simon a formaçao da comunidade científica no brasil..pdf
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UM ESPAO PARA A CINCIA: A FORMAO DA COMUNIDADE CIENTFICA NO BRASIL Simon Schwartzman (Braslia Ministrio de Cincia e Tecnologia 2001) traduo de Srgio Bath e Oswaldo Biato Prefcio Prefcio edio inglesa Captulo 1 - INTRODUO - UM ESPAO PARA A CINCIA Sisifo O desenvolvimento de uma comunidade cientfica A busca da cincia Cincia tecnologia e as profisses Um sumrio PRIMEIRA PARTE: OS FUNDAMENTOS Captulo 2 - A HERANA DO SCULO DEZOITO Os temas principais As novas universidades A Contra-Reforma A reforma de Pombal O Estado a Igreja e a Educao no Brasil Projetos para uma universidade brasileira
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Captulo 3- A CINCIA NO IMPRIO Cincia colonial: os naturalistas Cincia Imperial: o sculo dezenove A educao superior Engenharia e Minerao Medicina e Cirurgia A cincia imperial em perspectiva Captulo 4 - O AUGE E O DECLNIO DA CINCIA APLICADA Da Velha Repblica revoluo de 30 A "ilustrao brasileira" Da astronomia tradicional matemtica moderna Da medicina sanitria pesquisa biomdica A pesquisa geolgica e o nacionalismo econmico So Paulo assume a liderana Captulo 5 - A REVOLUO DE 0 E AS PRIMEIRAS UNIVERSIDADES A "Educao Nova" e a Igreja Catlica procura de alternativas A Reforma Francisco Campos Um projeto liberal: a Universidade do Distrito Federal Um modelo a ser seguido: a Universidade do Brasil Uma nova elite para uma nova nao: a Universidade de So Paulo Captulo 6 - AS RAZES DAS TRADIES CIENTFICAS Da agronomia gentica Partindo de Manguinhos: os novos institutos de pesquisa biolgica Qumica: limites e possibilidades do modelo alemo 0 Gleb Wataghin e a fsica dos raios csmicos
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O esforo de guerra Desenvolvimentos do ps-guerra SEGUNDA PARTE: O CRESCIMENTO Captulo 7 - A PROFISSIONALIZAO DA CINCIA Os Pioneiros Segunda Gerao: Incios da Profissionalizao Segunda Gerao: As Cincias Exatas Cientistas Modernos: a Terceira Gerao Fontes de Apoio Financeiro A Fundao Rockefeller no Brasil Centralizao administrativa e a Pesquisa Cientfica Captulo 8 - MODERNIZAO DO PS-GUERRA Cientistas como parte da Intelligentsia Energia Nuclear e o Conselho Nacional de Pesquisas As novas universidades de elite Expanso da Educao Superior Captulo 9 - O GRANDE SALTO FRENTE Cincia e Tecnologia para o Desenvolvimento Econmico A reforma da educao superior 5 Os Novos Programas de Ps-Graduao 7 Instituies de Alta Tecnologia 0 "Big Science" e Alta Tecnologia
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Captulo 10 - EPLOGO Pujana e Decadncia Poltica: do Governo Militar ao Civil Educao Superior de massas Tecnologia e Economia 0 O Demnio Apndice - Lista de Entrevistas Referncias Bibliogrficas
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UM ESPAO PARA A CINCIA A FORMAO DA COMUNIDADE CIENTFICA NO BRASIL
SIMON SCHWARTZMAN
PREFCIO NOVA EDIO
Sou muito grato ao Ministrio de Cincia e Tecnologia pela publicao desta
nova verso de Formao da Comunidade Cientfica no Brasil. A primeira edio, de
1979, foi feita pela Companhia Editora Nacional, ento sob interveno do BNDES,
com recursos da FINEP. Sem objetivo comercial, ela nunca chegou s livrarias, tendo
sido distribuda, no entanto, para bibliotecas, autoridades, cientistas e estudiosos do
assunto. No final dos anos 80 surgiu a possibilidade de preparar uma verso inglesa
do texto, que foi publicada pela Pittsburgh University Press, nos Estados Unidos, em
1991. Para essa edio, o texto original foi rescrito e atualizado, e a estrutura original
do livro foi profundamente alterada. A nova verso brasileira, que agora se publica,
uma re-traduo ao portugus da verso inglesa de 1991. Isto foi feito porque no
teria sentido voltar ao texto original de 1979, j superado; e a preparao de uma nova
verso em portugus significaria um longo trabalho de pesquisa e reinterpretao das
informaes, o que terminaria por inviabilizar esta reedio. Sou muito grato tambm
a Srgio Bath e Oswaldo Biato pelo excelente trabalho de traduo.
Acredito que o principal mrito deste livro talvez tenha sido o de ajudar a
estabelecer a rea de estudos sociais e histricos sobre a cincia e a tecnologia no
Brasil, campo que se expandiu e se transformou muito desde ento. Muitos dos temas
e informaes tratadas tm sido objeto de estudos mais detalhados e aprofundados, o
que torna a tarefa de refazer a histria da cincia brasileira algo muito mais difcil do
que foi a preparao da primeira edio deste trabalho. Enquanto esta nova viso
histrica da cincia brasileira no surge, este livro, agora mais acessvel, poder
continuar como fonte de pistas, indicaes, idias e temas sobre o tema da cincia, da
tecnologia e da educao superior no pas.
Muitas coisas ocorreram desde a primeira edio deste livro mais de trinta
anos atrs. O campo de estudos sociais sobre a cincia se alterou profundamente, a
cincia brasileira se transformou bastante, e minha prpria maneira de ver a questo
tambm se transformou.
Eu poderia descrever minhas preocupaes, ao iniciar este trabalho na dcada
de 70, como uma tomada de posio entre dois plos do que se poderia chamar, hoje,
de uma viso modernista, enlightened, do papel da cincia na sociedade moderna.
Uma destas vises era representada, no Brasil dos anos 20 e 30, pelo matemtico
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Amoroso Costa, que defendia a Cincia Pura, e, na tradio sociolgica, por Max
Weber, que procurava distinguir com clareza a cincia da poltica; por Robert K.
Merton, autor das idias seminais, nos anos 40, sobre os sistemas de valores que
deveriam acompanhar a cultura da cincia; e por Joseph Ben-David, que pesquisava o
surgimento, desenvolvimento e transformaes do scientific role, do papel dos
cientistas nas sociedades modernas.
A outra posio, dominante entre cientistas, militares e economistas
brasileiros, talvez pudesse ser traada a August Comte, e tinha como expoentes, nos
anos 30, o cientista britnico J. D. Bernal e o francs Frdric Juliot-Curie, ambos
influenciados pelo marxismo. Os dois campos compartiam a idia de que as cincias
empricas eram um componente central das sociedades modernas, e que era
importante desenvolv-las ao mximo, para que os valores da objetividade e da razo,
e os produtos tecnolgicos derivados de suas aplicaes, pudessem ser utilizados para
o benefcio de todos. Para os primeiros, a cincia fazia parte de um movimento
civilizatrio e cultural muito amplo, centrado nos valores da liberdade,
individualidade, e racionalidade, que se justificava por si mesmo, pelos valores e
demnios que levavam as pessoas a defend-los, independentemente de seus
possveis usos e implicaes prticas. Mais do que isto, diria Merton. Quando os
valores da repblica da cincia no so respeitados, quando a inteligncia e a
racionalidade so colocados a servio do poder, a lgica da fora prevalece sobre a
fora da lgica e da inteligncia, os frutos do conhecimento se voltam contra seus
criadores, e a prpria sobrevivncia da atividade cientfica se torna impossvel.
Entre os do segundo polo predominavam os cientistas naturais, os tecnlogos e
engenheiros, e no os socilogos ou filsofos. Estes cientistas acreditavam que com
seus mtodos, suas tecnologias e sua eficincia, estavam destinados a tirar o mundo
do atraso e da ignorncia, e a instaurar o reino da razo, aonde os prprios cientistas,
naturalmente, exerceriam o poder, para o benefcio de todos. Enquanto que os
primeiros buscavam identificar o lugar prprio da comunidade cientfica, seus valores,
sua cultura, e suas instituies, os segundos se preocupavam em buscar e estabelecer
os vnculos entre a cincia e o poder econmico, poltico e militar. Enquanto os
primeiros temiam o pacto faustiano entre a cincia e o poder, os segundos no
queriam outra coisa. O uso da tecnologia e de princpios supostamente cientficos para
a organizao da vida social e econmica nos regimes autoritrios europeus no pr-
guerra, tanto na Unio Sovitica quanto na Alemanha, assustava os do primeiro
grupo, e fascinava os do segundo.
Pesquisando o tema da cincia em tempos do regime poltico militar, que
buscava levar frente um projeto autoritrio de modernizao e desenvolvimento, eu
me filiava com clareza ao primeiro grupo, defendendo a comunidade cientfica contra
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o uso instrumental da tecnologia, buscando inserir nossa escassa tradio cientfica
em nossa tambm escassa tradio liberal e democrtica. provvel que este ato
explcito de subverso no tenha sido percebido, talvez porque o que se discutia no
Brasil, naqueles tempos como agora, no era a oposio entre dois projetos
modernistas, o liberal e o autoritrio, mas a oposio entre o tradicional e o
moderno, fazendo com que as diferenas entre os distintos projetos modernizadores
se confundissem o que explica, alis, a fcil convivncia entre a esquerda e a direita
brasileiras, no apoio a projetos tecnolgicos como a poltica de informtica e o
programa nuclear, apesar dos alinhamentos opostos dos dois grupos na guerra fria.
Nos anos 70 e 80, os estudos sociais da cincia passaram por uma grande
revoluo, que consistiu na desconstruo das idias modernistas, e culminou
naquilo que ficou conhecido no final dos anos 90 como a guerra das cincias, as
science wars. Liberais ou autoritrios, os modernistas concordavam que o
conhecimento cientfico era distinto do conhecimento comum, que havia uma
demarcao clara que separava o pensamento racional do pensamento irracional, os
especialistas e iniciados dos leigos, que havia uma Razo, com R maisculo, que
podia ser identificada e conhecida, e que era o dever e o destino dos cientistas
trabalhar para torn-la cada vez mais ntida e brilhante. De repente, socilogos e
antroplogos, muitos deles oriundos das cincias naturais, comeam a observar os
cientistas como quem observa os ndios em suas tribos, e chegam concluso de que
no existe, na verdade, tanta diferena assim entre os dois mundos, o da cincia e o do
sentido comum1. Por trs da aparncia de lgica e racionalidade, que surge nas
publicaes cientficas e dos produtos tecnolgicos acabados, assim como nas
declaraes pblicas dos cientistas, existe um mundo totalmente humano de decises
baseadas em interesses, idias aproximadas e tentativas, disputas de poder, decises
oportunistas sobre temas e prioridades, e o uso da retrica para conquistar aliados e
derrotar os inimigos. Os conhecimentos cientficos no seriam diferentes de outros
tipos de conhecimento, e as escolhas de temas e as prticas dos cientistas estariam to
influenciadas por variveis sociolgicas, culturais e polticas como quaisquer outras
prticas humanas2. Na cincia, como na vida, vale tudo, everything goes como diria
o filsofo Paul Feyerabend3. O mtodo cientfico no passaria de uma construo
ex-post, de existncia problemtica e duvidosa.
