e, por seu cunhado

James Amado, no momento em que a editora Martins se prontificou a editar as

obras completas do autor. A obra Cartas foi organizada por James Amado e,

principalmente, por Heloísa Ramos, e publicada na década de 1980.

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Capítulo 1 – Linhas Tortas: escrita diversa

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O objetivo deste capítulo é analisar as crônicas presentes na obra Linhas

Tortas (1975), de Graciliano Ramos, no sentido de acompanhar e analisar as

concepções do autor diante da política, dos costumes, das tradições, da literatura

e do fazer literário. Cabe investigar o processo de sua formação nestes aspectos,

no contexto brasileiro, inserido no período histórico que vai desde a constituição

da Primeira República (1889-1930), com presença marcante do coronelismo, até

meados da Segunda República.

O Livro Linhas Tortas é uma obra póstuma, a qual recebeu sua primeira

publicação no ano de 1962, resultado de um conjunto de crônicas escritas nos

jornais do estado de Alagoas e do Rio de Janeiro entre os anos de 1915 e 1952.

Está dividido em duas partes, sendo que a primeira delas pode ser desdobrada

em duas subdivisões. A primeira subdivisão consta de dezesseis crônicas

apenas numeradas. Foram colaborações de Graciliano Ramos no Jornal de

Alagoas, localizado em Maceió, no ano de 1915 (três crônicas); as crônicas IV à

XVI foram escritas para o Jornal Paraíba do Sul, cidade fluminense, no mesmo

ano. Em sua segunda subdivisão denominada, Traços a Esmo, há doze crônicas

também numeradas, resultado de sua colaboração para o Jornal de Palmeira dos

Índios fundado por seu amigo Padre Macedo, quando Ramos retorna a sua

cidade natal depois de ter tentado ingresso na imprensa carioca1. Na segunda

parte há um total de setenta e uma crônicas, cada uma delas com título. Embora

nem todas estejam datadas, elas foram ordenadas cronologicamente de acordo

com as que vêm com data. As crônicas não datadas estão em meio às que estão.

São colaborações do autor que cobrem um período entre as décadas de 1930 e

1950. Com exceção da crônica de número quatro, IV, assim numerada no livro,

Graciliano Ramos usou o pseudônimo R. O. (Ramos Oliveira). Apenas na crônica

IV aparece o pseudônimo A.O. Nas demais não há pseudônimo.

Ricardo Ramos (1992), em sua biografia sobre o pai, declara que a seleção

de sua publicação póstuma deveria ser cuidadosa e atenta em relação ao que o

autor escreveu com pseudônimos. Declara que há alguns que o pai não permitiria

a publicação, como segue:

1 Graciliano Ramos ficou no Rio de Janeiro por aproximadamente um ano. Precisou retornar a Palmeira dos Índios, devido à morte causada pela epidemia de peste bubônica em três dos seus irmãos e um sobrinho, o que deixou um vácuo em sua produção literária entre os anos de 1915 e 1921. (RAMOS, 1986)

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preste atenção ao que não está em livro. Se assinei com meu nome, pode publicar; se usei as iniciais GR, leia com cuidado, veja bem; se usei as iniciais RO ou GO, tenha mais cuidado ainda. O que fiz sem assinatura ou sem iniciais não vale nada, deve ser besteira, mas pode escapar uma ou outra página menos infeliz. Já com pseudônimo não, não sobra uma linha, não deixe sair. E pelo amor de Deus, poesia nunca. Foi tudo uma desgraça. (RAMOS, 1992, p.176)

As crônicas que contém as iniciais RO nos serão válidas. Graciliano Ramos

ter pedido ao filho muito cuidado ao publicá-las nos faz apenas confirmar que foi

uma escolha e decisão acertadas do filho. Há também o pseudônimo J. Calisto

que aparece em todas as crônicas publicadas no jornal de Palmeira dos Índios em

1921. Não há comentários sobre ele. Nas crônicas escritas pós 1930, não há

pseudônimo, nem assinatura do autor.

No conjunto das crônicas aqui analisadas, predominam características

como a ironia e uma crítica às produções literárias da época, com um forte teor de

objetividade, além de apresentarem a condição muitas vezes precária do escritor

e do intelectual brasileiros. Vale ressaltar algumas reflexões que perpassam a

constituição do intelectual e do escritor num âmbito internacional e nacional,

privilegiando este último.

1.1 – O intelectual, o escritor e a crítica

Em primeiro lugar, é necessário realçar o que vem a ser considerado um

intelectual. Embora não seja uma tarefa fácil alcançar uma definição que abarque

seu sentido, procuramos nos aproximar de conceitos que nos ofereçam uma base

para discuti-lo.

GOMES e MARGATO (2004) recorrem à obra Dicionário de política de

Norberto Bobbio, em que este conceitua o intelectual como aquele que pertence à

classe culta. Outro conceito origina-se do caso Dreyfus, o qual desencadeou a

questão da intervenção intelectual, fato expresso no Manifeste des Intellectuels,

assinado pelos escritores franceses Emile Zola e Marcel Proust conservando um

sentido político. O intelectual, nesse sentido, estaria entre a sua formação

genealogicamente culta e política. Essa duplicidade assinala uma categoria ou

classe social particular, que se distingue pela instrução e pela competência, e um

sentido mais específico que aponta para os escritores “engajados” e, por

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extensão, designa artistas, estudiosos, cientistas e, em geral, quem tenha

adquirido, com o exercício da cultura, uma autoridade e uma influência nos

debates políticos. Portanto, essa definição associa o problema do comportamento

político dos intelectuais e sua atitude crítica problematizante, contribuindo, dessa

forma, para o apoio militante de movimentos revolucionários. Ao longo dos

tempos, a função do intelectual e sua representação no mundo sofrem

transformações.

Vale explanar a respeito do caso Dreyfus para destacar a intervenção de

um escritor, no caso o francês Emile Zola, o qual inaugura um novo sentido ao

termo tido como “intelectual”. Em 13 de janeiro de 1898, o jornal francês ‘L’aurore’

publicou a carta chamada “J’Accuse” escrita por Zola, em que ele exige a revisão

do processo que havia condenado o oficial judeu Alfred Dreyfus por crime de alta

traição e denunciando o tribunal militar que havia absolvido, na véspera, o

verdadeiro culpado: o comandante Esterhazy. No dia seguinte, vários artistas e

homens das letras publicaram uma petição apoiando Zola. Os adversários do

escritor assim como os antisemitas e os nacionalistas franceses retaliaram

imediatamente, batizando esse documento, de forma depreciativa, de “petição

dos intelectuais”. Desde então surgiu o termo “intelectual”, o qual usava um

discurso universalista que foi extraído do repertório do Iluminismo. A

argumentação de Emile Zola se baseava em princípios éticos absolutos e em

valores universais. (ROUANET, 2006)

No cenário político e cultural do século XX, a figura do intelectual é

destacada, ocupando um lugar entre o pensar e o agir. O intelectual ocupa certo

espaço entre a pura dedicação ao objeto de suas indagações e a necessidade de

se posicionar e participar dos problemas do seu tempo.

Pécaut (1990) situa o intelectual como aquele que pertence a uma

categoria social específica, e, em se tratando do Brasil, “representa o povo”, mas

num patamar acima deste, fazendo parte então de uma elite.

Define-se o intelectual como aquele que está comprometido com questões

políticas, sociais e culturais de determinado país, e, dessa forma atua como

mediador entre as distintas classes de uma sociedade.

Edward Said (2005) define o papel público do intelectual como sendo o de

uma figura que representa um determinado ponto de vista, oferecendo assim

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concepções articuladas a seu público superando todo tipo de barreira; em outras

palavras, o intelectual seria aquele que, tendo vocação para a arte de representar,

poderá fazê-lo através da fala, da escrita, do ensino ou aparecendo na televisão -

tomemos em especial a questão da escrita, pois é através dela que pretendemos

acompanhar o processo de formação de Graciliano Ramos enquanto escritor e

intelectual.

O intelectual, para Said, se distancia de atuar como um pacificador ou um

fabricante de consenso, mas, especialmente, alguém que tem apostado com todo

o seu ser em favor do senso crítico, e, portanto se nega a aceitar as fórmulas

fáceis ou os estereótipos. Não se trata de questionar sempre a política do

governo, mas sim a vocação de tomar como atitude uma constante vigilância, no

sentido de estar sempre com uma atenção voltada para os acontecimentos em

vários setores que envolvem a sociedade.

A posição de Said, mesmo que esteja representando o lugar da Palestina,

dos marginalizados, do outro que não seja o ocidental, mostra uma preocupação

que o intelectual deve ter em relação à crítica com tudo o que ela traz. Graciliano

Ramos, enquanto prefeito de Palmeira dos Índios (iremos nos ater nessa questão

ao tratarmos dos relatórios escritos pelo autor), apresenta ações que deveriam

ser comuns não só aos políticos, mas também enquanto intelectuais. O escritor,

mesmo assumindo o poder, não se intimidou diante dos impasses locais, ou seja,

das irregularidades presentes no trato público. Corajosamente, ao longo do seu

mandato, foi ajustando a ordem do lugar, mesmo com toda a resistência que

encontrou por parte das pessoas que sempre se beneficiaram, naturalmente, do

que é de todos.

O que se destaca em Said é a função do intelectual no sentido de este

assumir uma postura crítica em relação aos problemas da humanidade. A

conferência de Said, da qual se originou essa obra, aconteceu em Londres e foi

muito criticada pelos ocidentais como sendo uma fala que apenas visava aos

interesses dos orientais. Portanto, Said supera o local, representando de certa

forma o universal. Falar de problemas da condição humana é um aspecto de

todos os lugares. Há uma relação marcante que se estabelece entre os

intelectuais e a política, através de manifestações escritas ou faladas.

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Norberto Bobbio (1997) faz uma distinção entre ideólogos e expertos para

definir o intelectual no âmbito da política. O que distinguiria um do outro seria

precisamente a diversa tarefa que desempenham como criadores ou

transmissores de idéias ou conhecimentos politicamente relevantes, ou seja, é a

diversa função que eles são chamados a desempenhar no contexto político. Os

ideólogos seriam, sobretudo, humanistas, manipuladores de idéias. Já os

expertos seriam, em especial, cientistas, manipuladores de dados. É como se

aquele representasse a teoria e este a prática.

A conduta do intelectual deveria ser caracterizada por um forte interesse

em participar das lutas políticas e sociais do seu tempo que não o deixasse

alienar-se. Seria alcançar uma autonomia relativa da cultura com respeito à

política.

Bobbio define o termo intelectual como sendo, então, um conjunto de

sujeitos específicos, considerados como criadores, portadores, transmissores de

idéias, que há um século têm sido normalmente chamados de intelectuais. O

autor acredita que, para o intelectual desempenhar bem o seu papel, é necessário

que ele reflita sobre os acontecimentos cotidianos, mas também que seja capaz

de agir praticamente na sociedade. Seria, então, a união do ideólogo com o

experto, ou seja, a reflexão ideológica com a prática técnica.

Pierre Bourdieu (1996) afirma que o intelectual seria o homem das letras,

porém sem deixar de lado sua autoridade específica a serviço de causas políticas.

O surgimento do intelectual como uma pessoa envolvida com as questões

políticas e sociais, foi para o autor, o marco para se falar do intelectual hoje.

Os escritores, os artistas e os cientistas afirmaram-se pela primeira vez

como intelectuais quando, no momento do caso Dreyfus, intervieram na vida

política com uma autoridade específica, fundada na vinculação ao mundo

relativamente autônomo da arte, da ciência e da literatura e em todos os valores

associados a essa autonomia.

Para Bourdieu, o intelectual é uma personagem bidimensional que não

existe e não subsiste como tal a não ser que esteja investido de uma autoridade

específica, conferida por um mundo intelectual autônomo, ou seja, independente

dos poderes religiosos, políticos, econômicos, do qual cujas leis específicas

respeita. É apenas no fim do século XVIII o momento em que os campos literário,

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artístico e científico chegam à autonomia. Os agentes mais autônomos desses

campos autônomos podem intervir no âmbito político enquanto intelectuais – e

não enquanto produtores culturais convertidos em políticos. A autoridade

propriamente artística ou científica afirma-se em atos políticos como o “eu acuso”

de Zola e as petições destinadas a apoiá-lo. Essas intervenções de um tipo novo

tendem a maximizar as duas dimensões constitutivas da identidade do intelectual

que se inventa através delas: a “pureza” e o “engajamento”, dando origem a uma

política da pureza que é a antítese perfeita da razão de Estado. É o resultado e a

consumação do processo coletivo de emancipação que progressivamente se

realizou no campo de produção cultural. Bourdieu define o intelectual como um

ser paradoxal: se constituiu historicamente e pela superação da oposição

autonomia x engajamento, cultura pura x cultura política.

Torna-se claro com o autor que o intelectual não se instituiu com Zola e

que os detentores de capital cultural podem sempre “regredir” ao termo de uma

decomposição dessa espécie de combinação instável que define o intelectual,

para uma ou outra das posições aparentemente exclusivas, isto é para o papel do

escritor, do artista ou do cientista “puros” ou para o papel de ator político,

jornalista, homem da política e perito. Falar enquanto intelectual é falar com a

ambição do universal. Bourdieu conclui que é uma ordem intelectual livre que

pode fundar a virtude intelectual.

Tanto Bobbio quanto Bourdieu sugerem que a autonomia é a grande arma

do intelectual. Assumindo um papel autônomo, terá mais liberdade de agir com as

suas idéias na e pela sociedade. O caráter revolucionário, no sentido de provocar

manifestações quando contrário a determinado acontecimento em prol de justiça,

sempre num envolvimento político, social e cultural.

Em relação ao Brasil, a discussão em torno do intelectual também

apresenta uma identificação com o político e com o social, porém há nuances

diferenciadas por ser um país colonizado acarretando debates, dentre outros,

acerca do nacionalismo.

Daniel Pécaut (1990) apresenta uma trajetória dos intelectuais brasileiros

num período que se estende entre os anos de 1920 e 1982 separados em quatro

blocos: a geração estabelecida entre 1920-1940, a dos anos de 1954-1964, a dos

anos de 1964-1968 e a de 1974-1982.

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Em sua análise, o autor argumenta que, em todas as gerações, os

intelectuais atuaram como mediadores entre uma sociedade privada de recursos,

em especial, uma sociedade marcada pelo atraso em vários setores. No entanto,

ao declarar a postura mediadora do intelectual brasileiro, o autor afirma que, por

isso, esse intelectual se situa acima do povo e, dessa forma, a intelectualidade

brasileira age entre o saber e o poder, sendo considerada, então, a elite

pensante. Dentre as gerações analisadas pelo autor, relevamos o período dos

anos de 1920-1940, por ser este, praticamente, o recorte temporal dos objetos

aqui tratados.

A geração dos intelectuais dos anos de 1920-1940 se preocupou, em

especial, com o problema da identidade nacional e das instituições. A organização

da nação, sendo uma urgência, era de responsabilidade das elites. Nos anos

1920, de acordo com Pécaut, os escritores reivindicavam uma ciência do social.

Seus projetos se situavam entre o cultural e o político. A intervenção política dos

intelectuais se configurou de forma a recriar a questão institucional. Instituições

como a Igreja, o Exército, o Estado ou as Universidades puderam assumir uma

nova legitimidade.

Essa geração se dispôs a ajudar o Estado na construção da sociedade em

bases racionais. Pretendeu, assim, romper com a história intelectual antecedente

aos aspectos relacionados à dependência diante do Império (mecenato, honrarias

etc). A geração dos anos de 1920 se mostrou inconformada com uma república

que adotou um regime que se entregara aos acordos das oligarquias regionais.

Percebeu a incapacidade de a república se constituir enquanto nação.

Pécaut pontua ainda que a Semana de Arte Moderna em 1922 foi um

momento fundador, no sentido de renovar as formas de expressão da arte

brasileira, definindo o conteúdo da modernidade cultural; considerando-a como

sendo uma contemporaneidade junto às vanguardas européias, à psicanálise

assim como à exploração da construção da nacionalidade brasileira. Um

movimento que trouxe ainda a discussão em torno do nacional e do cosmopolita,

evidenciando a opção pelo nacional, como também o engajamento político

daqueles que o defenderam.

Na década de 1930, o autor destaca a criação da USP (Universidade de

São Paulo), a qual contribuiu tanto para a constituição de novas elites quanto para

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a transformação política. Foi também nessa década que houve a derrota dos

paulistas em sua revolta armada contra o Governo, alguns anos antes da

fundação dessa universidade.

Por outro lado, a ausência no Brasil de uma tradição universitária é vista

por Pécaut como um fator dos intelectuais brasileiros não disporem de uma

identidade que remetesse a vínculos institucionais. Em vários campos artísticos,

tanto na música como na literatura, a década de 1930 destacou-se pela busca da

redescoberta do Brasil, o que converge para a redefinição da identidade

brasileira.

A organização do regime de 1930 e os movimentos políticos contaram com

a participação dos intelectuais. Com a instauração da AIB (Ação Integralista

Brasileira), Plínio Salgado argumentou a respeito da necessidade de os

intelectuais fazerem parte do Governo na república.

Esse envolvimento denota a origem social da nossa intelligentsia. Muitos

deles descendentes de grandes famílias ligadas à elite administrativa, advogavam

em causa própria. Dessa forma, esses intelectuais não tiveram a pretensão de se

pronunciar em nome de nenhuma classe social determinada. Fizeram crítica à

oligarquia e à burguesia, mas não se mostraram simpáticos com os setores

médios e também não desejaram se identificar com eles.

Pécaut conclui que os intelectuais desse período se posicionaram da

seguinte forma: acreditavam ser elites dirigentes quaisquer que fossem as suas opiniões sobre o Estado anterior ou posterior a 1930, falavam a partir de uma posição homóloga à do Estado. Preocupando-se com a elaboração da cultura brasileira, não tinham consciência de negligenciar o problema político: estavam simplesmente convencidos de que a essência do político era o processo que conduziria ao advento de uma identidade cultural. (PÉCAUT, 1990, p.33),

Agiam como mediadores de um povo marcado pelo analfabetismo no que

concerne à formação da cultura e da organização política. Em fins dos anos de

1920, iniciou-se uma filiação aos partidos políticos recém-criados, com o PD

(Partido Democrático) e com PRPC (Partido Republicano Paulista), acarretando

certo interesse dos intelectuais em participar de manifestações nas lutas políticas.

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Eles apresentavam uma postura antiliberalista e uma desconfiança em relação às

elites econômicas, porém, mais uma vez, o autor enfatiza a ligação do Estado

com o pensador brasileiro:

muitos intelectuais colocavam-se, perante a sociedade, em posição homóloga à do Estado (...) O Estado, apresentando-se como responsável pela identidade cultural brasileira, desejava realizar a unidade orgânica da nação e recorria aos intelectuais para alcançá-la. (PÉCAUT, 1990, p.59)

Os intelectuais do período de 1920-1940 se posicionaram de uma forma ou

de outra de acordo com suas filiações partidárias como, por exemplo, a ANL

(Aliança Nacional Libertadora), a UDN (União Democrática Nacional), o PTB

(Partido dos Trabalhadores Brasileiros), o PSB (Partido Social Trabalhista) a

União dos Trabalhadores Intelectuais (a qual Graciliano Ramos fez parte), dentre

outros; alguns com uma inclinação política para os partidos que representavam a

direita, outros para os de esquerda. Assim, passaram pelo regime autoritário do

Governo Vargas, a revolução de 1930 e a de 1932, discutiram a Segunda Guerra.

Contudo, há um objetivo comum em toda a geração, inclusive do Estado, que foi a

busca pela redescoberta da realidade brasileira almejando uma consciência de

maior alcance no país, voltada para o nacionalismo.

A trajetória da formação da intelectualidade brasileira, no que diz respeito

aos temas abordados por ela e pelo Estado, faz com que possamos aproximá-la

em muito aos temas levantados em nossa literatura. Não parece distinguir em

grandes proporções, pelo menos em conteúdo temático, o intelectual do escritor.

O desejo de ambos se identifica com a reconstrução da nacionalidade, a

participação política e a redefinição da realidade brasileira.

É claro que o debate em torno do intelectual se situa mais no campo de

uma ação transformadora, com uma propensão para as idéias e movimentos

revolucionários. Cabe aqui a reflexão de Antonio Candido (2000) quando afirma

que o intelectual se configura por ser o do contra, aquele que assume a postura e

a coragem de dizer não quanto ao que não concorda ou não conforma. Por outro

lado, o escritor, embora também possa apresentar a função transformadora em

sua literatura, não necessariamente se arma sempre de um caráter revolucionário

e com uma atuação em constante contrariedade ao regime vigente. Pode ser

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contrário ao regime e escrever sobre outras questões que não reflitam tal

situação. Há escritores, por exemplo, José Lins do Rego que ficou apenas no

campo da literatura. Talvez não possamos enquadrá-lo como sendo um

intelectual.

A postura de Graciliano Ramos, no momento em que, efetivamente, atuou

como um homem público, pode ser conferida através dos relatórios de sua gestão

na prefeitura de Palmeira dos Índios.

Em 1927, foi eleito prefeito da cidade de Palmeira dos Índios. Iniciou seu

mandato em 1928. Em 1929, envia o Relatório ao Governador do Estado de

Alagoas, o qual tempos depois despertou a atenção de Augusto Frederico

Schmidt, poeta e editor, para aspectos líricos do documento.

Principia o relatório afirmando que a sua principal preocupação era a de

manter a ordem na administração, como segue: Havia em Palmeira dos Índios inúmeros prefeitos: os cobradores de impostos, o Comandante do Destacamento, os soldados, outros que desejassem administrar. Cada pedaço do município tinha a sua administração particular, com Prefeitos Coronéis e Prefeitos inspetores de quarteirões. Os fiscais, esses, resolviam questões de polícia e advogavam. (RAMOS, 1983, p.165).

O autor critica de certa forma o costume de todo mundo querer mandar, os

pequenos poderes. Combate corajosamente a forma política do clientelismo e do

coronelismo muito conhecidos no Brasil da Primeira República. A

responsabilidade com a administração pública, a transparência das despesas e

receitas do então prefeito apresentam um Graciliano Ramos com integridade

moral e ética, chegando a ser um ato revolucionário no trato das questões

públicas.

Graciliano Ramos revoluciona a pequena Palmeira dos Índios porque

recusa nepotismos, por ter como único objetivo o de manter a ordem do lugar,

preocupando-se e realizando trabalhos em várias áreas, urbanas, educacionais,

cobrando justos impostos, entre outras medidas. Revoluciona também porque

“enxuga” o quadro de funcionários do município. Escreve: dos funcionários que encontrei em janeiro do ano passado restam poucos: saíram os que faziam política e os que não faziam coisa nenhuma. Os atuais não se metem onde não são necessários,

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cumprem as suas obrigações e, sobretudo, não se enganam em contas. Devo muito a eles. (RAMOS, 1983, p.166)

Ao final do relatório, Graciliano Ramos escreve que há pessoas que não

compreendem que um ato administrativo seja isento de lucro pessoal.

No ano seguinte, o autor envia um segundo relatório ao governador de

Alagoas. O que chama a atenção no relatório é a firmeza em manter a sua

posição administrativa e a descrição da despesa relacionada com a instrução. Em

dois anos como prefeito, Graciliano Ramos se manteve resistente diante das

contrariedades das pessoas que estavam acostumadas a se beneficiar,

particularmente, do que é público. O escritor, pelo menos, tentou, nesses dois

anos, diminuir as irregularidades políticas do lugar, os gastos desnecessários e

extinguir favores que antes eram concedidos às pessoas que não precisavam

deles.

Termina o segundo relatório com a consciência de que não favoreceu

ninguém. Escreve: “devo ter cometido numerosos disparates. Todos os meus

erros, porém, foram da inteligência que é fraca. Perdi vários amigos, ou indivíduos

que possam ter semelhante nome. Não me fizeram falta”. (RAMOS, 1983, p.174)

Com esse relatório, vemos a seriedade do escritor2 frente ao político e às

causas públicas, ou seja, sua atuação enquanto prefeito em posse do poder.

Graciliano Ramos põe em prática seus ideais de um serviço público com justiça,

sem temer os “coronéis” do lugar, recusando a concessão de privilégios

destinados a uma minoria da população. Ainda mais que atuou como prefeito

numa área predominantemente rural, onde a classe dominante era representada

pelas oligarquias rurais. Mesmo que estas tivessem maior importância em São

Paulo e Minas Gerais na Velha República, não era muito diferente no resto do

país. Em cada estado, um grupo familiar muito rico ligado ao latifúndio controlava

a política. Os governadores, os prefeitos e os deputados só eram eleitos se

tivessem o apoio desses grupos de famílias poderosas, ou seja, das oligarquias

dominantes. (FAUSTO, 1995).

2 Embora, nesse período, Graciliano Ramos não tenha publicado nenhum romance, já circulavam crônicas escritas por ele nos jornais do Estado de Alagoas e do Rio de Janeiro.

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O relatório expõe o lugar do escritor no exercício de uma função pública,

porém combatendo o favoritismo, enxugando a máquina pública, e de certa forma,

atuando com verdade e justiça fica clara a postura intelectual do autor.

Outra função pública de Graciliano Ramos se configurou logo em seguida.

Álvaro Paes, depois de ler os relatórios, o convidou para dirigir a Imprensa Oficial

de Alagoas. Isso devido à gestão de Ramos ser vista como uma excelência em

transparência e em acertadas atitudes.

Assim que assumiu o novo cargo, atuou da mesma forma enquanto

prefeito. Denis de Moraes (1996) afirma que uma de suas primeiras medidas foi

convocar ao trabalho funcionários “fantasmas”, aqueles que só apareciam para

assinar o ponto. Houve quem se assustasse com as atitudes rígidas do novo

diretor. Os revisores e os gráficos, por exemplo, tiveram que cumprir os devidos

horários de trabalho assim como manterem as oficinas limpas. o que vem a

confirmar sua postura anterior.

Em relação ao debate a respeito de possíveis definições sobre o escritor,

em especial, o brasileiro, torna-se pertinente a reflexão de Antonio Candido

(2000), o qual esclarece que uma de suas principais funções é a de exercer uma

função social. O escritor, numa determinada sociedade, é não apenas o indivíduo capaz de exprimir a sua originalidade (que o delimita e especifica para todos), mas alguém desempenhando um papel social, ocupando uma posição relativa ao seu grupo profissional e correspondendo a certas expectativas dos leitores ou auditores. (p.67- 68).

