semântica estilística

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Indaial – 2020 SEMÂNTICA E ESTILÍSTICA Prof. a Carmen Brunelli de Moura 1 a Edição

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Indaial – 2020

Semântica e eStilíStica

Prof.a Carmen Brunelli de Moura

1a Edição

Copyright © UNIASSELVI 2020

Elaboração:

Prof.a Carmen Brunelli de Moura

Revisão, Diagramação e Produção:

Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri

UNIASSELVI – Indaial.

Impresso por:

M929s

Moura, Carmen Brunelli de

Semântica e estilística. / Carmen Brunelli de Moura. – Indaial: UNIASSELVI, 2020.

228 p.; il.

ISBN 978-85-515-0451-2

1. Estilo literário. - Brasil. Centro Universitário Leonardo Da Vinci.

CDD 001

III

apreSentaçãoA área de estudos da linguagem tem ampliado suas fronteiras na

busca de dar uma visibilidade maior ao seu objeto de estudo. A Semântica, a Pragmática e a Estilística são disciplinas que procuram delimitar seu espaço, isso se deve principalmente à própria definição de significado, sentido e estilo. Ambas foram deixadas por um tempo às margens da Linguística, por estarem atreladas ao contexto filosófico e literário.

Para que os estudos semânticos, pragmáticos e estilísticos voltem a ocupar um lugar de destaque entre as pesquisas em línguas naturais, é preciso considerar sua heterogeneidade, dinamicidade e caráter polissêmico, compreendendo que há vários caminhos científicos para se estudar os sentidos produzidos na enunciação, assim como o estilo que deve ser evidenciado no trabalho de escolhas realizado pelo sujeito.

Esses caminhos não se esgotam neste livro, mas se configuram no cenário escolhido para apresentar a relevância dessas disciplinas, os temas principais, autores mais importantes de cada área de estudo. Além de oferecer os instrumentos iniciais necessários para definir a direção a ser tomada pelos leitores.

Na Unidade 1, abordaremos o campo de estudos da Semântica e sua heterogeneidade, situando a Semântica no campo de estudos linguísticos, delineando a evolução e a história dos estudos do significado, assim como a distinção entre significado e sentido. Além de tratarmos da heterogeneidade semântica nas abordagens referencial, mentalista e pragmática.

Na Unidade 2, analisaremos o significado e o sentido nas situações comunicativas, reconhecendo os aspectos semânticos e pragmáticos na construção dos sentidos e descrevendo o sistema de escolha e sua contribuição na coesão discursiva. O caráter performativo da linguagem será identificado nos atos de fala no campo pragmático e o texto, que não poderia deixar de ser abordado, será tratado como unidade de sentidos.

Na Unidade 3, descreveremos os conceitos de estilo e as abordagens estilísticas na compreensão dos efeitos de individuação e de um trabalho de escolhas construídos no uso concreto da linguagem. As figuras de linguagem serão reconhecidas por seu potencial expressivo e subjetivo presentes nas palavras, frases e enunciação.

Todas as unidades tratam do uso da língua e não há uma chave de controle dos sentidos produzidos pela leitura. O que há, neste livro, é uma organização da leitura que permitirá a compreensão de conceitos que evidenciarão uma releitura, uma análise efetivamente nova e uma renovação no olhar para a Semântica, a Pragmática e a Estilística.

IV

Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novidades em nosso material.

Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura.

O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo.

Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente, apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto em questão.

Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar seus estudos com um material de qualidade.

Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE. Bons estudos!

NOTA

Esperamos que as reflexões propostas, os exemplos, as atividades, as dicas e as orientações de leitura permitam dinamizar seus saberes com relação a estas disciplinas para subsidiar suas pesquisas na vida acadêmica e profissional.

Boa leitura e bons estudos!

Prof.a Carmen Brunelli de Moura

V

Olá acadêmico! Para melhorar a qualidade dos materiais ofertados a você e dinamizar ainda mais os seus estudos, a Uniasselvi disponibiliza materiais que possuem o código QR Code, que é um código que permite que você acesse um conteúdo interativo relacionado ao tema que você está estudando. Para utilizar essa ferramenta, acesse as lojas de aplicativos e baixe um leitor de QR Code. Depois, é só aproveitar mais essa facilidade para aprimorar seus estudos!

UNI

VI

VII

Olá, acadêmico! Iniciamos agora mais uma disciplina e com ela um novo conhecimento.

Com o objetivo de enriquecer seu conhecimento, construímos, além do livro que está em suas mãos, uma rica trilha de aprendizagem, por meio dela você terá contato com o vídeo da disciplina, o objeto de aprendizagem, materiais complementares, entre outros, todos pensados e construídos na intenção de auxiliar seu crescimento.

Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo.

Conte conosco, estaremos juntos nesta caminhada!

LEMBRETE

VIII

IX

UNIDADE 1 – A SEMÂNTICA: OBJETO, HISTÓRIA E ABORDAGENS TEÓRICAS ..............1

TÓPICO 1 – O CAMPO DE ESTUDOS DA SEMÂNTICA ...............................................................31 INTRODUÇÃO ......................................................................................................................................32 SIGNIFICADO: OBJETO DE ESTUDO DA SEMÂNTICA ...........................................................53 PERCURSO HISTÓRICO: CONSIDERAÇÕES GERAIS ..............................................................94 MUDANÇAS SEMÂNTICAS: CAUSAS .........................................................................................14

4.1 LINGUÍSTICAS ................................................................................................................................154.2 HISTÓRICAS ...................................................................................................................................164.3 SOCIAIS ...........................................................................................................................................17

5 TRANSFERÊNCIA DE SIGNIFICADO ..........................................................................................195.1 METÁFORA .....................................................................................................................................205.2 METONÍMIA ...................................................................................................................................22

6 TIPOLOGIA DAS RELAÇÕES DE SIGNIFICADO ......................................................................246.1 SINONÍMIA – PARÁFRASE ..........................................................................................................246.2 ANTONÍMIA – CONTRADIÇÃO .................................................................................................276.3 AMBIGUIDADE – VAGUEZA .......................................................................................................29

RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................33AUTOATIVIDADE .................................................................................................................................34

TÓPICO 2 – A HETEROGENEIDADE SEMÂNTICA......................................................................371 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................................372 A NOÇÃO DE SIGNIFICADO E SENTIDO ...................................................................................393 ABORDAGENS TEÓRICAS...............................................................................................................42

3.1 ABORDAGEM REFERENCIAL .....................................................................................................42 3.1.1 Referência e sentido ................................................................................................................44 3.1.2 Implicações ...............................................................................................................................463.2 ABORDAGEM MENTALISTA .......................................................................................................51

3.2.1 Papéis temáticos ......................................................................................................................523.2.2 Metáforas conceituais .............................................................................................................54

3.3 ABORDAGEM PRAGMÁTICA .....................................................................................................57 3.3.1 Inferências.................................................................................................................................59 3.3.2 Implicaturas conversacionais ................................................................................................62

LEITURA COMPLEMENTAR ...............................................................................................................66RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................71AUTOATIVIDADE .................................................................................................................................72

UNIDADE 2 – HETEROGENEIDADE SEMÂNTICA......................................................................75

TÓPICO 1 – SIGNIFICADO E USO ....................................................................................................771 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................................772 ASPECTOS SEMÂNTICOS E PRAGMÁTICOS DA LÍNGUA PORTUGUESA ....................81

2.1 OS JOGOS DE LINGUAGEM .......................................................................................................81

Sumário

X

3 O SIGNIFICADO NO SISTEMA DE ESCOLHA E COESÃO DISCURSIVA ..........................943.1 RELAÇÕES SINTAGMÁTICAS ....................................................................................................953.2 RELAÇÕES PARADIGMÁTICAS .................................................................................................99

4 ATOS DE FALA E USO DA LÍNGUA ...........................................................................................103RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................112AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................113

TÓPICO 2 – O SENTIDO NAS SITUAÇÕES COMUNICATIVAS .............................................1151 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................1152 RELAÇÕES DE SENTIDO ...............................................................................................................117

2.1 NÍVEL LEXICAL ............................................................................................................................1192.2 NÍVEL FRASAL .............................................................................................................................1222.3 NÍVEL DISCURSIVO ....................................................................................................................126

3 TEXTO: UNIDADE DE SENTIDO ..................................................................................................131LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................136RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................141AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................142

UNIDADE 3 – A ESTILÍSTICA: DISCURSO E SUBJETIVIDADE .............................................145

TÓPICO 1 – NOTAS SOBRE ESTILÍSTICA E ESTILO .................................................................1471 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................1472 ESTILO E ESTILÍSTICA....................................................................................................................149

2.1 ESTILÍSTICA DA LÍNGUA ..........................................................................................................1512.2 ESTILÍSTICA LITERÁRIA ............................................................................................................157

3 CONCEPÇÃO DE ESTILO ..............................................................................................................1613.1 ESTILO COMO DESVIO ...............................................................................................................1623.2 ESTILO COMO EXPRESSIVIDADE ..........................................................................................1653.3 ESTILO COMO TRABALHO .......................................................................................................167

4 ESTILO E RETÓRICA ........................................................................................................................1725 FIGURAS RETÓRICAS .....................................................................................................................175

5.1 FIGURAS DE PALAVRAS (SOM) ...............................................................................................1795.2 FIGURAS DE SENTIDO ..............................................................................................................1825.3 FIGURAS DE CONSTRUÇÃO OU DE SINTAXE ....................................................................1875.4 FIGURAS DE PENSAMENTO ....................................................................................................191

RESUMO DO TÓPICO 1......................................................................................................................195AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................196

TÓPICO 2 – CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESTILO .....................................................................1991 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................................1992 AS ESTILÍSTICAS ..............................................................................................................................200

2.1 ESTILÍSTICA DO SOM .................................................................................................................2022.2 ESTILÍSTICA DA PALAVRA .......................................................................................................2042.3 ESTILÍSTICA DA FRASE (SINTÁTICA) ....................................................................................2062.4 ESTILÍSTICA DA ENUNCIAÇÃO ..............................................................................................207

3 ESTILO E EFEITOS DE SENTIDO .................................................................................................210LEITURA COMPLEMENTAR .............................................................................................................212RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................216AUTOATIVIDADE ...............................................................................................................................217

REFERÊNCIAS .......................................................................................................................................221

1

UNIDADE 1

A SEMÂNTICA: OBJETO, HISTÓRIA E ABORDAGENS TEÓRICAS

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

PLANO DE ESTUDOS

A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• situar a semântica no campo dos estudos linguísticos;

• delinear um panorama histórico e evolutivo acerca dos estudos do significado;

• relacionar, na ciência das significações, as causas das mudanças semânticas;

• identificar as transferências e relações de sentido nas formas linguísticas;

• reconhecer a diferença entre a noção de significado e de sentido;

• distinguir, na heterogeneidade semântica, as principais características e objeto de estudo de investigação.

Esta unidade está dividida em dois tópicos. No decorrer da unidade, você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – O CAMPO DE ESTUDOS DA SEMÂNTICA

TÓPICO 2 – A HETEROGENEIDADE SEMÂNTICA

Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.

CHAMADA

2

3

TÓPICO 1UNIDADE 1

O CAMPO DE ESTUDOS DA

SEMÂNTICA

1 INTRODUÇÃO O que é significado? O que é sentido? Será que temos duas expressões

sinônimas ou vamos encontrar uma multiplicidade de respostas que serão divergentes, diversificadas e imprecisas? E o que falar sobre Semântica? Ou seria, Semânticas?

Nesta unidade, nossa tarefa é situar a Semântica nos estudos linguísticos para compreender seu objeto de estudo e sua complexidade, dinamicidade e caráter polissêmico nas mais diversas situações presentes nas relações sociais. Além disso, um passeio pelo percurso histórico do campo dos estudos semânticos vai nos levar a entender que motivações levam às mudanças nos significados das palavras. Por que palavra como “fazenda”, que apontava para as coisas que deveriam ser realizadas por uma pessoa, passa, na atualidade, a significar, entre outras acepções, grande propriedade rural ou tecido?

São essas mudanças semânticas que podem se dar por causas históricas, linguísticas e sociais, que vamos observar nas palavras a partir de uma transferência ou ajustamento dos sentidos que possibilitará a compreensão de novos enunciados em contextos distintos. É no discurso, ou seja, no uso que o sujeito faz das palavras ou expressões que seus sentidos se atualizam e passam a ser definidos. Não podemos construir sentidos partindo apenas das palavras, mas das ideias que elas expressam.

