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Série Pensando o Direito Nº 11/2009 – versão integral

Igualdade de Direitos entre Mulheres e Homens

Convocação 02/2008

Núcleo Direito e Democracia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento

(NDD/CEBRAP)

Coordenação Acadêmica Marcos Nobre

Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (SAL) Esplanada dos Ministérios, Bloco T, Edifício Sede – 4º andar, sala 434

CEP: 70064-900 – Brasília – DF www.mj.gov.br/sal

e-mail: [email protected]

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 1

CARTA DE APRESENTAÇÃO INSTITUCIONAL

A Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (SAL) tem por objetivo institucional a preservação da ordem jurídica, dos direitos políticos e das garantias constitucionais. Anualmente são produzidos mais de 500 pareceres sobre os mais diversos temas jurídicos, que instruem a elaboração de novos textos normativos, a posição do governo no Congresso, bem como a sanção ou veto presidencial.

Em função da abrangência e complexidade dos temas analisados, a SAL formalizou, em maio de 2007, um acordo de colaboração técnico-internacional (BRA/07/004) com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), que resultou na estruturação do Projeto Pensando o Direito.

Em princípio os objetivos do Projeto Pensando o Direito eram a qualificação técnico-jurídica do trabalho desenvolvido pela SAL na análise e elaboração de propostas legislativas e a aproximação e o fortalecimento do diálogo da Secretaria com a academia, mediante o estabelecimento de canais perenes de comunicação e colaboração mútua com inúmeras instituições de ensino públicas e privadas para a realização de pesquisas em diversas áreas temáticas.

Todavia, o que inicialmente representou um esforço institucional para qualificar o trabalho da Secretaria, acabou se tornando um instrumento de modificação da visão sobre o papel da academia no processo democrático brasileiro.

Tradicionalmente, a pesquisa jurídica no Brasil dedica-se ao estudo do direito positivo, declinando da análise do processo legislativo. Os artigos, pesquisas e livros publicados na área do direito costumam olhar para a lei como algo pronto, dado, desconsiderando o seu processo de formação. Essa cultura demonstra uma falta de reconhecimento do Parlamento como instância legítima para o debate jurídico e transfere para o momento no qual a norma é analisada pelo Judiciário todo o debate público sobre a formação legislativa.

Desse modo, além de promover a execução de pesquisas nos mais variados temas, o principal papel hoje do Projeto Pensando o Direito é incentivar a academia a olhar para o processo legislativo, considerá-lo um objeto de estudo importante, de modo a produzir conhecimento que pos sa ser usado para influenciar as decisões do Congresso, democratizando por conseqüência o debate feito no parlamento brasileiro.

Este caderno integra o conjunto de publicações da Série Projeto Pensando o Direito e apresenta a versão na íntegra da pesquisa denominada Igualdade de Direitos entre Mulheres e Homens, conduzida pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP).

Dessa forma, a SAL cumpre seu dever de compartilhar com a sociedade brasileira os resultados das pesquisas produzidas pelas instituições parceiras do Projeto Pensando o Direito.

Pedro Vieira Abramovay Secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 2

CARTA DE APRESENTAÇÃO DA PESQUISA

A pesquisa sobre o Direito no Brasil raramente o aborda como objeto de disputa entre as forças sociais a partir de sua racionalidade interna. Quais são as categorias utilizadas pela regulação? Como elas são definidas pelas leis e modificadas no momento de aplicação? Qual o papel da jurisprudência na definição do sentido do direito? Como a sociedade pode tomar parte neste processo de definição deliberativa de sentido? Foi para colocar este tipo de questão que o Núcleo Direito e Democracia do CEBRAP (NDD) tem desenvolvido suas pesquisas no campo do Direito.

Esta pesquisa, desenvolvida no contexto do projeto “Pensando o Direito”, levado adiante pela Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (SAL) em parceria com o PNUD, procurou tocar em todas estas questões no que diz respeito à regulação dos direitos da mulher, especialmente no campo trabalhista e das cotas políticas. O trabalho foi desenvolvido por uma equipe interdisciplinar de pesquisadores em Direito e Filosofia, que se propôs a realizar uma pesquisa útil aos gestores públicos e operadores do direito, mas sem perder o viés crítico.

Para o NDD, o debate teórico e normativo sobre os valores e categorias que orientam o pensamento sobre a sociedade deve ser feito em relação estreita com a pesquisa empírica. A teoria deve reconstruir abstratamente os dados obtidos por meio de pesquisas, afastando-se da tentação de deduzir os rumos da sociedade de princípios construídos em apartado da realidade social. Por isso mesmo, esta iniciativa da SAL é tão importante para o desenvolvimento da pesquisa em Direito e para as atividades do NDD.

Como dissemos acima, a pesquisa em Direito no Brasil, tradicionalmente, não tem se preocupado com os problemas que tratados neste relatório. O pensamento crítico no Brasil, de sua parte, tem carecido de um diálogo mais estreito com a empiria, seja por desinteresse puro e simples, seja pelo efeito da excessiva especialização dos pesquisadores em ciências humanas. Com esta pesquisa, o NDD procura dar sua contribuição para que este quadro seja modificado.

Percebe-se claramente, portanto, porque a continuidade e a ampliação de iniciativas como esta, da SAL e do PNUD, são estratégicas para disseminar uma nova cultura de pesquisa em Direito e, no que diz respeito especificamente à pauta do NDD, para ajudar a consolidar uma vertente do pensamento crítico que opera em outra chave. Esperamos que o projeto se fortaleça e sirva de inspiração para novas iniciativas, nascidas de outros órgãos do estado, em nível federal, estadual e municipal.

Marcos Nobre Coordenador Acadêmico

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 3

Ministério da Justiça

Secretaria de Assuntos Legislativos – SAL

Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD

Projeto BRA/07/004

Democratizando Informações no Processo de Elaboração Normativa

“Projeto Pensando o Direito”

Projeto de pesquisa:

“Mulheres e Políticas de Reconhecimento no Brasil”

Instituição proponente:

Núcleo Direito e Democracia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (NDD/CEBRAP)

RELATÓRIO FINAL

Equipe de pesquisa

Marcos Nobre (Coordenação) José Rodrigo Rodriguez (Coordenação) Maria Filomena Gregori (Consultoria)

Marta Rodriguez de Assis Machado Geraldo Miniuci

Felipe Gonçalves Nathalie Bressiani

Evorah Lusci Costa Cardoso Fabiola Fanti

Ana Carolina Alfinito Vieira Carolina Cutrupi Ferreira

Luciana Silva Reis Marina Zanatta Ganzarolli Mariana Giorgetti Valente

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 4

1. INTRODUÇÃO

Esta pesquisa trata das relações entre a política de reconhecimento das mulheres e o

Direito e se desenvolveu em três frentes: uma análise do trabalho legislativo; uma análise de

casos levados ao Judiciário e uma discussão de direito comparado. Este exame parte da

indagação sobre a conveniência ou não em se criar um diploma legislativo para unificar as

normas relativas à discriminação à mulher dos mais diversos assuntos, tal como foi criado

recentemente na Espanha.

As três partes da pesquisa estão diretamente relacionadas. Os dois primeiros eixos têm

como objetivo central identificar as categorias utilizadas pelo direito brasileiro para regular os

direitos das mulheres. Tais categorias delimitam um universo de sentido para a regulação, ou

seja, dão determinado tratamento (penal, civil, etc.) para as demandas sociais. Estes vários

regimes regulatórios implicam maneiras diferentes de formular os direitos das mulheres,

atribuir-lhes conseqüências jurídicas e definir os responsáveis por sua efetivação.

A definição das categorias não é imutável: trata-se de um processo de disputa política

e interpretativa que tem como arenas principais o Legislativo e o Judiciário, daí a importância

atribuída a essas duas instâncias nesta pesquisa. Tais categorias podem ser criadas e recriadas

tanto pelo legislativo, como também, no momento de sua aplicação, pelo Poder Judiciário.

Faz muito tempo que a visão sobre a aplicação do direito vê o juiz como constitutiva de

sentido (KELSEN, 1976; DWORKIN, 1986) e não como mera reprodução das leis. Desse

modo, disputar o sentido dessas categorias, tendo em vista interesses sociais quaisquer,

implica criticá-las, seja à luz de determinadas demandas sociais, do aprofundamento da

democracia ou de qualquer outro ponto de vista. Já o terceiro eixo permite ampliar a análise e

a discussão desses processos, a partir de experiências de outros países.

Os resultados apresentados neste relatório pretendem facilitar essa crítica, tendo em

vista o aprimoramento da regulação brasileira. Em uma palavra, procuramos identificar aqui

as principais categorias utilizadas para regular o direto das mulheres nos campos citados, com

o fim de preparar o terreno para sua crítica. Como será visto a seguir, realizamos esta tarefa

nos seguintes âmbitos:

i. No âmbito do poder legislativo:

1. Mapeamento e sistematização da legislação existente e de propostas legislativas que

trazem políticas de reconhecimento com viés de gênero; para tanto recorremos a bancos,

compilações e informações legislativas de entidades governamentais e não governamentais.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 5

2. Criação de banco de dados (tabela Excel) a partir das informações obtidas pela

pesquisa legislativa, com o desenvolvimento de uma metodologia de classificação das leis e

projetos de lei encontrados;

3. Construção de um software sistema (SISGÊNERO) com recursos de consulta

dinâmica simplificada e cruzamentos de categorias, que permite apresentar de forma

sistemática a legislação e atividade legislativa pesquisada.

ii. No âmbito do poder judiciário:

1. Compilação e classificação de casos julgados em matéria de cotas políticas e

discriminação no trabalho pelo Tribunal Superior Eleitoral e pelo Tribunal Superior do

Trabalho

iii. No âmbito da legislação comparada:

1. Descrição de institutos de ordenamentos jurídicos em que houve uma maior

positivação de instrumentos de proteção aos direitos da mulher;

2. Discussão de alguns paradigmas regulatórios, a fim de fornecer subsídios para a

reforma legislativa no Brasil.

Os elementos apresentados a partir desses três eixos permitem melhor compreender a

regulação existente e seu funcionamento e contribuem para um debate crítico sobre o possível

aperfeiçoamento da regulação brasileira dos direitos das mulheres.

Passamos a seguir a apresentar os resultados das pesquisas legislativa, jurisprudencial

e de direito comparado, sempre seguindo a seguinte estrutura:

a) Descrição da metodologia e das categorias utilizadas;

b) Apresentação dos principais resultados quantitativos obtidos;

c) Análise das características do regime de regulação a partir das categorias estudadas

em cada âmbito da pesquisa.

Note-se que no âmbito da pesquisa legislativa, o resultado principal foi a construção

de um banco de dados organizado de forma inovadora, que poderá ser consultado livremente

na Internet. Trata-se do SISGÊNERO (Consulta integrada da atividade legislativa brasileira

sobre gênero) que será apresentado na primeira parte deste relatório.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 6

2. PESQUISA LEGISLATIVA

2.1 Metodologia

2.1.1 Coleta de material e delimitação do banco de dados

O banco de dados legislativos desta pesquisa foi construído a partir do banco de leis

elaborado pelo Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA), informações

legislativas prestadas pelo Centro de Documentação e Informação da Câmara dos Deputados

(CEDI) e propostas legislativas encaminhadas pela Secretaria de Assuntos Legislativos do

Ministério da Justiça (SAL/MJ). Todos esses bancos e informantes acumularam informações

relevantes para o tema que estudamos, mas sem organizar vias de acesso que permitissem

obter informações relevantes para a reflexão sobre a produção legislativa brasileira. Estas

compilações de dados foram reorganizadas pela metodologia que detalharemos adiante. Antes

disso, faremos algumas considerações sobre as informações que coletamos inicialmente.

Nossa primeira fonte foi o banco de dados do CFEMEA, uma organização não-

governamental, sem fins lucrativos, que trabalha pela cidadania das mulheres e pela igualdade

de gênero, e tem como um de seus objetivos promover a presença das mulheres e as pautas

feministas nos espaços e processos de participação e de representação política. Esta entidade,

fundada em julho de 1989 por um grupo de mulheres feministas de Brasília, assumiu a luta

pela regulamentação de novos direitos conquistados na Constituição Federal de 19881. O

CFEMEA possui ampla experiência no acompanhamento das atividades do Poder Legislativo

e dos direitos das mulheres, e seu trabalho está disponível na internet2, onde obtivemos as

informações utilizadas em nossa pesquisa. Foram coletadas por esta fonte 216 leis3, que

compreendem o período entre 1888 e 2006 (até maio).

1 Mais informações disponíveis em: http://www.cfemea.org.br/quemsomos/apresentacao.asp. 2Banco de leis: http://www.cfemea.org.br/normasjuridicas/leis.asp. Outras formas de acompanhamento legislativo do CFEMEA, como constituições, decretos, instruções normativas, portarias, tratados internacionais e proposições legislativas tramitando no Congresso não compõem o banco de dados elaborado pela presente pesquisa.

3O banco de leis do CFEMEA tem 216 leis, que após análise foram reduzidas a 204. Alguns números ou ano das leis eram incorretos.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 7

Banco de leis do CFEMEA

05

10152025303540455055

1988

1950

1964

1972

1975

1979

1984

1987

1989

1991

1993

1995

1997

1999

2001

2003

2005

Leis

Figura 1: Banco de leis do CFEMEA

Considerações sobre o banco de leis do CFEMEA: O banco de leis apresenta um

aumento significativo no número de leis em dois momentos: o primeiro de dez anos (entre

1990 e 2000), com uma média de 7,5 leis/ano, e o segundo de cinco anos (entre 2001 e 2005),

com uma média de 18 leis/ano. Todavia, nem todas as leis que compõem o banco do

CFEMEA dizem respeito diretamente a questões de gênero4. No primeiro período foram 81

leis, sendo 25 com proteções ou tratamentos diferenciados à mulher. No segundo período,

foram 86 leis, sendo 15 com proteções ou tratamentos diferenciados à mulher. É possível que

tais leis tenham sido inseridas no banco por conta da transversalidade de gênero ou da

solidariedade entre movimentos sociais no reconhecimento de direitos: ambos aproximariam a

pauta da instituição às demandas de outros grupos (negros, indígenas, pessoas portadoras de

deficiência, etc.). Sendo assim, é possível que a primeira onda de positivação esteja também

relacionada aos reflexos da mobilização de atores sociais em torno da Constituição de 1988

ou da necessidade de regulamentação de dispositivos constitucionais.

O site do CFEMEA disponibiliza ainda projetos de lei. Em entrevista com o responsável

pela atualização das propostas legislativas5, foi possível saber que a instituição acompanha

semanalmente todas as propostas apresentadas no Congresso Nacional, selecionando aquelas

que são do interesse da instituição. O acompanhamento é feito a partir do sistema de busca do

site da Câmara dos Deputados. As propostas são selecionadas e discutidas entre os membros

4Por exemplo, Lei 8.160 de 8 de janeiro de 1991, que dispõe sobre a caracterização de símbolo que permita a identificação de pessoas portadoras de deficiência auditiva. 5A entrevista foi realizada com Juliano, no dia 21/11/2008, na sede do CFEMEA, em Brasília.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 8

para que a instituição construa o seu plano de ação e acompanhamento das iniciativas. São no

total 458 propostas, atualizadas até 2008. O sistema de busca não permite a identificação das

propostas por ano de apresentação, para que se possa dizer qual é o marco inicial do período

compreendido pelo banco. Outra fonte utilizada nesta pesquisa foi o CEDI, órgão da Câmara

dos Deputados responsável por prestar informações legislativas ao público6. Por meio das

informações prestadas pelo CEDI, tivemos acesso à publicação da Câmara dos Deputados,

Legislação da mulher (2007)7, à atualização das leis não incluídas no livro e a propostas

legislativas. Foram coletadas por esta fonte 35 leis, no período entre 1972 e 2007, e 169

proposições legislativas, entre 1989 e 2008.

Compilação de leis da Câmara dos Deputados

05

10152025303540455055

1972

1973

1974

1975

1977

1980

1984

1985

1989

1990

1991

1993

1994

1995

1996

1998

2000

2002

2003

2004

2005

2005

2006

2007

Leis

Figura 2: Compilação de leis da Câmara dos Deputados

Considerações sobre a compilação de leis da Câmara dos Deputados: O propósito da

compilação de leis pelo CEDI parece ter sido ilustrativo/exemplificativo da legislação da

mulher em cada ano. Ou seja, não procura ser exaustiva, de modo que não se pode traçar, a

6 As informações legislativas foram obtidas por meio de consulta por email a [email protected], nos dias 10/12/2008 (leis) e 16/12/2008 (propostas legislativas). O órgão correspondente de prestação de informações legislativas do Senado Federal não foi encontrado. Outras proposições legislativas provenientes desta casa poderão complementar o atual banco de dados da presente pesquisa. 7 A publicação compila trechos da Constituição, de leis, decretos lei, decretos legislativos, resoluções, decretos. Para fins do presente banco de pesquisa, foram incorporadas apenas as leis. Câmara dos Deputados, Legislação da mulher, Brasília, 2007, 371 p. (Série fontes de referência. Legislação. N. 60). Disponível em: http://www2.camara.gov.br/internet/publicacoes/edicoes/elivros.html/Legislacao_mulher.pdf.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 9

partir da compilação, um perfil da legislação. Das 35 leis, 23 apresentam proteção ou

tratamento especial para a mulher, mas todas as leis dizem respeito diretamente a questões de

gênero.

Proposições legislativas da Câmara dos Deputados

0510152025303540455055

1989

1991

1992

1993

1995

1996

1997

1999

2000

2001

2002

2003

2004

2005

2006

2007

2008

Proposições legislativas

Figura 3: Proposições legislativas da Câmara dos Deputados

Considerações sobre a compilação de proposições legislativas da Câmara dos

Deputados: É expressivo o pico de tematização de proposições relativas a mulheres em 2007

e 2008 (com uma média de 32/ano). Das 169 proposições legislativas informadas pelo CEDI,

122 apresentam proteção ou tratamento especial para a mulher e, se destacarmos os anos de

pico de proposição (2007-2008), todas as 63 proposições do período apresentam proteção ou

tratamento especial para a mulher.

Nossa terceira fonte de informações foi a Secretaria de Assuntos Legislativos do

Ministério da Justiça (SAL/MJ), que selecionou e encaminhou proposições legislativas para a

equipe de pesquisa. Foram coletadas por esta fonte de pesquisa 100 proposições, sendo 76

proposições novas (não constavam nas informações prestadas pelo CEDI da Câmara dos

Deputados), no período entre 1990 e 2008. Em entrevista com o responsável pela seleção das

proposições legislativas8, foi possível descobrir que as proposições foram selecionadas a

partir do sistema de busca por proposições legislativas do site da Câmara dos Deputados, com

termos livremente escolhidos por ele.

8Entrevista realizada em 21.11.2008 com Humberto Caetano De Sousa.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 10

Proposições legislativas da SAL/MJ

05

10152025303540455055

19901991

19921995

19961999

20002001

20022003

20042005

20062007

2008

Proposições legislativas

Figura 4: Proposições legislativas da SAL/MJ

Considerações sobre as proposições legislativas selecionadas pela SAL/MJ: O gráfico

das proposições legislativas aponta para uma constante, com algumas variações, entre 2001 e

2008 (média de 10/ano).

Em suma, o banco de dados legislativo da presente pesquisa é composto atualmente

por 202 leis e 595 proposições legislativas, que podem ser conferidas tanto na tabela Excel©,

quanto no programa SISGÊNERO.

Considerações sobre o banco legislativo integrado: Em razão do interesse em

publicizar o banco de dados legislativos para consulta, elaboramos o SISGÊNERO,

mecanismo de consulta integrada à atividade legislativa brasileira sobre gênero. Para fins de

análise ilustrativa dos potenciais de utilização do SISGÊNERO como fonte de pesquisa em

legislação de gênero, apresentaremos abaixo alguns resultados a partir de dados gerais

presentes neste mecanismo, após a descrição de suas características técnicas e metodológicas.

É importante ressaltar que o SISGÊNERO reorganizou completamente a forma de

acesso e produção de informação de outros bancos de dados existentes, que são inertes e

buscam apenas compilar informações sem critérios teoricamente justificados. O resultado da

construção de bancos de dados com este perfil é um sub-aproveitamento do material

acumulado, pois as vias de acesso para obtenção de informações relevantes não são claras e

tampouco resultaram de reflexão teórica. Como veremos, a construção de um novo banco de

dados foi fundamental para que se pudesse construir, de fato, uma fonte de informações

relevante para a reflexão sobre a produção legislativa brasileira.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 11

2.1.2. Características técnicas do SISGÊNERO

O SISGÊNERO permite realizar consultas às leis e proposições legislativas sobre

gênero, conforme critérios definidos. Em primeiro lugar, ele dá acesso às leis e proposições

legislativas de 3 formas:

1. Tabela: apresenta uma lista em forma de tabela com dados resumidos das leis e

proposições. A tabela terá, quando disponível, um link para a página que exibe a

lei/proposição no site do Congresso.

2. Linha do tempo: exibe as leis e proposições dispostas em uma linha do tempo

conforme o ano de publicação ou propositura.

3. Ficha Completa: exibe o detalhe da lei ou projeto descrevendo as características,

critérios, observações e notas metodológicas.

Para filtrar os dados conforme os critérios, o SISGÊNERO dispõe de uma área com os

seletores dispostos em “caixas” que, ao serem clicados, filtram automaticamente o resultado,

seja ele visualizado na forma de tabela ou linha do tempo.

A seguir, imagens das telas descrevendo as funcionalidades:

Figura 6: Descrição das funcionalidades do SISGÊNERO

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 12

O sistema consiste em uma página em html/javascript com recursos de consulta

dinâmica simplificada para que seja apresentada de forma sistemática a legislação e atividade

legislativa pesquisada. Esse desenvolvimento foi feito a partir de uma ferramenta chamada

Exhibit, recurso open source desenvolvido pelo projeto Simile do Massachusetts Institute of

Technology (MIT), que é de uso gratuito conforme uma licença BSD de distribuição de

software. Com isso, a página conterá uma relação de leis e proposições que poderão ser

filtrados conforme critérios pré-definidos (ver Anexo 1).

Considerando as limitações de tempo e orçamento do projeto, o sistema não contempla

alimentação de dados nem controle de acesso através de senhas. Entretanto, foi desenvolvido

também um programa open source e de distribuição gratuita que permite converter os dados

de uma planilha Excel em um formato (JSON) compatível com o Exhibit. Assim, qualquer

atualização futura poderá ser realizada no arquivo Excel fonte e gerado outro Exhibit com a

ferramenta desenvolvida.

É necessário acesso à internet para que essa página de consulta possa ser utilizada, já

que será feito o download dos recursos do Exhibit a partir dos sites do MIT.

Essa página foi originalmente concebida para uso interno. No entanto, sua utilização em

sites do Ministério da Justiça e/ou do CEBRAP é possível de ser implementada pelos técnicos

de cada instituição.

2.1.3. Critérios para a classificação das leis e projetos de lei

Como já dissemos acima, um dos objetivos centrais desta pesquisa foi criar um banco

de dados útil para reflexão sobre a produção legislativa brasileira sobre gênero. As categorias

que orientaram a construção do SISGÊNERO têm como objetivo identificar como a

legislação e os projetos de lei sobre direitos da mulher desenham as relações tanto do ponto de

vista vertical, o das relações entre sociedade e Estado, quanto do ponto de vista horizontal, o

das relações entre cidadãos. O objetivo é conseguir divisar, como será explicado em detalhes

abaixo, a estratégia legislativa adotada no que diz respeito à atribuição de poder para efetivar

direitos nos diversos campos sociais e em cada setor do direito. Por essa razão, os eixos

vertical e horizontal foram pensados em função de diversos assuntos regulados e em função

de determinados ambientes sociais visados pela legislação.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 13

Além disso, nosso objetivo foi descobrir se as leis e projetos de lei criam tratamento

diferenciado para a mulher e, se sim, em que termos. O SISGÊNERO é capaz de fornecer

dados sobre os diplomas legislativos voltados especificamente para as mulheres, compreender

a racionalidade de seu modelo regulatório e verificar, em termos gerais, se a regulação dos

direitos da mulher é pensada de maneira diferenciada pelo poder legislativo ou se fica

subsumida a diplomas de natureza mais abstrata.

Deixemos estes pontos um pouco mais claros. Um exemplo: o legislador pode escolher

uma estratégia de criminalização de condutas, que coloca o Executivo no centro da ação de

implementação das leis, com o dever de investigar as condutas criminosas e iniciar a ação

penal, ao lado do Judiciário, responsável por julgar as causas que lhe sejam apresentadas para

impor penas aos infratores. Além disso, o legislador pode realizar este objetivo criando uma

lei geral ou uma lei especial, que trate especificamente de crimes que envolvam a condição

feminina, por exemplo, criminalizando a violência doméstica.

Outra estratégia regulatória possível seria criar comissões, de natureza pública ou

privada, responsáveis por tematizar determinados conflitos sobre direitos (em geral ou

especificamente da mulher). Essas comissões podem eventualmente ter poder de investigação,

delegado pelo Estado, com a finalidade de promover a conciliação ou, por exemplo, a

restauração, se estivermos diante de um mecanismo de justiça restaurativa.

Identificar a estratégia regulatória utilizada pelo legislador é importante para comparar

resultados e pressupostos, com o fim de refletir sobre qual deve ser a estratégia regulatória

escolhida em cada campo social e sobre cada assunto. Por exemplo, pode-se perguntar, ainda

segundo o exemplo citado acima, se é eficaz e aconselhável criminalizar todos os assuntos e

todos os ambientes sociais ou se não há outras alternativas para a regulação de determinados

temas.

Com, efeito, estratégias regulatórias com as características acima, para que nos

atenhamos aos exemplos citados, podem estar relacionadas a assuntos variados e a ambientes

sociais variados. Pode-se, por exemplo, escolher criminalizar uma conduta relacionada ao

ambiente "família", criando-se um crime contra a "mulher casada" e um modelo de tutela que

implica a realização de investigação policial, intervenção do Ministério Público e um

processo penal presidido por um juiz penal.

Esse não é o único caminho possível. É possível também submeter o mesmo conflito

(ou outro, de natureza diversa) a mecanismos de justiça restaurativa ou organismos voltados

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 14

para a conciliação entre as partes. Claro, estas duas hipóteses construídas em abstrato podem

aparecer conjugadas. Uma conduta pode ser classificada como crime e também ser submetida

a outras estratégias de tratamento.

Em suma, nosso instrumento de análise tem como objetivo identificar estas estratégias

regulatórias em função de diversos ambientes sociais, ou seja, como elas pretendem intervir

nos conflitos sociais que tratam de questões relacionadas à mulher. É importante ressaltar que

nosso material de pesquisa nesta parte do projeto são leis e projetos de lei e, por isso mesmo,

somos capazes apenas de visualizar a voz do Legislativo.

Para captar todas as dimensões do problema, a legislação vigente e as propostas

legislativas foram tabuladas por meio de categorias que expressam os ambientes sociais

transformados em objeto de regulação (ou seja, na visão do legislador), bem como as

maneiras específicas de implementar a regulação:

(i) Ambiente regulado:

(a) cárcere;

(b) instituições político-decisórias;

(c) instituições de ensino;

(d) forças armadas;

(e) família (relações de parentesco);

(f) meios artístico-culturais;

(g) mídia;

(h) saúde;

(i) ambiente de trabalho;

(j) intimidade (sexualidade e reprodução);

(k) outros.

(ii) Objeto da Proteção:

(a) integridade física;

(b) integridade moral;

(c) igualdade de oportunidades;

(d) igualdade de remuneração;

(e) igualdade de tratamento;

(f) liberdade de iniciativa;

(g) liberdade sexual;

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 15

(h) liberdade de reprodução;

(i) cultura, etnia, comunidade;

(j) direitos da pessoa humana não especificados;

(k) outros.

(iii) Conteúdo da Norma:

(a) direitos civis;

(b) direitos políticos;

(c) direitos sociais;

(d) criminalização;

(e) descriminalização;

(f) outros.

(iv) Agentes responsáveis pela implementação:

(a) Executivo;

(b) Judiciário;

(c) atribuição de competências normativo-decisórias a instituições não-estatais;

(d) criação de conselhos deliberativos;

(e) órgão especificamente criado para fiscalização e implementação;

(f) meios específicos de enforcement;

(g) outros.

(v) Ação requerida para a implementação

(a) criação de normas;

(b) fiscalização/ investigação;

(c) punição;

(d) serviços públicos;

(e) outros.

(vi) Natureza jurídica da regulação (categorias tradicionais):

(a) civil;

(b) penal;

(c) administrativa;

(d) trabalhista;

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 16

(e) comercial;

(f) previdenciária;

(g) tributária;

(h) eleitoral;

(i) direitos sociais/políticas públicas;

(f) outros.

No que se refere ao eixo vertical, a questão central é a porosidade do Estado diante das

demandas sociais, a possibilidade e as modalidades de participação dos cidadãos na gestão

dos negócios públicos, seja pela criação de organismos específicos, conselhos etc., seja no

que se refere ao modelo de regulação utilizado para lidar com determinados conflitos sociais

(direito penal, direito civil, direito administrativo etc.), afinal, cada modelo implica na

mobilização de alguns órgãos estatais e não de outros e, portanto, desenhará uma certa relação

entre cidadãos e Estado. É diferente a maneira pela qual uma questão criminal é processada

pelo Estado comparada com uma questão cível ou administrativa. Numa palavra, o que está

em questão aqui é pensar se o Estado é institucionalmente mais ou menos centralizado, mais

ou menos autárquico, mais ou menos aberto às demandas e à participação social.

Neste sentido, pretendemos identificar se a legislação e os projetos de lei apresentados

pressupõem o modelo de regulação legalista liberal, ou seja, centrado no Estado e no Poder

Judiciário, ou se reconhecem outros instrumentos regulatórios como organismos públicos e

privados com competência normativa, conselhos deliberativos ou participativos com ou sem

poder de decisão etc. A idéia é identificar se estes projetos propõem um redesenho do Estado

para criar locus de deliberação e tomada de decisão diferentes do Parlamento, do Executivo e

Judiciário.

Tal preocupação liga-se a uma literatura que mostra como o Estado tem desenvolvido

estruturas para acolher a sociedade civil em seu interior, estruturas estas que não se

enquadram facilmente no modelo tradicional de separação de poderes e colocam em questão o

instituto da representação parlamentar tradicional, universal e independente (WERLE;

MELO,2007). No campo da teoria política, tem sido desenvolvida toda uma reflexão com o

objetivo de liberar a imaginação para se pensar em novas formas institucionais capazes de dar

conta dos problemas contemporâneos (COELHO, NOBRE, 2004).

Para captarmos essas mudanças institucionais, será analisado em que medida o

arcabouço normativo nacional propõe a criação de organismos estatais que não se enquadram

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 17

no modelo tradicional da separação de poderes ou que procuram a colaboração de organismos

privados na regulação, fiscalização e eventual implementação de políticas públicas.

Pesquisaremos tal conjunto normativo para identificar se ele prevê a criação de conselhos ou

outros organismos deliberativos, com ou sem poder de decisão, e se atribuem competência

normativa e/ou decisória a entes não estatais.

Quanto ao eixo horizontal o problema é outro. Trata-se de pensar o papel da legislação

(e do modelo regulatório escolhido) sobre a relação dos cidadãos entre si. A preocupação aqui

é com a extensão da esfera pública e privada, ou seja, para colocar a questão de forma

esquemática, quais problemas serão resolvidos diretamente pelos cidadãos e quais problemas

serão resolvidos pelos órgãos estatais.

A questão central é a atribuição do poder normativo a órgãos privados ou a particulares,

ou seja, a possibilidade dos particulares de definirem, eles mesmos, a natureza da regulação

de suas relações e os parâmetros que elas deverão seguir. Em suma, trata-se de saber se a

sociedade tem maior ou menor poder de se auto-regular, mais ou menos autonomia. Por

exemplo, a escolha entre definir legalmente ou não o que seja casamento implica retirar ou

atribuir autonomia à sociedade. É diferente a lei atribuir direitos aos casados e definir o que

será um casamento ou deixar tal definição a cargo da sociedade, reconhecendo como casados

todos aqueles que assim se auto-declararem.

Essas duas dimensões da pesquisa estão ligadas aos ambientes regulados. A definição

desses ambientes se deu após um exame preliminar de alguns projetos de lei, além do exame

da literatura jurídica sobre o assunto. A idéia foi identificar como a legislação figura a

sociedade no que diz respeito aos campos de regulação mais específicos.

Dessa forma, o cruzamento da análise dos eixos horizontal e vertical permite descobrir,

em cada ambiente social selecionado, a estratégia do legislador para definir e tutelar direitos.

Pode-se verificar, tomando-se um ambiente social escolhido, se o legislador adota uma

estratégia de tutela que coloca o estado e seus organismos como responsável pela

implementação da regulação ou se adota uma estratégia que dá poderes aos indivíduos, para

que regulem entre si, no plano social. Além disso, pode-se descobrir também quais são os

ambientes sociais mais visados pela legislação.

Esclarecemos que não seria possível realizar, neste relatório, todos os cruzamentos

possíveis entre as categorias criadas, que serviram de organização para o SISGÊNERO.

Faremos aqui a apresentação dos principais resultados obtidos no que diz respeito às grandes

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 18

categorias criadas, utilizando os dados sobre as leis, excluídos os projetos de lei. Ademais,

realizaremos alguns cruzamentos entre as categorias para demonstrar as possibilidades

heurísticas do programa, que pode servir de base para inúmeras análises sobre o conteúdo da

legislação brasileira sobre gênero.

2.2 Apresentação dos principais resultados quantitativos obtidos

2.2.1 Descrição geral dos dados

O banco de dados integrado gerado nesta pesquisa alimenta o sistema de busca

SISGÊNERO de maneira a possibilitar a consulta da produção legislativa nacional sobre

políticas de reconhecimento com viés de gênero. Tal consulta serve não apenas ao

conhecimento das cidadãs e dos cidadãos acerca dos direitos que incidem em ambientes

sociais e campos jurídicos específicos, como também para a produção de diagnósticos mais

amplos acerca dos processos históricos de positivação de tais direitos. Nesse sentido, ela tanto

pode ser utilizada como instrumento de pesquisa, como também auxilia no exercício da

cidadania.

Como já dito anteriormente na nota metodológica referente à pesquisa legislativa,

nosso banco de dados unificado foi composto de todas as leis oferecidas pelas fontes

consultadas (CFEMEA, CEDI, SAL/MJ). Nesse sentido, praticamente todas as incidências

foram consideradas como leis que, de alguma forma, com maior ou menor ênfase, abordam

questões de reconhecimento com viés de gênero. Este modo de proceder foi motivado por um

desejo de respeitar o critério de seleção dos bancos de dados que nos cabia organizar: nosso

pressuposto inicial foi que tudo o que neles constava guardavam alguma relação com o

assunto. No entanto, a análise dos textos em detalhe fez com que esse pressuposto fosse

relativizado. Encontramos material legislativo que não parecem ter qualquer relação com o

tema e, por isso, esse ele foi excluído do banco.

Seja como for, grande parte do material analisado não atribui proteções ou tratamentos

diferenciados à mulher: são leis gerais que também se aplicam a elas. Por isso, dividimos o

banco de dados unificado em dois grandes grupos de leis: aquelas que fazem referência direta

à mulher e aquelas que não o fazem (ver Tabela 1, Gráfico 1). Quando não fizermos

referência explícita ao tratamento diferenciado à mulher, estaremos levando em consideração

o banco de dados em seu todo.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 19

Ao submetermos o banco de dados a um recorte temporal, verificamos um aumento

significativo das questões de reconhecimento com viés de gênero na produção legislativa

nacional. Considerando intervalos de tempo de 20 anos, verificamos um salto abrupto das

políticas de gênero no último intervalo de tempo (ver Gráfico 2). Enquanto a distribuição de

incidências nos períodos anteriores variou de nenhuma a 19 leis, no último período

mencionado o número salta para 176 (ver Tabela 2). O mesmo pode ser observado no que se

refere particularmente às leis que prevêem tratamento específico às mulheres: em todo o

período anterior, que vai de 1888 até 1987, encontramos apenas 12 leis que atribuem

proteções e tratamentos diferenciados à mulher; ao passo que após 1988 o número sobe para

44.

Esse salto abrupto em ambos os casos encontra-se certamente vinculado à

promulgação da Constituição Federal de 1988, a qual inclui em seu texto a proibição de

qualquer forma de discriminação em função de gênero além de outros dispositivos que se

referem à igualdade de homens e mulheres perante a lei (Constituição Federal, art. 5º, I; art.

226, § 5º). Após a promulgação da nova Constituição, um número elevado de dispositivos

legais foi criado com o objetivo de adequar o sistema de direitos nacional às novas exigências

constitucionais.

Tabela 1

Atribui proteções ou tratamento diferenciados à mulher? Total Porcentagem

Não 144 72,00%

Sim 56 28,00%

Total 200 100,00%

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 20

Tabela 2

Atribui proteções ou tratamento diferenciados à mulher? (distribuição por intervalo de 20 anos)

Intervalo Temporal Não Sim

1888-1907 1 0

1908-1927 0 0 0

1928-1947 0 0

1948-1967 4 0

1968-1987 7 12

1988-2007 132 44

2.2.2 Ambientes regulados

A pesquisa procurou classificar a legislação vigente segundo seus diferentes ambientes

regulados. Tais categorias referem-se às esferas sociais cujo funcionamento se torna objeto da

regulação jurídico-estatal. A análise isolada da legislação segundo tais categorias permite um

mapeamento da distribuição da intervenção jurídico-regulatória e de seu grau de incidência

sobre os diferentes âmbitos da vida social. A pesquisa identificou incidências regulatórias

significativas nos seguintes ambientes regulados: cárcere; instituições políticas; instituições

de ensino; forças armadas; família (relações de parentesco); meios artístico-culturais;

negócios privados; saúde; relações de trabalho; intimidade (sexualidade e reprodução);

judiciário. O gráfico e a tabela que seguem abaixo mostram a variação de incidência

regulatória nos referidos ambientes sociais.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 21

Tabela 3

Ambientes Regulados Total Porcentagem

Cárcere 11 5,50%

Instituições Políticas (deliberativas/decisórias) 28 14,00%

Instituições de Ensino 27 13,50%

Forças Armadas 9 4,50%

Família (Relações de Parentesco) 44 22,00%

Meios Artístico- Culturais 7 3,50%

Negócios Privados 49 24,50%

Saúde 42 21,00%

Relações de Trabalho 56 28,00%

Intimidade (Sexualidade e Reprodução) 32 16,00%

Judiciário 14 7,00%

Outros 21 10,50%

2.2.3 Objeto da proteção

A análise do objeto da proteção classifica as leis e projetos de lei segundo as diferentes

categorias de bens jurídicos por elas tuteladas. A noção de “bem jurídico”, pois, foi utilizada

no seguinte sentido: “interesse social que se pretende assegurar num instituto jurídico

particular”. As categorias de bens jurídicos aplicadas na pesquisa, obtidas a partir de leituras

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 22

exploratórias do material normativo, foram: integridade física; integridade moral; igualdade

de oportunidades; igualdade de remuneração; igualdade de tratamento; liberdade de iniciativa;

liberdade sexual; liberdade de reprodução; cultura, etnia, comunidade; direitos da pessoa

humana não especificados. A partir dessa classificação, o sistema de busca criado na pesquisa

permite a apresentação de todos os dispositivos legais vinculados a um mesmo interesse

social. Apresentamos abaixo a variação de incidência de cada uma dessas categorias (Tabela 4

e Gráfico 4).