Graciliano Ramos, em suas crônicas, assim como na maioria de seus

romances, deixa transparecer essa função social da arte. Evidentes em sua

produção literária são as questões que envolvem a sociedade com os principais

problemas que estão em torno da política, da economia, entre outros. Ao

descrever o Nordeste, expõe suas formas peculiares de vida num lugar periférico

como ele próprio assim o denomina. O contexto desenvolvido pelo autor mostra

as diferentes manifestações a que estão expostos social e culturalmente autor e

leitor. Faz uso da escrita para expor as mazelas da sociedade, a situação política,

econômica e social sempre num tom de crítica, ou seja, como alguém que, com

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sua escrita crítica, feita num primeiro momento em jornais, intervém na sociedade

em prol de melhores condições de vida em vários setores.

Para Antonio Candido (2000), o ofício de escrever é imprescindível ao

verdadeiro escritor, o qual seria “psiquicamente” organizado de forma que a

reação do outro, necessária para a autoconsciência, é por ele motivada através

da criação. A prática da escrita seria a de propiciar a manifestação alheia, em que

a nossa imagem se revela a nós mesmos.

De acordo com as reflexões que incluem tanto o escritor como o intelectual,

fica delineada a postura de Graciliano Ramos em um e outro campo. Daqui por

diante, vamos acompanhar como se configura esse processo em suas crônicas.

O interesse pelas crônicas é percebido devido ao gênero ser construído para

circulação em jornais, o que lhe confere uma forma mais livre e pessoal na

escrita. Além de tratar de um determinado período histórico, nos fornece um

panorama sociocultural do mesmo.

Por isso, a possibilidade de acompanharmos as reflexões de Ramos no

tocante às questões nacionais, à sua percepção política, à sua visão da literatura,

num momento de atualização da modernidade e do início da industrialização no

Brasil.

1. 2 – O gênero crônica

Afrânio Coutinho (1990) afirma que a crônica brasileira, no século XX,

superou o caráter de gênero, chegando a “um desenvolvimento e uma categoria

que fazem dela uma forma literária de requisitado valor estético, um gênero

específico e autônomo”. (p.304). Pode-se analisar a crônica por dois ângulos: pela

sua natureza tanto literária quanto ensaística. Como literatura, não seria

diminuída por ter como veículo de comunicação o jornal, pois, na essência, a

crônica é uma forma de arte em palavras. Um gênero pessoal que apresenta uma

reação individual perante os acontecimentos da vida em geral. Sua natureza

enquanto ensaio aproxima-se do ensaio informal, em que oferece aspectos

familiares e coloquiais.

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O sentido antigo da palavra “crônica” vigorou no Renascimento, associada

ao gênero histórico. Etimologicamente, o termo vem do grego cronos e relaciona-

se com o relato cronológico dos fatos acontecidos em determinado lugar. Ao

longo do tempo, passou a assinalar-se também como pequenas produções em

prosa, de natureza livre, fazendo uso de um estilo coloquial. Produções estas que

surgiram através da observação dos acontecimentos cotidianos refletidos a partir

do ponto de vista do autor. Seguindo o seu desenvolvimento histórico, desde o

Romantismo, evoluiu a ponto de produzir a personificação de um gênero que

alcançou no século XX, características literariamente individualizadas, devido ao

fato de lidar com o cotidiano e por isso se valer da língua falada e coloquial.

Para Eduardo Portela (1990), a crônica vive presa aos dilemas da

“transcendência” e do “circunstante” e deles precisa se superar. Nesse caso,

precisa ultrapassar as condições jornalísticas, desenvolvendo uma construção

que vá além da notícia ou mesmo sendo enriquecida com elementos como o

psicológico, a metáfora ou o humor; assim como o subjetivismo objetivista do

cronista, ou seja, a crônica é escrita com a existência subjetiva do autor, o qual

apresenta o seu olhar individual perante a notícia, porém deve-se praticar sua

escrita com o máximo de objetividade possível. É sendo objetiva que a crônica

pode ser legitimada como sendo séria. Objetiva também no sentido de não atribuir

juízos de valor.

Enquanto para Afrânio Coutinho, a crônica pode se situar em meio ao

ensaio e a literatura, a reflexão de Antonio Candido (1992) a considera como

sendo um gênero “menor”, ou seja, um gênero que trata das questões “miúdas”

do cotidiano, transformando-os numa produção escrita elevada. Para Candido, a crônica se ajusta à sensibilidade de todo o dia, tem entre

outras funções a de contribuir para estabelecer ou restabelecer a dimensão das

coisas e das pessoas. Dessa forma, acolhe o “miúdo” e mostra nele uma

grandeza e uma singularidade insuspeitadas. Como amiga da verdade e da

poesia, a crônica em suas formas mais diretas pode fazer uso do humor. Não

tendo pretensões de durabilidade, por seu veículo ser os jornais, num primeiro

momento, ela difere então do desejo dos escritores, os quais prezam pela

permanência de suas produções artísticas. A sua perspectiva não é a dos que

escrevem do “alto da montanha”, mas do “simples rés do chão”, por isso

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consegue talvez sem querer transformar a literatura em algo relacionado à vida de

cada leitor.

Candido pontua que, antes de ser crônica propriamente dita, foi “folhetim”,

ou seja, um artigo de rodapé sobre as questões do dia-a-dia. Aos poucos o

“folhetim” foi encurtando e ganhando certa gratuidade, certo ar de quem está

escrevendo à toa coisas sem importância. Depois, pelo tom ligeiro, encolheu de

tamanho. Ao longo do tempo, foi abandonando a função de informação para

assumir, sobretudo, a de divertir. A linguagem se tornou mais leve e mais

descompromissada e se afastou da lógica argumentativa ou da crítica política

para penetrar poesia adentro. A fórmula moderna onde entra um fato miúdo e um

toque humorístico com um pouco de poesia, culmina num certo amadurecimento

e num encontro mais puro da crônica consigo mesma.

Jorge de Sá (1987) argumenta que o texto de um cronista apresenta a

pluralidade dos retalhos, mas contendo uma unidade significativa assim como a

experiência vivida torna a crônica mais intensa, por isso não pode ser vista

apenas como uma reportagem pura e simples, mas sim uma forma em que há

também o lirismo. É a união do fato com a vivência do cronista e a sua

capacidade de criar uma construção denominada pelo autor de “lirismo reflexivo”.

Um ponto importante trazido por Jorge de Sá diz respeito à questão de o

cronista agir como um mediador dos acontecimentos cotidianos de determinada

sociedade, atitude esta que se liga perfeitamente a uma das talvez principais

funções do intelectual, que é agir na sociedade como um mediador crítico dos

fatos. É mostrar o que não conseguimos enxergar.

Jorge de Sá declara que o cronista é um “porta-voz” ou um “intérprete” que

de certa forma manipula a realidade, unindo a emoção e a razão. O autor

argumenta que o cronista “nunca é o personagem ficcional representando um ser

coletivo com quem nos identificamos e através dele procuramos vencer as

limitações do nosso olhar” (p. 15). Daí podermos aproximar o cronista do

intelectual.

Não há o interesse aqui em classificar a crônica como pertencendo ou não

a um gênero literário. A importância de investigar as crônicas é que elas nos

fornecem uma escrita que nos permite acompanhar as concepções da formação

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de Graciliano Ramos diante de sua postura política, dos costumes, das tradições,

da literatura e do fazer literário.

Convém ressaltar que o autor de Vidas Secas supera os fatos acontecidos

fazendo, por exemplo, uso da ironia em determinadas crônicas como veremos

abaixo. Ele também pratica uma crítica objetiva ao comentar determinadas obras

literárias, além de analisar a difícil situação do escritor no Brasil.

1. 3 - A escrita como remédio ou como veneno

Na crônica I, da primeira parte de Linhas Tortas, parte esta intitulada

“Traços a Esmo”, Graciliano Ramos, de volta a Palmeira dos Índios, no ano de

1921, escreve diretamente ao leitor. O autor recorre ao uso de pseudônimo, fato

que faz com que o leitor desconheça quem está escrevendo, e, talvez, com isso

haja maior liberdade para o cronista desenvolver sua escrita em local tão

pequeno. Assim, com o intuito de uma rápida apresentação pessoal, mas sem se

identificar, demonstra-se grande conhecedor do lugar e dos leitores. Escreve a

eles:

(...) és apenas um pobre homem derreado ao peso da enxada, sofrivelmente achacado, otimamente obtuso. És o representante de uma raça condenada a desaparecer, absorvida por outras raças mais fortes, quando o país povoar-se. És o homem do deserto e acabarás quando o deserto acabar. (p.51).

Ramos delineia o local e as características das pessoas a quem dirige suas

crônicas, e dessa forma, verifica-se o quão periférico em relação ao Brasil estão

localizados autor e leitor, de tal forma que correm o risco de desaparecer. É

constante em suas colocações marcar a diferença entre as regiões norte e sul.

Aquela como sendo a “selvagem”, onde imperam a pobreza em vários âmbitos;

esta a que representa a “civilização”. O autor se expressa com grande ironia e

não preconceito, no sentido de chamar a atenção para as diferenças sociais que

existem no próprio País.

Nessa apresentação, declara que deseja apenas ser útil, não havendo

qualquer intenção de ser agradável ao leitor. Alega que será uma “espécie de

vendedor ambulante de sabão para pele, de ungüento para feridas, de pomada

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para calos”. Assim, anuncia ao leitor a utilidade do seu trabalho, e, num tom de

humor, acrescenta que esta oferta nada mais é que a escrita, ou seja, as crônicas

que irá escrever para o jornal de Palmeira dos Índios.

Graciliano Ramos convida o leitor a adentrar na leitura de suas crônicas

sabendo que as mesmas podem ser úteis ou não ter nenhuma função para

aquele leitor. Por exemplo, nas crônicas em que o autor denuncia os desmandos

do governo, essa escrita poder ser desprezada por esse governo e ao mesmo

tempo lhe causar dissabores, mas poder servir a outros de alerta para tais

desmandos. Essa escrita passa a ser útil servindo como uma intermediação do

autor e do leitor em um determinado período de vida.

A escrita tem duas faces. Ela pode agir como uma poção mágica ou como

um belo encanto, que pode ser bom ou mal. Pode ser o perigo ou a salvação. Vai

depender de quem a utilizar ou de como será usada. A ambigüidade trazida pela

escrita, suas várias facetas em esconder e ao mesmo tempo se revelar diante do

leitor, talvez seja a sua maior arma, e onde se localiza a grandeza de sua função.

Na crônica “Os sapateiros da literatura”, Graciliano Ramos declara que vê a

escrita como utilidade. Escreve: “espero que os meus fregueses fiquem satisfeitos

com a mercadoria que lhes ofereço, aceitem as minhas idéias ou pelo menos, em

falta disso, alguns adjetivos que enfeitam o produto”. (1975, p.188).

As duas faces de sua escrita, a qual pode ser útil ou não apresentar

nenhuma serventia, pode servir como ameaça para uns ou alerta para outros.

Depende de quem é o leitor e como irá receber a crônica. Coloca sua escrita

como remédio quando escreve: “não desejo ser-te agradável; prefiro ser-te útil.

Sou assim uma espécie de vendedor ambulante de sabão para a pele, de

ungüento para feridas, de pomada para calos”. Por outro lado sugere que suas

crônicas podem servir também como veneno: talvez não encontres virtude em meus medicamentos. Pode ser que os calos de tua consciência continuem duros e não sintas melhora na sarna que porventura tenhas na alma, doenças que não desejo...o remédio sempre será uma consolação, que talvez te sirva para alguma coisa... (RAMOS, 1975, p.52).

Neste sentido, mostra-se consciente de que sua escrita pode não ser a

cura para os males da sociedade, há leitores que podem não captar o sentido da

crônica ou podem simplesmente não admirar seus escritos e assim esses escritos

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são inúteis aos leitores. O autor pontua o que uma escrita pode propiciar: se vai

servir como um remédio ou não. A recepção da escrita depende do leitor, mas de

antemão podemos perceber o poder das palavras diante de um público leitor.

Reitera-se a afirmação de Antonio Candido (2000) em relação à

importância do público para certa obra de arte: “o público dá sentido e realidade à

obra, e sem ele o autor não se realiza, pois ele é de certo modo o espelho que

reflete a sua imagem enquanto criador” (p.33).

1.4 – A situação do escritor no Brasil: a não existência da profissão de “literato”.

Graciliano Ramos pontua constantemente em suas crônicas a situação do

“literato” no Brasil. Na crônica XIV (1915) enviada ao jornal Paraíba do Sul afirma

que o “literato em esboço é um sujeito que tem sempre no cérebro um pactolo3 de

idéia e que ordinariamente não tem na algibeira um vintém” (1975, p.42). É um

poeta na acepção vulgar da palavra, ou seja, é um desocupado, o qual adora falar

de si mesmo e da sua produção escrita para jornais e revistas. Escreve sempre,

está plenamente convencido de que tem valor e sente viver num “desgraçado

planeta que não o admira”. (1975, p.43)

Em primeiro lugar, vemos que o trabalho do escritor no Brasil não é

valorizado como profissão, ou seja, num país em que a educação cultural e o

próprio conhecimento não são oferecidos em nível de igualdade para todos os

brasileiros, apenas uma pequena parte tem acesso a uma educação de

qualidade, não poderia ser diferente para aqueles que se dedicam ao trabalho

com a escrita de idéias. Há então o problema de a maioria brasileira ser

considerada iletrada, o que contribui ainda mais para o não reconhecimento de

uma produção artística.

Segundo Graciliano Ramos, “o intelectual embrionário gira, e gira muito”. O

autor está escrevendo a respeito do difícil início de ingresso num meio que lhe

propicie expressar suas posturas sociais, políticas e culturais e ao mesmo tempo

3 O termo “pactolo”, de acordo com o dicionário Houaiss da Língua Portuguesa , significa uma imensa riqueza natural que não é explorada. Percebe-se, portanto, a escolha bem colocada de Ramos para a referência que faz o pensador no Brasil. Riquezas mentais não lhes faltam, mas não são valorizadas.

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um caminho que o auxilie na confecção de sua produção literária. Sabe-se que o

jornal era o trampolim inicial para reconhecimento e futuras publicações de

literatura. Portanto, o autor demonstra nessa crônica a dependência de “pistolões”

necessária ao acesso como colaboradores em jornais e revistas, em publicação

de livros, ou ainda para “arranjar” empregos em setores públicos, por exemplo.

Essa crônica foi escrita em 1915, quando o autor foi para o Rio de Janeiro com a

intenção de colaborar em jornais. Essa necessidade de apadrinhamento tão

comum e crescente no país é denunciada por Ramos em muitas de suas

crônicas, porém mostra-se contrário a fazer parte desse jogo.

Antonio Candido (2000) questiona a existência do artista que realmente

vive de sua arte, ou seja, se há o artista profissional no Brasil. Pontua que nas

sociedades arcaicas poderia considerar-se a existência do artista profissional, o

qual não se diferencia sempre claramente de outros papéis. Já nas sociedades

modernas – século XVIII em diante – há a separação clara do ofício do artista

profissional. A autonomia da arte permite atribuir a qualidade de artista mesmo a

quem não a pratique ao lado de outras atividades.

Graciliano Ramos enquanto escrevia suas crônicas e seus romances

trabalhava como inspetor de ensino ou em algum outro cargo público. Seu

trabalho como cronista era uma forma de angariar fundos para a própria

sobrevivência, além de ser uma solução para a prática da escrita, pois apenas

com sua produção romanesca era-lhe difícil se manter financeiramente. A opção

de se adentrar pela escrita foi exclusivamente do próprio Graciliano, porque

sabemos que o seu pai lhe oferecia meio de vida através do comércio, e como

exposto numa de suas cartas à família durante sua estada no Rio de Janeiro, o

autor recebia pensão do pai como uma contribuição até se estabelecer melhor no

Rio de Janeiro, mas deixa claro a sua preferência pela vida literária, mesmo com

todos os impasses com os quais sabia que iria se deparar, como segue: este mês (...) suspendi a pensão que daí recebia(...)Não sei se procedi bem. Talvez não. Creio mesmo que, por enquanto, não poderei ganhar aqui o suficiente para passar. Entretanto não me agrada viver às sopas de casa. E...ponto final no recebimento dos cobres, que ninguém morre de fome, tendo coragem para trabalhar. (RAMOS, 1986, p.51),

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No mesmo estudo de Candido (2000), há ainda a consideração de que o

escritor brasileiro no início do século XIX começou a adquirir uma consciência de

si mesmo como cidadão, como homem da polis, a quem foi incumbido divulgar as

luzes e a trabalhar pela pátria. O escritor desse período histórico começa, então,

a adquirir a consciência de grupo e dessa forma o seu conceito social, o que

culmina no nacionalismo. Foi o nacionalismo que contribuiu para a ação sobre a

sociedade, através de manifestações escritas e associações político-culturais que

reuniram sábios, intelectuais, poetas e oradores no Brasil. Essa literatura militante

chegou ao grande público como sermão, artigo, panfleto, etc e o grande público

ficava na expectativa, esperando uma palavra de ordem dos intelectuais em

relação aos problemas da então jovem nação que surgia. Há uma tradição nas prisões, em caso de prisão política, evidenciada pela

presença de cursos e discussões políticas ali desenvolvidas. Por exemplo, na

Revolução Pernambucana de 1817, houve o primeiro contato vivo do escritor com

os leitores, o que proporcionou cursos que relevavam a fé nas “luzes” ocorridas

na prisão pelos revolucionários do ano mencionado. A discussão e aulas na

prisão que enfatizaram reflexões a respeito de determinado momento histórico foi

também vivenciado por Graciliano Ramos quando esteve na prisão em 1936.

Essa troca intelectual nas prisões é vista por Ramos como um dos grandes

momentos de sua experiência enquanto prisioneiro político. Momento que

propiciava condições para discutir os problemas políticos como também para a

prática da escrita. O escritor brasileiro consegue um papel social reconhecido, mas não

alcança reconhecimento econômico, por conviver com uma remuneração muito

baixa para o seu exercício específico, por isso, o artista encontra outras formas de

remuneração através de mecenato, incorporação ao quadro de servidores

públicos, atribulação de cargos, entre outros.

Na crônica “O fator econômico no romance brasileiro” há uma declaração

sobre a profissão literária, isso em 1945. Graciliano Ramos afirma que “a

profissão literária ainda é uma remota possibilidade e os artistas em geral se

livram da fome entrando no funcionalismo público”. (1975, p.256) A situação na

década de 1940 parece confirmar a situação do escritor brasileiro em décadas

anteriores: a não possibilidade de, economicamente, viver de sua produção

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artística. O seu ingresso no funcionalismo público mostra que a condição de

escritor vem em segundo plano, pois é necessário sobreviver.

O estudo de Sergio Miceli (2001) reflete também sobre a discussão dos

intelectuais e a política no Brasil, a relação do intelectual com o poder, tanto poder

institucional – como o Estado e a Igreja – quanto das classes dirigentes. Analisa a

relação dos escritores brasileiros do período entre 1920-1945 com os aparelhos

do Estado. Muitos escritores brasileiros foram cooptados pelas estruturas de

poder, pois a grande maioria dos escritores desse período era composta de

funcionários públicos, ligados, de certa forma, a esse aparelho, principalmente no

período do Estado Novo.

No estudo de Miceli, a questão do engajamento político dos intelectuais

escritores nesse período torna-se importante no sentido de analisarmos também a

participação de Graciliano Ramos nesse âmbito. Como se sabe é nessas décadas

que se situa grande parte de sua produção literária.

Ramos fez parte do quadro de funcionários tanto do governo oligárquico,

atuando como presidente da Junta Escolar de Palmeira dos Índios e como

prefeito dessa cidade em 1927, quanto do governo de Getúlio Vargas, quando o

então governador de Alagoas, Álvaro Paes, o convidou a assumir a direção da

Imprensa Oficial do Estado, em Maceió. Em 1933, o interventor do estado, o

capitão Afonso de Carvalho, o convida a dirigir a Instrução Pública do Estado.

Função esta que assume até ser decretada a sua prisão. Por último, trabalhou

como colaborador e revisor da revista do DIP (Departamento de Imprensa e

Propaganda) denominada Cultura Política, juntamente com o cargo de Inspetor do

MEC em Maceió. No desempenho de suas funções públicas, mesmo trabalhando

para o governo ditatorial de Vargas, o escritor não aderiu à cooptação desse

regime político. Enquanto colaborador do DIP, Graciliano Ramos escreve sobre

os costumes do Nordeste (crônicas que foram publicadas na obra póstuma

Viventes das Alagoas – a qual será analisada em nosso próximo capítulo),

ignorando, de certa maneira as ações do governo. (MORAES, 1996)

Miceli pontua ainda a expansão da indústria e do mercado do livro a partir

dos anos de 1930 que propiciou o surgimento de um grupo de escritores,

particularmente romancistas capazes de viver como profissionais das letras.

Porém, para Graciliano Ramos não foi tão simples assim. O escritor de Vidas

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Secas não teve reconhecimento financeiro nesse período. Denis de Moraes

(1996) declara que Ramos morreu pobre. Seus livros tiveram até sua morte

modesta ressonância de vendas.

1.5 - A discordância com a política e a economia brasileiras: a ironia

Graciliano Ramos, já na primeira crônica do livro datada de 1915, escrita

ao Jornal de Alagoas, faz uma crítica à constituição da República brasileira,

expondo dessa forma sua insatisfação com o “cabide de empregos”, comum num

país que se alimenta, praticamente, dos préstimos públicos.

Declara que a constituição da república tem um “buraco”, e é justamente

esse “buraco” o seu problema. O “buraco” diz respeito ao quarto poder (criado por

Graciliano Ramos) que existe no Brasil, o qual seria o “sumário dos outros três: o

executivo, que é o dono da casa, o legislativo e o judiciário, domésticos, moços de

recados, gente assalariada para o patrão fazer figura e deitar empáfia diante das

visitas”. (RAMOS, 1975, p.9).

Nota-se o tom irônico com os poderes que existem para determinar certa

organização no país. Apontando a falha na política brasileira, assinala a não

seriedade atribuída às questões públicas, com tantos mandões, e, assim

desmascara a situação.

Em outro trecho escreve: (...)todos eles são mais ou menos chefes. Não se sabe bem de que, mas certo é que o são...são os grossos batráquios da lagoa republicana. Muitos, menos volumosos, coaxam pelos cantos chefitos incolores, numerosos, em chusma, minúsculas pererecas de poças d’água(...)está aqui um deputado que é um poço de manha, papagueador quando parola com o eleitorado, mudo na câmara, gênero peru; ali está um presidente de estado que outra coisa não tem feito senão apregoar pelas trombetas oficiais as maravilhas que ninguém vê... (RAMOS, 1975, p. 9-10).

Aspecto comum apontado pelo autor em relação aos vários “chefes” que se

tem na máquina pública; a ironia se configura no instante em que nomeia os

representantes políticos, no caso os mais fortes, os “chefes” republicanos de

“batráquios” e; os “chefes” menores de “pererecas”. Numa linguagem vulgar,

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insere nossos políticos num patamar muito baixo, incluindo-os na família dos

sapos. Denunciando o cabide de empregos no país, com tantos chefes e poucas

ações de fato, faz uma sátira contundente, pois a constituição da República vem

justamente para democratizar o país, ao contrário do regime monárquico. Em sua

constituição, o autor já apela para uma revisão urgente da mesma. Sugere que

devia colocar o chefe político no “galarim” e mandar o resto “à fava”, e, neste

sentido, pontua que a imprensa deveria estampar “A constituição da república

precisa de uma revisão”.

A Primeira República no Brasil contava com uma classe dominante

representada pelas oligarquias rurais. Em cada estado da Federação, umas

poucas famílias de latifundiários tinham o controle da vida econômica e política.

Com a Constituição de 1891 instaurou-se no Brasil o direito ao voto, porém o voto

era “vigiado” pelos jagunços dos grandes coronéis, os quais detinham o poder nas

regiões em que estavam localizados, e, dessa forma, eram “eleitos” os candidatos

dos partidos dos coronéis. A democracia tão sonhada na constituição da

república, na verdade, nada mais era do que a reafirmação de poderios locais,

geralmente ditados pelos latifundiários, o que reassegurava o predomínio de

favorecimentos das oligarquias.

O presidente Campos Sales (1898-1902) consolidou o sistema político da

Republica Velha. Cada estado da federação ganhou certa autonomia. Os Estados

tinham todos os poderes e direitos que não estivessem negados na Constituição.

Com essa autonomia, eles elegiam seus próprios governadores e criavam suas

próprias leis, assim como dispunham de plena liberdade os Estados das

oligarquias mais poderosas, como as de São Paulo e Rio de Janeiro para agirem

na defesa de seus interesses. Nesse ínterim foi estabelecido um equilíbrio entre

os três poderes. O presidente da república era representado pelo poder executivo.

O legislativo federal era formado pelo Congresso Nacional (deputados federais e

senadores) e o judiciário era composto pelos juízes e tribunais. (FAUSTO, 1995)

A ironia em Graciliano Ramos aqui se configura no sentido de que o Estado

Oligárquico favorece a alguns grupos ou familiares exclusivos que têm ligações

diretas com o poder, em vez de ser uma “república”, que designa a “coisa de

todos”, ou seja, o bem comum; na verdade é quase uma propriedade de alguns

poucos privilegiados.

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O teórico Georg Lukács (1962), estudando o gênero romance, afirma que o

papel do escritor é entendido como uma atividade marcada pela “ironia criativa”. É

uma forma que o escritor tem para buscar certa unidade, por exemplo, em

componentes fragmentados que lhe são oferecidos. Graciliano Ramos usa do

artifício da ironia para destacar a impossibilidade de aceitar ou de visualizar a

solução dos problemas da realidade.

1.6 - Valorização comedida do nacional

Na crônica IV da primeira parte do livro, o autor argumenta que o Brasil é

considerado um país “fundamentalmente” carnavalesco4, porém emite uma crítica

num aspecto que é uma peculiaridade em relação a seus eventos culturais. Critica

a presença do estrangeirismo como o “fado” nessa festa. E mostra como o folião

de Palmeira dos Índios imita desajeitado as canções produzidas em Portugal: o povo ri sem saber de que, o violão a sapecar as cantigas dolentes da Mouraria. A música é triste, o canto é lúgubre, mas - que diabo! É necessário que se cante e que se toque alguma coisa. A festa é de alegria. Canta-se embora em soluços. (RAMOS, 1975, p.61)

Assumindo uma postura demonstrando aversão a essas importações

sem equivalência de sentido aqui, o autor aconselha aos foliões: acabai com essas cantigas fúnebres. Sentimentalismo, pieguice na festa da pândega – que horror! Santo Deus dos bobos! Sede lógicos em vossa insensatez. Tendes disposições para farsantes? Concordo convosco. É uma tendência como outra qualquer. Mas ao menos sede farsantes completos, não mistureis alegrias com tristeza. (RAMOS, 1975, p.61)

De acordo com Ramos, o país só acorda no Carnaval, embora critique

esse despertar, porque é uma manifestação de importação. Sugere que em vez

de imitarmos as cantigas exóticas do além-mar que têm um teor entre fúnebre e

sentimentalista, o brasileiro deveria valorizar o que já existe aqui. O nosso

Carnaval está em meio a alegrias (ritmo brasileiro) e tristezas (por causa das

canções, as quais o povo não entende), e, por isso, conclui que em tudo somos

4 O autor utiliza o termo “carnavalesco” no sentido comum do mesmo, refere-se à festa do carnaval.

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assim, sempre repetindo desconcertados o que os outros fizeram. Seu desacordo

com essa imitação desajustada é atacada também em livros infantis.