O enunciado (oral, escrito, de múltiplas semioses) pressupõe sempre a situação de enunciação - (i) quem enuncia; (ii) a quem se dirige; (iii) onde ocorre; (iv) quando ocorre. O enunciado, revelado na materialidade linguística, é uma realidade do discurso. É o produto da enunciação.

FONTE: Adaptado de <http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/verbetes/enunciacao-enunciado>. Acesso em: 1o nov. 2019.

IMPORTANTE

UNIDADE 1 | A SEMÂNTICA: OBJETO, HISTÓRIA E ABORDAGENS TEÓRICAS

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No Blog Sobre Palavras, Sérgio Rodrigues discute, em uma postagem publicada em 1º de junho de 2015, se as expressões “em palpos de aranha” e “em papos de aranha” apresentam o mesmo sentido. O jornalista assinala que a carga semântica é diferente, pois, na primeira, essa carga significa “estar em apuros” e, na segunda, evidencia um processo de “estar satisfeita”, “com o papo cheio”. Escritores como Camilo Castelo Branco, Aluísio Azevedo e Luís da Câmara Cascudo defenderam a expressão “papos de aranha”, alegando que o uso popular se sobrepôs ao erudito. No entanto, ainda podemos encontrar os dois sentidos coexistindo de forma harmônica.

Para ler na íntegra a discussão empreendida pelo jornalista em seu blog, acesse o site: https://veja.abril.com.br/blog/sobre-palavras/em-palpos-de-aranha-ou-em-papos-de-aranha/.

NOTA

Michel Bréal (1992) traduz essa complexidade lexical e corrobora com a ideia de que, a partir da língua, interpretamos o mundo e atribuímos sempre novos sentidos a ele. De acordo com esse semanticista, em seu Ensaio de Semântica:

O sentido novo, qualquer que seja ele, não acaba com o antigo. Ambos existem um ao lado do outro. O mesmo termo pode empregar-se alternativamente no sentido próprio ou no sentido metafórico, no sentido restrito ou no sentido amplo, no sentido abstrato ou no sentido concreto (BRÉAL, 1992, p. 103).

É esse comportamento linguístico e a coexistência entre o novo e o velho que permite evidenciar que as palavras podem ser positivas ou negativas e assumir significados diferentes. Em outros termos, as palavras podem ser semelhantes em sua forma, mas distintas em seus valores. Essa mudança de sentidos poderá ser abordada sob três aspectos: referencial, mentalista e pragmático, linhas que orientam as pesquisas semânticas que abordaremos no Tópico 2 desta unidade. É com base nessas temáticas, que serão desenvolvidas ao longo desta unidade, que convidamos você, acadêmico, a aprofundar seus estudos acerca de Semântica nas discussões aqui apreendidas.

TÓPICO 1 | O CAMPO DE ESTUDOS DA SEMÂNTICA

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"Se é verdade, como se pretendeu, algumas vezes, que a linguagem é um drama em que as palavras figuram como atores e em que o agenciamento gramatical reproduz os movimentos dos personagens, é necessário pelo menos melhorar essa comparação por uma circunstância especial: o produtor intervém frequentemente na ação para nela misturar suas reflexões e seu sentimento pessoal, não à maneira de Hamlet que, mesmo interrompendo seus atores, permanece alheio à peça, mas, como nós mesmos fazemos no sonho, quando somos ao mesmo tempo espectador interessado e autor dos acontecimentos. Essa intervenção é o que proponho chamar o aspecto subjetivo da linguagem" (BRÉAL, 1992, [1904], p. 157).

ATENCAO

2 SIGNIFICADO: OBJETO DE ESTUDO DA SEMÂNTICANa introdução desta unidade, problematizamos o que era significado

e sentido e se essas expressões eram sinônimas ou divergentes. Começamos a encaminhar essa problematização com a discussão de Sergio Rodrigues no momento em que as expressões estudadas têm valores diferentes em vista do uso concreto da língua – contextualizado. No entanto, o reconhecimento da diferença entre a noção de significado e sentido será abordado no Tópico 2, desta unidade. A compreensão desses termos é relevante para a distinção entre os estudos semânticos e pragmáticos e para a compreensão da significação na heterogeneidade semântica.

Então, vamos nos deter ao significado e compreender a sua complexidade e as controvérsias presentes em seu estudo. Katz já havia apontado, em 1972, que seria preciso definir a noção de significado para que uma teoria semântica fosse considerada por todos os estudiosos. Ele assevera que muitos concordam que a Semântica estuda o significado e que a questão básica dos estudos semânticos é saber o que é o significado. No entanto, ele afirma que a concordância termina neste ponto e:

[...] começam as controvérsias intermináveis sobre que tipo de coisa é o significado. Há discordância sobre questões de todos os tipos, incluindo a questão fundamental sobre se nós podemos fazer algo com o conceito de significado ou se estaríamos melhor sem ele. [...] a questão “O que é significado” não admite uma resposta direta do tipo “é isso ou aquilo”; sua resposta é, ao contrário, uma teoria inteira (KATZ, 1972, p. 1, tradução nossa).

Katz (1972) traz para sua fala a heterogeneidade semântica ao justificar que o significado é linguístico. Bréal (1992), em seu Ensaio de Semântica, afirma, sob o ponto de vista linguístico, que as mudanças sincrônicas sofridas pelas palavras se constituíam em objeto da Semântica e que as respostas aos significados só

UNIDADE 1 | A SEMÂNTICA: OBJETO, HISTÓRIA E ABORDAGENS TEÓRICAS

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poderiam ser dadas pela história. Já Bloomfield, um estruturalista americano, definia o significado “[...] como a situação na qual o falante a enuncia e a resposta que ela evoca no ouvinte” (BLOOMFIELD, 2001 apud MARQUES, 2001, p. 46), ou seja, influenciado pelo behaviorismo, significado seria a relação estímulo-resposta entre falante e ouvinte.

O Behaviorismo é uma área da Psicologia cujo objeto de estudo é o comportamento humano e a possibilidade de influenciar o indivíduo a partir de estímulos. Destacam-se Watson, Wittgenstein e Ryle. Na educação, sua contribuição foi no campo da linguagem com Skinner. Atualmente, oferece suporte para metodologias de coaching. Complemente esse assunto assistindo ao vídeo Behaviorismo: metodológico e radical.

FONTE: <https://www.youtube.com/watch?v=ipHFpXAgjiA>. Acesso em: 4 ago. 2019.

DICAS

Essa indefinição acerca do objeto da Semântica traz outras discussões para o panorama do significado. Isso não se deve à falta de consenso entre os estudiosos. Ao contrário, abrem-se espaços para se pensar o léxico, as condições de verdade, os atos de fala e a enunciação. Isso aponta para a heterogeneidade do campo semântico que, atualmente, está ancorado, por exemplo, na semântica argumentativa, cognitiva, computacional, cultural, da enunciação, dos protótipos, formal, lexical, diacrônica, sentencial, proposicional, estrutural, gerativa, funcional, do discurso, entre outras.

Lyons (1997), em vista dessa diversidade e de os linguistas não chegarem a um consenso quanto à questão “O que é significado?”, propõe um deslocamento para “Qual o significado de ‘significado’?”.

John Lyons (1932), linguista britânico, ficou famoso por seu trabalho com a Semântica ao publicar Structural Semantics (1963), Semantics (1977) e Lingua(gem) e Linguística – uma introdução, obra que aborda uma introdução geral à linguística e ao estudo da linguagem.

NOTA

TÓPICO 1 | O CAMPO DE ESTUDOS DA SEMÂNTICA

7

Isso responderia de forma “satisfatória” ao problema do significado, pois este permeia a linguagem, e a Semântica ainda é uma teoria em construção com um caráter plural. A noção de significado também tem esta mesma característica e não podemos pensar que isso é algo desanimador. Isso é um desafio para os estudiosos da área que encontram, em outros campos do conhecimento, subsídios para a compreensão do funcionamento das línguas naturais.

Vamos compreender, na prática, essa discussão e como funciona a língua.

Analisaremos uma das “pérolas” enunciadas por Vicente Matheus, que foi presidente do Clube Corinthians nos anos 1980, e mereceu um artigo de Pasqualle Cipro Neto em sua coluna no jornal Folha de São Paulo.

(1) “O Sócrates é inegociável, invendável e imprestável" (Vicente Matheus).

Por que a expressão “imprestável” se tornou uma pérola da Língua Portuguesa? Para começar, consultamos o site da Academia Brasileira de Letras, a palavra “imprestável” está registrada como um adjetivo. Em dois dicionários on-line a palavra é descrita como:

• Que não tem mais serventia; inútil [Antôn.: útil.] Diz-se de pessoa que não ajuda os outros, que não é prestativa (AULETE, c2021,

s.p.).• Que não presta; que não tem préstimo; ineficiente, inútil, vão. Diz-se de ou pessoa que não tem prestabilidade ou prestimosidade alguma: um

profissional imprestável. Consideram-no um imprestável (MICHAELIS, c2021, s.p.).

Seria esse o tratamento dispensado pelo presidente do Corinthians ao grande jogador Sócrates? Por que ele tomou a língua em seu sentido literal, dicionarizado?

Ao enunciar “inegociável” e “invendável”, em (1), Vicente Matheus tomou por analogia a palavra “imprestável”, com o sentido de que o jogador era tão importante para o time que, por dinheiro nenhum, seria negociado, vendido e emprestado a outro time. De acordo com Silva Jr. (1903, p. 19), "[...] o povo, diante da necessidade de exprimir ideias novas, em lugar de criar novas palavras, serve-se de termos conhecidos, mudando-lhes ou renovando-lhes os sentidos." O uso do prefixo “in” ou “im” na língua portuguesa produz o sentido de “privação, negação”, estabilizado por uma convenção social e dicionarizado como elemento estável. No entanto, a compreensão do significado pretendido pela palavra “imprestável” só foi possível, porque, a partir do contexto em que foi utilizada, neste caso, houve uma renovação de seu sentido literal evidenciando uma concepção positiva acerca do passe do jogador.

UNIDADE 1 | A SEMÂNTICA: OBJETO, HISTÓRIA E ABORDAGENS TEÓRICAS

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Para ler o texto do professor Pasqualle, acesse o endereço: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2712200103.htm.

DICAS

Como diria Wittgenstein (1999), é possível fazer uso da palavra “imprestável” para expressar sentidos diferentes para diferentes jogos de linguagem, o que iremos tratar na Unidade 2, ou seja, é preciso entender que o significado é “referencial”, pois ao enunciarmos uma palavra, buscamos sua referência no mundo. Ele é construído a partir de um ponto de vista, de uma maneira de ver o mundo e, quando sua noção é ampliada para o contexto, devemos levar em consideração as convenções culturais, as diferentes abordagens semânticas, a relação social e comunicativa. Essa é a pluralidade da Semântica e do significado que vamos ilustrar ao longo desta obra.

FIGURA - LUDWIG WITTGENSTEIN

FONTE: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/a/ab/Ludwig_Wittgenstein.jpg/410px-Ludwig_Wittgenstein.jpg>. Acesso em: 1o nov. 2019.

Para saber um pouco sobre a obra do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein e seus jogos de linguagem, assista aos vídeos produzidos por Claudio F. Costa, professor titular de Filosofia do departamento de Filosofia da UFRN, disponíveis nestes endereços:

• https://www.youtube.com/watch?v=lQksIdBy7xc;• https://www.youtube.com/watch?v=ZQi_gQHZnx0.

DICAS

TÓPICO 1 | O CAMPO DE ESTUDOS DA SEMÂNTICA

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Você acompanhou o exemplo que demos sobre o uso das palavras “inegociável” e “invendável” e a renovação dos significados na fala de Vicente Matheus. Agora é a sua vez! Imagine que você irá apresentar um seminário e terá de discutir acerca de palavras que tiveram seus significados renovados para atender às necessidades do usuário da Língua Portuguesa.

Não é uma tarefa complexa, sugerimos que pesquise entre amigos, familiares, no seu ambiente de trabalho e em suas práticas cotidianas.

Vamos tentar?

