silvio romero historia da literatura brasileira

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HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA [Fragmentos] 1 Sílvio Romero Um estudo, mais ou menos completo, do escritor fluminense – na poesia, no conto, no romance, determinando-lhe o valor nesses domínios da produção literária, e nomeadamente notando-lhe as qualidades predominantes do espírito, no intuito de defini-lo em traços nítidos, já não é hoje coisa que se possa fazer sem arredar previamente do caminho certos tropeços nele postos pela crítica indígena. Uma desses é a apregoada antinomia entre a primeira e a segunda fase da carreira do ilustre autor, entre a sua antiga maneira e a que depois adotou. Julgam geralmente que existe um valor quase invadeável entre os dois períodos. A nova maneira de Machado de Assis não estava em completa antinomia com o seu passado, sendo apenas o desenvolvimento normal de bons germes que ele nativamente possuía, naquilo que a nova tendência teve de bom, e o desdobramento, também normal, de certos defeitos inatos, naquilo que teve ela de mau. O psicologismo, mais ou menos irônico e pessimista, do autor de Memórias Póstumas, prende-se, por mais de uma raiz, ao romantismo comedido e sóbrio, cheio de certas sombras clássicas, que o escritor jamais abandonou. Por outros termos, seu romantismo foi sempre, no meio da barulhada imaginativa e turbulenta dos seus velhos companheiros, pacato e ponderado, com uma porta aberta para o lado da observação e da realidade; seu posterior sistema, que poderemos chamar de naturalismo de meias-tintas, um psicologismo ladeado de ironias veladas e de pessimismo sossegado, tem, por sua vez, uma janela escancarada para a banda das fantasias românticas, não raro das mais exageradas e aéreas. Toda a obra do escritor é um produto sui generis, dando-nos o exemplo duma espécie de ecletismo maneiroso, ponderado, discreto, em que se refletem as forças de um espírito valoroso, é certo, porém fundamentalmente plácido e tranquilo. Outro preconceito que é mister arredar é o de não poder o autor de Iaiá Garcia ser apreciado pelo critério nacionalista. Machado de Assis pode e deve ser também julgado pelo critério nacionalista, que aliás não reputamos o único critério nestes assuntos; por mais de uma face o poeta das Falenas, o romancista de Ressurreição, presta-se à operação e não amesquinhado. A inspiração nacionalista não é, ao que se repete vulgarmente, a que é mais pegada à vida nacional. Se asim fora, não teríamos dado importância a Álvares de Azevedo, Laurindo Rabelo, Aureliano Lessa, Varela, Castro Alves, Tobias Barreto, que, entre os românticos, estão na primeira fila dos poetas, já não falando do velho Cláudio da Costa, que ocupa o primeiro posto entre os clássicos. O espírito nacional não está estritamente na escolha do tema, na eleição do assunto, como se costuma supor. Não é mais possível hoje laborar em tal malentendu. O caráter nacional, esse quid quase infindável, acha-se, ao inverso, na índole, na intuição, na visualidade interna, na psicologia do escritor. Tomasse um eslavo, um russo, como Tolstoi, por exemplo, um tema brasileiro, uma história qualquer das nossas tradições e costumes, havia de tratá-la sempre como russo. Isto é fatal. Tomasse Machado de Assis um assunto entre as lendas eslavas, havia de tratá-lo sempre como brasileiro, queremos dizer, com aquela maneira de sentir e pensar, aquela visão interna das coisas, aquele tique, aquele sestro especial, se assim nos podemos expressar, que são o modo de 1 Publicado em História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1960 [1888, 1902, 1903]

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  • HISTRIA DA LITERATURA BRASILEIRA[Fragmentos]1

    Slvio Romero

    Um estudo, mais ou menos completo, do escritor fluminense na poesia, no conto, no romance, determinando-lhe o valor nesses domnios da produo literria, e nomeadamente notando-lhe as qualidades predominantes do esprito, no intuito de defini-lo em traos ntidos, j no hoje coisa que se possa fazer sem arredar previamente do caminho certos tropeos nele postos pela crtica indgena.

    Uma desses a apregoada antinomia entre a primeira e a segunda fase da carreira do ilustre autor, entre a sua antiga maneira e a que depois adotou.

    Julgam geralmente que existe um valor quase invadevel entre os dois perodos.A nova maneira de Machado de Assis no estava em completa antinomia com o seu passado,

    sendo apenas o desenvolvimento normal de bons germes que ele nativamente possua, naquilo que a nova tendncia teve de bom, e o desdobramento, tambm normal, de certos defeitos inatos, naquilo que teve ela de mau.

    O psicologismo, mais ou menos irnico e pessimista, do autor de Memrias Pstumas, prende-se, por mais de uma raiz, ao romantismo comedido e sbrio, cheio de certas sombras clssicas, que o escritor jamais abandonou.