É taxativo ao se afirmar contrário aos livros infantis importados de Portugal.

As histórias ali narradas diferiam, ao extremo, do que se vivia no Brasil, em

especial, a região Nordeste. O autor ataca a impossibilidade de associação de

contextos, de vivências e realidade. Na crônica VI, de “Traços a esmo”, escreve: detesto o livro infantil. Detesto-o cordialmente. Aquelas coisas maçadoras, pesadas, estopantes, xaropadas, feitas como que expressamente com o fim de provocar bocejos, revoltam-me. Espanta-me que escritores componham para a infância pedantices rebuscadas, que as livrarias se encarregam de fornecer ao público em edições que, à primeira vista, causam repugnância ao leitor pequenino; embasbaca-me que professores reproduzam fonograficamente aqueles textos indigestos; assombra-me ver aquilo adotado oficialmente (...) e odeio-o porque sei que a criança o não compreende. (1975, p.66).

Argumenta que o livro infantil vem “de uma língua desconhecida, falada há

quatrocentos anos por gente de outra raça e de um país muito diferente do meu.

O que me aconteceu a mim deve ter acontecido aos outros”. (1975, p.66-67).

Mais adiante declara que é um horror obrigar as crianças a ler complicadas

asperezas dos lusos clássicos:

a admiração que eu devia ter à figura culminante da Renascença portuguesa esfriou desde que aprendi a soletrar, e até hoje ainda não me foi possível convenientemente acendê-la. É que almas danadas me obrigaram a ler Camões aos oito anos. (1975, p.68)

Esse desconcerto em relação à sua educação escolar também pode ser

verificado em seu livro de memórias Infância, em que o autor discorre sobre a

rígida educação recebida: bolos, chicotadas, cocorotes e puxões de orelhas.

Qualquer transgressão aludia em humilhantes respostas assim como em brutos e

sofridos castigos. A educação foi recebida à base de palmatórias, expostas nas

mãos inchadas que “latejavam” como se funcionassem relógios dentro delas, e do

medo. Declara que foram o medo e o pavor que lhe orientou em seus primeiros

anos de vida. (RAMOS, 1993).

Em Infância critica também a leitura de Camões, como segue:

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sim, senhor: Camões em medonhos caracteres borrados – e manuscritos. Aos sete anos, no interior do Nordeste, ignorante da minha língua, fui compelido a adivinhar, em língua estranha, as filhas do Mondego, a linda Inês, as armas e os barões assinalados. Um desses barões era provavelmente o de Macaúbas, o dos passarinhos, da mosca, da teia de aranha, da pontuação. Deus me perdoe. Abominei Camões. E ao Barão de Macaúbas associei Vasco da Gama, Afonso de Albuquerque, o gigante Adamastor, barão também, de certo. (RAMOS, 1993, p.120-121)

Mesmo com esse descompasso de leituras, o autor tenta uma associação

com aquilo que ele conhece, empreendendo certa aproximação às brochuras do

Barão de Macaúbas, o qual foi o livro apresentado antes de Camões, em sua

entrada na escola, pois a linguagem rebuscada da obra era muito artificial, difícil e

não clara, causando-lhe desânimo e desconforto perante a literatura.

O autor critica a precária instrução escolar que recebeu na infância

caracteristicamente marcada pela tirania do sistema educacional brasileiro e pelos

volumes didáticos trazidos de Portugal sem nenhuma correspondência com a sua

realidade. O hábito de ser contrário aos estrangeirismos é marcado ainda em

relação ao futebol.

Na crônica XI, do ano de 1921, o autor escreve a respeito de que está se

pensando em introduzir no Brasil o futebol. Ramos crê que o público gostará da

novidade: “vai ser, por algum tempo, a mania, a maluqueira, a idéia fixa de muita

gente” (1975, p.79), e, num tom, de pilhéria, escreve que o tísico não terá a

mesma sensação devido a sua impossibilidade de utilizar o seu físico:

“completamente impossibilitado de aplicar o mais insignificante pontapé a uma

bola de borracha”. (1975, p.79). Acredita que será uma efervescência apenas no

início, que logo cessará.

Bem, não temos notícia do futebol de Alagoas – não aparece em noticiários

de esporte, pelo menos em nossa região, não vemos participação de times de

futebol de Alagoas em campeonatos nacionais e mundiais, mas sabemos que o

futebol, em meados do século XX e no século atual, é a grande mania nacional,

assim como o carnaval. Para o autor, a cultura física é coisa que está entre nós inteiramente descurada. Temos esportes, alguns propriamente nossos, batizados patrioticamente com bons nomes em língua de preto, de cunho

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regional, mas por desgraça estão abandonados pela débil mocidade de hoje. (1975, p.80).

Nota-se a indignação do autor perante a não valorização do que já existe

de nosso e está descartado pelas novas gerações. Sugere o incentivo aos jogos

nacionais, “sem mescla de estrangeirismo”. Continua, afirmando que não é contra

“a introdução de coisas exóticas”, mas que ele gosta de averiguar se essas coisas

têm alguma correspondência com o nosso país. Decisivamente, escreve: “parece-

me que o futebol não se adapta a estas boas paragens do cangaço. É roupa de

empréstimo, que não nos serve”. (1975, p.81).

Argumenta que para estabelecer-se um costume intruso no país é

necessário haver harmonia com o povo que vai recebê-lo. Não concorda com a

tomada de lugar que esse costume acarretará com uma prática já existente e

mais antiga, por exemplo, de cunho indígena. Acrescenta que o novo deve

preencher uma lacuna, e acredita que o futebol não tem esse poder, pois já se

tem “a bola de palha de milho, que nossos amadores mambembes jogam com

uma perícia que deixaria o mais experimentado sportman britânico de queixo

caído”. (1975, p.82). Mais decisivo, declara que o futebol não pega, tenham a certeza. Não vale o argumento de que ele tem ganho terreno nas capitais de importância. Não confundamos. As grandes cidades estão no litoral; isto aqui é diferente, é sertão...nós somos mais ou menos botocudos, com laivos de sangue de cabinda e galego...estrangeirices não entram facilmente na terra do espinho. O futebol, o boxe, o turfe, nada pega (...) reabilitem os esportes regionais, que aí estão abandonados: o porrete, o cachação, a queda de braço, a corrida a pé, tão útil a um cidadão que se dedica ao arriscado ofício de furtar galinhas, a pega de bois, o salto, a cavalhada, e, melhor que tudo, o camba-pé, a rasteira. (1975, p.82)

Fazendo um jogo textual com palavras que têm duplo sentido como “salto”:

pode ser um jogo de cartas (baralho), mas também o ato de sair à estrada para

roubar e saquear (HOUAISS, 2001). “Camba-pé” e “rasteira” têm o mesmo

sentido, relacionadas com golpe traiçoeiro. Ramos declara que a “rasteira” é o

esporte nacional “por excelência” e está presente em vários setores brasileiros

como no comércio, na indústria, nas letras e nas artes, no jornalismo, no teatro,

etc, o que nos faz confirmar sua ironia. Para complementar o poder da “rasteira”

no país, afirma convictamente que se alguém tiver vocação para a política aí sim,

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deve usá-la para o seu sucesso. Segundo o autor, não há político que não a

pratique. Desde o presidente da república até o mais “pançudo” e “beócio” coronel

da roça. “Todos os salvadores da pátria têm a habilidade de arrastar o pé no

momento oportuno”. (1975, p.83)

1.7 - Literatura nacional x Literatura estrangeira

Na crônica “O fator econômico no romance brasileiro”, datada do ano de

1945, Graciliano Ramos argumenta que o problema da literatura no Brasil é de

ordem econômica, por não ser reconhecida a profissão de literato, e por isso

acarreta um outro problema na literatura nacional, que é de ordem do conteúdo,

como segue: procuramos a razão da indiferença, dos nosso escritores para os assuntos de natureza econômica. Talvez isso se relacione com as dificuldades em que se acham quase todos num país onde a profissão literária ainda é uma remota possibilidade e os artistas em geral se livram da fome entrando no funcionalismo público (...) temos de admitir que são exatamente cuidados excessivos de ordem econômica que lhes tiram o gosto de observar os fatos relativos à produção. O que eles produzem rende pouco, rende uma insignificância, e é possível que não queiram pensar nisso. (RAMOS, 1975, p.256)

.

Denuncia a falta de observação atenta às nossas singularidades para se

realizar uma grande literatura. Exemplifica com Balzac e Dostoievski a pesquisa

do conteúdo feita com minúcia por esses autores em suas obras: Talvez os amadores que falam tanto em Balzac e fingem imitá-lo não hajam percebido que este escritor em um só livro estuda a fabricação do papel, a imprensa de Paris, casas editoriais, teatros, restaurantes, oficinas de impressão, etc. levantada essa base econômica, é que principia a mover-se a sociedade balzaquiana, políticos, nobres, jornalistas, militares, negociantes, prostitutas e ladrões, tipos vivos que ainda nos enchem de admiração. (RAMOS, 1975, p.256),

Quanto ao escritor russo, escreve que: Na parte relativa à situação financeira das personagens de Crime e Castigo, Raskolnikoff e a irmã, Sônia e o resto da família do bêbedo estão arrasados, dificilmente poderiam continuar a figurar na história. Nesse ponto surge Svidrigailoff e suicida-se, deixando

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aos necessitados o dinheiro preciso para o romance acabar. Certamente Svidrigailoff morreu direito e teve antes o cuidado de passar a noite num pesadelo que é uma verdadeira maravilha, mas isto não impede que ele haja dado cabo da vida expressamente com o fim de deixar alguns milhares de rublos àquela gente sem recursos. (RAMOS, 1975, p.257)

Portanto, afirma que o escritor brasileiro deve se ater ao que existe aqui em

nosso país, aos nossos problemas, às nossas particularidades e, a partir daí,

construir a sua produção literária. Dessa forma, condena a imitação de “obras

exóticas”, sem correspondentes com o país: para sermos completamente humanos, necessitamos estudar as coisas nacionais, estudá-las de baixo para cima. Não podemos tratar convenientemente das relações sociais e políticas, se esquecemos a estrutura econômica da região que desejamos apresentar em livro. (RAMOS, 1975, p.258)

Suas pontuações nos encaminham para certa discussão que perpassa a

formação do escritor brasileiro. Alguns voltados para questões cosmopolitas,

outros para questões localistas, posturas estas que praticamente circundavam as

nossas letras, no período vivido pelo autor.

Antonio Candido (2000) declara que se fosse possível estabelecer uma lei

de evolução da vida espiritual brasileira, ela se regeria pela dialética entre o dado

local e o cosmopolitismo. O dado local que se apresenta como “substância da

expressão” e o dado cosmopolita com os moldes herdados da tradição européia,

que designa “forma da expressão”. Afirma que a nossa literatura deseja superar

as amarras entre o sentimento de inferioridade por se constituir como país novo e

mestiçado; e a imitação dos países europeus que apresentam um povo

etnicamente estabilizado. Porém, ao “importar” aspectos do estrangeiro acontece

um choque com as nossas particularidades, relativas ao meio, à raça e à própria

história, pois não encontram aqui correspondências com a nossa realidade.

Roberto Schwarz (1992) reflete sobre o período republicano brasileiro a

partir da posição contrária de alguns autores, como José de Alencar, Joaquim

Nabuco e Machado de Assis a respeito da disparidade entre a sociedade

brasileira escravista e as idéias do liberalismo europeu. A Europa tinha como

ideologia a liberdade do trabalho, a igualdade perante a lei assim como o

universalismo, porém a busca por essa ideologia era simplesmente para encobrir

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a exploração do trabalho. Já o Brasil apresentava na mesma época um panorama

bem diferente, ou seja, era um país agrário e independente, dividido em

latifúndios, cuja produção dependia, por um lado, do trabalho escravo, e, por

outro, do mercado externo. Por isso, a presença marcante entre nós do raciocínio

burguês, o qual tinha como prioridade o lucro e dominava o comércio

internacional para onde a nossa economia estava voltada.

A Independência do Brasil acontece em nome de idéias francesas, inglesas

e americanas, especialmente, liberais, as quais se chocam com a realidade

brasileira, tendo ainda a escravidão e os seus defensores. Era necessária a

libertação dos escravos para a constituição de um trabalhador livre que pudesse

assim movimentar o capital. Enquanto os países europeus especializavam a mão-

de-obra, no sentido de modernizá-la, o sistema escravocrata era fundado na

violência e na disciplina militar. Sendo então uma produção exercida com

autoridade e pouca eficácia. Além da questão do escravismo no Brasil

contribuindo para a incompatibilidade dos ideais liberais europeus, tínhamos mais

um agravante: o favor.

O favor esteve presente por toda a parte em vários setores brasileiros, tais

como políticos, industriais, comerciais; até mesmo nas profissões liberais como a

medicina ou em qualificações operárias, na tipografia, por exemplo. Assim como o

profissional dependia do favor para o exercício de sua profissão, o pequeno

proprietário dependia dele para a segurança de sua propriedade, e o funcionário

para o seu posto. O favor enquadraria no Brasil como sendo uma mediação

quase universal.

O descompasso frente à civilização burguesa diz respeito ao que na

Europa postulava a autonomia da pessoa, a universalidade da lei, a cultura sem

interesses particulares, a remuneração objetiva, a ética do trabalho, dentre outros.

Como não poderia ser diferente, o favor pratica a dependência da pessoa, a

exceção à regra, a cultura interessada assim como a remuneração e serviços

pessoais.

Neste âmbito, enquanto vigoravam na Europa fatores modernizantes como

a industrialização, a valorização do capital e do lucro; as práticas comuns no

Brasil deste período eram o escravismo e o favorecimento. Privilégios que

desvalorizavam, aqui, a razão, o mérito, a igualdade e o trabalho. O Brasil, ao

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longo de sua reprodução social e tendo uma história de país colonizado, fez uso

constante das idéias européias, porém em sentido impróprio para a nossa

realidade.

Silviano Santiago (2004) reflete sobre a tradição da formação da cultura

brasileira, a qual, basicamente, se configurou em dois pontos divergentes:

escritores apresentando uma postura cosmopolita, valorizando a cultura Européia,

por exemplo; e nacionalista, buscando redefinir a realidade brasileira através de

caracteres que estivessem mais relacionados com o que aqui existe.

Escritores como Joaquim Nabuco apresentavam uma posição cosmopolita

com olhares voltados para os acontecimentos europeus, valorizando o que lhes é

externo – a Europa. Machado de Assis com o artigo Instinto de Nacionalidade

também acreditava que a literatura brasileira deveria passar por uma atualização

cosmopolita, ou seja, para ser nacional, uma literatura não precisava tratar

apenas do local. Os modernistas brasileiros, embora se apropriem das

vanguardas européias não descartam a figura do índio e do africano como sendo

o símbolo da nossa constituição enquanto brasileiros. Na década de 30,

deparamos com os escritores que dão valor ao regional, se preocupando com a

questão social brasileira e buscando dessa forma, também, valorizar o local.

Percebe-se que Graciliano Ramos não é contrário à introdução de

importações estrangeiras. O que lhe incomoda é essa introdução sem nenhuma

pertinência com a nossa cultura. Portanto, é de se notar que há um interesse

maior em sua produção literária pelo nacional, no sentido de abordar problemas

locais, em especial, do Nordeste, mas que esse nacional é superado quando o

autor trata também da densidade psicológica dos seus personagens, dentre

outros fatores, da condição humana ali vista.

1.8 - Crítica literária: a objetividade versus a amizade

De acordo com Graciliano Ramos, o literato em esboço, exposto na crônica

XIV da primeira parte do livro,

ordinariamente pertence à camarilha de algum corifeu intelectual, que recebe pomposo nome de Mestre, criatura sobrenatural, possuidora de predicados que não podem ser compreendidos pela

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percepção romba do vulgo, entidade impecável que está infinitamente distante dos aguilhões da crítica quase sempre manejadas por indivíduos invejosos. (1975, p. 43)

O curioso em sua declaração diz respeito à existência do que o autor

denomina “instituição” e “sócios da comunidade”, relevando a situação da crítica

pouco séria no Brasil. Por que pouco séria? Porque não há critérios rígidos para

executá-la. Ramos escreve em várias crônicas sobre o julgamento de

determinada obra literária sem, ao menos, ter sido feita uma leitura prévia, pelos

críticos. Os critérios para “avaliar” uma produção artística se configuram no jogo

da amizade, da “sociedade” como segue: “(...) cada um dos sócios da

comunidade encontra sempre quem o enalteça, despendendo grande cópia de

adjetivos ruidosos”. (1975, p.44)

Na crônica II, de “Traços a esmo” datada do ano de 1921, o autor pontua a

necessidade de saber mentir, uma espécie de mentira verdade, uma mentira por

interesse. Quando declara que a civilização exige que seja necessário “elogiar

discretamente um sujeito que nos pode ser útil” (1975, p.53), o autor enfatiza a

questão do clientelismo, que em muitas vezes culmina em inibir a verdadeira

crítica devido à amizade.

Dentre as crônicas que há no livro sobre a crítica literária feita pelo autor,

destacam-se as que estão relacionadas com a predominância de uma crítica

objetiva. Na crônica denominada “O romance de Jorge Amado”, datada de

fevereiro de 1935, Ramos, em meio a elogios tecidos à nova obra de Amado

Suor, aponta um problema. Afirma que os trabalhadores do cais do porto,

personagens da referida obra, mexem-se pouco. O elogio é visível, principalmente

porque a literatura que trata da miséria humana, temática desse livro, agrada o

autor de Vidas Secas, chegando mesmo a esclarecer que se trata de um

“excelente romance”, porém aponta o problema que pode acarretar na

transformação da realidade em literatura. Acentua que Jorge Amado foi minucioso

em detalhar a matéria do seu romance, mas exagerou na verdade, como segue:

“esse amor à verdade, às vezes prejudicial a um romancista(...)pode fazer-nos

crer que lhe falta imaginação, dá a certas páginas de Suor um ar de reportagem”.

(RAMOS, 1975, p.94). Em “Porão”, aconselha o escritor Newton de Freitas a

continuar a fazer reportagens, mas não literatura. Na crônica “Os amigos de

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Machado de Assis”, explica a falta de popularidade do autor, afirmando que sua

literatura não chega à massa, pois o público leitor, geralmente prefere

“sentimentalismos”.

Insiste em reafirmar que não atua como crítico, como segue: “apesar de

não ser crítico, poderia livrar-me de dificuldades fazendo, como outros, um

resumo da história, sem tirar daí nenhuma conseqüência” (1975, p.115). O autor,

por demonstrar agir de maneira séria e profissional ao fazer crítica literária, a faz

com um diferencial que é a presença do aspecto objetivo, característica esta vista

positivamente no trato de uma crítica exercida com seriedade e profissionalismo.

Argumenta que deseja “apenas arriscar algumas observações ligeiras” das obras.

Neste sentido, podemos inferir que o autor afirma não fazer crítica e, sim, arriscar

algumas rápidas observações exibe uma falsa modéstia, a qual examinaremos

com mais detalhes no terceiro capítulo, ao tratarmos a sua correspondência

íntima.

Na crônica “Classe Média”, comenta o livro do escritor Jader de Carvalho,

em que o critica afirmando que ficou lírico demais, apresentando um caso de

amor “piegas”: usando como protagonista de sua novela um malandro, talvez o Sr. Jader de Carvalho tenha pretendido convencer-nos de que todos os elementos, embora ruins, servem quando são bem utilizados pela revolução. (RAMOS, 1975, p.120).

Após declarar que o escritor não conseguiu nenhuma transformação do

protagonista do romance, tenta fazê-lo apelando para a revolução, tema que

poderia despertar o leitor, porém ainda assim não alcança êxito. Com mais

minúcia, critica problemas na obra, como por exemplo, a questão da narrativa: (...)a narrativa é feita na primeira pessoa, tem a forma de autobiografia. Dr.Manuel conta a sua história. E, sendo assim, não compreendemos como, ali pelas vizinhanças da página oitenta, não tendo ele estado em casa de Felizinha, possa ter reproduzido a conversa das mulheres que se achavam lá. (RAMOS, 1975, p.120)

Ao fim da crônica, é mais taxativo: “confesso, porém, que a novela do Sr. Jader

de Carvalho me causou uma certa decepção. É que dele eu já tinha lido, em

originais, coisas melhores”. (1975, p.120).

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Reafirma-se que Graciliano Ramos não se intimida em praticar uma crítica

objetiva sem se preocupar com o nível de amizade que mantém com o autor da

obra avaliada. Embora afirme que não faça crítica e, sim, dá “palpites”, sabemos

bem que os “palpites” são sim uma crítica, avessa ao favorecimento de amigos e

é por isso objetiva. Dessa forma, certifica-se a prática de uma crítica mais

profissional que uma crítica que privilegie amizade.

Silviano Santiago (2002) argumenta a respeito da relação de amizade no

julgamento crítico, o que impede uma crítica séria. Santiago expõe a questão do

“quadrado” de Millôr Fernandes publicado no Jornal do Brasil na década de 1980.

Millôr Fernandes faz críticas humorísticas à Nova República. O “quadrado”

criticou a lei Sarney que transformava o antigo mecenato empresarial em contrato

de incentivo à produção cultural brasileira, com benefícios legais e financeiros

para a parte doadora. Além de criticar o comportamento das ações públicas dos

governantes brasileiros do período de Sarney, Millôr Fernandes criticou também o

trabalho artístico de alguns amigos e companheiros de trabalho como o de Henfil.

Ao criticá-lo, o humorista foi alvo de uma polêmica gerada por pessoas que o

apoiaram ou discordaram da atitude dele em criticar o trabalho de um amigo.

Santiago, para apresentar a questão da amizade e da sua relação com o

meio profissional, reflete a partir de duas reações que traduzem a “mediocridade

fofoqueira” e a “miséria opinativa” do meio intelectual brasileiro. Uma reação é a

do escritor Carlos Drummond de Andrade com sua frase “nenhuma literatura vale

uma amizade”. Segundo Santiago, o problema da frase não diz respeito ao

conteúdo em si, mas sim na valorização da amizade em detrimento da avaliação

profissional. O problema surge no modo como a frase se torna um mecanismo de

desmobilização da discussão intelectual viva, calando a razão crítica.

Segundo Santiago, a frase provinda de Drummond é justificável, pois

atuando na década de 1930 como secretário do ministro da educação Gustavo

Capanema, se deu num momento do sistema de clientelismo. Sistema este que

justifica o recrutamento profissional público pela escolha dos parentes e amigos

para os melhores cargos. Os vínculos políticos do intelectual nesse período foram

um tanto quanto presentes. Momento este em que existiu a chamada “panela

política”. De acordo com Santiago, “essa intricada rede acabava por colocar os

anos 30 como caudatários da política da Velha República” (1889-1930). (p.213)

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A definição da amizade como sentimento totalitário – sentido de ser

superior a tudo e não ditatorial – torna cego ou inútil o julgamento crítico. Sendo

assim, a amizade enxerga a perfeição mesmo onde ela não existe. A amizade lida

no contexto da década de 1930, num momento em que amigos se reencontram

para construir o projeto político nacional, o que pode servir como justificativa para

o favorecimento de uma pessoa que, no fundo, não merece o favor.

Dessa forma, Santiago chega à segunda reação da “mediocridade crítica”

em detrimento da amizade, usando a frase clássica da política do coronelismo:

“Para os amigos, tudo; para os inimigos, a lei”. O sentimento, ativado pelo que é

superior hierarquicamente, pode servir de mecanismo inibitório. O inferior na

hierarquia pede o favor; este, invocando-a, instituiu a censura como regra de

conduta, e sugere o “puxa-saquismo”. Segundo Santiago, “quando a amizade

extrapola o campo do privado e é invocada no processo de seleção, decisão e

execução da coisa institucional, cimenta a perpetuidade do autoritarismo entre

nós”. (2002, p.216)

Os intelectuais valem-se dos laços de amizade para a constituição de suas

equipes de trabalho. A amizade funcionando como certo tipo de coronelismo, ao

beneficiar os amigos, inibe a liberdade crítica. Graciliano Ramos, em suas

crônicas, datadas antes mesmo da década de 1930, marca essa forma comum no

Brasil de tratar a crítica, expondo sua insatisfação com a idéia de que a amizade

seria superior a uma crítica séria.

As crônicas aqui analisadas são vistas como um conjunto heterogêneo nos

variados temas abordados, característica própria do gênero crônica, mas, ao

mesmo tempo, homogêneo no que diz respeito à postura adotada por Graciliano

Ramos. Em suas críticas à política brasileira, usa da ironia para demonstrar certa

desilusão com o país, pois não vê soluções para que se estabeleça uma

verdadeira democracia. A tão sonhada igualdade social em relação às tão

diferentes classes sociais existentes no Brasil parece não acontecer nunca. Muda

o regime político, como vivenciou Graciliano Ramos, nos governos de transição,

mas não há mudança real no plano das ações. Denuncia um país que não

apresenta condições favoráveis para o literato sobreviver, em meio ao não

reconhecimento financeiro do seu trabalho, assim como a uma massa iletrada.

Faz uma crítica constante aos críticos da produção literária brasileira, os quais,

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não lendo o objeto analisado, se prendem a uma crítica que privilegia a amizade,

prejudicando assim um trabalho sério e objetivo. Além disso, combate a literatura

nacional por não se ater ao seu principal material literário que são a nossa

realidade e, conseqüentemente, as nossas particularidades.

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Capítulo 2 - Viventes das Alagoas: regionalismo, tradição e crítica

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Pretende-se neste capítulo analisar as crônicas escritas por Graciliano

Ramos em sua colaboração à Revista Cultura Política criada pelo (DIP)

Departamento de Imprensa e Propaganda do Governo de Getúlio Vargas. As

crônicas receberam primeira publicação, em livro, no ano de 1961, com o título

sugerido por Jorge Amado, como consta em Ricardo Ramos (1992): Viventes das

Alagoas. Na revista, denominava-se apenas: quadros e costumes do Nordeste.

Há um total de trinta e seis crônicas, que circularam na mencionada revista,

num período que se estende entre os anos de 1940 e 1944. São todas elas

intituladas e não estão assinadas, algumas poucas são datadas. É nessa obra

que estão publicados os dois relatórios enviados ao Governador de Alagoas em

fins da década de 1920, como vimos no primeiro capítulo.