Tabela 4

Objeto da proteção Total Porcentagem

Integridade Física 74 37,00%

Integridade Moral 62 31,00%

Igualdade de Oportunidades 65 32,50%

Igualdade de Remuneração 11 5,50%

Igualdade de Tratamento 63 31,50%

Liberdade de Iniciativa 4 2,00%

Liberdade Sexual 16 8,00%

Liberdade de Reprodução 21 10,50%

Cultura, etnia, comunidade 12 6,00%

Direitos da pessoa humana não especificados 27 13,50%

Outros 25 12,50%

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 23

2.2.4 Caráter da política

O campo caráter da política foi utilizado para verificar a maneira como a legislação

estudada produz alterações no código de direitos vigente. Nesse sentido, ele permite

identificar aquelas leis que são responsáveis não apenas pela criação de direitos civis,

políticos e sociais, como também pela criminalização de condutas. Importante dizer que, por

“criação de direitos” entendemos aqui não só a positivação de novas categorias de direitos,

como também a ampliação das já existentes; e que por “criminalização”, consideramos não

apenas o surgimento de tipos penais novos, como também a ampliação de suas hipóteses de

incidência e extensão da penas a elas atribuídas.

Cabe ainda dizer que aplicamos a categoria de direitos civis de maneira ampla como

liberdades de ação individual e como garantias de não intervenção; e a categoria de direitos

políticos, como todo o tipo de instrumento à participação nos processos públicos de formação

política da vontade, tanto informais como formais. Por direitos sociais, entendemos todo tipo

de intervenção estatal direta ou indireta visando ao fomento dos direitos à educação, à saúde,

ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, à previdência social, à proteção à maternidade e

à infância e à assistência aos desamparados (Constituição Federal, art. 6º).

A categoria “criminalização” foi introduzida aqui para verificar se as demandas por

criminalização estariam tomando espaço de demandas positivas por direitos civis, políticos e

sociais. Em outro lugar da tabela, classificamos as leis e projetos de lei analisados como de

“direito penal”. No entanto, ali estão incluídas normas de direito penal, poder de polícia e

processo penal. Nessa parte da tabela, “criminalização” significa a tentativa de fazer valer

determinados direitos com a criação de sanções penais, ou seja, de um crime, com o fim de

fazer valer determinados interesses e valores sociais.

Nos dados apresentados abaixo, pode-se observar que, tomadas de maneira agregada, a

incidência das categorias de direitos civis, políticos e sociais na legislação analisada é

claramente maior do que aquelas vinculadas à criminalização de condutas. Neste sentido, há

o indicativo de que a produção legislativa de gênero no Brasil, direta ou indiretamente, tem

sido destinada muito mais ao reconhecimento afirmativo, isto é, à criação de direitos, do que a

estratégias de reconhecimento negativas, quer dizer, tendentes a coibir determinadas condutas

pela via da criminalização. Com efeito, são observadas em 21% do total de leis analisadas a

criação de direitos civis, em 8% de direitos políticos e em 46,5% de direitos sociais. A

criminalização de condutas é observada em 18% dos casos (ver Tabela 5 e Gráfico 5).

Além disso, é notável que, entre os direitos criados pela legislação analisada, a

categoria de direitos sociais apresente uma incidência numérica significativamente superior

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 24

aos demais, inclusive no que se refere às proteções e tratamentos diferenciados atribuídos à

mulher. No que se refere aos direitos civis, embora apresentem um número menor de

ocorrências em comparação aos direitos sociais, mostram proporção similar entre tratamentos

específicos e não específicos à mulher. Entre os direitos políticos, embora os números

absolutos sejam menos expressivos, é interessante notar que em 5 de 8 incidências haja

atribuição de tratamento específico à mulher (ver Tabela 6 e Gráfico 6).

Tabela 5

Caráter da Política Total Porcentagem

Criação de direitos civis 42 21,00%

Criação de direitos políticos 8 4,00%

Criação de direitos sociais 93 46,50%

Criminalização 36 18,00%

Tabela 6 Sem atribuição de direitos

específicos à mulher Com atribuição de direitos

específicos à mulher Total

Criação de Direitos Civis

29 69,05% 13 30,95% 42

Criação de Direitos Políticos

3 37,50% 5 62,50% 8

Criação de Direitos Sociais

63 67,74% 30 32,26% 93

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 25

2.2.5 Agente responsável pela implementação

Neste campo categorial, pretendemos classificar as leis em relação aos órgãos

responsáveis pela sua implementação. Em suas formas tradicionais, a implementação pode ser

realizada diretamente pela atividade de aplicação de norma ao caso concreto realizado pelo

Poder Judiciário, ou por meio da elaboração de políticas públicas ou atividades de polícia pelo

Poder Executivo, exigidas para a efetivação dos direitos previstos em lei. Além disso,

incluímos nesse campo de análise a atribuição de competências normativo-decisórias a

instituições não-estatais, a criação de conselhos deliberativos ou de órgãos especificamente

destinados a fiscalização e implementação da lei. Identificou-se ainda meios específicos de

enforcement que, apesar de não constituírem órgãos ou instituições, cumprem o papel de

assegurar o cumprimento do texto legislativo com previsão de procedimentos específicos (v.g.

multas).

Como indicam os dados apresentados abaixo, a legislação analisada não prevê em

grande medida formas alternativas para a sua implementação, utilizando-se na maior parte dos

casos exclusivamente das vias tradicionais da administração pública e da jurisdição (ver

Tabela 7 e Gráfico 7). As leis que atribuem proteções específicas às mulheres não parecem

trazer inovações significativas quanto às formas de implementação. Em 22 casos elas são

direcionadas ao Poder Executivo e em 32 ao Poder Judiciário; ao passo que em apenas 9

existe atribuição de competências normativo-decisórias a instituições não-estatais, em 7 a

criação de conselhos deliberativos, em 8 a especificação de órgãos destinados a fiscalização e

implementação da lei e em 6 a previsão de meios específicos de enforcement.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 26

Tabela 7 Agente responsável pela implementação Porcentagem

Judiciário (reclamação judicial direta) 109 54,50%

Executivo (reclamação judicial indireta) 92 46,00%

Atribuição de competências normativo-decisórias a instituições não-estatais

21 10,50%

Criação de conselhos deliberativos 30 15,00%

Órgão especificamente criado para fiscalização e implementação 25 12,50%

Meios específicos de enforcement 17 8,50%

Outros 6 3,00%

Tabela 8 Sem tratamento

específico à mulher Com tratamento

específico à mulher Total

Executivo (reclamação judicial indireta)

70 76% 22 24% 92

Judiciário (reclamação judicial direta)

77 70,64% 32 29,36% 109

Atribuição de competências normativo-decisórias a instituições

não-estatais

12 57,14% 9 42,86% 21

Criação de conselhos deliberativos 23 76,67% 7 23,33% 30

Órgão especificamente criado para fiscalização e implementação

17 68,00% 8 32,00% 25

Meios específicas de enforcement 11 64,71% 6 35,29% 17

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 27

2.2.6 Natureza Jurídica

Este campo de categorias destina-se a verificar como se distribui a legislação analisada

em relação aos campos jurídicos existentes. Importante dizer que, para efeitos de

classificação, não foi considerada a natureza material ou processual dos dispositivos contidos

em cada campo jurídico. Cabe ainda explicar, que neste campo foi incluída a categoria

“políticas públicas/direitos sociais” a qual se refere às prestações estatais positivas nas áreas

da saúde, educação, moradia, lazer, proteção à maternidade e à infância, e à assistência aos

desamparados, as quais não podem ser rigorosamente agregadas à divisão das categorias

referentes às áreas jurídicas tradicionais. É justamente nesta categoria de “políticas

públicas/direitos sociais” que se encontra o maior número de incidências no banco de dados

tomado como um todo. Ela apresenta incidência em 36,5% dos casos analisados, seguidos de

graus significativos de incidência nas áreas do direito penal (22%), administrativo (20%),

civil (19,5%) e trabalhista (15,5%) (ver Tabela 9 e Gráfico 9).

Quando consideramos as leis que fazem referência específica à mulher, essas

proporções não se alteram de maneira significativa, exceto pelo caso do Direito

Previdenciário, que possui a maior porcentagem de tratamento diferenciado à mulher em seu

campo de regulação (55,56%), equiparando-se em número de ocorrências ao direito civil e

administrativo (10 casos) (ver Tabela 10 e Gráfico 10).

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 28

Tabela 9 Natureza Jurídica Total Porcentagem

Civil 39 19,50%

Penal 44 22,00%

Administrativa 40 20,00%

Políticas Públicas/ Direitos Sociais 73 36,50%

Previdenciária 18 9,00%

Trabalhista 31 15,50%

Tributário 8 4,00%

Comercial 6 3,00%

Eleitoral 4 2,00%

Outros 8 4,00%

Tabela 10

Natureza Jurídica Sem tratamento específico à

mulher

Com tratamento específico à mulher

Total

Civil 29 74,36% 10 25,64% 39

Penal 32 72,73% 12 27,27% 44

Administrativa 30 75,00% 10 25,00% 40

Políticas Públicas/ Direitos Sociais 56 76,71% 17 23,29% 73

Previdenciária 8 44,44% 10 55,56% 18

Trabalhista 23 74,19% 8 25,81% 31

Tributário 7 87,50% 1 12,50% 8

Comercial 3 50,00% 3 50,00% 6

Eleitoral 2 50,00% 2 50,00% 4

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2.2.6 Criminalização e descriminalização

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 30

Os dados referentes à criminalização dos diversos ambientes regulados revelam

resultados surpreendentes para o senso comum que afirma estarmos diante de uma tendência

cada vez maior de criminalização das relações sociais. Como já foi visto acima, prevalece o

reconhecimento afirmativo (por meio da criação de direitos) do que o negativo, voltado à

punição pela via criminal.

É interessante observar, no Gráfico 12, os ambientes mais ou menos criminalizados.

Excluindo-se os ambientes regulados “Judiciário” (tratamento diferenciado à mulher em

algum rito processual), “meios artísticos e culturais”, “forças armadas”, “negócios privados,

“relações de trabalho” e “cidade”, cujo número de leis é muito baixo (por exemplo, 3 para

“forças armadas/polícia”, 3 para “Judiciário” e 1 para “cidade”), a criminalização é muito

relevante na esfera da “intimidade” e do “cárcere” e menos relevante no campo da “família” e

da “saúde”.

A criminalização das relações familiares e no campo das políticas de saúde é mais

baixa, o que revela uma preocupação do legislador em evitar criar crimes e penas sobre estes

assuntos. Este fato talvez se deva ao fato de que a sociabilidade nestas esferas está ligada a

valores como confiança e afetividade. Interessante pensar que nestes campos encontramos a

mulher tratada, por exemplo, como “mãe” e “grávida”, além de protagonista da relação entre

médico e paciente. Já no que se refere ao campo da intimidade, espaço por excelência dos

crimes sexuais, o grau de criminalização é muito alto.

2.2.7 Tratamento diferenciado à mulher

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 31

Os dados referentes ao tratamento diferenciado mostram que a legislação, em termos

gerais, não é endereçada especificamente à mulher, mas a destinatários indeterminados quanto

ao gênero. Como foi visto acima, há uma concentração temporal da legislação específica à

mulher no período posterior à Constituição que provavelmente visou adequar o sistema de

direitos às novas exigências constitucionais.

Interessante observar que a proporção de leis voltadas para a mulher é de

aproximadamente um terço nos ambientes regulados “relações de trabalho”, “saúde”,

“negócios privados”, “negócios públicos”, “família”, “instituições políticas”, “cárcere”, e

“outros”. No ambiente “intimidade (sexualidade/reprodução)”, a proporção cai para um

quarto e nos ambientes restantes, “judiciário” (tratamento diferenciado à mulher em algum

rito processual), “meios artísticos e culturais”, “forças armadas” e “cidade” a proporção é

maior, chegando até a superar as leis gerais (“judiciário” e “meios artísticos e culturais”). No

entanto, nestes campos, o número de leis é exíguo (por exemplo, 3 para “forças

armadas/polícia”, 3 para “Judiciário” e 1 para “cidade”), o que dá pouca relevância estatística

ao resultado.

2.2.8 Agentes na implementação x ambiente regulado

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 32

Os dados sobre os agentes de implementação cruzados com o ambiente regulados

mostram, como já visto na tabela 7, a prevalência de uma tutela tradicional, centrada no Poder

Judiciário. O papel de instituições não estatais é reduzido, especialmente no que se refere ao

campo da “família”, “saúde”, “relações de trabalho” e “intimidade”.

É interessante notar, no entanto, que a legislação cria conselhos de natureza

deliberativa em percentagem significativa no que se refere ao ambiente “cidade”, “instituições

de ensino”, “negócios públicos” e “instituições políticas”, o que revela uma porosidade das

instituições de caráter público (ou em que estejam envolvidos interesses de natureza pública

de maneira sensível) à participação da sociedade. No campo da “intimidade”, a presença de

meios de tutela alternativos ao judiciário é extremamente reduzida, o que revela a pouca

utilização, por exemplo, de mecanismos como a justiça restaurativa para a solução de

conflitos.

Raramente encontramos a criação de órgãos direcionados a fiscalizar e implementar

políticas relativas à mulher, o que reforça os resultados que acabamos de discutir. Na maior

parte das vezes, atribui-se poder ao Judiciário, ou seja, para um meio de tutela que, em regra,

atua diante do fato consumado e, apenas por exceção, preventivamente. Discutiremos melhor

as implicações desta característica da tutela de direitos adiante, quando falarmos de

jurisprudência, pois este modo de regular tem reflexos claros neste campo. Seja como for, este

resultado mostra que a legislação não tem criado meios de tutela específicos para a solução de

questões relacionadas ao gênero.

Claro, se olharmos para as questões penais em que as delegacias da mulher são

atuantes e extremamente relevantes para a aplicação das leis, este quadro não se apresenta.

Mas observando os ambientes regulados como um todo, é perceptível a falta de meios de

tematização de questões de gênero para além do Poder Judiciário, bem como é pouca a

relação entre organismos estatais e sociedade. Por exemplo, considerando-se apenas as leis

direcionadas à mulher, apenas 10 delas atribuem poder decisório a órgãos não estatais e outras

7 criam conselhos de natureza deliberativa, o que reforça preferência pela tutela judicial .

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 33

3. PESQUISA JURISPRUDENCIAL

3.1. Jurisprudência trabalhista

O objetivo desta parte da pesquisa é analisar a jurisprudência do Tribunal Superior do

Trabalho sobre direitos da mulher. No item 1, apresentaremos a metodologia utilizada na

pesquisa justificando a escolha e descrevendo o processo de seleção dos acórdãos analisados.

No item 2, apresentaremos as categorias jurídicas encontradas nos julgados e as posições

interpretativas em disputa, além da análise da argumentação, quando pertinente. Finalmente,

no item 3, faremos considerações sobre os resultados obtidos.

3. 1.1 Metodologia

Na primeira fase de desenvolvimento deste projeto, o estudo compreendeu o

mapeamento quantitativo preliminar da atuação do Poder Judiciário em questões que,

atualmente, são centrais no debate do reconhecimento e efetivação dos direitos das mulheres,

quais sejam, a tematização do aborto, da violência doméstica (Lei Maria da Penha), das cotas

políticas e da discriminação do trabalho9. Por recomendação do órgão financiador, a análise

qualitativa foi desenvolvida apenas no que diz respeito aos temas das cotas políticas e da

discriminação no trabalho.

De qualquer modo, os dados quantitativos obtidos nessa fase exploratória sobre os

temas aborto e lei Maria da Penha nos parecem significativos no sentido de demonstrar a

intensa tematização desse tema no Judiciário.

O levantamento jurisprudencial da pesquisa sobre aborto foi realizada entre agosto e

outubro de 2008, englobando a maior parte dos Tribunais de Justiça10, Superior Tribunal de

Justiça e Supremo Tribunal Federal. A pesquisa das decisões disponíveis nos bancos de dados

dos sites dos tribunais com o termo de busca “aborto” gerou 1551 resultados.

O estudo da aplicação da Lei Maria da Penha seguiu essas mesmas diretrizes. Entre os

meses de agosto e outubro, levantamos todas as decisões dos Tribunais de Justiça disponíveis

9Estes temas foram escolhidos por meio de um estudo geral das pautas mais tematizadas e problematizadas nas discussões atuais acerca dos direitos da mulher. A análise das Conferências e dos Planos Nacionais de Políticas para Mulheres revelou as principais linhas de atuação atual do movimento feminista e, a partir da sistematização feita nos Planos, foi possível constatar como os temas ali apresentados se manifestam no discurso das organizações civis e no debate público em geral. 10Foram excluídos da pesquisa os Tribunais de Justiça dos Estados do Piauí, Paraíba, Alagoas, Sergipe e Amazonas, em razão de suas páginas eletrônicas estarem em construção.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 34

na internet usando o termo de busca “Maria da Penha” + “lesão corporal”. Nos Tribunais onde

foi possível fazer a busca11, encontramos um total de 484 acórdãos.

O volume de casos encontrados sobre esses dois temas é muito superior aos casos

encontrados sobre cotas políticas e discriminação no trabalho, descritos abaixo. Há uma série

de hipóteses explicativas que podem ser levantadas a partir dessa indicação. Elas podem estar

ligadas à extensão e à freqüência do conflito social; podem se relacionar à maior ou menor

facilidade de as mulheres enxergarem a violação de seus direitos e tomarem a iniciativa de

questionar tal violação no Judiciário; podem se dar em razão dos filtros que atuam no âmbito

das instituições do sistema Jurídico e que impedem que os casos alcancem os Tribunais, nossa

fonte de buscas; por fim, o número de casos encontrados em segunda instância também pode

refletir um maior grau de inconformismo ou de divergência das interpretações disponíveis

sobre as lei. Não é possível apostar em nenhuma dessas explicações sem que se prossiga na

pesquisa.

O elevadíssimo número de acórdãos relativos aos temas aborto e à recente Lei Maria da

Penha, aliado ao intenso debate de tais temas na esfera pública12 parecem indicar que uma

futura investigação acerca da atuação da Justiça13 nesses temas é fundamental para

compreender a atuação do Poder Judiciário na aplicação e na criação de normas que dizem

respeito à situação da mulher na sociedade brasileira.

Passamos a seguir a descrever o procedimento utilizado para a realização do

levantamento quantitativo e qualitativo relativos aos temas cotas políticas e discriminação no

trabalho, realizados nesta pesquisa.

O levantamento das decisões trabalhistas foi realizado por meio do banco de dados da

página eletrônica do Tribunal Superior do Trabalho (TST), na semana de 07 a 12 de dezembro

11Novamente foram excluídos da pesquisa os Tribunais de Justiça dos Estados do Piauí, Paraíba, Alagoas, Sergipe e Amazonas, pelas razões expostas na nota de rodapé anterior. 12Estes temas foram escolhidos por meio de um estudo geral das pautas mais tematizadas e problematizadas nas discussões atuais acerca dos direitos da mulher. A análise das Conferências e dos Planos Nacionais de Políticas para Mulheres revelou que ambos os temas figuram entre as principais linhas de atuação atual do movimento feminista e, a partir da sistematização feita nos Planos, foi possível constatar como os temas ali apresentados se manifestam no discurso das organizações civis e no debate público em geral. 13Como o projeto inicial deste grupo envolvia a análise qualitativa de acórdãos sobre os temas aborto e Lei Maria da Penha, que foram substituídos, a pedido do órgão financiador, pela análise qualitativa de acórdãos sobre cotas políticas e discriminação no trabalho, um trabalho inicial no desenvolvimento de categorias de análise foi realizado. Nesse sentido, elaboramos para os dois temas um instrumento de coleta de dados (consistentes em critérios organizados em uma tabela Excel) que permite a sistematização e o mapeamento dos principais pontos dos acórdãos. Por meio do tabelamento, buscávamos tanto a extração de dados quantitativos (como quantidade de condenações, interpelação de recursos, aplicação de penas alternativas, etc.), quanto uma compreensão mais ampla sobre a aplicação da lei (como informações sobre a vítima e argumentação usada pelo juiz). Como tal documento pode vir a ser útil para uma futura investigação, segue anexo a este relatório.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 35

de 2008. Este banco permite a consulta unificada à jurisprudência do TST e dos Tribunais

Regionais do Trabalho (TRTs). A busca foi feita por meio dos seguintes termos: “isonomia e

mulher”, “igualdade e mulher”, “discriminação e mulher”, “discriminação e gestante”,

”contratação e discriminação e mulher”, “trabalho da mulher” e “igualdade de gênero”,

resultando em 838 acórdãos.

No âmbito da justiça comum, pesquisamos no banco de dados da Associação dos

Advogados de São Paulo (AASP), durante o mesmo período, decisões relacionadas à

discriminação da mulher na esfera cível. Para tanto, utilizamos o termo “relação de trabalho e

discriminação e mulher”, que gerou 6 resultados, posteriormente descartadas, dada a falta de

objeto com o estudo proposto.

O universo de 838 acórdãos passou por sucessivos filtros, nos quais foram descartados

os resultados repetidos, recursos de agravo de instrumento, embargos de declaração e ações

rescisórias. Para esta filtragem, privilegiamos investigar decisões de mérito e finais, chegando

a 344 recursos, entre os quais, recursos de revista, recurso ordinário, apelações cíveis,

dissídios coletivos e embargos de declaração da matéria julgada pelos recursos de revista

selecionados.

Nos acórdãos examinados, identificaram-se sete tipos de demanda, a saber:

i. Ampliação ou redução do período para refeição e repouso concedido à

empregada, durante a jornada de trabalho;

ii. Descanso de 15 minutos no mínimo, a que tem direito a mulher, em caso de

prorrogação do horário normal de trabalho;

iii. Revista íntima;

iv. Licença maternidade destinada à mãe adotante,

v. Estabilidade provisória da gestante;

vi. Discriminação da gestante;

vii. Assédio sexual;

viii. Auxílio-creche.

Estas decisões passaram por outra filtragem manual, na qual foram excluídos os

acórdãos que não apresentassem tematização alguma sobre discriminação da mulher,

fechando o universo de análise quantitativa e qualitativa de 108 decisões. Adiante, o resultado

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 36

de cada uma destas demandas será analisado em detalhes tendo-se em vista, como anunciado

na introdução deste relatório, as categorias em disputa no âmbito do Poder Judiciário.

Baixados todos os acórdãos, cada decisão foi classificada de acordo com uma série de

critérios em seis tabelas do software Excel©. O tabelamento dos acórdãos não teve como

objetivo a realização de uma análise quantitativa das informações coletadas, uma vez que o

tamanho reduzido do universo de decisões encontradas não permitia tal estudo. Portanto, a

tabela foi usada como um instrumento de sistematização das decisões encontradas e

organização dos dados.

A tabela apresenta, em suas colunas, as categorias de análise por meio das quais as

informações sobre cada acórdão devem ser objetivamente extraídas. No total, para

tabelamento das decisões, foram elaboradas 38 categorias, que, por sua vez, estavam divididas

em três grandes grupos. No primeiro grupo, foram inseridas categorias referentes aos dados

sobre o processo; no segundo estão as categorias sobre os diferentes temas ou problemas

abordados em cada acórdão; finalmente, o último grupo contém categorias atinentes à

argumentação jurídica desenvolvida nas decisões. Esses três grupos - processo, tematização e

argumentação - compõem os critérios básicos de sistematização das decisões analisadas,

sendo compostos da seguinte forma:

(i) Elementos processuais –contém informações sobre tribunal que proferiu a decisão,

o recorrente, o recorrido, o tipo de recurso, o número do processo, o nome do relator

responsável, se a decisão foi ou não por unanimidade, a data do julgado e o fundamento da

decisão recorrida;

(ii) Temas abordados -trata dos tópicos discutidos nos acórdãos, a saber, a categoria

dogmática em disputa;

(iii) Argumentação - contém critérios de investigação de argumentos presentes nas

decisões. As quinze colunas subseqüentes informam qual a principal abordagem da decisão,

dispositivos legais citados, citação de princípios, da doutrina e citação de casos. Para os

critérios doutrina e casos, há um item que visa explicitar se a citação é ou não usada como

argumento de autoridade. Ao final, os últimos dois critérios, se a decisão faz referência a

argumentos externos ao direito e quais seriam.

É importante ressaltar um ponto, no qual já tocamos na apresentação desta pesquisa. A

despeito de nos preocuparmos com a citação da legislação, não consideramos que a solução

dos casos seja uma atividade mecânica. Como ficará claro no exame das diversas categorias,

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 37

há posições diametralmente opostas na interpretação de um mesmo material jurídico, o que

deixa clara a existência de um espaço de disputa das categorias. O conhecimento destas

controvérsias, além de poder informar uma prática social ativista, que pense o Judiciário

como uma arena de disputa pelo sentido das normas, é importante para qualquer proposta de

reforma legislativa.

As leis novas encontram um contexto dado quando criadas. Elas serão interpretadas

em conjunto com outras leis e em função dos debates que ocorrem no interior do Poder

Judiciário. Uma lei nova criada a partir destes conhecimentos pode ser mais efetiva, por

exemplo, ao buscar intervir diretamente sobre as controvérsias jurisprudenciais com o fim

tornar menos ambíguas determinadas categorias em disputa. Fazer uma lei às cegas, sem

atentar para as disputas judiciais, é aumentar o risco de frustrar a efetivação das demandas que

elas pretendem veicular (MACHADO, PUSCHEL, RODRIGUEZ, 2009).

Retomando o fio da exposição, como dissemos acima, a terceira parte da tabela trata

da principal abordagem da decisão, ou seja, qual argumento foi fundamental para o

julgamento da demanda e quais os argumentos utilizados pelo juiz para fundamentar sua

decisão: dispositivos legais, princípios, doutrina e/ou casos julgados. Para os critérios doutrina

e casos, há um item que visa explicitar se a citação é ou não usada como argumento de

autoridade, ou seja, se o juiz busca reconstruir a jurisprudência de seu tribunal de forma

sistemática ou se apenas pinça julgados isolados para justificar seus argumentos. Ao final, os

últimos dois critérios procuram identificar o uso de argumentos externos ao direito:

valorações morais, religiosas, filosóficas etc. Essa parte da tabela visa a identificar a maneira

pela qual os juízes argumentam e qual o material normativo (jurídico ou não) mobilizado para

justificar suas decisões.

Esta parte da tabela está preocupada em captar a qualidade da argumentação judicial,

ponto que tem sido negligenciado nos estudos jurídicos e de ciências sociais sobre o Poder

Judiciário. O juiz tem o dever de justificar suas decisões e esta justificação serve para expor

para a esfera pública as razões que o levaram a adotar determinada interpretação do direito.

A análise da argumentação é importante porque qualquer decisão de um juiz pode ser

criticada, afinal, se não o fosse, não poderia ser chamada de decisão, seria uma mera

constatação de fato. Este verdadeiro truísmo nem sempre fica claro aos olhos dos analistas,

especialmente aqueles que não se preocupam em reconstruir a racionalidade interna do

direito. Pode-se debater e questionar a posição do juiz, ou seja, sua maneira de interpretar e

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 38

selecionar o material que tinha à sua disposição, mas isso se faz analisando a justificativa

construída por ele, ou seja, levando em conta a racionalidade interna do direito.

Nesse sentido, uma sentença é censurável se não fizer referência a casos pertinentes e

à legislação relevante para a disciplina daquele problema. Independentemente da solução do

caso, ou melhor, do resultado final, um juiz não pode ignorar o material jurídico que têm à sua

disposição. Se hoje é evidente para a teoria do direito que a sentença não é mera reprodução

das leis e casos e está fundada em argumentos valorativos como os princípios (positivados ou

não), tal valoração se faz sobre o material jurídico como um todo e não em detrimento dele. O

juiz deve justificar porque usou certas leis e não outras e citou (ou não) certos casos e não

outros em sua decisão.

3.1.2. As demandas: categorias em disputa

Passamos agora a expor os temas encontrados na jurisprudência trabalhista em que a

questão de gênero foi de alguma forma abordada.

(i) Ampliação ou redução do período para refeição e repouso concedido à empregada, durante a jornada de trabalho;

O art. 383, da CLT, estabelece que, durante a jornada de trabalho, será concedido à

empregada um período para refeição e repouso não inferior a 1 (uma) hora, nem superior a

2 (duas) horas salvo a hipótese prevista no art. 71, § 3º, o qual permite a redução do limite

mínimo de uma hora apenas por ato do Ministro do Trabalho, sob determinadas condições.

Em vista da expressa referência à exceção admitida, entende-se que, por falta de previsão

legal, o limite máximo não poderá ser ampliado.

Sob a perspectiva da dogmática jurídica, há, na CLT, de um lado, no capítulo sobre a

duração do trabalho, uma norma geral, expressa no art. 71 e parágrafos, aplicada ao conjunto

dos trabalhadores. De outro lado, porém, no art. 383, no capítulo sobre a proteção do trabalho

da mulher, há uma norma especial, que restringe a incidência da norma geral a apenas uma

hipótese, àquela prevista no § 3º. Nesse sentido, não se aplicam ao trabalho da mulher as

demais disposições do art. 71, dentre elas, a que, mediante acordo escrito ou contrato coletivo,

permite a ampliação do intervalo para repouso ou alimentação para além das duas horas.

A única forma de romper essas limitações, sem sair do âmbito da discussão dogmática

jurídica, vem sendo a de negar validade à norma especial, lançando mão de uma norma

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 39

hierarquicamente superior com a qual ela, a norma especial, seja incompatível. Nesse sentido,

o debate jurídico migra para a esfera constitucional, e a questão que se coloca pode ser

expressa nos seguintes termos: o tratamento diferenciado previsto para a mulher no art. 383

da CLT viola o art. 5, I, da Constituição Federal, que afirma a igualdade entre homens e

mulheres? Se for constitucional, o intervalo intrajornada não poderá ser ampliado; se

inconstitucional, não valem as limitações do art. 383, mas apenas as condições da norma

geral, pelas quais esse período para descanso poderá ser alargado. E se semelhante ampliação

for possível, a pergunta seguinte será esta: remunera-se ou não como hora-extra o período

excedente?

Nas 21 decisões analisadas sobre o intervalo intrajornada da mulher, entendeu-se

majoritariamente que o art. 383 da CLT afronta o art. 5º, I, da Constituição Federal.

Entendeu-se que a distinção entre o trabalho de homens e mulheres não se justifica, e as

únicas normas que possibilitam dar tratamento diferenciado à mulher dizem respeito àquelas

traduzidas na proteção à maternidade.

(ii) O descanso de 15 minutos no mínimo, a que tem direito a mulher, em caso de prorrogação do horário normal de trabalho;

Ainda no capítulo da proteção do trabalho da mulher, questão idêntica se coloca a

respeito do art. 384, pelo qual, em caso de prorrogação do horário normal, será obrigatório um

descanso de 15 (quinze) minutos no mínimo, antes do início do período extraordinário do

trabalho. Tais limitações têm por fundamento a idéia presente na CLT, que opera com base no

pressuposto da fragilidade biológica da mulher, de que a ampliação do horário do trabalho

feminino deveria ser excepcional e, portanto, seguir condições diferenciadas em relação ao

trabalho masculino.

A questão que hoje se coloca é se teria o art. 5º, caput¸ da Constituição de 1988

recepcionou esse dispositivo da CLT ou se seria este inconstitucional. Ao se discriminar

positivamente as mulheres na distribuição de vantagens, haveria violação à igualdade entre

homens e mulheres?

Nos 20 acórdãos analisados sobre o tema, a maior parte decidiu pela não recepção do

dispositivo pela Constituição (total de 15 decisões). Prevalecem três tipos de argumentos que

sustentam a inconstitucionalidade do artigo. No primeiro, é alegada violação do art. 5º, I, da

Constituição Federal. Nos casos estudados, não há argumentação sobre qual seria, segundo o

relator e o Tribunal, o sentido adequado da igualdade entre homens e mulheres. Nos acórdãos

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 40

examinados, contudo, presumiu-se que homem e mulher são iguais e conclui-se que essa

igualdade é incompatível com o disposto na CLT. Neste sentido:

Se levado às últimas conseqüências o inciso I do artigo 5º da Constituição deveria ser no sentido de estender aos homens o mesmo direito reconhecido às mulheres, considerando a penosidade inerente ao sobretrabalho, e não o de, a guisa do tal princípio da isonomia, extinguir, pela via inadequada da atividade jurisdicional, o direito consagrado no artigo 384 da CLT.14

O segundo tipo de argumento nega a existência de justificativas legítimas e também de

razões científicas para utilizar o gênero como critério de alocação de benefícios. Deste modo,

os direitos e obrigações iguais viabilizam o tratamento diferenciado ao trabalho da mulher

apenas quando se referem a condições determinadas, como a maternidade e o deslocamento

de peso.

Por fim, o terceiro tipo de argumento aponta para as conseqüências advindas dos

artigos contestados, cuja vigência terminaria por desestimular a contratação de mulheres por

empresas que lançam mão da prorrogação da jornada. Em uma das decisões em que

predominou essa abordagem, é citado trecho da obra de juíza Alice Monteiro de Barros, que

bem exemplifica a questão:

O dispositivo consolidado em exame poderá restringir o campo de trabalho da mulher e a modalidade de mão-de-obra, acarretando menor possibilidade de ganho àquela. E exatamente considerando que a regra, em princípio voltada para a proteção da mulher, lhe era prejudicial, foi que as mulheres americanas conseguiram abolir, em 1973, em quase todos os estados americanos, as leis de cunho tutelar, sobretudo as que dispunham a respeito de número máximo de horas. Essas leis, que de início tinham caráter protetor, passaram a ser restritivas, pois não seguiram o ritmo das modificações registradas nas condições de trabalho, como conseqüência da evolução tecnológica. Ademais, essas leis especiais nada mais eram do que atitude da sociedade a respeito da divisão do trabalho segundo o sexo, típica da primeira metade do século XX.

(...) Em conseqüência, deverá também ser revogado o artigo 384 da CLT, que prevê descanso especial para a mulher, na hipótese de prorrogação de jornada. Ambos os dispositivos conflitam com os artigos 5º, I, e artigo 7º, XXX, da Constituição Federal. (Alice Monteiro de Barros, intitulada “A mulher e o Direito do Trabalho”, Ed. LTR, São Paulo, 1995, p. 478 e 479).

14 TST-RR- 2005-019-12-00.0, 4ª Turma, Relator Ministro Barros Levenhagen, DJ - 24/10/2007.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 41

Em 6 decisões é mencionada a orientação jurisprudencial SBDI-1 na qual é fixado o

entendimento de que o art. 384 conflita com o art. 5º, I, da Constituição, e portanto não

haveria motivo para se impor regra discriminatória às mulheres:

RECURSO DE EMBARGOS. TRABALHO DA MULHER. INTERVALO PARA DESCANSO EM CASO DE PRORROGAÇÃO DO HORÁRIO NORMAL. ARTIGO 384 DA CLT. NÃO RECEPÇÃO COM O PRINC ÍPIO DA IGUALDADE ENTRE HOMENS E MULHERES. VIOLAÇÃO DO A RT. 896 DA CLT RECONHECIDA. O art. 384 da CLT está inserido no capítulo que se destina à proteção do trabalho da mulher e contempla a concessão de quinze minutos de intervalo à mulher, no caso de prorrogação da jornada, antes de iniciar o trabalho extraordinário. O tratamento especial, previsto na legislação infraconstitucional não foi recepcionado pela Constituição Federal ao consagrar no inciso I do art. 5º, que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações. A história da humanidade, e mesmo a do Brasil, é suficiente para reconhecer que a mulher foi expropriada de garantias que apenas eram dirigidas aos homens e é esse o contexto constitucional em que é inserida a regra. Os direitos e obrigações a que se igualam homens e mulheres apenas viabilizam a estipulação de jornada diferenciada quando houver necessidade da distinção, não podendo ser admitida a diferenciação apenas em razão do sexo, sob pena de se estimular discriminação no trabalho entre iguais, que apenas se viabiliza em razão de ordem biológica. As únicas normas que possibilitam dar tratamento diferenciado à mulher diz respeito àquelas traduzidas na proteção à maternidade, dando à mulher garantias desde a concepção, o que não é o caso, quando se examina apenas o intervalo previsto no art. 384 da CLT, para ser aplicado apenas à jornada de trabalho da mulher intervalo este em prorrogação de jornada, que não encontra distinção entre homem e mulher. Embargos conhecidos e providos. 15

Nos demais acórdãos há referência à vocação primária da mulher de “geração e

educação dos filhos” e de “ser o coração da família e a alma da casa”, especialmente em um

deles, que faz menção à filósofa judia e santa da Igreja Católica, Edith Stein, o qual citamos

abaixo. No entanto, não verificamos ser essa uma posição majoritária, ao contrário.

Para EDITH STEIN (1891-1942), destaque feminino no campo filosófico (fenomenologista alemã), três características se destacam na relação homem- mulher: igual dignidade, complementariedade e diferenciação (não só biológica, mas também anímica). Cada um dos sexos teria sua vocação primária e secundária, em que, nesta segunda, seria colaborador do outro: a vocação primária do homem seria o domínio sobre a terra e a da mulher a geração e educação dos filhos (“A primeira vocação profissional da mulher é a construção da família”). Por isso, a mulher deve encontrar, na sociedade, a profissão adequada, que não a impeça de cumprir a sua vocação primária, de ser “o coração da família e a alma da casa”. O papel da mulher é próprio e insubstituível, não podendo limitar-se à imitação do modo de ser masculino (cfr. Elisabeth Kawa, “Edith Stein”, Quadrante – 1999 – São Paulo, pgs. 58-63).

15 TST-E-RR-3886/2000 071-09-00.0, Rel. Min. Aloysio Corrêa da Veiga, DJ de 25/4/2008.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 42

Com base nisso, reconhece-se, sim, que homens e mulheres são iguais juridicamente,

mas também que, entre eles, há diferenças que não são jurídicas e que justificam uma

distribuição distinta de benefícios em favor da mulher. Aqui prevalece o entendimento de que

o princípio da isonomia para declarar a não-recepção pela Constituição de uma “disposição

legal indispensável à proteção da saúde das trabalhadoras não parece razoável”.16

A esse argumento acrescenta-se outro, a radicalizar o sentido de igualdade, previsto no

art. 5º, I, da Constituição Federal, estendendo também ao homem as vantagens previstas nos

dispositivos, cuja constitucionalidade é contestada. Nesse caso, não se restabelece a

igualdade, retirando da mulher aquele direito que ela tem a mais do que o homem, mas dando

a ele o que lhe falta.

(iii) Revista íntima;

No Recurso de Revista 631/2005-058-15-00.717, questionou-se o exercício regular do

poder de fiscalização de empresa distribuidora de medicamentos de venda controlada, a quem

cabe, por lei, a responsabilidade de guardar esses produtos. No caso examinado, o Reclamante

foi um homem, empregado da empresa, que se submetia, diariamente, em ambiente coletivo, à

revista íntima feita com o objetivo de impedir a saída ilegal de medicamentos controlados.

Esse homem demandou com base no princípio da igualdade, expresso no art. 5º, I, da

Constituição, que lhe fosse também aplicada a norma do art. 373-A, VI, da CLT, a qual veda

revistas íntimas nas empregadas.