    Por outros termos, seu romantismo foi sempre, no meio da barulhada imaginativa e turbulenta dos seus velhos companheiros, pacato e ponderado, com uma porta aberta para o lado da observao e da realidade; seu posterior sistema, que poderemos chamar de naturalismo de meias-tintas, um psicologismo ladeado de ironias veladas e de pessimismo sossegado, tem, por sua vez, uma janela escancarada para a banda das fantasias romnticas, no raro das mais exageradas e areas.

    Toda a obra do escritor um produto sui generis, dando-nos o exemplo duma espcie de ecletismo maneiroso, ponderado, discreto, em que se refletem as foras de um esprito valoroso, certo, porm fundamentalmente plcido e tranquilo.

    Outro preconceito que mister arredar o de no poder o autor de Iai Garcia ser apreciado pelo critrio nacionalista.

    Machado de Assis pode e deve ser tambm julgado pelo critrio nacionalista, que alis no reputamos o nico critrio nestes assuntos; por mais de uma face o poeta das Falenas, o romancista de Ressurreio, presta-se operao e no amesquinhado.

    A inspirao nacionalista no , ao que se repete vulgarmente, a que mais pegada vida nacional. Se asim fora, no teramos dado importncia a lvares de Azevedo, Laurindo Rabelo, Aureliano Lessa, Varela, Castro Alves, Tobias Barreto, que, entre os romnticos, esto na primeira fila dos poetas, j no falando do velho Cludio da Costa, que ocupa o primeiro posto entre os clssicos.

    O esprito nacional no est estritamente na escolha do tema, na eleio do assunto, como se costuma supor.

    No mais possvel hoje laborar em tal malentendu. O carter nacional, esse quid quase infindvel, acha-se, ao inverso, na ndole, na intuio, na visualidade interna, na psicologia do escritor. Tomasse um eslavo, um russo, como Tolstoi, por exemplo, um tema brasileiro, uma histria qualquer das nossas tradies e costumes, havia de trat-la sempre como russo. Isto fatal. Tomasse Machado de Assis um assunto entre as lendas eslavas, havia de trat-lo sempre como brasileiro, queremos dizer, com aquela maneira de sentir e pensar, aquela viso interna das coisas, aquele tique, aquele sestro especial, se assim nos podemos expressar, que so o modo de

    1 Publicado em Histria da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1960 [1888, 1902, 1903]

  • representao espiritual da inteligncia brasileira. No h livro menos alemo pelo assunto do que o Fausto; no existe outro mais alemo pelo

    esprito. O tema universal, humano, a execuo germnica.Machado de Assis no sai fora da lei comum, no pode sair, e ai dele se sasse. No teria

    valor. Ele um dos nossos, um genuno representante da sub-raa brasileira cruzada.Seus romances, seus contos, suas comdias encerram vrios tipos brasileiros, genuinamente

    brasileiros, e ele no ficou, ao jeito de muitos dos nossos, na decorao exterior do quadro; mais penetrante do que muitos desses, foi alm, e chegou at a criao de verdadeiros tipos sociais e psicolgicos, que so nossos em carne e osso, e essas so as criaes fundamentais de uma literatura. Que tal aquele Lus Garcia, aquele Antunes, aquela Valria, aquele Procpio Dias, aquele Estela, todos estes s no pequeno livro de Iai Garcia?

    Que vm a ser aquele Carlos Maria, aquele Freitas, aquele Palha, aquela Fernanda, aquele Tefilo, aquela Tonica, aquele Camacho, e esse impagvel major Siqueira, todos dessa extensa galeria de silhouettes que se chama Quincas Borba? Nos contos ento a messe ainda maior...Ser preciso lembrar o O diplomtico, esse curioso Rangel, que um modelo do gnero, ou certos tipos de O alienista, e da Galeria pstuma, to brasileiros em tudo?

    Falemos agora do humorismo e pessimismo do nosso romancista.Depois da mutao por que, de 1870 em diante, foi passando o esprito dos intelectuais

    brasileiros, sob a influncia partida da escola de Recife, houve certo grupo de romnticos que no tiveram a coragem de atirar fora a velha linguagem e tomar outra nova, entrando nesse renovamento do pensar nacional pela crtica, e comearam a se mostrar amuados, displicentes, irnicos, desgostosos, rebuscados, misteriosos e pessimistas.

    Impotentes j, pela idade, de tomar um partido definido entre as grandes correntes filosficas que dividiam o sculo, materialismo, positivismo, evolucionismo, monismo, transformstico, hartmannismo, ficaram a burilar frases com o ar enigmtico de faquis, falando em nome de no sabemos de que coisas ocultas que fingiam saber.