Tanto em Linhas Tortas como em Viventes das Alagoas, a seleção das

crônicas para publicação foi feita pela família, em especial, por Heloísa e Ricardo

Ramos e, por seu cunhado James Amado; quando a editora Martins resolveu

editar as obras completas do autor.

O propósito principal da revista Cultura Política era a divulgação

propagandística dos feitos políticos do governo desse período. Segundo Denis de

Moraes (2004), reunia intelectuais de diversas tendências, como Nelson Werneck

Sodré, Marques Rebelo, Luís da Câmara Cascudo, Herberto Sales, Guerreiro

Ramos, Peregrino Júnior, Gilberto Freyre entre outros. A sustentação doutrinária

competia a nomes identificados com o Estado Novo, como Azevedo Amaral,

Cassiano Ricardo, Almir de Andrade, Menotti Del Picchia e Francisco Campos.

De acordo com informações obtidas pelo site da Fundação Getúlio Vargas,

a revista com periodicidade mensal, foi dirigida por Almir Andrade. Era a revista

oficial diretamente vinculada ao DIP. Com uma importância do seu caráter

doutrinário na construção das diretrizes do Estado Nacional, Cultura Política tinha

como subtítulo revista de estudos brasileiros e circulou de março de 1941 até

outubro de 1945. Era uma publicação bem divulgada, vendida nas bancas de

jornais do Rio de Janeiro e São Paulo. Seus colaboradores eram bem

remunerados, recebendo normalmente o dobro do que pagavam as demais

publicações. A proposta da revista era definir e esclarecer as transformações

sócio-econômicas por que passava o país. Relatava com minúcia as realizações

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do Governo, além de noticiar e resenhar todas as publicações sobre Vargas e o

Estado Novo. Os intelectuais tinham um papel importante na estruturação dessa

“nova ordem” política. Como formadores de opinião, a eles cabia a função de unir

governo e povo, mediando a voz da sociedade.

O regime autoritário do Estado Novo, com o apoio do DIP, estabeleceu,

concomitantemente, um incentivo à pesquisa e à reflexão conduzido pelos

intelectuais, assim como uma rígida política de vigilância em relação às

manifestações da cultura popular.

No conjunto das crônicas analisadas neste capítulo, Graciliano Ramos,

descrevendo os costumes do Nordeste, levanta a questão das diferenças sociais

encontradas no país. Acarreta ainda um debate em torno da cooptação política no

Brasil, pois o autor colabora num veículo de comunicação presidido pelo Governo

que o aprisionou na década de 1930, e mesmo assim, não se intimida em afirmar

que os problemas dessa região são de ordem econômica, ou seja, atingem o

Estado. Mostra como o Brasil, num regime político que pretendeu certa unidade

nacional, na verdade, tenta esconder as diferenças entre uma e outra região,

marcadas muitas vezes por questões econômicas. Sua colaboração na revista se

destaca por descrever as desigualdades de classe social brasileiras e o abandono

político encontrado no Nordeste.

É interessante ressaltar que no período da escrita dessas crônicas o autor

está morando em Maceió, onde atua também como inspetor de ensino para o

Governo do Estado. Retoma, memorialisticamente, os costumes de sua região de

nascimento, com todos os seus agravantes, chegando a nos transmitir suas idéias

com um tom melancólico e de desilusão frente à insolubilidade dos problemas

brasileiros em seus vários setores.

Torna-se necessário discorrer a respeito de dois pontos evidenciados aqui.

Um deles refere-se ao ambiente político brasileiro desse período. O segundo

aspecto diz respeito ao caráter regional na literatura do País. A análise das

crônicas está voltada para a postura de Ramos, no sentido de acompanharmos

como o autor, explorando o local, o aproxima do nacional.

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O aspecto regional em Graciliano Ramos é constantemente visto em suas

obras romanescas. Sua preocupação com a realidade pode ser verificada, por

exemplo, por sua preferência pelas literaturas realistas escritas por um Balzac,

assim como por um Eça de Queirós. Nessa literatura, o autor vê a possibilidade

de discorrer literariamente sobre as mazelas da sociedade, com as implicações

políticas e econômicas que delas possam advir.

Pode-se atribuir a sua obra ficcional características da vertente do realismo

crítico, que se assinala pela existência do “herói problemático”, conceito usado

por Georg Lukács(1962), e sua recusa em aceitar a estrutura de valores da

sociedade. A este conflito entre personagem e mundo acrescenta-se o conflito

interno, o que pode ser visto em romances como Vidas Secas, Angústia e São

Bernardo.

Caetés, seu primeiro romance, estaria mais próximo do romance realista

tradicional, uma vez que, nessa obra, não há uma ênfase na tensão entre

personagem e mundo. Há uma concentração, sobretudo, no viés realista das

observações a respeito do ambiente. Neste caso, trata-se de um meio

provinciano, no qual o personagem se sente asfixiado, sem saída.

Já São Bernardo pode ser considerado como o romance plenamente

realizado em que prevalece o realismo crítico. O protagonista da obra, Paulo

Honório, é um homem que representa o ambiente em que vive absorvendo seus

valores dominantes em sua prática de ascensão social até chegar à condição de

proprietário. A violência e a fraude marcam sua trajetória, que irá se chocar com

as características de Madalena, uma professora idealista com quem o

protagonista se casa. O conflito entre suas personalidades é em larga escala o

conflito entre valores diferentes, em que se acumulam mal-entendidos

deformados pela visão possessiva de Paulo Honório. Neste sentido, esta é a

maneira encontrada por Graciliano Ramos para fundir na personagem de Paulo

Honório o zelo do proprietário e o sentimento de posse enquanto marido. Esse

romance é visto na primeira pessoa, como rememoração dos acontecimentos que

conduziram à morte de Madalena e a culpa de Paulo Honório, o qual, com a

condição econômico-social de proprietário, torna-se uma característica íntima

como manifestação do realismo crítico. São Bernardo é ao mesmo tempo um

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romance psicológico e social. Do ponto de vista artístico, sublinha-se a grande

concentração dos meios expressivos, como a brevidade e a condensação dos

fatos empregados no romance.

Angústia situa-se no limite entre o romance de tensão crítica e o romance

intimista. Seu personagem central, Luis da Silva, é um pequeno funcionário

público que vive em pensões às voltas com tormentos interiores, determinados

pela vida mesquinha que leva, por sua revolta diante do ambiente corrupto em

que vive e de sua própria importância dentro do ambiente. São, portanto, essas

características que fazem com que o romance traga, ao mesmo tempo, uma

dimensão social e uma dimensão de intimidade psicológica. Grande parte do livro

está concentrada na angústia da personagem central, vista por ela mesma num

processo de se auto-analisar até o clímax da situação, representado pelo delírio

final de Luis da Silva.

Vidas Secas, por sua vez, vai distinguir-se completamente dos seus outros

romances. O livro é composto por capítulos fragmentários que são, ao mesmo

tempo, uma unidade completa em si mesma e também parte de uma seqüência

narrativa. Embora narrado, sobretudo, na terceira pessoa, boa parte do texto

oferece voz a cada uma das personagens: Fabiano, Sinhá Vitória, os dois

meninos e a cachorra Baleia. Deste modo, o romance pode ser visto como uma

montagem de capítulos, ou seja, uma construção por fragmentos, como quadros

que se interligam, mas que têm unidade.

Vidas Secas é um romance que trata das infelicidades sociais, morais,

econômicas e educacionais do camponês nordestino. Graciliano Ramos aborda

então o caráter regional de determinado grupo social marginalizado. Também em

Viventes das Alagoas, o tema das crônicas tratado pelo autor não é muito

diferente. Até porque Vidas Secas originou-se de contos enviados para o jornal, e

depois foi transformado em romance, com modificações do autor. As crônicas

circularam, inicialmente, na Revista e depois, postumamente, se constituíram em

livro.

Sua ficção é toda ela ligada à categoria da tensão crítica, portanto pode-se

dizer que os seus romances desenvolvam-se sob o signo do conflito, quer do

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conflito entre homem e natureza, quer do conflito entre homem e sociedade, quer

do conflito entre ambos, como ocorre em Vidas Secas, por exemplo.

Antonio Candido (2000) pontua que há, a partir da década de 1930, uma

nova situação na literatura brasileira em que o romance e o conto assumem o

primeiro plano. É o surgimento do chamado regionalismo, agora marcado pela

visão crítica sobre a realidade econômica e social. O regionalismo se emprega

mais sobre a dimensão social e econômica enfocando, principalmente, temas

como a miséria do Nordeste, o êxodo rural, o cangaço e a decadência da

aristocracia rural.

É na década de 1930 que se afirma o ensaio de caráter sociológico e

histórico, com Gilberto Freyre (Casa Grande & Senzala - 1933), com Sérgio

Buarque de Holanda (Raízes do Brasil - 1936), como também a interpretação de

matiz político por Caio Prado Júnior (Evolução Política do Brasil - 1933). Candido

enfatiza a presença de um fenômeno literário denominado “fermentação

espiritualista”, caracterizando assim um romance orientado para a análise

psicológica e para o universo espiritual das personagens. O decênio de 1930,

portanto, conviveu com a preocupação político-social e com as questões estéticas

nas artes. Foi alcançado, de certa forma, o equilíbrio entre a pesquisa local e as

aspirações cosmopolitas.

Neste mesmo ensaio sobre a década de 1940, Candido tece uma série de

considerações sociológicas a propósito das mudanças políticas e sociais

ocorridas no período. No contexto dessa década, temos alguns marcos históricos

importantes, tais como: a Segunda Guerra Mundial, a passagem ditatorial do

Estado Novo para o regime democrático, assim como um novo ambiente para

discussões de problemas de ordem política. Pode-se também associar a

tendência classicizante da geração de 1945 com uma espécie de saturação das

experiências de vanguarda. É curioso observar que a revelação dos horrores

acontecidos nos campos de concentração da guerra pôde gerar duas atitudes

divergentes; por um lado, a reafirmação de uma arte comprometida com a

reflexão sobre os problemas sociais; por outro lado, uma atitude de desilusão, de

desencanto, de rejeição às conquistas da chamada civilização ocidental.

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No quadro da cultura brasileira, Candido marca a existência de um quadro

cultural em que os valores literários predominaram, principalmente quando se tem

em vista a ausência de pesquisas científicas. Dois fatores são responsáveis por

esta permanência dos valores literários até então. Um deles é o prestígio do

humanismo clássico e a demorada radiação do espírito científico; o segundo fator

refere-se à situação especificamente brasileira caracterizada pelo atraso da

educação, pela estagnação política e pela supremacia do espírito bacharelesco.

A literatura realista crítica dá continuidade à produção brasileira do início do

século XX, que constituiu o que denominou-se mais tarde de pré-modernismo.

Pode-se demarcar esse período situando-o entre os anos de 1902 e 1922. O pré-

modernismo se situa entre a ruptura com a literatura simbolista e parnasiana e o

modernismo inaugurado pela Semana de Arte Moderna em 1922. O

questionamento e a reflexão sobre a realidade brasileira constituem o elo entre

pré-modernismo e modernismo. A existência desta ligação em termos de

interesse pela realidade nacional justifica a identificação de um momento pré-

modernista para o modernista. (BOSI, S/D).

Escritores como Euclides da Cunha, refletindo sobre a dura realidade

sertaneja; Lima Barreto, Recordações do escrivão Isaías Caminha, denunciando a

corrupção e os preconceitos sociais; e Monteiro Lobato apresentando a triste

imagem do caipira, o Jeca-tatu, em Urupês; representam já uma literatura social,

colocando em discussão as condições do trabalho livre e denunciando a

prepotência escravocrata ainda presente na mentalidade das elites do país. Esse

período pode ser definido por um nacionalismo conservador e ao mesmo tempo

progressista.

Neste sentido, tomemos, em especial, Monteiro Lobato, o qual,

reconhecendo as diferenças brasileiras, destaca a falta de coesão nacional

agravada pela desigualdade entre os Estados. O autor mostra que se

compararmos, por exemplo, São Paulo com Mato Grosso, veríamos já aí uma

desigualdade. São Paulo poderia viver por si mesma, enquanto Mato Grosso

necessitaria de uma dependência em relação a São Paulo. Lobato declara que,

quando houver uma unidade entre as regiões no Brasil, no sentido de cada uma

viver por si só, aí veremos desenvolvimento e riqueza do País diante do mundo.

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Aponta ainda os vários regionalismos brasileiros, considerados por ele como

“compartimentos estanques”, os quais são separados e muito diferenciados e, por

isso cada região se preocupa consigo mesma. Segundo Lobato, estas regiões,

separadas e tão diferentes, é que prejudicam a constituição do Brasil como uma

nação. A saída que o autor vê para resolver tal impasse viria pela ordem

econômica. O Estado deveria viabilizar o progresso valorizando e explorando o

Petróleo e o Ferro. (NEPOMUCENO, 2005).

A postura de Lobato confirma que os problemas considerados como

regionais, na verdade eram nacionais. Mais uma vez podemos afirmar que no

Brasil, com sua grande extensão e diferenças sociais, culturais e tantas outras, é

impossível conter uma unidade, como assim, pretensiosamente, desejava Getúlio

Vargas.

Passemos agora ao debate da questão política, desse período.

Denis de Moraes (2004) argumenta a respeito das relações entre a

intelectualidade e a política no Brasil, que têm se caracterizado por tensões entre

três quadros cíclicos. Um deles inclui a cooptação de segmentos da elite

pensante pelas esferas de poder, o segundo refere-se ao envolvimento de

escritores e artistas com as estruturas hegemônicas, com diferentes estratégias e

táticas de ação; o terceiro configura-se pelas interferências ideológicas sobre a

criação cultural. Os intelectuais nesses quadros cíclicos equilibram-se de forma

instável entre os ideários estéticos, as convicções filosóficas e as dificuldades de

sobrevivência em um país onde suas atividades acontecem em meio à vida

acadêmica, à mídia, e, aos órgãos e apoios governamentais.

Os intelectuais no Brasil empenharam-se em revelar e interpretar sentidos

para a existência, através de projetos individuais, anseios coletivos e utopias, mas

são freqüentes os conflitos e turbulências. Às vezes vêem-se enredados pelos

arranjos das classes dominantes para deter uma participação popular mais

intensa nas mudanças sociais, às vezes enfrentam pressões para adequar seus

propósitos a circunstâncias políticas. Em meio a essas turbulências, o “espaço de

manobra oscila entre a proximidade com o aparelho do Estado, a insubmissão ao

status quo e os dilemas para conciliar produção simbólica e ideologia”. (MORAES,

2004, p.201).

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Graciliano Ramos vivenciou contradições típicas de uma sociedade civil

desorganizada e instável, em face da qual o Estado se agigantou como sujeito

das iniciativas voltadas à conservação de hegemonias. A experiência de

cooptação incluiu a atração pela burocracia do Estado Novo no tocante às artes

no geral. O Governo Vargas se importava em atrair competências para legitimar

e conduzir projetos de modernização cultural. A meta era cultivar mitos e

tradições dentro da visão burguesa, transmitindo-os às outras classes pelo

sistema escolar e pelos meios de comunicação. Nas palavras de Getúlio Vargas,

empossado em 1943 na Academia Brasileira de Letras, era chegado o momento

de os intelectuais se juntarem ao Governo

numa campanha tenaz e vigorosa em prol do levantamento do nível mental e das reservas de patriotismo do povo brasileiro, colocando as suas aspirações e as suas necessidades no mesmo plano e na direção em que se processa o engrandecimento da nacionalidade. (VARGAS apud MORAES, p.3).

Muitos escritores brasileiros eram contrários à ditadura Vargas como

também ao fascismo, mas recebiam dos cofres públicos por serviços prestados

ao Ministério da Educação, comandado por Gustavo Capanema, com o auxílio de

seu chefe de gabinete, Carlos Drummond de Andrade. Capanema nomeou como

inspetores federais de ensino secundário, Graciliano Ramos, Manuel Bandeira,

Marques Rebelo, dentre outros.

Ramos, em suas crônicas apresentadas em Linhas Tortas, como vimos no

primeiro capítulo, demonstra inquietação constante acerca da situação marginal

dos escritores brasileiros que ingressavam no serviço público, no sentido de

enfatizar que no Brasil faltava a profissão literária, e um dos meios de sobreviver

seria entrando no funcionalismo público.

Denis de Moraes (2004) argumenta que o mercado editorial brasileiro nas

primeiras décadas do século XX era restrito às capitais do Sudeste e do Sul,

assim como concluía que viver de direitos autorais era uma “miragem”. Emenda

que Vidas secas (1938) demorou nove anos para chegar à segunda edição e

quatorze anos à terceira. Para cobrir as despesas familiares, Graciliano Ramos

desdobrava-se. Era-lhe necessário escrever pela manhã, trabalhar à tarde como

inspetor federal de ensino e à noite, de 1947 em diante, como redator do Correio

da Manhã. A imprensa, com efeito, foi abrigo protetor para intelectuais,

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principalmente para aqueles que tinham queda pela pena. Os grandes jornais do

Rio de Janeiro ofereciam empregos estáveis ou “bicos” a um grande número de

escritores-jornalistas como Antonio Callado, Otto Lara Resende, Francisco de

Assis Barbosa, Otto Maria Carpeaux, Franklin de Oliveira, Álvaro Lins, Paulo

Mendes Campos e Rubem Braga.

Moraes enfatiza que, incumbido da propaganda do regime e da censura, o

DIP neutralizava as empresas jornalísticas com subsídios mensais, a título de

publicidade. Em suas publicações, pagava por cinco laudas cem mil réis,

enquanto nos principais jornais o salário de um bom redator não ultrapassava

oitocentos mil réis. Dessa forma, não é difícil entender por que Graciliano, José

Lins do Rego, Vinicius de Moraes, Érico Veríssimo, Mário de Andrade, Manuel

Bandeira, e tantos outros escreviam para publicações governamentais. A

necessidade financeira obrigava muitos desses escritores a aceitarem esses

encargos.

Nas crônicas presentes em Viventes das Alagoas constata-se a ausência

de qualquer elogio ao autoritarismo ou mesmo a Getúlio Vargas. Abordando as

mazelas de sua terra natal, indireta e às vezes diretamente, Graciliano Ramos

atinge o Estado. Ex-preso político e fichado na Polícia Política como suspeito de

exercer atividade subversiva, tinha severas críticas contra a ditadura do Estado

Novo. Optar por escrever a respeito de sua região, nos faz confirmar sua postura

do não engajamento político ao então Governo Vargas.

No entanto, Pécaut (1990) ressalta que era permitida aos colaboradores da

revista Cultura Política certa liberdade de pensamento. Era de interesse do

Governo Vargas a união da cultura e da política. O empenho nessa junção

poderia ser verificado pelo sentimento de nacionalismo. Seu primeiro diretor,

Almir Andrade, declarou em 1937 que:

entre a cultura e a política há um traço vigoroso de união. A cultura põe a política em contato com a vida, com as mais genuínas fontes de inspiração popular. A política empresta à cultura uma organização, um conteúdo socialmente útil, um sentido de orientação para o bem comum. (PÉCAUT, 1990, p.69).

Por isso, a cultura nacionalista oferecia um terreno de encontro entre os

intelectuais que serviam ao Regime e os demais, pois o Governo Vargas sabia

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acolher tanto um quanto o outro, apresentando uma postura diplomática a fim de

mostrar ao povo brasileiro que, com isso, havia estabelecido a democracia

necessária no País. O Estado e o intelectual foram levados a agir como sócios a

serviço da identidade nacional. Dessa forma, o Governo permitia um espaço para

o uso da nossa intelligentsia no sentido de reconstruírem, juntos, a brasilidade, ou

seja, a redefinição nacional.

Nota-se que Graciliano Ramos, na obra Viventes das Alagoas, critica a permanência da tradição política brasileira. Na crônica “Dona Maria Amália”,

Graciliano Ramos argumenta a respeito da esposa de um chefe político influente.

Essa mulher era quem arranjava a todo custo votos para o marido. Causava

inquietações ao Governador, depois das eleições, por exigir os empregos

prometidos para todos aqueles que a ajudaram a eleger o marido. Ramos,

ironicamente, escreve: “sua excelência precisava dos votos, mas não possuía a

quantidade necessária de empregos”. (RAMOS, 1983, p.29).

O autor aponta a diferença de dois tipos de eleitores. Os “cambembe” que

votam para obter “um par de tamancos” e os “considerados” que desejam uma

vida fácil, um salário certo e uma educação para os filhos. Dona Maria Amália

personifica de certa forma determinados marqueteiros de votos. Aqueles que

fazem de tudo para angariar votos dos cidadãos prometendo-lhes qualquer coisa.

Termina a crônica declarando que Dona Maria Amália “resistiu a todas as

comissões de sindicância e está forte, gorda e bonita”. (RAMOS, 1983, p.31). Ao

usar essa personagem reafirma a situação política do Brasil que continua

praticando o favoritismo.

Na crônica intitulada “Teatro I”, o autor comenta que ainda não havia na

pequena capital nem avião, nem automóveis. O que havia era o lento

desenvolvimento da cidade. Só tinha o “cabriolé” que pertencia ao Governador.

Escreve sobre o hábito de no fim da tarde os moradores dessa pequena cidade

se ajeitarem na calçada para observarem e comentarem a respeito da vida alheia.

Denuncia em meio a esse costume a falta de esgotos e por isso um cheiro

horrível na cidade. Assim chega aos votos e, portanto às eleições numa cidade

como esta. Para se obterem alguns votos era necessário espancar ou matar

alguns matutos.

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Nesse ínterim, o autor argumenta sobre as emergentes necessidades da

cidade quando o governador decide construir um teatro. Empreendimentos como

construções de estradas de rodagem e de pontes, assim como escolas, eram as

mais urgentes. E o teatro nessa pequena cidade, com um orçamento escasso não

poderia trazer verdadeiros espetáculos. Com ironia escreve: “era o que

necessitava a capital”. (RAMOS, 1983, p.54)

Nessa crônica, podemos acompanhar os argumentos usados pelo autor

num tom crítico das necessidades emergentes em seu Estado. Junto a isso,

notam-se alguns costumes da pacata região, e, propositalmente, o autor revela-

nos as desigualdades vivenciadas pelos nordestinos em relação à chamada

“civilização”, especialmente quando mostra a falta de esgotos, a não existência de

estradas pavimentadas, assim como a insuficiência de escolas.

2.1 - A existência e a sobrevivência do cangaço nordestino

Na crônica “O fator econômico do cangaço”, crônica longa, composta de

seis páginas, fica evidente a denúncia do autor de que há problemas no Nordeste

devido ao abandono político. Em primeiro lugar, o cronista localiza o cangaço,

afirmando que este é um “fenômeno próprio da zona de indústria pastoril, no

Nordeste”. (RAMOS, 1983, p.128). Fazendo uma divisão entre o que seriam os

cangaceiros e o que seriam os matutos que servem aos proprietários, coloca

estes como “cabras de confiança de proprietários que, para conservar os seus

bens e aumentá-los, precisam organizar defesa armada”. (RAMOS, 1983, p.128)

O cronista escreve que a propriedade às vezes se mantém pela força.

Força esta representada pelos matutos, os quais agem como sendo exércitos

armados dos proprietários para quem trabalham. Uma distinção marcante que o

autor aponta é que estes são sedentários, ao contrário dos cangaceiros:

“nômadas[sic] em virtude do regime de produção na catinga”. (RAMOS, 1983,

p.128)

Há também a argumentação a respeito da geografia do Nordeste: “a terra é

dura, torrada (...) é um meio agressivo, em que os homens e os rebanhos se

dizimam quando há carência de pastagem”. (RAMOS, 1983, p.129). Ao apontar o

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problema natural de sua região há a predominância do abando político, o que diz

respeito a uma possível solução para determinados problemas, que são de

caráter econômico e também social. Evocar o aspecto geográfico e natural da

região nos faz inferir que o autor tem consciência de que tal fato também contribui

para as dificuldades deparadas pelos seus moradores, porém o cronista

ultrapassa essa noção primeira de que os problemas advindos da região são

somente naturais da terra, mas podem ser solucionados por vontade política.

Em relação aos cangaceiros, declara que estes são fortes e por isso os

proprietários os respeitam. Escreve: “o cangaceiro é o inimigo poderoso, que é

necessário agradar”. (RAMOS, 1983, p.130). Conduz a escrita discorrendo sobre

um problema local – o cangaço nordestino –, mas acaba atribuindo a

responsabilidade de sua existência ao Governo, como segue:

(...) como os salteadores de bota e gravata organizavam pequenos bandos compostos de sujeitos necessitados da classe baixa, concluiremos que o cangaço era um fenômeno social, agravado por motivos de ordem econômica. (RAMOS, 1983, p.131)

Ramos desenvolve um argumento sobre possíveis fases de evolução do

cangaço, demonstrando como se chega ao comando de um grupo. Primeiro, os

que mandavam eram os “grandes”, os que tinham poder. Depois, da própria

“massa anônima” de capangas, emanavam os mandões. A terceira fase seria a

dos indivíduos que vêm de uma classe mais alta, os quais misturam-se aos

demais cangaceiros e dirige os companheiros. É o caso, por exemplo, de Corisco,

filho de Coronel: branco e louro com pai “remediado” e avô rico, senhor de vários

engenhos. O cronista constrói um histórico do cangaço para concluir

posteriormente a respeito do fator econômico ligado a ele.

Usando o recurso da ironia, conclui que a “democratização” do cangaço foi

provavelmente determinada pelo aumento da população:

numa terra demasiado pobre, que em alguns lugares chega a ter perto de cinqüenta habitantes por quilômetro quadrado. A gente mal pode lá viver. Isto nos mostra porque, não existindo no resto do país bandos de salteadores, o que é lisonjeiro, têm eles surgido e crescido assustadoramente no Nordeste. (RAMOS,1983, p.132-133)

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Coloca, dessa forma, o cangaço como sendo um problema local, situado.

Os cangaceiros tornam-se violentos e criminosos devido ao meio de vida que

levam, numa terra que poucas oportunidades oferecem para se construir uma

vida digna. No seguinte trecho, também podemos detectar esse aspecto:

Essas terríveis quadrilhas, que ultimamente se têm multiplicado, não encerram, pois, todos os salteadores que afligem o Nordeste: é preciso considerá-las como escolas ambulantes, onde, em época de seca, se vão exercitar os sertanejos famintos. (RAMOS,1983, p.133)

Para finalizar, mostra como o Governo não age perante os cangaceiros. “As lutas

contra as forças do Governo são raras, porque de ordinário os oficiais de polícia,

demasiado prudentes, evitam choques desagradáveis”. (1983, p.134).