1Latour e Woolgar, 1979; Knorr-Cetina. 1991.
2 Bloor, 1976. A influncia das idias do segundo Wittgenstein foi muito grande
neste entendimento. Veja a respeito Bloor, 1983.
3 Feyerabend, 1975.
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Uma vez aberta a caixa de Pandora, tudo passava a ser possvel. Para alguns,
no extremo, a cincia no seria seno um exerccio de poder de homens ocidentais e
brancos contra as mulheres orientais e negras, em diversas combinaes. O
racionalismo, e a cincia que o acompanha, seriam simplesmente uma forma peculiar
de ver a realidade, distinta, mas no superior, e muitas vezes pior que outras formas,
baseadas na intuio, na religio, nas experincias sensoriais e espirituais de vrios
tipos, ou na viso feminina do mundo. Todos os confrontos de idias e argumentos
seriam, na realidade, conflitos de poder. Para os pases em desenvolvimento, no faria
sentido tentar trazer e incorporar a tradio cientfica oriental, com suas instituies e
seus supostos. Cada um deveria buscar e desenvolver suas formas prprias de
conhecer, interpretar e modificar a realidade, e lutar, politicamente, contra o
predomnio do paradigma cientfico ocidental.
Colocada nestes termos, a nova sociologia da cincia se transforma em um
projeto intelectual anti-modernista, filiado a e no muito distinto de todas as correntes
de pensamento que, desde Galileu, resistiram ao avano da cincia moderna. Na
Amrica Latina, ainda que no tanto no Brasil, surgem os que pretendem substituir a
cincia ocidental e seus princpios meritocrticos e tcnicos por uma outra cincia de
razes mais nativas, baseada quem sabe em princpios comunitrios, ou nas tradies
msticas e espirituais das populaes indgenas, ou empobrecidas. 4
Estas vises extremas e radicais derivadas da nova sociologia do
conhecimento no so difceis de refutar, e foram objeto de um ataque cerrado de
cientistas que, mais uma vez, brandiam os argumentos da racionalidade e da lgica
contra o irracionalismo e o obscurantismo.5 Mas a fora da nova sociologia da cincia
no est nestes extremos, e sim em colocar a nu aquilo que todos, de alguma forma, j
sabamos que a prtica da cincia diferente de sua ideologia e justificao, e que,
por isto, no possvel continuar a defender, de forma ingnua e irrefletida, a
superioridade do conhecimento cientfico, e as coisas que propem os cientistas e
tecnlogos, sobre todas as demais.
A verdade, diz Bruno Latour em um pequeno livro, que nunca fomos
modernos, no sentido de que nunca acreditamos plenamente na existncia de um
mundo do conhecimento cientfico e da tcnica desligado e desconectado do mundo
4 Eu discuto esta perspectiva com algum detalhe em O Espelho de Morse, em
Schwartzman, 1997.
5 Sokal e Bricmont, 1997.
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de carne e osso das pessoas, dos animais e dos objetos da natureza.6 Isto no significa
que todos os tipos de conhecimento se eqivalem, e que o valor e a relevncia dos
conhecimentos cientficos e das tecnologias sejam simples expresses de relaes de
poder. Mas, justamente pela sua fora e seu potencial, tanto para o bem quanto para o
mal, que no podemos continuar a tratar a atividade cientfica como um campo
idealizado da Razo e do Bem, sem entender, em mais profundidade, como a
atividade cientfica se estrutura, se organiza, busca seus recursos, estabelece suas
verdades e reordena os atores e objetos que dela participam, ou que so por elas
influenciados.
O principal efeito da nova sociologia da cincia e no s dela foi abalar
profundamente a crena nas virtudes absolutas da cincia e da tcnica, justamente em
uma poca em que a cincia assume um papel cada vez mais significativo no
reordenamento da economia mundial, e abre novas e insuspeitadas fronteiras no
conhecimento dos fenmenos da vida e do meio ambiente. Temos mais cincia do
que nunca, nunca dependemos tanto dela como agora, e nunca tivemos tanta clareza
sobre seus problemas, limites e tambm possibilidades.
Na perspectiva de hoje, o confronto entre as duas vises modernas a respeito
da organizao e o papel da cincia nas sociedades contemporneas parece
ultrapassado. A preocupao atual, muito mais pragmtica e concreta, como melhor
usar os recursos que a cincia pode proporcionar, sem cair na seduo fcil dos
projetos modernistas, e sem colocar a atividade de pesquisa na camisa de fora do
planejamento tecnocrtico, ou da lgica de curto prazo dos negcios de mercado. Em
1993-94 tive a oportunidade de coordenar um trabalho de elaborao de uma
proposta de poltica cientfica para o Brasil, que, como o ocorre com trabalhos desta
natureza, no chegou a ser utilizado de forma mais explcita pelos que o financiaram
(o Ministrio de Cincia e Tecnologia e o Banco Mundial), mas no deixou de gerar
um conjunto significativo de estudos e anlises, que creio terem proporcionado uma
nova viso a respeito de onde estamos e para onde deveremos tratar de ir neste tema.7
Uma das contribuies mais interessantes para o estudo foi feita pelo Prof. Lewis
Branscomb, da Universidade de Harvard, que apresentou um trabalho sobre as
modificaes recentes no sistema de cincia e tecnologia nos Estados Unidos.8 O que
Branscomb mostra que, na experincia americana, as duas faces do projeto
6 Latour, 1993.
7Schwartzman, Bertero, Krieger, e Galembeck. 1995, 3 volumes.
8Branscomb, 1995.
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modernista, o acadmico e liberal e o tecnocrata e autoritrio, longe de se oporem, na
realidade se complementavam, j que eram os gigantescos investimentos pblicos na
pesquisa militar que abriam espao e davam recursos para a cincia acadmica que se
desenvolvia sobretudo nas universidades. O fim da guerra fria, e a exploso das
novas tecnologias voltadas para produtos de consumo de massa e para as
comunicaes em escala global, pareciam sinalizar o fim dos investimentos pblicos
na pesquisa militar. A conseqncia foi forar a pesquisa acadmica a estabelecer
laos muito mais fortes e tambm mais difceis com um novo parceiro, o setor
privado. As formas tradicionais de organizao da atividade cientfica, em
departamentos acadmicos estruturados em disciplinas cientficas bem delimitadas,
sistemas de mrito baseados nas competncias intelectuais, e o compartilhamento dos
conhecimentos cientficos por todos que tivessem a necessria competncia para
entend-los, pareciam agora antigidades destinadas a desaparecer. Havia agora novo
modo de produo cientfica, muito mais pragmtico, interdisciplinar, ad hoc e
contaminado por interesses comerciais e empresariais do que antes.9
O estudo de 1993/94 dizia que, 25 anos depois, o sistema brasileiro de cincia
e tecnologia ainda estava configurado nos termos do modelo Geisel, estabelecido
em meados dos anos 70, e j em decadncia no incio dos anos 80. Apesar de sua
brevssima durao, foi um perodo que deixou saudades entre muitos cientistas e
pesquisadores, pela abundncia relativa de recursos, pela facilidade com que projetos
eram aprovados, pelas inovaes institucionais que ocorreram (como, por exemplo, a
criao da COPPE e da Universidade de Campinas) e pela crena que parecia existir
no papel da cincia e da tecnologia como instrumento de desenvolvimento e
modernizao do pas. A partir dos anos 80, a comunidade cientifica se transformou
em um grupo de presso que se mobilizava para obter recursos para sua
sobrevivncia, usando ainda a retrica de antes, mas com cada vez menos convico e
capacidade de convencimento sobre sua importncia. Neste meio tempo, havia
tambm mudado o mundo, e o prprio pas. Era necessrio pensar uma nova poltica
de cincia e tecnologia para um novo mundo global. Melhor do que parafrasear os
resultados daquele estudo transcrever alguns de seus trechos:
O cenrio internacional da cincia e tecnologia mudou dramaticamente desde que o Brasil comeou sua caminhada para o desenvolvimento de C&T nos anos 60. As principais caractersticas deste novo contexto internacional podem ser descritas como segue:
9Sobre o modo II de organizao da atividade cientfica, veja Gibbons,
Trow, Scott, Schwartzman, Nowotny, e Limoges, 1994.
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- A cincia e tecnologia esto muito mais prximas da indstria e dos mercados do que antes. As indstrias precisam no s de processos e produtos, mas tambm das qualificaes necessrias para acompanhar as novas concepes e prticas de gesto, e para isso dependem de conhecimentos especializados que no so e nem podem mais ser gerados internamente, em suas atividades cotidianas. A conseqncia tem sido o aumento dos investimentos em P&D, a instalao de laboratrios especializados e departamentos de pesquisa, e a busca de novas formas de relacionamento com as universidades. H uma preocupao renovada com questes de propriedade intelectual, que acompanha uma grande expanso de uma verdadeira indstria do conhecimento, do comrcio de marcas e patentes, da assistncia tcnica e das consultorias internacionais.
- O ritmo da inovao tecnolgica e da competio no mercado se aceleraram, exigindo das empresas capacidade permanente de mudar sua organizao interna, absorver novas tecnologias e processos, e de gerar novos produtos. Isto tem provocado mudanas significativas na composio da fora de trabalho industrial, uma maior nfase em trabalhadores altamente qualificados em todos os nveis e uma drstica reduo de pessoal administrativo e no-qualificado. As conseqncias deste novo ritmo de progresso tcnico e da competio no mercado incluem tambm a crescente internacionalizao das indstrias e mercados, e a redefinio das linhas de produo, com especializao em alguns segmentos da cadeia produtiva ou em alguns nichos do mercado. Novas associaes e fuses, muito freqentemente, entre empresas de diferentes pases so tambm estimuladas pelo alto custo financeiro da P&D e o encurtamento do ciclo de vida dos novos produtos.
