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Seringueiros da Fronteira Brasil (Acre)-Bolívia (Pando): identidades (in)visíveis1
Emilson Ferreira de Souza (UFAC)
Da perspectiva de que as identidades estão em constante movimento na sociedade atual, em que tudo é
efêmero e fluido, este artigo apresenta resultados de uma pesquisa sobre os movimentos das identidades
dos seringueiros brasileiros que viviam na faixa de Fronteira de 50 km do lado boliviano com o estado do
Acre. Avaliam-se (in)visibilidades que esses sujeitos têm em algumas esferas da sociedade, partindo-se
do princípio de que “toda formação histórica vê tudo o que pode ver”.(DELEUZE, 1996, p. 121). O
referencial teórico segue os estudos em torno da construção das identidades e sua relação com o discurso
(GREGOLIN, 2008); em estudos como os de Hall (2006) e outros que se dedicam à compreensão dos
movimentos identitários na sociedade contemporânea. A problemática que norteou a pesquisa buscou
responder que contornos adquirem a identidade cultural e profissional dos seringueiros dessas Fronteiras.
O corpus da investigação repousa não apenas sobre as falas dos seringueiros, mas sobre imagens captadas
durante a incursão nas colocações dos trabalhadores brasileiros que viviam na faixa de fronteira de 50 km
do lado boliviano com o estado do Acre-Brasil, em 2006 e 2012. A metodologia seguida é de natureza
qualitativa. Entre os recursos metodológicos mobilizados destacam-se o trabalho etnográfico e técnicas
audiovisuais derivadas da antropologia fílmica (FRANCE, 2008). Os resultados demonstram que a
identidade do seringueiro, assim como toda identidade, é um construto discursivo e por ser uma
construção discursiva relaciona-se a uma rede de significações que se desenvolvem nas esferas políticas,
sociais, culturais e econômicas; as mudanças nessas esferas, na última década, têm afetado enormemente
a configuração identitárias desses trabalhadores.
Palavras chaves: Seringueiros. Fronteira. Identidades.
Introdução
Em nosso mestrado, realizado no Programa de Pós-Graduação em Letras da
Universidade Federal do Acre (UFAC), desenvolvemos um estudo acerca das
identidades dos então seringueiros das Fronteiras Brasil - Acre, Bolívia – Pando. Essas
identidades já se mostravam instigantes a nós no período em que produzimos o
documentário “Lá Rota Del Pacífico: culturas de fronteiras”, aprovado pelo projeto
DOCTV, em 2006. Nessa produção, conhecemos muitos trabalhadores que viviam da
extração de látex, os quais pareciam insatisfeitos com as mudanças que ocorriam em seu
dia-dia e em sua profissão. Assim surgiu esta pesquisa sobre os movimentos identitários
que irrompem entre os seringueiros que vivem na faixa de Fronteira de 50 km do lado
boliviano com o estado do Acre.
As teorias mobilizadas neste trabalho seguiram os estudos em torno da
construção das identidades em sua dimensão discursiva e para isso nos valemos de
alguns conceitos propostos pela Análise do Discurso francesa, pois conforme Gregolin
(2008), o entendimento das identidades passa por uma espécie de “efeito de sentido
produzido pela e na linguagem”. Para essa esfera teórica e também para a perspectiva
1 “Trabalho apresentado no I Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre
os dias 04 e 06 de novembro de 2014, Belém/PA”.
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dos Estudos Culturais (HALL, 2006), as identidades são construções discursivas e
históricas.
A problemática que norteou nossa pesquisa centrou-se na indagação: que
contornos têm as identidades dos seringueiros das Fronteiras entre Brasil – Acre e
Bolívia - Pando, na atualidade?
Dada nossa preocupação com a perspectiva discursiva dessa identidade,
formamos um corpus heterogêneo (corpora), constituído por falas dos seringueiros e
imagens captadas durante a incursão nas colocações dos trabalhadores brasileiros, que
vivem na faixa de fronteira de 50 km do lado boliviano com o estado do Acre, em dois
momentos - 2006 e 2012. Esse recorte de tempo foi proposto pela banca de exame de
qualificação da pesquisa, a qual sugeriu que buscássemos essas identidades antes e
durante o desenvolvimento do estudo.
A metodologia, de base qualitativa, teve entre os procedimentos metodológicos a
pesquisa in loco, por meio da qual buscamos perceber os sujeitos em suas comunidades
de modo mais natural possível, a fim de entender como aquelas pessoas habitavam e
constituíam seu mundo. Este tipo de investigação nos levou à compreensão das relações
socioculturais, comportamentos, rituais, saberes e práticas dos seringueiros. Essa
perspectiva nos permitiu uma avaliação das comunidades que visitamos em seu
conjunto, buscando explicar como ela funcionava no momento da observação. Assim, a
pesquisa in loco foi o caminho que encontramos para conhecer de modo mais apurado
os sujeitos de nossa pesquisa, em seu contexto microssociológico, a partir da relação
com o todo social do qual faziam parte (SILVA et al, 2010).