Na crônica “Lampião”, cria o termo “lampionismo” para referir-se aos

indivíduos que se assemelham ao meio de vida de Lampião. “É conveniente que o

leitor não veja alusões a um homem só”. (RAMOS, 1983, p.135). Expõe, dessa

forma, que a condição de vida precária desses “lampiões” é que os levou a

constituir-se como cangaceiros:

No começo da vida sofreu numerosas injustiças e suportou muito empurrão. Arrastou a enxada, de sol a sol, ganhando dez tostões por dia, e o inspetor de quarteirão, quando se aborrecia dele, amarrava-o e entregava-o a uma tropa de cachimbos, que o conduzia para a cadeia da vila. Aí ele agüentava uma surra de vergalho de boi e dormia com o pé no tronco. (RAMOS, 1983, p.135)

O autor afirma que a questão que envolve o cangaço, aqui na figura de

Lampião, é social. O meio em que o sujeito se desenvolve é que vai determinar o

seu modo de ser e agir na sociedade. Em contraponto, a partir de então, discorre

sobre a coragem de Lampião, e através de sua coragem, lamenta a fraqueza dos

demais, incluindo a sua própria. Escreve:

como somos diferentes dele! Perdemos a coragem e perdemos a confiança que tínhamos em nós. Trememos diante dos professores, diante dos chefes e diante dos jornais; e se professores, chefes e jornais adoecem do fígado, não dormimos. Marcamos passo e depois ficamos em posição de sentido (...)É possível, pois, que haja em nós, escondidos, alguns vestígios da energia de Lampião. Talvez a energia esteja apenas adormecida, abafada pela verminose e pelos adjetivos idiotas que nos ensinaram na escola. (RAMOS, 1983, p.137)

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Nesse grande trecho, torna-se evidente a “fraqueza” do autor perante a

impossibilidade de ação diante das coisas que precisam ser reveladas e

transformadas. As aspas para a palavra fraqueza do autor refere-se a ação do

mesmo em relação à sua escrita. Na crônica, notamos a sua postura consciente

da situação pela qual passa o País, num momento de vigilância e de medo, este,

especialmente, devido a Ramos há pouco ter saído de uma prisão política. O

cronista tem consciência de sua “fraqueza”, mas por outro lado, para nós leitores,

o que vemos é a sua postura mediadora, através de sua produção escrita,

perante os impasses por que passava o Brasil e não se intimidou em denunciar

de certa forma como estavam presos e subservientes a um Governo opressor.

De acordo com Boris Fausto (1995) o Estado Novo teve sua gestação

originada no período posterior à Primeira Guerra, quando os ideais autoritários e

fascistas dos regimes políticos estrangeiros, como os de Hitler na Alemanha e

Mussolini na Itália começaram a ganhar força por aqui. Em 1937, Getúlio Vargas

implanta o Estado Novo no estilo autoritário. O movimento popular e os

comunistas (comuns na década de 1930) foram então combatidos e não poderiam

reagir diante dessa implantação. O Presidente passou a ter mais autoridade, pois

era ele quem indicava os interventores estaduais. Tudo passava por seu crivo. O

objetivo desejado por ele era o de modernizar o País, mas por uma via autoritária.

E, dessa forma, criou meios de comunicação sob sua censura para elaborar a sua

própria versão da fase histórica em que vivia o País. Mesmo com certa liberdade

de pensamento permitida, o Regime perseguia intelectuais que viessem a

postular idéias contrárias aos seus princípios. Como tinha interesse na divulgação

de suas ações, o Governo tentou atrair setores letrados para o seu lado. A partir

de então é que surge o DIP, como mencionado acima, diretamente ligado ao

Presidente da República, o qual escolhia os seus principais dirigentes. Os

intelectuais no período do governo de Getúlio Vargas tiveram uma posição

instável, pois tinham duas saídas: ou eram cooptados pelo Estado, trabalhando

para o mesmo e abandonavam a crítica ao governo ou trabalhavam para o

Estado, e mesmo assim não abriam mão do que pensavam, manifestando assim

uma posição crítica da política, tanto em jornais como nas produções literárias,

como é o caso de Graciliano Ramos.

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Na crônica “Dois Cangaços”, Ramos faz um levantamento histórico do

cangaço, afirmando que este hoje é muito diferente do que era em fins do século

XIX. O que tínhamos antes era um bando de minguados grupos de bandoleiros,

hoje (tempo de Lampião) há os grandes grupos que têm posto em armas certas

regiões já flageladas pela pobreza. Enumera os cangaceiros, dividindo-os em dois

grupos. O primeiro grupo era composto por proprietários, como Casimiro Honório

e os Dois irmãos Morais. Geralmente, combatiam o inimigo sozinhos, cada um em

seu tempo. Havia também homens como Jesuíno Brilhante, o qual já conquistara

algumas dezenas de homens sob o seu comando. Em 1926, o bando de Lampião

chegou a constituir-se com cerca de duzentos homens. Era um bando que se

formou da camada mais baixa da sociedade, denominado por Ramos de

“rebotalho social”. Então, podemos concluir que o primeiro grupo de cangaceiros

vinha da classe dominante, enquanto o segundo grupo se afirma pelas classes

mais baixas. O cronista apresenta também os métodos diferentes usados por um

grupo e outro. Antes, os cangaceiros, talvez, ocultassem seus mal feitos ou os

apresentavam de acordo com suas conveniências. Às vezes eram romantizados e

enfeitados pela imaginação da população. Considerados heróis, dedicavam-se às

obras de reivindicação e de vingança. Os cangaceiros de hoje, como Lampião e

outros, eram uns monstros, “símbolo de todas as monstruosidades possíveis”

(RAMOS, 1983, p.152).

Portanto, questiona se também os antigos cangaceiros não praticavam

ações monstruosas como as de Lampião e talvez as escondessem por algum

interesse, pois eles tinham alguma coisa a perder: tanto propriedades quanto um

nome a zelar. Combatiam a propriedade dos seus inimigos: “daí talvez surgirem

conservadores, poetizados e aumentados na literatura branca do Nordeste”.

(1983, p.152). Já nos tempos de Lampião, o que havia era um mundo seco e

populoso, por isso não tinham nada a perder. Não dispunham nem mesmo de

uma tradição. O cronista assim afirma que “à falta de bens, arriscam as suas

vidas inúteis”. (RAMOS, 1983, p.152)

Fatores como o número alto de habitantes, o orçamento minguado que o

Estado recebe e ainda a região ser pobre e pequena contribuem para enfatizar os

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problemas econômicos e sociais do Nordeste. Nesse sentido, argumenta com

convicção que

(...) o cangaço no Nordeste se apresenta sob dois aspectos, ou antes que podemos observar lá dois cangaços: um de origem social, outro, mais sério, criado por dificuldades econômicas(...)foi a miséria que engrossou as suas fileiras, a miséria causada pelo aumento de população numa terra pobre e cansada. (RAMOS, 1983, p.153-154).

Dessa forma, entendemos como Graciliano Ramos distingue o cangaço de

antes e de agora, o primeiro constituído por proprietários, pelos coronéis, os quais

respeitavam as instituições como família e Igreja, assim como respeitavam de

certa forma o meio social em que viviam; enquanto os de agora provindos de uma

classe social mais baixa assim se constituíram, devido ao meio social pobre em

que cresceram e em que viveram, daí serem “bandoleiros” por necessidade,

portanto não respeitavam nem a família nem a religião, pois não as tinham:

a multidão mal paga e sem glória, pode com a vinda das trovoadas, desertar impunemente e voltar às suas ocupações de ordem, até que chegue de novo a necessidade de bandear-se. (RAMOS, 1983, p.134).

O cangaço iniciou-se no século XIX e até a década de 1940 havia ainda no

interior do Nordeste bandos de cangaceiros com o objetivo de atacar fazendas e

pequenas cidades para roubar. Agindo, geralmente, com violência não poupavam

a tortura, o estupro e muitas mortes a sangue frio. A extinção do cangaço ocorre

com o declínio do poder local dos coronéis, que se deu entre os anos de 1930 e

1945 no Governo Vargas. A maioria dos cangaceiros foi morta por policiais. Os

cangaceiros foram considerados heróis por grande parte da população nordestina

por serem, no geral, pessoas de origem humilde, como também se fizeram

respeitadas pelos coronéis. (FAUSTO, 1995)

A reflexão de Graciliano Ramos sobre o cangaço é um tema recorrente na

literatura e cultura brasileiras. Embora Antonio Candido (1995) reflita sobre o

jaguncismo mineiro, sabe-se que é um tema que representa, de certa forma, um

poder paralelo ligado à violência. O cangaço, formado por bandos, é tido como

independente do poderio local; já o jaguncismo remete à dependência aos

coronéis. Candido traça um longo perfil do jagunço literário, em Minas Gerais,

desde o autor Cláudio Manuel da Costa até Guimarães Rosa, marcando que o

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regionalismo brasileiro nasce por meio da tropelia violenta que era vista como

normal, de certa maneira, nas sociedades do passado. O nome “jagunço” pode

ser dado tanto ao valentão assalariado e ao camarada em armas, quanto ao

próprio mandante que os utiliza para fins de transgressão consciente, ou mesmo

para impor a ordem privada que faz as vezes da ordem pública. O termo

“jaguncismo” relaciona-se “à idéia de prestação de serviço, de mandante e

mandatário, sendo típica nas situações de luta política, disputa de famílias ou

grupos”. (CANDIDO, 1995, p.155)

2.2 – A morte de Lampião: metáfora da desilusão de Ramos frente aos problemas brasileiros

A discussão a respeito da morte de Lampião, destacada em algumas

crônicas, torna-se curiosa. Ora o autor trata com convicção da morte de Lampião

ora já a coloca em questionamento. Convém ressaltar que Graciliano Ramos

escreve depois da morte de Lampião. A história oficial data sua morte no ano de

1938.

Na crônica “O fator econômico no cangaço”, pontua que têm sido feitos

comentários com freqüência sobre o cangaço devido à morte de um dos maiores

cangaceiros que já houve no Brasil. Faz uma distinção do cangaço de tempos

remotos e do cangaço de agora (primeiros anos de 1940). O autor também

compara Lampião a outro cangaceiro, Corisco. Este vindo de uma classe mais

alta. Filho e neto de coronel. É tido como homem de família. Por outro lado

Lampião: mulato e analfabeto. Causa estranheza em Ramos o burguês (Corisco)

servir a um plebeu (Lampião). O autor costuma usar o termo “bandoleiros” para se

referir aos cangaceiros mais modernos, os quais podem ser vistos na figura de

Lampião.

Na crônica intitulada “Lampião”, embora não haja menção à sua morte, o

cronista apresenta dados pessoais do bandoleiro. Esclarece que Lampião nasceu

há muitos anos e em todos os estados do Nordeste; e é um “salteador cafuzo, um

herói de arribação bastante chinfrim”, continua com os adjetivos que em nada

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romantizam Lampião: “zarolho”, “corcunda”, “chamboqueiro”, além disso, causa

“má impressão”.

Na crônica “Corisco”, nome do companheiro de Lampião, o autor discorre

sobre a morte daquele, enfatiza que passou despercebida devido às notícias tidas

como mais importantes que se referiam à Guerra na Europa. Declara, por outro

lado, que ninguém se interessaria por um cangaceiro nordestino, “baleado e

decapitado em conseqüência de numerosas estrepolias”. (RAMOS, 1983, p.147).

Argumentando sobre a morte de Corisco, mais uma vez o compara a Lampião:

“Lampião teve um necrológio razoável, mas Lampião era chefe abalizado, gozava

enorme prestígio e perdeu a cabeça antes da guerra”. (RAMOS, 1983, p.147)

Em “Virgulino”, o cronista nos informa que foi anunciada a morte de

Lampião por telegrama, mas a notícia não foi confirmada e, por isso, a polícia

continuara a procurar por ele, e mostrara “nos jornais a cabeça dele separada do

corpo” (RAMOS, 1983, p.141). Dessa forma, afirma que não é a primeira vez que

tinham feito tal anúncio, e ao mesmo tempo em que fazem isso, deturpam a figura

de Lampião, romantizando-o: “enfeita-se com algumas qualidades que se

atribuíam aos cangaceiros antigos, torna-se generoso, desmancha injustiças,

castiga ou recompensa, enfim aparece inteiramente modificado”. (RAMOS, 1983,

p. 141).

Mais uma vez, Ramos se mostra contrário a fantasias e descreve Lampião

como uma “besta-fera”. A partir de então, descreve o encontro que teve com um

discípulo de Lampião, o qual lhe relatou as barbaridades cometidas por este. Com

esse relato, reafirma sua postura diante da figura de Lampião e se irrita quando

surgem opiniões que relevam a sua pessoa.

Mencionando nomes de cangaceiros antigos, como Jesuíno Brilhante

“figura lendária e remota”; e Antônio Silvino; os contrapõe ao Lampião. Assim

escreve:

Resta-nos Lampião, que viverá longos anos e provavelmente vai ficar pior. De quando em quando noticia-se a morte dele com espalhafato. Como se se noticiasse a morte da seca e da miséria. Ingenuidade. (RAMOS, 1983, p.143)

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A conversa que teve com o discípulo de Lampião contribuiu para o autor

marcar o quanto a questão de cultuá-lo como um herói, ou da forma que o

lisonjeavam, na verdade era por interesse. Receavam que ele lhes fizesse mal.

Na crônica “Cabeças” faz uma ironia sobre o efeito causado pela morte de

Lampião. Inicia afirmando que a morte de Lampião ocorreu há alguns anos, mas

ao mesmo tempo discorre sobre a deturpação dos fatos feita pelos jornais.

Escreve:

quando, há algum tempo, o tenente Bezerra deu cabo de Lampião (...) receberam-no com festas, e o herói fez um discurso (...) o bravo oficial declarou o cangaço definitivamente morto, juízo imprudente que não devia ser transmitido. (RAMOS, 1983, p.144)

Duas questões podem ser discorridas em torno disso. Uma refere-se à

imprensa, outra, novamente, à morte de Lampião. O autor acusa a imprensa de

valorizar fatos de forma insensata. Ao noticiarem sua morte e, junto dela o

discurso estampado pelo oficial que o executou, houve uma condecoração a esse

policial pelo seu feito. E é exatamente isso que irrita Graciliano Ramos. Com uma

desconfiança crítica evidencia que,

(...) é lícito, porém, recearmos que o valente oficial não se tenha especializado nisso e que a sua arenga haja falhado ... pelas notícias aqui recebidas, sabemos que o Tenente Bezerra maneja com proficiência a metralhadora e é perito na arte de cortar cabeças, na verdade bem difíceis. (RAMOS, 1983, p.145).

O discurso do oficial, engrandecendo a si mesmo, contribui para a irritação

do autor, o qual alega que o jornalista arranja tudo. Mais adiante, pontua que há

pessoas que estremecem vendo fotos de cabeças fora do corpo. A arte de cortar

cabeças nem sempre é considerada uma barbaridade, por isso, elabora um

histórico sobre essa questão:

(...) cortar cabeças nem sempre é barbaridade. Cortá-las no interior da África, e sem discurso, é barbaridade, naturalmente; mas na Europa, a machado e com discurso, não é barbaridade. O discurso nos aproxima da Alemanha. Claro que ainda precisamos andar um pouco para chegar lá, mas vamos progredindo, não somos bárbaros, graças a Deus. (RAMOS, 1983, p.146).

A crítica do autor com relação ao discurso estampado no jornal pelo oficial

que matou Lampião só vem confirmar sua postura no sentido de recriminar ações

governamentais expondo monstruosamente a tortura praticada contra aqueles

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que pecam por crimes. O caso da morte de Lampião junta-se a essa crítica dos

dizeres do oficial que, do ponto de vista de Graciliano Ramos usou, da vaidade e

de um veículo de comunicação, como o jornal, para que pudesse se engrandecer.

Como deve ter acontecido de fato, pois muitos desejavam a cabeça desse

cangaceiro tão odiado e procurado e às vezes tão querido e romantizado.

Em “Virgulino”, ao discorrer sobre a morte de Lampião, apresenta sua

desilusão diante dos percalços vividos no Brasil: assim se manifesta “a ingênua

certeza de que tudo vai melhorar no sertão”. (RAMOS, 1983, p.141). Nessa

crônica, o autor escreve sobre a incerteza e o momento de indefinição por que

passa o país.

Tudo aqui é meio termo, pouco mais ou menos, somos uma gente de transigências, avanços e recuos. Hoje aqui, amanhã ali – depois de amanhã nem saberemos onde haveremos de ficar, como haveremos de estar. (RAMOS, 1983, p.142)

Acrescenta que acabado o tempo dos patriarcas sertanejos,

o sertão povoou-se e continua pobre, o trabalho é precário e rudimentar, as secas fazem estragos imensos (...)resta-nos Lampião, que viverá longos anos e provavelmente vai ficar pior. De quando em quando noticia-se a morte dele com espalhafato. Como se se noticiasse a morte da seca e da miséria. Ingenuidade. (idem, ibidem, p.143)

Quando escreve a respeito da morte de Lampião, considerando que ela

nunca existiu, inferimos claramente que o autor faz referência direta à

impossibilidade de melhora em todos os setores da sua região. A morte

inexistente é o mesmo que a resolução impossível dos problemas encontrados no

Nordeste.

O autor utiliza a metáfora de Lampião, de suas mortes, como também o

fato de ser considerado herói, para, na verdade, desmascarar os problemas que

envolvem o Nordeste e a impossibilidade de serem solucionados. Ao abordar

essas questões, como a morte e o culto ao herói, expõe problemas de sua região

como a seca, o alto número de habitantes e, consequentemente, o alto índice de

pobreza vivenciados nela: “a vida no Nordeste se tornou demasiado áspera

...finaram-se os patriarcas sertanejos...tudo agora mudou. O sertão povoou-se e

continua pobre”. (RAMOS, 1983, p.143).

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2.3 – Seca x chuva x jogo: desastre e esperança

Na crônica denominada “O Jogo do Bicho”, mais um costume do povo

nordestino, é um outro hábito denunciado por Graciliano Ramos como também

sendo de ordem econômica e social. Por se constituir como uma população com

recursos escassos, que se contenta com o pouco que lhe é oferecido quando

ganha o prêmio no Jogo do Bicho. O interessante aqui é a declaração do autor

para o fator esperança. A única esperança no país seria a sentida pelo jogador do

bicho, pois o Brasil, que não pode conceder esperança de real melhora de vida

para toda a população brasileira, a única seria a crença no Jogo. Escreve:

O jogo do bicho significa uma tentativa muito louvável para corrigir o desarranjo em que vivemos. Uma tentativa oferecida a pessoas supersticiosas que acreditam em sonhos e ainda não podem acreditar em outra coisa, mas afinal talvez seja inconveniente suprimi-la, pelo menos por enquanto. (RAMOS, 1983, p.158)

Na crônica “Um Desastre”, última crônica do livro, em meio aos infortúnios

provocados pela seca e a miséria de um povo, houve uma tempestade no sertão,

que destruiu o pouco que existia:

Vieram males grandes, além dos ordinários. Chuva incessante, inundação, dilúvio (...) há uma desgraça. Evidentemente o Governo local não tem meio de combatê-la. É indispensável o socorro da União. E é indispensável o auxílio particular (...). (RAMOS, 1983, p.160-161)

A chuva num local marcado pela seca deveria ser bem-vinda, porém, em

abundância, acabou piorando a situação. Os agricultores perderam sua

plantação; muitos moradores ficaram desabrigados; parte da população precisou

partir e procurar abrigo em outro lugar. No início da crônica, destaca que “Alagoas

é um Estado pobre. Em pouco mais de vinte e oito mil quilômetros quadrados

arruma-se quase um milhão de habitantes”. (1983, p.159). Adiante, com a

infelicidade causada pela tempestade, percebe-se um desapontamento do autor

perante o Nordeste. Problemas sem soluções, pois dependem, na maior parte, da

iniciativa governamental, que se preocupava mais, naquele momento, com as

regiões centrais como as do Sudeste, as quais lhe eram mais rentáveis,

contribuem, de certa forma, para o desiludir:

Em toda a parte o amarelão – desânimo, gordura fofa: homens cor de cera, indecisos entre a vida e a morte; raparigas velhas, uns

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cacos de mulheres na adolescência; meninos ramelosos, de pernas finas como cambitos, barrigas enormes, grávidas de lombrigas. E muita porcaria: falta de água no sertão, excesso no litoral, o solo empapado, lama. (RAMOS, 1983, p.159)

Apontando com precisão as dificuldades dos seus conterrâneos, coloca

que a única saída que ainda lhes resta é a emigração, mesmo assim para aqueles

que têm energia para tal. Insiste no orçamento escasso do governo nordestino:

“ali por volta de 1930 só um município arrecadava cem contos. Hoje as rendas

parecem ter subido um pouco. Mas terão “realmente” subido?”, questiona o autor.

Constata-se que, mesmo sendo enfatizado o descaso político e um

possível círculo vicioso (seca/chuva – emigração – melhoras no tempo-

imigração), Ramos permite uma abertura que desencadeia determinada

esperança ao afirmar:

(...)quando as águas baixarem, a maleita se desenvolverá junto aos mangues crescidos, bandos exaustos andarão trêmulos. Pensamos nessa gente mais ou menos inútil. Mas que poderia não ser inútil. E poderá talvez não ser inútil. (RAMOS, 1983, p.162)

Evidencia-se que depois de todas as outras crônicas aqui analisadas, nesta

aparece a possível utilidade da população do Nordeste, ou seja, o problema

vivenciado na região tem a probabilidade de ser resolvido por força política. Pois o

que há lá é um descaso com as emergências, como as relacionadas ao

desenvolvimento adequado para as indústrias, para a educação, para o

melhoramento urbano do lugar, dentre tantas outras urgências na região.

Principalmente a questão do alto número de habitantes tentando conviver numa

região com um alto índice de pobreza em vários setores.

A mediação de Graciliano Ramos, em suas crônicas, destaca-se quando o

autor trata da questão da coragem necessária para a ação. Por isso releva figuras

como Lampião, o qual – mesmo sendo “besta fera” – se afirmou com todos os

impasses envolvidos em suas manifestações, exatamente pela coragem de

combater aquele que lhe aflige. A coragem é a grande arma do intelectual.

Conclui-se que foi com a coragem que Ramos se abasteceu para descrever e

denunciar as diferenças sociais, econômicas e políticas, vivenciadas no Nordeste.

As crônicas aqui analisadas evidenciam o aspecto regional, abordando a

realidade problemática de determinadas regiões brasileiras, da produção literária

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de Ramos e, sobretudo, a abrangência política. Ao tratar dos costumes do

Nordeste, com os seus agravantes, critica a não unidade do País, num governo

que pregou a democracia. A abordagem das crônicas, que aparentemente,

poderíamos ver como uma escrita “solta” ou de pouca importância, se torna

grandiosa por alcançar um patamar crítico frente ao regime político vigente,

apresentando uma literatura pertencente ao realismo crítico.

O fato de não se integrar à cooptação política pode ser conferido também

em relação às suas obras ainda manuscritas Memórias do Cárcere e Viagem.

Denis de Moraes (1994) analisa, na perspectiva da comunicação e da cultura, as

linhas principais de recepção e assimilação do realismo socialista no Brasil nas

décadas de 1940 e 1950. Prioriza os aparelhos de difusão de informação sob o

controle do PCB (Partido Comunista Brasileiro). Sua reflexão é embasada na

possibilidade de submissão da esfera artístico-literária ao denominado

“jdanovismo”, o qual refere-se ao ideólogo e censor da literatura e das artes na

era Stalin.

O período estudado pelo autor se configura entre os anos de 1947 e 1953,

momento em que houve movimentos de ascensão e de declínio do realismo

socialista como paradigma cultural. Moraes argumenta que Graciliano Ramos

recusou enfaticamente a questão das crenças, e por isso foi vítima de

reprovações e censuras. Ramos é o exemplo do impasse entre as exigências de

máxima fidelidade à causa e à liberdade de criação.

O Brasil, em 1945, no aspecto político, vivenciou momentos de democracia

e liberdade, assim como uma satisfação pela vitória aliada na guerra. Os partidos,

sindicatos, associações profissionais e acadêmicas se reorganizaram. Destaca-se

também a concessão da anistia aos presos políticos por Getúlio Vargas, o que

contribuiu para uma tentativa de aliança informal com a esquerda, denominada de

“queremismo”. Houve ainda a legalização do Partido Comunista Brasileiro, o qual

prezou por um maior comprometimento com as causas populares e nacionais. Graciliano Ramos filia-se ao Partido em 1945, a convite de Luis Carlos Prestes5.

Nos anos de 1947 e 1953 houve algumas transformações no Partido,

dentre elas a vinculação ao stalinismo-jdanovismo que situou a intelectualidade

5 Informação obtida no site oficial do autor em 08 de outubro de 2007 às 15 horas.

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comunista nas cercas do partidarismo. No aspecto literário, ficcionistas como

Jorge Amado pregavam que as exigências políticas deveriam predominar sobre

as formas artísticas. Nesse âmbito, o Partido assumiu uma postura autoritária no

sentido de controlar a produção dos escritores comunistas.

No entanto, Graciliano Ramos, mais uma vez, impõe a sua liberdade de

expressão, quando não se sujeita às intervenções partidárias, em obras literárias,

ainda em manuscritos, as quais, o censor literário do Partido Diógenes Arruda

tentou avaliar. O partidarismo imputava-se o direito de julgar o que poderia ou não

ser editado. Medida que acarretou certa contradição aos princípios pregados pelo

PCB tais como combatentes da opressão e da tirania. Ramos foi considerado

uma exceção à regra,

enquanto a maioria acatava a homilia de Moscou, ele ousou dissentir (...) tentando equilibrar-se entre a fidelidade filosófica ao partido e a firme recusa do patrulhamento . (MORAES, 1994, p.205-206)

Em carta ao crítico Oscar Mendes em 1935, declara: “acho que transformar

a literatura em instrumento de propaganda política é horrível. Li umas novelas

russas e, francamente não gostei”. (RAMOS apud MORAES, 1994, p.206). Numa

entrevista concedida a Ernesto Luis Maia para a revista Renovação, o autor é

enfático ao atacar o predomínio do político sobre a arte, como segue:

Eu não admito literatura de elogio. Quando uma ala política domina inteiramente, a literatura não pode viver, pelo menos até que não haja mais necessidade de coagir, o que significa liberdade outra vez. O conformismo exclui a arte, que só pode vir da insatisfação. Felizmente para nós, porém, uma satisfação completa não virá nunca. (RAMOS apud MORAES, 1994, p.206-207).

As imposições do Partido tentaram impedir a liberdade de imaginação

criadora e voltar seus interesses apenas para os imperativos ideológicos.

Enfatiza-se que, sujeitos empenhados em reformas e reflexões sociais, como

Graciliano Ramos, não permitiriam abdicar de sua independência reflexiva para

se moldar aos estereótipos da militância. O Partido pregava uma unidade (o

realismo socialista soviético), e recusava o pluralismo (as diferenças de reflexões

e de culturas na realidade brasileira).