    Neste singular grupo Machado de Assis foi chefe de fila.Ele sentiu tambm, numa certa hora, o desgosto que, em momento psicolgico, se apoderou

    dalma brasileira. Mas sentiu-o de leve. Papis avulsos, Vrias histrias, Memrias Pstumas, Quincas Borba...so amostras desse

    humorismo pacato, desse pessimismo vistoso e intencional, que atacou o esprito pblico, antes que ele tomasse gosto e jeito para passar adiante.

    Ora, o humour no artefato que se possa imitar com vantagem; porque ele s tem real merecimento quando se confunde com a ndole mesma do escritor.

    O humorista porque e porque no pode deixar de ser. Dickens, Carlyle, Swift, Sterne, Heine foram humoristas fatalmente, necessariamente; no podia ser por outra forma. A ndole, a psicologia, a raa, o meio tinha de faz-los como foram.

    Toms Hood, Fielding, Richter, ou qualquer dos citados acima, ningum de bom senso pode acreditar que escrevessem as Americanas, Helena, Iai Garcia, A mo e a luva, Ressureio, Crislidas, isto , seis livros onde tudo poder existir, menos o genuno humour, seis livros que representam um grande mortalis aevi spatium do nosso autor, sem que este desse, de longe ou de perto, o menor sinal de ocultar em si o esprito mefistoflico dos humoristas de raa.

    O Machado de Assis dos ltimos anos era fundamentalmente o mesmo ecltico de trinta ou quarenta anos atrs: meio clssico, meio romntico, meio realista, uma espcie de juste milieu literrio, um homem de meias-tintas, de meias palavras, de meias ideias, de meios sistemas, agravado apenas pelo vezo humorstico, que no lhe ia bem, porque no ficava a carter num nimo to calmo, to sereno, to sensato, to equilibrado, como era o autor de Tu s, tu, puro amor.

  • A manifestao mais aproveitvel de seu talento foi certa aptido de observao comedida e a capacidade de a revestir, em suas obras, de uma forma correta e pura.

    A princpio o poeta e romancista dilua por tudo aquilo certo lirismo, doce, suave, tranquilo; depois teve veleidades de pensador, de filsofo, e entendeu que devia polvilhar os seus artefatos de humour, e, s vezes, de cenas com pretenso ao horrvel.

    O temperamento, a psicologia do notvel brasileiro no eram os mais prprios para produzir o humour, essa particularssima feio da ndole de certos povos. Nossa raa em geral incapaz de o produzir espontaneamente.

    Nossa raa produz facilmente o cmico, que se no deve confundir com o humour.O cmico ri pelo gosto de rir, porque em tudo sabe farejar o grotesco. O humorista ri com

    melancolia, quando devia chorar; ou chora com chiste, quando devia apenas rir. A situao diversa e mais complicada do que a do esprito simplesmente cmico.

    Como quer que seja, no se encontram em Machado de Assis os caractersticos do humorista descritos pelos mestres da crtica.

    No tinha aquela visualidade subjetiva da contradio entre o ideal e a realidade no mundo e no homem, que o forasse constantemente nota artstica do humour.

    No tinha aquela efuso contnua da sensibilidade, que tal estado dalma determina. No possua aquela particular superioridade de julgamento dos homens e das coisas, e descambava quase sempre, em seus ltimos livros, para o pessimismo, que no o humorismo, e alguns vezes talvez para uma espcie de misantropia, coisa por outro lado tambm diversa do pessimismo.

    Se se pode tomar Laurence Sterne como o tipo de escritor humorista e os seus livros como modelo do gnero, no h no mundo das letras dois homens mais dessemelhantes do que o autor de Ressureio e o de Tristram Shandy, e no existem obras mais diferentes do que as do autor ingls e as do brasileiro.

    Sterne era um misto singular de volubilidade e paixo, de sentimentalismo e leviandade. Pastor protestante e crente na sua religio, era um perptuo namorado, metido em aventuras apaixonadas que o levaram quase ao delrio. Filho de militar ingls, conheceu a vida da caserna e das guarnies de cidade em cidade; de famlia burguesa, e mais tarde pastor d'aldeia, tendo passado pela universidade, ps-se em contato com a mdia da sociedade, onde so mais tenazes as recordaes e mais variados os tipos.

    Da a grande fonte em que se abeberava a sua imaginao travessa, o seu carter inconstante, a sua ndole verstil.