Para captação dos dados da pesquisa mobilizamos como recurso metodológico
técnicas audiovisuais, na perspectiva da metodologia fílmica tal qual proposta por
France (2008), a pesquisa que mobiliza a imagem estática ou em movimento pode servir
à observação e análise da imagem relativa ao processo filmado por outros ou ao
processo de registro e edição das imagens coletadas pelo próprio pesquisador. Neste
trabalho, ocupamos a segunda perspectiva, utilizamos o filme para a análise das
identidades dos seringueiros. Essas técnicas, segundo Serafim e Ramos (2008), têm
trazido mudanças expressivas aos paradigmas conceituais, teóricos e práticos,
permitindo novas perspectivas de investigação e possibilitando a análise da
comunicação em suas diferentes dimensões. Nesse sentido, técnicas cinematográficas
têm sido aplicadas a pesquisas acadêmicas e permitem entre outras vantagens o estudo e
análise do ser humano em uma dimensão ampla; em seus aspectos físicos, mentais,
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sociais e culturais, pois, metodologicamente, a imagem animada, sonora, ao conectar a
linguagem verbal a não-verbal e aos contextos onde se passam as atividades, permite
uma abordagem interacionista dos fatos e possibilita a apreensão da quase totalidade da
situação.
Este artigo divide-se em três tópicos. No primeiro, apresentamos um breve
histórico do processo de emergência do seringueiro na Fronteira estudada. No segundo,
discorremos sobre a relação entre identidades, fronteiras e discursos e no terceiro tópico
apresentamos alguns dados coletados em nossa pesquisa.
2. Os seringueiros na Fronteira Brasil – Acre e Bolívia – Pando: um pouco de
história
Darcy Ribeiro, em seu livro O povo brasileiro (1995), pondera que a ocupação da
Amazônia pelos portugueses ocorreu para expulsar franceses, holandeses e ingleses que
procuravam instalar-se em sua desembocadura; eles travaram lutas vitoriosas e construíram
fortificações. O antropólogo afirma ainda que os portugueses, para consolidarem seu domínio
frente aos espanhóis, introduziram “na Amazônia colonos das ilhas atlânticas, principalmente
dos Açores” (RIBEIRO, 1995, p. 314).
A população neobrasileira da Amazônia formou-se também pela mestiçagem
de brancos com índias, através de um processo secular em que cada homem
nascido na terra ou nela introduzido cruzava-se com índias e mestiças,
gerando um tipo racial mais indígena que branco. Incapaz de atender aos
apelos da gente boa da terra, que pedia mulheres portuguesas. (...) Alcançava-
se uma sociedade nova de mestiços que constituiria uma variante cultural
diferenciada da sociedade brasileira: a dos caboclos da Amazônia.
(RIBEIRO, 1995, p. 314).
No último quarto do século XIX e início do século XX, através do
desenvolvimento da indústria automobilística europeia e norte-americana, a região
amazônica sofreu um momento forte de prosperidade, através da exportação da borracha
para estes centros, o que fez mais de meio milhão de nordestinos se deslocarem para
Amazônia (RIBEIRO, 1995).
Para Tocantins (2003), até início do séc. XIX encontravam-se somente índios na
floresta acriana. Os amazonenses e paraenses foram os primeiros brasileiros
“civilizados” a explorar a região, atraídos pela hevea brasiliensis, que produz o látex, a
borracha. A ocupação do território acreano pelos nordestinos brasileiros se deu em duas
frentes: primeiro, adentraram as regiões do vale dos Rios Acre e Purus e depois, o vale
do Rio Juruá.
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A revolução industrial liderada pela Inglaterra, França e Estados Unidos
impulsionou de forma acentuada o comércio mundial da borracha, pois a vulcanização
permitiu a troca das rodas de ferro das carruagens pelas de pneu. Logo depois vieram os
carros, as bicicletas etc. Assim, o Acre torna-se o centro produtor da matéria prima, a
borracha, que foi disputada pelas maiores nações industrializadas. O preço da borracha
sobe em demasia, o que fez, cada vez mais, atrair trabalhadores para os rincões da
floresta.
Empresários, donos de Casas Aviadoras, das cidades de Manaus e Belém,
através do capital internacional, financiavam as atividades extrativistas na floresta
acreana. Os trabalhadores nordestinos foram atraídos para Amazônia, fugindo da seca e,
com a promessa de enriquecimento, foram convertidos em seringueiros solitários,
presos pelo inferno verde. Estes sujeitos foram inseridos no “centro” do sistema
produtivo do seringal.
O nordestino, declara Hardman (2009, p.69), “convertido em seringueiro
anônimo nas florestas do Acre”, chegava com uma dívida pelo transporte até a floresta.
Lá, recebia os utensílios para fazer o corte da seringa, recebia também os alimentos para
sua manutenção. Em troca, toda sua produção de borracha era entregue no barracão,
onde ficava o patrão, para pagar sua dívida.
Esse sistema de produção, chamada aviamento, foi cruel para com os
seringueiros, pois, a cada ano, sua dívida só aumentava. Os preços dos gêneros
alimentícios eram abusivos; a pesagem da borracha era quase sempre burlada, roubada.
Muitos desses seringueiros morreram na floresta. Alguns poucos conseguiram voltar
para o Nordeste, mas sem conseguir conquistar o sonho do Eldorado.
Por outro lado, os seringalistas, e seus financiadores, ficavam cada vez mais
ricos, e incentivavam a busca de mais terras, para abrirem mais estradas de seringas, o
que fez surgirem colocações de seringueiros por todos os rios acreanos. A única forma
de comunicação com o resto do Brasil e o mundo era estabelecida via rios e se dava
somente no período das chuvas, quando o volume das águas dos rios aumentava,
permitindo a navegação dos navios, que traziam gêneros alimentícios, bebidas, tecidos
etc. e escoavam a borracha, a castanha e peles de animais até as cidades de Belém e
Manaus.