IMPORTANTE

3 PERCURSO HISTÓRICO: CONSIDERAÇÕES GERAISO encaminhamento de nossa discussão vem apontando para a ideia de que

não é possível definir o que significa “significado” e, pela sua heterogeneidade, as distinções ampliam os estudos semânticos em várias Semânticas. Vamos voltar ao tempo e entrar nas academias gregas para compreender que os filósofos já buscavam definir os fenômenos semânticos. Um desses estudos encontra-se em Crátilo: sobre a justeza dos nomes, de Platão. Crátilo considerava que o significado de uma coisa se unia à própria coisa de forma natural. Já Hermógenes, negava essa ideia de Crátilo e afirmava que o significado era arbitrário e convencionado pela comunidade de falantes de uma língua.

Essa ideia será questionada séculos mais tarde por John Locke, filósofo inglês. Ele afirmava, no século XVII, que seria um tanto simplista unir o nome à coisa e, se isso fosse possível, teríamos apenas uma língua. A noção de convenção reduz as incertezas e promove a concordância entre os usuários de uma língua, necessária à comunicação. Em vista dessa harmonia social, Hermógenes afirmava que “[...] a relação nomes e coisas não era apenas [...] uma porção da voz humana a qual os homens concordam em usar” (PLATÃO, 2014, p. 1), mas eram artefatos sociais desenvolvidos entre usuários e para usuários. Marques (2001) também questiona e admite que as palavras são convenções estabelecidas entre os usuários de uma língua.

UNIDADE 1 | A SEMÂNTICA: OBJETO, HISTÓRIA E ABORDAGENS TEÓRICAS

10

Crátilo: sobre a justeza dos nomes, de Platão, é uma obra para a compreensão da discussão entre Crátilo, Hermógenes e Sócrates acerca do significado, no nome e das coisas. Hermógenes para Sócrates, ao discordar de Crátilo: este nosso Crátilo, Sócrates, opina que existe, naturalmente, uma designação justa para cada um dos seres; e que o seu nome não é aquele por que alguns convencionalmente os designam, servindo-se de uma parcela de sua linguagem; ao contrário, segundo ele, existe naturalmente, tanto para Gregos como para Bárbaros, uma justeza de designação idêntica pra todos.

Para uma leitura aprofundada sobre este conflito linguístico, leia a obra de Platão, Crátilo: ou sobre a correção dos nomes.

FONTE: PLATÃO. Crátilo: ou sobre a correção dos nomes. São Paulo: Paulus, 2014.

NOTA

Demócrito era um outro grego que estudava a linguagem e seus múltiplos sentidos. Esses sentidos eram construídos a partir da polissemia, fenômeno semântico no qual uma mesma palavra pode ter mais de um sentido ao ser utilizada em contextos distintos; e da homonímia, fenômeno no qual duas ou mais palavras têm a mesma estrutura fonológica, mas são distintas pelo significado. Aristóteles também deu sua contribuição aos estudos do significado ao classificar as metáforas, fenômeno adotado por outros semanticistas e que vamos abordar em Transferência de significado. Como funciona o fenômeno da polissemia na prática?

(2) Vejamos alguns exemplos com a palavra "onda":

a) RUFFLES – a batata da onda.b) “A Onda”: filme para compreender um sistema de governo.c) “Tem gente que quer tirar onda sem saber surfar e acaba se afogando”

(SÓCRATES MACHADO, s.d., s.p.).d) A vida é como uma onda. e) “Quando o mar está bravio e os ventos açoitam as ondas” (SCHOPENHAUER,

2005, p. 412).f) Tirando onda com a minha cara. g) Ondas eletromagnéticas se propagam mais rápido no vácuo.

Nesses enunciados, a palavra "onda" tem pluralidade de significados: (a), podemos entender onda como o formato ondulado da batata e a batata que está na moda; (b), a palavra onda vem com letra maiúscula, apontando para um substantivo próprio, o título de um filme; (c) a palavra onda implica superioridade sobre as outras pessoas; (d) a palavra onda significa altos e baixos, ou seja, uma vida feita de momentos bons e ruins; (e) aqui onda se aplica às ondulações do mar pela ação do vento; (f) significa debochar, tirar sarro; e (g) onda evidencia, pelos

TÓPICO 1 | O CAMPO DE ESTUDOS DA SEMÂNTICA

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conceitos da Física, campo que transporta energia. Vemos que o contexto é uma garantia para o funcionamento desses significados. Quanto à homonímia, como se constrói o significado das palavras?

Vejamos o “clássico” exemplo da palavra manga que tem um mesmo significante (SE) e dois significados (SO):

Todas as palavras têm significados diferentes, mas estes significados se distinguem por serem construídos por classes de palavras diferentes ou por terem a escrita ou o som diferente.

SIGNIFICANTE (SE) – imagem acústicaSIGNO SIGNIFICADO (SO) – conceito

“peça de vestuário” ≠ “fruto da mangueira” (significados)

Vamos recordar as classes de palavras? Acesse: Classes de palavras do português brasileiro: um estudo sobre seus critérios de classificação na sala de aula de educação básica.

FONTE: <http://www.institutodeletras.uerj.br/revidioma/21/idioma21_a01.pdf>. Acesso em: 18 jul. 2019.

DICAS

Tipos de homonímias: vamos observar como se dividem as homonímias e apontar alguns exemplos.

• Homógrafas – possuem a mesma forma gráfica. A boca fica com gosto de guarda-chuva depois de beber álcool (substantivo). Eu gosto de você desse jeito (verbo).• Homófonas – possuem a mesma forma fonológica, mesmo som. A sena saiu apenas para um apostador (substantivo/ loteria). A cena final do filme foi sensacional (substantivo/ cenário).

Esses mecanismos da língua estão presentes nas gramáticas de uma

maneira um tanto simplista, mas Oliveira (2008) aponta que definir se uma palavra é homônima ou polissêmica leva a alguns conflitos conceituais, principalmente, com relação à homonímia perfeita ou absoluta. Você poderá ampliar a discussão acerca da polissemia e homonímia em outras obras.

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Há uma discussão bem interessante acerca do estudo da polissemia e homonímia, suas fontes e conflitos, no Capítulo 7, ambiguidades, da obra Semântica, de Ullmann.

FONTE: ULLMANN, S. Semântica: uma introdução à ciência do significado. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1964.

DICAS

As ideias greco-romanas têm exercido forte influência, benéficas ou não, nos estudos da Semântica moderna em sua aparição no século XIX. De acordo com Ullmann (1964), isso se deve ao nascimento da Filologia comparada que estuda estados de uma língua com outra língua natural para compor sua história. Era uma ciência que tinha uma afinidade com a Linguística, pois sozinha não poderia compreender os fatos elencados como objeto de estudo. Quando os estudos linguísticos se voltam para as trocas fonéticas e gramaticais, os linguistas percebem que é preciso explorar, também, os aspectos semânticos.

É diante dessas iniciativas que vemos surgir a expressão semântica nos estudos de Michel Bréal, em 1883, quando ele propõe a “ciência das significações”. A contribuição desse estudioso se deve ao estudo do significado sob uma perspectiva da Linguística e não apenas da Filosofia. O filólogo francês estudou os processos de mudança da língua, categorizando-os em relação ao sentido, sua transferência e aumento ou redução. Para Marques (2001), ainda que os estudos de Bréal (1883) estivessem atrelados a uma visão histórica e ao léxico, a disciplina superava a rigidez dos princípios mecanicistas ao incorporar os aspectos conceituais da linguagem.

Saussure (1974), com seu Curso de Linguística Geral, rompe, em 1916, com os estudos históricos realizados até o século XIX. Seu objeto de estudo é a língua, um sistema de signos constituído por um significante (imagem acústica) e um significado (conceito), compreendido em uma perspectiva conceitual e não a uma coisa como queria Crátilo. Essa relação entre significante e significado é convencional e arbitrária. Recebe muitas críticas, principalmente de Charles F. Ogden e Ivor A. Richards pelo fato de o linguista não ter incluído em sua teoria o referente.

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Ferdinand de Saussure (1857-1913) foi o linguista fundador da Linguística moderna. A obra Curso de Linguística Geral teve uma importância ímpar para o estudo da língua como um sistema de regras e utilizada por uma comunidade.

FONTE: SAUSSURE, F. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 1995.

IMPORTANTE

SIGNO LINGUÍSTICO – SAUSSURE

As críticas não apagaram o brilho do estruturalismo saussuriano e muitos semanticistas se vincularam as suas ideias. Trier (1931 apud MARQUES, 2001), linguista alemão, estudava a teoria do campo lexical e a relação entre seus significados, por exemplo, brigadeiro, bolo e refrigerante. Essas palavras pertencem ao mesmo campo semântico de aniversário. Bally (1940 apud OLIVEIRA, 2008) estudava a teoria dos campos associativos, como em carta, selo, correio; e Coseriu (1980) dedicava-se ao arquilexema, como em assento, arquilexema de sofá, cadeira, poltrona, banco, divã.

O que é arquelexema? É um conjunto de traços semânticos referentes a diversas unidades e, neste caso, todos os lexemas podem ser definidos como “banco – objeto construído para a pessoa se sentar”, significado comum a todas as palavras.

IMPORTANTE

A partir de 1950, vamos encontrar outros estudos com base na Gramática gerativa de Chomsky. Katz e Fodor (1977) publicam o artigo Estruturas de uma teoria, no qual empreendem uma discussão acerca da competência da Semântica em reconhecer e interpretar os diferentes significados que surgem entre os enunciados. Nos anos 1970, Ducrot trabalha com os operadores argumentativos, pois a linguagem é utilizada para convencer o outro a entrar no jogo. Na década de 1980, Lakoff e Johnson estudam as metáforas e afirmam que o nosso pensamento é estruturado por meio de esquemas. No Tópico 2, Subtópico 2.2, veremos com mais detalhes as metáforas conceituais.

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Já apontamos, na introdução – significado, a heterogeneidade da Semântica e, ao longo da construção desse conhecimento, iremos estudá-la a partir dos fenômenos semânticos e abordagens teóricas que ajudarão você a entender que há diferentes maneiras de se estudar o significado.

4 MUDANÇAS SEMÂNTICAS: CAUSASPor que as palavras mudam seus significados? Qual é a força que provoca

alterações na significação lexical? Quando se dá a descontinuidade de um significado e outro surge em seu lugar? Poderíamos fazer muitos questionamentos acerca das mudanças semânticas e elencar inúmeras causas dessas transformações, mas não é nosso objetivo, pois isso demandaria um outro trabalho e fica aqui a sugestão: você poderia realizá-lo em seus estudos sobre a língua.

O que precisamos entender, inicialmente, é o fato de que as mudanças se dão por dimensões: linguísticas, a partir da heterogeneidade da língua; sociais, na comunicação entre os usuários de uma língua; e históricas, quando a língua se torna outra, forma-se e sofre influências no decorrer do tempo. Essas mudanças não são aleatórias. Elas são provocadas por uma ação, necessidade da existência de grupos sociais que falam uma língua e se inserem em contextos discursivos, nos quais dar-se-ão as alterações de sentido em vista de certas regularidades ou do que pode ou não ser dito naquele domínio.

Podemos compreender essas mudanças nas forças sociais operadas sobre algumas palavras que são modificadas por um modismo, pela imposição do prestígio de uma sobre a outra, pela disposição na frase, enfim, por fatores internos e externos à língua. É o que se dá nas palavras incapacitada "/deficiente /com deficiência /limitada /especial", que, ao serem utilizadas em certos domínios discursivos, provocam efeitos negativos ou positivos. "Deficiente" tem sido substituído, em vista das forças institucionais, por "pessoas com deficiência" (auditiva, visual, física, intelectual etc.). Assim, essa mudança de sentido é uma inovação semântica e ocorre em um momento específico, condicionado por circunstâncias que propiciam sua propagação no contexto social.

Tulio Mendhes, jornalista, escritor, palestrante, ex-colunista do G1 e, atualmente, do Diário de Uberlândia, escreve de forma bem-humorada e um tanto sarcástica, segundo ele, sobre os direitos das pessoas com deficiência. Leia este texto e outros em seu blog.

FONTE: <http://g1.globo.com/minas-gerais/triangulo-mineiro/blog/mao-na-roda/post/termi nologia-no-tratamento-da-pessoa-com-deficiencia.html>. Acesso em: 20 jun. 2019.

NOTA

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Como afirma Meillet (2016, p. 9), “[...] as mudanças semânticas não podem ser reconstituídas por hipóteses puramente linguísticas” porque as causas exteriores, como essa que vimos no texto de Tulio Mendhes, concorrem também para explicar as mudanças de sentido. Na história da Semântica, as mudanças dos significados das palavras estiveram, inicialmente, atreladas aos trabalhos de Bréal (1992). Sua proposta era “[...] examinar por que as palavras, uma vez criadas e providas de um certo sentido, são levadas a [...] mudá-lo” (BRÉAL, 1992, p. 77).