- A cincia est se tornando mais global. A velocidade e o baixo custo dos fluxos internacionais de informao colocam pesquisadores e centros de pesquisa em contato direto. A propagao de produtos e processos tecnolgicos por empresas internacionais dissemina padres similares de consumo, de organizao e de trabalho. muito mais fcil agora o acesso comunidade cientfica internacional do que no passado. A mobilidade internacional de pesquisadores de talento tambm se tornou mais simples. Mas ao mesmo tempo, a participao efetiva na comunidade internacional depende de uma qualificao adequada, na medida em que requer a utilizao de instrumentos cientficos padronizados, linguagem e padres de comunicao adequados, que, em sua ausncia, geram novas desigualdades e formas de concentrao de recursos e qualificaes.
medida em que a relevncia econmica e militar do conhecimento cientfico
e tecnolgico crescem, dizia o documento, intensifica-se a tendncia a limitar sua
difuso atravs de legislao sobre propriedade intelectual e de barreiras
governamentais difuso de tecnologias sensveis e estratgicas. Esta tendncia,
entretanto, compensada pela intensa competio internacional de empresas e
governos para vender suas tecnologias, e pela inexistncia de fronteiras bem definidas
entre conhecimento acadmico (e portanto livre) e o conhecimento privado (ou
protegido). O resultado que o acervo bsico da tecnologia moderna est disponvel
para os pases que possuem suficiente massa crtica em engenharia e cincias bsicas.
Isso s no se aplica a algumas poucas tecnologias militares, que ainda podem ser
controladas pelas grandes potncias.
Mais recentemente, prosseguia, o fim da guerra fria tem forado as grandes
potncias a promoverem o difcil processo de reduo de seus aparatos militares, o
que tem alterado a tradicional associao entre P&D militar, tecnologia industrial e
pesquisa acadmica bsica. Parte destes recursos esto sendo redirecionados para
pesquisa aplicada em reas como sade, meio-ambiente e energia, e novas
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associaes entre governos, instituies de pesquisa e empresas privadas esto
emergindo. A inovao cientfica neste novo contexto predominantemente civil
tender a se orientar sobretudo pelo mercado e por demandas sociais de curto prazo, e
no mais pelas prioridades governamentais. A inovao cientfica deve tambm se dar
de forma mais incremental, estar mais intimamente associada produo e servios, e
ser mais sensvel a custos do que foi at agora. O "modelo linear simples" utilizado
at recentemente para entender o desenvolvimento cientfico e a mudana tecnolgica
est sendo abandonado. Este modelo pressupunha a existncia de um padro pelo qual
a pesquisa fundamental dava lugar a descobertas e a resultados experimentais da
cincia aplicada, possibilitando invenes que forneciam as bases da inovao
empresarial a partir da qual novos produtos e processos eram criados e depois
difundidos por imitao e engenharia reversa. A viso atual a de que a realidade
muito mais complexa: descobertas cientficas ocorrem com freqncia no contexto da
aplicao; no existe uma distino precisa entre o trabalho bsico e o aplicado; e o
conhecimento tcito e os avanos incrementais so mais importantes do que
descobertas e inovaes cientficas isoladas. Uma conseqncia desta transformao
que o apoio para a pesquisa bsica vem perdendo terreno, quando esta no se associa
a resultados e produtos previamente identificveis.
Ao mesmo temo, dizia ainda o documento, novos padres de cooperao
cientfica internacional so desenvolvidos, com o estabelecimento de programas
multinacionais de grande escala, tais como o Projeto do Genoma Humano; de
atividades de pesquisa globais nas reas de meteorologia, aquecimento global,
astrofsica; e de projetos de cooperao regional entre pases. Enquanto que os
programas tradicionais de "big science", como o Consrcio Europeu de Estudos
Nucleares (CERN), se caracterizavam por grandes instalaes cientficas, os mais
recentes tendem a assumir a forma de densas redes de cientistas e grupos de pesquisa.
A alternativa para as comunidades cientficas pequenas ou de participar em alguns
aspectos destes grandes programas, ou de se marginalizar progressivamente
O documento assinalava tambm que, por causa de seus custos crescentes,
relevncia econmica e perigos potenciais, as atividades de cincia e tecnologia tm
sido acompanhadas pela sociedade de forma muito mais atenta do que no passado.
Controvrsias pblicas esmaecem as fronteiras entre a especializao tcnica e o
conhecimento de domnio pblico, e uma variedade de novas disciplinas e atividades
relacionadas anlise e avaliao da cincia emergiram, lidando com questes como
a previso e a avaliao tecnolgica e as anlises do impacto ambiental das inovaes.
As cincias sociais adquiriram uma nova relevncia neste contexto, tanto para o
estudo da economia da cincia e tecnologia, quanto para a compreenso dos processos
sociais de produo e transmisso de conhecimentos, para a interpretao das
controvrsias pblicas, e para a anlise de polticas pblicas na rea de C&T.
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O resultado disto tudo, afirmvamos, era que as formas tradicionais de
organizao do ensino e pesquisa cientfica esto sob questionamento. Discute-se hoje
se a diviso dos departamentos acadmicos e das instituies cientficas segundo as
diferentes disciplinas e reas do conhecimento a mais adequada e capaz de oferecer
as condies apropriadas para a formao e o desenvolvimento de pesquisa
interdisciplinar. Ao mesmo tempo, no existem alternativas claras organizao do
ensino segundo os moldes tradicionais, gerando novas fontes de tenso entre ensino e
pesquisa. As agncias governamentais de apoio cincia esto em processo de
reviso e transformao. As relaes entre universidades, os governos e a indstria
esto profundamente alteradas pelos novos padres de ensino tcnico, pesquisa
cooperativa e financiamento, o que tem gerado novas oportunidades e tenses. As
carreiras cientficas tradicionais so percebidas como menos recompensadoras,
prestigiadas e seguras do que no passado, ao passo que novos perfis profissionais
emergem.
As perspectivas que se abriam para o Brasil, neste novo contexto, no eram
necessariamente pessimistas. O documento afirmava que apesar da grande defasagem
entre a cincia e tecnologia do Brasil e a dos pases industrializados mais avanados,
existe uma oportunidade de convergncia que no deve ser desperdiada. O acesso
informao no plano internacional barato; a circulao e mobilidade de cientistas
intensa; tecnologias de produtos e processos so oferecidas em um mercado
internacional altamente competitivo; e empresas multinacionais espalham suas
sucursais e instalaes de pesquisa por todo o mundo, dependendo das condies
locais. O principal requisito para aproveitar esta oportunidade e compartilhar estes
recursos de conhecimento a capacidade social dos pases, que , essencialmente,
uma questo de educao e de capacitao cientfica. Assim, embora a cincia e
tecnologia estejam se tornando cada vez mais internacionais, os requisitos para
participar de seus benefcios continuam sendo de ordem local e nacional, e dependem
de aes deliberadas por parte dos governos.
A principal tese deste documento era que havia uma clara necessidade de sair
do modelo anterior de desenvolvimento cientfico e tecnolgico e partir para um
equacionamento inteiramente novo e adequado s realidades presentes e futuras.
Cincia e tecnologia so mais importantes do que nunca, se o Brasil pretende elevar o
padro de vida da populao, consolidar uma economia moderna e participar com
plenitude em um mundo cada vez mais globalizado. A economia precisa se
modernizar e se ajustar a um ambiente internacionalmente competitivo. A educao
precisa ser ampliada e aprimorada em todos os nveis. medida em que a economia
crescer e novas tecnologias forem introduzidas, novos desafios iro emergir na
produo e no uso de energia, no controle do meio ambiente, na sade pblica e na
administrao de grandes conglomerados urbanos. Mudanas tambm vo ocorrer na
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composio da fora de trabalho. Uma forte capacitao nacional ser necessria para
que o pas possa participar, em condies de igualdade, das negociaes
internacionais que podem ter conseqncias econmicas e sociais importantes para o
Brasil. Uma poltica liberal convencional em relao ao desenvolvimento cientfico e
tecnolgico no produzir capacitao na escala e qualidade necessrias. No h
muito espao mais para tecnologias artificialmente protegidas. Projetos tecnolgicos
de grande porte, altamente sofisticados e concentrados no tm condies de gerar
impactos de grande amplitude no sistema educacional e industrial. Tentativas de
planejar e coordenar centralizadamente todos os campos da cincia e tecnologia
correm o risco de expandir burocracias ineficientes e sufocar a iniciativa e
criatividade. A nova poltica de C&T deve implementar tarefas aparentemente
contraditrias: estimular a liberdade, iniciativa e criatividade do pesquisador, e ao
mesmo tempo estabelecer um forte vnculo entre o que eles fazem e as necessidades
da economia, do sistema educacional e da sociedade como um todo. Deve tornar a
cincia e tecnologia brasileira verdadeiramente internacional, e ao mesmo tempo
fortalecer a capacidade educacional e de C&T do pas. Para isto, o pesquisador
individual, suas unidades de pesquisa ou laboratrios, precisam ser libertos dos
entraves burocrticos e estimulados a buscar as melhores oportunidades e alternativas
no pas e no exterior para usar e desenvolver suas competncias. Isto requer no s
um ambiente competitivo, que oferea incentivos pblicos e oportunidades privadas
que premiem resultados e imponha custos crescentes complacncia e
improdutividade, como tambm o direcionamento de uma parte substancial dos
recursos de P&D para alguns objetivos estratgicos bem selecionados.
Cabe ao leitor avaliar se estamos realmente tomando em conta o que est
ocorrendo em todo o mundo, e se o redirecionamento das polticas e as aes
governamentais nas reas de cincia, tecnologia e educao esto sendo feitas de
acordo com as novas realidades. O Brasil entra no sculo XXI em situao bastante
melhor do que estava dez anos atrs, quando se debatia ainda sob o impacto dos
efeitos da dcada perdida dos anos 80. Minha avaliao pessoal que existem
muitas mudanas positivas, e que estamos saindo aos poucos do modelo elitista e
isolacionista do passado. Mas o caminho a percorrer longo e incerto.
Por isto, creio que o compromisso com os valores racionais e da modernidade,
expressos na metfora de Max Weber sobre o demnio que se apossa de nossa
vontade e nos fora ao usar ao mximo nossa lucidez, com a qual este livro termina,
ainda vlido e atual. No um modernismo arrogante, nem triunfante, nem ingnuo;
mas no deixa de ser esperanoso; e, no fundo, no h nada que possamos realmente
colocar em seu lugar.