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O tempo áureo da borracha, para o Brasil, começou a findar por volta de 1913,
após empresários ingleses e holandeses pegarem sementes das seringueiras brasileiras e
fazerem plantio na Ásia, nos países: Ceilão, Indonésia e maciçamente na Malásia, com
novas tecnologias e mais eficiência, conseguiram aumentando a produtividade de forma
significativa. Começaram a colocar essa produção no mercado mundial, o que fez o
preço da borracha cair, fazendo o extrativismo amazônico entrar em uma forte crise,
pois o sistema produtivo que se estabeleceu nessa região era de baixa produtividade.
Durante a segunda guerra mundial (1939 – 1945), os japoneses, aliados à
Alemanha e à Itália, conquistaram o sudeste asiático, área produtora de borracha para os
países aliados: Inglaterra, França e Estados Unidos. O governo Brasileiro assinou
acordo com os Estados Unidos através do “tratado de Washington” para reativar os
seringais nativos amazônicos e fornecer borracha para esse eixo, isso fez o Acre receber
um novo alento de pessoas vindas do nordeste brasileiro, o que fez aquecer a economia
da borracha. Esses trabalhadores passaram a ser denominados de soldados da borracha,
pois foram alistados como “voluntários” de guerra para extração da borracha
amazônica. Foram recrutados trabalhadores urbanos que trabalhavam em construção
civil, na indústria têxtil entre outros setores e pequenos proprietários de terras
(MARTINELLO, 1988).
Com o final da Segunda Guerra Mundial, em meados da década de 1940, os
seringais asiáticos foram retomados do Japão. Depois veio a borracha sintética,
produzida a partir de restolhos do petróleo, o que levou novamente os seringais nativos
amazônicos a entrarem em colapso, pois o mercado interno brasileiro não conseguia
absorver toda sua produção.
Nas décadas de 1970 e 1980, a região amazônica foi alvo de uma política de
expansão e ocupação territorial pelo Governo Militar, que incentivou a migração
massiva de pessoas do centro Sul e Sudeste do Brasil para a Amazônia, facilitando a
compra de terras na região da floresta, para formarem fazendas de gado. Essa política
desenvolvimentista trouxe sérios problemas para região. Com a transformação da
floresta em fazendas, iniciou-se a devastação. Milhares de quilômetros de mata virgem
deram lugar a pastos. Não se pensou nos homens que já moravam na mata: seringueiros
sobreviventes dos ciclos da borracha e que permaneceram na floresta, com uma cultura
extrativista e de subsistência. Centenas de famílias foram expulsas por estes “paulistas”,
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como ficaram conhecidos os forasteiros. O destino deles, assim como o da floresta, foi
trágico: seguiram para as cidades e se viram obrigados a se adaptar a uma nova
realidade. Analfabetos e sem preparo para a mão de obra urbana, muitos caíram na
marginalidade e foram viver nas áreas de periferia. Já outros foram para floresta
boliviana e peruana, países vizinhos ao Estado do Acre. Lá fixaram residência, fugindo
da pressão dos pecuaristas.
Segundo Paula (1991), esses sujeitos receberam várias denominações ao longo
de sua estada no espaço conhecido hoje como Acre. Passaram a serem tratados primeiro
como “brabos”, quando migraram do Nordeste para Amazônia. Depois, quando
apreenderam o ofício do seringal, receberam o nome de “mansos”. Durante a segunda
guerra, período que novamente nordestinos migraram para Amazônia, foram chamados
de “arigós”. Quando começaram a serem expulsos dos seringais, nos anos de 1970,
pelos “paulistas”, receberam a denominação de “acreanos” (PAULA, 1991, s/p).
Estes seringueiros foram divididos em quatros grupos: uma parte foi convertida
em mão de obra nas fazendas de criação de gado, uma outra foi morar nas periferias das
cidades acrianas, outra ficou na mata resistindo a presença dos fazendeiros, liderados
por Chico Mendes, estes conseguiram criar as reservas extrativistas e a quarta parte foi
morar nas áreas de fronteiras do território peruando e boliviano. Em terras bolivianas,
esses seringueiros continuaram seus modos peculiares de viver em harmonia com o
meio ambiente. Eram, na grande maioria, extrativistas, viviam do corte da seringueira e
da coleta de castanhas, praticavam a agricultura de subsistência, criavam pequenos
animais, com poucas cabeças de gado e viviam um modelo de vida que preservava a
floresta, de forma quase autossustentável.
A partir de 2006, o presidente da Bolívia Evo Morales, amparado pela
constituição boliviana que não permite a estrangeiros terem terra na faixa de 50
quilômetros da fronteira de seu território, começou uma política de deslocamento desses
seringueiros para o Brasil. Um número não exato desses sujeitos foi assentado em
projetos agrários do INCRA, no estado do Acre, em lotes de 10 a 25 hectares e um outro
número foi viver nas periferias das cidades acrianas.
A opção por realizar uma pesquisa com esses trabalhadores relaciona-se ao fato
de eles simbolizarem a história de construção do Estado do Acre e, também, pela
importância desses sujeitos para história econômica do Brasil, pois a borracha que eles
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produziam, nas últimas décadas do século XIX e início do século XX, chegou a
representar o segundo produto do PIB brasileiro, fato que contribuiu fortemente para
surgirem como metrópoles duas cidades amazônicas - Belém e Manaus. Também vale
lembrar que as principais indústrias mundiais se beneficiaram do trabalho dos
seringueiros brasileiros, acentuando-se, assim, a relevância social desta pesquisa.