Foi a partir desse pensamento e do caráter histórico dos estudos na época

que Meillet, discípulo de Saussure e de Bréal, escreve Como as palavras mudam de sentido, publicado em 1906. Ao tratar das mudanças semânticas, ele reconhece as limitações da Linguística e aponta que as causas desse movimento semântico nas línguas se devem às mudanças propiciadas pelo contágio entre palavras, pelo tempo e pelas pressões sociais. Vamos compreender cada uma dessas mudanças na prática.

4.1 LINGUÍSTICAS

As mudanças linguísticas nem sempre são percebidas, pois elas ocorrem de forma lenta e não atingem a língua em sua totalidade, mas pequenas partes. É um jogo de mudanças e estabilidade. Esta harmonia é adquirida pelo desenvolvimento de uma língua padrão, geralmente, presente nas gramáticas, que freia as transformações na língua. Uma maneira prática de observar essas mudanças é na leitura de um texto escrito em português no século XIII.

(3) Vejamos uma estrofe de uma composição poética extraída de Faraco (2005, p. 17).

III. — Pedr’ Amigo, des aqui é tencon,ca me non quer’ eu convosc’ outorgar!O rafec' ome, a que Deus quer darentendiment’, en algũa sazon,de querer ben a mui bõa senhor,este non cuida fazer o peor;e quen molher rafec’, a gran sazon,quer ben, non pode fazer se mal non.

Nesta estrofe (III), evidenciam-se o desaparecimento de itens lexicais como: substantivos (tençon, sazon), adjetivo (rafeç’) e conjunção (ca). A terminação -or de substantivos era comum aos gêneros masculino e feminino, como em mui bõa senhor. Nesse texto, confirma-se que algumas estruturas deixaram de existir na contemporaneidade ou sua ocorrência ainda é possível, mas com modificações em sua forma, função ou significado.

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Bréal (1992, p. 139) chama de contágio ao “[...] fenômeno que se apresenta com frequência e que tem por efeito comunicar a uma palavra o sentido de seu contexto”. Bueno (1963) denomina este fenômeno de metendossemia quando os significados são deduzidos de palavras conectadas. Um desses contágios evidencia-se na construção de um hospício em Juqueri. Ao nome da cidade associou-se lugar para "alienados, casa de loucos, doença mental". O prefeito de Santos solicitou a construção de um Juqueri em sua cidade. Os relógios antigos eram quadrados e tinham quadrantes; por contágio, os relógios modernos, com variadas formas, continuam a ter quadrantes.

Em Oliveira (2008), encontramos dois exemplos bem singulares. A palavra pílula que se referia a uma forma farmacêutica, com o surgimento da pílula anticoncepcional – substantivo + adjetivo, passou a ser tratada apenas pelo substantivo pílula. Nos anos 1990, há uma inversão e o adjetivo anticoncepcional, por contágio, muda a categoria gramatical e as pessoas passam a se referir à pílula pelo substantivo anticoncepcional. Em caderneta de poupança, que, na década de 1960, era onde o banco registrava a movimentação financeira do cliente, após o uso do computador na instituição financeira, a palavra caderneta e poupança se desmembraram e passaram, por contágio, a significar conta bancária ou forma de investimento, ou seja, houve uma transferência do significado primitivo.

4.2 HISTÓRICAS

Muitas vezes, um referente sofre uma evolução e se transforma, mas a palavra que o designa continua a mesma. Nesse caso, houve uma mudança semântica que foi provocada por fatores extralinguísticos os quais, muitas vezes, nem percebemos. Para Ullmann (1964), as coisas, as instituições e as ideias se transformam sem que seja preciso trocar seus nomes. O mesmo vocábulo pode ser empregado a vários objetos ou ideias que apresentem uma relação entre si no uso, utilidade e/ou função. Algumas palavras vão exemplificar essa relação entre mudança no significado e o conservadorismo no nome.

Oliveira (2008) traz um exemplo interessante que está presente no nosso cotidiano e, às vezes, nem percebemos. A palavra computador vem do latim computare, que significava a pessoa que fazia cálculos. Depois, seu sentido deslizou até a máquina eletrônica que permite o processamento de dados. Atualmente, temos vários modelos de computador como o laptop, palmtop, mas quando falamos computador, apenas o de mesa, o desktop, passa a significar. Outro exemplo é o vocábulo pena, originária do ganso, por muito tempo foi utilizada para escrever. Depois, o objeto pena foi substituído por um produto manufaturado, carregado de tinta, mas que conservou o nome: caneta bico de pena.

TÓPICO 1 | O CAMPO DE ESTUDOS DA SEMÂNTICA

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4.3 SOCIAIS

A estratificação social é uma causa frequente das mudanças semânticas, pois se fôssemos uma nação homogênea, certamente, essa característica não se daria na língua e as palavras teriam a mesma significação. Essa heterogeneidade é constituída pelos diversos grupos profissionais, religiosos, comerciários, militares, escolares, universitários e outros. Assim, as trocas sociais podem produzir trocas linguísticas. Sendo assim, como se dão essas alterações na significação das palavras?

As moedas árabes traziam dois traços verticais que representavam as Colunas de Hércules que eram entrelaçadas, representando uma linha curva, as correntes marítimas. O povo entendeu como o cifrão $. Mas, não parou por aí. A linha parecia uma janela que em árabe era butaca. Como estava ligada ao dinheiro, passou para o português como pataca e um novo deslizamento se dá na palavra com sua desvalorização que passa a significar “coisa” de pouco valor, patacoada (BUENO, 1963).

Cada grupo social toma a língua em sua generalidade e a acomoda para seu uso, restringindo-lhe à significação. Quando a palavra passa do grupo social para a língua geral, muitas vezes, há uma vagueza, imprecisão do termo, pois perde sua contextualização como nos grupos militares em que camarada significava companheiro de quarto e, na linguagem geral, passou a significar amigo. A sociedade grega tomava a palavra angelos como mensageiro e baptizein como lavar. Com o advento do cristianismo, os grupos religiosos restringiram o significado destes vocábulos. Angelus passou a significar celeste e baptizar se tornou um sacramento, o Batismo.

Essas alterações vocabulares afetam semanticamente a língua. A causa principal se deve à necessidade que os grupos sociais têm de se expressar, de comunicar suas individuações. Nesse contexto, os grupos buscam palavras adequadas e aceitáveis em cada época. Em vista disso, as mudanças ainda têm outras implicações linguísticas, como os tabus e eufemismos com os quais, por decência, medo, delicadeza ou polidez, os grupos sociais passam a fazer alterações.

O vocábulo “rapariga” é definido por diferentes grupos sociais, segundo o dicionário Michaelis (c2021, s.p.). Em algumas regiões brasileiras, pode significar mulher virgem e, em outras, concubina, prostituta. Um grupo que vive em Governador Celso Ramos-SC, constituído por imigrantes da Ilha dos Açores (Portugal), conserva o sentido português de moça, feminino de rapaz e perde seu sentido negativo. Em vista das desigualdades sociais em relação a certos grupos, houve uma mudança semântica na palavra empregada doméstica que passou a significar secretária.

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(4) Vejamos os sentidos da palavra “monstro” nos enunciados:

a) O Monstro do Monstro de Frankenstein (https://www.netflix.com/br/title/81003981).

b) Saindo da jaula: você é o monstro em novo game medieval (http://twixar.me/Fnr1).

c) Quem você prefere: o genial Messi ou o monstro Ronaldo? (http://twixar.me/Lnr1).

Inicialmente, a palavra "monstro" tinha um significado negativo de criatura lendária com aspecto aterrorizante, deformada, gigantesca; depois, o sentido sofreu um deslizamento para pessoas cruéis, horrendas e, atualmente, significa um profissional excelente. Analisando os enunciados: (a) a palavra monstro aparece duas vezes, referindo-se ao criador e criatura com sentido negativo e metafórico; (b) o sentido é positivo, pois o jogador assume a identidade da criatura lendária que, neste jogo, está em extinção e os vilões são os humanos; (c) a comparação evidencia o quanto Ronaldo foi um bom jogador e, por isso, a palavra monstro assume um efeito positivo.

Recomendo a leitura de A mudança semântica e lexical. Texto traduzido e adaptado de Historical Linguistics: An Introduction (1962), de Winfred P. Lehmann (3. ed. 1992. Londres e Nova York: Routledge), para a disciplina do Prof. Thomas Finbow da USP.

FONTE: <https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4116720/mod_resource/content/1/Lehmann %20-%2013%20-%20Mudan%C3%A7a%20sem%C3%A2ntica%20e%20lexical%202%28rev%29.pdf>. Acesso em: 1o nov. 2019.

DICAS

Em todos as mudanças linguísticas, históricas e sociais abordadas, fica evidenciado que há pontos de contato, de semelhança entre os fenômenos semânticos. O uso de um sentido ou outro tem como finalidade a compreensão, e sua criação pela sociedade tem a finalidade de fazer-se compreender, pois cada médico, soldado, professor, comerciante e outros representantes de grupos sociais se vê atravessado pelo modo de dizer do seu grupo. Ao transitar de um grupo ao outro, há um enriquecimento da linguagem e todos acabam ganhando com os empréstimos e deslocamentos de sentidos nas diversas linguagens.

No próximo tópico, vamos compreender como se dão as transferências de sentido quando atualizadas nas diferentes modalidades de uso da língua.

TÓPICO 1 | O CAMPO DE ESTUDOS DA SEMÂNTICA

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Tudo muda! E as palavras acompanham as mudanças. Você ainda pensa em “barcos” quando diz vou embarcar neste voo? Ou, em separação, afastamento quando diz “apartamento”? Ou ainda, que “penso” significava alimentar com pensos os animais ou cuidar de feridas? Estudos de Filologia Portuguesa, de Silveira Bueno, é uma ótima leitura para a compreensão dos aspectos de alteração semântica das palavras.

Desafiamos você a encontrar outras palavras e expressões presentes em seu cotidiano cujos significados foram alterados devido a causas históricas, sociais ou linguísticas. Reflita: essas mudanças semânticas são impostas ou são os usuários que as instituem, que negociam sua atualização? Boa pesquisa!!

INTERESSANTE

5 TRANSFERÊNCIA DE SIGNIFICADO Uma língua é uma instituição social; assim, a variação e a mudança são

inerentes à trajetória de uso por uma comunidade. As transformações operadas na língua não são efeitos do acaso, mas de um princípio criativo, adaptativo, associativo, presentes nas regras de transferência do significado substituído e do novo. Como determinar o tipo de associação entre as palavras? Só essa relação seria necessária para definir a transferência de significado nas palavras?

A história da Semântica aponta, incialmente, duas formas de transferência: a associação lexical e, posteriormente, a associação de campos semânticos. Esses fenômenos de transferência estão atrelados tanto à variação do léxico quanto à variação das estruturas discursivas presentes nos enunciados. É na interação verbal que os usuários da língua interpretam e produzem sentidos. A teoria associacionista de transferência trata das mudanças de significados como um produto da relação entre palavras; entretanto, nas últimas décadas, há uma visão mais ampla que deixa de olhar apenas para as palavras isoladas e dedica atenção para os campos de associação a que pertencem estas palavras.

QUADRO 1 – TRANSFERÊNCIA SEMÂNTICA

FONTE: A autora

Transferência semântica

Associação lexical Associação semântica

Eu demoli o prédio (derrubei).Encontre a melhor viagem (passeio).O guia (direção) da viagem chegou.

Ele embarcou (entrou) no navio.

Eu demoli seus argumentos.A vida é uma viagem.

As mães são guias da vida.Ele embarcou em nova carreira.

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De acordo com Marques (2001), as transferências de significado seriam analisadas a partir do contexto e das escolhas efetuadas em função dos objetivos comunicativos. Por isso, a multiplicidade de significados não reside apenas na variedade lexical e não é fechada semanticamente. A metáfora e a metonímia são referências para o estudo das transferências semânticas. Vamos então abordar cada uma delas.

5.1 METÁFORA

A relevância da metáfora para a linguagem e para a literatura vem sendo discutida por muitos estudiosos como uma força criadora da linguagem, como originalidade dos poetas e como um feitiço no estilo do autor. A metáfora também está entrelaçada ao discurso por motivações subjetivas, artifícios expressivos, sinonímia, polissemia, abrandamento de emoções intensas, preenchimento de lacunas no enunciado e muitos outros, uma vez que seu estudo é recente. Em vista de seu uso significativo, a metáfora é muito comum entre os usuários de uma língua.