Rio de Janeiro, maro de 2001.
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UM ESPAO PARA A CINCIA A FORMAO DA COMUNIDADE CIENTFICA NO BRASIL
SIMON SCHWARTZMAN
PREFCIO EDIO INGLESA
Este livro tem como origem uma pesquisa realizada em meados da dcada de
1970 por uma das principais entidades financiadoras da cincia e da tecnologia, a
FINEP (Financiadora de Estudos e Projetos), com o objetivo de traar um quadro
amplo do incio e do desenvolvimento das cincias empricas no Brasil. O trabalho foi
executado em duas frentes. Primeiro, foi feito um esforo para reunir e consolidar o
mximo que fosse possvel do material publicado sobre a histria da cincia brasileira
at ento. Segundo, foram entrevistados cerca de setenta cientistas que
desempenharam um papel importante nessa histria, do ponto de vista cientfico ou
institucional: entrevistas longas e abertas. Os textos das entrevistas, com as gravaes
originais, esto disponveis para consulta no CPDOC (Centro de Pesquisa e
Documentao em Histria Contempornea do Brasil), na Fundao Getlio Vargas,
no Rio de Janeiro.1
A primeira verso deste livro, publicada em portugus em 1979, foi
provavelmente a primeira tentativa de ver de forma abrangente o desenvolvimento da
comunidade cientfica brasileira, desde as suas razes histricas, propiciando um
panorama coerente da sua luta pela sobrevivncia. Esta verso contou com as
contribuies de Ricardo Guedes Ferreira Pinto, que focalizou a histria da fsica e da
engenharia; de Maria Clara Mariani e Mrcia Bandeira de Melo, que se concentraram
nas cincias biomdicas; de Tjerk Franken, que estudou a histria institucional e
produziu uma cronologia detalhada da cincia brasileira, de 1500 a 1945; de Nadja V.
X. Souza, que se dedicou qumica e s cincias da terra; de Antnio Paim, que
estudou a herana cultural portuguesa, o papel do positivismo na viso cientfica
brasileira e a criao da Universidade do Brasil, nos anos 1930; e de Jos Murilo de
Carvalho, que pesquisou independentemente a histria da Escola de Minas de Ouro
Preto.2 Joseph Ben-David visitou o projeto nos seus primrdios, elaborando um
1 CPDOC 1984. As entrevistas foram realizadas com a ajuda do Programa de Histria Oral do CPDOC, dirigido por Aspsia Alcntara de Camargo. As entrevistas com Gleb Wataghin, o fundador da fsica moderna no Brasil, foram feitas independentemente pelo fsico Cylon E. Tricot Gonalves, da Universidade Estadual de Campinas, em So Paulo. Marclio Morais, Beatriz Rezende e Maria Beatriz de Pena Vogel se incumbiram da transcrio e edio dessas entrevistas.
2 Schwartzman 1979. A maioria desses pesquisadores continuaram com seu trabalho independente, uma parte dos quais foi reunida mais tarde em um volume separado. Vide Schwartzman (ed.) 1982; R. G. F. Pinto 1978; J. M. Carvalho 1978; Mariani 1982-a; Paim 1982; Nunes, Souza e Schwartzman 1982.
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Prefcio Edio Inglesa - 2
relatrio bastante perceptivo sobre a cincia brasileira naquele momento.3 A pesquisa
contou com amplo apoio e simpatia por parte dos cientistas brasileiros e dos
responsveis pela poltica cientfica, e no teria sido possvel sem o interesse pessoal e
o incentivo de Jos Pelcio Ferreira, na poca Presidente da FINEP --- uma figura
fundamental na histria recente da cincia brasileira. A FINEP apoiou todo o trabalho
de pesquisa, assim como a edio do livro em lngua portuguesa.
O presente texto comeou como um projeto para uma traduo completa para
a lngua inglesa do texto original de 1979, que demonstrou no ser realista. medida
que a traduo avanava, ficava claro no s que o texto original precisava ser revisto,
corrigido e atualizado, mas tambm que ele tinha sido produzido para um pblico
diferente, com nfases que no so as aqui adotadas. Enquanto a edio em portugus
se destinava a um pblico amplo e bem informado de profissionais, professores,
cientistas e responsveis pela poltica cientfica, que conheciam bem a situao
brasileira mas pouco da bibliografia corrente sobre estudos sociais no campo da
cincia e da tecnologia, a edio em lngua inglesa exigiria o oposto: se o leitor
brasileiro estava interessado na histria detalhada das instituies existentes e das que
tinham desaparecido, em alguns casos h vrias dcadas, ou mesmo no sculo
dezenove, o leitor internacional estaria mais interessado no sentido geral e na direo
desse desenvolvimento.
O texto a que se chegou um meio-termo entre os dois extremos. Baseia-se
em parte nos materiais utilizados no volume de 1979, mas usa tambm textos
subseqentes e uma variedade de outras fontes. Os dados so apresentados dentro de
um quadro interpretativo muito mais explcito. Nos dez anos depois de 1979 creio ter
aprimorado minha compreenso do papel que a cincia pode desempenhar em
sociedades como a brasileira, e por isso este livro mais pessoal e afirmativo. A
maior parte das sees genricas da edio original em portugus foram abandonadas,
e acrescentou-se como pano de fundo informaes sobre a histria social e econmica
do pas. Os detalhes histricos foram transferidos para as notas, de modo a deixar o
texto mais claro para o leitor comum, sem prejudicar seu valor como referncias para
o especialista.
Agradeo a Nancy Stepan sua crtica do rascunho original, e a Herbert S.
Klein os comentrios detalhados assim como suas amplas sugestes. Espero que o
resultado seja mais do seu agrado. Walzi Sampaio da Silva contribuiu com a leitura
3 Ben-David 1976.
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Prefcio Edio Inglesa - 3
crtica de vrios captulos. Parte da traduo foi feita por Diana U. Grosklauss, e
Helena Arajo Leite de Vasconcelos ajudou verificando a correo dos nomes e
referncias. O preparo do primeiro texto em ingls foi viabilizado por uma doao do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico. Por fim, agradeo
a Ermnio Martins e Richard Whitley o estmulo para preparar a verso inglesa do
texto de 1979, que se transformou neste livro. Em parte ela foi redigida no Centro de
Estudos sobre a Educao Superior da Universidade da Califrnia, em Berkeley, onde
estive como professor visitante na primavera de 1987. O texto final foi concludo no
Instituto de Estudos Avanados da Universidade de So Paulo, em 1988, graas a uma
bolsa da Fundao Ford.
Juntamente com o apoio e a cooperao recebidos durante todos esses anos,
gozei sempre de ampla liberdade, e portanto tenho plena responsabilidade pelo modo
como o estudo foi conduzido e com respeito s idias e interpretaes aqui
apresentadas. Portanto, os erros que forem encontrados nas pginas que seguem no
devem ser atribudos aos colegas que participaram de diferentes fases do projeto, ou
s instituies que apoiaram esse trabalho. Espero que com o nosso esforo coletivo
tenhamos todos alcanado uma melhor compreenso da histria e das circunstncias
do desenvolvimento da comunidade cientfica brasileira, e estamos agora melhor
equipados para colocar esse conhecimento em um contexto interpretativo mais amplo,
podendo assim ter mais confiana no futuro.
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UM ESPAO PARA A CINCIA A FORMAO DA COMUNIDADE CIENTFICA NO BRASIL
SIMON SCHWARTZMAN
CAPTULO 1
INTRODUO - UM ESPAO PARA A CINCIA
Sisifo ................................................................................................................12
O desenvolvimento de uma comunidade cientfica .........................................15
A busca da cincia............................................................................................20
Cincia, tecnologia e as profisses...................................................................22
Um sumrio ......................................................................................................29
Sisifo
Amaldioado pelos deuses, Sisifo foi condenado a carregar uma grande pedra
at o topo de uma montanha, para deix-la rolar ladeira abaixo e em seguida
recomear tudo outra vez. A lenda de Sisifo uma metfora apropriada para a histria
da cincia moderna no Brasil, onde os sucessos tm sido poucos e efmeros, mas a
persistncia e o entusiasmo nunca faltaram. Ao longo de centenas de horas de
entrevistas, os indivduos que compem esta comunidade cientfica demonstraram ser
um grupo crtico e extremamente lcido, consciente das suas limitaes e orgulhoso
das sua realizaes, otimista sobre o papel que lhe cabe. A persistncia de Sisifo no
deriva de uma viso rsea do futuro, mas da convico de estar no caminho certo, de
que seria possvel atingir um dia as fronteiras do conhecimento, dando uma
contribuio significativa para a sociedade, ou pelo menos construindo a base para o
trabalho das geraes futuras. Quando h essa convico, os fracassos e as frustraes
causados por foras e eventos que no possvel controlar parecem menos
importantes, e no perturbam o desejo de recomear, se necessrio, quando menos
para atingir a mesma meta.
Esta uma razo que explica por que o presente estudo sobre o
desenvolvimento da cincia moderna no Brasil gerou tanto interesse entre os
cientistas brasileiros quando foi iniciado, em meados dos anos 1970. Em um certo
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Introduo: um espao para a cincia 13
sentido, contribuir para ele representava retraar as trilhas desvendadas, reviver
experincias bem sucedidas, gozar outra vez o sentimento do trabalho criativo, erguer
a pedra de volta aos ombros, sabendo que temos a fora necessria para sust-la. Entre
1976 e 1978, dezenas de cientistas brasileiros de muitas geraes (graduados desde
1910 at a dcada seguinte, graduados de antes da Segunda Guerra Mundial, e os que
comearam a surgir na dcada de 1950) dedicaram em mdia quatro a seis horas cada
um para contar sua experincia pessoal. As entrevistas focalizavam a vida
profissional, ambiente familiar, educao secundria e universitria, iniciao
cientfica, experincia educacional no exterior, realizaes profissionais, experincia
dentro das instituies, relaes pessoais, xitos e fracassos de cada um.1
Naturalmente, as entrevistas abrangeram alguns temas de carter mais geral: a
natureza da atividade cientfica, o ambiente cientfico no Brasil, o sentido, a
importncia e os problemas do trabalho cientfico no Brasil e no resto do mundo.
Gravadas, transcritas e editadas, essas observaes representam uma crnica
incomum da experincia de introduzir a cincia moderna em ambiente social e cultura
ainda no habituados com ela.
