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SERRA VERMELHA
J R o d r i g u e s V i e i r a
Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida, sob
quaisquer meios existentes, sem autorização por escrito do autor.
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Diagramação: Marcelo M. Pupit
Capa: Parma Direc
Exame de Leitura de João Batista Salomão
Rodrigues Vieira J – Osasco-SP 1972
Serra Vermelha/ J Rodrigues Vieira - 88 p.
SERRA VERMELHA – 2013
ISBN: 978-85-8196-284-9
1. Ficção Brasileira – 2. Comportamento – 3. História Agrária – I. Titulo.
CDD B869.
Todos os direitos reservados por J Rodrigues Vieira
NOTA DO AUTOR
Imaginava alguma coisa no universo do s castelos e cassi-
nos, quase sempre presentes nas obras de Jorge Amado,
acerca do canto épico do cacau. Numa pesquisa, encontrei
o famoso Cassino Del Oro da famosa cortesã Maria Boa.
Num momento de inspiração escrevi um conto onde
Maria Boa se encontrava em Madame De Belle, enquanto
o Cassino Del Oro era o Castelo das Flores. Como pano de
fundo, misturei crônicas políticas e sociais entorno de um
empreendimento para erguer uma barragem de aterro
numa região árida do sertão profundo.
A curta narrativa não estava clara, e também não
estabelecia um caráter estético a me convencer. Tentava
encontrar palavras e situações. Nada fechava. Inacabado,
desinteressei-me. Nesse período, iniciei outro conto,
trazendo uma linda mulher de cabelos ruivos, inspirado
na obra de obra de José Zorilla: Don Juan Tenório. Onde
Don Juan e seu amigo Don Luís lembravam de suas
seduções, numa disputa para saber qual era o mais
conquistador. Don Luís então lança a Don Juan, o desafio
de conquistar uma mulher com a alma pura e devota. Don
Juan então se dedica a seduzir Dona Inês, noiva de Don
Luís. Nela, o sedutor encontra o verdadeiro amor. A
história termina numa terrível disputa além-mundo.
Ao revisitar os trabalhos inacabados, notei a
verrosimilhança. Outras pessoas passaram a figurar a
narrativa, situações e ambientes surgiram―, e assim
nasceu Serra Vermelha.
Aos que se lançam aos sonhos...
Aos meus amigos.
Aos loucos de amor.
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“A chuva pesada se prolongou por dias e dias.
Quando a última parede da barragem desmoronou, já não
havia ninguém no estreito vale por onde corriam águas do
Rio do Chumbo em Serra Vermelha”.
EXPRESSO NOTURNO
O trem apitou e partiu.
Crispim se encafuou num vão entre os últimos
bancos na dianteira do vagão. Magricela, de olhos
miúdos e vivos, ajeitou o saco com a bagagem em-
baixo do assento e se manteve atento; Carlitão, negro
alto, forte e carrancudo se acomodou à frente. Do
lado oposto, uma mulher de meia idade tentava
conter os filhos estripulentos que insistiam em correr
de um lado ao outro, no interior do vagão,
parcialmente lotado.
O céu estava carregado sem nenhuma porção de
azul. A chuva desceu tempestiva quando
embarcaram numa classe miserável da Companhia
Ferroviária do Nordeste, e sentiram o trem partir nas
primeiras horas da noite. A água que transpassava o
teto, caia em gotículas sobre os passageiros. Ao som
do estridente apito, uma composição a vapor partia
levando sentimentos ensimesmados numa viagem
soturna.
Crispim ajeitava seu corpo pequeno no vão, en-
quanto a mulher praguejava com seus filhos. Do lado
de fora, a chuva insistia forte, e a noite era cortada
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por raios e estrondosos trovões, numa agitação
violenta.
De um recipiente embrulhado num papel grosso,
um velho, que antes pitava um cachimbo, retira uma
vasilha de barro onde estava uma gordurosa farofa
com grandes pedaços de galinha. Com uma pequena
faca, mexe a refeição, levanta-se, ergue a vasilha e
oferece aos outros.