Embora alguns afirmem que não existe comparação na metáfora, mas apenas uma transferência das semelhanças de um significado para outro, Bueno (1963) contesta essa afirmação, justificando que a metáfora compreende sempre uma comparação e acrescenta que a comparação, em vista do uso regular da metáfora, perde sua expressividade, fica velada e pode tornar os significados fossilizados. Outros defendem que a metáfora é um mecanismo retórico usado para o alcance de certos efeitos de sentido. Em outra posição, a dos cognitivistas, a metáfora está presente no cotidiano, sendo considerada uma forma de articular pensamentos, falas e mundo.

(5) Vejamos esta tirinha do personagem Armandinho, de Alexandre Beck, que foi adaptada da peça A segunda vinda de Francisco de Assis, de José Saramago.

FIGURA 1 – A SEGUNDA VINDA DE FRANCISCO DE ASSIS, DE JOSÉ SARAMAGO

FONTE: <https://www.facebook.com/tirasarmandinho/photos/a.488361671209144/2394739603904665/?type=3&theater>. Acesso em: 5 ago. 2019.

TÓPICO 1 | O CAMPO DE ESTUDOS DA SEMÂNTICA

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No exemplo (5), segundo quadrinho, temos uma metáfora em “O meu, fizeram-no de carne”, que materializa a “comparação” que Bueno (1963) afirma existir na produção de sentidos metaforizados. Nesse caso, há a omissão da partícula “como”, que marcaria a comparação que perde sua força expressiva. A comparação nesse fenômeno semântico perde sua força expressiva, mas ainda é possível evidenciar o ponto de contato, a semelhança do coração que sangra com a carne. A metáfora implica a força significativa daquilo que se quer dizer de uma outra forma, de fazer compreender nossos pensamentos, de alargar os efeitos de sentido do texto.

Assim, a metáfora se constitui na relação entre dois domínios que não são parte de um mesmo domínio-matriz. Nesse caso, temos uma parte do corpo (coração) que representa os sentimentos do menino com relação à cena, a qual seria o domínio-alvo; já o domínio-fonte seria uma estrutura conhecida, a carne fresca tem sangue, para projetar a situação vivida.

A metáfora é convencionada, sistematizada e assimétrica, ou seja, é possível renovar os significados por meio de mecanismos de recontextualização, estabelecer mais de um campo de associação e provocar transferência de um conceito para outro. Isso implica na criação de novos sentidos, de ajustamento dos significados, de transporte de significações.

(6) Vejamos a transferência de significados na matéria jornalística do Portal Carta Maior, publicado por Le Yéti, do Politis.fr, no dia 2 de setembro de 2015.

Buraco negro sistêmico: o epicentro da tempestade ainda está no Ocidente

Similar em intensidade ao terremoto financeiro de 2008, o novo abalo teve início na China, mas é o coração do Ocidente que está no centro da tormenta

É possível evidenciar na matéria uma transposição dos significados de um

contexto para outro. O jornalista busca em um assunto da época sobre a energia expelida por um corpo celeste, conhecido como buraco negro (disponível em: https://bit.ly/32geik2), e cria ajustamentos necessários para a compreensão do seu texto acerca da crise financeira pelo leitor. Os significados dos vocábulos "sistêmico, epicentro, intensidade, abalo, tempestade, terremoto, tormenta" são reatualizados no contexto da notícia, passando a evocar e exprimir, de modo diferente, imagens da crise e da instabilidade mundial veiculadas pelo buraco negro.

Como comenta Marques (2001, p. 157), “[...] a metáfora é considerada a utilização de uma palavra em lugar de outra por associação mental entre os significados de duas formas”, nesse caso, crise mundial e buraco negro, ambos destruidores. Essa transferência de significado é ajustada pelos falantes ao contexto e à situação comunicativa. Embora estejamos apontando para a transposição do significado a partir do léxico, a alteração realizada se dá em toda estrutura do enunciado. A metáfora está presente em uma série de palavras que produzem sentidos polissêmicos como o verbo "virar" que envolve ideias distintas.

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• Mudança sobre o próprio eixo: o carro virou na entrada da cidade. • Mudança de orientação: o carro virou a esquina e parou. • Mudança de estado: o sapo virou um lindo príncipe. • Mudança de vida: ao virar um adulto, as reponsabilidades serão maiores.

Esses exemplos demonstram o quanto a metáfora revela-se relevante para a compreensão de nossas experiências cotidianas, observando nossas trajetórias e o movimento de outras entidades no mundo. A metáfora não está atrelada a palavras isoladas, mas a procedimentos discursivos, pois é no enunciado que os sentidos se atualizam.

Achou interessante a discussão? No Tópico 2, Subtópico 3.2 ampliaremos esta temática na abordagem mentalista.

5.2 METONÍMIA

Assim como a metáfora, a relevância da metonímia está na compreensão da linguagem e do mundo. Ullmann (1964, p. 252) declarou que “[...] uma língua sem metáfora e sem metonímia é inconcebível: essas duas forças são inerentes à estrutura básica da fala humana”. Ullmann (1964) acrescenta que o processo de transferência do significado na metonímia é muito importante para a história do léxico, pois, no plano discursivo, é utilizado para fornecer novos significados que estão baseados em relações de espaço e tempo, assim como a causa pelo efeito, o efeito pela causa, o nome pela coisa, a bandeira pela pátria, entre outros.

Diferente da metáfora e sua relação com dois domínios que não são parte de um mesmo domínio-matriz, a metonímia envolve mais que o processo puramente linguístico. Esse fenômeno metonímico se dá apenas em um domínio, ou seja, há uma parte relevante que se destaca e coloca em evidência a informação mais relevante.

(7) A propaganda das Havaianas ilustra o papel da metonímia nos processos cognitivos.

FIGURA 2 – SANDÁLIA HAVAIANAS

FONTE: <https://comuniquec.files.wordpress.com/2009/08/havaianas1.jpg>. Acesso em: 10 ago. 2019.

TÓPICO 1 | O CAMPO DE ESTUDOS DA SEMÂNTICA

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O termo linguístico "pezinho" exemplifica a metonímia quando toma a parte do corpo pelo todo. "Pezinho" é tomado como a própria pessoa que, ao usar a sandália Havaianas na cidade, consegue ter a liberdade propiciada pelo ambiente praiano. O esquema imagético da palavra “pezinho” ativa um conhecimento necessário para a compreensão da relação praia-liberdade/havaianas/liberdade. Esse processo cognitivo viabiliza a ideia de tomar alguns aspectos da parte para a compreensão da totalidade.

Mais uma vez os estudos cognitivos apresentam um relevante conhecimento sobre os processos de significação ao distinguirem a metáfora da metonímia. Para Lakoff e Turner (1989, p. 36), a “[...] metáfora é, principalmente, uma forma de ver uma coisa em termos de outra” e “[...] os conceitos metonímicos nos permitem conceituar uma coisa por meio de sua relação com outra coisa” e esses conceitos “[...] estruturam não apenas nossa linguagem, mas nossos pensamentos, atitudes e ações”.

Enquanto a metáfora constitui o lugar da inovação, da transferência entre domínios e polissemias, múltiplas interpretações possíveis para uma compreensão do mundo de formas mais simples e naturalizadas, a metonímia seria o lugar do referente, da coexistência, de interdependência. A metáfora lida com dois domínios e múltiplos mapeamentos, conforme já apontamos no Subtópico 5.1, a metonímia lida apenas com um domínio e um mapeamento. Ambas contribuem para a compreensão do funcionamento e compreensão dos textos. A metáfora, de forma mais didática, e a metonímia, de forma mais concisa.

(8) Vejamos alguns exemplos de transferência de significado metonímico.

a. Fiat quer se unir à Renault para enfrentar as gigantes Toyota e Volkswagen. b. EUA vai ou não na Casa Branca? Alex Morgan diz que decisão será coletiva.

Como se constrói a metonímia nesses exemplos? Para que se criam essas metonímias? A metonímia é um mecanismo de construção e de organização dos significados no discurso, de encadeamentos dos sentidos.

• Em (8.a), Fiat, Renault, Toyota e Volswagen temos uma metonímia porque há uma relação de coexistência entre as marcas e a direção que cada uma delas representa, ou seja, promove-se o realce dos domínios especificados no nome das empresas. O ponto de referência, as marcas das empresas permitem o acesso às outras entidades, nesse caso, a direção destas mesmas empresas, responsáveis pela proposta de fusão.

• Em (8.b), temos um caso de metonímia quando um termo é substituído por outro, estabelecendo uma relação da parte pelo todo. As palavras EUA e Casa Branca são utilizadas em lugar de seleção de futebol americana e da residência oficial, bem como local de trabalho do presidente americano. Portanto, o uso dessas palavras evidencia, nesse caso, o que o jornalista considerou essencial para a notícia e para chamar a atenção do leitor. É uma ponte de sentidos que se constrói entre as palavras e as ideias, sendo compreendidas pelo leitor ao tomá-las no plano discursivo.

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Vamos a um outro desafio!

Observe, em seu cotidiano, como as metáforas e metonímias se fazem presentes em textos publicitários, jornalísticos, científicos e em suas relações sociais.

Faça uma listagem dessas construções semânticas e observe como são relevantes para estruturar nossos pensamentos e ações.

IMPORTANTE

6 TIPOLOGIA DAS RELAÇÕES DE SIGNIFICADOOs estudos tradicionais tratavam as relações de significado

apenas entre as palavras, em nível paradigmático, sem levar em consideração os aspectos semânticos e sintagmáticos. A tarefa na atualidade é incorporar as significações à ciência da linguagem e ultrapassar a identificação de regularidades de um objeto de estudo descontextualizado. O estudo das relações das significações deve se dar com a linguagem em uso, pois o sentido ultrapassa o texto e amplia-se a partir do conhecimento de mundo, informações compartilhadas, cultura, crenças e valores presentes em uma comunidade. Como entender essas relações de significado? Como tratar essas relações de sentido?

Um dos caminhos para essa compreensão é descrever os tipos de relações semânticas que atravessam o léxico a partir de um contexto e atribuir a eles denominações específicas como sinonímia e paráfrase, antonímia e contradição, ambiguidade e vagueza. Ou seja, demonstra-se que os significados da língua não se encerram em um contexto dicionarizado, mas na vida social, cultural e histórica como vimos no Tópico 4 – Mudanças semânticas.

6.1 SINONÍMIA – PARÁFRASE

As relações de significado podem ser tratadas a partir de mecanismos semânticos, como a sinonímia, relacionada às palavras ou expressões e a paráfrase, relacionada aos sentidos entre frases. A sinonímia e a paráfrase são fenômenos linguístico-discursivos e, para que uma palavra seja sinônima de outra, é preciso que, além de terem a mesma referência, tenham o mesmo sentido. Em outros termos, “[...] duas palavras são sinônimas sempre que podem ser substituídas no contexto de qualquer frase sem que a frase passe de falsa à verdadeira, ou vice-versa” (ILARI; GERALDI, 2006, p. 44-45). O que é ter o mesmo sentido? Será que basta substituir a palavra por outra encontrada no dicionário como sempre nos orientaram a fazer? Existem sinônimos perfeitos?

TÓPICO 1 | O CAMPO DE ESTUDOS DA SEMÂNTICA

25

Segundo Bloomfield (1984, p. 145), “[...] cada forma linguística tem um significado constante e específico. Se as formas são foneticamente diferentes, supomos que seus significados também sejam diferentes. Supomos, em resumo, que não há verdadeiros sinônimos”, como em (a) Sei que o caminho é longo, mas lutarei sempre; (b) O caminho é longo até minha casa. Nesses casos, os sentidos da palavra "longo" são construídos apenas quando contextualizados, ou seja, em (a) o significado é sofrido, penoso, árduo e em (b) o sentido é extenso, longo, demorado.

Há também aquelas palavras cuja configuração fonêmica é distinta como em pueril/infantil, achar/encontrar. Podemos considerá-las sinônimos? Incialmente, podemos concluir que sim, pois o dicionário Michaelis on-line aponta como sinônimas.

(9) Vamos observar um determinado contexto em que isso não se sustenta:

a. Gari encontra bolsa com mais de mil reais. b. Mãe acha o filho roubado há 38 anos no Gama.