O acórdão examinado entende que a dignidade é própria do ser humano, e não de um

gênero específico, e que a intimidade não pressupõe necessariamente o contato físico entre

empregado e supervisor, pois o ato abusivo se configura com a revista visual, em que o

trabalhador é constrangido a exibir seu corpo nu ou em peças íntimas, não sendo atenuante,

nesse caso, o fato de ser o supervisor do mesmo sexo do empregado. Além disso, não se exige

prova do dano moral, mas tão-somente do fato que supostamente terá gerado a dor e o

sofrimento.

16TST-RR-2116/2005-046-12-00.8, 1ª Turma, Relator Min. Vieira de Mello Filho, DJ 10.09.2008.

17TST, 5ª Turma, Juíza Convocada Relatora Kátia Magalhães Arruda, DJ 26.03.2008.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 43

Assim, há, de um lado, o dever de fiscalizar a saída de remédios; de outro, o dever de

respeitar a dignidade da pessoa. Os dois deveres se impõem e devem ser sopesados, para que

não colidam. Disso resulta que a empresa poderá utilizar todos os meios necessários para

cumprir sua obrigação, exceto aqueles que avancem sobre a intimidade dos empregados. O

direito constitucional à dignidade da pessoa humana é irrenunciável, e o empregador não

poderá, ainda que seja o caso, alegar que as revistas íntimas pudessem ter concordância prévia

do empregado ou que estivessem de acordo.

(iv) Licença maternidade destinada à mãe adotante,

Cinco acórdãos do Tribunal Superior do Trabalho (TST) discutiram a possibilidade de

conceder licença-maternidade à mãe adotante. As decisões são anteriores à Lei nº 10.421 de

15 de abril de 2002, que passou a garantir expressamente este direito, acrescentando o art.

392-A à Consolidação das Leis do Trabalho e o art.71-A à lei de previdência social (Lei nº

8.212 de 24 de Julho de 1991):

.

Art. 392-A. À empregada que adotar ou obtiver guarda judicial para fins de adoção de criança será concedida licença-maternidade nos termos do art. 392, observado o disposto no seu § 5o.

§ 1º No caso de adoção ou guarda judicial de criança até 1 (um) ano de idade, o período de licença será de 120 (cento e vinte) dias.

§ 2º No caso de adoção ou guarda judicial de criança a partir de 1 (um) ano até 4 (quatro) anos de idade, o período de licença será de 60 (sessenta) dias.

§ 3º No caso de adoção ou guarda judicial de criança a partir de 4 (quatro) anos até 8 (oito) anos de idade, o período de licença será de 30 (trinta) dias.

§ 4º A licença-maternidade só será concedida mediante apresentação do termo judicial de guarda à adotante ou guardiã.

(...)

Art. 71-A . À segurada da Previdência Social que adotar ou obtiver guarda judicial para fins de adoção de criança é devido salário-maternidade pelo período de 120 (cento e vinte) dias, se a criança tiver até 1(um) ano de idade, de 60 (sessenta) dias, se a criança tiver entre 1 (um) e 4 (quatro) anos de idade, e de 30 (trinta) dias, se a criança tiver de 4 (quatro) a 8 (oito) anos de idade.

Os casos discutidos são anteriores à lei, quando a legislação expressa sobre o tema era

o inciso XVII do art. 7º da Constituição:

Art. 7º - São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

(...)

XVIII - licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias;

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 44

Dos cinco acórdãos, 3 concederam a licença e dois não o fizeram.

O argumento contra a concessão18 é em suma, a inexistência de lei expressa: o texto

constitucional fala apenas em “gestante” e deve ser interpretado literalmente. Não cabe ao juiz

criar normas diante do art. 5, II da CF:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

Uma das decisões, a despeito de argumentar que não cabe ao juiz inovar a legislação, dá

sentido biologizante claro ao artigo da Constituição afirmando que:

(...) Pela literalidade do dispositivo constitucional em comento ("São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (...) XVIII - licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias;"), vê-se que o constituinte, ao instituir o benefício da licença, restringiu-o "à gestante", ou seja, mulher que passou pelo período da gestação, condição biológica que, não obstante a grandeza do ato praticado pela recorrida-adotante, esta não atravessou (...). 19

A favor da concessão, os acórdãos decidiram que a finalidade do inciso XVIII do Art. 7º

da CF é proteger o nascituro em primeiro lugar, por isso mesmo, a mãe adotante deve se

beneficiar da licença. O artigo não deve ser interpretado literalmente, mas em função de seus

fins. Dois acórdãos falam também da proibição de discriminar filhos naturais e adotivos (Art.

227, § 6º).

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (...) § 6º - Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

18Acórdãos do TST: 1ª Turma: PROC. Nº TST-RR-232/2000-007-15-00 e 2ª Turma: PROC. Nº TST-RR-521.557/98.9. 19PROC. Nº TST-RR-521.557/98.9.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 45

Abaixo os principais argumentos:

(...) Indubitável que o legislador constituinte, ao instituir o direito à licença maternidade, referiu-se “à gestante”, o que, numa interpretação estritamente literal da norma constitucional (art. 7º, XVIII), levaria ao apriorístico entendimento de que o benefício vindicado estaria restrito à mãe biológica. Todavia, não se pode olvidar, que o escopo da norma citada, não está adstrito apenas à proteção da mãe biológica, mas, sobretudo, à proteção do filho recém-nascido que, por razões óbvias, necessita do contato diuturno com a figura materna, dos cuidados, da proteção e atenção constantes desta, sendo irrelevante, neste contexto, que se trate de mãe biológica ou adotiva (...).

(...) No art. 7º, XVIII, da Constituição da República se estipula o seguinte:

Art.. 7º - São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

(...)

XVIII - licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias. 20

No referido preceito constitucional, ao se estabelecer a licença maternidade de 120

(cento e vinte) dias, objetiva-se a proteção da criança, que necessita de assistência da mãe no

início da vida. Em conseqüência, não se pode diferenciar a mãe biológica da mãe adotante -

por certo, quando a adoção se faz em situação semelhante à que permite o afastamento do

trabalho da mãe biológica - para a concessão do aludido benefício, porque os filhos

respectivos - havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção - situam-se no mesmo

nível de carecimento, de direitos e de qualificações, nos termos do art. 227, § 6º, da CF/88. 21

No referido preceito constitucional, ao se estabelecer a licença maternidade de 120 (cento e

vinte) dias, objetiva-se a proteção da criança, que necessita de assistência da mãe no início da

vida. Em conseqüência, não se pode diferenciar a mãe biológica da mãe adotante - por certo,

quando a adoção se faz em situação semelhante à que permite o afastamento do trabalho da

mãe biológica - para a concessão do aludido benefício, porque os filhos respectivos - havidos

ou não da relação do casamento, ou por adoção - situam-se no mesmo nível de carecimento,

de direitos e de qualificações, nos termos do art. 227, § 6º, da CF/88.

(...) A Lei de Introdução ao Código Civil, assenta a mesma diretriz no seu art. 5º, ao autorizar o juiz aplicar a lei “atendendo aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”.

Nesse sentido, é de se invocar o art. 227, § 6º, da Constituição da República, que preconiza a igualdade jurídica entre os filhos, adotivos ou não:

“Art. 227 É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à alimentação, à educação, ao

20Ac. 3ª Turma: PROC. Nº TST-RR-559.639/1999.2. 21Ac. 5ª TURMA: PROC. Nº TST-RR-240.925/96.2.

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lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

§ 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.”

O art. 227, §6º, acima transcrito encontra-se inserido no Capítulo VII do Título VIII da Constituição da República, cuidando especificamente dos direitos da família, da criança, do adolescente e do idoso. Por essa razão, ainda que se diga que o referido dispositivo cuida do direito da criança, ao passo que a licença-maternidade toca apenas a mãe, não se poderá negar que distinguir os filhos implica necessariamente distinguir as mães.

O princípio constitucional insculpido no artigo é o de proteção da família e da criança, atingindo diretamente a mãe, seja ela mãe adotante ou biológica.

O art. 227, caput, da Constituição da República foi a fonte inspiradora de todos os projetos de lei tendentes a reconhecer à mãe adotante o direito à licença-maternidade. Se assim o é, então o que se procurou garantir foi o direito da criança ao seu convívio materno, não havendo, por conseguinte, de onde se extrair do referido dispositivo, que a licença-maternidade reconhecida à mãe biológica tem por fim resguardá-la das alterações fisiológicas sofridas no período gestacional.

O art. 20 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) tem redação idêntica ao art. 227, § 6º, da Constituição da República:

“Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.”

(...) Ante tais fundamentos é de se reformar a decisão do Tribunal Regional, que concluiu não ser possível conceder à mãe adotante a licença-maternidade pela singela razão de que: “inexistindo lei que a ampare, no caso presente, não pode o Juiz fazê-lo, sob pena de violação frontal ao art. 5º, inc. II, da Lei Maior” (fls. 120). Leciona o Prof. Estevão Mallet, em artigo sobre os direitos de personalidade que “O silêncio do legislador apenas evidencia menor desenvolvimento da ciência jurídica. Não inibe, de nenhuma maneira, a afirmação da existência de direitos”.

Assim, o silêncio de norma específica concessiva de licença-maternidade à mãe adotante no âmbito da relação de emprego, anteriormente à Lei nº 10.421/2002, que acrescentou o Art. 392-A à CLT, não pode justificar tratamento distinto daquele dispensado à mãe biológica. O já citado art. 227 da Constituição da República, insere-se no âmbito da Ordem Social, de sorte que a ordem jurídica constitucional ao tempo em que proíbe qualquer designação discriminatória atenta à filiação, assegura isonomia de tratamento entre os filhos biológicos e adotivos, isonomia que alcança a família e, em particular, a mãe a quem deve ser garantidos os mesmos direitos, seja mãe biológica, seja adotante. Não é por outra razão que o caput do art. 227 da Constituição da República enuncia que “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

A família, neste aspecto, é objeto de proteção social, a salvo de qualquer critério de discriminação. A empregada que adota uma criança, é mãe sem qualquer distinção comparativa a outra forma de maternidade, merecendo tratamento isonômico, por ser medida que atende ao princípio da dignidade humana e valor social do trabalho. Tais princípios – dignidade da pessoa humana e valor social do trabalho – são fundamentos do Estado inspirados na Declaração Universal dos Direitos do Homem, que, vinculando a dignidade humana ao trabalho, enuncia “Todo homem que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegura, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana, e a

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que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social”. Nesse contexto, conforme já afirmado, a família (englobado a maternidade) é alvo de proteção social. 22 (grifamos)

A citação de julgados nas sentenças não permite identificar a pretensão de reconstruir a

opinião dos tribunais sobre o assunto.

As 3 decisões favoráveis à concessão de licença gestante não citaram julgados e as 2

decisões contrárias à licença citaram os seguintes:

(i) ERR 248.110/96, Rel. Min. José Luiz Vasconcellos, publicado no DJ de 17.02.2000; (citado 2 vezes);

(ii) RR 577.215/99, Rel. Juíza Convocada Maria Berenice, publicado no DJ de 02.02.2001;

(iii)- RR 398.142/97, Rel. Min. Rider Nogueira de Brito, publicado no DJ 27.04.2001;

(iv) E-RR-159.112/95, DJ 26.11.99, Juiz Convocado Levi Ceregato;

(v) RE-197807-RS, Relator Ministro Octavio Gallotti, 1ª Turma, unânime, DJ 18/08/00.

Uma das decisões afirma que o TST tem opinião contrária à concessão da licença e

cita uma série de julgados para comprovar sua afirmação. É interessante notar esta

necessidade de comprovar a afirmação. Não há a citação de casos paradigmáticos com a

certeza de que eles seriam expressão da opinião da corte. Argumentos deste tipo estão

ausentes de todos os julgados analisados. O acórdão afirma que esta é a posição da corte e cita

a seguir, justapostos, uma série de casos, sem análise ou hierarquia clara. Verbis:

Esta Corte Superior tem posicionamento no sentido de que não há igualdade de condições da mãe adotiva com a mãe biológica para o deferimento da licença-maternidade e, ainda, que não havendo previsão legal que autorize o reembolso ao empregador na hipótese de adoção, é indevida a sua concessão a mãe não gestante. É o que se depreende dos seguintes precedentes da Subseção-I Especializada em Dissídios Individuais e das Turmas desta C. Corte Superior:

“MÃE ADOTANTE – LICENÇA-MATERNIDADE – ART. 7º, XVIII , DA CF/88 – NÃO-EXTENSÃO. As circunstâncias que envolvem a mãe adotiva não tem similitude com as da mãe biológica. Em razão da restrição do Texto Constitucional, que confere a licença-maternidade de 120 dias apenas à gestante (inc. XVIII do art. 7º), obrigar o empregador a conceder tal benefício, importa em violação ao art. 5º, II, da CF/88.” (ERR 159.112/95, Rel. Juiz Convocado Levi Ceregato, publicado no DJ de 26.11.99)

“O encargo do desembolso final do pagamento da licença-maternidade é da previdência. Não existe previsão de tal reembolso ao empregador na hipótese de adoção. A imposição, por via judicial, de tal obrigação ao patrão, desnaturaria o instituto.” (ERR 248.110/96, Rel. Min. José Luiz Vasconcellos, publicado no DJ de

22Ac. 5ª Turma: PROC. Nº TST-RR-691.952/2000.6.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 48

17.02.2000)

“LICENÇA MATERNIDADE – MÃE ADOTIVA .

Na ausência de determinação legal ou constitucional que preveja licença à empregada em razão da adoção de criança, obrigar o empregador a conceder o benefício importa em infringência do disposto no art. 5º, II, da Carta Magna.

Desse modo, ainda que entenda inexistir diferença entre o filho natural e o adotivo, o fato é que a licença-maternidade no caso de adoção não está regulamentada. (RR 577.215/99, Rel. Juíza Convocada Maria Berenice, publicado no DJ de 02.02.2001)

“MÃE ADOTANTE - LICENÇA MATERNIDADE .

A licença maternidade é direito previsto no art. 7º, XVIII, da Constituição Federal, que confere ‘licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com duração de cento e vinte dias’. Como se verifica, o legislador constituinte utilizou-se da expressão ‘licença à gestante’, restringindo sua aplicação à mãe biológica. Embora não haja dúvidas quanto ao importante papel social desempenhado pela mãe adotante, bem como ser incontestável o fato de que a criança adotada em seus primeiros meses de vida necessita dos mesmos cuidados especiais necessários a qualquer recém-nascido, não há como estender à adotante benefício não previsto pela legislação pátria, sob pena de afrontar o art. 5º, II, da Constituição Federal, ao impor ao empregador ônus não previsto em lei.” (RR 398.142/97, Rel. Min. Rider Nogueira de Brito, publicado no DJ 27.04.2001). 23

(v) Estabilidade provisória da gestante;

A Constituição de 1998 garante, no Ato das Disposições Constitucionais

Transitórias, a estabilidade provisória da gestante, desde a confirmação da gravidez até cinco

meses após o parto, conforme a redação:

Art. 10. Até que seja promulgada a lei complementar a que se refere o art. 7º, I, da

Constituição:

II - fica vedada a dispensa arbitrária ou sem justa causa:

b) da empregada gestante, desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o

parto.

Dentre as 25 decisões analisadas sobre o tema, a maioria dos questionamentos

levantados envolvia o momento em que a empregada gestante comunicou a empresa sobre a

gravidez. Sobre esta questão cabe destacar os seguintes precedentes jurisprudenciais,

utilizados na maioria dos acórdãos.

Precedente Jurisprudencial nº 88 da SBDI do TST, que dispõe:

"Gestante. Estabilidade provisória. O desconhecimento do estado gravídico pelo empregador, salvo previsão contrária em norma coletiva, não afasta o direito ao pagamento da indenização decorrente da estabilidade (art. 10, II, "b", do ADCT)".

23AC. 1ª. Turma: PROC. Nº TST-RR-232/2000-007-15-00.9.

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Súmula nº 244, de seguinte teor: “GESTANTE. ESTABILIDADE PROVISÓRIA. (incorporadas as Orientações Jurisprudenciais nºs 88 e 196 da SDI-1) - Res. 129/2005 - DJ 20.04.05 I - O desconhecimento do estado gravídico pelo empregador não afasta o direito ao pagamento da indenização decorrente da estabilidade. (art. 10, II, "b" do ADCT). (ex-OJ nº 88 - DJ 16.04.2004) II - A garantia de emprego à gestante só autoriza a reintegração se esta se der durante o período de estabilidade. Do contrário, a garantia restringe-se aos salários e demais direitos correspondentes ao período de estabilidade. (ex-Súmula nº 244 - Res. 121/2003, DJ 21.11.2003) III - Não há direito da empregada gestante à estabilidade provisória na hipótese de admissão mediante contrato de experiência, visto que a extinção da relação de emprego, em face do término do prazo, não constitui dispensa arbitrária ou sem justa causa. (ex-OJ nº 196 - Inserida em 08.11.2000).”

A maioria das decisões reformadas negava a indenização pelo descumprimento do

prazo para notificação da empresa. O argumento utilizado para negar a indenização é que a

empresa, por desconhecimento do estado de gravidez da empregada, não poderia ter agido

com dolo ou má-fé ao demitir a empregada. Assim, diante da inércia das trabalhadoras para

buscarem perante o Juízo o pagamento de salários sem qualquer contraprestação laboral,

restava configurada renúncia do direito à estabilidade e, portanto, não cabia a indenização.

Entretanto, o TST editou uma Súmula, a 244, I, afirmando que a vedação

constitucional decorre do fato objetivo da confirmação da gravidez ocorrida na vigência do

contrato de trabalho, caso em que o direito da obreira à estabilidade provisória prescinde do

conhecimento prévio do seu estado gestacional pelo empregador ou pela empregada no

momento da rescisão contratual. Notemos que a aplicação da súmula não é obrigatória.

Assim, 15 decisões foram reformadas no sentido de conceder a indenização e em 3 decisões

esse entendimento foi apenas reafirmado.

Segundo a posição majoritária, o art. 10, II, “b”, do ADCT deve ser interpretado no

sentido de conferir a estabilidade a partir da concepção e não do momento em que foi atestada

por médico ou exame clínico. Assim, mesmo que o exame de gravidez fosse realizado meses

após a dispensa, caberia o direito à indenização, uma vez que o escopo da norma é garantir a

sobrevivência da mulher e do bebê. Destaca-se que o direito da empregada à estabilidade

decorre unicamente da concepção.

O Tribunal reconhece que o escopo da garantia constitucional é, não só a proteção

da gestante contra a dispensa arbitrária ou discriminatória, por estar grávida, mas

principalmente a tutela da mãe e do nascituro. O acórdão TST-ED-RR-363.032/97.2

menciona expressamente a interpretação no sentido de que a finalidade da estabilidade à

gestante é assegurar sua sobrevivência, já que nessa condição será difícil conseguir novo

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 50

emprego.

Interessante notar que esta mesma decisão não tratava da ocorrência ou não de

aviso, mas envolvia demissão por extinção da empresa e não por arbitrariedade ou

discriminação. Também nesse caso, o TST confirmou seu entendimento de que se trata de

responsabilidade objetiva e que a tutela da gestante e do nascituro deve ser garantida pela

empresa.

Entretanto, o período cabível para pleitear o direito à estabilidade é controverso.

Em duas decisões, o fato de a ação ter sido ajuizada após o decurso do período estabilitário

não constituiu obstáculo ao deferimento da indenização decorrente da estabilidade, desde que

obedecido o prazo de dois anos para prescrição de direito trabalhista. Em outras, destaca-se o

período compreendido desde a confirmação de sua gravidez até cinco meses após o parto para

que a gestante possa pleitear a indenização.

Assim, o reconhecimento de que a empregada gestante é detentora de estabilidade

provisória assegura-lhe o direito à reintegração no emprego, apenas se esta se der dentro do

período de estabilidade, ou aos salários correspondentes ao período estabilitário, desde a data

da dispensa até o final do período da estabilidade.

Desta forma, ao demitir a empregada, a empresa deveria diligenciar no sentido de

certificar-se sobre a possibilidade da mesma estar sob o amparo da estabilidade provisória.

Não o fazendo, assumiu o risco de responder pelas conseqüências daí decorrentes. A natureza

objetiva do benefício impede a configuração de renúncia, pelo que sempre será devida à

gestante a indenização por todo o período de estabilidade. Não havendo a reintegração

durante o período de estabilidade, resta o direito ao pagamento de salários e demais direitos

como FGTS, férias com o terço contratual e 13º salário, correspondentes ao período de

estabilidade.

Neste sentido, cabe observar a argumentação sobre a responsabilidade objetiva do

empregador e a relevância social da gestação:

Na verdade a gravidez está confirmada no momento mesmo da concepção. Por isso, quando o empregador despede a empregada gestante sem justa causa, ainda que disso não saiba, assume o risco dos ônus respectivos. É, pois, uma questão de responsabilidade objetiva. Nesse sentido, basta a ocorrência do estado gravídico para nascer o direito ora discutido, pois se o legislador constituinte não exigiu a ciência prévia do empregador como requisito para garantia provisória do emprego, restringindo, assim, a aquisição do direito, não pode o intérprete restringir, negando à empregada a garantia que o legislador concedeu, mais precisamente, à gestação como fato social relevante e suas conseqüências. A interpretação teleológica da norma pertinente leva, inequivocamente, à conclusão de que se quer proteger a mulher grávida e o nascituro pela importância social que possui tal fato.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 51

No mesmo sentido a decisão recorrida citada no acórdão TST-RR-1241/2005-007-04-00.1:

No entender da Juíza-Relatora, o preceito constitucional que garante a estabilidade a gestante (art. 10, II, "b", do ADCT) se funda na proteção à maternidade e não na culpa do patrão. Assim, é irrelevante o conhecimento ou não da gravidez da empregada por parte do empregador. A hipótese de incidência da norma é o estado gravídico e não a ciência da empresa. É a chamada teoria da responsabilidade objetiva, segundo a qual, a garantia de emprego decorre da confirmação da gravidez (confirmação de sua existência) e não da comprovação da mesma para o empregador. Ao demitir a empregada, a demandada deveria diligenciar no sentido de certificar-se sobre a possibilidade da mesma estar sob o amparo da estabilidade provisória. Não o fazendo, assumiu o risco de responder pelas conseqüências daí decorrentes.

Neste caso, a decisão recorrida não foi mantida, pois apesar do entendimento

transcrito acima, entendeu-se que dois e únicos são os pressupostos para que a empregada

tenha assegurado seu direito ao emprego ou o direito à reparação pecuniária: que esteja a

mulher grávida e que sua dispensa não seja motivada por prática de falta funcional prevista no

artigo 482 da CLT. Assim, a exigência de aferição do elemento subjetivo do empregador, para

imputar seu ato de ilícito, se dá pelo conhecimento a gravidez, portanto é lícito o ato

demissional, uma vez que a empresa desconhecia o estado gravídico da empregada à época da

dispensa. A sentença foi reformada reafirmando-se que, uma vez que era incontroverso o fato

de que a empregada já se encontrava grávida quando de sua dispensa pela empregadora,

independentemente do fato de que a própria mulher não tinha conhecimento do fato, cabe a

indenização por estabilidade.

A decisão TST-RR-142/2003-007-07-40.9, ao discutir se o desconhecimento da

gravidez pelo empregador constitui obstáculo à indenização decorrente da estabilidade

gestante, destaca que o Tribunal adotou a teoria da responsabilidade objetiva, considerando

que a garantia constitucional tem como escopo a proteção da maternidade e do nascituro,

independentemente da comprovação da gravidez perante o empregador. Para tanto, transcreve

o entendimento adotado pela SDI in E-RR 207.124/95, Rel. Min. Vantuil Abdala:

(...) a exigência, como pressuposto para a estabilidade provisória, da ciência prévia do empregador do estado de gravidez inexiste na lei. A atual Constituição não exige tal comunicação ao empregador para que a gestante esteja protegida da despedida arbitrária, assegurando-lhe tal proteção desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto, protegendo objetivamente a gestante. Até porque a própria gestante pode ainda não ter como saber de seu estado quando despedida, e essa impossibilidade não poderia lhe acarretar a perda desse direito que visa a tutela principalmente do nascituro. 'A confirmação da gravidez' não se dá através do exame médico, pois este, na realidade, apenas atesta a gravidez. Na verdade a gravidez está confirmada no momento mesmo da concepção. Por isso, quando o empregador despede a empregada gestante sem justa causa, ainda que disso não saiba, assume o risco dos ônus respectivos. É, pois, uma questão de responsabilidade

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 52

objetiva. Nesse sentido, basta a ocorrência do estado gravídico para nascer o direito ora discutido, pois se o legislador constituinte não exigiu a ciência prévia do empregador como requisito para garantia provisória do emprego, restringindo, assim, a aquisição do direito, não pode o intérprete restringir, negando à empregada a garantia que o legislador concedeu, mais precisamente, à gestação como fato social relevante e suas conseqüências. A interpretação teleológica da norma pertinente leva, inequivocamente, à conclusão de que se quer proteger a mulher grávida e o nascituro pela importância social que possui tal fato.

A decisão recorrida do acórdão TST-RR-753.061/2001.7 também destaca:

Ocorrendo a gravidez na vigência do contrato de trabalho, assume o empregador a responsabilidade objetiva consubstanciada no dever legal de abster-se de despedir a empregada e pagar-lhe os salários até cinco meses após o parto. Trata-se de responsabilidade objetiva do empregador, decorrente de um só fato: comprovação da gravidez na vigência do contrato de trabalho. E comprovação não se confunde com informação, comunicação.

Essa decisão é mantida, para o que o Magistrado recorre à citação de doutrina sobre

o princípio da proteção:

Vale a pena citar os ensinamentos de AMÉRICO PLÁ RODRIGUEZ (Princípios de Direito do Trabalho), quando se refere ao princípio da proteção. Preleciona que, enquanto no direito comum, uma constante preocupação parece assegurar a igualdade jurídica entre contratantes, no direito do trabalho, a preocupação central parece ser a de proteger uma das partes com o objetivo de, mediante essa proteção, alcançar uma igualdade substancial e verdadeira entre as partes. Sustenta que não constitui a proteção método especial de interpretação, mas um princípio geral que inspira todas as normas de direito do trabalho e que deve ser levada em conta na sua aplicação, tendo sua razão de ser no desnível econômico que se manifesta no contrato de maneira substancial. Desse contexto, verifica-se que a razão de ser do artigo 10, II, "b", do ADCT foi a de proteger a empregada-gestante contra a resilição unilateral do contrato de trabalho, objetivando impedir que o estado fisiológico da mulher no processo de gestação se constitua um fator de discriminação.

Interessante notar que a mesma citação de doutrina será novamente utilizada pelo

Ministro Rider de Brito em argumentação no sentido contrário, mais detalhada nos itens que

se seguem. No mesmo sentido:

Com a promulgação da Constituição Cidadã, foram reforçados e ampliados os direitos individuais, com repúdio a todas as formas de discriminação social. Dentro desse novo contexto, a garantia provisória no emprego da gestante não se resolve apenas pelo poder econômico do empregador, em indenizar o período de estabilidade, como se vê em atuais posicionamentos do Colendo Tribunal Superior do Trabalho, mas tem como fim quebrar as barreiras do preconceito, resguardando à obreira a manutenção do posto de trabalho, com vistas à proteção da criança.

Da mesma forma, as decisões recorridas citadas nos acórdãos TST-RR-

14.215/2004-015-09-00.0, TST-RR-2054/2003-060-02-00.3, TST-RR-520/2002-044-02-85.9,

TST-RR-734952/2001.7, TST-ED-AIRR-672.698/2000.1, TST–RR–737.257/2001.6, TST-

RR-202/2007-060-03-00.3 e a decisão TST-RR-660295/2000.9 também fazem referencia à

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responsabilidade objetiva ao discutir a matéria.

Não obstante o predomínio da jurisprudência favorável à indenização por

estabilidade com base no elemento objetivo da gravidez, encontramos algumas decisões que a

indeferiram, sob duas constelações de argumentos, quais sejam o descumprimento do prazo

para notificação da empresa, a falência ou extinção da empresa, a obtenção de novo emprego,

a gestante empregada como doméstica, a gestante que engravida no lapso de tempo do

período indenizado:

Duas decisões indicam a contramão do entendimento majoritário destacado no item

2.

Nestas, a indenização foi negada, pois se entendeu que se a empregada não pleiteia

a reintegração imediatamente à confirmação do seu estado gravídico, não tem interesse no

retorno ao emprego que lhe é garantido no período gestacional, o que resulta em renúncia à

estabilidade, perdendo assim os direitos pecuniários. Por não informar ao empregador seu

estado gravídico, não há como se entender que possa haver direito subjetivo violado, já que a

presunção é de que o empregador esteja atuando de boa-fé.

Entretanto, a decisão considera que essa hipótese não aplica-se ao caso em questão,

uma vez que a empregada deixou transcorrer um ano e nove meses após a dispensa para

pleitear os seus direitos, de forma que sua inércia foi considerada como uma demonstração de

que não tinha intenção de retornar ao emprego, pois se fosse, teria ajuizado a ação trabalhista

anteriormente e não permanecido inerte postulando tais direitos somente após o término do

período de estabilidade albergado pela Constituição. Neste sentido, o Magistrado cita o

seguinte precedente:

Nesse mesmo sentido já decidiu a DI.2, ROAR 270.661/96, Min. Carlos Alberto Reis de Paula, DJ em 25/09/98, verbis: 'AÇÃO RESCISÓRIA - ESTABILIDADE PROVISÓRIA - GESTANTE. O AJUIZAMENTO DA RECLAMATÓRIA TRABALHISTA APÓS TERMINADO PERÍODO DA GARANTIA INSCULPIDA NO ARTIGO DECIMO, INCISO DOIS, ALÍNEA "B" DO ADCT. O FATO DE TER A EMPREGADA DEIXADO PARA POSTULAR O DIREITO A QUE FAZIA JUS APENAS DEPOIS DE FINDO O PERÍODO ESTABILITÁRIO , ESVAZIOU O OBJETIVO SOCIAL DE NORMA CONSTITUCIONAL QUE É O DE GARANTIR À GESTANTE DE DISPENSA DO EMPREGO, ASSIM COMO O EXERCÍCIO DAS PRERROGATIVAS INERENTES À MATERNIDADE. SE A EMPREGADA REALMENTE PRETENDESSE RETORNAR AO EMPREGO E NECESSITASSE PARA SUA MANTENÇA E DE SEU FILHO, NÃO PRORROGARIA O EXERCÍCIO DE SEU DIREITO QUANDO ESTE NÃO MAIS SE JUSTIFICAVA. ULTRAPASSADO O PERÍODO DE ESTABILIDADE PROVISÓRIA, O PEDIDO NÃO PODE SER REINTEGRATÓRIO, E PORTANTO, A RESOLUÇÃO DA OBRIGAÇÃO EM PERDAS E DANOS, TAMBÉM, NÃO PROCEDE DIANTE DA INÉRCIA DA DETENTORA DO DIREITO, QUE NA VERDADE, DEMONSTROU A INTENÇÃO DE BENEFICIAR-SE DE SALÁRIO

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POR PERÍODO NÃO TRABALHADO. RECURSO ORDINÁRIO NÃO PROVIDO. ' Cito, entre outros, os seguintes precedentes que perfilham o mesmo entendimento: RR 379.961/1997, 5ª Turma, julgado em 16/05/20001, de minha lavra; RR 394.614/97, 5ª Turma, dj. 01/12/2000, Juiz convocado Guedes de Amorim; RR 347.831/98, 5ª Turma, dj. 30/10/1998, Min. Nelson Antônio Daiha. Verifica-se, portanto, que o pedido formulado no Recurso de conversão da reintegração em indenização encontra-se sem objeto, na medida em que o retorno da Reclamante ao emprego ocorreu um ano e nove meses depois de sua demissão, tendo, inclusive, expirado o período estabilitário. Assim, não havendo mais garantia no emprego, o pedido da empregada perdeu seu objeto.

Assim, entendeu-se que a empregada pretendeu obter apenas as vantagens

pecuniárias advindas da estabilidade provisória e que tal comportamento implica exercício

abusivo do direito de ação porque desviado de sua finalidade. Da mesma forma,

a decisão TST-RR-650.688/2000.0:

(...) deve a empregada, em caso de dispensa no período estabilitário, postular a reintegração ao emprego, sendo que o pedido de indenização decorre notadamente da eventual recusa da empregadora em reintegrá-la, a fim de evitar o ônus do pagamento da indenização.

Nesse diapasão, se a empregada não pleiteia a reintegração imediatamente à confirmação do seu estado gravídico, não tem interesse no retorno ao emprego que lhe é garantido no período gestacional, resultando em verdadeira renúncia à estabilidade, perdendo, destarte os direitos pecuniários.

Eis a hipótese vertente, principalmente, porque a reclamante limita-se a postular apenas a indenização pelo período de estabilidade provisória.

Neste sentido, não se pode exigir da reclamada, ab initio, a indenização do período de garantia no emprego, posto que a legislação visa prioritariamente à manutenção deste.

Neste sentido, cabe ainda destacar o trecho da decisão recorrida no acórdão TST-

RR-2054/2003-060-02-00.3:

Não tendo a reclamante comunicado sua gravidez e, desta forma, tendo obstado ao empregador a possibilidade de reconsiderar sua decisão de despedi-la, não há como se entender que tenha a reclamante o direito que pretende. Aplicar a tal situação a teoria do risco, ou responsabilidade objetiva é mal comparar a mulher a uma locomotiva ou aeronave, estabelecendo mesmo uma discriminação ao contrário. A proteção legal deve ser suficiente a que se torne efetiva e coíba procedimentos discriminatórios. Mas não pode ser utilizada para gerar iniqüidades, nem para gerar abuso de direito, a partir da posição cômoda de nada informar, para depois reclamar.

Entretanto, neste caso a decisão não foi mantida, por entender-se que quanto à

necessidade de comunicação ao empregador do estado gravídico adota-se a teoria da

responsabilidade objetiva, considerando que a garantia constitucional tem como escopo a

proteção da maternidade e do nascituro, independentemente da comprovação da gravidez

perante o empregador no momento da dispensa.

Seguindo a linha majoritária de que a indenização decorre objetivamente do estado

gravídico, como medida de proteção à subsistência da mãe e da criança, na decisão TST-ED-

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RR-363.032/97.2 entendeu-se que o fechamento da empresa, por qualquer que tenha sido o

motivo, não altera a obrigação do empregador de garantir a subsistência da trabalhadora

detentora da estabilidade, pois o direito é dirigido especialmente ao nascituro, que não se

modifica em face da cessação das atividades empresariais. Nesta decisão entende-se que a

finalidade da estabilidade da gestante é assegurar a sobrevivência da mulher e de seu filho,

uma vez que na condição de gestante será mais difícil conseguir um novo emprego, de forma

cabe a indenização mesmo que a dispensa não tenha sido arbitrária ou por motivo de

discriminação.

Em sentido contrário, no caso TST-RR-1.093/2004-096-15-00.3 em que a demissão

decorreu da falência da empresa e no caso TST-RR-1.651/1999-001-15-00.5 em que a

demissão decorreu do fechamento da empresa, entendeu-se que extinto o estabelecimento

onde a gestante trabalhava pressupõe-se que a demissão não ocorreu por arbitrariedade ou

discriminação por parte do empregador. Tais acórdãos entenderam que são as circunstâncias

ligadas à discriminação e arbitrariedade que ensejaram o julgamento favorável nestes casos

A decisão TST-ED-AIRR-672.698/2000.1 foi julgada no seguinte sentido: ainda

que fosse cumprido o prazo fixado pela norma para notificar a empresa sobre a gestação, no

caso em que a mulher já havia obtido novo emprego, a indenização não foi concedida.

Destacou-se que a finalidade da norma é a garantia de emprego à gestante e não o pagamento

da indenização, de forma que se a mulher já obteve um novo emprego, considera-se

inaplicável o pagamento. Mesmo que demitida sem justa causa, comprovada a gravidez e

cumprido o prazo para notificação da empresa, o pedido de indenização da mulher que já

havia obtido um novo emprego foi negado.

A decisão TST-RR-202/2007-060-03-00.3 destacou que a jurisprudência

predominante no TST encontra-se cristalizada no sentido de que não cabe indenização por

estabilidade à gestante que fica grávida durante o período de tempo do aviso prévio

devidamente indenizado.

As decisões TST-RR-545/2001-001-15-00.0 e TST-RR-460.223/1998.0

consignaram que não é passível à empregada doméstica pleitear a estabilidade provisória

concedida à mulher gestante. Isso porque a Constituição Federal de 1988 não equiparou o

empregado doméstico ao trabalhador comum no que diz respeito aos direitos previdenciários

e trabalhistas e, portanto, estes não gozam da proteção prevista no art. 10, II, b, do ADCT.

Debatendo o prazo para notificação da empregadora sobre a gestação, a da decisão

recorrida citada pelo acórdão TST-RR-706/2004-043-02-00.0 aponta que os livros científicos

registram ocorrências de gravidez assintomáticas, qual seja, a mulher, mesmo grávida, durante

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certo período não sofre os sintomas comuns da gestação (tonturas, náuseas, incômodos, etc.),

o que até certo momento impediria a gestante de suspeitar a ocorrência da gravidez.

Entretanto, a decisão recorrida não foi confirmada, por entende-se que:

O fato de a empregada realizar o exame de gravidez meses após sua despedida não constitui obstáculo, por si só, nem impedimento para recebimento da indenização decorrente da estabilidade.

(…) (Oferecendo a restituição do emprego) a empresa reconheceu a gestação da reclamante, dentro do período de estabilidade. Assim não se pode cogitar de desconhecimento, pela empresa, do estado gravídico da reclamante.

Interessante notar a designação da maternidade como função fisiológica e bem

jurídico socialmente relevante, como por exemplo nos trechos:

O que se pretendeu com esse dispositivo foi garantir o emprego e não as verbas ressarcitórias. O objetivo da Carta Magna é proteger o emprego contra a resilição unilateral do contrato de trabalho pelo empregador, impedindo que a função fisiológica da mulher no processo de reprodução constitua causa de discriminação, com embaraços ao exercício de seu direito ao trabalho. O Direito do Trabalho, que sempre exige proximidade com a realidade da vida, também preocupado com a grandeza biológica e social da reprodução humana, tutela a concepção em si e no seu aspecto. Portanto, havendo a concepção, aliada à ausência de justa causa para a rescisão do contrato de trabalho, o direito, quer à estabilidade provisória, quer à indenização substitutiva, se adere irrefutavelmente ao patrimônio da gestante.

(vi) Discriminação da gestante

Um acórdão da primeira turma do TST (RR-36614/2002-900-12-00.8) trata

da discriminação de uma empregada gestante que teria sido destituída da função de caixa de

banco, melhor remunerada do que as outras, em razão de sua gravidez. A defesa alegou que

havia um rodízio para ocupar a função com o objetivo de proporcionar a todos os empregados

a oportunidade de receber um salário melhor. A destituição da função teria sido devido às

regras criadas pelo sistema de rodízio. O TST reconheceu a ocorrência de discriminação,

mantendo a sentença de primeiro grau, pois o empregador não comprovou a existência do

alegado rodízio.

(vii) Assédio sexual;

Um acórdão da 6ª Turma do TST (RR-75/2005-531-04-00.0) discute um caso de

assédio sexual sem, no entanto, entrar no mérito do problema decidido pela primeira

instância. O TST considerou que não é sua competência reexaminar os fatos relacionados com

a demanda, pois sua função é apenas lidar com matéria de direito, nos termos da Súmula 126:

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"Incabível o recurso de revista ou de embargos (CLT, artigos 896 e 894, b) para reexame de

fatos e provas. O julgado confirmou a existência do assédio, corroborando a colheita de

provas realizada pela primeira instância.