3. Identidades, discursos, fronteiras e outros conceitos
Para Hall (2006), a identidade deve ser apreendida como uma "celebração
móvel", formada e remodelada continuamente em relação às formas pelas quais somos
representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (HALL, 2006).
Ela é definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito incorpora identidades
diferentes em diferentes situações; as identidades não são unificadas em torno de um
"eu" lógico, coeso. Dentro de nós há identidades conflitantes, movimentando-se em
várias direções, de tal modo que nossas identificações são continuamente deslocadas. A
sensação de que temos uma identidade integrada, do nascimento até a morte, resulta de
uma história sobre nós mesmos ou uma confortadora "narrativa do eu", afirma Hall
(2006). Na visão do autor, a identidade completa, estável, inabalável e coerente é uma
ilusão. À medida que os sistemas de significação e as representações culturais se
multiplicam, somos apresentados a uma pluralidade de identidades possíveis, com cada
uma das quais podemos nos identificar - ainda que instantaneamente.
Para as reflexões acerca das identidades dos seringueiros deslocados da Bolívia
para o Brasil, apresentamos neste item alguns conceitos ligados à noção de fronteira,
tendo em vista que esses sujeitos pertenciam a um espaço fronteiriço, localização
geográfica que os colocava em uma situação de pluralidade identitária.
Conforme Pesavento (2002, p.35), as fronteiras, antes de serem marcos físicos
ou naturais, são, sobretudo, elementos simbólicos, balizas de referência mental que
guiam a percepção da realidade. Esses limites são produto de uma capacidade de
representar o mundo por meio de outro mundo, de sinais por meio dos quais os homens
percebem e qualificam a si próprio, ao corpo social, ao espaço e ao próprio tempo. As
fronteiras são acima de tudo representações culturais, são construções de sentido, são
elementos que estabelecem classificações, hierarquias e limites, direcionando olhares e
apreciações sobre o mundo.
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A fronteira relaciona-se a definições como as de espaço e território. Raffestin
(1993) esclarece que o espaço não tem valor de troca, somente de uso. O espaço é
sempre anterior a qualquer ação; é metaforicamente uma matéria-prima, um local de
possibilidades, pré-existente a qualquer conhecimento ou prática dos quais será o objeto
a partir das intenções de apropriação de alguém.
A apropriação do espaço, esclarece o autor, leva-nos ao conceito de território,
entendido como uma produção dada a partir da dimensão espacial, a qual é sempre
constituída por relações de poder, de controle. Qualquer representação de espaço
expressa um desejo, uma “vontade de verdade” dos sujeitos que o representam. Afirma
o autor:
Toda prática espacial, mesmo embrionária, induzida por um sistema de ações
ou de comportamentos se traduz por uma produção territorial que faz intervir
tessitura, nó e rede. É interessante destacar a esse respeito que nenhuma
sociedade, por mais elementar que seja, escapa à necessidade de organizar o
campo operatório de sua ação. (RAFFESTIN, 1993, p.150).
Ao ocuparem determinados pontos, os indivíduos administram poderes e
controlam o espaço conforme suas necessidades. Diante dessa observação, Raffestin
(1993) afirma não haver fronteiras naturais, pois os limites são sempre estabelecidos por
relações de poder. O limite é um componente importantíssimo nessa demarcação, pois
exprime a relação que um grupo mantém com uma porção do espaço. Muitos limites se
estabelecem por meio de zonas e nesse sentido a área delimitada não é o centro de uma
soberania rigidamente fixa, mas a sede de uma atividade econômica ou cultural que não
é totalmente explorada no território, mas de modo progressivo.
Os limites políticos e administrativos, nas fronteiras, são mais ou menos
estáveis, enquanto os econômicos são sempre moventes e obedecem às dinâmicas de
certas conjunturas. Esse contíguo de pontos constitui “malhas definidoras da tessitura de
organização de um espaço”. Essas malhas nunca são homogêneas e abrigam elementos
que revelam nodosidades ou marcos. Nelas se elabora a existência e as identidades de
grupos, “quer se trate de cidade, de aldeias ou metrópoles”. Esses pontos são locais de
referência que se determinam de forma absoluta ou relativa, neles se busca saber onde o
Outro se situa, o que pode auxiliar ou prejudicar, o que tem ou não tal recurso, o que
tem mais acesso ou não a tal lugar etc. Esses pontos revelam, dessa forma, imagens de
um poder do ou dos atores dominantes (RAFFESTIN, 1993, p.53-157).
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Essa interação marca diferenças funcionais que contribuem para ordenar o
território de acordo com a importância dada às ações dos grupos. Por isso, a noção de
território é atravessada pela noção de identidade, traçada sempre por símbolos que
nutrem a ideia que uma comunidade tem de si e de outros sujeitos. Nas linhas
territoriais, homens e mulheres lutam em defesa de seus lugares de vida, de sua
memória.
Em análise de processos de territorialização de ação local e desenvolvimento
sustentável, Teisserenc e Teisserenc (2014) observam que, em geral, grupos tradicionais
reivindicam o território a partir de lutas pela apropriação – em alguns casos,
reapropriação – dos recursos do local onde se inserem como forma de resistência a
tentativas de apropriação global desse meio pelo capitalismo. Resulta daí uma
“desflorestação”, dada pela “transformação” dos territórios de vida desses grupos em
territórios “abstratos”, influenciada pela globalização com o objetivo único de explorar
mais eficazmente seus recursos, em uma implantação do desenvolvimento industrial de
monocultura e de pecuária extensiva.