Um cheiro bom exalou. Cheiro de comida que
atraiu os meninos. A mãe reclamava:
— Olhe o mau costume, pestes!
O velho interferiu com uma risada estrepitosa.
— Não se incomode minha senhora, tem bas-
tante...
Crispim sentiu o estomago roncar. Encarou o ve-
lho com os olhos vivos, quase suplicando. Após cada
menino receber um punhado de farofa e um pedaço
da gordurosa galinha, o velho se dirigiu a Crispim,
pois já havia percebido os olhos de fome do moço.
— E tu?
Estendeu os braços magros.
Acanhado, Crispim esboçou uma tímida risada.
— Se não lhe fazer falta...
— Tem muito.
— Nosso Senhor Jesus Cristo que lhe ajude.
Assim, a vasilha passou de mão em mão
daqueles que ocupavam a parte dianteira do vagão.
Carlitão, de rosto enfezado, recusou num primeiro
instante, porém, ao perceber que os outros lambiam
os beiços, resolveu também experimentar.
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Uma conversa foi iniciada pelo velho que
repartia a bóia.
— Vejam os senhores, esse velho de setenta e
dois anos, que já andou por toda essa zona, viu de
tudo e soube de muitas coisas, agora segue sem eira
nem beira para Serra Vermelha.
— Não me diga que o amigo vai trabalha na
construção da barragem?
Interrompeu a mulher.
— Se me aceitarem por lá, vou tentar a sorte...
— Eu também sigo pra lá!
Falou a mulher.
— E você, meu caro?
Pergunta direcionada ao raquítico que se
encolhia no vão entre os bancos.
— Meu velho, eu tenho andado desatinado nesse
sertão...
— E a senhora?
Era a vez da mulher que ralhava com os filhos a
correr pelo vagão.
— Vou encontrar Neca, meu marido.
— Ele tá em Serra Vermelha?
— Desde o principio do ano.
— Pois essa chuvarada é um sinal de sorte...
Apontou o velho.
— Chuva no sertão demora, e quando vem molha
pouco...
Raciocinou Crispim.
De cara trancada, enquanto os outros conversa-
vam e riam, Carlitão se mantinha indiferente em seu
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canto. Quando o trem parou na estação de um
pequeno povoado, todos desceram. No negrume da
noite, agora sem chuva, se dirigiram para os
quiosques iluminados à base de querosene. O velho
pediu um copo de mingau; Carlitão, de face dura,
recostou no balcão, pediu uma pinga e uma porção
de sarapatel; Crispim, num canto, conferia as
merrecas na intenção de sorver um cafezinho. Foi o
que fez, porém dantes, ofereceu ao companheiro de
viagem. Para retribuir, Carlitão propôs dividir a
porção de sarapatel. Do outro lado, a mãe repartia
uma penca de banana entre os filhos.
— Que mal lhe pergunte amigo, de onde vem?
Quis saber Crispim.
O outro virou na boca o copo com outra dose de
cachaça, lambeu os beiços grossos, cuspiu, e passou a
picar o fumo com um canivete.
— Venho das terras do cacau, no sul da Bahia...
Respondeu oferecendo um trago ao magricela.
— Muito agradecido, mas já faz muito tempo...
O grandalhão de olhos maus fitou-lhe com
desconfiança.
— Também segue pra construção?
— E num é...
Naquele mesmo instante, a mulher puxa
conversa com o velho.
— Tá indo pra Serra Vermelha?
— Pois sim.
— Qual sua graça?
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— Sou conhecido como Chico Tropeiro... Quem
sabe lá encontro meu destino...
— E o senhor não tem família?
Quis saber a mulher.
— Já tive mulher e filhos. Minha finada mulher
padeceu com o paludismo. Meus filhos homens des-
cambaram pro sul e não deram mais notícia. Duas de
minhas filhas se casaram e outra se perdeu...
A mulher se aproximou reclamando das
travessuras dos meninos e pediu ao velho auxílio
com o ainda de colo, enquanto repartiria uma porção
de farofa guardada numa algibeira.