(viii) Auxílio-creche;

O acórdão da 4ª. Turma do TST no Recurso de Revista 52/2003-003-22-00.6 discutiu a

possibilidade de conceder o auxílio-creche previsto em um Acordo Coletivo de Trabalho a

homens solteiros.

O ACT de 2002/2003 previu o direito à percepção do auxílio-creche somente às mães,

aos viúvos e aos pais solteiros ou separados que tenham a guarda dos filhos. O autor da ação,

homem solteiro, alegou que estaria sendo discriminado em razão do sexo diante da norma

citada. O TST decidiu que não há discriminação, pois a diferenciação tem como objetivo

amenizar o desgaste da empregada mãe, sujeita a uma dupla jornada de trabalho. Veja-se

abaixo a argumentação:

Com efeito, o ACT de 2002/2003, ao fixar critérios para a concessão do auxílio-creche, visou a amenizar o desgaste da empregada mãe e, por equiparação, o empregado viúvo e o solteiro ou separado que detém a guarda de filho com idade para freqüentar creche, pela labuta doméstica a que os empregados nessas condições estão sujeitos.

Ora, as mulheres que trabalham fora estão sujeitas à dupla jornada de trabalho, pois ainda realizam as atividades domésticas quando retornam à casa. Nessas mesmas circunstâncias encontra-se o homem que cria seus filhos sozinho, sem a ajuda da esposa.

Sendo assim, descabe invocar o princípio da isonomia (CF, art. 5o, caput) para igualar homens e mulheres indiscriminadamente, na medida em que esse postulado admite exceções, sendo certo que a própria Constituição da República estabelece algumas diferenças entre os sexos, a exemplo da aposentadoria para as mulheres, com menos idade e tempo de contribuição previdenciária (CF, art. 201, § 7º, I e II).

Essa diferenciação em matéria previdenciária apenas se justifica diante da realidade do desgaste maior da mulher trabalhadora, quando se tem em conta a necessidade a que está sujeita, de compatibilização dos deveres domésticos com o trabalho profissional.

A argumentação justifica a diferenciação citando a filósofa Edith Stein:

Para EDITH STEIN (1891-1942), destaque feminino no campo filosófico (fenomenologista), três características se destacam na relação homem-mulher: igual dignidade, complementariedade e diferenciação (não só biológica, mas também anímica). Cada um dos sexos teria sua vocação primária e secundária, em que, nesta segunda, seria colaborador do outro: a vocação primária do homem seria o domínio sobre a terra e a da mulher a geração e educação dos filhos (“A primeira vocação profissional da mulher é a construção da família”). Por isso, a mulher deve encontrar, na sociedade, a profissão adequada que não a impeça de cumprir a sua vocação primária, de ser “o coração da família e a alma da casa”. O papel da mulher é próprio e insubstituível, não podendo limitar-se à imitação do modo de ser

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masculino (cfr. Elisabeth Kawa, “Edith Stein”, Quadrante – 1999 – São Paulo, pgs. 58-63).

Esta referência, que já apareceu em outro julgado citado acima, escrito pelo mesmo

relator, o Exmo. Juiz do TST Ives Gandra Martins Filho, aponta para uma interpretação

essencializante do papel da mulher - a julgar pelos julgados analisados, minoritária no TST -,

vista como diferente biológica e animicamente em relação ao homem, daí justificar-se a

discriminação perante a Constituição Federal também em outras hipóteses.

Nesse diapasão, levando-se em consideração a máxima albergada pelo princípio da

isonomia, de tratar desigualmente os desiguais na medida das suas desigualdades,

ao ônus da dupla missão, familiar e profissional, que desempenha a mulher trabalhadora,

corresponde o bônus da jubilação antecipada e da concessão de vantagens específicas, em

função de suas circunstâncias próprias, como é o caso do auxílio-creche.

3.1.3 Algumas considerações sobre os dados encontrados

Os casos analisados chamam a atenção do intérprete por referirem-se a questões

relacionadas às conseqüências patrimoniais do descumprimento dos direitos e não uma

discussão sobre os direitos da mulher em si. As ações, em sua ampla maioria, foram propostas

quando a violação aos direitos das mulheres já havia ocorrido e a autora da ação buscava uma

indenização ou compensação pelos danos sofridos. Discute-se, portanto, uma violação que já

ocorreu e não a possibilidade de evitá-la ou revertê-la em tempo hábil para evitar que seus

efeitos indesejados ocorram.

O padrão na Justiça do Trabalho, que se reproduz aqui na maior parte dos casos (exceto

no caso de licença-gestante em que há casos de reintegração ao emprego), é que o empregado

processa o empregador ao final de seu contrato de trabalho, ou seja, no momento em que a

violação já ocorreu. Esta forma de tutela acaba por tematizar a discriminação apenas como

fato gerador do direito à indenização ou compensação, instrumentalizando-a em função de um

determinado valor pecuniário. Chamaremos este fenômeno de tutela indireta da

discriminação à mulher para constrastá-lo com a tutela direta da discriminação, que

implicaria na discussão da violação do direito propriamente dito e não apenas de suas

conseqüências.

Deixemos este ponto mais claro. A todo direito a não discriminação corresponde ao

dever de não discriminar, um dever de abster-se da prática de uma conduta discriminatória.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 59

Coisa diversa são as conseqüências jurídicas que emanam de um ato discriminatório,

conseqüências que podem ser, basicamente, civis (pagamento de indenização ou

compensação) e penais (imposição de uma pena se a conduta puder ser classificada como

crime). Quando o Poder Judiciário discute a imposição de uma pena ou o pagamento de um

valor em conseqüência de um ato, normalmente isso significa que o ato ilícito já foi praticado

e resta apenas compensar os prejuízos do atingido e/ou punir o agente em nome do interesse

social de afirmar publicamente o descumprimento da norma.

Ora, é possível pensar em mecanismos de tutela que se dirijam ao dever de abstenção

propriamente dito para evitar que ele ocorra ou para interromper seu descumprimento

enquanto ele ainda está ocorrendo e, portanto, não foram desencadeados todos os seus efeitos

lesivos. Para que isto seja possível, é preciso pensar em mecanismos de tutela diretos que

façam valer o direito à abstenção contra o ato lesivo e mecanismos que facilitem aos lesados

comunicar a violação de seus direitos sem que possam ser objeto de represálias.

Um exame superficial de nosso ordenamento jurídico permite visualizar as medidas

cautelares inominadas24 e a tutela inibitória como instrumento de tutela nestes casos. Seria

possível propor uma cautelar diante da discriminação para solicitar a reversão do ato até

decisão final pelo Poder Judiciário ou uma medida tutelar inibitória25 para que cesse um ato.

Claro, estas soluções encontram entraves na própria tendência de os empregados processarem

seus empregadores apenas após o término dos contratos de trabalho para evitar retaliações,

fenômeno perceptível na análise dos julgados: como já dito, poucos se referem a processos

iniciados durante o curso do contrato.

Seja-nos permitida uma digressão sobre este ponto, muito importante para pensar o

problema mencionado. Parece razoável afirmar que a tendência de os empregados brasileiros

processarem seus empregadores apenas ao final do contrato esteja ligada à possibilidade que a

lei faculta ao empregador de demitir os empregados sem declarar os motivos que o levaram a

24As cautelares inominadas estão previstas no art. 798 do Código de Processo Civil. Quando houver fundado receio que, antes do julgamento da lide, uma parte cause à outra lesão grave e de difícil reparação, pode-se pedir ao juiz que adote medidas para evitar a lesão. Além do elenco de medidas previstas no CPC, o juiz pode adotar quaisquer outras, utilizando-se do poder geral de cautela que a lei lhe confere. A cautelar tem como objetivo principal “assegurar a permanência ou conservação do estado das pessoas, coisas e provas, enquanto não atingido o estágio último da prestação jurisdicional” para que esta não se torne uma providência inócua. V. THEODORO JÚNIOR, H., Processo Cautelar, São Paulo: LEUD, 1998, p. 43; 100-111. 25A tutela inibitória “tem por fim impedir a prática, a continuação ou repetição do ilícito e não uma tutela dirigida à reparação do dano”. É um tipo de tutela que se preocupa com “a prevenção da prática, da continuação ou da repetição do ilícito”. V. MARINONI, L. G., Tutela Inibitória (individual e coletiva), São Paulo: RT, 2000, p. 26. Há previsão explícita da adoção de medidas inibitórias no art. 461 do CPC, que trata da tutela das obrigações de fazer ou não fazer.

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fazê-lo. No direito brasileiro, apenas em caso de demissão por justa causa o empregado tem o

dever de declarar o motivo da dispensa. A dispensa sem justa causa o escusa deste dever em

troca do pagamento de uma indenização correspondente a 40% do valor depositado durante

todo o contrato a título de FGTS.26

Esta possibilidade, a despeito de estar ligada à mencionada indenização, aumenta o

poder do empregador perante o empregado. Ela priva o último, numa eventual ação judicial,

de questionar os motivos declarados de sua demissão. A obrigatoriedade em declarar tais

motivos delimitaria um campo de discussão bastante preciso. Caso o empregado desejasse

questionar sua demissão, ele poderia tentar provar que o motivo declarado era falso e bastaria

isso para que a demissão fosse considerada ilícita. Ficaria, assim, afastada a possibilidade de

demissões por mero capricho que, mesmo com o pagamento da indenização, são indesejadas.

Hoje, uma demissão por mero capricho, desde que seja paga a indenização, é perfeitamente

lícita.

Perceba-se que esta possibilidade de demissão por mero capricho é uma brecha para a

prática de atos discriminatórios. A previsão de uma indenização supostamente compensaria o

empregado desta situação de maior insegurança diante do empregador, além de, teoricamente,

desestimular o empregador a demitir sem justa causa. No entanto, para os fins de proteção

contra a discriminação, parece mais adequado obrigar o empregador a declarar, em qualquer

hipótese, o motivo da demissão. Este dever imposto ao empregador em nome do interesse

público de evitar as relações de trabalho, de natureza alimentar, ou seja, das quais o

empregado depende para sobreviver, fiquem sujeitas ao mero capricho de uma das partes,

fortaleceria a tutela anti-discriminação.

Retomando o fio da meada, a tematização do dever de abstenção em relação a uma

conduta discriminatória pode ser favorecida, eventualmente, pela criação de uma cautelar

nominada anti-discriminação com procedimento sumário e de justiça gratuita. Por hipótese,

uma ação com estas características poderia facilitar a proposição de ações ainda no curso do

contrato de trabalho.

Outra possibilidade, que não exclui a aventada acima, seria a criação obrigatória de

comissões anti-discriminação nas empresas (ou de comitês sindicais que exercessem tal

função), com poderes-deveres investigatórios (como a Comissão Interna de Prevenção de

Acidentes - CIPA) e, eventualmente, a possibilidade de iniciar ações ex officio (pois se trata

26Ver Constituição Federal art. 7º, I e art. 10 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias; Consolidação das Leis do Trabalho, artigo 487.

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de interesse público e não privado). Essas comissões poderiam também examinar casos de

supostas demissões discriminatórias, discriminações salariais e diversos outros atos

discriminatórios não apenas contra as mulheres.

Tais comissões poderiam atuar em casos de suspeita de discriminação contra afro-

descendentes, homossexuais, índios etc. Um órgão como esse, é de ressaltar, poderia

ganharia força se combinado com a representação sindical no local de trabalho. Mecanismos

desta natureza podem ajudar na vigilância e na tematização da discriminação no local de

trabalho, facilitando a identificação de atos desta natureza e sua comunicação às autoridades.

Trata-se de discutir, neste caso, a possibilidade de responsabilizar as empresas pelos

atos de seus funcionários como forma de tutelar o direito a não discriminação27. Como

dissemos acima, é possível obrigar que as empresas adotem determinadas práticas e

constituam determinados mecanismos destinados a combater a discriminação e, na falta deles,

impor-lhes multas administrativas e, eventualmente, co-responsabilizar as mesmas pelas

conseqüências patrimoniais de ilícitos desta natureza. Neste caso, a responsabilização

decorreria da negligência da empresa em cumprir deveres previstos em lei.

Outro ponto importante a se discutir a partir dos casos analisados é o que chamaremos

de processo de desnaturalização da categoria mulher que está em curso nos tribunais. Pode-

se ver claramente o processo de adequação da legislação infraconstitucional, especialmente a

CLT, com a Constituição de 1988.

Tradicionalmente, o espírito da CLT e da legislação sobre o trabalho da mulher é

proteger a mulher no que diz respeito a) a duração da jornada de trabalho; b) trabalho noturno;

c) trabalhos perigosos e insalubres; d) repouso semana; e) gravidez; maternidade; g)

moralidade.28

Os principais fundamentos com base nos quais se procurou justificar o sistema em causa foram os seguintes: a) a vocação da mulher para os serviços domésticos e a conseqüente necessidade de ser protegida, no interesse do marido e da família, contra a exploração abusiva dos empregadores; b) a debilidade da mulher que a

27A despeito de referentes ao tema da responsabilização criminal das pessoas jurídicas, as reflexões de Fisse & Braithwaite são úteis nesse ponto. Criticando a busca de responsabilização individual neste caso, eles mostram que um caminho mais promissor neste caso seria “estruturar os mecanismos de efetivação da lei para ativar e monitorar mecanismos de justiça privada das corporações” que “catalisam a disciplina interna, especialmente onde o segredo, o número de suspeitos e considerações deste tipo dificultem ou impossibilitem a responsabilização penal individual”. V. FISSE, Brent; BRAITHWAITE, John, The Allocation of Responsibility for Corporate Crime: Individualism, Collectivism and Accountability, Sydney Law Review, v. 11, 1986-1988, p. 510. 28MAGANO, Octávio Bueno. Manual de Direito do Trabalho, Volume IV: Direito Tutelar do Trabalho. São Paulo, LTr, 1992, p. 100-101.

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incapacita para trabalhos longos e penosos; c) o interesse social na preservação da saúde da mulher, dada a sua condição de produtora de seres humanos. 29

Já o espírito constituinte, nascido num momento em que todas estas justificativas se

encontram sob escrutínio público, reflete uma visão bastante diferente. Ao invés de proteção,

trata-se de proibir a discriminação da mulher, ou seja, seu tratamento diferenciado, exceto em

casos em que ela se justifique. Os motivos para justificação de uma discriminação lícita

podem variar, mas este modelo de tutela que permite a diferenciação apenas por exceção.

Esta mudança de racionalidade não implica em que os dois diplomas sejam

incompatíveis em todos os pontos, mas tem exigido como é visível nos casos estudados, que

as diferenciações presentes na CLT sejam examinadas segundo esta lógica: se forem

consideradas licitas perante a Constituição, podem prevalecer; do contrário, são julgadas

inconstitucionais. Este resultado deixa claro que, qualquer diferenciação que venha a ser

criada em favor da mulher em legislação infraconstitucional deve ser muito bem justificada

para não ser julgada inconstitucional pelo TST.

Esta discussão aparece nos acórdãos sobre a ampliação ou redução do período para

refeição e repouso concedido à empregada, durante a jornada de trabalho; o descanso de 15

minutos no mínimo, a que tem direito a mulher, em caso de prorrogação do horário normal de

trabalho; licença maternidade destinada à mãe adotante e auxílio-creche. Todos eles retratam

a recepção da Constituição pelo direito brasileiro, com a devida adequação da legislação de

nível inferior à lógica constitucional.

Além disso, esta mesma discussão se reflete nos julgados que relativizam

caracterizações biologizantes e naturalizadoras da mulher em face da nova Constituição. Isso

fica claro em todos os julgados sobre os temas que citamos acima. Com algumas exceções

(dois acórdãos escritos pelo relator 4ª Turma do TST, Ives Gandra Martins Filho, citados no

corpo da análise), eles tendem a afastar direitos que diferenciam a mulher em razão de

características que lhes seriam essenciais. Claro, porque a justiça do trabalho não tem se

manifestado diretamente sobre atos discriminatórios, salvo casos excepcionais, este ativismo

na interpretação das leis ainda é muito discreto e não atingiu o potencial que poderia ter em

termos de fazer avançar a igualdade entre homens e mulheres e sancionar a discriminação.

Os acórdãos citados também chamam a atenção pela ausência de tematização de uma

série de problemas sabidamente graves para a implementação da igualdade entre homens e

mulheres. Pode-se citar, por exemplo, a discriminação salarial e a discriminação das

29Idem, ibidem, p. 101.

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mulheres em cargos de chefia, temas tradicionais da luta feminista no campo das relações de

trabalho. Com a exceção do acórdão que tratou da discriminação da gestante em um cargo de

confiança, o problema sequer apareceu.

Vale para este tema o raciocínio que fizemos acima: é importante pensar mecanismos

que facilitem a descoberta, a investigação e a tematização de atos desta natureza perante as

autoridades. A lógica da regulação, neste caso, poderia ser a criação do dever do empregador,

em caso de ação judicial, de informar os salários pagos a todos os empregados e seus

respectivos cargos e tarefas (hoje o autor da ação tem que provar a existência da discrepância,

o que torna a prova muito difícil diante do sigilo), a produção de relatórios periódicos sobre o

percentual de mulheres e homens em cargos de chefia e outras medidas, como a criação de

comissões anti-discriminação (com reuniões periódicas e estabilidade para seus integrantes)

capazes de dar forma a demandas que permanecem não formuladas e ter acesso a dados para

fins investigatórios.

Outro ponto importante a se ressaltar são algumas características da argumentação

utilizada nos acórdãos analisados. O primeiro ponto relevante é a falta de um uso sistemático

da jurisprudência. As decisões analisadas não trazem referências sobre casos paradigmáticos e

parecem citá-los apenas para corroborar a posição adotada na decisão.

No que se refere a outros materiais jurídicos, como a legislação, há maior coerência e

clareza nas argumentações. É sempre possível identificar o material sobre o qual as decisões

divergem e mapear as diversas posições existentes sobre a aplicação das normas. Outra

característica interessante nos casos analisados, aspecto que é um desdobramento da discussão

acima sobre o processo de desnaturalização da categoria mulher pela jurisprudência, é a

importância das normas constitucionais para a argumentação dos casos analisados,

especialmente aqueles que discutem a pertinência das diferenciações entre homens e

mulheres. A CF é o material jurídico mais importante para o debate dogmático neste campo

do direito, aparecendo como argumento crucial nas posições jurisprudenciais predominantes e

mesmo nas posições vencidas.

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3.2. Jurisprudência sobre Cotas Eleitorais

3.2.1 Histórico da regulamentação das cotas eleitorais

a. As cotas políticas no direito brasileiro: legislação vigente e passada

A reserva de cotas para candidatas do sexo feminino em partidos políticos ou coligações

foi introduzida no ordenamento jurídico brasileiro por meio da Lei n.º 9.100 de 1995, que

estabeleceu normas para a realização das eleições municipais de três de outubro de 1996. O

artigo 10 desta lei determinava que cada partido ou coligação poderia registrar um número de

candidatos para a Câmara Municipal equivalente a, no máximo cento e vinte por cento da

quantidade de lugares a preencher, sendo que vinte por cento, no mínimo, das vagas de cada

partido ou coligação deveriam ser preenchidas por candidaturas de mulheres (art. 10, § 3º).

No mesmo artigo, adotou-se uma regra para a determinação do número de vagas reservadas

para as mulheres nos casos onde o cálculo previsto no § 3º resultasse em um número

fracionado: a fração deverá sempre ser desprezada se inferior a meio, e igualada a um, se

igual ou superior.

Em 1997, sobreveio a Lei n. º 9.504, que estabeleceu normas para eleições em geral,

abrangendo as esferas dos Municípios, dos Estados e da União. Esta lei introduziu uma série

de mudanças que impactaram direta e indiretamente a política de reserva de cotas de

candidatura nos partidos políticos ou coligações30. Em primeiro lugar, cada partido político

passa a ter a possibilidade de registrar candidatos para a Câmara dos Deputados, Câmara

Legislativa, Assembléias Legislativas e Câmaras Municipais, até cento e cinqüenta por cento

do número de lugares a preencher. No caso das coligações, poderão ser registrados até o

30O dispositivo da Lei 9.504/97 que se refere às cotas eleitorais tem a seguinte redação: Art. 10. Cada partido poderá registrar candidatos para a Câmara dos Deputados, Câmara Legislativa, Assembléias Legislativas e Câmaras Municipais, até cento e cinqüenta por cento do número de lugares a preencher. § lº No caso de coligação para as eleições proporcionais, independentemente do número de partidos que a integrem, poderão ser registrados candidatos até o dobro do número de lugares a preencher. § 2º Nas unidades da Federação em que o número de lugares a preencher para a Câmara dos Deputados não exceder de vinte, cada partido poderá registrar candidatos a Deputado Federal e a Deputado Estadual ou Distrital até o dobro das respectivas vagas; havendo coligação, estes números poderão ser acrescidos de até mais cinqüenta por cento. § 3º Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação deverá reservar o mínimo de trinta por cento e o máximo de setenta por cento para candidaturas de cada sexo. § 4º Em todos os cálculos, será sempre desprezada a fração, se inferior a meio, e igualada a um, se igual ou superior. § 5º No caso de as convenções para a escolha de candidatos não indicarem o número máximo de candidatos previsto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo, os órgãos de direção dos partidos respectivos poderão preencher as vagas remanescentes até sessenta dias antes do pleito.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 65

dobro do número de lugares a preencher. De acordo com a legislação anterior à edição da Lei

9.504/97, os limites para o registro de candidatura em eleições submetidas ao sistema

proporcional eram os seguintes: para a Câmara dos Deputados e as Assembléias Legislativas,

cada partido poderia registrar o número de lugares a preencher mais a metade; para as

Câmaras dos vereadores, o limite de candidaturas era equivalente ao triplo de lugares a

preencher; e, finalmente, tratando-se das Câmaras Municipais, cada Partido podia registrar

número de candidatos igual ao triplo do número de cadeiras efetivas da respectiva Câmara

(Lei n.º 4.737/65 – Código Eleitoral -, redação dada pela Lei n. 7.454/85).

Em segundo lugar, a Lei n.º 9.504/97 aumentou a reserva de cotas políticas,

determinando que cada partido ou coligação deverá reservar o mínimo de trinta por cento e o

máximo de setenta por cento para candidaturas de cada sexo (art. 10, § 3º). Para dirimir as

dúvidas resultantes do cálculo em concreto da reserva, manteve-se a regra da legislação

anterior, afirmando-se que a fração deverá ser desprezada se menor que meio e igualada a um

se igual ou maior (art.10, § 4º).

Finalmente, a legislação atual não faz menção explícita à reserva de cotas para

mulheres, deixando de lado o tom assistencialista que poderia ser desprendido da legislação

anterior. Enquanto a Lei n.º 9.100/95 falava especificamente num mínimo de vagas que

deveriam ser preenchidas por mulheres, a lei vigente enfatiza o objetivo de se obter uma

proporcionalidade entre candidatos de ambos os sexos. A política de cotas deixa, assim, de ser

concebida como um privilégio para as mulheres e passa a ser um instrumento em prol da

igualdade, que pode ser evocado em benefício de ambos os sexos.

Cabe ressaltar, no entanto, que enquanto a Lei 9.100/95 obrigava os partidos e

coligações políticas a efetivamente preencher 20% de suas vagas de candidaturas com

candidatas do sexo feminino, garantindo assim a presença das mulheres nas eleições, a Lei

9.504/03 deixa de prever o efetivo preenchimento das vagas, passando a falar apenas em

reserva de vagas. Assim, cabe ao partido ou coligação reservar no mínimo 30% das vagas

para candidatos de cada sexo, pouco importando se essas vagas serão efetivamente

preenchidas ou não. Não existe uma obrigação de registrar candidatos de ambos os sexos, mas

apenas o dever de guardar 30% das vagas para homens e mulheres.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 66

b. Regulamentações do Tribunal Superior Eleitoral (TSE)

A Lei 4.737 de 1965 - o Código Eleitoral - atribui ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE)

a competência privativa para expedir as instruções que julgar convenientes para a execução

das normas contidas no Código Eleitoral (art. 23, inc. IX). Ao mesmo tempo, a Lei 9.504/97

confere ao TSE a mesma competência em relação às normas por ela definidas. No que toca às

cotas eleitorais, o TSE tem exercido a sua competência regulamentar apenas para suprir

eventuais contradições entre os parágrafos 3º e 4º do art. 10 da Lei 9.504/97, que dispõem,

respectivamente, sobre o percentual de vagas que devem ser reservadas segundo o critério de

sexo, e sobre o arredondamento das frações decorrentes da aplicação das cotas.

O conflito entre estas normas se configura quando, aplicada a regra do §4º, a

porcentagem mínima de vagas reservadas com base no gênero do candidato não é respeitada.

Isso ocorrerá, por exemplo, no caso onde existam 14 vagas na Assembléia Legislativa e

determinado partido político queira registrar o número máximo de candidatos permitidos, ou

seja, 21. Aplicando literalmente a regra de arredondamento da Lei 9.504/97, o partido poderia

registrar até 15 candidatos de um sexo e somente 6 do outro, visto que 30% de 21 é 6,3 e, de

acordo com o art. 10, §4º da Lei 9.504/97, as frações inferiores a 5 devem ser desprezadas. No

entanto, 6 candidatos sobre um total de 21 candidaturas equivaleria a 28,5% das vagas, ou

seja, um percentual inferior àquele garantido pelo §3º da Lei 9.504/97.

Tendo em vista esta antinomia normativa, o TSE, valendo-se de seu poder

regulamentar, disciplinou o critério de cálculo com o intuito de suprir as possíveis

contradições entre os parágrafos do art. 10º. De acordo com o art. 21 da Resolução 21.608/04

do TSE, tem-se que, na reserva de vagas, qualquer fração resultante será igualada a um no

cálculo do percentual mínimo estabelecido para cada um dos sexos e desprezada no cálculo

das vagas restantes para o outro sexo (art. 21, § 4º). Ademais, a Resolução dispõe que o

preenchimento das vagas remanescentes e a substituição de candidatos devem respeitar os

percentuais estabelecidos para cada sexo (art. 21, §7º)31. Ou seja, candidatos de um sexo não

poderão ocupar vagas reservadas para o outro sexo, nem quando houver vagas não

preenchidas.

Com base nesta norma, um conflito entre os parágrafos do art. 10 da Lei 9.504 será

resolvido sempre em benefício da reserva do percentual mínimo para ambos os sexos. No

31Ambos estes problemas haviam sido amplamente debatidos pela jurisprudência do TSE. Ver as seguintes decisões:

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exemplo exposto acima, a quantidade de candidatos de cada sexo teria que ser, no mínimo,

sete, respeitando o mínimo de 30% da reserva de vagas.

O art. 22 da Resolução TSE n.º 22.717/08 reitera os dispositivos da resolução anterior.

3.2.2 Tematização da reserva de candidaturas para mulheres no âmbito do Poder

Judiciário

3.1.1.1 Metodologia de análise

(i) Tabelamento dos acórdãos: objetivos

O tabelamento dos acórdãos sobre a reserva de cotas eleitorais não teve como objetivo a

realização de uma análise quantitativa das informações coletadas, uma vez que o tamanho

reduzido do universo de decisões encontradas não permitia tal estudo. Portanto, a tabela foi

usada como um instrumento de sistematização das decisões encontradas e organização dos

dados. Por meio do tabelamento, é possível avaliar de forma sistemática como as cotas

eleitorais vêm sendo tematizadas no âmbito do Poder Judiciário, analisando quais são os

problemas ou obstáculos encontrados nos Tribunais para a implementação da reserva de

vagas, quem está entrando no judiciário para reivindicar a interpretação da lei de cotas, como

ela vem sendo aplicada, etc.

A tabela apresenta, em suas colunas, as categorias de análise por meio das quais as

informações sobre cada acórdão devem ser objetivamente extraídas. No total, foram

elaboradas 38 categorias para tabelamento das decisões, sendo que estas categorias estavam

divididas em três grandes grupos. No primeiro grupo, foram inseridas categorias referentes

aos dados sobre o processo; no segundo estão as categorias sobre os diferentes temas ou

problemas abordados em cada acórdão; finalmente, o último grupo contém categorias

atinentes à argumentação jurídica desenvolvida nas decisões. Estes três grupos - processo,

tematização e argumentação - compõem os critérios básicos de sistematização das decisões

analisadas, sendo compostos da seguinte forma:

(i) Elementos processuais – contém informações sobre o tribunal de origem, data de

julgamento, recorrente, tipo de recurso, número do processo, número do acórdão, relator, sexo

do relator, se a decisão foi unânime e de quem foi o voto dissidente, recorrente, qualificação

do recorrente, recorrido, descrição do caso, decisão e descrição da decisão;

(ii) Temas abordados - trata dos tópicos discutidos nos acórdãos, a saber, se a

discussão central era sobre cotas, e se os seguintes temas foram abordados:arredondamento da

fração resultante do cálculo da reserva legal; possibilidade de homens ocuparem vagas

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 68

reservadas para mulheres caso estas se encontrassem disponíveis; base de cálculo para a

reserva de cotas; constitucionalidade das vagas; e possibilidade de candidato nato ocupar vaga

reservada pelas cotas.

(iii) Argumentação - contém critérios de investigação de argumentos presentes nas

decisões. As quinze colunas subseqüentes informam qual a principal abordagem da decisão,

dispositivos legais citados, citação de princípios, a seguir, da doutrina e suas obras, e citação

de casos. Para os critérios doutrina e casos, há um item que visa explicitar se a citação é ou

não usada como argumento de autoridade. Ao final, os últimos dois critérios, se a decisão faz

referência a argumentos externos ao direito e quais seriam.

1. Caracterização do universo de análise

a. Critérios de busca;

Para consolidar o universo de acórdãos tabelados na pesquisa, foi utilizado o sistema de

busca integrada disponível no site do Tribunal Superior de Justiça (TSE)32. Este sistema

realiza a busca nos bancos de dados do TSE e dos Tribunais Regionais Eleitorais de todos os

Estados. O termo-chave utilizado na busca boleana para acessar os acórdãos foi “Lei 9504/97

e art. 10,§3º”.

Inserindo este termo no sistema, foi encontrado um total de 22 acórdãos em seis

Tribunais, distribuídos da seguinte maneira:

i. TSE: seis decisões

ii. TRE da Bahia: quatro decisões;

iii. TRE de Minas Gerais: três decisões;

iv. TRE da Paraíba: uma decisão;

v. TRE de Santa Catarina: duas decisões;

vi. TRE de São Paulo: seis decisões;

As decisões encontradas pelo sistema de busca se concentravam entre os anos de 2000 e

2008.

b. Dados processuais

Dos 22 acórdãos encontrados nos seis Tribunais Eleitorais, apenas 13 discutiam tópicos

relacionados à reserva de cotas políticas. As demais decisões referiam-se a outros artigos da

Lei 9.504/97, ou tratavam de respostas dadas pelos Tribunais a consultas pleiteadas por

32Endereço do site: http://www.tse.gov.br/internet/jurisprudencia/index.htm , a busca foi realizada no dia 04 de outubro de 2008.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 69

coligações que nada tinham a ver com a reserva vagas de candidatura. Estas decisões foram

tabeladas, mas não foram incluídas no grupo de acórdãos abordados na presente análise.

Portanto, importa ressaltar que o número total de acórdãos referentes à reserva de vagas

prevista na lei 9.405/97 efetivamente encontrado e analisado é 14, e são destas decisões que o

presente relatório tratará.

As decisões referentes a cotas políticas datam de 2000 a 2008, sendo que elas estão

distribuídas nesta faixa cronológica da seguinte maneira: cinco decisões foram proferidas em

2000; uma em 2001; três em 2004 e quatro em 2008. Quanto ao tribunal de origem, as

decisões analisadas têm a seguinte procedência:

� TSE: três decisões;

� TRESP: quatro decisões;

� TRESC: duas decisões;

� TREMG: duas decisões;

� TREBA: três decisões

A grande parte dos recursos analisados eram recursos eleitorais (foi encontrado apenas

um recurso cível) e não houve nenhum caso em que a recorrente fosse uma mulher. Em seis

recursos, o pólo ativo contava com a presença de um interessado do sexo masculino, que, via

de regra, buscava garantir no Poder Judiciário o seu alegado direito de se registrar nas vagas

originalmente reservadas para mulheres, mas não preenchidas ou que buscava uma

interpretação da Lei 9.504/97 que fosse benéfica para os homens. 33 Houve também processos

nos quais coligações ou partidos eram recorrentes e um caso no qual o Ministério Público

Estadual de Santa Catarina entrou com um recurso pleiteando uma interpretação da Lei n.º

9.504/97 que seria mais benéfica para as mulheres34. Portanto, percebe-se que o Judiciário não

tem sido um espaço de tematização de direitos eleitorais por parte das mulheres. Pelo

contrário, trata-se de um foro mais explorado pelos políticos do sexo masculino que buscam

minimizar as restrições a seus direitos causadas pela implementação de cotas eleitorais.

Em relação aos dados processuais, cabe também ressaltar que em 13 decisões analisadas

o juiz relator era um homem, significando que houve apenas um caso julgado por uma

mulher.

33Ver as seguintes decisões: TSE, Resp. n.º 16.632, Relator Costa Porto, julgado em 9/5/2000; TREMG, Recurso n.° 2282, Relator Welington Militão, julgado em 23/08/2004; TREMG, Recurso n.º 1.808, Relator Oscar Dias Corrêa Júnior, julgado em 26/08/2004; TRESP, Recurso Cível n.º 20.822, Relatora Suzana Camargo, julgado em 20/08/2004; TRESP, Recurso n.º 161.381, Relator Nuevo Campos, julgado em 8/7/2008; TREBA, Recurso n.º 1.411, Relator Orlando Isaac Kalil Filho, julgado em 10/09/2000. 34TRESC, Rec. 16.368/00, Relator Ricardo Teixeira do Valle Pereira.

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c. Caracterização dos pedidos

A maior parte dos recursos analisados foi proposta contra decisão judicial que havia

indeferido o registro de candidato do sexo masculino em decorrência da violação do art. 10,

§3º da Lei 9.504/97 (9 casos sobre 14). 35 Nestes casos, as coligações, partidos e candidatos

excluídos da lista de candidatura argumentavam que as vagas não preenchidas por mulheres

poderiam ser ocupadas por homens ou que a proporção mínima de 30%/70% poderia ser

desrespeitada em caso de fracionamento da quantidade permitida de candidaturas. O pedido,

portanto, era pelo deferimento de candidaturas masculinas em quantidade maior do que o

limite legal permitido.

Foram encontrados três recursos que buscavam excluir da lista dos partidos candidatos

do sexo masculino registrados em vagas que deveriam ser reservadas para mulheres.36 São

casos nos quais o partido não preencheu 30% das vagas com candidatas do sexo feminino, e

usou estes lugares para candidatos homens. Dois destes recursos foram indeferidos com base

nos seguintes argumentos:

A douta sentença não merece reparos. Os impugnantes não indicaram nenhum fato que pudesse revelar posição discriminatória da Coligação recorrida. Ao contrário, o fato de não haver preenchido a totalidade das vagas, a que tinha direito, já revela a sua carência de quadros. Ademais, ainda que procedentes fossem as razões dos impugnantes, a determinação judicial haveria de ser para excluir um candidato do sexo masculino e não para indeferir o registro de todos, como requerido. (...) Não havendo qualquer ato da coligação recorrida revelador de discriminação, inexiste ofensa ao quanto estatuído no art. 10°, § 3°, da Lei n° 9504/97, principalmente quando se percebe que, pela carência de quadros, os partidos coligados não lograram preencher todas as vagas a que fariam jus. 37

Portanto, o tribunal decidiu nestes casos que seria necessário provar a existência de

discriminação para que a reserva de vagas vinculasse o partido.

35Ver as seguintes decisões: TSE, Resp. n.º 16.632, Relator Costa Porto, julgado em 9/5/2000; TREMG, Recurso n.° 2282, Relator Welington Militão, julgado em 23/08/2004; TREMG, Recurso n.º 1808, Relator Oscar Dias Corrêa Júnior, julgado em 26/08/2004; TRESP, Recurso Cível n.º 20.822, Relatora Suzana Camargo, julgado em 20/08/2004; TRESC, Recurso n.º 19.222, Relator Oswaldo José Pereira Horn, julgado em 31/08/2004; TSE, Resp. n.º 29.190, Relator Arnaldo Versiani, julgado em 9/4/2008; TRESP, Recurso n.º 161.381, Relator Nuevo Campos, julgado em 8/7/2008; Relator Orlando Isaac Kalil Filho, julgado em 10/09/2000; TRESP, Recurso 161.539, Relator Flávio Yarshell, julgado em 8/12/2008; TRESP, Recurso nº 161.539, Relator Nuevo Campos, julgado em 8/12/2008. 36TRESC, Recurso n.º 16.368, Relator Ricardo Teixeira do Valle Pereira, julgado em 22/08/00; TREBA, Recurso Eleitoral n.º1411, julgado em 10/09/2000, Relator Orlando Isaac Kalil Filho; e TREBA, Recurso Eleitoral n.º 1470, julgado em 11/09/2000, Relator Orlando Isaac Kalil Filho. 37 TREBA, Recurso Eleitoral n.º1411, julgado em 10/09/2000, Relator Orlando Isaac Kalil Filho e TREBA, Recurso Eleitoral n.º 1470, julgado em 11/09/2000, Relator Orlando Isaac Kalil Filho.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 71

Houve ainda um pedido do Ministério Público do Estado de Santa Catariana no qual se

reivindica uma interpretação da Lei 9.504/97 que pode ter conseqüências importantes para

políticas eleitorais de igualdade de gênero. Defende-se que a reserva legal de 30% das vagas

de candidatura deve ser feita sobre o total de candidatos efetivamente registrados, e não sobre

o total de candidatos possíveis. Esta interpretação poderia fazer com que os partidos fossem

incentivados a buscar candidatas do sexo feminino, sob risco de perder muitas vagas nas

eleições. Embora o pedido tenha sido negado, houve uma decisão proferida pelo TRESP em

que a tese sustentada pelo Ministério Público de Santa Catarina é acolhida pelo Poder

Judiciário (TRESP, Recurso Eleitoral n.º 161.495, julgado em 8/12/2008; Relator Flávio

Yarshell).

d. Principais temas abordados nos acórdãos

Os assuntos abordados nas decisões foram divididos em quatro categorias, referentes

aos seguintes temas discutidos nos acórdãos: (a) O arredondamento da fração da reserva legal;

(b) A possibilidade de homens ocuparem as vagas reservadas para as mulheres ou vice-versa;

(c) A base de cálculo que deve ser utilizada para determinar a quantidade de cotas reservadas;

(d) Constitucionalidade da reserva de cotas políticas.

d.1. Arredondamento da fração da reserva legal

Muitos dos recursos analisados foram interpostos com base no art. 10, § 3º e 4º da Lei

9.504/97, redigidos da seguinte forma:

Art. 10. Cada partido poderá registrar candidatos para a Câmara dos Deputados, Câmara Legislativa, Assembléias Legislativas e Câmaras Municipais, até cento e cinqüenta por cento do número de lugares a preencher.

§ 3º Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação deverá reservar o mínimo de trinta por cento e o máximo de setenta por cento para candidaturas de cada sexo.