Se trocarmos as palavras "encontra" e "acha" em (9.a) e (9.b), alteramos os sentidos, uma vez que, semanticamente, o gari, ao encontrar a bolsa, não estava a sua procura. Ele, casualmente, a encontrou. Já no caso da mãe, estava em busca de algo que perdeu, nesse caso, o filho. Sacconi (2005), gramático e dicionarista, adverte que convém não confundir os significados dessas duas palavras achar/encontrar.

Ullmann (1964) afirma que existem poucas palavras que são completamente sinônimas e cita a linguagem técnico-científica que não pode ter ambiguidade ou os sinônimos absolutos quando as palavras podem ser intercambiáveis em todo contexto, como no exemplo adaptado de Ilari e Geraldi (2006):

(10) a. Toda menina pode ser o que quiser. b. Toda garota pode ser o que quiser.

(11) a. A polícia prendeu a quadrilha. b. A quadrilha foi presa pela polícia.

Em (10.a) e (10.b), temos as palavras "menina" e "garota" com o mesmo significado, pois referem-se ao mesmo conteúdo. Na sentença ativa (11.a) e passiva (11.b), há paráfrases. No entanto, em outro contexto, a sinonímia se dissolve como nesse exemplo.

(12) A garota não gosta de ser chamada de menina pela mãe.

Com relação à paráfrase ou sinonímia de conteúdo, é preciso que uma sentença como (a) seja uma paráfrase de (b), quando (a) e (b) forem intercambiáveis. Em uma perspectiva discursiva, o falante restaura (de forma fiel ou em partes) a ideia do texto-fonte e a reformula em um outro texto com alguns deslizamentos

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ou deslocamentos dos significados. Além disso, a paráfrase se constitui em uma reprodução ou deformação do conteúdo, sendo a reformulação do texto caracterizada pelo emprego metalinguístico.

(13) Vejamos este exemplo de Cançado (2012, p. 49):

a. Aquelas mulheres do canto estão chamando. b. Aquelas senhoras do canto estão chamando. c. Aquelas damas do canto estão chamando.

Em uma situação determinada, é possível, tomando (13.a) como fonte, evidenciar que as outras duas sentenças, (13.b) e (13.c), são reformuladas a partir de uma metalinguagem em que se usam palavras sinônimas senhoras e damas para falar sobre o mesmo tema, mas, é possível que essas sentenças deixem de ser sinônimas se, por exemplo, a palavra damas não for aceita no contexto em que foi enunciada, pois, em alguns grupos, não carrega sentidos positivos e, se isso ocorrer, a paráfrase não se atualiza.

(14) a. Pedro é um cão. b. Pedro é um cachorro.

Se não há sinônimos perfeitos entre palavras, também não há sinonímia perfeita entre sentenças. Contextualizando as sentenças, em (14.a), "Pedro é um cão" significa uma pessoa irrequieta, levada, travessa, em (14.b), "Pedro é um cachorro" significa uma pessoa sem caráter, safada. Assim, o sentido das palavras depende do contexto em que elas estão inseridas e o sentido das sentenças, de um contexto mais amplo como o texto.

(15) Observe a charge a seguir:

FIGURA 3 – CHARGE

FONTE: <http://www.cljornal.com.br/wp-content/uploads/2015/04/jp-nReal7af6e19fe3962470fc508d931ed6f28c.jpg>. Acesso em: 10 ago. 2019.

TÓPICO 1 | O CAMPO DE ESTUDOS DA SEMÂNTICA

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Essa charge (15) foi produzida em 2013 e publicada na página de Carlos Lima em referência a um desvio de verbas por uma empresa multinacional na construção do metrô paulista. A ideia apresentada, durante a charge, na conversa entre avô e neto, evidencia o tratamento dado pela escola que desvincula o fenômeno linguístico do linguístico-pragmático. A pergunta do neto em “É tudo a mesma coisa?” com relação às palavras cartel, gang, tucano, quadrilha, privataria aponta para a questão da possibilidade de haver sinônimos perfeitos ou absolutos. Esse desconhecimento de que essa categoria é rara na Língua Portuguesa e de que não há uma identidade nos significados de duas ou mais palavras, materializa-se na fala do avô quando diz que “Mesma coisa não digo”.

No entanto, essa expressão do avô não se refere à sinonímia, mas à ideia pragmática ao uso que se faz dessas palavras em diferentes contextos. Quando ele diz “que sejam ‘sinônimos’”, o avô não está se referindo à sinonímia, mas às relações de sentido existentes entre as palavras que convergem para um só discurso, o de cartel, de envolvimento, de objetivos comuns em relação ao desvio de verba. Portanto, a substituição destas palavras – umas pelas outras – vai alterar seu valor de verdade. Alterando esse valor, alteram-se suas relações de sentido.

6.2 ANTONÍMIA – CONTRADIÇÃO

A antonímia e a contradição se definem a partir das relações de sentido, como oposição entre palavras e entre sentenças, respectivamente. Quando pensamos em antonímia, a ideia é de oposição ou contrário, mas nem sempre esse é um fator preponderante entre duas palavras por não envolver, necessariamente, uma contradição. O que significa um termo oposto e um termo contraditório? Quais as implicações desses conceitos para a compreensão da antonímia e da contradição?

No tópico sobre sinonímia, afirmamos que nas línguas naturais não havia sinônimos perfeitos. Com relação à antonímia, também não há antônimos perfeitos. Esse fenômeno semântico é um tanto complexo, pois a ideia de “oposição” não se aplica apenas a termos cujos sentidos se anulam, mas também a termos nos quais os sentidos podem ser descritos como complementaridade, antonímia e reciprocidade.

A complementaridade se dá entre pares de palavras de forma que, no uso dos termos, a afirmação de uma palavra implica a negação de outra. Se alguém está morto, necessariamente, não está vivo. As palavras estão em posição contrária como nos exemplos a seguir.

(16) Marta é solteira – implica – Marta não é casada.

(17) Aquele inseto é macho – implica – Aquele inseto não é fêmea.

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Quanto à antonímia, de acordo com Lyons (1980), há uma oposição e gradação por excelência. Há uma escala de valores e, se algo está quente, não implica que esteja frio, pode estar morno, menos quente. Tudo depende do contexto.

(18) Observe a fala do técnico Heimar Hallgrimsson, da Islândia, durante a copa do mundo no Brasil.

“Difícil jogar com esse calor”.

A temperatura a que o técnico, no texto (18) se referia era 28 oC, que para o Brasil não é uma temperatura quente, mas para o time da Islândia, acostumado à temperatura média de 10 oC, estava quente. Nesse caso de antonímia, a relação vai do mais quente ao mais frio, passando por outros valores que podem ser combinados com muito quente, meio frio e um pouco quente.

A reciprocidade é a relação que se estabelece entre termos opostos que podem ser permutados e seu sentido não se altera. Se A implica B, B implica A.

(19) “Certa ocasião perguntou a Sérgio Buarque de Holanda se o Chico Buarque era filho dele e ele respondeu: — Não, o Chico não é meu filho, eu é que sou o pai dele” (PINHEIRO, 1994, s.p.).

Se Chico é filho de Sérgio implica que Sérgio é pai de Chico. Mesmo em ordem inversa, a relação é a mesma, a relação é recíproca. E quanto à contradição, o que significa dizer que os sentidos são contraditórios?

• Quando dois fatos não puderem ser realizados ao mesmo tempo.• Quando duas sentenças não puderem ser verdadeiras ao mesmo tempo.• Quando uma situação não for possível de ser verdadeira.

Em "Paulo está nervoso" e "Paulo está calmo" temos sentenças contraditórias, visto que não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo. Nesse verso de Camões (1973, p 119): “É ferida que dói e não se sente”, também, temos uma sentença contraditória, uma vez que não pode ser verdade e não há uma situação possível de ser descrita nesses termos. Pragmaticamente, no uso que se faz da língua, é possível encontrarmos contradições que exprimem informações além do que está na sentença, como em "Maria é casada e não é". Essa imprecisão semântica evidencia sentidos de contradição, por exemplo, de que Maria é casada, mas o marido nunca está presente. Então, é como se não fosse casada.

TÓPICO 1 | O CAMPO DE ESTUDOS DA SEMÂNTICA

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6.3 AMBIGUIDADE – VAGUEZA

Já estudamos em 6.1 as relações de sentido entre sinonímia e paráfrase e em 6.2 as relações que atravessam a antonímia e a contradição. Antes de encerrarmos o Tópico 1, estudaremos a ambiguidade e a vagueza, dois fenômenos semânticos que se associam a textos abertos a múltiplos sentidos, utilizados no cotidiano, propaganda, piada, poesia, notícia, entre outros.

A ambiguidade é a possibilidade de uma palavra ter mais de um significado e surgir de vários modos em uma situação linguística. Muitas vezes, a ambiguidade produz efeitos que podem levar à falta de compreensão de uma situação, pois como diz Oliveira (2008, p. 109), “[...] a ambiguidade é um fenômeno de mão única”, porque não está atrelada ao falante ou autor, mas ao ouvinte ou leitor. Por isso, para a compreensão de uma palavra, de uma expressão, de uma sentença e de um texto, precisamos considerar o contexto discursivo.

(20) Vamos observar este anúncio produzido pela ROLEX.

FIGURA 4 – RELÓGIO ROLEX

FONTE: <https://www.facebook.com/PublicitariosCriativos/photos/a.585164194835486/692135317471706/?type=3&theater>. Acesso em: 11 ago. 2019.

A ambiguidade presente no texto (20) está nas palavras pulso e morto, ou seja, na dupla interpretação que incide sobre estes itens. Em "pulso" temos a ideia de relógio e não da parte do corpo. É preciso que o leitor ative seu conhecimento acerca da marca que está no pulso de celebridade e pessoas ricas e, se o seu relógio não está sendo notado, deve-se ao fato de não ser um relógio desta marca. Portanto, a peça não é qualquer relógio, mas um Rolex que vai associar você ao luxo, notoriedade e não será considerado um morto socialmente.

A ambiguidade pode se dar, então, a partir de três fatores: fonética, gramatical e lexical (ULLMANN, 1964). A ambiguidade fonética ocorre quando o falante pronuncia uma palavra ou grupo de palavras que forma uma homonímia. Já estudamos sobre a homonímia no Tópico 3, Percurso histórico: considerações gerais.

Ilari e Geraldi (2006, p. 57) afirmam que “[...] a homonímia é frequentemente a raiz de uma ambiguidade ou dupla leitura de frases”.

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(21) Vejamos nesses exemplos ilustrativos a palavra à vista, a vista, avista que precisam ser contextualizadas para a compreensão de seu sentido.

a. Deixe a pasta à vista para que Ana a pegue.b. Estou com a vista cansada. / A vista é linda daqui de cima.c. Da sua casa, Ana avista bem melhor a paisagem.

Em (21.a), deixe a pasta visível; em (21.b), a vista, referente ao olho e à paisagem; e ,em (21.c), Ana enxerga/vê a paisagem.

(22) A ambiguidade gramatical é causada pela organização da estrutura sintática que implica dois sentidos. Vejamos:

“O celular se tornou um grande aliado do homem, mas esse nem sempre realiza todas as suas tarefas”.

Cançado (2012) denomina de ambiguidade sintática as relações de sentido também decorrentes da estrutura, mas pode ser desfeita pela posição das palavras na sentença. Como em (22), em que o pronome “suas” traz um duplo sentido, pois pode referir-se ao celular, o celular nem sempre realiza suas tarefas; ou pode fazer referência ao homem, o homem nem sempre realiza suas tarefas. Para que a ambiguidade seja desfeita, a sentença poderia ser reescrita como em (22.a) e (22.b).

(22) a. O celular, embora nem sempre realize todas as suas tarefas, tornou-se um aliado do homem.

(22) b. O celular se tornou um grande aliado do homem, que nem sempre realiza todas as suas tarefas.

Quanto à ambiguidade lexical, é preciso levar em consideração que as palavras podem tomar duas formas diferentes: a polissemia, quando a mesma palavra pode ter dois ou mais significados diferentes. E a homonímia, quando duas ou mais palavras diferentes podem ser iguais quanto ao som ou terem ortografia distinta.

(23) Vejamos o fragmento de um exemplo, retirado de Oliveira (2008, p. 110).

Duas funcionárias conversam acerca de um colega, naturalista, que não consegue parar de beber Coca-Cola® e o chefe escuta:

— Vivi, Rajneesh ligou. Disse que não vem trabalhar hoje porque não está se sentindo bem.