É comum comunidades responderem a esse tipo de apropriação por meio de
movimentos sociais. Essas lutas têm várias facetas e podem se apresentar “sob a forma
de uma defesa dos lugares de vida das comunidades, de sua memória, de seu
enraizamento econômico, social e cultural”. Muitas se apoiam em organizações
coletivas inspiradas em princípios de autogestão. São lutas geralmente para buscar um
“território social” definido como espaço de pertencimento pelos grupos e comunidades
que promovem a reivindicação, “e que é ao mesmo tempo um espaço de mobilização
onde se afirma a legitimidade de cada comunidade para se proteger, se desenvolver, se
fazer reconhecer”. (TEIRESSENC e TEIRESSENC, 2014, p.07).
Os autores ainda fazem observações importantes acerca de deslocamentos
compulsórios de algumas comunidades e em alguns casos, como os episódios de
construção de barragens, há uma reconfiguração da concepção de território marcando
novas relações das comunidades com o seu entorno. A perda do território reivindicado
pode ocasionar a perda da territorialidade, ou seja, a relação da comunidade com suas
referências, porque o território é simultaneamente material e imaterial e não se limita a
aspectos concretos e físicos. No território sempre existem “valores simbólicos das
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instituições, dos eventos, das práticas que compõem a vida das comunidades que vivem
do e para o território”. (TEIRESSENC e TEIRESSENC, 2014, p.08).
Isso significa que a análise da territorialidade só pode ser feita pela apreensão
das relações reais postas em seu contexto socio-histórico e espaço-temporal. A
identidade de qualquer povo só pode ser avaliada a partir do conjunto do que é vivido
por ele cotidianamente, sua relação com o trabalho e o não-trabalho, a família, os
amores, as autoridades políticas etc. (RAFFESTIN, 1993, p. 162).
Os processos de deslocamento dos homens e mulheres brasileiros, trabalhadores
que sobreviviam da extração do látex, residindo em território boliviano, e passaram
compulsoriamente a morar em Projetos de assentamento do INCRA, no Brasil, e
cidades do estado do Acre também se relacionam aos movimentos de sentido que
subjazem à noção de sustentabilidade e natureza, na contemporaneidade. Para isso, é
pertinente observar a relação que o homem tem estabelecido com a natureza, a qual tem
gerado inúmeras consequências, entre as quais a mais relevante nos últimos tempos tem
sido a preocupação com a sustentabilidade do planeta.
Conforme Giddens (2002), a relação homem-natureza se alterou imensamente
com o advento da modernidade, período em que os homens passaram a tratar a natureza
como um conjunto inativo de forças a serem manipuladas para finalidades humanas, ao
interpretarem que a natureza seria um domínio separado da sociedade. Para o autor, a
natureza “chega ao fim” e o homem atua dia-a-dia em uma espécie de “socialização da
natureza”, no sentido de que o mundo natural é ordenado cada vez mais de acordo com
os sistemas internos da sociedade. Essa forma de se relacionar com a natureza
certamente tem afetado as decisões que mantêm afastados os seringueiros dos seus
espaços de produção, alterando também a imagem que eles têm de si próprios.
De acordo com Vale (2010), o trabalho é uma das atividades que constituem
parte da identidade social de qualquer pessoa. Ele se coloca como uma expectativa
social desde o nosso surgimento, pois as pessoas esperam sempre que, no momento
certo, ocupemos um espaço no mundo do trabalho, definindo, por essa via, uma
identidade. Não por acaso a forma elaborada para questionar a profissão é: o que você
é? Ao invés de qual a sua profissão?
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“A identidade profissional resulta na vinculação do ser humano a uma atividade.
Ser médico, secretária, professor, comerciante, motorista de ônibus” (VALE, 2010, s/p)
ou seringueiro, indiscutivelmente, territorializa nossas ações, o olhar do outro sobre nós
e nosso olhar sobre o mundo. O autor ressalta ainda que:
Não apenas o modo como o trabalho é realizado, mas também o que resulta
desse trabalho, o seu produto são importantes na construção da identidade
humana. Ambos devem trazer satisfação e bem-estar. (VALE, 2010, s/p).
A importância do trabalho atualmente faz com que essa atividade apresente-se
como determinante de grande parte do significado das identidades culturais. Na
profissão, o indivíduo identifica parte daquilo que ele é. A profissão representa muito
mais do que um conjunto de aptidões e funções, é também uma forma de vida que se
assume, uma vez que a relação entre o trabalhador e sua profissão é característica pelo
envolvimento, pelo sentimento de identidade e de adesão aos seus objetos e valores
(CAMPOS, 2000). Assim ao se distanciarem da sua atividade profissional, o seringueiro
e vê desterritorializado, ao ter suas referências abaladas.
A constituição das identidades é um assunto que embora bastante exercitado,
ainda oferece muito a debater. Muitos autores (HALL, 2006; GREGOLIN, 2008) têm se
dedicado a responder a indagações sobre as identidades, nas sociedades ditas pós-
modernas. Buscam explicar como se constituem e qual o papel da língua(gem) e do
discurso nesse processo? Perguntas como essas suscitam os mais ardentes debates, em
diferentes campos de investigação científica.