Ricos em detalhes, esses testemunhos so valiosos, oferecendo-nos um quadro
das diferentes motivaes, valores, atitudes e percepes compartilhados por esses
cientistas, um panorama do que eles consideravam estimulante ou frustrante.
Nenhuma outra fonte poderia fornecer esse tipo de informao. Normalmente pensa-
se no conhecimento cientfico como uma coletnea de conceitos, informaes e dados
com valor intrnseco, que no dependem dos indivduos responsveis pela sua
produo. No entanto, a concluso mais importante do presente estudo justamente a
reafirmao de que a cincia consiste acima de tudo em uma comunidade de
indivduos com boa educao que empregam com entusiasmo o melhor da sua
inteligncia e criatividade. Os resultados desse trabalho --- artigos, dados cientficos,
aplicaes tecnolgicas --- no passam da ponta de um iceberg que no se pode
sustentar sem sua base oculta: os indivduos que os produzem.
Os testemunhos orais tambm conhecem limites. A memria seletiva. As
interpretaes construdas pelas pessoas a respeito da suas vidas e experincias so
influenciadas inevitavelmente por atitudes humanas tais como o cansao, as
preferncias, a timidez ou o orgulho. Essas limitaes podem ser reduzidas quando
dispomos de vrias testemunhas dos mesmos fatos, e quando outras fontes de
1 A maioria absoluta da gerao mais antiga de cientistas brasileiros, e todos os nossos entrevistados, com uma nica exceo, eram homens. As mulheres comearam a aparecer na cincia brasileira em nmeros mais significativos com a criao da Universidade de So Paulo, em 1934 (embora principalmente nas cincias sociais, que no foram cobertas pelo presente estudo).
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Introduo: um espao para a cincia 14
informao podem ser consultadas. Em certa medida, a coexistncia de verses
contraditrias dos mesmos fatos no quer dizer que alguns cientistas sejam honestos e
outros no, em seus testemunhos; na verdade, dentro desse caleidoscpio, cada
percepo vlida dentro da perspectiva pessoal e psicolgica do narrador.
O projeto foi recebido com interesse --- por vezes misturado com uma certa
desconfiana --- por outra razo, mais concreta. Tratava-se de um estudo levado a
cabo com o apoio de uma agncia governamental brasileira, e sua inteno --- ouvir
os cientistas, procurar seus pontos de vista e o valor da sua contribuio, sem excluir
ningum por razes polticas ou ideolgicas --- contrastava fortemente com a
hostilidade e a represso manifestadas pelas autoridades militares, alguns anos antes,
contra alguns dos cientistas mais conhecidos do Brasil.
O princpio da dcada de 1970 chamado de anos do milagre, termo que,
usado entre aspas, sugere o paradoxo do grande desenvolvimento econmico e da
euforia nacional devido conquista repetida da Copa Mundial de Futebol, em 1972, e
tambm pelo que foi provavelmente a maior represso poltica que j havida no pas.
Em 1964, depois de um perodo de instabilidade poltica, os militares brasileiros se
apossaram do poder, dando incio a uma ampla reorganizao das instituies
polticas e econmicas, com a promessa (que seria adiada por vinte anos) de um
rpido retorno vida civil. A poltica econmica recessiva adotada em meados dos
anos 1960 tinha reduzido a taxa de inflao, e a modernizao do aparelho estatal,
combinada com a modernizao do mercado interno e um influxo de capital externo,
elevou mais tarde as taxas anuais de crescimento a dez por cento ao ano, e um sentido
de confiana no pas levou ao projeto de fazer com que o Brasil alcanasse o status de
potncia mundial em uma ou duas dcadas. Com populao de cem milhes,2 um
territrio de mais de oito milhes de quilmetros quadrados e o maior parque
industrial da Amrica Latina, esse projeto ambicioso no parecia absurdo.
O lado escuro do milagre era no s a persistncia da pobreza e da
desigualdade social, como tambm a represso poltica. O desenvolvimento
econmico era obtido graas principalmente concentrao de renda no topo da
pirmide social, e estudos realizados alguns anos depois mostravam que se a renda
tinha melhorado para todos os grupos sociais, durante o perodo do milagre, a
desigualdade tambm aumentou.3 O regime militar era uma aliana difcil entre
2 O censo de 1970 registrou 93,1 milhes de habitantes; o de 1980, 119 milhes. A projeo para 1990 era de cerca de 150 milhes. Vide FIBGE 1987: 52.
3 Schwartzman 1980.
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Introduo: um espao para a cincia 15
tecnocratas esclarecidos4, militares profissionais e anticomunistas militantes, e ao
final de 1968 o equilbrio tinha mudado, com a nfase deslocada dos primeiros para
os ltimos. No fim daquele ano, toda atividade poltica foi proibida e todas as formas
de liberdade poltica foram suspensas. Nos anos que se seguiram, milhares de pessoas
perderam seus direitos polticos, assim como os cargos pblicos que ocupavam
(muitas das vtimas eram professores universitrios ou pesquisadores de institutos
governamentais), enquanto nos maiores centros urbanos os militares reprimiam as
tentativas de insurreio lideradas muitas vezes por estudantes.
Dada a inclinao ideolgica do regime militar, amplos setores das elites
educadas do Brasil presumiram que esse regime s podia condenar o pas ao atraso
econmico e ao obscurantismo intelectual. Esta era a viso prevalecente entre muitos
dos cientistas brasileiros mais conhecidos, que levantaram sua voz contra as
iniqidades sociais, econmicas e polticas do passado, e estiveram entre os primeiros
a perder o emprego depois de 1964, e a serem obrigados a se exilar. J em 1968,
contudo, alguns rgos governamentais comeavam a fornecer recursos para projetos
de desenvolvimento cientfico e tecnolgico; em meados de 1970 j estava claro que,
ao lado do sua face autoritria, o regime militar estava abrindo novos espaos para a
cincia, a tecnologia e a educao superior.5 Depois de 1975, sob a presidncia de
Ernesto Geisel, a balana voltou a se deslocar no sentido de um regime autoritrio
esclarecido. O liberalismo econmico comeou a ceder terreno a uma crena renovada
no planejamento econmico e na interveno estatal, tendo sido anunciado um plano
de longo prazo de liberalizao poltica.
O desenvolvimento de uma comunidade cientfica
As primeiras idias para um estudo sobre o desenvolvimento da cincia
brasileira, a ser feito no mbito da FINEP, foram esboadas por um conhecido
economista brasileiro. Na proposta de trabalho, que por razes circunstanciais no
chegou a se iniciar, o objetivo seria mostrar a importncia histrica do
desenvolvimento da capacidade cientfica e tecnolgica para a economia do pas.
Alm de seu inegvel interesse acadmico, esse projeto mostraria a importncia do
trabalho que vinha sendo desempenhado pela patrocinadora do projeto, a
Financiadora de Estudos e Projetos, uma instituio surgida inicialmente no mbito do
Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico. Nosso trabalho buscou desenvolver
4 O termo esclarecido utilizado aqui por aluso aos dspotas esclarecidos que, no perodo do absolutismo, buscaram modernizar a Europa a partir do uso autoritrio do poder.
5 Foi nesse contexto que demos incio s nossas entrevistas.
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Introduo: um espao para a cincia 16
uma perspectiva que nos parecia ir alm da viso dos economistas. Nos interessava
demonstrar que havia no Brasil uma comunidade cientfica anterior redescoberta da
racionalidade econmica pelas novas agncias governamentais --- comunidade que
no podia ser colocada sob o controle e os limites estreitos do planejamento
econmico, e que precisava gozar de liberdade de pesquisa, do apoio permanente do
setor pblico e de um sistema de auto-regulagem como condies para a sua
sobrevivncia, reproduo e crescimento. Contrariando a viso economicista
prevalecente, acentuamos as tenses que existem entre cincia e tecnologia, em lugar
da sua complementaridade; os vnculos entre cincia e cultura, de um lado, e de outro
a educao superior, em lugar dos vnculos entre a cincia e a economia; e o apoio
buscado pelos cientistas em instituies e grupos autnomos, em vez de dependerem
do estado.6 As palavras comunidade cientfica, presentes no ttulo do livro de 1979,
surgiram ao final do trabalho, e assinalam como que a concluso de todo o estudo a
existncia de uma comunidade que precisaria ser conhecida e entendida 7 medida
que o projeto se desenvolvia, a FINEP tambm se deslocava gradualmente do simples
apoio tecnologia para o apoio cincia, tecnologia e educao universitria de
ps-graduao, de modo geral.
A escolha de tema e de abordagem se baseava na crena de que, vista em
termos muito amplos, como uma busca de desenvolvimento da competncia
intelectual e de ampliao do acervo de conhecimento, a cincia podia ter um papel
fundamental em um pas como o Brasil, que ainda enfrenta o problema de como
participar plenamente do mundo moderno. Nossa preocupao tinha menos que ver
com o conhecimento cientfico em si, e com as suas aplicaes prticas, do que com
esse papel a ser desempenhado no processo abrangente de racionalizao da
sociedade.8 Como pode esse tipo de conhecimento penetrar em sociedades que no
participaram da revoluo cientfica europia, a partir do Renascimento, ou
permaneceram sua margem? De que modo ele se relaciona com os vrios grupos
6 Essa preocupao no era diferente da que levou Robert K. Merton a acentuar a importncia da autonomia e da auto-regulamentao como pr-requisitos para a cincia, ao refletir sobre a prtica cientfica na Alemanha nazista. Vide Merton 1938.
7 Esta uma reconstruo post factum de um processo muito mais errtico e tentativo. O poder de convencimento das teses mais gerais do projeto depende muito do leitor. Sobre a elaborao de objetos de pesquisa, vide Latour e Woolgar 1979 e Knorr-Cetina 1981.
8 Essa preocupao com a racionalizao, inspirada na sociologia de Max Weber, no deve ser confundida com uma forma ingnua de racionalismo, ou com a crena evolucionista no destino que teriam as sociedades de alcanar um grau crescente de racionalizao, no processo de substituio contnua das formas antigas, tradicionais de conhecimento e organizao social por formas modernas. Vide em Bendix 1984 para uma viso contempornea.
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Introduo: um espao para a cincia 17
sociais, os valores e as instituies locais? De que forma ele adquire razes --- ou
permanece desenraizado? Exercer efetivamente o papel que lhe atribumos?