    Por isso que encheu Tristram Shandy e a Viagem sentimental de tantas cenas que so verdadeiros prodgios d'arte humorstica e conseguiu criar dois tipos dos mais originais da literatura universal. Algumas destas cenas, como a histria de Le Fever, a morte de Yorick, os dois asnos, o asno morto de Namport e o de caapo, a mosca do irmo de Tristram, so, no dizer dos mestres, verdadeiras obras-primas. Quanto aos tipos, isto , os dois manos Shandys, so dois caracteres animados, duas criaes cheias de realidade, de movimentao, de fora, de vida, em suma, que parecem dois entes tomados ao natural, tipos representativos de duas classes de seres humanos, sem abstrao, e na mais completa espontaneidade da existncia.

    Nem o nosso sensato, manso, criterioso e tmido Machado se pareceu com Laurence Sterne, nem ele jamais ideou nada, que lembre os dois irmos Shandys.

    Existem os grandes felizes otimistas, o que natural; os grandes felizes que se do ao luxo de ser pessimistas, o que no deixa de ser muitas vezes bem singular; h os grandes sofredores pessimistas, o que explicvel; os grandes desgraados, que tm a generosidade de se mostrar otimistas, o que merece peculiar ateno. Mas a lista ainda est bem longe de ser completa: h os sofredores, que, por circunstncias vrias da sensibilidade e da inteligncia, chegam a certo pessimismo apenas teortico, espcie de protesto para uma mais perfeita organizao das coisas.

  • Neste grupo que se h de colocar o nosso Machado de Assis. No se pode contestar nele o pessimismo, mais acentuado ainda do que o seu humrismo;

    mas assim como este se agravou inutilmente em suas ltimas obras com certas frmulas meramente convencionais, tambm o seu pessimismo da ltima fase tem alguma coisa de exterior.

    H uma nota nas Memrias pstumas de Brs Cubas e noutros dos mais recentes livros de Machado de Assis, que deve ser assinalada para completa apreciao de sua personalidade: a colorao de horrvel que imprime em alguns de seus quadros.

    Falta neste ponto a Machado um no-sabemos-qu que uma espcie de impavidez na loucura, qualidade possuda pelo grande Edgar Allan Poe e de que um medonho exemplo o seu Gato preto, ou um certo tom grandioso e pico que estruge nalgumas pginas da Casa dos mortos de Dostoivski, capazes de emparelhar com algumas cenas de Dante.

    Mas em lngua portuguesa ningum, no gnero, se elevou to alto quanto Machado, nem no Brasil, nem em Portugal, convm afirm-lo.

    Era um filo que ele devia aprofundar esse do carter do brasileiro com suas virtudes e defeitos. Sua obra seria mais variada e profunda. Com trs ou quatro paletadas o emrito estilista sabia, quando queria, pr de p um sujeito e faz-lo mover-se nossa vista.

    E com estas notas voltamos a um dos pontos donde partramos. O autor de Dom Casmurro pode e deve ser tambm apreciado pelo critrio nacionalista.

    O nisus central e ativo de Machado de Assis era de brasileiro, e como tal se revelava no carter essencial de sua obra de mestio e at em vrias roupagens exteriores, quando assestava a observao mais diretamente para as coisas ptrias.

    Cremos poder defini-lo em poucas palavras:Machado de Assis no era um satrico; a mais superficial leitura de qualquer de suas obras

    mostra-o logo s primeiras pginas. No era um cmico, nem como dizedor de pilhrias, nem como criador de tipos e situaes engraados e equvocas. No era tambm plenamente um misantropo, um dtraqu. No lembra, pois, nem Juvenal, nem Martins Pena, nem Molire, nem de todo Baudelaire, ou Poe, ou Dostoivski. No era, finalmente, da raa dos humanitrios propagandistas e evangelizadores de povos ao gosto de Tolsti. Era, antes, uma espcie de moralista complacente e doce, eivado de certa dose de contida ironia, como qualidade nativa, que de quando em quando costumava enroupar nas vestes de um peculiar humorismo, aprendido nos livros, e a que dava tambm por vezes uns ares de pessimismo intencional.

    O que era seu, o que existia no seu esprito, como qualidades naturais, como bases de seu temperamento, vinham a ser o talento da anlise psicolgica, uma espontnea simpatia pela dignidade humana, a facilidade de generalizar os fatos e as ideias, o que tudo d ao complexo de sua obra certo sainete moralizante, que o humour e o pessimismo no tm fora de apagar. Possua, por certo, uma dose ingnita de ironia; mas esta no podia nunca extravasar-se tumulturia e envenenadora, por ser sofreada pela timidez fundamental do temperamento do escritor.

    Tal a razo pela qual se deve afirmar a unidade da obra do poeta e do romancista atravs de seus trinta volumes, de seus cinquenta anos de trabalho. Mostra certamente em si vivos sinais de evoluo e progresso; mas esses no se fizeram como sntese de suas primeiras revelaes na arena das lides espirituais, e sim como normal continuao e desdobramento delas.