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A arte ficou comprimida entre os ideais socialistas e a disciplina partidária.

A intelectualidade comunista estagnou-se no restrito elenco de alternativas da

cultura proletária, contribuindo para que a literatura e as artes, no geral, tivessem

que se harmonizar, especialmente, com o viés doutrinário, interrompendo

bruscamente a fluência criativa e comprometendo a autonomia estética. Porém,

Graciliano Ramos revida convictamente quando o partidarismo o pressiona, em

seus últimos meses de vida, a fazer alterações nos manuscritos: “se eu tiver que

submeter meus livros à censura, prefiro deixar de escrever”. (RAMOS apud

MORAES, 1994, p.210)

Ricardo Ramos (1992) declara que após a morte do pai, os dirigentes do

Partido procuraram sua família para tentar impedir a publicação das obras aqui

referidas. Viagem, Heloísa Ramos havia há pouco enviado para a editora;

Memórias do Cárcere também estava em posse do editor José Olympio, o qual

vinha recebendo os capítulos separadamente e entregues pelo próprio escritor.

Após pressionarem a família, os partidários acabaram desistindo. Um deles

chegou a comentar: “deixe para lá. Daqui a dez anos, ninguém vai saber quem foi

Graciliano Ramos”. (RAMOS, 1992, p.196)

Mantendo seus princípios estéticos e relevando a questão humana, em seu

aspecto social-crítico, na obra Memórias do Cárcere colocou os personagens num

patamar igualitário sem enaltecer nenhum deles e nem a ele mesmo, sendo um

livro de suas memórias na passagem pela prisão em 1936. O autor não permitiu

que o “eu”, o seu “eu” prevalecesse ou estivesse acima dos demais personagens.

Guinsburg (2001) argumenta que em Memórias do Cárcere, Ramos,

sempre enfadado com o “pronomezinho irritante”, consegue superar o aspecto

subjetivo compondo com objetividade não somente a respeito da experiência na

cadeia mas também sobre a fase brasileira da década de 1930:

(...) o documento que nos deixou não é um mero retrato das vicissitudes de um preso político e das suas impressões sobre os seus companheiros de cadeia, mas a história de uma época, vista em seu subsolo humano, social e político. (GUINSBURG, 2001, p.59)

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Sem se desprender do “eu” (o romance está escrito na primeira pessoa do

singular), alcança sínteses autênticas de uma realidade social em seu

depoimento.

Ao escrever na primeira pessoa do singular, o narrador corre o risco de

deformar não só os incidentes e personagens como também a sua própria

personalidade, o que não acontece com Ramos:

dentro do ego, mas pelo sóbrio controle racional, pela indissolúvel ligação afetiva com a humanidade e pela força criadora, eleva-se acima do ego. Supera a sua forma plana, através da constante ampliação de seus limites e do desenvolvimento de uma perspectiva que aos poucos transcende o quadro inicial, invadindo, abarcando e formulando a consciência de outrem, a sua própria atuação e o império das circunstâncias. (GUINSBURG, 2001, p.57)

O tratamento de Ramos dado ao “eu” é curioso. Até em suas memórias

que, situando em tênues limites entre o aspecto ficcional e autobiográfico,

conseguiu certa objetividade não privilegiando a sua exposição, mas sim a sua

postura crítica frente a um momento difícil, vivenciado por muitos intelectuais

envolvidos direta ou indiretamente na “Intentona de 1935”. No capítulo seguinte,

vamos analisar, em suas cartas, como se configurou esse “eu” em meio a uma

escrita íntima, porém preocupada, também, com as questões literárias, políticas e

sociais.

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Capítulo 3 - Graciliano Ramos: escritos da intimidade

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Pretende-se neste capítulo analisar as cartas de Graciliano Ramos

destinadas aos seus familiares, à sua esposa e ao amigo Joaquim da Mota Lima

Filho, no que concerne à questão literária, às discussões políticas, assim como à

exposição do “eu”, desenvolvidas nessas cartas; as quais foram escritas num

período que se estende entre os anos de 1914 e 1952. A obra com o nome Cartas

foi uma reunião de correspondências enviadas pelo autor aos amigos de Alagoas,

para sua família e para sua esposa Heloísa Ramos. Sua primeira publicação se

configurou em 1981, com a iniciativa e organização de Heloísa Ramos e James

Amado. Não há respostas às cartas, somente as que ele enviou.

Ressalta-se uma nota do editor em relação à sua publicação: “as cartas

aqui apresentadas são cópias fiéis dos originais manuscritos, sem cortes,

omissões ou alterações. A ortografia foi atualizada e a pontuação respeitada”

(RAMOS, 1986). Fica conveniente marcar a importância dessa nota devido ao fato

de neste estudo nos apoiarmos apenas na obra publicada, não teremos acesso

aos manuscritos.

Heloísa Ramos faz uma introdução ao livro explicando a necessidade de

publicar a correspondência íntima do esposo: “durante tão longo tempo esses

papéis permaneceram comigo, parte da minha saudade” (RAMOS, 1986, p.9).

Segundo a organizadora, o escritor preservava a sua identidade a ponto de não

permitir intrusões em seu espaço pessoal, era avesso a qualquer publicidade, e,

só após vinte anos de sua morte, poderiam ser publicados seus inéditos. De fato

isso acontece. As cartas são publicadas vinte e sete anos depois de sua morte, e

seu filho Ricardo Ramos publica Retrato Fragmentado em 1992, em que faz uma

pequena biografia do pai.

Estão dispostas no livro por ordem de data e de local. São constituídas em

blocos num total de cento e doze cartas, assim distribuídas: entre os anos de

1910 e de 1914, momento em que o autor estava nas cidades de Palmeira dos

Índios, Maniçoba e Viçosa. Duas cartas destinadas à mãe, três ao pai e oito ao

amigo Joaquim Pinto da Mota Lima Filho, as quais inclusive são mais longas.

Nos anos de 1914 e 1915 são escritas no Rio de Janeiro, sete cartas também

mais longas à irmã Leonor Ramos, quatro à mãe, quatro ao pai e uma à irmã

Otacília Ramos. Entre os anos de 1920 e 1926, o autor morando novamente em

Palmeira dos Índios escreve cinco cartas ao amigo Joaquim Pinto M. Filho, o qual

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continuou no Rio. Em 1928 as famosas cartas de amor enviadas à futura esposa

Heloísa Ramos, em uma quantidade de sete cartas. Entre os anos de 1930 e

1936, o autor está em Palmeira dos Índios e em Maceió. Escreve uma ao amigo

Joaquim P. da M. Filho, cinco ao pai, uma ao cunhado e a maioria é destinada a

Heloisa Ramos, agora sua esposa, num total de quarenta e uma cartas, em que

discute variados assuntos. Em 1936 escreve os bilhetes para Heloisa quando

estava na prisão. Para finalizar, as cartas escritas entre os anos de 1937 e 1952,

quando o autor estava no Rio de Janeiro. Há apenas uma carta no ano de 1952,

destinada aos filhos Clara, Luísa e Ricardo Ramos, a respeito das impressões do

autor, quando, já filiado ao PCB (Partido Comunista Brasileiro), é convidado a

fazer uma viagem a Moscou. No Rio de Janeiro, há dezesseis cartas para

Heloísa, cinco ao filho Júnio e uma à irmã Marili Ramos.

Antes de refletir sobre o texto das cartas de Graciliano Ramos, em

especial, sobre o contexto político e literário, torna-se necessário um debate sobre

o gênero epistolar, que, embora não constituía uma prática recente, sua

abordagem acadêmica não deixa de ser, de certa forma, nova.

Pode ser impossível alcançar uma única definição para o que possa ser a

escrita de cartas, mas há um aspecto comum em sua abordagem, o qual

caracteriza-se pela exposição do “eu”. O “eu”, mesmo involuntariamente, se dá a

conhecer ao outro (leitor ou destinatário da missiva). Ler as cartas de Graciliano

Ramos permite, adentrando como um “intruso”, reconfirmar a sua postura em

determinadas questões vivenciadas por ele mesmo em outros momentos. Ao

parecer demonstrar desprezo pelas ações políticas, nota-se que na verdade, o

que há é uma crítica a acontecimentos históricos, sociais e políticos que, mesmo

em sua escrita íntima, não lhe passaram despercebidos. No entanto, há, em vez de ironia, como vimos no primeiro capítulo para a

impossibilidade de solução dos problemas do país, uma inclinação atenta em

maior grau à construção dos seus romances. Em meio a isso, discute, o que

também consta nas crônicas, a condição do escritor do seu tempo no Brasil.

Contudo, acompanhando o desenvolvimento do seu cotidiano, conferimos os

mesmos pontos de vista percebidos em suas crônicas.

Há um aspecto que se torna mais evidente nas cartas, o qual é o

menosprezo por si mesmo e por sua produção literária. Infere-se que essa

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transparência se deve pela escrita de cartas ser um gênero que permite maior

abertura para se falar de si mesmo, ou seja, expor a si mesmo ao outro.

Galvão e Gotlib (org) (2000) na obra Prezado Senhor, prezada senhora,

que abarca um conjunto de ensaios a respeito do que seria ou, pelo menos, como

poderia ser definido o gênero cartas, argumentam que os ensaios presentes

tratam dos principais aspectos envolvidos no gênero epistolar. Dentre os quais,

evidencia-se temas como o cotidiano, à saúde ou à doença, a gênese da

produção literária dos correspondentes, ainda discussões acerca da política e do

literário. São temas como estes que estão em relevância constante na escrita das

cartas por parte de quem as escreve.

Além de discutir sobre a possibilidade de ficção percebida no gênero,

assinala-se em grau maior a escrita de si nessas cartas. Nota-se como o “eu” é

visto e exposto nos escritos íntimos, em especial, em correspondências trocadas

entre escritores.

Evidencia-se que o nosso maior enfoque será atribuído às cartas do autor

relacionadas ao “eu”, à política, à questão do escritor brasileiro assim como à

questão da gênese de sua literatura. É de interesse perseguir estas questões em

Ramos por serem recorrentes em sua escrita, e por se fazerem presentes tanto

no primeiro como no segundo capítulos desta dissertação. Além disso, tornar-se

também curioso analisar o escrito íntimo de um autor que em vida prezou muito

por sua individualidade introspectiva, discreta e pouco afeita à exposição de si

próprio. Um estudo como este, ao mesmo tempo que instiga, causa certo risco,

por adentrarmos na intimidade de um escritor que se demonstrou muito arredio

em se mostrar ao outro. O risco refere-se também pela originalidade de análise

desse tema sobre os escritos de Graciliano Ramos.

Silviano Santiago (2006) tratando da publicação das correspondências

trocadas entre os autores Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade

discute o que seria o estudo das cartas que foram endereçadas a um leitor

específico num determinado momento e depois se tornam públicas quando

editadas: “ao invadir a intimidade da letra epistolar, estamos sendo, antes de tudo,

transgressores. Contemplado por convenção jurídica, o limite entre o privado e o

público”. (p. 61).

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Neste sentido, vale ressaltar que as correspondências de Graciliano

Ramos tornam-se objeto de estudo aqui, em especial, por tornarem-se públicas,

e, desse modo, estarem a nosso dispor para um enriquecimento cultural, social,

político e literário de um momento vivenciado pelo autor, assim como o privado

transforma-se em interesse público por vermos nele essa riqueza. Reitera-se que

o argumento de Santiago torna-se preciso no tratamento que estamos conferindo

às cartas de Ramos.

Santiago enfatiza que a publicação póstuma das correspondências

trocadas entre os autores Drummond e Mário de Andrade põe abaixo, refletindo

com Paul Valery, o “para ti” e inaugura o “para nós”. Pontua três razões para

relevar esse tipo de publicação. Uma delas seria o interesse pela estética dos

autores, uma segunda razão se refere à importância social e política dos autores,

a terceira razão se configura pela curiosidade intelectual das novas gerações.

Além desses motivos, enumera dois objetivos para tal estudo no campo de uma

nova teoria literária, no caso, a que permite a leitura de cartas escritas aos

amigos, aos familiares, como também os diários íntimos e as entrevistas.

O primeiro objetivo diz respeito ao fato de contribuir para o enriquecimento

da obra artística e o segundo está relacionado com o aprofundamento do

conhecimento que temos da história do modernismo – momento definido pelo

autor como sendo o período pós-1922. Santiago marca também que para a

compreensão da atividade do escritor, o comportamento cotidiano e a

profundidade da obra de arte têm o mesmo peso.

Refletindo com Santiago, pensamos que, nas cartas, Graciliano Ramos

descreve e quer sempre obter notícias sobre o cotidiano de Palmeira dos Índios.

Embora tenha nascido em Quebrangulo e vivido lá pouco tempo, a sua referência

de cidade é Palmeira dos Índios. Em meio à descrição do cotidiano, discorre

sobre as leituras que faz. Por exemplo, em carta de número 25 (1915) destinada à

mãe, escreve: “ontem e hoje tenho vivido mergulhado na leitura da “Relíquia” de

Eça de Queiroz, da ‘Loucura de Jesus’ e do ‘Evangelho de S.Mateus’ – coisas

muito sérias que narram o suplício de N.S. Jesus Cristo”. (RAMOS, 1986, p. 55).

Demonstra preocupação com os revisores de seus escritos e com a própria

revisão que faz dos seus trabalhos, como escrito na carta de número 4 destinada

ao amigo Mota Filho: “eu tenho sido caipora, porque tudo quanto produzo é

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miseravelmente assassinado pelos senhores tipógrafos” (idem, ibidem, p.18).

Declara-se empenhado por defender a literatura de cunho realista, como exposto

nas cartas 4 e 17 ao amigo Mota Filho, o qual também é colaborador em jornais.

Afirma: “Finalmente, creio que cultivas o realismo, mas em tudo que escreves

aparece claramente o imaginário, o impossível” (RAMOS, 1986, p. 18); à irmã

Leonor Ramos enfatiza: “hoje, recebi por intermédio da mãe, (...) um gentil botão

de flores de laranjeira. Caramba! Se eu soubesse fazer versos líricos, tinha hoje

um assunto magnífico” (idem, ibidem, p.43).

Ao escrever cartas, um missivista não se distancia de si mesmo. Trata-se

de uma introspecção, aproximando o texto da carta ao alter-ego do escritor em

busca de diálogo consigo mesmo e com o outro. A introspecção na reflexão de

Michel Foucault (1992) é uma abertura que o sujeito oferece ao outro sobre si

mesmo.

Em relação às escritas do eu, Foucault (1992) esclarece que a

correspondência, em que se consignam citações, fragmentos de obras, ações

testemunhadas ou narradas, reflexões e argumentos, estaria relacionada ao ato

de escrever, o qual implica a exposição do eu. A escrita do “eu” situa-se na

estética da existência e no governo de si próprio. Retoma a obra Vita Antonii do

autor cristão Atanásio, a qual remete ao assunto da escrita espiritual.

Segundo Foucault, a escrita está associada ao exercício de pensamento de

duas formas. Uma delas refere-se a uma série denominada “linear”. Uma segunda

refere-se ao caráter “circular”. A primeira relacionada ao que vai da meditação à

atividade da escrita culmina no treino em situação real e à prova, ou seja, o

trabalho do pensamento, o trabalho pela escrita assim como o trabalho em

realidade. Já a “circular” relaciona-se à meditação que precede as notas, as quais

permitem releituras que, por sua vez, relança a meditação.

Dessa forma, Foucault retoma Plutarco, o qual definiu duas maneiras para

designar a “etopoiética”, que quer dizer um operador da transformação da

verdade em “ethos”. Uma das formas designa-se aos “hypomnemata”, os quais

podem ser livros de contabilidade, cadernos pessoais que podiam servir de

agenda, em que eram consignadas citações, fragmentos de obras, reflexões

ouvidas ou que viessem à memória. Mais tarde, essa escrita passaria a se

constituir como uma memória material das coisas lidas, ouvidas ou pensadas e

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ofereciam-na à releitura como também a uma futura meditação. Os “hypomnmata”

serviam não para a memória, mas principalmente para recorrer em caso de

necessidade para ler, reler, meditar e entreter-se a sós ou com os outros. O seu

valor refere-se “não apenas no sentido de poderem ser trazidos à consciência,

mas no sentido de que se deve poder utilizá-los, logo que necessário, na ação”.

(FOUCAULT, 1992, p.136). Dessa forma, “a escrita dos hypomnemata é um

veículo importante desta subjetivação do discurso” (idem, ibidem, p.137). Não

podem ser confundidos com diários íntimos nem como uma narrativa de si

mesmo, não têm um teor de purificação pela confissão. O movimento efetuado

por eles revela-se por captar o já dito, reunir aquilo que se pode ouvir ou ler, com

a finalidade de constituição de si. O teórico questiona como pode ser posto em

presença de si próprio por intermédio de discursos velhos (já ditos, portanto

tradicionais situando numa linhagem clássica) como o tempo e oriundos de toda

parte.

Para tal, enumera três razões que levam os “hypomnemata” a contribuírem

para a formação de si através desses “logoi” dispersos. Para a primeira razão,

retoma Sêneca, o qual afirma que a prática de si implica a leitura e dessa forma a

associação necessária entre leitura e escrita. Aqui, a contribuição dos

“hypomnemata” diz respeito a atuar como um dos meios pelos quais libertamos a

alma da preocupação com o futuro, remetendo-a para a meditação do passado. O

papel da escrita seria o de constituir um corpo, metaforicamente visto no sentido

da digestão que, ao transcrever suas leituras, se apossa delas e faz sua

respectiva verdade. Assim, a escrita transforma a coisa vista ou ouvida em “forças

e em sangue”.

Em se tratando da “correspondência”, a segunda forma para a designação

da “etopoiética”, e a qual é a que mais nos interessa nesse estudo, Foucault

argumenta que a mesma refere-se aos cadernos de notas, que, em si mesmos,

constituem exercícios de escrita pessoal. A missiva, texto por definição destinado

a outrem, confere lugar ao exercício pessoal. Retoma a obra Cartas a Lucílio de

Sêneca, o qual declara que, ao escrevermos, fazemos a leitura dessa escrita da

mesma forma que, ao dizermos alguma coisa, ouvimos o que estamos a dizer.

Neste sentido, a carta quando enviada a um destinatário atua, em virtude do

próprio gesto da escrita sobre aquele que a recebe. Sêneca escreve a Lucílio no

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sentido de auxiliar o seu correspondente quanto a aconselhá-lo, consolá-lo etc, e

dessa maneira a carta constitui para o escritor um modo de se treinar.

Este treino refere-se ao mesmo exercido pelos soldados no manejo de

armas em tempo de paz. Seria uma maneira de preparar a si próprio para uma

situação semelhante à que passa o correspondente. A escrita ajuda o

destinatário, arma o escritor e os terceiros incumbidos de a ler. A correspondência

está além do adestramento de si próprio pela escrita, por intermédio dos

conselhos e opiniões que se dão ao outro, ela se constitui pela devida maneira de

cada um se manifestar a si próprio e aos outros. Neste sentido, a carta contribui

para que o escritor esteja “presente” àquele a quem a dirige. É uma presença

marcada não apenas pelas informações correntes sobre a sua vida, suas

atividades, sucessos e fracassos, mas também uma espécie de “presença

imediata e quase física” (FOUCAULT, 1992, p.150). Escrever seria então,

mostrar-se, dar-se a ver, fazer aparecer o rosto próprio junto ao outro. Dessa

maneira, a carta permite se mostrar e se ver por si próprio e pelo destinatário,

sendo uma forma de o remetente se oferecer ao seu olhar pelo que diz de si

mesmo. Assim, a carta proporciona um “face-a-face”. A reciprocidade da

correspondência estabelece o olhar e o exame.

Enquanto qualidade de exercício, labora no sentido de proporcionar uma

subjetivação do discurso verdadeiro, da sua assimilação e da sua elaboração

como um bem próprio e constitui ao mesmo tempo uma objetivação da alma. O

trabalho que a carta opera sobre o destinatário se configura da mesma maneira

ao escritor, pela própria carta que envia implicar numa introspecção, no sentido

de permitir uma abertura de si mesmo ao outro. Os primeiros desenvolvimentos

históricos da narrativa se si, segundo Foucault, devem ser buscados na

correspondência com outrem e da troca do serviço da alma.

Cartas de Cícero, destinadas aos familiares, trata da narrativa de si próprio

como sujeito de ação ou de deliberação com vista a uma possível ação

relativamente aos amigos e aos inimigos, aos acontecimentos felizes ou funestos.

Notícias de saúde fazem parte tradicionalmente da correspondência. Junto a isso

acontece também de as cartas reproduzirem o movimento que leva de um uma

impressão subjetiva a um exercício de pensamento. A carta, quando trata de

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doença ou sofrimento, servirá de alívio tanto para quem a escreve como para

quem a recebe.

Ao relatar temas relacionados ao cotidiano, Focault retoma os dizeres de

Sêneca, os quais também fazem parte da prática epistolar: “o seu valor advém

justamente do fato de que nada do que nele se passou poderia tê-lo desviado da

única coisa que para ele tem importância: ocupar-se de si mesmo”. (FOUCAULT,

1992, p.156). A escrita que remete ao cotidiano, Sêneca a vê como se fosse

passar em revista o seu dia, em que seria o exame de consciência, ou seja, um

exercício mental ligado à memorização. Tratava-se de se constituir como um

inspetor de si mesmo, de avaliar as faltas comuns e de reativar as regras de

comportamento que são necessárias estar sempre presentes no espírito. A

narrativa epistolar associada ao “eu” trata de se fazer coincidir o olhar do outro e

aquele que se volve para si próprio quando se aferem as ações do dia-a-dia às

regras de uma técnica de vida.

Escrever cartas, no sentido de uma libertação de impasses vivenciados

assemelha-se à confecção de um diário. As cartas de Graciliano Ramos, em certa

medida, podem ser comparadas com a escrita de um diário, pois nos blocos de

cartas há uma seqüência de datas como também de temas. Nesse sentido, torna-

se importante a reflexão do autor Roland Barthes (1988), o qual faz um

diagnóstico do Diário6, chamando-o de doença do Diário, levantando uma dúvida

constante e insolúvel sobre o valor daquilo que se escreve. Dentre as

considerações pontuadas por Barthes a respeito do gênero Diário, uma se

destaca, a qual seria o prazer que se experimenta com o ato de escrever a

anotação diária, pois sendo uma tarefa simples e fácil, não é preciso sofrer para

encontrar o que dizer: o material é já matéria bruta.

Um aspecto que se distingue em sua reflexão, ou seja, uma diferença que

podemos lançar em relação a escrever cartas e escrever um diário, diz respeito à

exposição não intencional do “eu” para o diário, enquanto que para a escrita de

cartas, não há saída para que o “eu” não apareça. Escreve-se para alguém de

maneira a se expressar, a se mostrar.

6 Iremos manter o termo “Diário” com letra maiúscula, por assim o fazer Roland Barthes.

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O estudo de Barthes seria o esboço de uma deliberação pessoal, destinada

a permitir uma discussão prática, isto é, o questionamento da publicação do

Diário. Tornar públicos os escritos pessoais, ou será que se escreve um Diário já

pensando em sua publicação? Apoiando-se em Kafka, o qual vê o Diário como

uma maneira de encontrar a salvação ou de extirpar a ansiedade, aponta quatro

motivos que justificam um Diário íntimo como obra literária: o primeiro seria

poético: oferecer um texto colorido com uma individualidade da escritura, com o

estilo próprio do autor. O segundo, chamado de histórico, por espalhar em poeira

– dia a dia - marcas de uma época, confundindo todos os valores, da informação

maior ao pormenor de costumes. O terceiro seria utópico: o autor se constituindo

como objeto de desejo. O quarto motivo seria o amoroso, por constituir o diário

em oficina de frases. Uma fidelidade de desígnio que muito se assemelha à

paixão. Ainda tratando do aspecto utópico de publicação do diário, pode-se

considerar que somos tentados a querer conhecer a intimidade do autor que nos

agrada, ou seja, gostar de conhecer a distribuição cotidiana do tempo desse

autor, dos seus gostos dentre outros, podendo fazer com que o leitor prefira a

pessoa do escritor à sua obra e dessa forma lançar-se avidamente sobre o seu

diário e desleixar os seus livros. Essa consideração se resumiria a passar do

escritor à pessoa e vice-versa, como também provar que o autor vale mais do que

aquilo que ele escreve nos livros. Isso seria utópico porque nunca se dá cabo do

imaginário.

Finalizando seu estudo, Barthes esclarece que não há um estatuto literário

do Diário, e sim uma facilidade e obsolência, não sendo mais do que o limbo do

Texto7, com a sua forma “inconstituída”, “inevoluída” e “imatura”, mas é ao mesmo

tempo um retalho verdadeiro desse Texto, porque dele comporta o “tormento

essencial”. Esse tormento reside na afirmação de que a literatura é sem provas,

não podendo provar o que diz. Pode–se salvar o Diário com a condição única de

trabalhá-lo até a morte, até ao ponto extremo da fadiga, como um Texto mais ou

menos impossível. Um trabalho tão bem redigido e explorado que assim feito já

não se pareça mais nada com um Diário.

7 Iremos manter o termo “Texto” com letra maiúscula por assim fazer o autor.

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A semelhança que notamos entre as cartas e o Diário deve-se ao fato de

que nas cartas há também características da tensão entre ficção e não ficção, do

ato de escrever coisas do cotidiano ou dos acontecimentos do momento, os quais

a pessoa que escreve está vivenciando. Além de poder expressar seus

posicionamentos e impressões sobre acontecimentos específicos.

Quanto à relação entre a vida e a obra do autor, convém esclarecer que

focalizamos esse aspecto com a reflexão da crítica biográfica contemporânea, a

qual considera a obra como sendo um discurso construído, e a vida do autor não

como um reflexo na obra, mas como o sujeito que a constrói. Entende-se a

relação entre vida e obra do autor no sentido de marcar a construção dessas

cartas com um olhar em torno da crítica cultural, isto é, sob a ótica da escrita

dessas cartas como linguagem. Para isso, torna-se importante uma breve

discussão sobre crítica biográfica.

Para Eneida de Souza (2002) a crítica biográfica, por ter uma natureza

compósita que, englobando a relação entre obra e autor, possibilita a

interpretação da literatura além de seus limites intrínsecos, por meio da

construção de pontes metafóricas entre o fato e a ficção.

A crítica biográfica, ao escolher tanto a produção ficcional do texto literário,

quanto a produção documental do autor, como correspondência, depoimentos,

ensaios e crítica, provoca um deslocamento do lugar exclusivo da literatura como

corpus de análise, ampliando assim o leque das relações culturais. A abrangência

assumida pela literatura possibilita maior abertura textual culminando numa

proliferação de práticas discursivas concebidas como sendo extrínsecas à

literatura, tais como a cultura de massa, as biografias, os acontecimentos do

cotidiano, dentre outras, o que independe do critério de valor exclusivista e

fechado assumido pela crítica literária mais tradicional.