— É mesmo? O que é que ele tem? — Ô, Fia. Muita coca no aniversário ontem.— Mentira, Lu!— Sério, na moral!

TÓPICO 1 | O CAMPO DE ESTUDOS DA SEMÂNTICA

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A ambiguidade da palavra "coca" para o chefe, no texto (23), está no fato de que ele está fora do contexto em que a conversa ocorre entre as colegas. Talvez Rajneesh tenha de se explicar com o chefe. É o léxico e sua polissemia, muito usado por jornalistas e publicitários para chamar a atenção de seu público ,por exemplo, nesta propaganda da Garoto:

(24) No dia dos namorados, não fique sem seu garoto.

Aqui a palavra "garoto" implica namorado e, ao mesmo tempo, significa chocolate, produto anunciado pela empresa.

Para aprofundar os estudos, sugerimos a leitura do seguinte fragmento:

UM ESTUDO SOBRE A METONÍMIA COMO UM PROCESSO COGNITIVO

Ione Aires Santos

UM ESTUDO DE CASO

3.2 A NATUREZA INFERENCIAL DA METONÍMIA

O texto analisado aqui, trata-se do excerto de uma reportagem publicada em revista sobre uma fraude ocorrida no cenário futebolístico no ano de 2005. Pretende-se observar a face inferencial da metonímia conceptual e como se constitui o processo de construção de um determinado conceito via processo metonímico. A seguir, a transcrição da reportagem:

[...] Não era folclore. O juiz ladrão de carteirinha – que por muito tempo ocupou o panteão consagrado a personagens do imaginário popular, como a mula Sem-cabeça e o saci pererê – revelou-se, no Brasil, de carne e osso. Uma reportagem publicada por Veja, em setembro deste ano, mostrou como os árbitros Edilson Pereira de Carvalho e Paulo José Danelon se associaram a uma quadrilha de apostadores de loterias eletrônicas para fraudar resultados de jogos com o objetivo de lucrar com as apostas. A descoberta da máfia do apito ganhou manchetes de jornais do mundo inteiro e resultou no banimento dos árbitros, na anulação de onze partidas disputadas no Campeonato Brasileiro e no surgimento de uma metonímia: virou moda gritar: “Edilson” na arquibancada toda vez que o juiz apita mal. O escândalo serviu para escancarar o amadorismo com que é administrado o futebol pentacampeão mundial [...] (FONTENELLE, 2005, p. 92-93).

[...]

DICAS

UNIDADE 1 | A SEMÂNTICA: OBJETO, HISTÓRIA E ABORDAGENS TEÓRICAS

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Por inferência, o que estava presente na memória e intuição das pessoas se materializa e se corporifica prototipicamente na pessoa de Edilson, com base no modelo cognitivo metonímico estereótipo social (de sentido negativo), presente no sistema conceptual das pessoas. Pode-se entender que a categoria árbitro de futebol funda-se nos mais diversos conceitos, dentre os quais (aquele que arbitra; autoridade suprema, sem parcialidade; que é destacado; que tem preparo físico; que foi aprovado pela FIFA etc.). Por meio de valores e crenças, em torno do conceito juiz de futebol, emerge o conceito Edilson e tudo o que ele implica.

Nesse contexto, o signo Edilson é ressignificado passando a integrar o MCI de árbitro de futebol, por extensão do conceito ladrão. As torcidas, já não se a restringiam a gritar “ladrão... ladrão... ladrão...”, mas criativamente: “Edilson..., Edilson..., Edilson...”. Dentre os membros que formam a categoria árbitro de futebol, o conceito Edilson é tido como um dos membros mais prototípicos para a designação do profissional em questão. Embora existam juízes honestos que, nas partidas de futebol, cometam equívocos naturalmente, um determinado árbitro de futebol (parte) representa e caracteriza o conceito árbitro de futebol (todo) na intenção de se inferir e julgar o comportamento de um juiz no cenário futebolístico.

Há um delicado processo de construção de sentidos por meio de inferência metonímica: aquele que deveria fazer justiça, rouba. O texto de análise demonstra e corrobora a ideia de que a metonímia não se constitui pela noção de condições de verdade ou por mera substituição de termos, mas envolve refinado processo cognitivo conduzindo inferências tal como demonstrou Barcelona. Abaixo, verifica-se o MCI de árbitro de futebol:

Por meio da fonte metonímica estereótipo social, o juiz prototípico é aquele que rouba, sintetizado pela figura do árbitro Edilson. Constata-se, ainda, no texto, outra metonímia interessante: “A descoberta da máfia do apito ganhou manchetes de jornais do mundo inteiro” (FONTENELLE, 2005, p. 92), em que apito, enquanto instrumento de trabalho, é tido como ponto de referência cognitivo usado para fazer referência à classe de árbitro de futebol. Verifica-se por meio do texto, uma relação conceptual de base metonímica, que se configura por objeto usado pelo usuário. [...]

FONTE: AIRES, I. Um estudo sobre a metonímia como um processo cognitivo. Revista Percursos Linguísticos, Espírito Santo, v. 2, n. 5, 2012. Disponível em: http://www.periodicos.ufes.br/?journal=percursos&page=article&op=view&path%5B%5D=3568. Acesso em: 20 jun. 2019.

MCI de árbitro de futebolque arbitra

autoridade suprema, imparcialdestacado em campo

tem preparo físicoaprovado pela FIFA

que rouba, ladrão (Edilson)

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Neste tópico, você aprendeu que:

• A Semântica no campo de estudos linguísticos é uma teoria em construção e com um caráter plural, tendo o significado como objeto de estudo das línguas naturais.

• Há um panorama histórico e evolutivo acerca dos estudos do significado, enfatizando que desde Platão a discussão se fazia presente no sentido de definir os fenômenos semânticos. Na contemporaneidade, Chomsky, Katz e Fodor, Ducrot, Lakoff e Johnson são alguns dos pesquisadores que se dedicam à elaboração de uma teoria semântica.

• Na ciência das significações, as causas das mudanças semânticas se dão por dimensões linguísticas, na heterogeneidade da língua; por dimensões sociais, na relação usuários e língua; e por dimensões históricas, nas mudanças e influências sofridas pela língua ao longo do tempo.

• As transferências e relações de sentido nas formas linguísticas não são efeitos do acaso, mas de um princípio criativo, adaptativo, associativo, presentes no contexto e nas escolhas efetuadas em função dos objetivos comunicativos.

RESUMO DO TÓPICO 1

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1 De acordo com Meillet (2016, p. 75), “na maior parte dos casos, é somente a partir de hipóteses que podemos traçar a curva seguida pelo sentido de uma palavra em via de transformação”. Acerca dessa transformação semântica, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas.

( ) As mudanças linguísticas nem sempre são percebidas, pois elas ocorrem de forma lenta e não atingem a língua em sua totalidade, mas pequenas partes.

( ) Muitas vezes, um referente sofre uma evolução e se transforma; e a palavra que o designa muda para adequar-se a este novo sentido.

( ) Cada grupo social toma a língua em sua generalidade e a acomoda para seu uso, restringindo-lhe a significação.

( ) Ao transitar de um grupo ao outro, a linguagem pouco se enriquece e, assim, os empréstimos e deslocamentos de sentidos ficam restritos ao grupo.

Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA:a) ( ) V – F – F – V. b) ( ) V – F – V – F. c) ( ) F – V – V – F.d) ( ) F – V – F – V.

2 A relevância da metáfora para a linguagem e para a literatura vem sendo discutida por muitos estudiosos como uma força criadora da linguagem, como originalidade dos poetas, como um feitiço no estilo do autor. A metáfora está entrelaçada ao discurso por motivações subjetivas, artifícios expressivos, sinonímia, polissemia, abrandamento de emoções intensas, preenchimento de lacunas no enunciado e muitos outros. Sobre a metáfora, analise as sentenças a seguir:

I- Na metáfora, há uma transferência das semelhanças de um significado para outro.

II- Na metáfora, a comparação perde sua expressividade além de ficar velada e tornar os significados fossilizados.

III- Na metáfora, há uma força significativa do dizer, mas isso se torna um entrave para a compreensão dos pensamentos e produção dos efeitos de sentido.

Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) Somente a sentença I está correta.b) ( ) Somente a sentença II está correta.c) ( ) Somente a sentença III está correta.d) ( ) As sentenças I e II estão corretas.

AUTOATIVIDADE

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3 De acordo com Ferrari (2011, p. 103), a metonímia coloca em proeminência a informação relevante da caracterização enciclopédica do domínio-matriz em um determinado contexto”. Discuta esta afirmação na propaganda da Subaru.

FONTE: <https://carsale.uol.com.br/wp-content/uploads/2017/06/subaruvolvo.jpg>. Acesso em: 12 ago. 2019.

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37

TÓPICO 2

A HETEROGENEIDADE

SEMÂNTICA

UNIDADE 1

1 INTRODUÇÃOPor que insistimos em falar da heterogeneidade da Semântica? Por que

este campo de estudos da linguagem tem seu contorno um tanto movediço? Como estudar os fenômenos semânticos a partir desta heterogeneidade? Significado e sentido têm o mesmo significado? Será possível delimitar essa diversidade semântica no estudo dos significados?

Poderíamos problematizar outros aspectos da Semântica, mas nosso objetivo, neste tópico, é reconhecer a diferença entre a noção de significado e de sentido e distinguir, na heterogeneidade semântica, as principais características e objeto de estudo de investigação. Sabemos que estudar o significado e o sentido tem se revelado uma tarefa um tanto complexa, uma vez que as abordagens teóricas são distintas e não há consenso entre os semanticistas. Por exemplo:

(25) a. Deve ser difícil ser professor de natação. Você ensina, ensina e o aluno nada. b. Você não merece palmas, merece o Tocantins inteiro! c. SP terá postos de vacinação contra o sarampo no Metrô e na CPTM. d. Tom Cavalcante apresenta o espetáculo 'Todos os Toms' em Natal.

Essas são sentenças que ouvimos e lemos em nosso cotidiano e deixamos de perceber o quanto nossa língua é complexa, dinâmica e criativa: (a) o humor se materializa na palavra nada, cujos sentidos apontam para o verbo nadar (o aluno nada) e para o pronome indefinido que implica falha no aprendizado, sem resultado, não dar em nada (O aluno não nada); (b) há um trocadilho com a capital do estado de Tocantins, ou seja, o autor usou a palavra Tocantins para enfatizar a relevância da pessoa e de que ela merece muito, pois o estado é maior que a capital; (c) a desorganização da sentença provoca a ambiguidade na palavra sarampo. O sarampo está presente no metrô ou os postos serão no metrô; (d) o nome do show faz alusão às várias figuras criadas pelo humorista ou aos “tons” de humor que são criados no espetáculo.

Afirmamos, no Tópico 1, que compreender a distinção entre significado e sentido seria relevante para entender os estudos semânticos e pragmáticos a partir da pluralidade teórica e para a compreensão da significação na heterogeneidade semântica. O olhar singular de cada semanticista para o objeto de estudo favorece o desenvolvimento dos estudos semânticos. Ao falar sobre os estudos

UNIDADE 1 | A SEMÂNTICA: OBJETO, HISTÓRIA E ABORDAGENS TEÓRICAS

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da linguagem, Borges Neto (2004, p. 69) argumenta que “[...] toda tentativa de construir um objeto teórico que apanhe todos os aspectos possíveis do domínio – algo como uma teoria ‘integral’ da linguagem – está fadada ao fracasso”.

Depois de termos insistido acerca dessa heterogeneidade, já é possível saber que há diferença entre as sentenças a seguir.

(26) Qual o significado da vida?

(27) Qual o significado de “vida”?

Em (26), vamos buscar, por exemplo, uma resposta na metafísica, base da Filosofia e das questões existenciais. Em (27), vamos em busca do significado da palavra vida, de seu sentido no uso que fazemos dela. Esse é o trabalho do semanticista. Vamos deixar essa discussão acerca de sentido e significado para o próximo tópico. Lembre-se que já discutimos esse significado. Se sentir necessidade de retomar o conceito para compreender o próximo subtópico, volte ao texto.

(28) Hagar

FIGURA 5 – HAGAR

FONTE: <https://static.portugues.com.br/conteudo/images/hagar-o-horrivel.jpg>. Acesso em: 11 ago. 2019.