Após trinta minutos, o apito voltou a soar e
todos se abrigaram novamente no vagão ainda
impregnado de água. Mergulhado num luar
envolvido no breu noturno, a composição ferroviária
partiu rasgando a madrugada, levando em si
sentimentos misturados.
***
No mesmo trem, Inês, uma moça banhada no sol-
das-almas, de curvas suaves, gestos agradáveis e
olhos cheios e azuis, se acomodava na classe mais
confortável. Inês também seguia para Serra
Vermelha, onde Madame De Belle estava de volta à
cena numa casa de diversões, na grandiosidade árida
de Serra Vermelha.
***
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A BARRAGEM
O afamado empreendimento que se ergueria
numa região, onde a irregularidade climática é um
dos fatores que mais interferem na vida do semi-
árido, desde que as fazendas de criação de gado
começaram a ocupar o cenário. Os primeiros a chegar
pouco entendiam a fragilidade da caatinga, cuja
aparência árida denuncia uma falsa solidez. Para
combater a seca, foram construídos os primeiros
açudes para abastecer de água os homens, seus
animais e suas lavouras. Agora, o Senhor Pompilho
Marques, coronel sertanejo, se lançava ao desafio das
grandes obras da humanidade na construção de uma
barragem que não tinha como objetivo de fato,
nenhuma função fundamental ao desenvolvimento,
sobretudo à escassez de água no período seco e à
consequente necessidade de armazenamento. Seu
único objetivo era o controle do recurso perante uma
região castigada no agreste profundo, e reforçar um
ambiente onde se concebia em sua estruturação um
processo baseado num sistema econômico arcaico, de
subsistência como na idade medieval européia, de
relações sociais de servidão. Pois, o armazenamento
de água lhe serviria apenas para aumentar o poder
opressivo. O plano de conceber tamanha empreita no
vale estreito, por onde corriam as águas do Rio do
Chumbo, lhe veio à mente depois de uma conversa
por ocasião de uma visita de Apolinário Fortunato,
detentor das terras do Espinhaço Verde, no
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aconchego de suas cadeiras de balanço na varanda da
casa-grande, em um só pavimento.
Senhor Pompilho Marques contava histórias de
bravuras de Aldério Pompilho, seu avó, e Hermínio
Pompilho, seu pai. A fortificação rústica estava
localizada numa elevação de posição estratégica, de
tal modo que permitia ao senhor daquelas terras,
uma visão favorável de todos os movimentos a uma
distância razoável. A conversa ganhou a tarde, que
seguia mansa e quente nas imensidões de uma região
de pouca umidade. Falavam de política e negócios,
defendiam pontos de vistas de acordo com os seus
interesses, pois se aproximavam as eleições, e logo
teriam que montar os currais para garantir votos aos
seus correligionários. Aliás, os assuntos referentes ao
Estado e suas infinitas teorias não eram de todo inte-
resse dos suseranos ali. Apenas falavam sobre o as-
sunto por ocasião do estabelecimento de uma nova
constituição que doutrinava os preceitos de que o uso
da terra deveria atender a função econômica e social.
Lamentavam raivosos diante da ameaça de perderem
poderes e prestígios que lhes traziam as grandes
extensões de terras na insensível região. Foi por
observação de Apolinário Fortunato que veio à luz a
intenção de construir uma barragem no estreito vale
por onde corria as águas do Rio do Chumbo. Reter a
água certamente aumentaria o controle sobre uma re-
gião já castigada por consequência das prolongadas
estiagens. Com esse propósito, poucos dias depois
Senhor Pompilho Marques seguiu rumo à capital
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onde se reuniu com seus representantes políticos na
intenção de viabilizar a obra.
O detentor da pátria latifundiada por onde cor-
riam as águas caudalosas do Rio do Chumbo; homem
sagaz e de espírito subjugador, insensível à marcha
original, tinha pressa para cumprir a missão
imaginada na avareza ideia de todo poder sobre o
conjunto de seres criados. Senhor Pompilho Marques
se proclamava supremo na grande área que
compreendia a região conhecida como Serra
Vermelha.