Para Gregolin (2008), o entendimento da noção de identidades passa pelo que
ela define por efeito de sentido produzido pela e na linguagem. Sendo assim, as
identidades são construções discursivas, por isso podem ser estudadas a partir das bases
da Análise do Discurso (AD). O discurso, nesse campo do saber, é entendido como o
entrelaçamento entre a língua, a história e as verdades de uma época e sua materialidade
pode ser verbal ou não-verbal.
A relação implícita entre os dizeres é chamada pela AD de interdiscurso
(COURTINE, 1999), elemento que permite identificar vozes do outro (BAKHTIN,
2000), na busca dos sentidos que são retomados ou apagados, enfim, no entendimento
das várias posições enunciativas possíveis. Para a AD, o sujeito é historicamente
determinado, pelo interdiscurso, pela memória do seu dizer. Nessas condições, algo fala
antes, em outro lugar, independentemente. Palavras já ditas e esquecidas, ao longo do
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tempo e de nossas experiências de linguagem que, no entanto, nos afetam em seu
‘esquecimento’. Assim como a língua é sujeita a falhas, a memória também é
constituída pelo esquecimento (ORLANDI, 2006, p.21).
A memória se estabelece a partir da relação da linguagem com a história e
pensá-la implica observar os diálogos entre a historicidade e os processos da linguagem.
A memória discursiva, portanto, tem um estatuto importante no funcionamento de todo
dizer, pois é a partir dela que, segundo Courtine (1999), a memória histórica é evocada
quando se materializam os enunciados de um discurso, naquilo que ele chama de
interdiscurso.
É também por meio de processos discursivos que certas identidades adquirem
visibilidade em nossa sociedade. Ser visível ou invisível depende de certos jogos de
poderes e, por essa ótica, Deleuze (1996, p.120) retoma Michel Foucault para afirmar
que é preciso “pegar as coisas para extrairmos delas a visibilidade e a invisibilidade de
uma época, que são o regime de luz, as cintilações, os reflexos que se produzem no
contato da luz com as coisas”. Assim o autor traz à discussão o que segundo ele foi “o
grande princípio histórico de Foucault”- a ideia de que “toda formação histórica diz
tudo o que pode dizer e vê tudo o que pode ver” (DELEUZE, 2006, p.121).
Trazemos essas afirmações para o nosso trabalho por acreditarmos que os
movimentos identitários por que passam os seringueiros em estudo têm levado esses
sujeitos a uma espécie de invisibilidade diante das autoridades do Brasil, enquadrando-
os em outros lugares e em outros “regimes de verdade”.
4. CAPTANDO FALAS, IMAGENS E IDENTIDADES
Conforme já explicitamos, o objetivo deste trabalho é saber que contornos
adquirem as identidades profissionais dos seringueiros nas Fronteiras brasileiras (Acre),
e nas fronteiras bolivianas (Pando), com a intenção de compreender aspectos
emblemáticos dessas identidades, em permanente processo de troca cultural. Assim,
seguimos descrevendo e analisando o corpus da pesquisa, o qual se constitui de falas e
imagens colhidas nos materiais bruto dos documentários Lá Rota Del Pacífico: culturas
de fronteira ( 2006) e Amazônia Viva ( 2013).
O recorte do corpus obedeceu a uma seleção de cenas e depoimentos que
deixavam explícitas a nós a problemática da identidade profissional dos seringueiros, na
região das Fronteiras do Brasil e Bolívia. Algumas imagens da pesquisa foram retiradas
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do material que compôs o filme documentário Lá Rota Del Pacífico: Culturas de
Fronteira, produzido no ano de 2006. A produção desenvolveu a pesquisa através de
visitas à região, explorando o espaço da Tríplice Fronteira (Bolívia-Pando, Peru-Madre
de Dios, Brasil-Acre), com o intuito de documentar, principalmente através da imagem
e do som direto, a cultura local.
Em 2012, voltamos a essa área. Agora mais próximos dos arranjos do método
fílmico, operando a câmera e fazendo a captação de som direto. Contamos com a
colaboração de um guia, ex-seringueiro da região, que nos auxiliou em nossa primeira
entrada, seis anos antes. Entrevistamos 13 trabalhadores brasileiros, entre eles, os que
insistiam em permanecer no lado boliviano e aqueles que já se encontravam em cidades
acrianas. Também coversamos com agentes do poder público, como o Secretário de
Justiça e Direitos humanos do estado do Acre - Nilson Mourão e o Superintendente do
INCRA João Taumaturgo Neto.
Para uma descrição muito breve sobre quem são os seringueiros das Fronteiras
do Brasil - Acre, Bolívia – Pando, destacamos inicialmente seu modo de vida, sua
cultura, em relato feito a partir da nossa pesquisa de campo realizada em 2006, feita nas
colocações dos seringueiros brasileiros, que viviam na faixa de fronteira de 50 km do
lado boliviano com o estado do Acre. Na ocasião, verificamos que esses sujeitos viviam
do extrativismo, da agricultura de subsistência, da criação de pequenos animais e alguns
eram pecuaristas de pequeno porte. Muitos deles foram expulsos do estado do Acre
pelos fazendeiros, apoiados pelo governo militar, que transformaram seringais acrianos
em fazenda de criação de gado.
Na Bolívia, eles fixaram residência, casaram e tiveram filhos que nasceram em
território boliviano, mas foram registrados em cartórios brasileiros, como se tivessem
nascidos no Brasil. Nesse caso, explica Valcuende (2009), “a nacionalidade assume um
caráter instrumental”. Assim, o hábito de registrar os filhos em um lado e outro da
fronteira visa ao desfrute de alguns benefícios que alguns lugares oferecem. Muitos
desses homens e mulheres, nas últimas décadas, registram seus filhos no Brasil, por
exemplo, porque o crescimento econômico do país tem sido maior, assim como a
qualidade de serviços prestados pela administração pública é melhor que as dos outros
Estados da Fronteira. (VALCUENDE, 2009, p.176).