Dentre os pontos apresentados pela autora em relação às particularidades

da crítica biográfica, destacamos alguns deles, por estarem mais próximos do

nosso estudo pelo fato de enfatizarem que a análise no campo biográfico se dá

pela construção da linguagem, e não apenas pela vida do autor em si. Um desses

pontos trata da construção canônica do escritor, através de um exame dos rituais

de consagração de sua imagem, dos protocolos de inserção cultural na vida

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literária de sua época e das providências relativas à publicação, divulgação e

estudo de sua obra.

A autora exemplifica essa particularidade com a obra de Maria Helena

Werneck O Homem Encadernado, na qual a figura canônica de Machado de Assis

é analisada por suas biografias, considerando-se os fatores que contribuem para

a idealização ou distorção imaginária do autor. A ensaísta Werneck elege o

Machado de Assis retratado por Lúcia Miguel Pereira, a qual reconhece graus de

semelhança com os princípios que regem a biografia contemporânea pela fusão

do gênero romanesco à história de vida e sem atribuir maior peso ao registro do

fato. A crítica biográfica contemporânea tem sua importância por atentar para a

escuta dos pequenos e significantes momentos vivenciados pelo escritor, mas

sem se deixar seduzir pela tentação de esquecer a obra e dirigir a atenção

apenas à vida do sujeito que escreve.

Ressalta-se que a forma de pensar a vida do autor se configura, em

especial, no sentido de a vida do autor ser vista como um recorte do contexto e/ou

lugar de produção e não como a obra sendo um reflexo da vida. Analisar o ato da

escrita como uma narração ou uma construção de linguagem, e não,

simplesmente, acreditar nos escritos das cartas como sendo um registro

verdadeiro e fiel, mas sim como esse registro enquanto um discurso construído

pode vir a ser uma contribuição preciosa para uma época numa temática política,

social e literária, dentre outras.

A linguagem ou o estilo de Graciliano Ramos se revela constante até

mesmo em seus escritos íntimos. Percebe-se que tanto nas crônicas que são por

si só um escrito público, portanto coletivo, quanto nas cartas que são um escrito

privado até ter sido publicado, o autor mantém seu estilo. Uma linguagem não

apenas enxuta, mas também composta de realismo, no sentido de o autor

preocupar-se e abordar com freqüência as questões da realidade por ele

vivenciada. Não que isso acarrete de lermos a dura realidade dos fatos, mas

como o autor demonstra sua queda por uma literatura que trabalha arduamente

fatos constituídos com sua experiência e baseados em sua realidade que supera

o local alcançando debates universais. Antonio Candido escreveu dois artigos a

respeito da linguagem de Graciliano Ramos.

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Em seu artigo de 1972 declara que a narrativa de Graciliano Ramos inicia-

se em descrever os costumes e termina pela confissão das mais vividas emoções

pessoais. Integra assim o que o escritor observou ao seu modo singular de julgar

e ao mesmo tempo de sentir. Há no conjunto de sua obra uma característica que

seria a “unidade na diversidade”. Em relação ao modo de escrever, Ramos se

destacaria por dizer o essencial na concisão, preocupando-se com o indivíduo e

dessa forma seria esse o seu modo de encarar a realidade. Interessa-se pelos

fatos porque por trás dos fatos está o indivíduo, e assim vê a situação do homem

frente aos fatos. Candido marca uma qualidade fundamental em sua obra, a qual

se configura pelo respeito dado à observação e o amor à verdade. Como escritor,

era compelido por força invencível em registrar os fatos observados de acordo

com os princípios da verdade. A experiência é a condição da escrita para o autor

de Vidas Secas.

Enfatiza que em Ramos a necessidade de expressão se transfere, a certa

altura, do romance para a confissão, e não encontrando no romance

possibilidades que esgotassem a sua necessidade de expressão, partiu para o

testemunho narrando as suas memórias. Mesmo sendo confissão, Candido marca

que há a presença de ficção. Dessa forma, o crítico atesta que “ficção e confissão

constituem na obra de Graciliano Ramos pólos que ligou por uma ponte,

tornando-os contínuos e solidários”. (1972, p.57). Suas obras contêm aspectos de

“seca lucidez do estilo, o travo acre do temperamento, a coragem da exposição” e

essas características contribuem para um alcance duradouro de umas das visões

mais honestas que a literatura brasileira produziu do homem e da vida.

Candido (1978) destaca três aspectos distintos na obra o escritor. O

primeiro seria os romances escritos na primeira pessoa, os quais estariam

relacionados com a “pesquisa humana”: através da vida superficial descobriria o

lado interno do homem. Seria a descoberta do “homem subterrâneo”, ou seja, a

parte reprimida que se opõe ao padrão da vida social. É o impasse do indivíduo

com o social. Em meio aos aspectos externos da vida de cada um há uma busca

por si mesmo enquanto ser humano. Descobrir o subterrâneo é ir em busca do

interno, daquilo que está dentro de nós, encoberto pelo social. Em seus romances

Caetés, São Bernardo e Angústia há essa busca do autor pela descoberta do

indivíduo em meio ao mundo social. O segundo aspecto diz respeito aos

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romances escritos na terceira pessoa, em que há o destaque para a realidade, os

modos de ser e as condições de existência. A diferença para os primeiros

romances é que aqui não há uma preocupação intensa para a questão

psicológica. Candido exemplifica com além de Vidas Secas o livro de contos

Insônia, o qual também teria essa característica, embora enfatize Vidas Secas. O

terceiro e último aspecto encontrado no conjunto de sua obra seria o relacionado

a autobiografias: Infância e Memórias do Cárcere, tendo um peso da subjetividade

do autor que depara com a expressão mais pura, porém sem derrame de

fantasias.

Graciliano Ramos aborda os problemas da realidade e do caso humano

sem romantizá-los. Segundo Candido, há em toda a sua obra a correção da

escrita, a suprema expressividade da linguagem, a secura da visão de mundo e o

acentuado pessimismo. À medida que o tempo passa se aprofunda a

necessidade do autor em abastecer a imaginação com o arsenal da memória, a

ponto de abandonar de todo a ficção privilegiando as recordações. Houve em

Ramos uma “rotação de atitude literária”. Num determinado momento enfatizando

o invento; em outro o testemunho. O desejo de testemunhar sobre o homem,

tanto os personagens criados quanto ele próprio, presente nas memórias. Essa

seria a unidade de sua obra.

A abordagem da reflexão de Candido em seus dois semelhantes estudos

torna-se importante aqui, devido ser a linguagem do conjunto das obras de

Graciliano Ramos poder também ser conferida às obras do autor em suas

crônicas e em suas cartas. Ramos utiliza dos mesmos recursos da linguagem que

usou em seus romances e em suas memórias – uma linguagem enxuta que

expressa o essencial, assim como o seu pensamento “único” no sentido de

manter uma postura ética tanto nos gêneros apontados como em suas crônicas.

O que Candido discute e constata em Ficção e Confissão (1972) e em Os Bichos

do Subterrâneo (1978) se confirma nos gêneros aqui estudados.

Nas cartas, notamos como Graciliano Ramos, mesmo num escrito pessoal,

em que expõe a sua vida completamente vinculada à literatura, mantém certo

estilo e usa de uma linguagem muito parecida tanto nos romances como nas

crônicas. Permanece uma linguagem enxuta e um rigor vigiado, de acordo com as

normas cultas da Língua Portuguesa. Nota-se certo derrame sentimental, o qual

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seria uma exceção na obra do autor, apenas nas cartas escritas a Heloisa Ramos

quando se conhecem. No mais, há também uma distinção nos cumprimentos

iniciais e nas despedidas feitas pelo escritor ao fim das cartas. Sempre usa

palavras afetivas para fazê-las. Evidencia-se que as cartas que serão de nosso

maior interesse são aquelas que tratam de literatura e de política para que assim

possamos acompanhar o seu desenvolvimento numa escrita pessoal destinada a

um leitor específico até ser de domínio público com a sua publicação na década

de 1980.

As cartas nos permitem conhecer os primeiros passos de Ramos na

escrita. A tentativa de estabelecer-se no Rio de Janeiro, como foca depois como

revisor. Constantemente nos deparamos com a sua indignação em fazer uso de

“adulações” aos “pistolões” para conseguir uma melhor ocupação nos jornais. Há

também a ausência de dificuldades do autor em conviver com o que lhe é

diferente. Por exemplo, deixar a pacata Palmeira dos Índios e se adentrar na

grande sede do Governo na época, a cidade do Rio de Janeiro, vivendo em

pensões, as primeiras miseráveis, como o autor as descreve em suas cartas.

Em seus escritos íntimos um sentimento de perseverança torna-se

constante, uma vontade intensa em permanecer no Rio, embora a morte de

alguns dos seus irmãos o faz voltar a Palmeira dos Índios. Nos anos de 1920 e

1926 iniciou as cartas ao amigo Joaquim Pinto da Mota Lima Filho, o qual ficou no

Rio também trabalhando em jornais. Nesse período, além de trabalhar na loja do

pai – não gratuitamente tem um nome curioso Loja Sincera para um indivíduo que

preza pela verdade – colabora no jornal em parceria com um padre.

Dividimos o conjunto das cartas aqui estudadas em cinco itens que

perpassam o processo de escrita de sua obra, assim como os momentos difíceis

por que atravessa o país politicamente, mas em meio a isso, se concentra com

mais evidência em seus romances. O autor parece encontrar na escrita literária

uma forma de se refugiar do trâmite político para o qual não consegue ver

nenhuma possibilidade de solução.

3.1 - O menosprezo de Graciliano Ramos por si mesmo e por sua produção literária

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Constantemente está exposta nas cartas a declaração do autor em se

menosprezar, a si próprio como também a sua obra. Característica esta também

pontuada por Antonio Candido (1972 e 1978). Na carta de número 32 do ano de

1921, enviada ao amigo Mota Lima escreve:

sou talvez, no mundo o indivíduo que menos confiança tem em si mesmo (...) nunca me julguei folha de rosa ou de louro. Serei, quando muito, uma desgraçada folha de mandioca, como é razoável. (RAMOS, 1986, p. 76 - 77)

Esse sentimento de inferioridade é expresso também quando o amigo que

ficou no Rio de Janeiro lhe pede alguns artigos para serem publicados lá, mas

Ramos lhe declara:

Muito me diverti com a extravagante idéia que tiveste de pedir-me alguma coisa para ser publicada aí. Escrever, hoje, com a minha idade?8 Que pensas de mim? Eu sou um homem de ordem e sou uma cavalgadura, meu velho. Mas uma cavalgadura completa, sem presunção nenhuma. Vou dar-te uma prova de que vivo inteiramente alheio a essas coisas de escrivinhar. (idem, ibidem, p.77)

Após já ter composto muitas crônicas, três livros e estar se tornando mais

respeitado e conhecido: “o mais cacete”, nas palavras de um crítico, do qual

Graciliano Ramos não menciona o nome. Em carta de número 100, datada em 31

de março de 1937, declara à Heloísa: O troço que escrevi para o Observador era horrível, nunca pensei que me dessem vinte mil réis. Deram cem, mas não supus que pedissem outro. Pois a semana passada o Olímpio Guilherme9 telefonou umas quatro vezes aqui para a pensão, procurando-me. (RAMOS, 1986, p.194)

Em 1940, escreve ao filho Júnio, o qual preferiu ficar em Palmeira dos

Índios a contragosto do pai. Nessa carta, embora faça uma espécie de balanço de

sua produção, assim como o seu estado presente, não deixa de depreciá-los: Caetés é uma lástima, nem gosto de lembrar-me daquilo, e Angústia esgotou-se. Por enquanto não há esperança de nenhum outro. Nestes miseráveis tempos que atravessamos até os contos idiotas que eu fazia para o Jornal e para o Diário de Notícias foram escasseando e sumiram-se de todo. Tenho escrito uns horrores para uma revista vagabunda, mas essas misérias dão pouco trabalho e vendem-se a cem mil réis, exatamente o preço

8 O autor estava com 29 anos de idade no referido ano. 9 Olimpio Guilherme era diretor da Revista Acadêmica, a qual Graciliano Ramos havia colaborado em fins da década de 1930.

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dum conto. Uma desgraça, tudo uma desgraça. (RAMOS, 1986, p.205)

O trecho longo nos remete novamente ao autor sempre se menosprezar e

da mesma forma depreciar a sua obra. Pode-se notar que em meio ao seu

testemunho sobre sua produção literária comenta rapidamente que o momento

político, aí já em início da década de 1940, não estava nada fácil. Refere-se a

uma revista que considera “vagabunda”, a qual pode ser a Cultura Política; agora,

como está escrevendo uma carta, aí sim expressa o seu real ponto de vista

perante o veículo de comunicação em que o autor colaborou nesse período, visto

no capítulo que analisamos Viventes das Alagoas, destacado por incertezas,

indefinições em vários setores brasileiros.

Em relação à sua modéstia, fato comum em seus escritos, nota-se que ora

aparece como modéstia mesmo: o autor se considerar miúdo, pequeno,

considerar também sua obra “uma porcaria”, como escreve: “não presta para

nada” ora refere-se à modéstia como sendo falsa, embora sejam poucos os

momentos que assim declara: (...)”quatrocentas páginas que tenho na gaveta,

excelente, é claro, embora eu diga, por modéstia, que são ruins”. (RAMOS, 1986,

p.109). O autor adota uma postura de falsa modéstia quando assume que o seu

trabalho escrito está ruim. A sua não exposição em relevar a sua obra pode se

configurar devido a ser esta uma saída encontrada para se defender da crítica.

Esse sentimento também pode ser conferido quando se tem certa abertura para

desvendar a si mesmo em se tratando de uma escrita que, entremeada por

autobiografia e memória, lhe permite isso.

3.2 – A predominância da produção literária em detrimento do político

Destaca-se aqui o modo de Graciliano Ramos lidar com a política. Ao

descrever o momento político usa do recurso da concisão crítica, e se concentra

em expor com mais minúcia o processo da sua produção literária. A escrita das

cartas parece ser uma solução encontrada pelo autor para os impasses não

resolvidos no campo político. Mas nem por isso, permite que lhe passem

despercebidos, “ignorá-los” evidencia criticá-los. Para isso, como uma forma de

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alívio ou mesmo de deliberação barthesiana, o autor de Angústia utiliza a escrita

como um recurso para esvair-se dos problemas brasileiros de teor econômico e

portanto político insolucionáveis.

Na carta de número 51(10 de julho de 1915) enviada à irmã Leonor

Ramos10 escreve: “o perigo passou, se é que houve perigo (...) o que sei é que

preciso dormir um pouco para continuar os meus Caetés”. (RAMOS, 1986, p.116).

Há mais de cinco cartas em que o autor discorre sobre a escrita dessa obra.

O processo de constituição de uma obra literária, principalmente, para

Graciliano Ramos, que como sabemos, preocupou-se muito com a intensa

revisão da obra antes de enviá-la ao editor, é recorrente em suas cartas. Por elas

permitirem uma exposição mais alargada do “eu”, apresentam os detalhes de sua

inquietação perante a composição do seu fazer literário. Na carta de número 55,

escreve a Heloísa que está consertando as “cercas de S.Bernardo, estiro o arame

farpado, substituo os grampos velhos por outros novos e, à noite, depois do rádio,

leio a Gazeta de Costa Brito”. (RAMOS, 1986, p.121).

Em meio ao processo de escrita dos seus romances, o Brasil estava

passando por um momento de turbulências com a entrada do Governo Vargas e

ao mesmo tempo com sua política ditatorial, o que gerou dúvidas e incertezas em

vários setores brasileiros. Nas cartas desse período, nota-se que, embora o autor

pudesse parecer alheio aos acontecimentos, escrevendo, por exemplo: “se a

gangorra virar, deixo isto e vou plantar mamona”. (RAMOS, 1986, p.116), “essa

coisa de política é bobagem, e eu não entendo disso”. (idem, ibidem, p.117), “a

desorganização em que aí está o município presentemente não me preocupa”.

(idem, ibidem, p.119), “vou aguardar o resultado da luta no Sul para depois

orientar-me”. (idem, ibidem, p.121), há as colocações do autor perante o processo

da escrita dos seus romances, que são evidenciadas pela intensa revisão dos

seus escritos, como também o trabalho árduo e sério em compor uma obra

literária. Na carta de número 57, o autor declara: (...) “creio que a encrenca do Sul

10O autor declara em carta de número 27 que prefere escrever a Leonor sobre suas produções, pois não o pode fazer com a mãe, que não entende nada disso, nem com o pai, homem de negócios, muito positivo. (RAMOS, 1986, p.60).

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não durará dois ou três anos (...) se as coisas continuarem como vão, precisarei

cavar a vida em outro estado”. (RAMOS, 1986, p.122).

Em carta de número 58 (1932), argumenta que continua a “consertar as

cercas de S.Bernardo” e que não se têm notícias certas da revolução:

o rádio desapareceu, os jornais não dizem nada, até os boatos são escassos. De sorte que estamos como presos, ignorando tudo o que se passa além dos montes que nos cercam. (RAMOS, 1986, p.123).

Enfatizando a revisão incansável e a maneira de suprimir, ou seja, da

concisão contrária ao derrame fantasioso do romantismo, escreve a Heloísa: “vai

sair uma obra-prima em língua de sertanejo, cheia de termos descabelados. O

pior é que de cada vez que leio aquilo corto um pedaço. Suponho que acabarei

cortando tudo”. (RAMOS, 1986, p.125)

Mais uma vez, no trecho abaixo, percebe-se a sua dedicação aos seus

romances, como segue: (...) “a minha atenção está virada para os meus bonecos”.

(idem, ibidem, p.135). Enquanto o cenário político está efervescente no País,

Ramos se concentra com mais veemência em sua produção. Em carta de número

69 (novembro de 1932), enviada a Heloísa, declara “os tempos estão bicudos”.

(idem, ibidem, p.137)

Em alguns momentos, é mais enfático para descrever a política brasileira,

mas tenta se afastar de acontecimentos que lhe fogem à ordem. Um indivíduo

que preza por ações que estejam de acordo com a ética e com a verdade

demonstra sua insatisfação perante a indefinição por que passa o Brasil: (...) “não

tenho nenhum desejo de continuar numa repartição11 que se desorganiza, não

obstante os esforços que a gente faz para consertar a trapalhada”. (idem, ibidem,

p.144). Neste sentido, comenta sobre a política no Brasil denominando-a de

“esculhambação” e, novamente se inclina para a sua literatura, agora Angústia: Escrevi umas seis ou oito folhas depois de sua saída, quase dois capítulos horrivelmente cacetes. Zéauto12 e Rachel, que me visitaram domingo, acharam tudo muito bom, mas tenho a certeza

11 Graciliano Ramos trabalha, nesse período, como inspetor de ensino na repartição pública do estado de Alagoas. 12 Refere-se ao poeta José Auto de Oliveira

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de que a história cada vez mais está ficando indigesta13. (RAMOS, 1986, p.145)

Enquanto nas crônicas, Ramos, quando nota que a política brasileira não

apresenta soluções para os problemas que estão relacionados e dependentes

dela, expõe toda a sua desilusão usando o recurso ora do humor ora da ironia

para revelar a questão. Nas cartas, ao descrever com certo “desprezo” a questão

política contemporânea ao autor e também notando a não possibilidade de

solução para tal problema, se inclina a argumentar a respeito de sua produção

literária. Na citação a seguir, carta de número 77, enviada a Heloísa, datada em

abril de 1935, torna-se nítida a nossa reflexão: O Estado está pegando fogo, o Brasil se esculhamba, o mundo vai para uma guerra dos mil diabos, muito pior que a de1914 – e eu só penso nos romances que poderão sair dessa fornalha em que vamos entrar. Em 1914-1918 morreram uns dez ou doze milhões de pessoas. Agora morrerá muito mais gente (...) pode ser que a mortandade dê assunto para uns dois ou três romances. (RAMOS, 1986, p.146)

Dois aspectos se destacam aqui. Um refere-se a uma característica do

autor em trabalhar com fatos da realidade e, de certa forma, vivenciados por ele;

o outro aspecto diz respeito à questão do autor se inclinar para a literatura num

instante em que percebe que nada há para se fazer no momento pelo qual passa

o País. A maneira encontrada pelo autor para desfazer o nó é escrevendo seus

romances.

Pode-se associar, com isso, a reflexão de Michel Foucault (1992), o qual

pontua que a escrita de si atenua os perigos da solidão da mesma forma que o

fato de escrever desempenha o papel de um companheiro, dessa forma, age

como uma maneira de dissipar o inimigo. Digamos que o ato de escrever

contribuísse para o alívio da alma.

Essa maneira de alívio que se assemelha a uma forma de libertação é

também vista por Roland Barthes (1988), quando declara que fez uso do Diário

em três situações, sendo duas delas mais relacionadas no sentido de

13 Ambas as citações foram retiradas da carta de número 75, à Heloísa, datada de março de 1935.

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experimentação do vivido, e uma mais longa e importante quando se deu a

doença da mãe, na tentativa de exprimir a angústia através da escritura.

Graciliano Ramos, na citação adiante, em carta de número 80, enviada à

Heloísa em 1935, escreve que “a encrenca política está num beco sem saída:

ninguém sabe como esta porcaria vai acabar. É melhor pensar em outra coisa”.

(RAMOS, 1986, p. 151). Em carta de número de 82 destinada também à esposa,

evidencia que “a encrenca política ainda continua sem solução”. (RAMOS, 1986,

p.153)

Menciona um projeto para novo romance “talvez saiam dois ao mesmo

tempo”. (idem, ibidem, p.154), no instante em que declara que ignora “a guerra

dos pretos, a política, a trapalhada revolucionária e agora reacionária que há por

aí além”. (idem, ibidem, p.154). O tema das cartas se concentra mais em sua

literatura e menos na política.

Observa-se que as cartas escritas depois da saída da prisão, no ano de

1937, à Heloísa, há menção sobre política muito discreta, apenas em duas cartas,

como veremos abaixo. Portanto, continua sua dedicação às composições

literárias. O curioso é que pelo viés de uma escrita íntima, nesse caso, destinada

à esposa, com quem o autor discutia sobre variados assuntos, poderíamos

pensar que nesse ano, escreveria a respeito dos seus desagrados políticos, mas

notamos que o imprevisto se insurge daí. Ramos escreve à esposa sobre rodas

literárias, sobre o encontro com Oswald de Andrade e outros literatos paulistas.

Dessa forma, torna-se mais conhecido em outras regiões do Brasil, mas é nítida a

sua vigilância perante a política ditatorial. Podemos inferir que o autor age dessa

maneira para evitar qualquer transtorno com o governo que o aprisionou no ano

anterior, no sentido de medo mesmo de voltar para a prisão.

Nas cartas de número 103 e 104, ambas de 1937, são as únicas cartas que

autor faz referência à crise política. Heloísa deseja ir para o Rio de Janeiro com

as crianças para que possam ficar juntos, Ramos titubeia por causa da indefinição

política:

Há também essa confusão política. Por que não demorarmos um pouco até que se endireite a encrenca?(...) se quiser vir, espere uns dias, até que se regularize essa coisa de política...a

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trapalhada aqui está horrível, não se sabe o que vai acontecer... (RAMOS, 1986, p.201-202)

As cartas analisadas nesse item, embora constituídas entre os anos de

1915 e 1937, retratam, sobretudo, a década de 1930. Precisamente, o período

assinala acontecimentos relacionados ao Governo Vargas. A carta de número 51,

única do ano de 1915, destaca o período ainda dominado pelos poderes

oligárquicos, tão combatidos por Ramos. As demais se iniciam em 1932, já com

movimento desse ano, intitulado “Revolução Constitucionalista de 1932”, em que

o estado de São Paulo se sentindo prejudicado e marginalizado pelo Governo

Federal declarou guerra civil, causada pela decisão do Presidente em nomear o

interventor nordestino, João Alberto, o qual não agüentando as pressões do

estado e do interior do governo se demitiu do cargo.

A elite de São Paulo defendia a constitucionalização do País, a partir dos

princípios da democracia liberal, sendo assim, exigiam um interventor que fosse

paulista e civil. Tinham como plano realizar um ataque contra a capital da

República, colocando o governo federal na situação de ter que negociar. Porém o

plano não foi concretizado. São Paulo ficou praticamente sozinho contando,

sobretudo, com a força pública e uma intensa mobilização popular para enfrentar

as forças federais, nenhum outro estado o apoiou. O governo foi vitorioso em

partes, pois percebeu a impossibilidade de ignorar a elite paulista. Em 1933,

Vargas nomeou um interventor civil paulista, Armando Salles Oliveira, vinculado

ao P.D. (Partido Democrático). (FAUSTO, 1995).

Em carta de número 53, o autor despreocupa o pai afirmando que a

denúncia que lhe fizeram enquanto prefeito de Palmeira dos Índios não tem

fundamento. Em nota de rodapé, há uma explicação a respeito. A denúncia

refere-se aos vitoriosos da revolução de 1930 que perseguiam os desafetos

políticos vencidos através da aplicação de Decreto Federal 19.811, de março de

1931, pelas Juntas Estaduais de sanções. Procuradores Especiais abriam os

processos a partir de denúncias e, Graciliano Ramos foi acusado de desviar uma

verba de valor elevado 1.020$000 quando prefeito. Portanto, a Junta se reuniu e

por considerar improcedente a denúncia e decidiram arquivar o processo.

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Isto posto confirma-se o caráter ético do autor de Angústia. Graciliano

Ramos, mesmo numa carta pessoal, enviada ao pai, expõe o caso e nas palavras

expressas por ele, podemos perceber o tom de tranqüilidade do autor. Dessa

forma, nos passa a idéia de não dever nada a ninguém, por não ter feito nada que

pudesse incriminá-lo.

Na mesma carta, critica as nomeações feitas pelas autoridades:

As nomeações de delegados de polícia não valem nada, só servem para alimentar a vaidade de alguns coronéis que estavam encostados há vinte anos e que agora infelizmente surgiram. (RAMOS, 1986, p.119)

Infere-se que a política governamental apenas muda de nome. Os coronéis

em 1931, ano da carta, já estavam em declínio, e Graciliano Ramos os denomina

no novo governo, o qual surgiu, principalmente, em prol de um governo mais

democrático com o intuito ou a promessa de eliminar o coronelismo. Aparecem na

carta apenas com uma alteração de nomenclatura: agora são os “interventores”

ou os “delegados de polícia”, entre outros.