§ 4º Em todos os cálculos, será sempre desprezada a fração, se inferior a meio, e igualada a um, se igual ou superior.

O conflito ocorre no momento de decidir qual norma deve prevalecer no caso

de conflito entre o §3º e o §4º. Conforme apontado acima, o TSE pacificou seu

entendimento sobre o assunto por meio das Resoluções n.º 21.608/04 e 22.717/08, nas

quais se dispôs que na reserva de vagas, qualquer fração resultante será igualada a um no

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cálculo do percentual mínimo estabelecido para cada um dos sexos e desprezada no

cálculo das vagas restantes para o outro sexo. O entendimento de todos os tribunais vai

neste mesmo sentido.

d.2 Possibilidade de homens ocuparem vagas remanescentes reservadas para mulheres

Este foi o conflito mais recorrente nas decisões, presente em 10 dos 14 acórdãos

analisados. Trata-se de discussão sobre a possibilidade legal de candidatos de um sexo

ocuparem vagas reservadas para o outro sexo no caso em que estas vagas não venham a

ser preenchidas.

Nestas hipóteses, o TSE de São Paulo decidiu reiteradas vezes que os homens não

podem ocupar mais que 70% das candidaturas, nem que as vagas estejam disponíveis,

uma vez que isso atentaria contra o princípio da proporcionalidade, objetivado pela Lei

9.504/97 e pelas regulamentações do TSE (TSESP, Recurso Cível n.º 149420, julgado em

30/08/04, Relatora Suzana Camargo).

Já o TRE da Bahia decidiu que as vagas não ocupadas poderão ser preenchidas por

candidatos do sexo oposto, mesmo que isto fira a reserva de vagas de candidatura. O

Tribunal afirmou que o preenchimento de vagas reservadas para mulheres por homens não

fere a legislação uma vez que a falta de mulheres candidatas é decorrente da ausência de

interesse por parte destas, e não da discriminação.

(a) Base de cálculo que deve ser utilizada para determinar a quantidade de cotas

reservadas para cada sexo

Dois acórdãos analisados trouxeram uma disputa sobre a interpretação da Lei 9.504/97

referente a qual número deve ser tomado como base para o cálculo das cotas políticas. De um

lado, é possível afirmar que se deve tomar como base o total de candidaturas permitidas em

tese, ou seja, posto que existem 10 vagas disponíveis um determinada casa legislativa, o

partido tem direito a registrar um total de 15 candidatos, e é com base neste número que se

deve calcular a reserva de 30% das candidaturas para ambos os sexos. Este foi o entendimento

que o TER de Santa Catariana adotou no julgamento do Recurso n.º 16.368 de 2000. De

acordo com a sentença:

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Se a lei quisesse a representação mínima de cada sexo fosse calculada sobre o número de candidatos indicado, tenho que teria redação diferente, isto é, não remeteria a proporção, como o fez claramente, ao número de vagas obtidas através das regras do artigo 10 do cânon já citado” […] “A vontade do legislador não é essa e está bem demonstrada, repiso, quando ele usa a locução verbal “deverá reservar”. Se a lei diz que o partido ou coligação deverá reservar parcela do total de vagas, ela quer dizer que está garantido um número mínimo de vagas para cada sexo. Não quer dizer que, obrigatoriamente, deverão 30% de candidatos de um dos sexos, seja do total de vagas ou do número de candidatos indicados na convenção. Se, por exemplo, na convenção existirem seis mulheres que pretendem ser candidatas e, no entanto, essa convenção indicar apenas quatro delas e dezesseis homens, as duas que foram preteridas terão o direito de registrar a sua candidatura ante a reserva legal obrigatória, podendo postular esse direito diretamente ao Poder Judiciário. Dois dos homens terão que ser excluídos, obrigatoriamente, ainda que de ofício, para que se garanta a possibilidade de preenchimento das vagas destinadas ao sexo minoritário. 38

A questão foi resolvida de forma distinta pelo Juiz Flávio Yarshell do TRE de São

Paulo, em decisão que enfatizou ser “com base no número de candidatos efetivamente

lançados pela coligação que deve ser feito o cálculo da reserva legal, prevista no par. 3º do

art. 10º da Lei 9.504 e da Resolução TSE 22.717. Trata-se de uma interpretação inovadora da

lei, uma vez que ela restringe a quantidade de candidatos que podem ser lançados por partido

político ou coligação nos casos em que a cota mínima reservada para cada gênero não for

preenchida.

Assim, por exemplo, se houver 10 vagas a serem preenchidas em uma Assembléia

Legislativa, um partido poderia registrar, no máximo, 15 candidatos, sendo que 5 teriam que

ser mulheres (30% de 15 é 14,5). Se o partido decidir registrar apenas candidatos homens, ele

estará registrando apenas 10 candidatos, fato que, de acordo com a interpretação do Juiz

Flávio Yarshell, deve levar a um novo cálculo de reserva de cotas. Tal reserva deverá ser feita

com base no número de candidatos efetivamente lançados, levando a uma nova limitação da

quantidade de candidatos do sexo masculino que poderão ser registrados, que passa a ser 7,

contra 3 candidaturas femininas, no mínimo. Esta interpretação pode ser um incentivo para

que os partidos se tornem proativos na busca de candidatas do sexo feminino, sob pena de

perder suas vagas de candidatura.

38 TRESC Recurso n.º 16.368, julgado em 22/08/2000, Relator Ricardo Teixeira do Valle Pereira.

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(b) Constitucionalidade da reserva de cotas políticas

A constitucionalidade da reserva de vagas em partidos políticos foi tematizada duas

decisões analisadas: o Recurso Especial Eleitoral n.º 16.632, julgado pelo TSE em 09/05/00 e

o Recurso n.º 19.222, julgado pelo TRESC em 31/03/2004. No primeiro acórdão, reitera-se a

posição adotada pelo TSE em julgamentos anteriores, segundo a qual a reserva de percentuais

para candidaturas não é incompatível com o art. 5º da CF39. De acordo com a decisão, o

princípio da igualdade (art. 5º, CF) comporta a possibilidade de se reservar cotas em partidos

políticos para candidatas do sexo feminino. Portanto, as cotas eleitorais não são

constitucionais.

A segunda decisão, proferida pelo TRESC, discute um incidente de

inconstitucionalidade suscitado pelo juiz de 1ª instância, o que entendeu que a reserva de

vagas para mulheres do art. 10, Lei 9.504/97 violaria o princípio da igualdade. A

inconstitucionalidade da norma foi afastada pela decisão do Tribunal sob a argumentação de

que o princípio da igualdade consiste em conferir igual tratamento aos iguais, e desigual

tratamento aos desiguais.

Neste sentido, uma lei poderia estabelecer critérios de diferenciação entre grupos de

pessoas, deste que tais critérios fossem justificados ou justificáveis de forma a preencher os

requisitos da razoabilidade, da racionalidade e da proporcionalidade. Desta forma, a

justificação do estabelecimento da diferença seria uma condição sine qua non para a

constitucionalidade da diferenciação, a fim de evitar a arbitrariedade. De acordo com a

decisão, apoiada sobre argumentação desenvolvida pelo Ministro Joaquim Barbosa em seu

livro intitulado O Debate Constitucional sobre as Ações Afirmativas:

Esta justificação deve ter um conteúdo, baseado na razoabilidade, ou seja, num fundamento razoável para a diferenciação; na racionalidade, no sentido de que a motivação deve ser objetiva, racional e suficiente; e na proporcionalidade, isto é, que a diferenciação seja um reajuste de situações desiguais. Aliado a isto, a legislação infraconstitucional deve respeitar três critérios concomitantes para que atenda ao princípio da igualdade material: a diferenciação deve (a) decorrer de um comando-dever constitucional, no sentido de que deve obediência a ma norma pragmática que determina a redução das desigualdades sociais; (b) ser específica, estabelecendo exatamente aquelas situações ou indivíduos que serão "beneficiados" com a diferenciação; e (c) ser eficiente, ou seja, é necessária a existência de um nexo causal entre a prioridade legal concedida e a igualdade socioeconômica pretendida (...).

39Neste sentido, ver o acórdão nº 13.759C, de relatoria do Min. Nilson Naves.

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E o voto segue citando o livro do Min. Joaquim Barbosa:

A Constituição de 1988 (art. 5º, I) não apenas aboliu essa discriminação chancelada pelas leis, mas também, através dos diversos dispositivos antidiscriminatórios já mencionados, permitiu que se buscasse mecanismos aptos a promover a igualdade entre homens e mulheres. Assim, com vistas a minimizar essa flagrante desigualdade existente em detrimento das mulheres, nasceu, entre nós, a modalidade de ação afirmativa hoje corporificada nas Leis 9.100/95 e 9.504/97, que estabelecem cotas mínimas para as eleições.

As mencionadas leis representam, e primeiro lugar, o reconhecimento pelo Estado de um fato inegável: a existência de discriminação contra as brasileiras, cujo resultado mais visível é a exasperante sub-representação feminina em um dos setores-chave da vida nacional - o processo político. Com efeito, o legislador ordinário, consciente de que em toda a história política do país foi sempre desprezível a participação feminina, resolveu remediar a situação através de um corretivo que nada mais é do que uma das muitas técnicas através das quais, em direito comparado, são concebidas e implementadas as ações afirmativas: o mecanismo das cotas.

Neste sentido, o voto do juiz relator define os dispositivos da lei 9.504/97 que

consagram a reserva de cotas como mecanismos de superação da discriminação, concorrendo,

portanto, para uma realização maior do princípio constitucional da igualdade. Declara-se,

desta forma, sua constitucionalidade.

e. Argumentação

Na parte da tabela relativa à argumentação, buscou-se analisar de que forma o Poder

Judiciário fundamenta suas decisões acerca das cotas em partidos políticos, ou seja, quais são

os argumentos utilizados para justificar a decisão em cada caso. Na tabela, foram

consideradas as justificativas feitas com base em (a) legislação; (b) jurisprudência; (c)

princípios; (d) doutrina e (e) argumentos externos ao direito.

Para cada acórdão tabelado, foram analisadas não apenas estas categorias de

argumentação, mas também o modo pelo qual elas eram utilizadas, ou seja, se a

jurisprudência e doutrina eram meramente citadas como argumentos de autoridade ou se elas

eram efetivamente costuradas dentro das decisões de forma a fazer parte de uma

argumentação mais ampla.

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e.1 Legislação

A legislação citada nos acórdãos analisados se resume à Lei n.º 9.504/97 - a lei que

instituiu as cotas políticas - e as Resoluções TSE nº 21.608/95 e 22.717/2008. A

regulamentação do TSE é utilizada, sobretudo, nos casos onde há discussão acerca do

arredondamento das frações da reserva legal, uma vez que ela dispõe sobre uma forma de

arredondamento distinta daquela prevista na Lei 9.504/97.

Ademais, o art. 5º da Constituição Federal foi citado nos casos em que estava em debate

a constitucionalidade das cotas políticas. Em ambas estas decisões, citadas na seção anterior, a

reserva de vagas foi declarada constitucional pelo Tribunal.

e.2 Princípios

Três dos acórdãos analisados fizeram uso de princípios ao longo da argumentação

desenvolvida.40 Nestas três decisões, o princípio da igualdade foi utilizado como fundamento

para a constitucionalidade da lei de cotas, uma vez que esta foi interpretada como um

mecanismo de superação de comportamentos discriminatórios. Trata-se, dessa forma, de

“tratar desigualmente os desiguais”, de forma a promover uma vida política mais igualitária,

estimulando e facilitando a entrada das mulheres nos partidos políticos e tirando obstáculos à

realização do princípio constitucional da igualdade.

Foram utilizados ainda como instrumentos de interpretação da Lei n.º 9.504/97 os

princípios da proporcionalidade, razoabilidade e racionalidade.41 Na decisão proferida pelo

TRESC, afirmou-se que estes três princípios devem fundamentar toda e qualquer

diferenciação entre cidadãos feita por lei, com o intuito de impedir a arbitrariedade do

legislador.

e.3 Uso de jurisprudência

As decisões anteriores citadas nos acórdãos relativos à aplicação da Lei 9.504/97 dizem

respeito, sobretudo, à Lei 9.100/95, uma vez que foi ela que instaurou o sistema de cotas

políticas no Brasil. Em todos os casos analisados, os precedentes eram utilizados como

40TSE, Resp. nº 16.632, Relator Costa Porto, julgado em 9/5/2000; TRESP, Recurso Cível n.º 20.822, Relatora Suzana Camargo, julgado em 20/08/2004; TRESC, Recurso n.º 19.222, Relator Oswaldo José Pereira Horn, julgado em 31/08/2004. 41TRESP, Recurso Cível n.º 20.822, Relatora Suzana Camargo, julgado em 20/08/2004; TRESC, Recurso n.º 19.222, Relator Oswaldo José Pereira Horn, julgado em 31/08/2004.

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argumentos de autoridade, ou seja, eles eram meramente citados como exemplos de decisões

anteriores no mesmo sentido do voto proferido. Em nenhum caso os números dos acórdãos e

as ementas citadas foram integradas à argumentação do voto, de forma a participar do

encadeamento da decisão de forma articulada e integrada. O que se percebe, portanto, é que a

jurisprudência dos tribunais é largamente utilizada como fundamento da decisão (em 8 dos

casos analisados os precedentes eram citados na argumentação), mas tal jurisprudência é

utilizada como meros exemplos ou argumentos de autoridade à favor da opinião do relator.

Os casos citados nas decisões podem ser encontrados na coluna “Complemento 2” da

tabela, logo após a coluna “jurisprudência citada”.

e.4 Uso de doutrina

Apenas em duas decisões utilizaram literatura jurídica na argumentação desenvolvida42.

Na decisão do TRE-BA, A doutrina é citada no relatório, fazendo-se referência à sentença.

Cita-se:

A sentença recorrida, julgando improcedente a impugnação, louvando-se em posição doutrinária de João Cândido, entendeu que o dispositivo estabelece uma reserva e que, não observada esta proporcionalidade por ausência de candidatos de um sexo, nada impede que a convenção preencha as vagas com candidatos de um sexo. Acrescenta mais: que, no caso em exame, podia o Partido inscrever até 26 candidatos e só fez 24, a demonstrar que, se mais número de candidata do sexo feminino não foram inscritas, não teria sido por impedimento do partido. E, conclui observando não existir na ata da Convenção qualquer protesto contra o fato, nem haverem os impugnantes apontado qualquer lesão de direito em sua inicial.

Assim, neste caso a doutrina mal faz parte da decisão, sendo citada apenas

indiretamente no relatório do acórdão.

Na decisão proferida pelo TRESC, o livro intitulado O debate Constitucional sobre as

Ações Afirmativas, do Ministro Joaquim Barbosa é citado também indiretamente, ou seja, o

texto é citado no âmbito do parecer proferido pela Procuradoria Regional Eleitoral, que por

sua vez é citada no voto redigido pelo Ministro Oswaldo José Horn. O trecho citado do livro

fornece os critérios para averiguar se uma lei que estabelece distinções entre grupos ou

indivíduos deve ou não ser considerada constitucional. Assim, ele é utilizado como parte

estruturante do voto, sendo parte de uma citação mais ampla do parecer da Procuradoria no

âmbito da argumentação legal que busca declarar a constitucionalidade das cotas,

42TRESC, Recurso n.º 19.222, Relator Oswaldo José Pereira Horn, julgado em 31/08/2004; TREBA, Recurso n.º 1.411, Relator Orlando Isaac Kalil Filho, julgado em 10/09/2000.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 78

e.5 Uso de argumentos externos ao direito

No Recurso n.º 5.638, julgado pelo TRE-BA, a decisão usa como argumento

complementar ao que chama de “inexistência de discriminação” o de que, dada a carência de

quadros da coligação, esta não chegou a preencher todas as vagas a que teria direito. Por este

motivo não faria sentido excluir candidatos do sexo masculino.

4. LEGISLAÇÃO COMPARADA

A pesquisa em direito comparado seguiu por dois caminhos, um prático e outro

teórico. De um lado, foram examinados os institutos de três ordenamentos em que houve

relativo adensamento jurídico da proteção e promoção dos direitos da mulher, a saber,

Espanha, Alemanha e México. Essa escolha foi feita com o propósito de comparar, no caso de

Espanha e Alemanha, a aplicação, no plano interno, das mesmas normas internacionais e

regionais sobre o assunto a que ambos estão submetidos; o ordenamento mexicano, por sua

vez, foi escolhido por ser de um Estado latino-americano, que apresenta semelhanças com o

Brasil. Além disso, leituras preliminares identificaram estes três ordenamentos como

exemplos do que há de mais inovador em termos de um direito da mulher, e favoreciam uma

análise comparativa por fazerem parte do sistema romano-germânico, como é o caso do

direito brasileiro.

Esta seção do relatório está, assim, dividida em quatro partes: nas três primeiras,

apresentamos os ordenamentos jurídicos objeto da análise comparada; na última, faremos um

resumo de toda a exposição, tecendo críticas, antes de, finalmente, chegarmos às

considerações finais.

4.1 Alemanha

O ordenamento alemão orienta-se, da mesma forma que o espanhol e o mexicano, pelo

princípio da transversalidade. No plano legal, vigora a lei de 30 de novembro de 2001

(Bundesgesetzblatt de 5 de dezembro de 2001), que dispõe sobre a equiparação de mulheres e

homens, no serviço público federal, nos poderes executivo e judiciário (Gesetz zur

Gleichstellung von Frauen und Männern in der Bundesverwaltung und in den Gerichten des

Bundes), doravante aqui designada pela sigla em alemão BGleiG. Para o setor privado, não

há legislação sobre o assunto que lhe seja aplicável, menos ainda o dever de reservar quotas

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para mulheres, embora algumas empresas, mediante acordo com sindicatos, tenham instituído

essa prática. 43

A BGleiG adota um sistema de quotas, estabelecendo uma obrigação geral que consiste

nisto, em caso de promoção ou criação de novas vagas, mulheres serão, sob determinadas

condições, preferidas aos homens. Os requisitos impostos pela lei são, em primeiro lugar, a

sub-representação da mulher em determinado setor, e, em segundo lugar, sua qualificação.

Nos termos desse instrumento legal, em tradução livre, considerar-se-ão as mulheres sub-

representadas, quando a proporção feminina no total das pessoas que compõem as esferas

específicas [...] for inferior a 50% [§ 4 (1)]. RICHTER observa que essa lei deixa uma

importante lacuna em aberto, a saber, a da sub-representação masculina, não apenas a já

existente em algumas esferas, como também aquelas que poderão advir, tão logo a

participação feminina ultrapasse os 50%. Em vista disso, o autor sugere a realização de um

exame mais cuidadoso das medidas de promoção da igualdade e de equiparação entre homens

e mulheres, trazendo o foco para ambos, a fim de evitar situações em que a mulher qualificada

e sub-representada possa ser preferida a um homem, mas um homem qualificado e sub-

representado não possa ser preferido a uma mulher. 44

Mas a característica mais impressionante talvez seja a aplicação do princípio da

transversalidade, que demanda reajustes em diversas esferas. Na administração pública, por

exemplo, instituíram-se procedimentos de investigação, abertos para, de um lado, apurar

indícios de discriminação disfarçada (indireta) e déficit de participação; de outro lado, para

identificar normas obsoletas, que se presta a perpetuar papéis sociais ultrapassados. Segundo

publicação do governo federal alemão sobre o assunto,45 os procedimentos de investigação

são divididos em duas fases.

Na primeira, há um exame superficial, em que são considerados o objeto e o objetivo da

ação, bem como as medidas tomadas, tendo em vista a finalidade proposta. Em seguida,

indaga-se se essas medidas atingem homens e mulheres direta ou indiretamente, devendo ser

considerados todos os âmbitos da vida: tempo livre, trabalho, mobilidade, participação,

família etc. Se, encerrado esse exame, for verificado que ambos são atingidos da mesma

forma, não há mais necessidade de prosseguir-se com a investigação; caso, no entanto, a

43Cf. http://www.juraforum.de/lexikon/Quotenregelung. 44RICHTER, Thomas. “Das Geschlecht als Kriterium im deutschen Recht”. In: Neue Zeitschrift für Verwaltungsrecht – NVwZ, Heft 6, 2005, p. 637. 45Cf. Bundesministerium für Familie, Senioren, Frauen und Jugend. Arbeitshilfe Geschlechterdifferenzierte Gesetzesfolgenabschätzung. „Gender Mainstreaming bei der Vorbereitung von Rechtsvorschriften“, Mai 2007. Disponível em www.bmfsfj.de.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 80

medida afete mulheres e homens de forma distinta, faz-se necessário um exame mais

aprofundado do problema, em que serão focados os dados pertinentes, como, por exemplo,

dados estatísticos ou resultados de pesquisas, as medidas previstas e as possíveis alternativas a

elas para atingir o objetivo estabelecido. Nesse exame, faz-se ainda necessário, além de

verificar se as medidas em estudo atingem homens e mulheres direta ou indiretamente,

considerar também o âmbito em que isso ocorre e a intensidade dessa interferência.

Ainda na esfera administrativa, a abordagem transversal revelou a imposição de

concepções masculinas na organização das cidades: o legislador tem como referência a

mobilidade do homem e ignora a mulher, preferindo o motorista de automóvel à mãe com o

carrinho de bebê nos passeios: o traçado das ruas, a organização das calçadas, os interesses

negligenciados das crianças, tudo parece dificultar a vida de quem não for homem e

trabalhador motorizado em tempo integral.

O direito do trabalho alemão, quando visto sob a mesma ótica, revelou que suas regras

tinham como referência o trabalhador em período integral, e não aqueles em turno parcial, em

geral mulheres. Disso resultava que a hora-extra, por exemplo, era apenas correspondente ao

período trabalhado além das oito horas regulamentares; trabalhadoras em turno parcial de

quatro horas, quando permaneciam em atividade além desse tempo, não recebiam adicional,

antes da nona hora de trabalho.

A desigualdade revela-se, portanto, mediante uma mudança de perspectiva. Se

focarmos o valor das horas de trabalho e verificarmos que homens e mulheres ganham o

mesmo, teremos aí o exemplo de uma igualdade formal: a quinta hora de trabalho de uma

empregada em meio-período vale tanto quanto a quinta hora de trabalho de um empregado em

período integral; mas, se deslocarmos o enfoque para os respectivos contratos de trabalho,

veremos que a quinta hora, para as trabalhadoras de meio-período, implica uma hora

adicional, realizada ao custo de um tempo que, de outra forma, elas teriam livre para cuidar de

encargos pessoais e/ou familiares. Em suma: a quinta hora de trabalho de uma empregada em

turno parcial não terá a mesma remuneração que a nona hora do empregado em turno integral,

embora uma e outra sejam, de fato, horas adicionais de trabalho.46

Assim é no direito trabalhista. No direito penal, por sua vez, e como último exemplo, o

enfoque da transversal revela isto, as mulheres que matam seus maridos tendem a ser mais

severamente punidas do que homens que cometem o mesmo delito com suas esposas, e por

46SACKSOFSKY, Ute. “Was ist feministische Rechtswissenschaft?”. In: Zeitschrift für Rechtspolitik – ZRP, Heft 9, 2001, p. 413.

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esta razão: a lei alemã pune com prisão perpétua o homicida doloso, definido não somente

como aquele que mata para satisfazer uma tendência abjeta ou para encobrir outro crime, mas

também como aquele que mata à traição, de modo feroz ou com meios cruéis.47 Dadas as

diferenças físicas entre mulheres e homens, o homicídio do marido pela mulher será, na maior

parte das vezes, possível somente com dolo, de forma sorrateira, à traição, sem dar à vítima,

que é mais forte, oportunidade de defesa; o da mulher pelo homem, ao contrário, não se

realiza necessariamente nessas condições, pois a superioridade física do assassino permite

matar sem surpreender, o que livra o homicida da prisão perpétua.48

4.1.1 Panorama geral

No contexto das políticas de reconhecimento, a principal questão hoje, no direito

alemão, talvez seja esta, se e em que medida o discurso da emancipação feminina não

resultou numa discriminação jurídica dos homens?49 Conforme acima descrito, o sistema de

quotas prevê um regime aplicável aos casos em que as mulheres estão sub-representadas, mas

não às situações em que os homens são minoria. Além do mais, a BGleiG determina que toda

repartição pública com, no mínimo, 100 funcionários, terá uma mulher eleita por voto secreto,

escolhida dentre as funcionárias da repartição, para exercer, durante quatro anos, funções de

controle, supervisão, aconselhamento e apoio, visando a equiparação de homens e mulheres.

47Cf. § 211, StGB (Código de direito penal alemão). 48SACKSOFSKY, Was ist..., p. 413. 49RICHTER, Das Geschlecht..., p. 636.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 82

Gesetz zur Gleichstellung von Frauen und Männern in der Bundesverwaltung und in

den Gerichten des Bundes, Alemanha, 2001

Resumo estruturado

Parte 1: determinações gerais

a) objeto da lei:

· promover a igualdade entre homens e mulheres;

· eliminar as diversas formas de discriminação;

· melhorar a compatibilidade entre família e vida profissional

· promover a igualdade entre mulheres e homens nas expressões da língua alemã

b) pessoas para quem a lei cria obrigações

· todos os funcionários públicos federais, em especial aqueles que ocupam cargos de

chefia, bem como juízes e juízas são obrigados a promover a equiparação de homens e

mulheres.

c) alcance da lei

· administração federal direta e indireta e tribunais federais

Parte 2: medidas para equiparação de mulheres e homens

a) concursos públicos

· exceto nos casos das funções exclusivas de um dos sexos, não poderá haver, em

concursos públicos ou em concursos internos para o provimento de cargos e funções, a oferta

de vagas apenas para homens ou apenas para mulheres.

· se a mulher não estiver adequadamente representada em determinado setor da

administração pública, as vagas livres preenchidas mediante concurso interno serão oferecidas

em concurso público.

· serão chamados para entrevista, em iguais proporções, homens e mulheres que

tenham demonstrado as qualificações necessárias para o cargo, previstas no edital

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 83

· a entrevista será realizada por comissão formada por homens e mulheres, em

iguais proporções. Se isso não for possível, deverá ser justificado.

· na entrevista, não poderão ser feitas perguntas relativas a estado civil, a gravidez,

aos filhos e a outras pessoas sob os cuidados da candidata, que deverá ser previamente

informada desses impedimentos.

· se, no setor em questão, houver mulheres em número inferior a 50%, isso deverá

ser levado em consideração, no momento da contratação, da promoção ou do oferecimento de

vagas para estágio

·a qualificação dos candidatos e das candidatas será avaliada exclusivamente a partir das

exigências do cargo, da formação e da experiência profissional. Não serão considerados:

i. interrupção da atividade profissional, pouco tempo de atividade, redução do

tempo de trabalho ou formação que se realizou tardiamente para que encargos familiares

pudessem ser assumidos

ii. situação financeira do marido, da mulher (companheiro, companheira etc.)

iii. ônus advindos dos cuidados com os filhos ou necessitados sob guarda do

candidato ou da candidata

b) cursos de aperfeiçoamento

· a repartição pública deverá, mediante medidas apropriadas, apoiar o aperfeiçoamento

profissional da mulher

· quando necessário, deverão ser providenciados horários alternativos para a realização

de cursos de aperfeiçoamento e oferecidos serviços de assistência para crianças (p.ex.: creche)

Parte 3: compatibilização de família e vida profissional para mulheres e homens

a) trabalho em meio período ou à distância, exceto se o serviço exigir dedicação

integral

b) licença para trato de interesses familiares

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 84

Parte 4: pessoas encarregadas da equiparação de homens e mulheres

· toda repartição pública com, no mínimo, 100 funcionários, terá uma mulher eleita

por voto secreto, escolhida dentre as funcionárias da repartição, para exercer funçõ

es de controle, supervisão, aconselhamento e apoio, visando a equiparação de homens e

mulheres. O mandato terá a duração de quatro anos, podendo ser renovado.

Parte 5: dados estatísticos e relatórios

a) a repartição pública deverá elaborar anualmente dados estatísticos, com

informações sobre a situação de homens e mulheres em sua área de atuação

b) relatórios sobre o assunto deverão ser encaminhados para o parlamento a cada

quatro anos.

Parte 6: disposições transitórias

4.2 Espanha

Em 15 de março de 2007, a Câmara dos Deputados espanhola aprovou, por

unanimidade, a Ley Orgánica para la Igualdad Efectiva entre Mujeres y Hombres (doravante

LOI), com o objetivo tornar efetivo o princípio da igualdade de tratamento e a eliminação de

toda discriminação contra a mulher, em todos os âmbitos de sua vida, em sua atuação pública

ou privada.50 Surgiu da vontade política de um governo que já havia se destacado por medidas

para a proteção integral contra a violência de gênero, com a Ley Orgânica 1/2004 (FRANCH,

MERINO, 2007). O projeto de lei contava já com o apoio do Senado, e, na votação da

Câmara, foi aprovado por todos os deputados e deputadas, com a exceção dos representantes

do PP, que se abstiveram.51

A razão apontada para a promulgação da lei, além das exigências formais de diretivas

da União Européia, foi a persistente desigualdade fática entre homens e mulheres. Após 30

anos de democracia na Espanha, as mulheres representavam, ainda em 2008, apenas 20% dos

50Las Cortes Generales aprueban la Ley Orgánica para la Igualdad Efectiva de Mujeres y Hombres, notícia obtida na página da Presidência da Espanha (http://www.la-moncloa.es/). Acesso em 15 de fevereiro de 2008. 51Las Cortes Generales..., em http://www.la-moncloa.es/.

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postos diretivos nas empresas com mais de 10 empregados e 29% naquelas com menos de 10

empregados. Nos Conselhos de Administração das empresas, sua participação era de 3% - o

penúltimo país da Europa em participação feminina nesta categoria, à frente apenas da Itália.

Nos postos de decisão política, a participação média era de 30%.52 O princípio da composição

equilibrada, nem menos de 40%, nem mais de 60% de representação de nenhum dos sexos, já

havia sido estabelecido para os países europeus em 1992, na Conferência de Atenas.

4.2.1. A Lei 3/2007 e o Direito Internacional e Comunitário

Quando dos debates parlamentares para a aprovação da lei, algumas comunidades

autônomas já haviam aprovado, em seus parlamentos, leis de igualdade entre mulheres e

homens. Além disso, discutia-se a necessidade de dar cumprimento às diretivas 2002/73/CE,

2004/113/CE e 2006/54/CE,53 e não foram de menor influência tratados, convenções e

conferências internacionais.

O preâmbulo da LOI faz referência à Convenção sobre a eliminação de todas as formas

de discriminação contra a mulher (CEDAW, em inglês), aprovada pela Assembléia Geral da

ONU em 1979 e ratificada pela Espanha em 1983, em que surge, pela primeira vez em uma

convenção internacional, a definição do conceito de ações afirmativas.54 Além disso, as

conferências de Nairóbi (1985) e Pequim (1995) são citadas devido à adoção, em seus textos,

“de cuestiones que con el tiempo han demostrado ser imprescindibles para la igualdad

efectiva de mujeres y hombres” (FRANCH, MERINO, 2007, p.2).

A importância da conferência de Nairóbi consistiu em, após um balanço dos avanços

atingidos entre 1975 e 1985, enfatizar a necessidade de aumento da participação da mulher na

tomada de decisões em todos os âmbitos da sociedade. Na conferência de Pequim, por sua

vez, a principal discussão deu-se em torno do chamado gender mainstreaming, traduzido

como transversalidade de gênero.

52Presentación, Revista del Ministério de Trabajo y Asuntos Sociales – Igualdad Efectiva de Mujeres y Hombres, Número Extraordinario, 2007, p. 8. 53Para mais informações sobre a incorporação da diretiva 2006/54/CE, Gender mainstreaming ou Princípio da Transversalidade, infra. 54Artigo IV da Convenção: “A adoção pelos Estados Membros de medidas especiais de caráter temporário destinadas a acelerar a igualdade de fato entre o homem e a mulher não se considerará discriminação na forma definida nesta Convenção, mas de nenhuma maneira implicará, como conseqüência, a manutenção de normas desiguais ou separadas; essas medidas cessarão quando os objetivos de igualdade de oportunidade e tratamento houverem sido alcançados. 1. A adoção pelos Estados Membros de medidas especiais, inclusive as contidas na presente Convenção, destinadas a proteger a maternidade, não se considerará discriminatória.”

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 86

O gender mainstreaming é definido como o processo de avaliação das implicações

sobre homens e mulheres em qualquer ação prevista, tanto em seu desenho como em sua

aplicação e posterior avaliação, com o objetivo de alcançar a igualdade de gênero.

Por fim, a Carta de Direitos Fundamentais da União Européia, de 2000, estabeleceu que

a igualdade entre mulheres e homens deveria ser estabelecida em todas as áreas, incluindo

emprego, trabalho e remuneração, e tornou-se a primeira referência básica na configuração

dos princípios fundamentais na igualdade de tratamento e de não discriminação em razão de

sexo (LÓPEZ, 2007, p. 54-55).

O último ponto de referência anunciado no preâmbulo da LOI é a Diretiva 54, de 5 de

julho de 2006. Trata-se de um grande exemplo de integração da jurisprudência do TJCE nas

normas jurídicas, jurisprudência essa que, no âmbito de igualdade de tratamento e

oportunidades entre mulheres e homens, teve, em conjunto com a atuação de interlocutores

sociais, importância destacada.

Ela define a igualdade entre mulheres e homens como um princípio fundamental do

direito social e comunitário, impondo a obrigação positiva de promover a igualdade em todas

as atividades, e parte da proibição de discriminação direta e indireta, com uma noção de

discriminação que inclui o abuso sexual e o abuso por razão de sexo. A diretiva exige,

também, a revisão, por parte de países membros, de suas normas neste campo anteriores a

1993. Inova, além disso, ao integrar, nas políticas de igualdade, a conciliação da vida

profissional, pessoal e familiar55.

No âmbito do direito comunitário, o Tratado de Amsterdã tornou a igualdade entre

mulheres e homens um princípio fundamental da União Européia, dando ensejo a uma série

de diretivas a partir dos anos 70.

4.2.2 A lei 3/2007 e a Constituição espanhola de 1978

A LOI deu concretude ao artigo 14 da Constituição espanhola, que prevê o direito à

igualdade e a não discriminação por razão de sexo56. Também o artigo 9.2 da Constituição já

55Idem, pp. 55-56. 56Artigo 14 da Constituição espanhola: “Los españoles son iguales ante la ley, sin que pueda prevalecer discriminación alguna por razón de nacimiento, raza, sexo, religión, opinión o cualquier otra condición o circunstancia personal o social”.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 87

previa a obrigação dos poderes públicos de promover as condições para que a igualdade do

indivíduo e dos agrupamentos em que se integram fosse efetiva e real.57

O preâmbulo da LOI explicita que o reconhecimento da igualdade formal perante a lei,

apesar de ter sido um passo decisivo, não foi suficiente para liquidar com a discriminação

salarial, a violência de gênero, a discriminação nas pensões de viuvez, o maior desemprego

feminino e a escassa presença de mulheres nos postos de responsabilidade política, social,

cultural e econômica. O artigo 9.2 da Constituição seria a abertura para uma ação normativa

no sentido de combater todas as discriminações subsistentes, diretas ou indiretas, através da

remoção de todos os obstáculos e estereótipos que impedem a consecução da igualdade,

resultando em benefícios para toda a sociedade:

“Esta exigencia se deriva de nuestro ordenamiento constitucional e integra un genuino derecho de las mujeres, pero es a la vez un elemento de enriquecimiento de la propia sociedad española, que contribuirá al desarrollo económico y al aumento del empleo”.58

O princípio da transversalidade, explica o preâmbulo, foi norteador de toda a lei, por ser

conseqüência necessária da adoção de políticas ativas na dogmática do direito anti-

discriminatório moderno. Mas, ao mesmo tempo que a lei estabelece um marco geral para as

ações afirmativas, criando desigualdades em favor da mulher, estabelecem-se cautelas para

assegurar sua constitucionalidade.

Ainda assim, a promulgação da lei, como previsto desde o início gerou diversos debates

doutrinários(FRANCH, MERINO, 2007, p. 13). A questão que se colocava era: a lei criou um

genuíno direito das mulheres, diferente daquele dos homens, ou limitou-se a ser conseqüente

com o que já propunha a Constituição espanhola em seus artigos 9.2 e 14?

FRANCH e MERINO, professoras de Direito Constitucional na Espanha, propõem

que a LOI não cria direitos diferentes daqueles estabelecidos na Constituição Espanhola, mas

mecanismos para tornar efetivos os direitos que já existem.59 No modelo das autoras, a

igualdade formal, sustentada pelo Estado liberal, “se ha sustentado sobre un modelo de

57Artigo 9.2 da Constituição espanhola: “Corresponde a los poderes públicos promover las condiciones para que la libertad y la igualdad del individuo y de los grupos en que se integra sean reales y efectivas; remover los obstáculos que impidan o dificulten su plenitud y facilitar la participación de todos los ciudadanos en la vida política, económica, cultural y social.” 58Preâmbulo, Ley Orgánica para la Igualdad Efectiva entre Mujeres y Hombres (3/2007). 59Idem.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 88

persona que se identifica con los hombres”,60 particularmente com homens brancos e

proprietários. O Estado social, apesar de ter incorporado novos direitos e novas titularidades,

não teria chegado a questionar o modelo sobre o qual se erigiu o sujeito constitucional, de

forma que não se teria alterado a vinculação da mulher com o âmbito privado e sua

conseqüente exclusão de todo o debate e reconhecimento nos níveis jurídico, social e

econômico. Na visão das autoras, a LOI seria claramente um desenvolvimento do artigo 9.2

da Constituição espanhola, que propõe a igualdade material. Estaria em íntima conexão com o

modelo de Estado social – modelo que a própria Constituição, em seu artigo 1.1, vincula à

igualdade, o que faria da igualdade material um valor superior com vocação para permear

todo o ordenamento.

O artigo 14 da Constituição, por sua vez, ao reconhecer o sexo como condição não

suficiente para engendrar uma discriminação, não proibiria a política material em favor das

mulheres. As autoras atentam para a distinção entre proibição de discriminação e

possibilidade de estabelecer tratamentos diferentes a situações diferentes (FRANCH,

MERINO, 2007, p. 12). Além disso, o artigo 14 teria estabelecido a igualdade como mais que

um princípio, criando o direito de não discriminação – ou seja, o direito à igualdade efetiva. A

análise sistemática do artigo 9.2 com o 14 permitiria a abordagem da igualdade real como

finalidade.

Outro fator que corroboraria com a visão de que a lei apenas dá cumprimento a uma

estrutura já estabelecida constitucionalmente é que ela estabelece garantias que podem ser

exercidas por todas as pessoas que sofrem discriminação no exercício dos direitos. Muito

embora sejam as mulheres quem mais se utilizará das garantias, por serem, historicamente,

quem sofre a discriminação, nada impede que também os homens discriminados possam

invocá-las. Esta possibilidade é um dos pontos mais originais da lei espanhola, que se

preocupa, em todo o seu texto, em estabelecer uma situação de efetiva igualdade entre os

sexos, inclusive nas áreas em que a mulher já é tradicionalmente ultra-representada. Em

comparação com BGleiG alemã, a LOI tem uma estrutura arejada, revelando uma

preocupação em relação à igualdade que se expressa em institutos sofisticados para a

consecução de seus objetivos.