Perguntas como estas so mais amplas e menos precisas do que as que so
abordadas pela maior parte dos socilogos e historiadores da cincia na Europa
Ocidental e nos Estados Unidos, onde de modo geral se considera que a cincia
praticada nos centros dinmicos onde grandes obras so escritas, grandes descobertas
so feitas, grandes teorias propostas. Normalmente no se discute o contexto mais
amplo. Naturalmente, possvel argumentar, com Thomas Kuhn, que essas
realizaes espetaculares so apenas os aspectos mais visveis da atividade cientfica
quotidiana. Um levantamento que se restringisse aos grandes feitos cientficos sofreria
das mesmas deficincias da historiografia tradicional, limitada aos monarcas, aos
Papas e s grandes batalhas. As pessoas e os acontecimentos extraordinrios no nos
pem em contato com a realidade do dia-a-dia, sem a qual a existncia daqueles
eventos e daquelas pessoas deixa de ser inteligvel. esta percepo que faz com que
a historiografia moderna se volte mais para o social, o econmico e o institucional. E
pela mesma razo que podemos estudar as dimenses social e histrica do trabalho
cientfico nas regies perifricas aos centros de maior dinamismo. Portanto, este um
estudo da cincia normal --- na verdade, a nica cincia que seria possvel no
Brasil.
No entanto, por mais necessria que seja, esta sociologia da cincia normal
poderia provavelmente ser melhor desenvolvida em outros lugares, e o presente
estudo encontra uma justificativa diferente. Em primeiro lugar, havia a motivao
poltica de curto prazo de pr em relevo o papel e a importncia da comunidade
cientfica, em oposio atitude tecnocrtica que estava ocupando o lugar do
obscurantismo dos anos precedentes. Menos circunstancial o fato de que o Brasil
um dos poucos pases ao Sul do Equador que pde desenvolver neste sculo
instituies e grupos cientficos duradouros e bastante significativos (o exemplo mais
importante, e muito melhor estudado, a ndia).
Estar situado ao Sul do Equador significa no ter participado plenamente na
tradio cultural e intelectual do Ocidente, a que pertencem a cincia moderna e suas
instituies associadas, tais como as modernas universidades e o capitalismo
empresarial. No entanto, ser perifrico com respeito tradio ocidental pode
significar coisas distintas para diferentes sociedades. O Brasil o produto de uma
modalidade especial da civilizao europia --- a da pennsula ibrica, que no
encontrou nos territrios que descobriu e colonizou uma populao e uma cultura
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Introduo: um espao para a cincia 18
nativas sobre as quais pudesse aplicar o seu domnio.9 No Brasil o processo de
colonizao foi conduzido por portugueses de tipo muito diverso (nobres e cortesos
titulares de monoplios e privilgios reais; bandidos; aventureiros em busca de ouro;
missionrios jesutas; desertores da Marinha; cristos novos, escapando da
Inquisio), a princpio com a ajuda de ndios escravizados, mais tarde com o trabalho
escravo africano, e a partir do fim do sculo dezenove com ondas de imigrantes da
Itlia, Alemanha, do Japo e de vrios pases da Europa Central. O resultado foi um
pas que dos maiores pases e mais heterogneos de todo o mundo, com uma
populao de cerca de 170 milhes, uma regio altamente industrializada em So
Paulo, reas de grande pobreza no Nordeste, regies que lembram a Europa no
Paran, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, algumas universidades de boa
qualidade e um grande nmero de pessoas alfabetizadas.
De que forma a cincia moderna cria razes e floresce fora do seu bero
tradicional? Como ela se relaciona com outras tradies intelectuais, outras situaes
institucionais, outros valores, diferentes maneiras de pensar? Os estudos cada vez
mais numerosos a respeito da cincia perifrica, que no pretendo avaliar aqui,
passaram das explicaes difusionistas para as imperialistas, das anlises da
incompatibilidade cultural para a busca de equivalncias funcionais, das teorias e
propostas de modernizao cientfica e tecnolgica para a proclamao de tradies
cientficas nicas e alternativas, supostamente mais promissoras.10
Vamos discutir estas e outras questes de uma perspectiva que espero seja
mais esclarecedora: tomemos o trabalho cientfico como um entre muitos
empreendimentos humanos, como uma manifestao da ao humana que constri e
modifica as estruturas sociais nas suas interaes com outros agentes sociais dentro
9 Os colonizadores portugueses encontraram nesses novos territrios populaes nativas sem o mesmo grau de organizao social e densidade demogrfica do Mxico e do Peru, colonizados pelos conquistadores espanhis. Como nos Estados Unidos e na Austrlia, os povos nativos foram gradualmente dizimados ou expulsos das reas costeiras para o interior, e permaneceram marginalizados com respeito sociedade dominante. O nico esforo significativo de colonizao dos indgenas do Atlntico Sul foi feito pelos jesutas no Brasil meridional, e mais tarde confinado ao Paraguai, nico pas onde o guarani ainda falado largamente, e cuja populao descende predominantemente daqueles amerndios.
10 Para uma viso ampla dos estudos sociais e cientficos sobre a cincia e a educao superior na Amrica Latina vide Vessuri 1986 e 1987. Vide tambm Basalla 1967 sobre o difusionismo; McLeord 1975 e Pyenson 1982 e 1984 sobre o imperialismo; Herrera 1971 e Sbato (ed.) 1975 sobre a dependncia; Sagasti 1983 a respeito da modernizao; e Bella 1971 sobre os equivalentes funcionais. A bibliografia sobre as tradies culturais alternativas na Amrica Latina muito pobre, embora seja muito ampla com respeito a outras regies do Terceiro Mundo.
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Introduo: um espao para a cincia 19
das fronteiras das suas limitaes no tempo e no espao.11 O que pode ser nico no
estudo social da cincia em sociedades perifricas ou semi-perifricas tais como a
brasileira o esforo para compreender como os portadores da cultura e das
instituies cientficas modernas precisaram trilhar um caminho difcil entre duas
formas opostas de conceber, organizar e interpretar o que estavam tentando realizar.
De um lado havia os pragmticos, que s conseguiam entender, justificar e explicar a
cincia pelos seus efeitos econmicos e tecnolgicos; de outro lado, aqueles que
equacionavam a cincia com a livre busca do conhecimento --- uma nobre atividade
das pessoas cultivadas.12 Ao retraar esse caminho h muito a ser dito e ponderado
sobre os esforos para criar uma cincia normal, um moderno sistema universitrio
e uma forma efetiva de participar (ainda que no de modo central) nas linhas
fundamentais da atividade cientfica.
Para entender melhor como a comunidade cientfica brasileira foi formada, e
por que ela nunca alcanou os nveis numricos e qualitativos atingidos em outros
pases do Ocidente, decidimos combinar os testemunhos colhidos atravs de nossas
entrevistas com um exame das numerosas fontes, at aqui dispersas, para tentar um
quadro amplo da histria social e institucional das principais tradies sociais e
institucionais brasileiras. Sempre que possvel, concentramo-nos na cincia e no na
tecnologia, assim como nas instituies cientficas, em lugar das instituies
educacionais e industriais. No obstante, no poderamos ignorar as primeiras escolas
de medicina, engenharia e agricultura, os institutos de pesquisa aplicada e as
universidades mais recentes, em que surgiu e se desenvolveu a maior parte da cincia
brasileira. Os testemunhos esto limitados s cincias naturais --- fsica, qumica,
biologia, as cincias da terra ---, com pouca nfase nas demais.13 As cincias sociais
foram excludas devido necessidade de limitar o projeto, e tambm porque elas
11 Vide uma elaborao extensa desta abordagem e suas implicaes em Giddens 1979, Cap. 1; e em Giddens 1987: 220-1.
12 No seu livro Science in History, de muita influncia, J. D. Bernal prevenia que a histria da cincia deveria superar uma viso desprovida de vida da evoluo do conhecimento humano, que tratasse a histria como uma construo simples e progressiva do edifcio ideal da verdade. Segundo Bernal, essa s pode ser escrita negligenciando todos os componentes sociais e materiais da cincia, e portanto reduzindo-a a uma tolice inspirada --- inspired nonsense. Essa nonsense ocorre tambm quando se admite uma perspectiva oposta, presumindo uma relao estreitamente unvoca entre determinadas caractersticas do sistema produtivo e a atividade cientfica. O prprio Bernal foi at certo ponto responsvel pela difuso desta idia ao afirmar, por exemplo, que it is these [productive relations], depending as they do on the [technical means] of production that provide the need for changes in these means and thus give rise to science (Bernal 1971, 1:50). A viso contempornea melhor expressada por Kuhn 1977.
13 Inclusive na matemtica, que no Brasil quase no se distingue historicamente da fsica. Vide Hning e Gomide 1979.
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Introduo: um espao para a cincia 20
apresentam uma realidade muito diferente, no s com respeito produo intelectual
mas tambm porque no Brasil, com poucas excees, elas nunca se
institucionalizaram, como aconteceu com as cincias naturais. 14
A busca da cincia
A atividade cientfica no pode se desenvolver e ser mantida de forma
sustentada se no tiver um componente importante de auto-referncia e auto-
regulamentao. Essa hiptese ser testada repetidamente conforme sigamos a
ascenso e a queda das instituies cientficas e tecnolgicas brasileiras, a partir do
sculo dezenove. Pelo menos duas condies so necessrias para que os cientistas
mantenham seus pares como principal grupo de referncia. Em primeiro lugar, a
sociedade precisa associar cincia com progresso, ou de alguma forma reconhecer o
valor do trabalho cientfico. esse reconhecimento que permite aos cientistas
alcanar prestgio social e atrair apoio financeiro. Em segundo lugar, e
paradoxalmente, os resultados dos esforos dos cientistas no devem produzir lucros a
ponto de afast-los da sua tarefa principal. Quando os cientistas assumem posies de
responsabilidade em empreendimentos tecnolgicos de grande interesse scio-
econmico, ou quando assuem uma posio hedonstica de resultado mximo com o
mnimo de esforo, isso significa que a sua preocupao com o desenvolvimento
pessoal passou para o pano de fundo, que outros valores e grupos de referncia
adquiriram razes, e a qualidade do seu trabalho cientfico pode estar ameaada.
Nossa preocupao com a cincia como atividade de uma comunidade
autnoma, e no como parte de um processo mais amplo de mudanas sociais e
econmicas, ou como atributo de uma educao profissional, no corresponde
necessariamente ao que os cientistas brasileiros pensavam sobre o assunto. O
desenvolvimento de um papel cientfico como nicho profissional desde o
Renascimento tem sido parte peculiar da tradio da Europa Ocidental.15 Como
veremos, porm, para os mdicos e engenheiros brasileiros envolvidos na atividade de
pesquisa, nunca foi evidente que a sua identidade como cientistas devia ser acentuada
e diferenciada com respeito funo profissional. Com freqncia os cientistas
brasileiros tm enfatizado a utilidade do seu trabalho para o estado e para a
populao, em lugar do carter especfico do papel que desempenham.