CASTELO DAS FLORES
Desde que instalado numa casa-grande num
outro extremo, onde residia a família do antigo
proprietário, que se viu obrigado a abandoná-la após
perder a disputa pelo mando de Serra Vermelha, o
Castelo das Flores passou a integrar como um centro
de diversão e tolerância, o conjunto estrutural das
obras de construção da barragem. Madame De Belle
era uma mulher experimentada naquele tipo de
aventura, pois já havia participado de outras grandes
empreitadas em obras que pareciam impossíveis.
Depois de uma longa conversa com Senhor Pompilho,
ficou acertado o estabelecimento do castelo. Para lá, a
menina de cabelos afogueados seguia.
INÊS
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Chegou ao Cassino Del Oro, após uma das
muitas noites de penúria, ao lado de um homem vil
com o qual passou a viver depois de ser negociada
aos quinze anos de idade. Dantes, tinha uma
miserável vida junto aos catadores de guaiá nos
manguezais. Morava num barraco equilibrado na
encosta de um morro com uma tia desde os primeiros
anos, após a morte da mãe. Na casa da tia, era
obrigada a conviver com o tio alcoólatra e um primo
malandro e agressivo. Nasceu fruto de um encontro
entre sua mãe e um estrangeiro nas praias calmas das
enseadas, durante um veraneio. A mãe nunca foi
perdoada pela família, e morreu doente, deixando a
menina com a casa da irmã. Desde a infância, Inês era
abusada e passava por terríveis humilhações diante
das constantes ameaças dos primos que não a
deixavam em paz. Aos quinze foi negociada e
entregue a um atravessador esperto que explorava os
catadores: um homem já velho e viúvo que distribuía
os guaiás aos os mercados da cidade. Triste fardo no
confinamento de um quarto pequeno nos fundos de
um cortiço, no centro da capital. A menina acanhada
vivia numa penúria sem tréguas nas garras do
atravessador; pois chegava quase sempre bêbado e
descontava seus fracassos diários na pele da coitada,
submetendo-a todo tipo de humilhações. Sentia
saudades do ambiente inóspito e pouco oxigenado,
onde os caranguejos eram grandes contribuintes na
criação de condições de vida para a luta diária de
vida no mangue. Vestida com roupas velhas, entrava
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no mangue através dos pequenos canais numa
pequena canoa a remo. Depois de remar no labirinto
lamacento, iniciava a cata. Enfrentava insetos típicos
do ambiente: maruins, pernilongos, borrachudos e
mutucas. Outro desafio eram as raízes, onde as ostras
se agarravam e lhe podiam ferir as mãos, braços e
pernas.
Os poucos momentos de prazer se davam nas
noites quentes de lua grande, onde reunidos no
quintal, se divertiam com as fábulas de uma velha
catadeira à cerca do mangue. Numa delas, a velha
dizia que o caranguejo era um belo príncipe
tremembé chamado Lupã que costumava se entregar
à luxúria e aos prazeres da carne. Até que a deusa do
amor o fez apaixonar-se por uma linda índia
chamada Yaramey, que também o amava. A índia ao
presenciar a infidelidade libidinosa de seu príncipe,
preferiu dar cabo de sua própria vida a permitir que
aquela dor insuportável dilacerasse o seu frágil
coração, por mais tempo. Então, subiu no mais alto
galho de uma grande risophora à margem do rio e de
lá se atirou na lama do manguezal de onde nunca
mais emergiu. O belo príncipe, até então sem
princípios, ao saber da morte de sua amada, arrepen-
deu-se de todo sofrimento que lhe causara e pediu à
deusa do amor que lhe desse os meios para procurar
Yaramey. E a deusa, atendendo ao seu pedido
transformou Lupã no primeiro caranguejo do Delta. E
ele passou a viver somente da lembrança de sua
amada, alimentando-se das folhas da risophora e