60Idem, p. 9.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 89

4.2.3 Princípio da Co-responsabilidade

Las politicas de corresponsabilidad de la vida familiar y laboral (...) forman parte del corazón de las politicas de la Unión europea. Dentro de la Estrategía Lisboa, sobre modernización de los sistemas de protección social y la necesidad de incrementar la participación de las mujeres en el mercado de trabajo, es la conciliación (se utiliza este término) um planteamiento desde la necesidad de los mercados de trabajo y desde la sostenibilidad de las pensiones no desde las politicas de igualdad y ciudadanía. (LÓPEZ, P. 64)

Além da transversalidade, um princípio que informou a LOI foi o da co-

responsabilidade entre mulheres e homens. A lei 39/99, de conciliação entre vida familiar e

profissional das pessoas trabalhadoras, não havia rompido com os papéis sociais, o que teria

sido equivocado, por perpetuar a discriminação em razão de gênero (RÍO, 2007, p.5). Poder-

se-ia afirmar que não há como apostar na igualdade sem levar em conta a co-responsabilidade.

Afinal, até o momento, as carreiras profissionais masculinas ter-se-iam sustentado com o

tempo cedido pelas mulheres.61

A LOI teria buscado corrigir este erro, co-responsabilizando, então, a mulher e o

homem, igualmente. Uma das pedras de toque nesse sentido foi o reconhecimento, no artigo

44, de uma licença-paternidade remunerada de 13 dias, por ocasião de nascimento, adoção ou

acolhimento. Além disso, incluíram-se entre os critérios gerais de atuação dos Poderes

Públicos a proteção à maternidade, com especial atenção aos efeitos derivados da gravidez, do

parto e da lactação, já que a maternidade não deveria impor nenhum obstáculo para o acesso

das mulheres ao mercado de trabalho ou à vida política.62

Na opinião de LÓPEZ, no entanto, a única iniciativa da lei no sentido da co-

responsabilização teria sido a licença-paternidade, o que seria um avanço muito tímido. A

LOI teria insistido muito mais na conciliação da vida familiar, profissional e pessoal que na

idéia essencial de co-responsabilização (LÓPEZ, p. 64).

4.2.4 Gender Mainstreaming ou Princípio da Transversalidade

A perspectiva da transversalidade a que se refere o preâmbulo é um conceito

relativamente novo para os operadores jurídicos e interlocutores sociais (RÍO, p.6). Não se

pretende, aqui, desenvolver uma história do princípio ou promover um aprofundamento de

61A questão da conciliação entre a vida profissional, familiar e pessoal não é, aliás, um problema apenas das mulheres, tendo sido discutida na última conferência informal de Ministros de Igualdade em Helsinki como um problema que deva ser mais amplamente abordado, do ponto de vista de políticas de emprego ou econômicas. (Presentación..., p. 10.) 62Presentación..., p. 10.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 90

sua estrutura. Cabe apenas delinear o que ele significa, especialmente no contexto da LOI, e

como ela o explora.

O princípio da transversalidade baseia-se na idéia de que a democracia requer que todos

os cidadãos participem e estejam representados igualitariamente nos mais diversos âmbitos da

vida, seja na economia, na vida social, cultural ou civil. A única maneira de combater a

violência e sub-representação das mulheres é reconhecer que se deve analisar a realidade

tendo em vista, nos diversos âmbitos culturais, sociais, educativos, políticos e econômicos,

que homens e mulheres não se encontram na mesma posição social. Isto torna necessária a

integração do princípio da igualdade de tratamento e oportunidades entre mulheres e homens

no desenho e na adoção de todas as políticas que possam ter repercussões diretas ou indiretas

sobre a cidadania. A aplicação do princípio significa ter em conta, em todas essas políticas, as

preocupações, necessidades e aspirações das mulheres na mesma medida que as dos homens.

Para isso, é essencial a representação equilibrada das mulheres nos âmbitos de decisão

política e econômica.63

O gender mainstreaming foi adotado na Plataforma para Ação no final da IV

Conferência Mundial sobre as Mulheres da ONU, em Pequim, em 1995. Foi então previsto na

Diretiva 2006/54/CE, que regula as matérias de emprego e ocupação, e que, em seu artigo 29,

determina:

“Transversalidad de la perspectiva de género. Los Estados miembros tendrán en cuenta de manera activa el objetivo de la igualdad entre hombres y mujeres al elaborar y aplicar disposiciones legales, reglamentarias y administrativas, así como políticas y actividades en los ámbitos contemplados en la presente Directiva.”

A Espanha já havia investido no princípio com a lei 30/2003, sobre medidas para

incorporar a valoração de impacto de gênero nas Disposições Normativas que elaborasse o

governo. No entanto, a lei não teve os resultados que se desejava tivesse: dos projetos que

efetivamente realizaram uma avaliação do impacto de gênero, poucos reconheceram um

impacto de gênero, apresentando como seria seu benefício à mulher (8,69%, no período de

outubro de 2003 a novembro de 2005).

A perspectiva transversal exige da lei um alto grau de complexidade: são reguladas

todas as políticas públicas na Espanha, bem como o setor privado, mas um maior

detalhamento é reservado para os âmbitos de competência do Estado. A proteção geral do

63Idem.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 91

princípio da igualdade nos diferentes âmbitos normativos é concretizada nas 31 disposições

adicionais, que modificam 27 leis que são afetadas pela lei 03/2007. “De este modo, la ley

nace con la vocación de erigirse en la ley-código de la igualdad entre mujeres y hombres”.64

A lei modificou as leis estatais que são afetadas pelo princípio da igualdade real entre

mulheres e homens, contemplando um conjunto de medidas de caráter transversal nos

seguintes âmbitos:

• Atuação dos poderes públicos;

• Política educativa e de saúde;

• Ação dos meios de comunicação públicos ou privados;

• Acesso às novas tecnologias e à sociedade da informação;

• Política de desenvolvimento rural e de moradia;

• Política cultural, de criação artística, esporte e cooperação para o

desenvolvimento;

• Contratação e concessão de subvenções públicas;

• Política trabalhista, de emprego e de Seguridade Social;

• Função pública e corpos e forças de segurança;

• Acesso a bens e serviços;

• Organização da Administração Geral do Estado.

Nos campos nos quais as mulheres estão pior situadas, a lei regula extensivamente. São eles:

direito ao trabalho e Seguridade Social, direito à participação política e direito ao acesso à carreira

pública. Para estas áreas, a lei estabelece normas obrigatórias e meios específicos de

implementação. Nas outras, ela assume uma função preventiva, de promoção e fomento dos

direitos.

4.2.5 Direito ao Trabalho e Seguridade Social

Uma das grandes inovações trazidas pela LOI é regular não somente o funcionalismo

público, mas impor também regras ao trabalho privado, desenvolvido nas empresas. Um dos

princípios mais importantes neste campo é o da conciliação entre vida profissional, pessoal e

64Preâmbulo, Ley Orgánica para la Igualdad Efectiva entre Mujeres y Hombres (3/2007).

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 92

familiar, incentivando a co-responsabilidade do homem e da mulher com as obrigações

domésticas e familiares.

Outra novidade é a introdução do princípio de igualdade de tratamento entre mulheres e

homens nas negociações coletivas, espaço em que a lei impõe o dever de tratar a questão, mas

mantém a liberdade de determinação dos melhores caminhos a serem seguidos para tanto.

Trata-se da idéia de igualdade participada, através de um chamamento dos interlocutores

sociais para o estabelecimento de medidas de ação afirmativa (LÓPEZ, p. 62). Isto é verdade

especialmente em relação às pequenas e médias empresas, em que não há a obrigação de

elaborar um Plano de Igualdade, como exploraremos abaixo.

O Capítulo III do Título IV da LOI cuida da elaboração de Planos de Igualdade no

âmbito das empresas – medida muito original, mas que dependerá, para sua efetivação, da

vontade e da formação dos interlocutores sociais e principalmente da parte sindical (RÍO, p.

10). O artigo 45 estabelece que as empresas são obrigadas a respeitar a igualdade de

tratamento e de oportunidades entre mulheres e homens no âmbito do trabalho, e deverão

adotar medidas para este fim, que deverão ser negociadas e, se for o caso, acordadas. Já as

empresas com mais de 250 trabalhadores têm o dever de elaborar e aplicar um Plano de

Igualdade, que também deverá ser objeto de negociação, o que também se torna um dever

para empresas menores no caso de se realizarem acordos coletivos nesse sentido.

Os Planos de Igualdade, de acordo com o artigo 46 da LOI, serão um conjunto de

medidas perseguidas para eliminar qualquer discriminação e atingir a igualdade de tratamento

entre mulheres e homens. Para tanto, exige-se uma fase prévia de diagnóstico de situação,

após a qual se estabelecerão os objetivos concretos a se atingir, estratégias e práticas e

sistemas de acompanhamento e avaliação dos resultados. O plano poderá contemplar, e tendo

como base o diagnóstico de situação, o acesso ao emprego, a classificação profissional, a

promoção e formação, a remuneração, a ordenação do tempo para conciliação entre vida

profissional, familiar e pessoal e a prevenção do abuso sexual e abuso por razão de sexo.

Especificamente para o caso de abuso, poderão ser negociados, com os trabalhadores e

trabalhadoras, guias de boas práticas, campanhas informativas e ações de formação.

Para LÓPEZ, as medidas preventivas sobre abuso que farão parte dos planos teriam o

efeito de incrementar a cultura de igualdade de direitos nas empresas. Os representantes dos

trabalhadores, com isso, se sensibilizariam com a questão e passariam a denunciar as condutas

constitutivas de abuso. Na opinião da autora, no entanto, a LOI deveria ter se preocupado

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 93

mais com os casos em que são o empresário ou seus representantes a cometer o abuso

(LÓPEZ, p. 63).

A previsão de medidas para consecução de igualdade, mesmo quando, no caso de

pequenas e médias empresas, tem mais o caráter de um incentivo que de um dever, ganha

maior efetividade quando analisada em conjunto com os artigos 33, 34 e 35 da LOI. De

acordo com o artigo 33, as Administrações Públicas, na contratação com entes privados,

podem estabelecer condições especiais para promover a igualdade entre mulheres e homens

no mercado de trabalho.

O artigo 34, por sua vez, preceitua que o Conselho de Ministros determinará,

anualmente, quais contratos da Administração devem necessariamente conter estas

disposições, e que os órgãos de contratação podem estabelecer preferência de adjudicação aos

contratos que cumpram com aquelas diretrizes. Finalmente, o artigo 35 estabelece que as

Administrações públicas poderão determinar, para as subvenções públicas, os âmbitos em que

se incluirão como critérios de preferência valorações sobre a efetiva consecução de igualdade

entre mulheres e homens.

Para fomentar a elaboração e a aplicação efetiva destes Planos de Igualdade, a LOI

prevê um distintivo, a ser oferecido pelo Ministério do Trabalho e Assuntos Sociais para as

empresas que se destacarem. Os critérios para a concessão do distintivo são a presença

equilibrada de homens e mulheres nos órgãos de direção, a adoção de Planos de Igualdade e

publicidade não sexista dos produtos. Este distintivo pode ser utilizado para fins de

publicidade da empresa.

Um efeito interessante da promulgação da LOI foi que, durante o ano de 2007, foram

publicados diversos guias e manuais com instruções detalhadas acerca de como criar um

Plano de Igualdade para ajudar as empresas, já que todas aquelas com mais de 250

funcionários se encontraram imediatamente obrigadas a pensar o assunto (GELAMBÍ, 2008).

A Disposição Final Quinta determina que, 4 anos após a promulgação da lei, o Governo

procederá à avaliação, junto de entidades sindicais e associações empresariais mais

significativas, o estado da negociação coletiva em matéria de igualdade, aplicando, se for o

caso, as medidas que forem pertinentes.

Além disso, o artigo 75, preocupando-se com a representação equilibrada de homens e

mulheres, estabeleceu que as sociedades obrigadas a prestar contas de perdas e ganhos

procurarão incluir, em seu Conselho de Administração, um número de mulheres suficiente

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 94

para se obter uma representação equilibrada entre mulheres e homens, objetivo que se deveria

alcançar em 8 anos. Isto foi considerado, pelo Partido Popular, uma intromissão desmedida na

liberdade das empresas – o que não foi uma surpresa, pois o partido se mostrou absolutamente

contra a mesma medida no que diz respeito às cotas eleitorais (RÍO, p. 10).

Ainda no âmbito das empresas, uma novidade a nível processual é a remissão ao artigo

138 bis da Lei de Processo Trabalhista, no caso de discrepâncias entre empresários e

trabalhadores em matéria de conciliação da vida familiar, profissional e pessoal.

Um ponto no qual a lei avançou, mas, na opinião de RÍO, poderia ter avançado mais, é o

relativo à licença-paternidade. O projeto inicial previa 8 dias, aumentados para 13 nos

trâmites parlamentares, o que, com os 2 dias adicionais previstos pelo artigo 37.3 do Estatuto

do Trabalho, resulta em 15. Esta duração está muito inferior à estabelecida em outros países

da União Européia. Além disso, seria muito importante que essa licença tivesse caráter

obrigatório, pois a fundamentação que estabelece a obrigatoriedade de 6 semanas para a mãe

não é biológica, mas a de criação de laços entre mãe e filho, o que é importante igualmente

em relação ao pai. No entanto, a LOI não estabelece a obrigatoriedade da licença-paternidade

(RÍO, p. 9).

4.2.6 Participação política e acesso à carreira pública

Os organismos de defesa dos direitos humanos têm insistido na preocupação com a

presença das mulheres nos postos de direção, o que se expressa em declarações de direitos

humanos, conferências e resoluções da ONU, bem como pelo Conselho Europeu, a União

Européia e a União Interparlamentária (FRANCH, MERINO, p. 9). A demanda pela paridade

nasceu formalmente na Europa nos anos 80, após a constatação de que décadas de sufrágio

universal não haviam modificado a quase nula presença das mulheres nos postos de decisão.

Aponta-se que o exercício do voto como condição de cidadania não se daria apenas

através do sufrágio ativo, mas também do passivo, ou seja, do direito de cada cidadão de ser

votado e exercer o poder. Passou-se ao reconhecimento de que a presença da mulher nos

cargos eletivos e também nos de comissão contribuiriam para a democracia real, por trazer a

criatividade e inteligência de metade da população para gerar idéias, valores e

comportamentos diferentes na direção de decisões mais equilibradas e justas.65

65Idem, p. 16.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 95

Na Espanha, a busca pela paridade de homens e mulheres na participação política teve

início nos anos 80, quando alguns partidos políticos passaram a estabelecer cotas de

participação feminina. Se no fim dessa década as cotas eram, em geral, de 25%, em 1997 o

GP (Grupo Parlamentar) Socialista e o GP Izquierda Unida haviam estabelecido a

obrigatoriedade da representação, em suas listas, nem menor de 40% nem maior de 60% para

cada um dos sexos. Isso resultou numa transição de 6% de mulheres, na Legislatura

Constituinte (1977-1979), para 21%, na VI Legislatura (1996-2000). 66

Algumas propostas de formalização dessa paridade em lei foram apresentadas, mas

sempre reprovadas por votos do GP Popular. Foram algumas comunidades autônomas que

passaram a incluir a reforma em suas leis, o que foi questionado perante o Tribunal

Constitucional. Duas dessas ações aguardam julgamento, e duas, propostas pelo Governo,

foram retiradas pelo governo de Rodríguez Zapatero em 2006. Os argumentos, nos quatro

casos, giraram em torno das mesmas questões: a unidade da soberania (teoricamente

ameaçada por uma independência representativa das comunidades autônomas) e a

representação no Estado (receio de uma democracia corporativa), o princípio da igualdade no

que toca os cargos públicos e funções representativas e a liberdade dos partidos políticos,

somada ao direito de ser candidato.

A LOI veio, então, como resultado de um processo, buscando efetivar a participação

política da mulher através do princípio da composição equilibrada, desenvolvido na

Disposição Adicional Primeira, de acordo com a qual a representação de um dos sexos não

pode ser menor que 40% nem maior que 60%. Aqui se torna claro que a lei busca uma

igualdade real entre os sexos: muito embora sejam as mulheres, sub-representadas, quem mais

farão uso do princípio, nada impede que homens, sub-representados em alguma situação,

possam também exigir a composição equilibrada. O princípio é também aplicável para as

eleições das Comunidades Autônomas, mas é-lhes reservada a competência de criar situações

ainda mais favoráveis às mulheres.

A Disposição Adicional Segunda dedica-se à representação política, estabelecendo o

princípio da composição equilibrada para a lista dos partidos políticos, não apenas nas

eleições para o Legislativo estadual, mas também municipal, das comunidades autônomas e

do Parlamento Europeu, entre outras eleições; vem a concretizar o que já estabelecia em

princípio o Capítulo I do Título II. O artigo 16 dedica-se às nomeações realizadas pelos

66Idem, p. 25.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 96

poderes públicos,67 e o Capítulo II do Título V (artigos 52-54) à aplicação do princípio da

composição equilibrada na Administração Geral do Estado (Poder Executivo).

O Partido Popular propôs uma ação de inconstitucionalidade contra a Disposição

Adicional segunda, alegando a restrição à liberdade dos partidos e violação do princípio da

igualdade, bem como a abertura de um processo de parcelamento da soberania e limitação

ilegítima do direito de ser eleito – ou seja, os mesmos argumentos das ações de

inconstitucionalidade propostas anteriormente contra as leis eleitorais das Comunidades

Autônomas. Sugeriam medidas de incentivo, ao invés de imposições. FRANCH e MERINO

consideraram que alegação incorria em uma confusão, pois a DA Segunda não seria uma ação

positiva, mas uma diferença justificada para efetivar o direito de participação política de

mulheres e homens, previsto constitucionalmente. Afinal, uma norma aparentemente neutra

pode ensejar verdadeiras desigualdades materiais.68

Nas eleições seguintes, 17 foram os recursos que, vindos da Justiça Eleitoral,

chegaram ao Tribunal Constitucional. As decisões tomadas pela Corte em relação às

candidaturas irregulares foram no sentido de que a exigência de composição equilibrada não

era irracional ou arbitrária, fazendo sentido no contexto de buscar a verdadeira participação

paritária entre os sexos, mas que as Juntas Eleitorais deveriam oferecer aos partidos a

possibilidade de retificar as candidaturas que não tivessem cumprido com a lei.

Ocorreu interessante demanda da formação política FE de las JONS, em cuja lista

figuravam 10 mulheres e 3 homens, afirmando que tinham uma impossibilidade física de

cumprir com a lei, pela falta de homens para se candidatar. O Ministério Fiscal, em parecer,

manifestou-se no sentido de que a lei previa a participação de homens e mulheres nas

proporções propostas, e deveria ser cumprida; o juiz da sentença, no entanto, considerou que,

havendo impossibilidade física de incluir outros homens na candidatura, esta deveria ser

realizada sem a exigência de saneamento, levantando, no entanto, a opinião de que o artigo 44

da Lei Eleitoral, modificado pela LOI, seria inconstitucional, por poder ferir o interesse das

próprias mulheres.69

67No âmbito dos poderes públicos a que se refere o artigo 16, uma interpretação para a extensão desses poderes pode ser a dada pela Súmula 35 do Tribunal Constitucional (STC 35/1983), que afirma que o que a Constituição incluir em poderes públicos são todos os entes e órgãos que exercem um poder de império derivado da soberania do Estado, em conseqüência de uma mediação mais ou menos larga do próprio povo. A STC 16/1982, além disso, dá a entender que também o Poder Judiciário é compreendido como um poder público. (FRANCH e MERINO, p. 18). 68Idem, pp. 31-32. 69Todos os casos extraídos de FRANCH e MERINO, pp. 33-34.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 97

O artigo 53 destaca-se por exigir a composição equilibrada também nos órgãos de

seleção e comissões de valoração da Administração Geral do Estado. Nos debates anteriores à

lei, na Comissão Mista de direitos humanos da mulher e igualdade de oportunidades, a

deputada Monserín Rodriguez, atentou para o fato de que em poucos campos seria possível

atestar mais o mérito e a capacidade das mulheres que na Administração Geral do Estado. Nos

cargos em cuja investidura se media o mérito e a capacidade, as mulheres representavam 52%

do total de funcionários. Na investidura de cargos escolhidos órgãos de decisão, em que os

membros eram majoritariamente homens, as mulheres correspondiam a 2 ou 1% do total. Daí

a preocupação em levar as mulheres aos cargos de decisão.70

O artigo 54 leva o princípio da composição equilibrada para a designação de

representantes da Administração Geral do Estado nos órgãos colegiados, comitês técnicos e

comitês consultivos nacionais e internacionais, bem como nos Conselhos de Administração de

empresas em cujo capital o Estado participe.

O artigo 55, por sua vez, é uma clara manifestação da transversalidade, pois obriga a

realização de um informe sobre o impacto de gênero na aprovação de convocatórias de provas

seletivas para o acesso ao emprego público.

Um olhar sistemático nos dirige à Disposição Transitória Primeira, que estabelece um

princípio que, embora pareça óbvio, pode suscitar discussões: o da irretroatividade da lei. Ora,

isso significa que, nas nomeações futuras, os conselhos e órgãos terão de buscar atingir a

composição equilibrada. Se se entender, sistematicamente, que a composição equilibrada diz

respeito aos postos considerados em conjunto, as renovações seguintes fariam com que

rapidamente se atingisse a composição necessária.

Considerando-se que em alguns âmbitos, como nos Conselhos de Administração das

empresas, a participação feminina é quase nula, as nomeações futuras, durante algum tempo,

teriam de ser exclusivamente femininas. Caso se considerasse, pelo contrário, e a partir da

irretroatividade, que o dever de buscar a composição equilibrada diria respeito às novas

nomeações e, portanto, ao número de vagas que surgisse após a promulgação da lei, os

objetivos seriam atingidos num prazo mais longo.71

70Idem, p. 22. 71Idem, p. 23.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 98

4.2.7 Impacto da LOI nas eleições locais de 2007

A Federação Espanhola de Municípios e Províncias realizou um estudo detalhado das

eleições municipais realizadas em 2007, analisando a representação das mulheres e a

diferença observada em relação às eleições de 2003. Analisou a brecha de gênero (diferença

entre as taxas masculina e feminina na categoria de uma variável; quanto maior a brecha,

maior a desigualdade), a segregação horizontal (desequilíbrios na presença de homens e

mulheres em diferentes áreas) e a segregação vertical (desequilíbrios do ponto de vista da

posição hierárquica que ocupam mulheres e homens num órgão) que se produziram nas duas

eleições, e buscaram extrair dos dados o impacto que a Lei 3/2007 teve sobre a igualdade

efetiva entre mulheres e homens.72

As eleições locais de 2003 mostraram um forte desequilíbrio entre os sexos: os homens

ocupavam 74,3% dos cargos de secretários municipais (concejalías, que são cargos eleitos),

ou seja, quase três quartos do total. A distribuição entre mulheres e homens nas Câmaras

mostrou-se, no entanto, muito desigual em função do tamanho dos municípios. A brecha de

gênero nas concejalías foi de 46%.73

Os dados obtidos levam também à conclusão de que, quanto menor o número de

habitantes do município, maior a brecha de gênero. Nos municípios de 101 a 5.000 habitantes,

o percentual de cargos de vereador ocupados por homens foi 77,04, com uma brecha de

gênero de 54%; já em municípios com mais de 300.000 habitantes, o percentual cai para

61,85, com uma brecha de gênero de 23,7%.

Adotando-se o ponto de vista dos cargos de secretários municipais (concejalías)

ocupados por homens e mulheres em cada Comunidade Autônoma, observa-se que a

representação das mulheres variou entre 19,03% (Castilla-León) e 35,5% (Madrid). A

diferença diz respeito, afirma o estudo, ao tamanho dos municípios que compõem cada

Comunidade Autônoma.74

A análise da segregação vertical nas corporações locais em 2003 demonstrou que o

desequilíbrio entre mulheres e homens crescia proporcionalmente ao grau de poder e tipo de

72Estudio del Impacto de la Ley Orgánica 3/2007, para la Igualdad Efectiva de Mujeres y Hombres en la Representación de Mujeres en el Ambito de la Politica Local. FEMP – Federación Española de Minicipios y Provincias, maio de 2007. 73Estudio del Impacto..., p. 19. 74Idem, p. 25.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 99

responsabilidade. Entre os prefeitos (alcades), apontados pelos concejales, a presença

feminina foi de 13,17%, contra 86,83% de homens. A brecha de gênero, portanto, que no caso

das concejalías era de 46%, no caso dos postos mais altos de decisão chega a 74%, o que,

segundo o estudo, comprovaria a existência de barreiras invisíveis impedindo às mulheres o

acesso a postos de maior responsabilidade.75 Permaneceu, quanto às prefeituras, a distinção de

que municípios com menos habitantes tendem a apresentar maior brecha de gênero. Outro

dado interessante foi que a brecha diminuía ligeiramente no que se referia aos cargos de vice-

prefeitos, nos quais havia uma representação um pouco maior das mulheres, mas ainda assim

brutalmente desigual.

Quando se tratava das tenencias, cargos hierarquicamente inferiores às concejalías, a

desigualdade era menor, com algumas Comunidades Autônomas apresentando mais de 30%

desses cargos ocupados por mulheres. No entanto, nas Juntas de Governo, órgãos

encarregados de gerir cotidianamente os entes e tomar a maior parte das decisões referentes às

políticas municipais, constituindo, com o gabinete da prefeitura, os elementos centrais de

intervenção e gestão, a presença das mulheres voltava a cair (abaixo de 30% em todas as

Comunidades Autônomas). A pesquisa conclui que, havendo nos cargos necessidade de

tomada de decisões e disposição de tempo, a presença das mulheres diminui.

Fonte: Estudio del Impacto..., p. 34.

75Idem, p. 28.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 100

Quanto à segregação horizontal, a conclusão da pesquisa foi que a presença da mulher,

em 2003, era tanto mais marcante quanto mais as responsabilidades eram derivadas da função

que o rol de gênero lhes atribui: era a maioria nos serviços sociais e de saúde, e tinham

presença equilibrada nas áreas de educação, cultura, esportes e juventude. Os homens eram

preponderantes nas áreas com mais incidência na manutenção ou mudança de poder,

configuração de espaços e distribuição de recursos a diferentes políticas (regime interno,

economia e fazenda, meio ambiente, entre outros).

Nas eleições locais de 2007, ou seja, após a entrada em vigor da LOI, a pesquisa mostra

que os números progrediram no sentido de uma maior participação política da mulher. Em

2007, 31% dos cargos de vereador foram ocupados por mulheres, o que representa um

aumento de 5% em relação às eleições anteriores, significando uma queda de 10% na brecha

de gênero, que ficou em 38%. Também neste caso foi possível observar que a brecha

diminuiu mais tanto maiores eram os municípios. Agora, nos municípios de 101 a 5.000

habitantes, o percentual de cargos de vereador ocupados por homens foi 73, e, em municípios

com mais de 300.000 habitantes, o percentual caiu para 55,7%, tendo-se alcançado, nesta

categoria, a paridade.

Uma das observações mais interessantes foi a de que nos municípios com menos de

5.000 habitantes, uma redução de 8% na brecha de gênero ocorreu sem qualquer imposição, já

que as mudanças eleitorais introduzidas pela LOI não se aplicam a eles. Já em relação à

participação total em cada Comunidade Autônoma, muito embora a presença de mulheres

tenha aumentado em todas, a desigualdade da brecha de gênero entre elas permaneceu nos

mesmos padrões de anteriormente.

No plano da segregação vertical, no entanto, as diferenças não foram tão marcantes. O

aumento da presença das mulheres nos cargos de prefeito foi de apenas 1,69%, com uma

brecha de gênero de 70%, mantendo-se a disparidade entre municípios com menos e mais

habitantes, mas de grau muito inferior à disparidade que se observou ainda no caso das

câmaras municipais. Também nas vice-prefeituras houve uma diminuição na brecha de

gênero, sem que com isso se alcançasse a paridade: 48 pontos porcentuais. A brecha de

gênero diminuiu expressivamente no caso das tenencias, postos em que algumas

Comunidades Autônomas conseguiram alcançar o que a LOI considera paridade. Isso levaria

à conclusão de que a representação das mulheres aumentaria mais rapidamente quanto mais

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 101

próximo se está da base da pirâmide, ou seja, mais longe do poder real.76 Já no caso das

Juntas de Governo, de forma muito parecida com o que ocorreu nas prefeituras, a diminuição

da brecha de gênero foi inexpressiva.

A segregação horizontal também não parece ter caminhado no sentido de uma

superação. As áreas predominantemente masculinas não o deixaram de ser, nem tampouco as

femininas; naquelas em que já havia paridade, a conclusão a que a pesquisa chega é que

preponderam as mulheres, mas os postos de direção são ocupados por homens.77 No entanto,

um fato relevante é que, nos municípios relativamente maiores, algumas áreas, como

educação e meio ambiente, claramente se feminizaram.

Quanto à presença de mulheres nas câmaras em relação aos partidos políticos, apenas

um deles, o CC (Coalición Canaria), obteve uma representação paritária (brecha de 20%).

Outros 6 partidos ficaram com brecha abaixo de 40%, contra nove que permaneceram acima.

A conclusão geral a que chegou a pesquisa é que as eleições locais de 2007 permitiram

um avanço para a paridade, mas apenas no nível mais baixo da representação política

(tenencias, concejalías); a segregação vertical e a horizontal continuaram operando a pleno

vapor.78

4.2.8 Princípios protetores e reparadores na LOI

Os princípios protetores e reparadores da lei aglutinam-se, principalmente, em torno do

princípio de indenização, protegendo frente a tratamentos adversos e negativos produzidos

frente a quem apresentar reclamações e denúncias relativas ao princípio da igualdade de

tratamento e de oportunidades entre mulheres e homens.

Além disso, a lei é regida pelo princípio geral de tutela jurisdicional, como o direito de

qualquer pessoa recorrer ao Judiciário, conforme previsto pelo artigo 53.2 da Constituição

Espanhola. Neste âmbito, baseando-se nas Diretivas comunitárias mas indo mais adiante,

afirma-se na lei o princípio da inversão do ônus da prova, de acordo com o qual a parte

acusada deverá provar a ausência de discriminação frente a qualquer alegação relativa à

igualdade de tratamento e oportunidades entre mulheres e homens.

76Estudio de Impacto..., p. 63. 77Estudios de Impacto..., p. 70. 78Para um detalhamento maior das conclusões a que chega a pesquisa, consultar Estúdios de Impacto..., a partir da p. 98.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 102

A lei prevê, também, a nulidade dos atos e negócios jurídicos discriminatórios e um

sistema de reparações e indenizações, a serem determinadas pela efetividade e

proporcionalidade do prejuízo sofrido. Determina, sobretudo, que as sanções deverão ser

eficazes, para terem um caráter dissuasivo.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 103

Ley Orgánica para la Igualdad Efectiva entre Mujeres y Hombres, Espanha, 2007

Resumo estruturado

Título preliminar

a) Objeto da lei:

• Fazer efetivo o direito de igualdade de tratamento e de oportunidades entre mulheres

e homens;

• Eliminar a discriminação da mulher, seja qual for sua circunstância ou condição e em

qualquer âmbito da vida;

• Estabelece princípios de atuação dos poderes públicos, regula direitos e deveres de

pessoas físicas e jurídicas, públicas e privadas.

b) Âmbito de aplicação:

• Toda pessoa, física ou jurídica, que se encontre em território espanhol, independente

de nacionalidade, domicílio ou residência.

Título 1: o princípio da igualdade e a tutela contra a discriminação

a) Aplicação do princípio:

• O princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres pressupõe a

ausência de toda discriminação, direta ou indireta, em razão de sexo, e, principalmente, as

derivadas da maternidade, de obrigações familiares assumidas e do estado civil.

• A igualdade de tratamento e de oportunidades entre mulheres é um princípio

informador do ordenamento jurídico e integrará e será observado na interpretação e na

aplicação de normas.

• O princípio é aplicável no âmbito do emprego privado e do emprego público,

implicando no acesso ao emprego (inclusive no trabalho autônomo), na formação e na

promoção profissional, nas condições de trabalho, na afiliação e participação em organizações

sindicais, empresárias, mas não quando a atividade, por sua natureza, requeira diferenciação

por sexo devido a requisitos profissionais essenciais e relevantes.

b) Definições legais:

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 104

• Discriminação direta x Discriminação indireta: a discriminação direta por razão de

sexo é entendida como aquela exercida entre situações comparáveis; a indireta é aquela em

que situações aparentemente neutras colocam pessoas de um sexo em desvantagem particular

em relação a pessoas de outro.

• Abuso sexual x Abuso por razão de sexo: abuso sexual é o comportamento verbal ou

físico de natureza sexual, e abuso por razão de sexo é qualquer comportamento realizado em

função do sexo, ambos atentando contra a dignidade da pessoa, em especial criando efeito

intimidante, degradante ou ofensivo.

c) Conseqüências jurídicas das condutas discriminatórias:

• Atos e cláusulas jurídicas discriminatórias serão nulos e ensejarão responsabilidade

através de indenizações reais, efetivas e proporcionais ao prejuízo sofrido, e de um sistema

eficaz e dissuasório de sanções.

d) Ações afirmativas:

• Para corrigir desigualdades de fato, serão aplicadas medidas específicas temporárias

e razoáveis.

• Tais medidas serão aplicadas pelo Poder Público, mas também pessoas físicas e

jurídicas privadas poderão adotá-las, nos termos da lei.

e) Tutela judicial:

• A legitimação para intervir nos direitos sobre que versa a lei é de pessoas físicas e

jurídicas com interesse legitimo; no caso de abuso sexual e abuso por razão de sexo, somente

a pessoa abusada é legitimada.

• O ônus da prova, a não ser no processo penal, recairá sobre o demandado.

Título 2: políticas públicas para a igualdade

a) Critérios gerais de atuação dos poderes públicos:

• Compromisso com a efetividade do direito constitucional de igualdade entre

mulheres e homens;

• Integração do princípio de igualdade de tratamento e oportunidades no conjunto das

políticas econômicas, trabalhistas, culturais, sociais e artísticas;

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 105

• Colaboração entre as Administrações públicas;

• Participação equilibrada de mulheres na tomada de decisões;

• Adoção de medidas necessárias para erradicar a violência de gênero e violência

familiar;

• Consideração de dificuldades singulares enfrentadas por grupos de mulheres de

coletivos de maior vulnerabilidade;

• Respeito à diferença e à diversidade;

• Proteção à maternidade, com especial atenção à assunção pela sociedade dos efeitos

da gravidez, do parto e da lactância;

• Estabelecimento de medidas que assegurem a conciliação do trabalho e da vida

pessoal e familiar do homem e da mulher, e fomento à co-responsabilização pelas atividades

domésticas e familiares;

• Fomento de instrumentos de colaboração entre as distintas Administrações públicas e

os agentes sociais, associações de mulheres e outras entidades privadas;

• Fomento da efetividade do princípio da igualdade entre mulheres e homens nas

relações particulares;

• Implantação de uma linguagem não sexista no âmbito administrativo e seu fomento

em geral.

b) Transversalidade do princípio:

• O princípio informará a atuação de todos os Poderes Públicos, nas políticas públicas

em todos os âmbitos e no desenvolvimento de todas as suas atividades.

c) Cargos de responsabilidade:

• As nomeações e designações serão realizadas em atendimento ao princípio de

presença equilibrada de mulheres e homens nestes cargos.

d) Outras medidas:

• O Governo aprovará, periodicamente, um Plano Estratégico de Igualdade de

Oportunidades;

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 106

• O Governo prestará contas periodicamente à Câmara dos Deputados relativamente às

ações para a efetividade do princípio de igualdade (informe periódico).

• Os projetos de disposições de caráter geral e os planos de especial relevância

econômica, social, cultural e artística deverão apresentar um informe sobre seu impacto com

relação ao gênero.

• Estatísticas e estudos elaborados pelos poderes públicos deverão incluir a variável

sexo (mesmo que isso signifique ampliar a amostra), introduzir novos indicadores que

possibilitem compreender as diferenças nas condições entre homens e mulheres, bem como

detectar situações discriminatórias, e eliminar definições que desvalorizem o trabalho da

mulher ou determinados coletivos de mulheres.

e) Ação administrativa para a igualdade:

• O sistema de ensino incluirá em seus fins a educação a respeito da igualdade entre

mulheres e homens, e eliminará obstáculos para que se atinja a efetiva igualdade.

• As instituições de ensino garantirão a integração ativa entre mulheres e homens,

cuidarão de eliminar conteúdos sexistas e estereótipos discriminatórios entre mulheres e

homens do material didático, integrarão o princípio da igualdade nos currículos e nos cursos

para formação docente.

• Os órgãos de controle e governo dos centros docentes terão representação equilibrada

de homens e mulheres.

• Estabelecer-se-ão medidas para o reconhecimento e ensino do papel das mulheres na

História.

• A educação superior incentivará o ensino e a pesquisa sobre o alcance da igualdade

entre mulheres e homens.

• No âmbito da criação e produção artística e intelectual, haverá medidas de incentivo

à promoção específica das mulheres, incentivos econômicos de ajuda à criação e produção

artística e científica de autoria feminina, paridade nos órgãos consultivos, científicos e de

decisão, bem como outras ações afirmativas que sejam necessárias.

• As políticas de saúde também garantirão o princípio, levando em conta necessidades

especiais de homens e mulheres, incentivando a pesquisa a respeito dessas diferenças,

favorecendo a promoção específica da saúde das mulheres, prevenindo a discriminação,

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 107

considerando o abuso sexual e abuso por razão de sexo, oferecendo formação do pessoal para

atender à violência de gênero, garantindo composição paritária nos postos diretivos e de

responsabilidade no sistema de saúde, e oferecendo obtenção e tratamento de dados e

estatísticas diferenciados por sexo.

• O Governo promoverá a plena incorporação das mulheres na Sociedade da

Informação em todos os programas públicos de desenvolvimento, e mediante programas

específicos, contemplando as mulheres de coletivos de risco de exclusão e do âmbito rural. Os

conteúdos e a linguagem da Sociedade da Informação não serão sexistas, e serão incentivados

os projetos realizados por mulheres.

• Todos os programas públicos de desenvolvimento dos esportes levarão em

consideração a igualdade real entre homens e mulheres, e o governo promoverá o esporte

feminino e a abertura das modalidades às mulheres.

• As Administrações públicas promoverão o reconhecimento do trabalho rural da

mulher e seus direitos à Seguridade Social. Haverá atuações para a formação da mulher rural,

especialmente para sua incorporação no mercado de trabalho e em órgãos de decisão em

empresas e associações, e atividades em que o trabalho das mulheres seja favorecido serão

promovidas pelas Administrações públicas. Haverá uma rede de serviços sociais como

medida de conciliação da vida laboral, familiar e pessoal no meio rural.

• As políticas de acesso à moradia e de urbanismo levarão em conta o princípio da

igualdade. O governo deve fomentar o acesso à moradia às mulheres com risco de exclusão,

em situação de necessidade ou que tenham sofrido agressão de gênero, em especial quando

tiverem filhos exclusivamente a seu cargo.

• Para a abordagem transversal, elaborar-se-á uma Estratégia Setorial de Igualdade

entre mulheres e homens, que será atualizada periodicamente, e haverá um processo de médio

prazo de progressiva integração do princípio da igualdade e do enfoque o gênero em

desenvolvimento (GED), com a promoção de ações afirmativas, em todos os níveis da

Administração pública.

• Todos os anos, o Executivo decidirá que contratos da Administração Geral do Estado

devem incluir medidas tendentes à promoção de igualdade efetiva entre homens e mulheres.