14 A histria das cincias sociais no Brasil foi o tema de um projeto do Instituto de Estudos Sociais e Polticos de So Paulo (IDESP), sob a direo de Srgio Miceli. Vide Miceli 1989.
15 Ben-David 1971.
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Introduo: um espao para a cincia 21
O amlgama de funes profissionais e cientficas foi parte de uma viso mais
ampla predominante entre os cientistas brasileiros desde o sculo dezenove, que
associava a cincia, o progresso, a modernizao e a criao de profisses baseadas
no conhecimento cientfico. No princpio da dcada de 1950 parecia haver uma
convergncia de todas as transformaes que vinham crescendo no Brasil desde a
dcada de 1930 --- a imigrao europia, o desenvolvimento da indstria e do
comrcio, o crescimento das cidades. Fernando de Azevedo, uma personalidade
importante na criao de instituies educacionais nos anos precedentes,16 expressou
deste modo o pensamento predominante sobre o tema nos crculos intelectuais
brasileiros:
Na medida em que o desenvolvimento da indstria e as descobertas da fsica,
da qumica e das cincias experimentais tendem a promover o refinamento das
cincias morais e polticas, no seria excessivo esperar que esse desenvolvimento
acrescentasse tambm riqueza do conhecimento acumulado pelas humanidades por
meio da observao e da experincia com o uso crescente de mtodos modernos.
Assim, certo que entramos decididamente em uma fase de renovao cultural, que
se expande e diversifica.17
Fernando de Azevedo tinha perfeita conscincia das dificuldades potenciais,
das reservas e precaues --- a despeito no nosso espanto diante das fantsticas
aplicaes desses descobertas --- com que assistimos aos problemas colocados pelas
profundas transformaes tcnicas e econmicas que ocorrem no mundo devido
excitante acelerao do progresso cientfico, problemas que provocam ansiedade18
No estava claro como a cincia poderia acompanhar espontaneamente o
desenvolvimento econmico e a modernizao, dando a sua contribuio. Devido ao
seu passado cultural ibrico e tradio escolstica, a sociedade brasileira deveria
resistir ao influxo do novo esprito cientfico. Comenta Fernando de Azevedo: O
progresso que fizemos, e sobre o qual precisamos refletir, deveria levar-nos a no
alimentar iluses sobre a possvel ocorrncia de pausas, mais curtas ou mais longas,
assim como de regresses, por mais transitrias, em um ou outro setor do vasto
domnio dos estudos e da pesquisa cientfica. Temos todos conscincia das origens e
ramificaes da velha noo de cultura e das atitudes que se enraizaram no nosso
16 Fernando de Azevedo, que era socilogo, participou da organizao da Universidade de So Paulo e editou uma coleo de artigos que constitui a melhor exposio sobre o desenvolvimento da cincia no Brasil. Vide F. de Azevedo [ed.] 1955.
17 F. de Azevedo (ed.) 1955:35.
18 F. de Azevedo (ed.) 1955:10-11.
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Introduo: um espao para a cincia 22
meio , as quais deixaram fortes resduos, e hbitos que persistem a despeito das
transformaes profundas que tem havido na sociedade.19 O diletantismo, a falta de
cooperao e de esprito de equipe, o tradicionalismo na educao, a preocupao
excessiva com os ganhos de curto prazo --- todos esses fatores colocam uma ameaa
ao progresso regular do esprito cientfico, e precisam de algum modo ser superados.
Portanto, o novo esprito cientfico precisa ser introduzido atravs da
propaganda e da mobilizao poltica. No Brasil como em outros pases latino-
americanos, a ideologia cientstica20 se difundiu gradualmente a partir de alguns
centros de pesquisa isolados, e crculos intelectuais limitados, para o sistema
educacional, levando por fim tenso entre os professores orientados para a pesquisa
e os outros setores da sociedade, inclusive as instituies tradicionais de ensino
superior. Podemos dividir o perodo de ativismo cientstico em trs grandes fases. A
primeira, que no caso do Brasil corresponde aos anos que precederam a Segunda
Guerra Mundial, relacionada com as tentativas de criar novas instituies
universitrias, que podiam ser estabelecidas em torno de centros ou institutos
avanados culturais e cientficos. A segunda, tpica do ps-guerra, incluiu algumas
tentativas mais ambiciosas de modificar completamente a estrutura universitria
tradicional, atribuindo pesquisa cientfica e tecnolgica um papel central no
planejamento scio-econmico. A terceira, mais tpica do fim dos anos 1960 e 1970,
se caracterizou por tentativas de criar nichos isolados e protegidos para a pesquisa
cientfica, com apoio em uma crena renovada no valor de redeno da moderna
cincia e tecnologia. No princpio dos anos 1990 parecia estar comeando uma quarta
fase, marcada por crescente sensibilidade s particularidades do trabalho cientfico e
s suas complexas interaes com a educao superior, a tecnologia e as profisses.
Essa sensibilidade dever impor-se pela fora da reflexo em torno da experincia
vivida e o peso das circunstncias atuais.
Cincia, tecnologia e as profisses
Adotar como foco principal do nosso estudo o desenvolvimento da
comunidade cientfica no requer a premissa de que a cincia deve ser organizada de
19 F. de Azevedo (ed.) 1955:36.
20 Com essa expresso queremos referir-nos ao movimento social surgido na Inglaterra e em outros pases europeus em torno do sculo dezessete, que os historiadores e socilogos tm chamado de cientismo ou cientificismo--- em ingls, scientism. Na Europa os primeiros propagandistas da cincia, da mesma forma como os latino-americanos durante o sculo vinte, se preocupavam com a educao universal e com amplos projetos de pesquisa cientfica e tecnolgica, que segundo eles garantiria o domnio da natureza e o surgimento de uma nova civilizao (Ben-David 1971:70).
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Introduo: um espao para a cincia 23
acordo com algum modelo idealizado, como o proposto h alguns anos por Robert K.
Merton.21 O conceito de comunidade cientfica deve ser entendido como um tipo
ideal, no sentido weberiano: uma construo intelectual que explicita os valores e
as aes sociais existentes e nos ajuda a compreender as suas conseqncias,
implicaes e tenses com outras formas de ao social. Podemos seguir a
emergncia desse tipo ideal, e algumas das suas implicaes, de pelo menos trs
perspectivas distintas mas convergentes: a primeira deriva da sociologia do
conhecimento cientfico, a segunda de uma anlise do inter-relacionamento entre
cincia e tecnologia nas sociedades contemporneas, a terceira da sociologia das
profisses.
Os socilogos da cincia nos dizem que cincia no um conceito unvoco,
e pode significar coisas distintas para pessoas diferentes. Pode ser visto assim como
um acervo de conhecimentos que desenvolvido, acumulado, transformado e
reestruturado de acordo com a dinmica prpria de cada campo. Pode tambm
significar no qualquer conhecimento mas um tipo especial de saber, com regras
prprias (geralmente explcitas) sobre o modo de incorporar novas informaes e
novos critrios para validar os resultados. Finalmente, pode referir-se a uma atitude
especial assumida pelos cientistas, qualificada de cientfica, orientada para
incorporar novos dados e aceitar novos conceitos sempre que eles surgirem, em
conformidade com as normas consideradas apropriadas em cada campo.
Em sentido lato, uma comunidade cientfica 22 pode ser entendida como um
grupo de indivduos que compartilham valores e atitudes cientficas, e que se inter-
relacionam por meio das instituies cientficas a que pertencem. Diz-se que uma
comunidade cientfica formada por indivduos que tm em comum habilitaes,
conhecimentos e premissas tcitas sobre algum campo especfico do saber. Nessa
comunidade, cada indivduo conhece seu campo especfico e algo das reas
adjacentes. H uma certa sobreposio do trabalho e das especialidades, e ningum
possui uma compreenso exaustiva e sistemtica de todo o campo. Outro elemento na
caracterizao da cincia como um sistema social a existncia de um sistema de
autoridade que defende os critrios de probidade, plausibilidade e aceitabilidade dos
resultados --- critrios que de modo geral no constituem um trao explcito do
mtodo cientfico, mas que de qualquer maneira so uma parte integral e fundamental
21 Vide Merton 1973, e para um exame mais amplo do conceito vide Mulkay 1977.
22 Nessa perspectiva, os diferentes sentidos que o conceito pode assumir algo bem exemplificado pela expanso e diversificao da noo de paradigma cientfico por Thomas Kuhn, no psfcio de 1970 de The Structure of Scientific Revolutions. Vide Kuhn 1970:174-210.
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Introduo: um espao para a cincia 24
do seu funcionamento.23 Alguns autores chegam ao extremo de sugerir que so esses
critrios implcitos, mais do que os explcitos, que representam a natureza mais
profunda da atividade cientifica enquanto tal.24
Nas palavras de Michael Polanyi, a comunidade cientfica funciona idealmente
como uma grande e complexa repblica: A Repblica da Cincia uma sociedade de
exploradores que lutam em prol de um futuro desconhecido, que acreditam ser
acessvel e digno de ser atingido. O cientista-explorador se esfora por aproximar-se
de uma realidade oculta, para a sua satisfao intelectual. medida que ele se
satisfaz, ilumina todos os homens e ajuda assim a sociedade a cumprir sua obrigaes
no sentido do auto-aperfeioamento intelectual.25 Considera-se que o melhor mtodo
para promover essa explorao dar a cada explorador o mximo de liberdade, j que
no seria possvel usar critrios externos, extra-cientficos, para decidir o que mais
ou menos importante para a cincia. Assim, a comunidade cientfica funciona como
um grande mercado que estimula naturalmente o que mais importante, e deixa de
lado o que menos significativo; caberia sociedade como um todo financi-la sem
procurar influenciar o modo como esses fundos so utilizados.