No âmbito imagético, percebemos, em 2006, entre os seringueiros, aspectos de
um processo de intercâmbio cultural entre as nações que integram a Fronteira estudada.
Na imagem que segue, um seringueiro, vestido com a camisa de um dos times mais
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populares do Brasil, mascava folha de coca, emblemático hábito adquirido no novo
lugar. Esses dois elementos (a camisa do time brasileiro e a mastigação da folha de
coca) nos levam a refletir sobre os jogos identitários que acontecem em situação de
deslocamentos por que certos sujeitos passam. Também acentuam como identidade e
diferença são faces de uma mesma moeda que estabelece fronteiras entre o outro e nós
(HALL, 2013).
Figura 1 – seringueiro dando depoimento
Foto: Emilson Ferreira (Ano: 2006)
As identidades, na fronteira, estão inevitavelmente fadadas a sofrer influências
de outros lugares e, portanto, de outras culturas, pois como um discurso, elas estão
abertas a diferentes vozes. Dessa maneira, em relação aos aspectos híbridos que
compõem as identidades desse sujeito, destacamos que embora marcando pelas vestes o
amor ao futebol brasileiro, usando a camisa do seu time, o seringueiro masca folhas de
coca, um costume que provavelmente adquiriu morando em terras bolivianas. Burke
(2008) explica que isso ocorre porque essas zonas fronteiriças são locais não apenas de
encontros, mas de sobreposições ou interseções entre culturas, nas quais o que começa
com uma mistura pode se transformar em algo novo e diferente.
Essa imagem retrata, ainda, teorias sobre a hibridização das culturas, segundo as
quais se esperam sempre modificações de hábitos quando se está em uma situação de
intercâmbio cultural. Mesmo não convivendo diretamente, ou cotidianamente com
bolivianos, a proximidade entre brasileiros e bolivianos sempre propicia trocas culturais
entre esses sujeitos.
As observações in loco e as imagens captadas dessa Fronteira entre Brasil,
Bolívia revelaram um distanciamento desses atores de sociedades ditas “desenvolvidas”.
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A distância dos desenvolvimentos técnicos ou tecnológicos, a nosso ver, compõe uma
das marcas identitárias desses trabalhadores, na região.
Figura 2 – Casal pilando arroz
Foto: Emilson Ferreira (Ano: 2006).
Nessa imagem, o arroz é rusticamente processado, por meio do pilão, para o
consumo, o que sugere que a industrialização dos alimentos ainda está longe da
realidade local.
Ainda no que se refere ao cotidiano dos seringueiros, destacamos imagens como
esta, em que flagramos um grupo de seringueiros produzindo farinha, para consumo
próprio.
Figura 3 – Fabricação de farinha
Foto: Emilson Ferreira (Ano: 2006).
Seguimos agora apresentando algumas falas dos seringueiros, que encontramos
no final de 2012. Não omitiremos o nome das pessoas que entrevistamos, pois esses
sujeitos concordaram em participar do nosso documentário chamado Amazônia Viva
(2013).
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O Sr. Claudio Ribeiro da Silva, contou que nasceu na Bolívia e, quando criança,
viveu alguns anos em Rio Branco, mas depois voltou para a Bolívia e nunca mais saiu.
Nos relatou ainda:
Meu trabalho era cortar seringa, quebrar castanha, botar roçado, mas agora
ninguém pode fazer mais isso, porque tá sujeito de botar a gente pra fora e
deixar tudo aí. Hoje eu vivo do trabalho de carpintaria, de um lado ao outro,
fazendo barco, casa, fazendo cerca para gado e, portão nas fazendas, mas
minha vontade era voltar a ser seringueiro.
Nessa declaração, vemos a profissão seringueiro ser posta como uma experiência
que fez parte do passado, porque as questões jurídicas e políticas da Bolívia determinam
o que pode e o que deve ser feito no local, determinando, por consequência, que sujeitos
e que identidades devem se alojar naquela localidade.
Com o dinheiro que ganha, Sr. Claúdio afirma que faz a feira uma vez por mês,
compra tudo na cidade de Xapuri, e da mata ele retira só “a castanha para temperar um
alimento” e, de vez em quando, mata uma caça e pesca junto com seus filhos no rio
Chipamano.
Mais uma vez a insegurança de ter a terra ou não, a ameaça de serem expulsos
de sua colocação tem se mostrado como fator de alteração da identidade desses
trabalhadores.
Ele relata ainda que quando alguém de sua família adoece vai para a cidade de
Xapuri buscar tratamento e remédios. Quando o encontramos, ele aplicava uma injeção
na veia de seu filho, pois o garoto estava tratando uma leishmaniose. Todos os seus
filhos estão estudando em escolas brasileiras. Naquele dia, sua mulher e o filho mais
velho estavam em Rio Branco para realizarem a prova do Enem. Torcia pra sua mulher
passar e fazer uma faculdade para depois vir dar aula na escolinha do Ramal da
Piçarreira. Contou ainda que é evangélico e que vê televisão com sua família em casa,
pois tem motor elétrico, tocado a gasolina. Disse que não tem vontade de sair de sua
terra, por ele continuaria morando na fronteira. Desses relatos podemos extrair várias
mudanças nos hábitos dos seringueiros, a exemplo da busca de remédios
farmacológicos e não mais de medicamentos naturais, a busca pela educação formal em
escolas, as novas crenças religiosas, além da presença da TV.