• Também no caso dos planos estratégicos de subvenções, as Administrações públicas

poderão incluir ações para a efetiva consecução de igualdade entre homens e mulheres.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 108

f) Igualdade e meios de comunicação

• Os meios de comunicação social de titularidade pública velarão por uma imagem

igualitária, plural e não estereotipada de mulheres e homens na sociedade e promoverão a

difusão do conhecimento acerca da igualdade.

• A Corporação RTVE e a agência EFE atentarão, em sua programação, para uma

linguagem não sexista, para refletir adequadamente a presença das mulheres em diversos

âmbitos da vida social, para transmitir conteúdos de igualdade e apoiar campanhas

institucionais. Incorporarão mulheres nos postos de responsabilidade, e fomentarão a relação

com associações e grupos de mulheres.

• Os meios de comunicação privados eliminarão a discriminação entre mulheres e

homens, e as Administrações públicas promoverão a adoção, por parte desses meios, de

acordos de auto-regulação para contribuir com o cumprimento da legislação de igualdade,

inclusive na publicidade.

• A publicidade considerada discriminatória nos termos desta lei serão ilícitas.

Título 4 – O direito ao trabalho em igualdade de oportunidades

a) Igualdade de tratamento e de oportunidades no âmbito do trabalho:

• As políticas de trabalho terão como um de seus objetivos aumentar a participação das

mulheres no mercado de trabalho e avançar na igualdade efetiva entre mulheres e homens,

melhorando sua empregabilidade e permanência através de formação.

• Os programas de inserção laboral serão oferecidos a mulheres em todas as idades e

de todos os níveis educacionais, e poderão destinar-se prioritariamente a determinados

coletivos de mulheres.

• Negociações coletivas poderão estabelecer medidas para o acesso das mulheres ao

trabalho e para a igualdade de tratamento e não discriminação.

b) Igualdade e conciliação:

• Aos trabalhadores e trabalhadoras serão concedidos direitos de conciliação da vida

laboral com a pessoal e familiar, para que assumam as responsabilidades familiares de forma

equilibrada, evitando-se qualquer discriminação baseada no seu exercício.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 109

• A licença-maternidade e o salário-maternidade serão concedidos conforme normas

de trabalho e Seguridade Social, que preverão, também, licença e salário-paternidade.

c) Os planos de igualdade das empresas e outras medidas de promoção de igualdade:

• As empresas devem respeitar o princípio da igualdade de tratamento e de

oportunidades e adotar medidas para evitar a discriminação no trabalho, o que deve ocorrer

por meio de acordos coletivos.

• Empresas com mais de 250 funcionários deverão adotar um plano de igualdade, a ser

igualmente objeto de negociação nos termos das leis trabalhistas.

• As demais empresas poderão adotar planos de igualdade mediante acordos coletivos,

e todas serão obrigadas a fazê-lo se a autoridade trabalhista substituir uma sanção acessória

pelo dever de elaboração e aplicação deste plano.

• O conjunto coordenado de medidas em que consistirão os planos de igualdade

fixarão estratégias e práticas para a consecução da igualdade de tratamento e de

oportunidades, e estabelecerão formas eficazes de acompanhamento e avaliação.

• Os representantes dos trabalhadores e, portanto, os trabalhadores terão acesso a

informações sobre o conteúdo dos planos e a consecução dos objetivos.

• As empresas deverão promover condições de trabalho que previnam o abuso sexual e

o abuso por razão de sexo, e oferecer meios de prevenção e de denúncia caso ocorram.

Sugestões: códigos de boas práticas, campanhas, etc.

• Os representantes dos trabalhadores devem sensibilizá-los a respeito destes abusos e

levar as reclamações à direção da empresa.

• O Ministério do Trabalho e Assuntos Sociais criará um distintivo para as empresas

que mais se destacarem nestes objetivos, o que poderá ser utilizado para fins publicitários. O

funcionamento deste procedimento será dado por regulamento, e serão levados em conta a

presença equilibrada de homens e mulheres em cargos de direção, a adoção de planos de

igualdade ou outras medidas inovadoras, e a publicidade não sexista dos produtos.

Titulo 5 – O princípio da igualdade no funcionalismo público

a) Critérios de atuação das Administrações públicas:

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 110

• Remover dos obstáculos para a igualdade efetiva entre homens e mulheres;

• Facilitar conciliação da vida profissional, familiar e pessoal;

• Fomentar a formação em igualdade;

• Estabelecer medidas efetivas de proteção frente ao abuso sexual e ao abuso em razão

de sexo;

• Eliminar qualquer forma de discriminação retributiva, direta ou indireta, em razão de

sexo;

• Avaliar periodicamente a efetividade do princípio nos seus respectivos âmbitos de

atuação.

b) O princípio da presença equilibrada na Administração Geral do Estado (doravante

AGE) e nos órgãos públicos vinculados ou dela dependentes:

• O Governo atenderá ao princípio da presença equilibrada de mulheres e homens na

nomeação para titulares de órgãos diretivos da AGE e de órgãos públicos vinculados ou dela

dependentes, considerados em seu conjunto;

• Os órgãos de seleção de servidores e comissões de valoração de méritos para

provisão de postos de trabalho terão composição equilibrada, salvo por razões fundamentadas

e objetivas.

• A presença equilibrada de homens e mulheres será atendida também na

representação em comitês e órgãos colegiados, nacional ou internacional, da Administração

Geral do Estado e dos órgãos públicos vinculados ou dela dependentes, salvo por razões

fundamentadas e objetivas. O mesmo vale para nomeações em conselhos de administração de

empresas em cujo capital participem.

c) Medidas de igualdade no emprego na Administração Geral do Estado e nos órgãos

públicos vinculados ou dela dependentes:

• A aprovação de convocatórias de concursos públicos devem acompanhar um informe

de impacto de gênero, salvo urgência e sem prejuízo da não discriminação por razão de sexo.

• A normativa aplicável estabelecerá um conjunto de benefícios para proteger a

maternidade e favorecer a conciliação entre vida profissional, familiar e pessoal, e

reconhecerá uma licença-paternidade.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 111

• Para efeitos de valoração do trabalho desenvolvido e de seus méritos, o tempo em

que as candidatas tenham permanecido na situação descrita na disposição anterior será

computado.

• Durante a gravidez ou o período de lactação natural, se as condições de trabalho da

servidora forem prejudiciais a ela ou à criança, é garantida uma licença por risco, durante a

qual seus direitos econômicos serão mantidos em sua plenitude.

• Se o período de férias da servidora coincidir com uma incapacidade temporal

derivada da gravidez ou da lactação natural, a servidora poderá desfrutar das férias num

período posterior, mesmo após o período concessivo. O mesmo vale no caso de licença-

paternidade.

• Será dada preferência, nos cursos de formação e atualização, durante um ano, àqueles

que tenham retornado ao serviço após licença-maternidade ou devido a situações excepcionais

de guarda legal e atenção a pessoas maiores dependentes ou pessoas desabilitadas.

• 40% das vagas dos cursos de formação serão reservados às mulheres que reúnam os

requisitos estabelecidos.

• Os concursos públicos incluirão o estudo e a aplicação do princípio da igualdade

entre mulheres e homens nos diversos âmbitos da função pública.

• Serão oferecidos cursos de formação sobre a igualdade e sobre a violência de gênero,

dirigidos a todos os servidores.

• As Administrações públicas estabelecerão com a representação legal das

trabalhadoras e dos trabalhadores um protocolo de atuação que compreenda, no mínimo, um

compromisso de prevenir e não tolerar o abuso sexual ou por razão de sexo, uma instrução a

todos os servidores sobre seu dever de respeitar a dignidade das pessoas, a intimidade e a

igualdade de tratamento entre mulheres e homens, o tratamento reservado de denúncias de

fatos que poderiam constituir um abuso, e a identificação dos responsáveis por atender às

denúncias.

• Todos os Departamentos Ministeriais e Órgãos Públicos remeterão, ao menos uma

vez por ano, aos Ministérios do Trabalho e Assuntos Sociais e de Administrações Públicas,

informações detalhadas a respeito da aplicação efetiva do princípio da igualdade entre

mulheres e homens.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 112

• No início de cada legislatura, o Governo aprovará um plano para a igualdade entre

mulheres e homens na AGE e órgãos vinculados ou dela dependentes, com objetivos e

estratégias relativamente ao funcionalismo público, o que será objeto de negociação e acordo

com os representantes dos servidores. Seu cumprimento será avaliado anualmente pelo

Executivo.

d) Forças armadas e Forças e Corpos de Segurança do Estado:

• As normas sobre pessoal das Forças Armadas e sobre Forças e Corpos de Segurança

do Estado respeitarão o princípio da igualdade, em especial no que se refere ao regime de

acesso, formação, ascensão, destino e situações administrativas.

• As normas aplicáveis aos servidores públicos relativamente à igualdade, prevenção

da violência de gênero e conciliação da vida profissional, pessoal e familiar são aplicáveis,

ressalvadas peculiaridades necessárias, às Forças Armadas e às Forças e Corpos de Segurança

do Estado.

Título 6 – Igualdade de tratamento no acesso a bens e serviços e sua administração

• Todas as pessoas, físicas ou jurídicas, no setor público ou privado, que administrem

bens ou serviços disponíveis para o público, fora do âmbito privado e familiar, terão o dever

de cumprir com o princípio de igualdade entre mulheres e homens e evitar discriminações

diretas ou indiretas em razão do sexo, a não ser quando justificadas por um propósito legítimo

e os meios sejam adequados e necessários.

• A conduta discriminatória no acesso a bens e serviços enseja indenização por perdas

e danos.

• Nenhum contratante pode indagar sobre gravidez de uma mulher demandante dos

bens e serviços, a não ser para a proteção de sua saúde.

• Seguradores não podem estabelecer prêmios e prestações diferenciados em função do

sexo, a não ser quando este seja fator determinante de avaliação do risco, com base em dados

estatísticos. Os custos relativos à gravidez e ao parto não podem diferenciar pessoas

consideradas individualmente.

• O descumprimento desta proibição gera pretensão do contratante prejudicado em

relação aos prêmios e prestações do sexo beneficiado.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 113

Titulo 7 – A igualdade na responsabilidade social das empresas

• As empresas poderão realizar, voluntariamente, ações de responsabilidade social para

promover a igualdade entre mulheres e homens na empresa ou em seu entorno social, do que

poderão fazer uso publicitário.

• O Instituto da Mulher ou órgãos equivalentes das Comunidades Autônomas poderão

exercer uma ação de cessação quando identificarem publicidade enganosa.

• As sociedades mercantis procurarão alcançar uma representação equilibrada de

mulheres no Conselho de Administração.

Título 8 – Disposições Organizativas

a) Criação de órgãos:

• Comissão Interministerial de Igualdade entre Mulheres e Homens (para a

coordenação das políticas e medidas);

• Unidades de Igualdade, em cada um dos Ministérios;

• Conselho de Participação da Mulher (órgão colegiado de consulta e assessoramento).

b) Presença ou composição equilibrada:

• Considera-se composição equilibrada a presença de mulheres e homens de forma que

as pessoas de cada sexo não superem 60% e nem sejam menos de 40% do conjunto.

A partir de então, a lei passa às disposições adicionais, transitórias e finais. As

disposições adicionais são 27, e modificam artigos específicos de leis espanholas para

adequá-las às disposições da presente lei.

Apresentaremos as modificações mais relevantes, buscando não repetir o que já foi

determinado na parte geral da lei, especialmente no que se refere aos princípios estabelecidos.

a) Lei Orgânica do Regime Eleitoral Geral:

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 114

• Haverá representação mínima de 40% de cada um dos sexos nas candidaturas para os

membros de todos os corpos legislativos (exceto para os municípios ou ilhas com menos de

5.000 habitantes), incluindo o Parlamento Europeu. Se o número de postos a serem cobertos

for inferior a 5, a proporção será aquela mais próxima do equilíbrio numérico.

b) Lei Orgânica da Magistratura:

• Inclusão do capítulo impacto de gênero nas avaliações anuais sobre o funcionamento

do Poder Judiciário;

• Criação da Comissão de Igualdade (em lugar da Comissão de Qualificação), eleita

pelo Pleno do Conselho Geral do Poder Judiciário, com a função de promover a igualdade

entre homens e mulheres na magistratura e elaborar informes prévios sobre o impacto de

gênero dos regulamentos.

• Previsão de dispensa de até três anos para cuidado com familiares em determinadas

condições e no caso de violência contra a mulher.

• Inclusão de conteúdo de gênero no plano de Formação Continuada da Carreira

Judicial, cursos na Escola Judicial sobre tutela jurisdicional do princípio da igualdade entre

mulheres e homens e violência de gênero, e treinamento no Centro de Estudos Jurídicos sobre

aplicação do princípio da igualdade na Administração Judicial e detecção e tratamento da

violência de gênero.

c) Lei de Processo Civil e Lei de Jurisdição Contenciosa Administrativa:

• Legitimação dos sindicatos e associações de defesa da igualdade de tratamento entre

homens e mulheres, respectivamente a seus filiados e associados, na defesa do direito de

igualdade de tratamento. No caso de interesses difusos, são legitimados os órgãos públicos

com competência na matéria, os sindicatos mais representativos e associações com

implantação em todo o território nacional, sem prejuízo da legitimação própria dos afetados,

se determinados. No caso de abuso sexual ou por razão de sexo, a vítima é a única legitimada.

• Incumbência do ônus da prova ao ofensor, quando as alegações da parte autora sejam

fundamentadas em discriminação em razão de sexo.

d) Lei Geral de Saúde e Lei de Coesão e Qualidade do Sistema Nacional de Saúde:

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 115

• Estabelecimento de diversas medidas para a adequação da formação, da pesquisa e

dos produtos utilizados, com o fim de atingir os problemas de saúde especificamente das

mulheres, com especial atenção para a saúde laboral das trabalhadoras.

• Os dados e informações obtidos deverão ser separados e sistematizados de acordo

com o sexo.

e) Fundo em matéria de Sociedade da Informação:

• Dotação de três milhões de euros para cada um dos exercícios de 2007, 2008 e 2009.

f) Lei do Estatuto dos Trabalhadores:

• Serão nulas as decisões que desfavoreçam trabalhadores como reação a uma

reclamação efetuada na empresa ou em ação judicial ou administrativa para exigir o princípio

da igualdade de tratamento e não discriminação.

• A negociação coletiva poderá estabelecer reservas e preferências nas condições de

contratação, classificação profissional, formação e promoção, para favorecer o acesso das

mulheres (ou do sexo menos representado) a todas as profissões.

• Durante a lactação de filhos menores de 9 meses, as trabalhadoras terão direito a uma

hora de ausência no trabalho, que poderá ser dividida em duas frações, e multiplicada no caso

de partos múltiplos. Nos termos de acordo coletivo, a mulher poderá substituir este direito por

uma redução em meia hora na jornada, ou acumulá-lo em jornadas completas. Se a mãe e o

pai trabalharem, este direito pode ser usufruído por um ou pelo outro.

• Quem, por razões de guarda legal, tiver sob seu cuidado direto algum menor de 8

anos ou uma pessoa portadora de deficiência física, psíquica ou sensorial que não desempenhe

atividade remunerada, terá direito a uma redução da jornada de trabalho, com redução

proporcional do salário, dentro dos limites de no mínimo um oitavo e no máximo metade

dele.

• Se o período de férias estabelecido pelo calendário de férias da empresa coincidir

com uma incapacidade temporal derivada da gravidez, do parto ou da lactação natural, ter-se-

á direito de desfrutar das férias após este período, desde que se tenha completado o período

aquisitivo a que elas correspondem.

• No caso de parto, a mãe terá direito a 16 semanas ininterruptas de licença,

distribuídas no tempo como ela preferir (resguardadas no mínimo 6 semanas para após o

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 116

parto, obrigatórias para a mãe), direito que será transferido ao pai no caso de morte da mãe.

Se pai e mãe trabalharem, a mãe poderá ceder parte da licença, posterior ao parto, ao pai. Nos

casos de adoção e acolhimento, a licença de 16 semanas terá início a partir da decisão judicial

ou administrativa, no caso de filhos menores de 6 anos, ou menores de 18 mas com

dificuldades de inserção por qualquer motivo. O período poderá ter um adicional de 2

semanas no caso de deficiência do filho ou do menor adotado ou acolhido, bem como, no caso

de partos, adoção ou acolhimento múltiplos, 2 semanas a mais por filho, a partir do segundo.

• O pai ou o outro progenitor terão direito à suspensão do contrato de trabalho por

treze dias ininterruptos quando do nascimento de filho, adoção ou acolhimento, nos termos

determinados.

• Serão nulas as decisões extintivas e demissões do contrato de trabalho quando se

basearem em discriminação ou na violação de direitos humanos, bem como durante a licença-

maternidade, suspensão por risco ou enfermidade na gravidez ou na lactação; durante a

gravidez, considerada desde seu início até o começo da licença; no caso das trabalhadoras

que, devido a violência de gênero, estejam desfrutando direitos de redução e reordenação do

tempo de trabalho, mobilidade geográfica, mudança de centro de trabalho ou suspensão do

contrato de trabalho, nos termos da lei; dos trabalhadores reintegrados ao trabalho após

licença por maternidade, paternidade, adoção ou acolhimento, até nove meses após o

nascimento, adoção ou acolhimento. Não haverá nulidade na extinção do contrato ou na

demissão se for provado que a razão é distinta da gravidez ou do desfrute dos direitos

apontados.

• O comitê de empresa (órgão colegiado do conjunto dos trabalhadores em empresas

com mais de 50 funcionários) terá direito a receber informações, ao menos anualmente,

relativa à aplicação pela empresa do direito de igualdade de tratamento e de oportunidades

entre mulheres e homens, inclusive a proporção de cada um dos sexos nos diferentes níveis

profissionais, e às medidas para a aplicação do Plano de Igualdade, se existente.

• Os acordos coletivos deverão negociar medidas para promover a igualdade de

tratamento entre mulheres e homens no âmbito do trabalho e elaborar os Planos de Igualdade,

preservando-se a liberdade na definição de seu conteúdo.

• Nas negociações coletivas, articular-se-á o dever de elaboração de Planos de

Igualdade em empresas com mais de 250 trabalhadores.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 117

• A autoridade laboral velará por acordos coletivos não discriminatórios (direta ou

indiretamente), podendo recorrer ao assessoramento do Instituto da Mulher ou aos

Organismos de Igualdade das Comunidades Autônomas.

g) Lei de Prevenção de Riscos Laborais:

• Quando as condições de trabalho que podem afetar a saúde da trabalhadora grávida

ou em lactação natural ou do feto não puderem ser corrigidas, ela deverá desempenhar função

diferente e compatível com seu estado.

h) Lei de Processo do Trabalho:

• Serão nulas as decisões extintivas e demissões nos mesmos termos estabelecidos na

Lei do Estatuto dos Trabalhadores, conforme descrito supra.

• O processo de trabalho poderá ser iniciado de ofício por conseqüência de

comunicações da Inspeção de Trabalho e Seguridade Social acerca de discriminações em

razão de sexo.

• Quando a sentença declarar a existência de lesão a direitos fundamentais e liberdades

públicas, incluída a proibição de discriminação e abuso, o juiz deverá determinar a

indenização, de valor compatível com o que seria devido pela modificação ou extinção do

contrato de trabalho.

i) Lei de Infrações e Sanções de Ordem Social:

• Torna-se infração grave em matéria de relações laborais não cumprir com os Planos

de Igualdade estabelecidos no Estatuto dos Trabalhadores ou nos acordos coletivos

pertinentes.

• São infrações gravíssimas em matéria de relações laborais as decisões unilaterais da

empresa que impliquem discriminações diretas ou indiretas desfavoráveis por razão de idade

ou favoráveis por razão de sexo, origem (incluída, aqui, a racial ou étnica), estado civil,

condição social, religião, adesão ou não a sindicatos e acordos, vínculo de parentesco com

outros trabalhadores da empresa ou língua dentro do Estado espanhol. Além destas

disposições, que já existiam, são também infrações gravíssimas as decisões do empresário que

suponham um tratamento desfavorável dos trabalhadores como reação a uma reclamação

efetuada na empresa ou em ação administrativa ou judicial destinada a exigir o cumprimento

do princípio de igualdade de tratamento e não discriminação.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 118

• São infrações gravíssimas o abuso não apenas por razão de sexo, mas agora também

racial ou étnico, por religião ou convicções, deficiência, idade e orientação sexual no âmbito

que alcança a direção empresarial, qualquer que seja o sujeito ativo, desde que a direção tenha

sabido do fato e não tenha adotado as medidas necessárias.

• É infração gravíssima a não aplicação ou não aplicação tempestiva do Plano de

Igualdade estabelecido como dever em substituição a uma sanção por outra infração

gravíssima.

• Cria-se a sanção acessória específica para o descumprimento de deveres relacionados

à igualdade de tratamento entre mulheres e homens consistente na perda de benefícios

derivados da aplicação de programas de emprego. Essa sanção pode ser substituída pela

elaboração e aplicação de um Plano de Igualdade, nos termos que forem estabelecidos

regulamentariamente.

j) Real Decreto-Lei 11/1998:

• Os contratos de interinidade celebrados com desempregados para substituir

trabalhadores durante o período de maternidade, adoção ou acolhimento darão direito a uma

bonificação de 100% nas cotas empresariais de Seguridade Social, incluídas as de acidente do

trabalho e enfermidades profissionais.

k) Lei de Medidas Urgentes de Reforma do Mercado de Trabalho:

• A mesma disposição exposta acima vale para sócios, sócios de trabalho das

cooperativas e trabalhadores por conta própria ou autônomos.

l) Lei de Emprego:

• Os serviços públicos de emprego, suas entidades colaboradoras e agências de

colocação profissional sem fins lucrativos deverão zelar especificamente, na gestão da

intermediação trabalhista, para evitar a discriminação no acesso ao emprego. Serão

consideradas especialmente discriminatórias ofertas de emprego para um dos sexos, salvo em

se tratando de requisito profissional essencial e determinante da atividade a ser desenvolvida.

m) Lei Geral da Seguridade Social:

• São incluídas no âmbito das ações protetoras do sistema de Seguridade Social as

prestações relativas à paternidade (a maternidade já estava prevista) e ao risco durante a

lactação natural.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 119

• Serão beneficiários do benefício de maternidade e de paternidade o trabalhador e a

trabalhadora, independente de seu sexo, que tenham somado um período de cotização mínimo

de 180 dias nos 7 anos imediatamente anteriores (e não 5, como a lei previa), ou,

alternativamente, por 365 dias ao largo da vida laboral.

• Da mãe biológica com menos de 21 anos à data do descanso não se exigirá período

mínimo de cotização. Da mãe entre 21 e 26 anos de idade se exigirão 90 dias nos 7 anos

imediatamente anteriores ou 180 na vida laboral.

• A prestação econômica referente ao risco durante a gravidez consistirá em subsídio

equivalente a 100% da base reguladora correspondente, e não 75%, como previa a lei.

• Será protegida também a lactação natural, de forma que, em caso de risco, valerá o

mesmo referente ao risco durante a gravidez. A proteção se estende até o 9o mês da criança, a

não ser que cesse o risco e haja reincorporação da funcionária em seu posto ou em posto

compatível.

• As modificações incluem vários detalhes protetivos da maternidade e da paternidade.

n) Lei de Medidas para a Reforma da Função Pública:

• Previsão de remuneração integral para funcionárias em licença por razão de violência

de gênero.

• Licença-paternidade de 15 dias nos casos de nascimento, adoção ou acolhimento.

• Dispensa de três dias no caso de falecimento, acidente ou enfermidade de familiar de

primeiro grau de consangüinidade ou afinidade. Se a localidade do familiar for distinta

daquela do funcionário, a dispensa é de 5 dias. No segunda grau de consangüinidade ou

afinidade, a dispensa é de 2 e 4 dias.

• A funcionária em lactação de filho menor de 12 meses terá direito à redução de uma

hora diária na jornada, direito que poderá ser acumulado para fins de dispensa.

• No caso de nascimento prematuro ou filho recém-nascido hospitalizado, a

funcionária e o funcionário poderão ter redução de duas horas na jornada recebendo a

remuneração integral, ou maior redução, até o mínimo de duas horas, com vencimentos

proporcionais.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 120

• O funcionário que, por razão de guarda legal, tiver a seu cargo menor de doze anos,

pessoas portadoras de deficiência ou que requeiram dedicação especial terão direito à

diminuição da jornada de trabalho.

• O funcionário que precisar cuidar de um parente de primeiro grau por razão de

enfermidade muito grave poderá ter sua jornada reduzida em até 50%, por até um mês.

Havendo mais de um titular deste direito no mesmo caso, a redução poderá ser rateada entre

eles.

• No caso de parto, a mãe terá direito a 16 semanas ininterruptas de licença,

distribuídas no tempo como ela preferir (resguardadas no mínimo 6 semanas para após o

parto, obrigatórias para a mãe), direito que será transferido ao pai no caso de morte da mãe.

Se pai e mãe trabalharem, a mãe poderá ceder parte da licença, posterior ao parto, ao pai. Nos

casos de adoção e acolhimento, a licença de 16 semanas terá início a partir da decisão judicial

ou administrativa, independentemente da idade do adotado ou acolhido. O período poderá ter

um adicional de 2 semanas no caso de deficiência do filho ou do menor adotado ou acolhido,

bem como, no caso de partos, adoção ou acolhimento múltiplos, 2 semanas a mais por filho, a

partir do segundo. O tempo transcorrido na situação de licença será computado, para o

funcionário e para a funcionária, como tempo efetivo de serviço, sendo-lhes garantidos todos

os direitos econômicos.

n) Lei de Regime de Pessoal das Forças Armadas:79

• Regulamentarmente serão estabelecidas as normas para, na medida do possível,

atingir-se a composição equilibrada nas Forças Armadas.

• À mulher será oferecida especial proteção na gravidez, parto e pós-parto, para

cumprir as condições para o acesso a todos os postos militares. No caso de gravidez, a mulher

poderá ser transferida a um posto distinto do que ocupava, adequado às suas circunstâncias.

79A Lei do Regime de Pessoal das Forças Armadas foi em sua maior parte revogada pela lei 39/2007, não subsistindo as alterações aqui descritas. No entanto, a nova elaboração da Lei de Regime Pessoal das Forças Armadas aplica os princípios enunciados na lei que estamos trabalhando. “La igualdad efectiva de mujeres y hombres en todo lo relacionado con el acceso a las Fuerzas Armadas, su formación y carrera militar es otro de los objetivos de la ley para responder a las nuevas realidades de los Ejércitos, donde la mujer ya está presente en una proporción progresivamente en aumento. Asimismo, se pretende conjugar la disponibilidad permanente para el servicio, específica de los militares, con la conciliación de la vida profesional, personal y familiar .” (Preâmbulo, Ley 39/2007, de 19 de noviembro, de la carrera militar). Para mais informações, consultar a página do Ministério da Defesa da Espanha, no endereço http://www.mde.es/contenido.jsp?id_nodo=4434&&&keyword=&auditoria=F.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 121

• As licenças maternidade e paternidade serão regidas pela legislação vigente para a

Administração Pública.

• São previstas licenças voluntárias no caso de nascimento de filho, adoção ou

acolhimento (3 anos), cuidado de um familiar até o segundo grau em situação de enfermidade,

idade ou acidente (um ano). Esta licença não é concedida quando o cônjuge ou parente na

mesma situação beneficiou-se deste direito em relação ao mesmo sujeito causador.

• É prevista a licença voluntária também no caso de residência do cônjuge em

município distinto, devido a posto de trabalho definitivo nas Administrações Públicas ou nos

destinos contemplados no artigo 126 da lei.

o) Lei de Regime de Pessoal do Corpo da Guarda Civil:

• Regulamentarmente serão estabelecidas as normas para, na medida do possível,

atingir-se a composição equilibrada na Guarda Civil.

• À mulher será oferecida especial proteção na gravidez, parto e pós-parto, para

cumprir as condições para o acesso a todos os postos do Corpo da Guarda Civil. No caso de

gravidez, a mulher poderá ser transferida a um posto distinto do que ocupava, adequado às

suas circunstâncias.

• Licenças voluntárias no caso de nascimento de filho, adoção ou acolhimento (3

anos), cuidado de um familiar até o segundo grau em situação de enfermidade, idade ou

acidente (um ano). Estes direitos não podem ser exercidos simultaneamente por dois ou mais

membros da Guarda Civil em relação ao mesmo sujeito causador.

p) Lei Geral para a Defesa de Consumidores e Usuários:

• É infração em matéria de defesa dos consumidores e usuários a discriminação no

acesso a bens e serviços.

q) Lei das Sociedades Anônimas:

• O relatório (memoria), parte da prestação de contas anual, deverá conter a

distribuição por sexos do pessoal da sociedade no fim do exercício, detalhando a proporção de

homens e mulheres em um número suficiente de categorias e níveis, incluindo os cargos

diretivos e de conselheiros.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 122

r) Lei de Criação do Instituto da Mulher:

• Inclusão, dentre as funções exercidas, a prestação de assistência a vítimas de

discriminação para encaminhamento das reclamações, realização de estudos sobre

discriminação e publicação de informes e formulação de recomendações.

s) Lei 5/1984, reguladora do Direito de Asilo e da Condição de Refugiado:

• É reconhecida a condição de refugiada às estrangeiras que tenham deixado seus

países por terem sofrido violência em razão de seu sexo, inclusive violência de gênero.

t) Lei de Ordenação dos Corpos Especiais Penitenciários e da Criação do Corpo de

Ajudantes de Instituições Penitenciárias:

• É extinta a divisão entre as escalas masculina e feminina no Corpo de Ajudantes de

Instituições Penitenciárias, formando-se um corpo único.

u) Disposições Transitórias.

v) Disposições Finais.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 123

4.3 México

No início dos anos 2000, a perspectiva de gênero começou a ser incorporada nos planos

e programas nacionais mexicanos, com base no marco normativo da Plataforma Ação da

Quarta Conferência Mundial sobre a Mulher (Pequim, 1995) e da Convenção sobre a

eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher (CEDAW), dentre as mais

relevantes internacionalmente, somadas ao ordenamento da Lei do Instituto Nacional das

Mulheres e das recentes Lei para a Igualdade entre Homens e Mulheres e Lei Geral de Acesso

das Mulheres a uma Vida Livre de Violência. 80

4.3.1 Histórico dos mecanismos para igualdade de gênero adotados a partir da Quarta Conferência Mundial da Mulher81

A plataforma de ação da Quarta Conferência Mundial da Mulher (Pequim, 1995)

consolidou os avanços alcançados pelas mulheres até então e tornou-se uma diretriz para a

realização de políticas públicas em favor da igualdade de oportunidades entre mulheres e

homens.

No ano de 1996 o Programa Nacional da Mulher (1995-2000) foi aprovado com a

finalidade de regular e coordenar as políticas relativas às mulheres e, assim, proporcionar uma

eficiente coordenação e integração de programas e ações governamentais envolvendo diversas

organizações sociais, especialmente aquelas que atendem a mulher. No mesmo ano é criado

no Ministério de Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural a Unidade Nacional

responsável pelo Programa de Mulheres para o Desenvolvimento Rural cujo propósito é

promover novas formas de parceria econômicas regionais, o acesso à adoção de tecnologias

adequadas e incentivar o desenvolvimento de projetos para gerar emprego e renda nas áreas

rurais. Também em 2006 foi adotado no México o instrumento internacional conhecido como

Convenção de Belém do Pará, cujo nome oficial é Convenção Interamericana para Prevenir,

Punir e Erradicar a Violência Contra as Mulheres.

Em 1997 é decretada a Lei sobre Violência Doméstica, que altera diversas normas civis

e penais do Distrito Federal com o intuito de introduzir o direito das pessoas a uma vida livre

de violência doméstica. Neste mesmo ano é instalada a Comissão de Igualdade de Gênero da

80Pasos hacia la igualdade de género en México, 2007. Publicação do Instituto Nacional de las Mujeres (www.inmujeres.gob.mx), agosto, 2007. p.1 81Idem n. 1. pp. 12-14

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 124

Câmara dos Deputados e Senadores e até 2007 todos os Congressos locais com comissões

semelhantes.

No ano de 1998 é criada a Coordenação Geral da Comissão Nacional da Mulher,

responsável pela criação de políticas, diretrizes e critérios para a integração, implementação,

acompanhamento, avaliação e controle do Programa Nacional da Mulher e sua aplicação

pelos órgãos da Administração Pública Federal. O regulamento interno do Ministério das

Relações Exteriores é reformado para estabelecer que o titular desta unidade deva “acordar as

ações necessárias para a aplicação do Programa Nacional da Mulher na política externa e o

que mais for relevante para o cumprimento dos compromissos internacionais do México em

matéria e gênero, em coordenação com o Ministério do Inteiro e seus órgãos

descentralizados”. Também é criada no Ministério do Trabalho e Previdência Social a Direção

Geral de Igualdade de Gênero, a fim de promover o reconhecimento e a valorização do

trabalho feminino por meio de quatro subprogramas: Divulgação e defesa dos direitos

trabalhistas da mulher, Políticas de gênero, Promoção e emprego, e Gestão. É criado no

Instituto de Seguridade e Serviços Sociais para os Trabalhadores do Estado uma Secretaria

Técnica da Direção Geral para Assuntos de Gênero e Equidade.

Em 1999, dentro do Ministério de Desenvolvimento Social, é criada a Secretaria de

Trabalho sobre Enfoque de Gênero, cujo objetivo é integrar a perspectiva de gênero em todos

os programas da agência opera. É assinada a Declaração para incorporar o Enfoque de Gênero

no Ministério do Meio Ambiente, Recursos Naturais e Pesca, que reconhece que, para

alcançar o desenvolvimento sustentável, é essencial a igualdade de direitos, oportunidades e

obrigações para homens e mulheres no acesso, utilização, gestão, utilização e conservação dos

recursos naturais. É publicada no Diário Oficial a Regra Oficial Mexicana NOM190-SSA1-

1999, que estabelece critérios a serem observados na assistência médica e nas orientações

fornecidas aos usuários e usuárias envolvidos em situações de violência familiar. É assinado o

Protocolo Facultativo da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de

Discriminação contra Mulher, de forma a delegar ao Comitê para a Eliminação da

Discriminação contra as Mulheres a função de receber e examinar as comunicações de

pessoas vítimas de qualquer violação por um Estado Parte.

No ano de 2001 o Instituto Nacional das Mulheres é criado com o objetivo de

promover e fomentar condições que possibilitem a não-discriminação, a igualdade de

oportunidades e de tratamento entre gêneros, o pleno exercício de todos os direitos das

mulheres e sua participação em igualdade política, cultural, econômica e social do país. O

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 125

Programa Nacional para a Igualdade de Oportunidades e Não-Discriminação contra as

Mulheres 2000-2006 é apresentado, refletindo a vontade política do governo federal de

introduzir, de maneira transversal, uma abordagem de gênero na concepção, implementação e

avaliação das políticas públicas, a fim de eliminar todas as formas de discriminação contra as

mulheres. São formados comitês interinstitucionais de Ligações de Gênero no governo

federal, como mecanismo para o acompanhamento dos compromissos do Executivo em

matéria de igualdade de gênero.

No México, o Instituto Nacional das Mulheres (INMUJERES) é o mecanismo

responsável por consolidar a ação institucional para alcançar a igualdade entre homens e

mulheres. Trata-se da instituição do Governo Federal encarregada de dirigir a política

nacional para alcançar a igualdade de oportunidades entre mulheres e homens, por meio da

institucionalização e transversalização da perspectiva de gênero na ações do Estado mexicano.

Seu objetivo é promover e incentivar as condições que dêem lugar a não discriminação,

igualdade de oportunidades e tratamento entre os gêneros, ao exercício de todos os direitos

das mulheres e a sua participação igualitária na vida política, cultural, econômica e social do

país82.

Em 2002 o Protocolo Facultativo da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas

de Discriminação contra Mulher é ratificado, estabelecendo um mecanismo de fiscalização e

vigilância que assegura o cumprimento da Convenção, o que significa uma ampla garantia

para as mulheres mexicanas. São criadas instâncias para o avanço da mulher no âmbito da

Federação, de forma que atualmente todos os entes da Federação contam uma instancia

específica para tanto. O Acordo Nacional para a Igualdade entre o INMUJERES e os

Ministérios do Estado é assinado, no qual se comprometem a cumprir os objetivos do

PROIGUALDADE, programa especial do Governo para promoção da igualdade, e a

incorporá-los em seus programas e políticas.

No ano de 2003 é publicada a Lei Federal para Prevenir e Eliminar a Discriminação que

tem por objetivo prevenir e eliminar todas as formas de discriminação exercidas contra

qualquer pessoa na acepção do artigo 1º da Constituição Política dos Estados Unidos

Mexicanos, bem como promover a igualdade de oportunidades e de tratamento. Também é

publicada a Lei da Comissão Nacional para o Desenvolvimento dos Povos Indígenas que rege

as atividades da Comissão no sentido da orientação, coordenação, promoção, apoio,

promoção, acompanhamento e avaliação dos programas, projetos, estratégias e ações para o

82Disponível em http://www.inmujeres.gob.mx/.Último acesso em 29.03.2009.

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público e para o desenvolvimento sustentável dos povos indígenas e comunidades, em

conformidade com o artigo 2 º da Constituição Política dos Estados Unidos do México. É

criada a Comissão Especial para Conhecer e Acompanhar as Investigações Relacionadas aos

Feminicídios na República Mexicana e Aplicação da Justiça, a fim de relatar o status de

investigações relacionadas à violência feminicida e o andamento da administração da justiça

no país.

Em 2004 é publicada a Lei Geral do Desenvolvimento Social, garantindo o acesso aos

programas de desenvolvimento social e a igualdade de oportunidades, bem como a superação

da discriminação e da exclusão social, agindo sob o princípio do respeito a diversidade, que

inclui o reconhecimento em termos de gênero. É realizada a IX Conferência Regional sobre a

Mulher da América Latina e do Caribe (CEPAL), quando é adotado o Consenso do México,

que reafirma o compromisso com os objetivos da Plataforma de Ação da Quarta Conferência

Mundial sobre Mulher (Pequim, 1995). É criado o Mecanismo de Acompanhamento da

Implementação da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência

Contra as Mulheres “Convenção de Belém do Pará (MESECVI) cuja finalidade é fiscalizar o

cumprimento da Convenção, único instrumento juridicamente vinculante com alcance

internacional sobre a matéria. Também é criada a primeira instancia da mulher no âmbito

municipal, de maneira que em meados de 2007 tinham sido criadas 288 instâncias em 28

entidades.

No ano de 2005 foi implantado o Programa de Institucionalização da Perspectiva de

Gênero na Administração Pública Federal, no sentido de modificar a infra-estrutura

institucional em seu regulamento, as atividades e relacionamento com o pessoal para

transformar a dinâmica institucional e proporcionar o acesso não discriminatório das mulheres

na administração pública. Além do Ministério da Administração Interna, entidade que mais

demonstrou compromisso com o Programa, já existem 20 agências com o Programa

estabelecido.