Insistindo numa política séria, impõe que o Brasil precisa de (...) um plano de trabalho, uma orientação segura, coisa que só será obtida por gente que conheça as necessidades e as possibilidades do Estado. Isso não se conseguirá nunca nos mexericos das repartições, necessita entendimento com os homens que produzem. (RAMOS, 1986, p.119)

3.3 – Literatura e mercado de trabalho

Nas cartas, percebe-se, na pessoa de Graciliano Ramos, a dificuldade

financeira de um escritor brasileiro viver do seu próprio ofício de literato. Nas

crônicas, verificamos as afirmações do autor sobre isso. Nas cartas, notamos

mais de perto a sua própria experiência difícil e quase impossível em dedicar-se

ao trabalho literário no Brasil. País em que, pelo menos nas primeiras décadas do

século XX, não existia o profissional literário, ou seja, o literato como profissão

reconhecida.

Na carta de número 57 (agosto de 1932) enviada à Heloísa, escreve: (...)

“tenha paciência: apesar da quebradeira, sempre lhe arranjaria alguma coisa (...)

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é impossível conseguir mais, que estou cheio de embaraços por todos os lados”.

(RAMOS, 1986, p.122)

Em 1934, carta de número 71, pede ao pai que lhe envie o aluguel da casa

em Pinga-Fogo. Nessa data, o autor já havia publicado Caetés. Novamente,

expõe a sua dificuldade financeira, como segue: Peço-lhe que receba os cobres do inquilino e m’os remeta com alguma brevidade, se lhe for possível, pois tenho várias contas a pagar, especialmente de médicos e farmácias, que aqui em casa este ano foi uma carga de doenças dos mil diabos. (RAMOS, 1986, p.139).

Lamenta que além da falta de recursos financeiros há também a falta de

tempo para se dedicar exclusivamente à literatura: (...) se tivesse dois meses livres, iria passá-los aí no Pinga-Fogo, para escrever um livro, trabalho que ando fazendo com dificuldade horrível. Infelizmente a trapalhada burocrática e esta infame politicagem não deixam ninguém em sossego. (RAMOS, 1986, p.139)

Compondo Angústia, escreve à esposa (carta de número 73, 1935) que

Rachel de Queiroz considera o livro muito bom e o incentiva a terminá-lo. Mas

como o autor tem o hábito de considerar as suas coisas ruins, não deixa de assim

o fazer com esta obra apenas iniciada: (...) “tenho pronta 95 folhas e vamos ver se

é possível concluir agora esta porcaria”. (RAMOS, 1986, p. 141)

Em carta de número 80 enviada a Heloísa, comenta da dificuldade de

alguns escritores brasileiros se arranjarem em seus próprios estados de

nascimento. Argumenta que José Lins do Rego não volta do Rio de Janeiro, José

Auto e Rachel de Queirós foram para o Recife. A partir de então, conclui que “os

outros literatos dedicam-se a trabalhos políticos ou burocráticos, não se percebe a

cara de nenhum. Uma coisa chatíssima”. (RAMOS, 1986, p.151).

Enquanto Graciliano Ramos escreve seus romances, está ao mesmo

tempo prestando algum serviço público. Na constituição do romance Angústia, em

1935, em carta de número 82, declara a Heloísa: “não pude escrever nada. Na

repartição encontrei, com um expediente enorme, que encoivarei depressa, uma

carta do Zé Lins”. (p.153). Afirma também sobre o interesse da José Olympio em

editar três mil exemplares e que o autor informa que ainda não o terminou.

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Em carta de número 83, destinada também a Heloísa, declara que José

Olympio tem pressa em querer publicar o romance Angústia, mas ele, com muito

trabalho na repartição, demora em terminá-lo. Datada de dezembro de 1935,

Ramos já havia publicado seus dois primeiros romances Caetés e São Bernardo,

trabalha na Repartição em Maceió e ainda assim precisa do dinheiro do aluguel

dos inquilinos, como segue: (...) uma noite destas seu Costa, o homem que mora na casa do Quadro, deu-me duzentos mil réis, aluguel de novembro e dezembro(...)essa pecúnia chegou exatamente na hora em que era necessária. (RAMOS, 1986, p.154)

No ano de 1937, tendo o romance Angústia em circulação, continua a

escrever artigos para o Observador Econômico e Financeiro14 como também para

a Revista Acadêmica. Ainda assim, faz um lamento a Heloísa sobre as suas

precárias condições financeiras: (...) Por enquanto eu vou vivendo de artigos e do que o Murilo15 me tem arranjado. Aquele negócio da Revista está sendo pago aos pedaços. Não lhe posso mandar nada. Fique com o que apurar nessa venda de macacos16. Preciso roupa, o dinheiro da Revista não chega para tudo. Necessito arranjar trabalho (...) vou cavar os cobres com um artigo enorme sobre a economia no romance. (RAMOS, 1986, p.194).

3.4 – Realidade vivenciada transformada em literatura

Na carta de número 84 aconselha à esposa a escrever um livro, pois a

carta que ela lhe enviou havia condição para tal. O importante no conselho do

autor é a sua colocação pelo fator originalidade: “não imite ninguém, faça coisa sua”.

(p.155). Junto a isso, escreve a gramática não tem importância e aprende-se em pouco tempo (...) a velha George Sand começou a escrever sem gramática. E os nossos escritores atuais, Zé Lins e Jorge a frente, ignoram isso

14 Revista especializada, publicada no Rio de Janeiro sob a direção de Olímpio Guilherme, na qual havia a colaboração de importantes escritores. 15 Refere-se ao jornalista Murilo Miranda. Editor da Revista Acadêmica. 16 Refere-se à venda de alguns animais que lhe pertenciam, a qual estava sendo negociada por Heloísa.

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completamente. Veja se encontra assunto para um romance. (RAMOS, 1986, p. 155)

Há a presença de dois aspectos nesse trecho que são muito respeitados

pelo escritor em sua produção literária. Um deles é o fator originalidade, em tratar

questões do cotidiano e da realidade. O outro diz respeito à sua vigilância com a

ortografia, a revisão e as regras gramaticais como um todo em suas obras.

Pensamos por exemplo em Vidas Secas e São Bernardo, mesmo seus

personagens sendo matutos, a linguagem construída por Ramos não deixa de

apresentar um teor formal, no sentido de se preocupar com uma linguagem clara

e bem elaborada de acordo com as normas formais da Língua Portuguesa.

Em carta de número 85 continua a incentivar Heloísa a escrever e declara:

“estude a gente miúda, deixe a burguesia, que já aproveitei e não é interessante”.

(RAMOS, 1986, p.156). Constata-se que Graciliano Ramos traz para os seus

romances como também para suas crônicas essa “gente miúda”. Aconselha

Heloísa a comprar uma caneta, folhas de papel e entender-se, por exemplo, com

a lavadeira ou com pessoas desse gênero. Segundo o autor, ele não utiliza a

lavadeira em suas produções porque não as conhece bem. Enfatiza-se seu

interesse por privilegiar, em sua literatura, matérias que sejam vivenciadas por

ele, ou seja, escrever sobre experiências próprias, porém, é sabido, que não é tão

simples assim a construção de uma obra literária. O próprio autor, em suas

cartas, nos transmite a dificuldade em transformar essa experiência numa obra

literária. Na mesma carta, declara: “continuo a substituir e a cortar palavras do

‘Angústia’”. (idem, ibidem, p.157). Nota-se o trabalho árduo e ao mesmo tempo

paciente para chegar ao resultado final de uma obra, pelo menos, uma obra que

se deseja tornar clássica.

O autor persiste com a idéia de que seja necessária uma intensa dedicação

ao afazeres literários: (...) “o que é preciso é ter muita coragem e muita paciência,

trabalhar seis meses, um ano, várias horas por dia, sem grandes esperanças”.

(RAMOS, 1986, p.161)

Escreve a Heloísa que teve uma idéia no banheiro para um livro e logo que

saiu do banheiro tomou nota para não esquecê-la. Vieram-lhe nomes dos

capítulos, os quais seriam “Sombras”, “O Inferno”, “José”, “As Almas”, “Letras”,

“Meu Avô”, “Emília”, “Os Astrônomos”, “Caveira”, “Fernando” e “Samuel Smiles”.

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Com isso, inferimos que foi dessa idéia que o autor compôs seu primeiro livro de

memórias, Infância.

Em 1949 escreve à sua irmã Marili Ramos, a qual havia publicado um

conto e pediu a sua opinião. Neste instante, o autor, mais uma vez, descreve o

seu próprio modo de confeccionar uma obra de literatura, privilegiando a

experiência vivida como material para sua produção. Só conseguimos deitar no papel os nossos sentimentos, a nossa vida. Arte é sangue, é carne. Além disso na há nada. As nossas personagens são pedaços de nós mesmos, só podemos expor o que somos (...) Arte é isso. A técnica é necessária, é claro. Mas se lhe falta técnica, seja ao menos sincera. Diga o que é, mostre o que é (...) a literatura é impossível: isto não é música, não temos gênios de dez anos (...) revele-se toda. A sua personagem deve ser você mesma. (RAMOS, 1986, p.213)

Neste trecho, podemos resumir um pouco do fazer literário de Ramos, o

qual se mostra favorável em expor que a literatura precisa conter a experiência de

vida, como também o exercício doloroso para se chegar à obra acabada, e ao

mesmo tempo, inacabada quando aberta ao leitor.

De uma forma geral, pode-se ler as crônicas e as cartas do autor como

memória. Em Memórias do Cárcere e Infância, escreve memórias tendo

consciência de que estas são mesmo memorialísticas; já as cartas e crônicas

podem ser consideradas memórias, de um modo de ser literário, político e

pessoal, para nós leitores e intérpretes desses gêneros em Ramos. É um

testemunho de um período histórico e literário nas primeiras décadas do século

XX, há aspectos biográficos assim como a exposição do eu desse escritor tão

avesso a promoção pessoal.

Antonio Candido (1999) argumenta que o ideal é que a biografia funcione

de modo válido como conhecimento e interpretação, cabendo indagar se, uma

vez estabelecido o equilíbrio ideal entre os dois perigos, o estudo de uma pessoa

eminente possa servir, ao mesmo tempo, para esclarecer a sua natureza e a

sociedade em que essa pessoa viveu. A nosso ver, Graciliano Ramos responde

atentamente pelo seu tempo. Com seus posicionamentos há a possibilidade de

acompanharmos a sociedade nos campos políticos, sociais e literários através do

seu olhar.

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O curioso é que mesmo tentando se esconder, por não admirar expor-se, o

que se nota é certa transparência de características que lhe são comuns e que

formam determinada “unidade” do seu constituir-se no mundo enquanto um

observador crítico atento aos acontecimentos que o circundaram. Acompanhando

o processo de seu posicionamento em variados âmbitos da sociedade, o autor

demonstrou uma inclinação constante para a questão humana, com o

distanciamento necessário para atuar criticamente na sociedade com os meios

que lhe foram propícios para sua exposição, como os jornais, revistas, cartas,

romances e contos.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Através das crônicas e das cartas, as concepções de Graciliano Ramos, no

âmbito das questões políticas, das tradições, dos costumes, das questões sociais

e literárias, como também do seu próprio fazer literário, evidencia-se a postura do

autor consciente da participação do literato em atuar criticamente como mediador

perante os acontecimentos vivenciados por ele em sua época. Procuramos

acompanhar o processo de sua formação nesses aspectos e notamos como o

autor esteve imbricado nas questões do seu tempo sempre observando os

acontecimentos e praticando uma escrita crítica na transformação dessa

realidade.

Unir o que foi destinado ao leitor de jornal, no caso das crônicas, com o

que se destinou às pessoas íntimas como a escrita dessas cartas torna-se um

estudo valioso devido às observações e posturas do autor poderem ser

aproximadas. Sendo cartas ou crônicas, continuamos a visualizar o mesmo

Graciliano Ramos, tanto em um gênero como no outro. Seu estilo conciso de

escrever, sua posição ética, estão presentes em ambos, assim como sua

inclinação por uma literatura realista. A diferença notada com mais ênfase é a

exposição nítida do “eu” do autor nas cartas.

Como escritor e pensador crítico dos problemas brasileiros, Ramos utiliza,

em suas crônicas, o recurso da ironia, para demonstrar a insatisfação perante

uma política não eficiente e pouco séria, em especial, nas décadas de 1930 e

1940, marcadas pelo Governo Vargas e a vigilância militar, assim como um

período de insegurança para a nossa intelligentsia. Presenciando a transição do

regime oligárquico para o regime democrático, Ramos percebeu que não houve

mudança real no plano das ações.

Salientamos, no primeiro capítulo, que o autor, em sua escrita, denunciou

um país que não apresentava condições favoráveis para um literato sobreviver,

dado o não reconhecimento financeiro do seu trabalho. Constantemente,

apontava as deficiências dos críticos literários da época: em parte porque, às

vezes, nem liam as obras, e, em parte, pelo fato de os laços de amizade entre

autores e críticos impedirem uma análise bem feita das obras. Além disso,

combateu a literatura nacional por não se ater ao seu principal material literário

que são a nossa realidade e, consequentemente, as nossas singularidades.

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No segundo capítulo, analisamos a vertente regionalista das obras de

Graciliano Ramos, abordando a realidade problemática de determinadas regiões

brasileiras, em especial, o Nordeste, mas, ao tratar desse regional apontando os

seus agravantes impasses, criticou a falta de coerência num Governo que pregou,

em determinado período, uma unidade democrática. A abordagem das crônicas,

que, numa primeira leitura, poderia ser vista como uma escrita “solta”, ou seja,

sem ligação com o restante de sua obra, se torna mais significativa por alcançar

um patamar crítico frente ao regime político vigente, apresentando uma literatura

pertencente ao realismo crítico. Ramos não se intimidou em afirmar que

determinados problemas daquela região eram de ordem econômica.

Já em suas cartas, em vez do recurso da ironia, como se constata nas

crônicas diante da impossibilidade de solução dos problemas do país, o que se

nota é uma atenção voltada, em maior grau, para a construção dos seus

romances. Junto a isso, discutiu, o que também consta nas crônicas, a condição

do escritor daquele período no Brasil. Contudo, acompanhando o

desenvolvimento do seu cotidiano, conferimos os mesmos pontos de vista

percebidos em suas crônicas. Há um aspecto que se torna mais evidente nas

cartas, que é uma espécie de menosprezo por si mesmo e por sua produção

literária, o que podemos concluir que essa transparência se deve pela escrita de

cartas ser um gênero que permite maior abertura para falar da intimidade, e,

sendo assim, expor a si mesmo ao outro.

A linguagem de Graciliano Ramos se revela constante até mesmo em seus

escritos íntimos. Tanto nas crônicas que, são por si só um escrito público,

portanto coletivo, quanto nas cartas que são um escrito privado, até ter sido

publicado, o autor mantém seu estilo. Uma linguagem não apenas enxuta, mas

também composta de realismo, no sentido de o autor preocupar-se e abordar com

freqüência as questões da realidade sempre vivenciadas pela sua experiência, o

que reafirma sua preferência por uma literatura que lida arduamente com fatos

constituídos com a experiência do escritor. O título da dissertação se justifica por

visualizarmos essas características, como também os posicionamentos do autor

que se assemelham nesses textos. Além disso, Graciliano Ramos, através de sua

colaboração em veículos diversos, tais como: jornais, revistas, cartas, relatórios,

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entre outros, nos apresenta as várias facetas da escrita, a qual se configura,

embora diversificada, sempre de forma crítica.

Através das crônicas e das cartas, conhecemos os primeiros passos de

Graciliano Ramos na escrita. Sua tentativa em ingressar nos jornais do Rio de

Janeiro. Constantemente nos deparamos com a sua indignação em fazer uso de

“adulações” ou “apadrinhamentos” para se conseguir uma melhor ocupação nos

jornais. Nota-se ainda a ausência de dificuldades do autor em conviver com o que

lhe é diferente. Por exemplo, deixar a pacata Palmeira dos Índios e adentrar a

grande sede do Governo na época, a cidade do Rio de Janeiro, vivendo em

pensões, as primeiras miseráveis, como o autor as descreve em suas cartas.

Verifica-se também, principalmente, nas cartas, um sentimento de perseverança

em permanecer no Rio, o que foi interrompido por causa da morte de alguns dos

seus irmãos.

Graciliano Ramos, nesses escritos diversos, discorreu a respeito de temas

que se assemelham, por exemplo, da permanência dos costumes políticos

brasileiros em praticar o favoritismo e o clientelismo, presentes no regime

oligárquico, mas estendidos ao período governamental posterior, o qual

apresentava propostas democráticas. Ramos criticou a continuidade da tradição

política no Brasil em não ser séria, portanto, agindo de forma a privilegiar um

grupo de pessoas específico. Esse costume, destacado pelo autor, está presente

nos objetos analisados nos três capítulos.

Na obra Linhas Tortas, Graciliano Ramos usa da ironia e do humor para

discorrer sobre a impossibilidade de uma solução para a questão política. O que

não se resolve na realidade, o autor “soluciona” através de sua escrita irônica. Na

obra Viventes das Alagoas, relatando as dificuldades existentes no Nordeste,

denuncia, diretamente, que esses problemas ocorrem devido ao desprezo

político. Predomina certa desilusão do autor perante esses fatores, porém há uma

leve esperança de uma possível melhoria de situação em sua região.

Sempre crítico, argumenta sobre as necessidades emergentes no

Nordeste, como a pavimentação de estradas, construção de pontes e escolas.

Preocupa-se com o melhor acesso ao seu Estado, também demonstrando

importância à educação de qualidade. Os costumes nordestinos, como o jogo do

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bicho, a constituição do cangaço e de pessoas que lutam pela sobrevivência

como é o caso de Lampião, existem por causa do meio em que vivem e a

viabilização desses impasses deveria insurgir dos meios políticos.

Já nas Cartas, como uma forma de deliberação ou refúgio, pelo que não há

solução, economicamente, o autor deposita sua atenção no seu fazer literário, o

que, de certa forma, poderia parecer desprezo pela política, infere-se que, na

verdade, está fazendo uma crítica a respeito da indefinição por que passa o país.

Nos três capítulos traçamos a precária situação do escritor no Brasil.

Sendo difícil sobreviver apenas com a sua “profissão”. O literato brasileiro tem

que se garantir através de outros meios como o ingresso no funcionalismo

público, a colaboração em jornais e revistas, dentre outras funções, o que

acarreta a impossibilidade de uma dedicação exclusiva ao fazer literário.

Ainda sobre a literatura, Graciliano Ramos justifica a sua preferência por

uma produção literária de cunho realista, pois é a única que permite expor as

mazelas, os problemas reais de uma sociedade. Permite discutir, além disso, a

matéria literária a partir da sua experiência, pontuando o lado interno do homem,

os seus tormentos emocionais e sociais, com o seu olhar crítico de um profundo

observador.

Reitera-se que privilegia o seu interesse por uma literatura nacional. Não

que menospreze o estrangeiro. O seu descontentamento refere-se à importações,

como a presença do fado português na festa do carnaval brasileiro, a introdução

do futebol britânico, ainda os livros infantis importados de Portugal; sem nenhuma

associação com a nossa realidade. Especialmente, no capítulo 3 expõe a sua

árdua tarefa enquanto escritor, devido às infindas correções e revisões antes de

entregar a sua versão final.

O gênero crônicas, mesmo lidando com o “miúdo”, na descrição dos

acontecimentos do dia-a-dia permite refletir esses fatos transformando-os em uma

contundente crítica a respeito da matéria política, social e literária, que pode estar

por trás desses acontecimentos, em uma determinada época. Ramos já destacou

a sua predileção pelas classes inferiores da sociedade. Tanto nas crônicas

quanto nas cartas discute questões significativas que envolvem a sociedade, com

a sua observação perspicaz e atenta a qualquer pormenor.

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Podemos aproximar, em especial, as crônicas, por, inicialmente, terem sido

publicadas em jornais e revistas, e, por isso, abarcado um público maior,

mediando os fatos perante a sociedade. Como pontuou Eduardo Portela (1990), o

cronista pode ser considerado um “porta-voz” ou um “intérprete” dos

acontecimentos, como um todo, assim também podemos associá-lo a um

intelectual. No sentido mesmo da mediação de maneira crítica em abordar e

observar os fatos de sua época e manifestar a sua expressão através de um meio

público.

Em certa medida, essa mediação pode ser estendida para um público

específico, como o das cartas. Considerando a situação política das décadas de

1930 e 1940 como indefinidas, como uma “encrenca” ou “esculhambação”

denominada por Ramos, percebe-se também essa mediação.

Tratando-se do intelectual, destaca-se a sua função relacionada com a

política e com um papel público atuando na sociedade de forma crítica e

autônoma, independente dos poderes religiosos, políticos, etc. Assim, chegamos

na questão da cooptação política no Brasil e, ao mesmo tempo, a não cooptação

de Graciliano Ramos ao regime Vargas.

Uma avaliação crítica sobre a escrita de Graciliano Ramos se complementa

com a reflexão de Antonio Candido, no prefácio que fez no livro de Sergio Miceli

(2001), em que questiona o fato de que Miceli misturou a instância de verificação

com a insistência da avaliação. O papel social, a situação de classe, a

dependência burocrática, a tonalidade política – tudo entra de modo decisivo na

constituição do ato e do texto de um intelectual, mas nem por isso vale como

critério absoluto para os avaliar. A avaliação é uma segunda etapa e não pode

decorrer mecanicamente da primeira. Questiona ainda a exposição de uma

biografia coletiva de um grupo ou de uma categoria social.

Candido assinala como o estudo de Miceli pode provocar algumas

inquietações dos teóricos da literatura, insatisfeitos com o lugar a que foi relegada

a reflexão sobre a estética dos escritores, devido à metodologia sociológica

adotada pelo autor. Miceli, mostrando o vínculo empregatício entre o jovem

intelectual e o Estado modernizador, isto é, a cooptação dos intelectuais pelo

Estado, deixou de apontar também a relevância estética e literária das obras

escritas por esses intelectuais.

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Nas crônicas apresentadas, em especial, no segundo capítulo desta

dissertação, verifica-se a não cooptação de Graciliano Ramos ao Governo

Vargas. Descrevendo, portanto, a sua região, denuncia o abandono político ali

percebido. Mesmo convivendo com um regime ditador, se pronunciou como um

pensador crítico do seu tempo, mantendo um estilo conciso e direto, já denotado

como sendo uma característica de sua escrita.

Podemos aproximar o escritor e o intelectual no Brasil no sentido da

semelhança da abordagem de determinados temas por eles defendidos, tais

como a construção, nas décadas de 1920 – 1940, por exemplo, de uma

redefinição da nacionalidade brasileira. No caso de Graciliano Ramos, podemos

conferir ainda a prática constante da escrita como uma forma de manifestação do

seu pensamento e de sua mediação crítica, tanto a um público mais alargado

quanto a um público mais íntimo presente em suas cartas.

Suas cartas endereçadas a um público determinado tiveram naquele

momento um devido fim, o que não deixa de valer para nós, hoje, como as

memórias de um período de vida do autor e, através delas, podermos ler o seu

íntimo e os seus posicionamentos sobre variados assuntos pertinentes naquela

época.

Costa Lima (1986) define autobiografia e memória como sendo substitutos

dos espelhos, suas matérias privilegiadas seriam unicamente a própria vida.

Apóia-se na definição de autobiografia de Pascal, o qual pontua que o seu centro

de interesse é o próprio eu, mas um eu interligado com o mundo a sua volta, pois

acredita que o homem se conhece a si mesmo apenas à medida que conhece o

mundo e se torna consciente do mundo apenas em si mesmo e de si mesmo para

o mundo.

O conjunto das crônicas e das cartas que selecionamos para formar o

corpus deste estudo apresentou características, aparentemente, heterogêneas

pela abordagem de variados temas, porém, ao mesmo tempo, percebemos que,

na verdade, adquire um aspecto homogêneo na postura adotada por Graciliano

Ramos. A unidade vista é evidenciada exatamente pelos posicionamentos do

autor que marcam sua linguagem, concisa em exprimir o essencial, assim como

suas posturas semelhantes.

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Rogério Pereira Silva (2004) fez um estudo dos romances Caetés, São

Bernardo, Angústia e Vidas Secas procurando apontar pontos de articulação entre

eles, em especial, a associação do gênero romance com a formação do

intelectual Graciliano Ramos. Os romances podem ser lidos como uma

problematização da situação do intelectual brasileiro na década de 30, e que tanto

a sociedade, a vida de Graciliano Ramos quanto a função social do intelectual

estavam relativamente indefinidas. Dessa forma, Silva aponta seu romance como

um lugar de problematização das possibilidades de definição para estas três

entidades: a sociedade brasileira, a vida do intelectual Graciliano Ramos e a

função social do intelectual. Não é por acaso que toda essa problematização se

dê pelo romance, um gênero inacabado e aberto por definição. Não sendo

também por acaso que, fechadas certas possibilidades, Ramos deixe de escrever

romances e passe a escrever crônicas, contos e memórias. Ramos pensa o seu

tempo através de um gênero ficcional particularmente adequado a um tempo

aberto e indefinido, que é o romance. Nesse sentido, terminado esse tempo,

encerraria também o uso do gênero romance. A hipótese principal de Pereira

Silva é a de que os romances são enunciados que participam do debate em torno

do intelectual na década de 30.

Enquanto esse compasso de indefinição se manteve, Graciliano Ramos

pode estruturar sua utopia no gênero romance. Apropria-se do romance, como um

gênero inacabado, para descrever sua condição na sociedade e no período

histórico em que viveu. Então, cristalizados certos elementos, o romance perde

sua função como forma e gênero e cede lugar à crônica, ao conto e à memória.

Evidencia-se que há um problema em seu estudo, porque Ramos sempre

escreveu crônicas, sobretudo, iniciou a prática da escrita por meio delas. Seus

primeiros passos enquanto escritor se configuraram em jornais e revistas,

concomitantemente com as cartas. Podemos afirmar que o autor jamais

abandonou a escrita desses pequenos relatos, ou seja, da sua observação dos

fatos “miúdos”, vivenciados e notados no cotidiano. Esses escritos foram

compostos em paralelo aos seus romances.

A contribuição deste trabalho de pesquisa revela-se importante para os

estudos literários naquilo que os aproxima dos estudos culturais. Foi pela crítica

da cultura, através das crônicas e das cartas de Graciliano Ramos, que tivemos

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condições para verificar que a linguagem e o estilo do autor se articulam não

apenas em seus romances, mas também nesses escritos.

Deve-se realçar que, neste estudo, a união das cartas e das crônicas

contribuiu para marcar a aproximação da crítica cultural com a literária, e, dessa

forma, há de se considerar a ampliação da possibilidade crítica a respeito da

visão de mundo do intelectual e de sua formação, a visão mais ampla sobre a

política e a própria presença de aspectos autobiográficos o que, de certa forma,

constituiu um material precioso sobre a época aqui destacada. A análise desses

objetos nos permitiram desvendar as concepções do pensamento de Graciliano

Ramos quanto às questões políticas, literárias e sociais, por um viés não canônico

em que estão inseridos tanto o gênero epistolar quanto o gênero crônicas.

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