A crise que se fez na região está fazendo esses sujeitos adquirirem novas
identidades, eles estão sendo obrigados a se afastar dos hábitos e costumes ligados à
floresta: nos anos precedentes a esta pesquisa pudemos conviver com muita gente que
era descendente ou era ex-seringueiros, que nos relataram uma identidade bem diferente
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da que apontou o Sr. Claudio, os seringueiros tratavam suas doenças com rezas e
plantas da floresta. Os valores religiosos também se modificaram - a religião que eles
frenquentavam era o Santo Daime, religião essa nascida no Acre, com origem indígena.
Entre os seringueiros já deslocados da Fronteira Braisil-Bolívia, encontramos na
periferia de Rio Branco, o Sr. Rivelino Pereira Silva, que nos revelou:
Minha vida lá era muito boa, eu cortava seringa, se pudesse eu voltaria prá lá.
Aqui é ruim, eu vivo roçando quintal pros outros, trabalhando na diária; lá eu
era seringueiro, aqui eu não sou nada. Os bolivianos invadiram nossa terra,
fizeram picadas nas matas e pegaram a castanha. O que tinha futuro por lá
ainda era a castanha.
Ele afirma que procurou a defensoria pública:
Eles prometeram uma terra para gente. Já faz cinco anos e nunca mais
ninguém ouviu falar nesse negócio. Falaram que o nosso lugar era aqui, por
que se acontecesse alguma coisa com a gente lá, eles não podiam fazer nada
por nós.
Na fala de Sr. Rivelino é marcada a importância que o trabalho tem para a sua
identidade, ao declarar que “lá eu era seringueiro, aqui não sou nada”, evidenciando a
forte relação entre o trabalho e a identidade dessas pessoas, pontuando ainda que a
desterritorialização desses sujeitos afetou não apenas sua relação com espaços físicos,
mas também com dimensões sociais.
Mesmo havendo em certos lugares do Estado do Acre iniciativas que visam a
reinserir o seringueiro na atividade extrativista, com propostas de retorno a velhas
estradas de seringa, como ocorre com a fabricação de preservativos à base de látex,
gerenciada pela FUNTAC, os relatos nos mostram que na área em estudo a realidade é
bem outra: há um constante deslocamento desses trabalhadores que tentam sobreviver
de forma precária na cidade, deparando-se com falta de emprego e de condições de
sobrevivência.
Para muitos, ainda resta uma possibilidade de ter a posse da terra. E isso ocorre
talvez porque, nessa Fronteira, a questão da terra é definidora de situações e posições.
Observamos ainda que o discurso jurídico ordena as ações de muitos moradores
da fronteira que temem os preceitos da lei e assim muitos decidem deixar tudo o que
construiu a enfrentar a justiça. As leis que regem a realidade dessa Fronteira
determinam que os direitos agrários se estendam apenas a uns, provocando revolta, dor
e sofrimento a muitos moradores da região. Colocando, desse modo, muitos deles em
um regime de invisibilidade aos olhos do poder.
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Considerações finais
Neste artigo buscamos apresentar alguns resultados de uma pesquisa sobre os
seringueiros da Fronteira Brasil (Acre), Bolívia (Pando), desenvolvida a partir da
metodologia fílmica (FRANCE, 20018). O objetivo da investigação foi entender os
movimentos de identidades e que assolam os seringueiros dessa fronteira, como a
história tem imposto deslocamentos a esses sujeitos.
Para a maioria dos sujeitos entrevistados, a zona rural ainda é mais atraente que
a cidade, pois em seu território possuem meios mais naturais e eficientes de
sobrevivência.
Os relatos coletados sugerem que os seringueiros das Fronteiras do Brasil – Acre
e Bolívia - Pando estão cada vez mais distante do seringal e, portanto, aos poucos vão
tendo sua identidade diluída, pois a desarticulação do sistema socioeconômico com base
no látex os leva a um redimensionamento territorial, em que sua identidade se reorienta
para outros sentidos. Assim, novos cenários econômicos, políticos e mesmo culturais da
região os impelem ao encontro de outras identidades e os colocam em sistemas opacos
de visibilidade, pois sua causa não tem interessado às autoridades. Esses homens e
mulheres deixam de cortar seringas e se enquadram em outras atividades, como o
trabalho no comércio, nas construções civis de cidades mais desenvolvidas, ou mesmo
como empregadas domésticas, no caso das mulheres. Esse movimento converge para a
ideia de que as fronteiras são espaços fluidos, mutantes.
A metodologia fílmica foi muito apropriada para este estudo, pois possibilitou
que elementos situados apenas no campo do visível fossem captados e analisados para a
compreensão do modo de vida e das identidades dos seringueiros, sujeitos desta
pesquisa.
Este trabalho, apenas um recorte do tema aqui abordado, foi uma tentativa de
explicar o que ocorre com as identidades dos trabalhadores das Fronteiras do Brasil -
Acre, Bolívia - Pando, atualmente. Partimos do princípio que pesquisas científicas
podem dar visibilidade aos seringueiros da Fronteira Brasil (Acre) - Bolívia (Pando),
tirando-os da invisibilidade de alguns regimes de verdade de nossa sociedade, para
terem suas identidades ancoradas novamente em territórios sociais mais seguros para
eles.
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