Em 2006 é assinado o projeto “Reforço da governabilidade com enfoque de gênero e da

participação política das mulheres no âmbito local”, que inclui ações específicas para

aumentar a liderança das mulheres em áreas indígenas, favorecer políticas públicas

igualitárias e reformar códigos municipais e leis estaduais discriminatórias. No dia 2 de

agosto de 2006 é publicada no Diário Oficial a Lei Geral para a Igualdade Mulheres e

Homens. É criado o Departamento Especial para Atenção de Delitos Relacionados com Atos

de Violência contra as Mulheres, cuja missão é garantir o cuidado e a administração da justiça

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para as mulheres, para criar uma cultura de respeito pelos direitos humanos e por vida livre de

violência. O Centro de Estudos para a Avanço das Mulheres e da Igualdade de Gênero é

estabelecido para contribuir com a melhora da condição econômica, social e política das

mexicanas e promover um melhor equilíbrio na distribuição de oportunidades, recursos e

poder entre mulheres e homens.

No dia 1º de fevereiro de 2007, é publicada a Lei Geral de Acesso das Mulheres a uma

Vida Livre de Violência. É firmado o Acordo Nacional para Igualdade entre Mulheres e

Homens, no qual o Governo mexicano se compromete a garantir as condições de vida sem

violência e discriminação, com igualdade de oportunidades e exercício pleno dos direitos das

mulheres, assim como sua participação equitativa em todas as esferas da vida. O acordo foi

assinado por 15 governadores. É instalado o Sistema Nacional para Prevenir, Cuidar, Punir e

Erradicar a Violência contra as Mulheres que visa coordenar os esforços conjuntos,

ferramentas, políticas, serviços e ações de prevenção, cuidado, punição e erradicação da

violência contra as mulheres. O Sistema consiste em nove agências da Administração Pública

e nos mecanismos para a promoção das mulheres nos Estados federativos.

4.3.2 A Lei Geral para Igualdade entre Mulheres e Homens

Apresentada pelo Senador Lucero Saldaña, do Partido Revolucionário Institucional

(PRI), regulamenta o artigo quarto Constituição mexicana, que prevê a igualdade jurídica

entre mulheres e homens. Reformada em 1974, a Carta Magna dos Estados Unidos

Mexicanos estabeleceu a igualdade entre mulheres e homens, mas não possuía

regulamentação no sentido garantir efetivamente a igualdade de direitos e de oportunidades

considerando as desvantagens sofridas em conseqüência da desigualdade de gênero.

A Lei estabelece a integração entre as três esferas de Poder na formulação de políticas e

leis, e põe em prática mecanismos de coordenação para alcançar a harmonização legislativa e

implementação de políticas e programas de não-violência e de igualdade entre mulheres e

homens em todos os três níveis do governo.

Seu principal objetivo é o de regular e assegurar a igualdade entre mulheres e homens e

sugerir orientações e mecanismos institucionais para orientar a nação para a realização da

igualdade material no âmbito público e privado, no sentido de promover o empoderamento

das mulheres. As suas disposições são de ordem pública e interesse social geral e de execução

em todo o país. A Lei promove seis áreas: vida econômica, participação e representação

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política equilibrada, igualdade de acesso aos direitos sociais e à vida civil, a diversificação

dos papéis e à eliminação de estereótipos, bem como o direito à informação e participação

social.83

Liliana Rojero, Secretária Executiva do Instituto Nacional das Mulheres, em entrevista

concedida à imprensa, apresenta a Lei em três componentes.

Em primeiro, a Lei estabelece o Programa Nacional de Igualdade entre Mulheres e

Homens. Trata-se de programa especial que alinha os objetivos estratégicos das entidades

públicas de forma transversal. Liliana ressalta que o Programa corrobora o Plano Nacional de

Desenvolvimento do presidente Felipe Calderón, que estabelece na Estratégia 3.5 a obrigação

de garantir a igualdade entre mulheres e homens até 2012, por meio da transversalidade da

igualdade de gênero, de forma que todas as entidades públicas incluam no seu plano de

trabalho obrigações para com a igualdade de gênero.

O segundo é o Sistema Nacional para Igualdade de Gênero, que é composto por todas as

entidades da Administração Pública Federal e coordenado pelo Instituto Nacional das

Mulheres (INMUJERES).

O terceiro componente é a Comissão Nacional dos Direitos Humanos e seu papel de

acompanhar o andamento das ações do Programa e do Sistema, os resultados e o impacto das

políticas públicas na vida da mulher e da sociedade. Assim, a Comissão Nacional dos Direitos

Humanos é o órgão encarregado de fazer recomendações e punições as obrigações da Lei não

forem cumpridas.

Interessante notar que a Lei utiliza indistintamente os termos sexo e gênero,

confundido-os por diversas vezes (MANZUR, p. 263). O termo sexo se refere a diferenças

biológicas e físicas entre mulheres e homens, ao que gênero é uma construção cultural do

sexo. Importante ressaltar, entretanto, o entendimento clássico de que o gênero é construído

culturalmente é questionado por teóricas como Judith Butler, para quem a idéia de que o

gênero é construído sugere certo determinismo de significados do gênero, inscritos em corpos

anatomicamente diferenciados, sendo esses corpos compreendidos como recipientes passivos

de uma lei cultural inexorável (BUTLER, p. 26).

83Idem, p. 15.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 129

Lei Geral para Igualdade entre Mulheres e Homens, México, 2006

Resumo estruturado

Título I

Capítulo I - Disposições Gerais

a) Objeto da lei:

· Assegurar a igualdade entre homens e mulheres;

· Propor diretrizes e mecanismos institucionais para concretizar a igualdade no

âmbito público e privado, promovendo o empoderamento das mulheres.

b) Princípios:

· São princípios orientadores dessa lei a igualdade, da não discriminação, eqüidade e

todos os outros contidos na Constituição dos Estados Unidos Mexicanos;

· A igualdade entre homens e mulheres implica a eliminação da discriminação em

todas as esferas da vida, que é gerada pelos membros de ambos os sexos.

c) Pessoas beneficiadas:

· Todas as mulheres e homens que se encontrem em território mexicano, que devido

ao seu sexo, independentemente da idade, estado civil, profissão, cultura, origem étnica ou

nacionalidade, condição social, saúde, religião, opinião ou habilidades diferentes, se

encontrem em algum tipo de desvantagem, em violação ao principio da igualdade aqui

estabelecido.

d) Sanções por descumprimento:

· A transgressão dos princípios e dos programas previstos por esta lei deve ser punida

de acordo com as disposições da Lei Federal de Responsabilidade dos Servidores Públicos e,

eventualmente, pelas leis aplicáveis aos Estados que regulem esta matéria;

· Em questões não abrangidas na presente lei serão aplicadas por extensão naquilo

que for apropriado as disposições da Lei Federal para Prevenir e Eliminar a Discriminação, da

Lei da Comissão Nacional de Direitos Humanos, da Lei do Instituto Nacional das Mulheres

(INMUJERES), dos instrumentos internacionais ratificados pelo Estado mexicano e dos

demais ordenamentos aplicáveis à matéria.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 130

e) Definições:

· Ação afirmativa: é o conjunto de medidas temporárias destinadas a acelerar

igualdade entre homens e mulheres;

· Transversalidade: é o processo que garante a integração da perspectiva de gênero

com o objetivo de avaliar as implicações para as mulheres e os homens em qualquer ação

programada, tratando-se de legislação, políticas públicas, atividades administrativas,

econômicas e culturais nas instituições públicas e privadas;

· Sistema Nacional para a Igualdade entre Mulheres e Homens e Programa Nacional

para a Igualdade entre Mulheres e Homens.

Título II – Das autoridades e Instituições

Capítulo I - Distribuição de competências e coordenação interinstitucional

a) Coordenação institucional para aplicação da lei:

· A Federação, em conjunto com o Instituto Nacional das Mulheres, pode assinar

convênios ou acordos de coordenação no sentido de fortalecer suas funções e atribuições em

matéria de igualdade (I), estabelecer mecanismos de coordenação para alcançar a

transversalidade da perspectiva de gênero na função pública nacional (II), estimular a

vinculação interinstitucional (III), coordenar as tarefas em matéria de igualdade mediante

ações específicas, quando for o caso, afirmativas, que contribuam com uma estratégia

nacional (IV), e propor iniciativas e políticas de cooperação para o desenvolvimento de

mecanismos de participação igualitária de mulheres e homens, no âmbito da economia, da

tomada de decisões e na vida social, cultural e civil;

· Esses acordos devem considerar os recursos orçamentários, matérias e humanos

disponíveis para execução dessa lei;

· A área responsável da Comissão Nacional de Direitos Humanos deve intervir no

acompanhamento e avaliação dos resultados obtidos na execução desse convênios.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 131

Capítulo II – Do Governo Federal

a) Competências do Governo Federal:

· Compete ao Governo Federal: conduzir a Política Nacional em Matéria de

Igualdade entre mulheres e homens (I), elaborar a Política Nacional em Matéria de Igualdade,

de acordo com o estabelecido nessa lei (II), projetar e implementar os instrumentos da referida

Política (III), coordenar as ações para a transversalidade da perspectiva de gênero, assim

como criar e aplicar o Programa, com os princípios indicados nessa lei (IV), garantir a

igualdade de oportunidades através da adoção de políticas, programas, projetos e instrumentos

compensatórios como ações afirmativas (V), celebrar acordos nacionais e internacionais de

coordenação e cooperação em matéria de igualdade de gênero (VI), incorporar no Orçamento

de Despesas da Federação a alocação de recursos para cumprimento da Política Nacional

sobre Igualdade (VII) e outros que esta lei e outras leis aplicáveis conferirem (VIII);

· As autoridades dos três níveis de governo são responsável pela execução da Lei,

sem prejuízo das atribuições específicas que lhes são confiadas.

Capítulo III – Dos Estados e do Distrito Federal

a) Competências dos Estados e do Distrito Federal:

· Prevê que o Congresso dos Estados e Assembléia Legislativa do Distrito Federal,

com base em suas respectivas constituições, emita as leis necessárias para promover os

princípios, políticas e objetivos previstos na Constituição e nesta lei sobre a igualdade de

gênero;

· Compete aos governadores conduzir a política local em matéria de igualdade entre

mulheres e homens (I), e criar e fortalecer os mecanismos institucionais para promoção e

realização da igualdade de gênero (II), desenvolver as políticas locais, com uma projeção de

médio e largo alcance, devidamente alinhadas com o Programa Nacional (III), promover em

coordenação com os serviços da Administração Pública Federal a execução desta Lei (IV).

Capítulo IV – Dos Municípios

a) Competências dos Municípios:

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 132

· Cabe aos Municípios implementar política municipal em matéria de igualdade entre

mulheres e homens em consonância com as políticas nacionais e locais correspondentes (I),

contribuir com o Governo Federal e com o governo da entidade federativa correspondente na

consolidação dos programas em matéria de igualdade (II), propor ao Poder Executivo da

entidade em questão suas necessidades orçamentárias para a implementação da igualdade

(III); conceber, desenvolver e implementar programas de conscientização e de

desenvolvimento de acordo com a região, em áreas onde esta Lei estabelece (IV), e promover

a participação social, política e cívica para atingir a igualdade entre mulheres e homens, tanto

nas zonas urbanas como nas zonas rurais (V).

Título III

Capítulo I – Da Política Nacional em Matéria de Igualdade

a) Ações e diretrizes da Política Nacional

· Estabelece as ações condutoras para alcançar a igualdade na vida econômica,

política, social e cultural, considerando as seguintes diretrizes: promover a igualdade entre

mulheres e homens em todas as esferas da vida (I), assegurar que o planejamento orçamental

incorpore a perspectiva de gênero, para apóie a transversalidade e preveja o cumprimento dos

programas, projetos e ações para a igualdade entre mulheres e homens (II), incentivar a

participação e representação política equilibrada entre mulheres e homens (III), promover a

igualdade de acesso e o pleno gozo dos direitos sociais para as mulheres e homens

(IV), promover a igualdade entre mulheres e homens na vida civil (V), promover a

eliminação dos estereótipos baseados no sexo (VI).

Capítulo II – Dos instrumentos de política em matéria de igualdade entre mulheres e

homens

b) Instrumentos para a aplicação Política Nacional

· Os instrumentos da Política Nacional em Matéria de Igualdade entre mulheres e

homens são o Sistema Nacional para Igualdade entre Mulheres e Homens (I), o Programa

Nacional para Igualdade entre Mulheres e Homens e a Execução em matéria de igualdade

entre Mulheres e Homens (III);

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 133

· Na concepção, desenvolvimento, implementação, avaliação e acompanhamento

dos instrumentos da política de igualdade entre mulheres e homens deverão ser observados os

princípios e objetivos aqui previstos;

· O Poder Executivo é responsável pela implementação do Sistema e do Programa

por meio dos órgãos correspondentes;

· O Instituto Nacional das Mulheres é responsável por coordenar o Sistema e

determinar diretrizes para o estabelecimento de políticas públicas em matéria de igualdade;

· A Comissão Nacional de Direitos Humanos é responsável pelo acompanhamento na

execução, avaliação e monitoramento da Política Nacional em matéria de igualdade.

Capítulo III – Do Sistema nacional para igualdade entre mulheres e homens

a) Definição e objetivos do Sistema Nacional

· O Sistema Nacional para igualdade entre Mulheres e Homens é o conjunto orgânico

e articulado de estruturas, relações funcionais, métodos e procedimentos que estabelecem as

dependências e entidades da Administração Pública Federal entre si, com as organizações de

diversos grupos sociais e com as autoridades dos Estados, do Distrito Federal e dos

Municípios, a fim de efetuar ações de comum acordo destinadas à promoção e realização da

igualdade entre mulheres e homens.

b) Papel do INMUJERES no Sistema Nacional

· O Instituto Nacional das Mulheres, por meio de seu Conselho Diretor, coordenará

as ações que criam o Sistema Nacional e elaborará as normas para sua organização e

funcionamento, bem como medidas de articulação com outras dispositivos nacionais ou

locais.

c) Funções do Conselho Administrativo do INMUJERES no Sistema Nacional

· O Conselho Administrativo do Instituto Nacional das Mulheres deverá: propor

diretrizes para a Política Nacional nos termos da legislação aplicável e de acordo com o

disposto pelo Executivo Federal (I), coordenar os programas para igualdade entre mulheres e

homens das agências e entidades da Administração Pública Federal, bem como determinar os

agrupamentos de funções e programas afins necessários (II), promover, coordenar e realizar a

revisão de programas e serviços em matéria de igualdade (III); determinar a periodicidade e

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 134

características das informações que os organismos da Administração Pública Federal devem

fornecer (IV), apresentar propostas aos organismos competentes sobre a alocação de recursos

requeridos pelos programas de igualdade (V), apoiar a coordenação entre as instituições da

Administração Pública Federal para formar e treinar seus funcionários sobre a igualdade entre

homens e mulheres (VI), promover a participação da sociedade civil na promoção da

igualdade entre mulheres e homens (VII), o que mais se faça necessário para os cumprimento

dos objetivos do Sistema Nacional (VII);

· O Sistema Nacional tem os seguintes objetivos: promover a igualdade de gênero e

contribuir para a erradicação de todas as formas de discriminação (I), contribuir para o

avanço das mulheres (II), contribuir com a modificação de estereótipos que discriminam e

incentivam a violência de gênero (III), e promover o desenvolvimento de programas e

serviços que fomentem a igualdade entre mulheres e homens (IV).

b) Coordenação institucional do Sistema Nacional

· Os governos dos Estados e do Distrito Federal devem contribuir, no âmbito de suas

respectivas competências e nos termos dos acordos de coordenação celebrados com o Instituto

e, se for o caso, com os organismos e entidades da Administração Pública Federal, com a

consolidação e funcionamento do Sistema Nacional. Devem planejar, organizar e

desenvolver, em suas respectivas circunscrições territoriais, sistemas estatais de igualdade

entre mulheres e homens, visando sua participação programática no Sistema Nacional;

· O acordo de ações entre a Federação e o setor privado será realizada por meio de

convênios e contratos em conformidade com: a definição das responsabilidades que assumam

as e os integrantes dos setores social e privado (I), determinação das ações de orientação,

estímulo apoio que esses setores desenvolverão em coordenação com as instituições

correspondentes.

Capítulo IV – Do Programa Nacional para igualdade entre mulheres e homens

a) Elaboração e Execução do Programa Nacional

· O Programa Nacional para a Igualdade entre Homens e Mulheres será proposto

pelo Instituto Nacional das Mulheres e levará em conta as necessidades dos Estados, do

Distrito Federal e dos Municípios, assim como as particularidades da desigualdade em cada

região. Esse programa deve Integrar-se ao Plano Nacional de Desenvolvimento Nacional,

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 135

assim como aos programas setoriais, institucionais e especiais a que se referem a Lei de

Planejamento. Os programas elaborados pelos governos dos Estados e do Distrito Federal,

com visão de médio e longo alcance, indicarão os objetivos, estratégias e linhas prioritárias

de ação, considerando os critérios e instrumentos da Política Nacional de igualdade em

congruência com os programas nacionais;

· O Instituto Nacional das Mulheres deverá revisar o Programa Nacional a cada três

anos;

· Os relatórios anuais do Executivo Federal deverão conter o estado em que se

encontra a execução do Programa, assim como as demais ações relativas ao cumprimento do

estabelecido nesta lei.

Titulo IV

Capítulo I – Dos objetivos e ações da política nacional para igualdade entre mulheres e

homens

a) Objetivo geral da Política Nacional

· A Política Nacional a que se refere o Título III desta Lei, definida no Programa

Nacional e canalizada por meio do Sistema Nacional, deverá desenvolver ações

interelacionadas para atingir os objetivos que devem marcar o caminho da igualdade entre

mulheres e homens, de acordo com os objetivos operacionais e ações específicas a que se

refere este titulo.

Capítulo II – Da igualdade entre mulheres e homens na vida econômica nacional

a) Objetivos e ações para o acesso à igualdade de oportunidades econômicas

· Será objetivo da Política Nacional o fortalecimento da igualdade em relação a:

criação e utilização de fundos para a promoção da igualdade no trabalho e nos processos

produtivos (I), desenvolvimento de ações para promover a integração das políticas públicas

com perspectiva em matéria econômica (II), e promover liderança igualitária (III);

· Para tanto, as autoridades e agências públicas desenvolverão as seguintes ações:

promover a revisão dos sistemas tributários para reduzir os fatores que dificultam a

incorporação das pessoas no mercado de trabalho devido ao seu sexo (I), promover a

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 136

integração das pessoas as quais são relegadas a educação e a formação devido ao seu sexo

(II), promover o acesso ao emprego das pessoas às quais são relegados cargos de direção

particularmente devido ao seu sexo (III), apoiar o aperfeiçoamento e a coordenação dos

sistemas estatísticos nacionais, para um melhor entendimento das questões relativas à

igualdade entre mulheres e homens e na estratégia nacional de trabalho (IV), reforçar a

cooperação entre os três níveis de governo para fiscalizar a execução das ações aqui previstas

(V), financiar as ações de informação e conscientização destinadas a promover a igualdade

entre mulheres e homens (VI), articular todos os projetos financiados para o avanço das

mulheres (VII), evitar a segregação de pessoas mercado de trabalho com base no sexo (VIII),

projetar e implementar diretrizes que assegurem a igualdade na contratação de pessoal na

administração pública (IX), projetar políticas e programas de desenvolvimento e redução da

pobreza com perspectiva de gênero (X), e criar incentivos e certificados de igualdade que

serão concedidos anualmente às empresas que tenham implementado políticas e práticas em

matéria de igualdade (X).

Capítulo III – Da participação e representação política equilibrada das mulheres e dos

homens

a) Objetivos e ações para garantir a participação e representação política equilibrada

entre mulheres e homens

· A Política Nacional proporá mecanismos de funcionamento adequados para a

participação equitativa entre mulheres e homens e na tomada de decisões políticas e sócio-

econômicas;

· Para tanto, as autoridades correspondentes desenvolverão as seguintes

ações: incentivar o trabalho parlamentar com a perspectiva de gênero (I), assegurar que a

educação em todos os seus níveis seja conduzida com igualdade entre mulheres e homens e se

crie consciência da necessidade de eliminar toda forma de discriminação (II), avaliar por

intermédio da área competente da Comissão Nacional de Direitos Humanos a participação

equilibrada entre mulheres e homens em cargos de eleição popular (III), promover

participação e representação equilibrada entre mulheres e homens dentro das estruturas dos

partidos políticos (IV), promover a participação igualitária de mulheres e homens em altos

cargos públicos (V), desenvolver e atualizar estatísticas separadas por sexo, em postos de

decisão e cargos de direção nos setores público, privado e na sociedade civil (VI), e incentivar

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 137

a participação equilibrada e sem discriminação de mulheres e homens nos processos de

seleção, contratação e promoção na carreira de função pública nos poderes Executivo,

Legislativo e Judiciário (VII).

Capítulo IV – Da igualdade de acesso e do pleno exercício dos direitos sociais para

mulheres e homens

a) Objetivos e ações para garantir a igualdade de aceso aos direitos sociais

· A fim de promover a igualdade de acesso aos direitos sociais e o seu pleno

exercício, serão objetivos da Política Nacional: melhorar o conhecimento e a aplicação da

legislação existente no âmbito do desenvolvimento social (I), supervisionar a integração da

perspectiva do gênero ao conceber, executar e avaliar as políticas e atividades públicas,

privadas e sociais que impactam a vida quotidiana (II), e revisão permanentemente das

políticas de prevenção, assistência, punição e erradicação da violência de gênero (III).

· Para tanto, as autoridades correspondentes desenvolverão as seguintes ações:

assegurar o acompanhamento e a avaliação da implementação da legislação existente nos três

níveis de governo, em consonância com os instrumentos internacionais (I), promover a

conscientização da legislação e da jurisprudência sobre a matéria de igualdade na sociedade

(II), difundir na sociedade a consciência de seus direitos e mecanismos para a sua

exigibilidade (III), integrar o princípio da igualdade no âmbito da proteção social

(IV), promover ações que garantam a igualdade de acesso e de mulheres e de homens à

alimentação, educação e saúde (V), e promover campanhas nacionais de conscientização para

mulheres e homens sobre a sua participação eqüitativa em atenção às pessoas que dela

dependem (VI).

Capítulo V – Da igualdade entre mulheres e homens na vida civil

a) Objetivos e ações em matéria de igualdade na vida civil

· A fim de promover e assegurar a igualdade na vida civil de mulheres e homens,

será objetivo da Política Nacional: avaliar a legislação em matéria de igualdade entre

mulheres e homens (I), promover os direitos específicos das mulheres como direitos humanos

universais (II), e erradicar as diversas formas de violência de gênero (III);

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 138

· Para tanto, as autoridades correspondentes desenvolverão as seguintes ações:

melhorar o sistema de inspeção no que diz respeito às regras sobre a igualdade de

remuneração (I), promover a investigação com perspectiva de gênero em matéria de saúde e

de segurança no trabalho (II), promover a formação das autoridades responsáveis pela

administração e gestão da justiça no que diz respeito à igualdade entre mulheres e homens

(III), apoiar as atividades de diálogo público relativas à legislação sobre a igualdade de

mulheres e homens (IV), reforçar a cooperação e intercâmbio sobre direitos humanos e

igualdade entre homens e mulheres com organizações não-governamentais e organizações

internacionais de cooperação para o desenvolvimento (V), promover reformas legislativas e

políticas públicas para prevenir, tratar, punir e erradicar a desigualdade nos âmbitos público e

privado (VI), estabelecer mecanismos para o atendimento das vítimas de todos os tipos de

violência contra as mulheres (VII), e promover as investigações em matéria de prevenção,

assistência, punição e erradicação da violência contra as mulheres (VIII).

Capítulo VI – Da eliminação dos estereótipos estabelecidos em função do sexo

a) Objetivos e ações para eliminar os estereótipos de gênero

· Será objetivo da Política Nacional a eliminação dos estereótipos que incentivem a

discriminação e a violência contra as mulheres;

· Para tanto, as autoridades correspondentes desenvolverão as seguintes ações:

promover ações que contribuam com a eliminação de toda discriminação baseada em

estereótipos gênero (I), desenvolver atividades de conscientização sobre a importância da

igualdade entre mulheres e homens (II), e acompanhar a integração de uma perspectiva de

gênero em todas as políticas públicas (III).

Capítulo VII – Do direito à informação e participação social em matéria de igualdade entre

mulheres e homens

a) Acesso à informação sobre os programas e instrumentos da política de igualdade e

participação social

· Toda pessoa terá o direito a que as autoridades e organismos públicos coloquem à

sua disposição as informações que lhe sejam solicitadas sobre políticas, instrumentos e

normas sobre a igualdade entre mulheres e homens.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 139

· O Executivo Federal, por meio do Sistema, de acordo com suas competências,

promoverá a participação da sociedade no planejamento, concepção, execução e avaliação dos

programas e instrumentos da política de igualdade entre mulheres e homens presentes nessa

lei;

· Os acordos e convênios em matéria de igualdade celebrados pelo Executivo e suas

unidades com os setores público, social e privado, poderão versar sobre todos os aspectos

considerados nos instrumentos de política sobre igualdade, bem como auxiliar no trabalho de

controle e demais ações operacionais previstas nessa lei.

Título V

Capítulo I – Da execução em matéria de igualdade entre mulheres e homens

a) Ações para monitorar e cumprir a aplicação desta lei

· Nos termos do disposto anteriormente, a Comissão Nacional de Direitos Humanos é

responsável pelo monitoramento da aplicação, avaliação e acompanhamento da política

nacional em matéria de igualdade entre mulheres e homens. Tem por objetivo a construção de

um sistema de informação com capacidade para conhecer a situação da igualdade entre

mulheres e homens, e do efeito das políticas públicas aplicadas nesta matéria;

· A Execução deverá ser realizada por pessoas de reconhecida trajetória e

especializadas na análise da igualdade entre homens e mulheres;

· A Execução em matéria de igualdade entre Mulheres e Homens consistirá em:

receber informações sobre medidas e atividades que a administração pública implemente em

matéria de igualdade entre mulheres e homens (I), avaliar o impacto na sociedade das

políticas e medidas que afetam os homens e as mulheres em matéria de igualdade (II), propor

a realização de estudos e relatórios técnicos de diagnóstico sobre o estado das mulheres e

homens em termos de igualdade (III), divulgar informações sobre as diversos aspectos

relacionados com a igualdade entre mulheres e homens (IV), o que mais for necessário à

consecução dos objetivos desta lei;

· De acordo com o estabelecido na Lei da Comissão Nacional para os Direitos

Humanos esta poderá receber denúncias, fazer recomendações e apresentar relatórios

especiais sobre a matéria objeto desta lei.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 140

Disposições Transitórias

5. CONCLUSÃO

A pesquisa realizada em direito comparado revela que as políticas de reconhecimento

da mulher percorreram as seguintes fases: num primeiro momento, foram adotadas medidas

que proibiam a discriminação; depois, organizaram-se projetos específicos para mulheres; por

fim, adotou-se, numa terceira etapa, o princípio da transversalidade, que estabelece o dever de

considerar a questão de gênero como um problema presente em todos os assuntos, não

havendo tema em que a condição de mulheres e de homens possa ser irrelevante.

Nessas três etapas, o objetivo geral das políticas adotadas é o mesmo: interferir nas

relações sociais marcadas pela desigualdade. O que distingue uma política da outra são seus

pressupostos: proibir a discriminação pressupõe que indivíduos ou grupos de indivíduos não

possam ser diferenciados uns dos outros em razão de suas características; organizar projetos

para mulheres ou incluir as questões de gênero como tema obrigatório em qualquer esfera,

tudo isso pressupõe, ao contrário, que indivíduos ou grupos de indivíduos sejam diferenciados

precisamente em função de suas características.

A proibição da discriminação assegura que o direito já existente alcance também grupos

dele originalmente excluídos, mas não traz consigo a obrigação de promover o

reconhecimento e a inclusão da mulher na sociedade. Esse dever foi estabelecido tanto no

nível internacional, como nos ordenamentos nacionais dos países estudados, e, ao sê-lo, criou

um divisor de águas: o poder público deve agora agir, não somente aplicando normas

existentes, mas também criando novas regras.

Para cumprir a obrigação estabelecida, haverá à disposição do Estado, pelo menos, as

duas estratégias acima mencionadas: organizar projetos específicos para mulheres e/ou

assumir como conceito orientador da política de reconhecimento o princípio da

transversalidade.

Exemplo do primeiro caso são os sistemas de quotas, estratégia adotada com o objetivo

de aumentar a participação feminina nas atividades em que o número de mulheres seja

relativamente reduzido. Há, pelo menos, dois regimes que podem ser empregados para atingir

essa meta: de um lado, um sistema de quotas rígido, em que se reservam vagas, a serem

preenchidas independentemente da qualificação da pessoa e do fato de mulheres estarem ou

não sub-representadas no setor em questão; de outro lado, um sistema flexível, em que, para o

preenchimento de vagas, exige-se uma combinação de qualificação pessoal com sub-

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 141

representação do gênero no ambiente examinado. A primeira alternativa, por privilegiar

apenas o sexo, despreza o mérito. Se, contudo, fosse adotado tão-somente o critério de

merecimento, não haveria por que implantar um sistema de quotas para beneficiar aquelas

mulheres que, por serem qualificadas, não necessitam do benefício. Mas, se, além da

qualificação pessoal, for também necessário que as mulheres estejam sub-representadas, nesse

caso o benefício, por não ser estendido indiscriminadamente, reveste-se de legitimidade, pelo

menos à primeira vista.

O princípio da transversalidade aponta para os mesmos objetivos das políticas que

buscam a igualdade entre homens e mulheres mediante adoção de programas como o sistema

de cotas, porém, entre as duas estratégias, há uma diferença: agora, existe o reconhecimento

explícito que essa meta somente será alcançada após um longo processo, no qual a relevância

das questões de gênero deverá ser consideras não apenas nas políticas de pessoal, mas

também nas decisões sobre a organização do trabalho e da produção.84 Princípio moderno a

que se recorre para promover a igualdade dos sexos, a transversalidade não busca criar

programas específicos para mulheres, em áreas específicas, mas sim levantar questões de

gênero em qualquer âmbito.

Na administração pública, o princípio da transversalidade enseja uma série de

procedimentos de investigação, tanto no sentido de descobrir, no ordenamento jurídico, a

existência disfarçada de discriminação e de déficit de participação nos diversos setores que

compõem a sociedade, como no sentido de identificar normas que contribuem para a

sedimentação de valores em que se perpetuam os antigos papéis atribuídos, respectivamente, a

homens e mulheres. Quando aplicado ao direito, esse princípio pode estimular o surgimento

de uma ciência jurídica feminista,85 a qual procurará, em sua análise, mostrar que, não

obstante a igualdade formal entre os sexos, as normas jurídicas são estabelecidas para

assegurar uma situação concebida tão-somente por uma visão masculina do mundo. Não se

trata mais de denunciar normas jurídicas que expressamente discriminam as mulheres, e sim

de tornar presente necessidades femininas que são ignoradas sob o manto da igualdade.

O princípio da transversalidade permite que tudo a envolver homem e mulher possa

ser problematizado: das expressões idiomáticas à ciência do direito, passando pelo jardim da

infância, pelo ensino fundamental, médio e superior, e, sem dúvida, pelo ambiente de

84KOCHER, “Vom Diskriminierungsverbot zum “Mainstreaming” – Anforderungen an eine Gleichstellungspolitik für die Privatwirtschaft”. In: Recht der Arbeit – RdA, Heft 3, 2002, p. 171. 85SACKSOFSKY, Was ist....

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trabalho, nada há que exclua, a priori, o enfoque pelo qual os membros da sociedade

aparecem como mulheres e homens, e não como brancos e negros, ricos e pobres, empregados

e desempregados ou qualquer outra identificação da pessoa diferente daquela que a considera

segundo seu gênero e as necessidades que dele decorrem. Essa estratégia não conduz o

enfoque apenas para um dos sexos, mas para os dois, permitindo que sejam percebidos num e

noutro suas respectivas características e necessidades.

As perguntas que passam a orientar a ação nesse sentido são formuladas dentro dos

diversos campos específicos do direito, tornando presente as questões relativas à igualdade

(ou às diferenças) dos gêneros, naquela área. No direito penal, por exemplo, pode-se fazê-lo,

como vimos acima, no relatório sobre o direito alemão, comparando a punição, pelo mesmo

crime, aplicada a homens e a aplicada a mulheres; no direito de família, podemos confrontar

os direitos que pai e mãe casados terão sobre seus filhos, numa separação litigiosa, na qual

não seja possível a guarda compartilhada. Podemos também confrontar os direitos de pai e

mãe solteiros, comparando as prerrogativas e obrigações que ambos terão em relação a seus

filhos. Enfim, o cardápio é extenso, porém, o mais importante a ser retido dessa investigação

em direito comparado é isto, as políticas de reconhecimento seguiram estratégias distintas ao

longo do tempo, sem que uma superasse por completo a outra. O princípio da

transversalidade, combinado com o princípio da igualdade de todos perante a lei, exigirá que

se examine a situação dos dois sexos, assegurando que todos os desfavorecidos, homens e

mulheres, tenham direito a medidas que lhes permitam restaurar (ou conquistar) o equilíbrio.

Muito embora as leis compartilhem o momento histórico do ponto de vista teórico, as

soluções são diferentes.

Há que se estabelecer uma diferença entre a lei alemã que pretende regular a

administração pública direta e indireta e as leis espanhola e mexicana que pretendem regular

diversos aspectos da vida pública e privada da mulher. Muito embora se possa diagnosticar o

gender mainstreaming nas três leis, já que este não se define pelo número de áreas reguladas,

mas pela técnica que insere a questão da igualdade nos mais diversos âmbitos, as leis

espanhola e mexicana levam mais adiante o princípio. No caso da lei espanhola, o próprio

preâmbulo, como foi exposto anteriormente, explicita a intenção de se erigir um código-lei de

igualdade efetiva entre homens e mulheres. A lei mexicana, por sua vez, estabelece uma

estrutura institucional que possa dar conta dos diversos âmbitos em que a desigualdade pode

se manifestar.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 143

Há que se reconhecer que as três leis apresentam preocupação com as áreas de trabalho

e, em alguma medida, de representação política. A lei alemã trata especificamente do

funcionalismo público, e as leis espanhola e mexicana, que se pretendem mais gerais, dão

ênfase para as questões trabalho e participação política. No caso da lei espanhola, essas áreas

são as mais especificamente reguladas, conforme foi demonstrado. Na lei mexicana, entre as

ações que deverão ser estabelecidas pelas autoridades, duas questões estão claramente

presentes. O tema da violência, a não ser no que se refere ao abuso sexual no âmbito de

trabalho, não é especialmente regulado por essas leis. No entanto, tanto na Espanha quanto no

México, leis tratando especificamente da violência de gênero já haviam sido editadas antes da

edição das leis de que estamos tratando, tendo sido, em ambos os casos, o marco legislativo

para o início de uma regulamentação de um direito de igualdade entre mulheres e homens.

A lei alemã estabelece regras apenas para o funcionalismo público, não regulando a

atividade do setor privado; as duas outras leis, por sua vez, pretendem estabelecer regras de

igualdade também para as empresas.

Ainda que ambas se pretendam gerais, as estruturas da lei espanhola e da lei mexicana

são muito diferentes. Poder-se-ia afirmar, a partir da exposição feita, que a lei espanhola

03/2007 aparece como um resultado de programas e objetivos. Muito embora a lei seja apenas

um ponto de partida que será desenvolvido a partir de sua aplicação e da disputa por seu

conteúdo, sua edição significa um ponto de chegada no sentido de que ali foram positivadas

reivindicações substantivas, como cotas políticas que já haviam sido implantadas

individualmente em partidos e também em algumas Comunidades Autônomas.

A própria estrutura da lei revela o que estamos dizendo: após o estabelecimento de

princípios gerais e de conceitos, estabelecem-se as diretrizes de atuação em cada uma das

áreas reguladas, e, então, nas disposições adicionais, a lei toma para si o trabalho de promover

alterações em leis específicas, com alto grau de detalhamento, criando deveres para os órgãos

públicos, entes privados e sindicatos. A lei não atribui competências normativas para realizar

seus objetivos, apesar de também prever órgãos de fiscalização e controle; estabelece medidas

concretas como mudança de direitos previdenciários, deveres para empresas e sanções

específicas para o descumprimento. Pode-se dizer, assim, que ela apresenta seus próprios

mecanismos específicos de implementação, e, com a alteração pontual de diversas leis,

desautoriza uma discussão posterior acerca de se aquelas leis que ela altera teriam sido

revogadas ou não pelos novos princípios estabelecidos na lei. Com isso, exerce um controle

sobre a futura interpretação de leis à luz da lei de igualdade.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 144

A lei mexicana, por sua vez, estabelece regras gerais, através da atribuição aos entes

federativos e sistemas e comissões por ela criados de deveres de elaborar políticas, normas,

fiscalizar ou implementar determinado objetivo. Isto não quer dizer que a lei não apresente

objetivos concretos: por exemplo, ela trata da representação eqüitativa na estrutura dos

partidos políticos, nos cargos de eleição popular e nos altos cargos públicos, no Capítulo

Terceiro. No entanto, estabelece apenas que cabe às autoridades competentes desenvolver

estes objetivos, não estabelecendo normas cogentes, como faz a lei espanhola com a

instituição da obrigatoriedade de representação paritária na própria inscrição dos partidos

políticos nas eleições, ensejando, portanto, a reclamação judicial direta para questionar

quaisquer problemas daí advindos, como efetivamente ocorreu nas eleições locais de 2007.

Para a implementação dos objetivos da lei mexicana, serão necessárias medidas a

serem estabelecidas pelos entes a que a lei atribui responsabilidades. A própria linguagem

utilizada pela lei demonstra seu caráter de um programa de ação: “serão objetivos da Política

Nacional...”, “promover os direitos específicos das mulheres como direitos humanos

universais”, “as autoridades correspondentes desenvolverão as seguintes ações: melhorar...”,

“impulsionar...”, “apoiar...”, “fomentar...” ou “estabelecer os mecanismos para...”. Nesse

sentido, é um ponto de partida, estabelecendo um plano a partir do qual direitos e deveres

específicos serão estabelecidos futuramente.

Assim, muito embora a lei mexicana pretenda estabelecer políticas também para o setor

privado, ela não impõe deveres diretamente a sujeitos privados, deixando a elaboração destes

deveres para as autoridades competentes. Isto é explícito no artigo 3o da lei, que estabelece

que as transgressões a ela serão sancionadas de acordo com o disposto na Lei Federal de

Responsabilidades dos Servidores Públicos ou seu correspondente nas autoridades

federativas.

O estabelecimento de deveres ao setor privado, na lei espanhola, se expressa

principalmente na obrigatoriedade de elaboração de planos de igualdade por empresas com

mais de 250 funcionários, o que é incentivado pelas preferências dadas na contratação com o

setor público às empresas que cumpram com os objetivos estabelecidos de igualdade entre

mulheres e homens. Além disso, a discriminação é desestimulada por meio de sanções

impostas a todos aqueles que discriminarem pessoas que tomem a iniciativa de denunciar

comportamento ou decisão discriminatória.

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Certas inovações das leis apresentadas são muito importantes para se pensar eventuais

reformas legislativas no Brasil, tendo em vista que nossa legislação não contempla tais

técnicas e institutos no que se refere à proteção e promoção dos direitos da mulher. Ressalta-

se a transversalidade, que se observa nos três diplomas normativos, e a originalidade da lei

espanhola ao aliar esse com o da co-responsabilização e conciliação entre vida pessoal,

familiar e profissional do homem e da mulher.

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Esta pesquisa reflete as opiniões dos seus autores e não do Ministério da Justiça 146

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