Uma crtica feita a essa viso idealizada que ela deriva, na melhor das
hipteses, de uma noo antiquada de cincia menor, que separa completamente a
cincia da tecnologia. No entanto, desde o Projeto Manhattan (ou dramatizada por ele)
a cincia parece ter dado um salto no sentido da cincia maior, caracterizada por
oramentos amplos e atividades de pesquisa de alta complexidade, envolvendo os
esforos coordenados de centenas e mesmo milhares de pessoas. Sempre que a
pesquisa atinge esse nvel de custo e de complexidade, desaparecem as fronteiras que
separam a cincia da tecnologia, e o mercado cientfico, concebido por Polanyi
substitudo de um lado pela lgica do mercado econmico, de outro pelas polticas
nacionais relacionadas com metas tecnolgicas de grande escala.26
Jean-Jacques Salomon acredita que as razes so ainda mais profundas. Ele
argumenta que a cincia moderna sempre buscou resultados prticos, e que a idia de
distinguir entre conhecimento puro e aplicado no passa de um vestgio de certa
atitude elitista de origem aristotlico-escolstica --- atitude que serve como obstculo
23 Polanyi 1962.
24 Por exemplo Barnes 1974; Bloor 1976; Latour e Woolgar 1979; Knorr-Cetina 1981.
25 Polanyi 1968:19.
26 Gibbons e Wittrock (eds.) 1985.
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Introduo: um espao para a cincia 25
cincia moderna. Referindo-se Europa do sculo dezessete, Salomon afirma que
nenhuma outra poca ilustra melhor a forma como a cincia est associada a uma
representao completa do mundo: a cincia vista como contemplao parte do
desenvolvimento de uma ordem social liberal, em que a tcnica corresponde a
artesos empenhados em tarefas servis. A tcnica considerada inferior cincia,
como o arteso considerado inferior ao indivduo livre, e ao acadmico.27
Com o Renascimento, a praxis passou a merecer melhor estima; a investigao
experimental alcanou maior dignidade e o conhecimento cientfico passa a ter uma
funo na realizao de metas mundanas. Aconselhando o Cardeal Richelieu,
Descartes expressou o significado que a cincia teria da em diante: Seria oportuno
que Vossa Eminncia concedesse dois ou trs dos seus milhes para efetuar todas as
experincias necessrias afim de descobrir a natureza especfica de cada corpo. No
tenho dvida de que poderamos assim reunir um grande conhecimento,
conhecimento que seria muito mais til ao pblico do que todas as vitrias que
pudessem ser conseguidas na guerra.28
No obstante, a crena de Descartes na utilidade da cincia no significa que
cincia e tecnologia fossem vistas como a mesma coisa. Seu reconhecimento do valor
da atividade experimental pode ter significado ou que o conhecimento especulativo
tinha adquirido uma orientao mais prtica ou que a postura experimental tinha
ganho dignidade, sendo incorporada s atividades acadmicas.
Sabemos hoje que at mesmo a pesquisa cientfica de natureza mais acadmica
guiada por estratgias que so muito mais complexas do que uma simples busca
neutra de conhecimento.29 A Repblica da Cincia de Polanyi descreve uma parte
dessa realidade e muito da ideologia correspondente, como podemos ver pela
aceitao que teve a sua proposta de organizao da atividade cientfica. Os laos
estreitos que ligam a cincia, a prtica e a poltica correspondem ao outro lado da
realidade, que por sua vez fica evidente nas crticas ao modelo de mercado, e na
resistncia que ele encontra.
De uma perspectiva mais limitada, a passagem da cincia menor para a
cincia maior pode ser considerada simplesmente como uma manifestao do
mercado da Repblica da Cincia, restringido pelos tetos impostos ao seu modelo
27 Salomon 1970:30.
28 Citado em Salomon 1970:39, e traduzido do francs.
29 Knorr-Cetina e Whitley 1981; Latour e Woolgar 1979.
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Introduo: um espao para a cincia 26
histrico de crescimento exponencial. O ideal da Repblica da Cincia tem muito a
ver com esse esprito dos horizontes abertos, de uma incessante incorporao de
novas pessoas e novas idias, de estmulo experimentao dentro de um sistema em
expanso contnua. A cincia maior parece corresponder ao ponto em que esse
crescimento comea a ser excessivo, criando uma base justamente para as atividades
de planejamento que podem restringir o livre funcionamento do mercado.30
Acresce ao progresso exponencial da cincia e do seu custo o crescimento no
menos espetacular dos resultados prticos que promove. A pesquisa de novos
materiais, a eletrnica e a biologia tm um tremendo impacto social, cultural e
econmico. Dentro desse contexto, inevitvel que a sociedade demande mais dos
cientistas, e que estes por sua vez sintam maior responsabilidade pelas implicaes do
conhecimento que desenvolvem. uma situao que cria um dilema para o cientista.
As caractersticas mais gerais da Repblica da Cincia, centradas no esforo de
desenvolver ao mximo os talentos individuais, e associadas a um sistema de
compensao baseado no mrito intelectual, so perturbadas quando comeam a
intervir critrios de custo, aplicabilidade prtica e utilidade social. Este um problema
particularmente agudo nas comunidades cientficas estranhas aos centros mais
importantes: a alienao do cientista com relao ao seu contexto social mais amplo,
ou mesmo a sua emigrao, pode ser o preo a pagar pela prioridade mxima posta
nos valores adotados pela Repblica da Cincia.
No surpreendente que, quando questionados, os cientistas e pesquisadores
brasileiros digam que suas decises de pesquisa se baseiam essencialmente no
interesse acadmico pelo tema escolhido; no entanto, de fato, essas decises so
fortemente influenciadas por alguma combinao de consideraes de ordem prtica,
incentivos materiais e institucionais, assim como as linhas predominantes da pesquisa
feita nas instituies para as quais trabalham.31 Essa contradio reflete os esforos
dos cientistas para privilegiar aqueles valores que maximizam o mrito intelectual e o
reconhecimento cientfico na distribuio de compensaes, de prestgio e de recursos
em todo o sistema educacional e cientfico em que esto inseridos. E tambm uma
indicao de que eles respondem aos aspectos prticos do mundo real.
A tenso existente entre o que os cientistas fazem e aquilo que acreditam que
deviam fazer s um dos fatores (e no o mais importante) que prejudicam o
funcionamento de uma lgica pura de mercado. Os proponentes do modelo de
30 Price 1963.
31 N. S. Oliveira 1975:115.
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Introduo: um espao para a cincia 27
mercado para a atividade cientfica se utilizam dos argumentos clssicos usados pelos
economistas para criticar as economias monopolsticas: a tendncia ineficincia, a
manuteno indefinida de instituies e organizaes obsoletas, a criao de
instituies de planejamento cada vez mais pesadas e complexas. Por outro lado, h
boas razes para justificar a busca de precedncia, a distribuio preferencial de
fundos, e a manuteno de esquemas protecionistas. A saber, a necessidade de evitar
uma concentrao espontnea de recursos e talento; de proteger iniciativas ainda
frgeis, que poderiam ser absorvidas ou eliminadas pela competio indiferenciada;
custos sociais inevitavelmente elevados; e as distores que surgem quando se
permite a predominncia de uma atitude de laissez-faire em uma atividade que se
torna crescentemente custosa, e dominada por grupos de interesse profissional bem
organizados.
Esse dilema visvel tambm nas vrias polticas e filosofias dos grupos
sociais e agncias governamentais associadas direta ou indiretamente com a cincia, a
tecnologia e a educao superior. A cincia se desenvolve (ou se paralisa) justamente
no ponto de encontro dessas tendncias.
Os contrastes entre cincia e tecnologia no podem simplesmente ser
ignorados, pois refletem uma questo mais profunda: o modo como os cientistas
definem o seu papel na sociedade, como eles se vem, e como esperam ser tratados
pela sociedade --- um fato percebido claramente por muitas das pessoas entrevistadas.
O bilogo Paulo Emilio Vanzolini,32 por exemplo, afirmou que a biologia bsica e a
aplicada s variam em termos do interesse econmico envolvido. Se estudo a
estratgia reprodutiva de um lagarto, por exemplo, isto no cincia aplicada. Mas se
fao o mesmo com um peixe que tem uma certa importncia econmica, passa a ser
cincia aplicada, porque importante avaliar a intensidade com que essa espcie de
peixe pode ser explorada. E acrescentou: A distino entre cincia pura e aplicada
no reside apenas no mrito de cada uma, ou no modo como so concebidas, mas no
tipo de animal que estudado. A meu ver, este o ponto essencial. Vanzolini se
considera um pesquisador bsico que admite como uma das suas tarefas o treinamento
de pesquisadores aplicados, ensinando-lhes a metodologia apropriada ao seu trabalho.
Entre os qumicos parece haver o consenso de que a fisico-qumica a
especializao mais terica dessa disciplina. No entanto, os qumicos dedicados ao
estudo das caractersticas e dos componentes dos produtos naturais tambm se
definem como pesquisadores bsicos, j que no buscam uma aplicao econmica
32 Vide no apndice a relao dos cientistas entrevistados. Para a biografia desses cientistas, e um sumrio das entrevistas, vide CPDOC 1984.
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Introduo: um espao para a cincia 28
imediata: Nosso trabalho consiste em identificar substncias com diferentes
estruturas qumicas, e a termina o nosso interesse. preciso que haja
farmacologistas, ecologistas, agrnomos, veterinrios, etc. que se interessem por esse
trabalho e tentem ver em que medida a anlise das plantas brasileiras importante
para explicar cada um dos seus prprios fenmenos (Otto Gottlieb, entrevista). A
fronteira entre o que pesquisa bsica, fundamental, aplicada ou terica
depende menos de noes epistemolgicas do que da funo que os cientistas desejam
ter na sua sociedade.
Os mesmos dilemas podem ser vistos pelo prisma da sociologia das profisses.
Aos mdicos e engenheiros brasileiros nunca pareceu evidente que a sua identidade
como cientistas devesse ser acentuada e diferenciada da sua funo profissional.
Alis, esta no uma situao peculiar ao Brasil. A medicina, como o direito, foi
sempre uma profisso de status social elevado, e no Brasil a engenharia seguiu a
tradio francesa. Qualificar essas profisses de cientficas, dotadas portanto de
uma aura de alta competncia, era uma coisa; coisa diferente era renunciar ao
prestgio (e muitas vezes aos rendimentos elevados) das profisses tradicionais. No
Brasil, como em outros pases, definir onde termina a cincia biomdica ou fsica e
onde comea a profisso mdica ou de engenharia mais um assunto relacionado
com as disciplinas acadmicas e a institucionalizao profissional do que com
critrios epistemolgicos ou funcionais bem definidos. Mas importante identificar
essa fronteira, pois no h muitas dvidas de que a pesquisa cientfica no pode
progredir se no reconhecida como uma atividade profissional independente, dotada