Na tirinha (28), podemos recuperar a questão filosófica quando Hagar se questiona sobre “Qual o sentido da vida?”. Ele quer saber o que fazer de sua vida e não o significado lexical de vida. Em “Por que estou aqui?”, temos uma outra pergunta retórica e pela palavra "aqui" inferimos que Hagar não quer repostas, apenas problematizar. No entanto, seu amigo Eddie não compreendeu os sentidos produzidos pela fala de Hagar e toma o item lexical “aqui” de forma literal, ou seja, como um marcador espacial, o que se evidencia em sua fala no terceiro quadrinho.

TÓPICO 2 | A HETEROGENEIDADE SEMÂNTICA

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2 A NOÇÃO DE SIGNIFICADO E SENTIDOA diferença entre significado e sentido nunca esteve em discussão entre

os estudiosos de base filosófica. Essas noções eram praticamente sinônimas e utilizadas, como ainda o são por algumas teorias, de forma indistinta. Isso se devia em vista da dificuldade na definição do que era significado, ideia que começamos a esboçar na Unidade 1. O significado sempre foi motivo de controvérsias entre os semanticistas, conforme argumenta Katz (1972, p. 1):

A semântica é o estudo do significado linguístico. Ocupa-se daquilo que as sentenças e outros objeto linguísticos expressam, não com o arranjo de suas partes sintáticas ou com sua pronúncia. Quase todos concordam com isso. Também se concorda, geralmente, que a questão básica da semântica é “O que é significado?” Mas, neste ponto a concordância termina e começam controvérsias intermináveis sobre que tipo de coisa é o significado (apud OLIVEIRA, 2008, p. 27).

Quando Katz (1972) afirma que as controvérsias acerca do significado

são intermináveis, evidencia que não há um conceito fechado, mas descrito a partir do ponto de vista do aparato teórico em que o estudioso se encontra. Vejamos alguns desses olhares e seus efeitos para a noção de significado. Para Bréal (1992), os primeiros estudiosos asseguravam que o objeto de estudo da Semântica é a mudança de significado sob o aspecto diacrônico, ao longo do tempo; Trier (1934 apud Lyons, 1980) assegurava que o objeto de estudo da Semântica era a estrutura lexical; Tarski (1990) elege como objeto de estudo as condições de verdade nas sentenças; Lakoff e Johnson (1980) tomam como objeto de estudo a relação entre significado e cognição; já Austin (1990) e Grice (1982) tomam os atos de fala como objeto de estudo.

Diante de todas essas controvérsias acerca do significado, Morris (1976) propõe que o termo “significado” seja descartado, uma vez que os pesquisadores não chegam a um caminho comum. A fim de compensar esta heterogeneidade, Bendix (1996, p. 1-2) sugere:

O problema do linguista, contudo, não é encontrar o significado de significado, em muitos aspectos um conceito nebuloso, mas sim formular uma definição com a qual ele, enquanto linguista, possa trabalhar. Isso não precisa nem ser rotulado com uma definição do termo significado, mas a de algum objeto pesquisável que ele considere justificável chamá-lo por esse nome.

Essa dinamicidade na noção do significado aponta para a heterogeneidade, para a proposta de que não há uma semântica, mas semânticas que constroem teorias singulares a respeito do estudo das línguas naturais e ampliam o significado de “significado”, construindo pontes que levam ao sentido. Como entender o significado de “sentido”? Por que falamos em sentido e não apenas em significado? Essas noções são diferentes? Vamos por partes. Observe:

(29) O cachorro do vizinho fugiu de casa.

UNIDADE 1 | A SEMÂNTICA: OBJETO, HISTÓRIA E ABORDAGENS TEÓRICAS

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Semanticamente, entendemos esta sentença (29) porque conhecemos essas palavras e elas se referem a mesma situação no mundo. Esse conhecimento depende do sistema da língua e, por sua vez, cada palavra dessa sentença está associada a pelo menos um significado. A palavra "cachorro" se refere a um objeto no mundo: o animal. Assim como vizinho, fugiu e casa são conceitos, conforme a abordagem referencial, bem definidos cujos significados independem do falante e do contexto de uso.

Agora vamos contextualizar a sentença (29) e observar os sentidos produzidos a partir de uma abordagem que leve em consideração que os sentidos se produzem na relação sujeitos e uso da língua. Além do significado literal apontado, ou seja, entre a relação linguagem e mundo, é possível criar um contexto. João e Pedro são vizinhos e Pedro joga lixo na frente da casa de João que vai até a casa de Pedro tirar satisfações e tentar compreender suas ações, mas Pedro acaba saindo de casa para não encontrar com João e esperar “esfriar” os ânimos de seu vizinho. Alguém pergunta se João achou Pedro e ele, nervoso, acaba respondendo com a sentença (29). Nesse caso, a palavra "cachorro" foge ao sentido de animal e passa a evidenciar homem de mau-caráter, desprezível, canalha. Portanto, vemos que os sentidos vão além do que é dito.

Como entendemos esses sentidos? Como entendemos quando alguém enuncia uma sentença ambígua e polissêmica? Precisamos entender, inicialmente, que a Semântica é construída na heterogeneidade e que a linguagem deve ser analisada além da descrição dos estados das coisas e da relação mundo e conceitos mentais. A linguagem não pode ser tratada apenas do ponto de vista da gramática, mas também do uso de onde emergirão outros sentidos.

Tomando o viés da perspectiva enunciativa da linguagem, precisamos entender que o “[...] o próprio da linguagem é, antes de tudo, significar” (BENVENISTE, 1974, p. 222), ou seja, a atividade de linguagem não é uma virtualidade como a língua proposta por Saussure (1974), mas sim uma realização. Sendo assim, agora estamos falando de enunciação, atividade social e interacional. E o sentido, como compreendê-lo, então? O sentido é efeito da enunciação, entendida como um ato individual, em que há um sujeito que se apresenta na linguagem para produzir determinados efeitos de sentido, quando é colocada em funcionamento; por isso, comporta uma intencionalidade.

“O significado [...] não tem nada a ver com a relação de pareamento entre linguagem e mundo [...] o significado é uma questão da cognição em geral, e não um fenômeno pura ou prioritariamente linguístico” (OLIVEIRA, 2001, p. 34-35).

NOTA

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O sentido resulta da enunciação e não apenas da língua, mas de efeitos da língua em determinadas situações mais ou menos previstas. O sentido é criado pelo enunciado. Do ponto de vista semântico, a frase é constituída de significação e o enunciado de sentidos. Ainda podemos falar de efeitos de sentido quando o sentido vai além do reconhecimento das palavras e da relação entre os interlocutores, mas se constitui quando os interlocutores colocam em uso a língua frente às condições sociais e históricas de produção do enunciado, o discurso. Vejamos na prática.

(30) Armandinho

FIGURA 6 – TIRA DO ARMANDINHO

FONTE: <https://files.nsctotal.com.br/cdn-cgi/image/w=750,q=75/styles/paragraph_image_style/s3/imagesrc/23633618.jpg?_WEWp5XRUbE1QAzc409sXP6YJedtz39c&itok=3_ItEkxL>.

Acesso em: 10 ago. 2019.

As entidades linguísticas (tudo aquilo que faz parte do contexto dos interlocutores: aquele que fala e aquele que ouve) possuem significação na língua e produzem sentidos no discurso que podem ser resgatados na materialidade e nos efeitos produzidos entre os interlocutores na enunciação. Na tirinha (30), a cena se dá entre Armandinho que passeia com o carrinho de boneca e um amigo. A fala do amigo, “Brincando de boneca?!”, evidencia um discurso no qual brincar de bonecas é uma atividade feminina e que cuidar de crianças é uma tarefa das mães. Os sentidos desse discurso machista do amigo são produzidos pelo linguístico do qual emergem efeitos no e através do texto, sendo esses efeitos construídos pela sociedade e cultura.

No entanto, esse discurso machista de que “meninos brincam com carrinhos e meninas com bonecas” é desconstruído por Armandinho pela estrutura linguístico-discursiva, uma vez que os sentidos não resultam apenas da língua, mas também do uso que se faz dela. No caso da tirinha, no terceiro quadrinho, evidencia-se um outro efeito de sentido distinto do discurso produzido pelo amigo. É possível evidenciar que Armandinho, ao enunciar "brincando de pai", ativa um discurso de igualdade de gêneros em que a tarefa de cuidar dos filhos é tanto da mãe quanto do pai.

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Para ampliar o conhecimento acerca de sentido e seus efeitos, recomendamos a leitura de:

• ARAÚJO, I. L. Por uma concepção semântico-pragmática da linguagem. Revista Virtual de Estudos da Linguagem – ReVEL. v. 5, n. 8, mar. 2007. Disponível em: www.revel.inf.br. Acesso em: 4 nov. 2019.

• FOSSEY, M. F. Semântica global e possibilidades discursivas: o discurso relatado em duas revistas de divulgação científica. Alfa, São Paulo, v. 50, n. 1, p. 91-112, 2006 Disponível em: https://periodicos.fclar.unesp.br/alfa/article/viewFile/1397/1097. Acesso em: 26 ago. 2019.

• ORLANDI, E. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis: Vozes, 1996.

DICAS

3 ABORDAGENS TEÓRICASComo já apontamos em outro momento deste estudo, tratamos das

semânticas não da semântica. Por isso, de forma sucinta, vamos apresentar as principais abordagens teóricas, apontando pontos relevantes que singularizam cada uma delas. Uma dessas abordagens é a referencial que tem em Frege (1978) seu principal representante. Essa abordagem tem se constituído em uma base para as outras abordagens, embora exista uma certa negação dessa filiação. Sua contribuição está presente na relação referência e sentido que contribui para o entendimento de que é possível falar de algo de várias maneiras.

A abordagem mentalista toma o trabalho de Lakoff e Jonhson (1980) como norte dos estudos sobre metáfora conceitual e enfatiza que o pensamento é estruturado por esquemas. O significado não é mais o reflexo da realidade e nem pode ser tomado como abstração. O significado envolve o uso da linguagem em contextos reais e interacionais. A terceira abordagem é a pragmática que enfoca os trabalhos de Grice e Austin e a Teoria dos Atos de Fala, na qual a linguagem é uma forma de agir no mundo e os enunciados são utilizados para os sujeitos realizarem ações.

3.1 ABORDAGEM REFERENCIAL

A referência, o sentido e as implicações (acarretamento e pressuposição) são noções básicas da abordagem referencial que trata do significado a partir do aparato teórico da Semântica Formal conhecida, também, como Semântica Lógica, Semântica Referencial ou ainda Semântica de valor de verdade.

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A abordagem referencial investiga o significado que se constitui na relação do linguístico com o mundo, ou seja, os aspectos objetivos do significado. Essa objetividade é garantida pela concordância existente entre uma comunidade e as “condições de verdade” presentes na língua. Como conhecer as “condições de verdade”? Quando podemos reconhecer em que circunstâncias uma sentença pode ser verdadeira ou falsa? Como o sentido permite chegar a uma referência no mundo? Qual a relação do acarretamento e da pressuposição com o significado?

De acordo com a abordagem referencial, é preciso conhecer as condições em que uma sentença pode ser verdadeira ou falsa para que possamos conhecer seu significado a partir de diversas situações possíveis de acontecer. Se alguém diz “aquele bicho branco é amarelo”, logo pensamos o quanto é estranha, sem sentido e negamos ser um enunciado cujo valor de verdade pode ser experienciado no mundo. Por outro lado, se alguém afirma que “o candidato X foi eleito para o Grêmio da escola”, essa sentença pode ser verdadeira ou falsa, mas é coerente, tem um valor de verdade e pode ser determinada a existência desta situação no contexto escolar.

Portanto, é preciso compreender que as línguas são flexíveis e produtivas e, nas teorias referenciais, a ideia de língua implica em:

[...] um conjunto de palavras e regras para combiná-las. As palavras são associadas por convenção a objetos (isto é, os denotam). Em virtude dessa associação podemos empregar sequências de elementos lexicais para codificar as situações em que os objetos se encontram (CHIERCHIA, 2003, p. 45 apud CANÇADO, 2012, p. 87).

Em outras palavras, essa ideia refere-se à relação referência e sentido presente na língua e que contribui para a compreensão de que podemos nos referir a algo de várias maneiras. O conhecimento que temos da nossa língua não é uma lista de sentenças ou um amontoado de palavras, mas uma relação entre linguagem e realidade, como defendia Frege (1978), ao debater acerca do modo de localizar e marcar no mundo os objetos a fim de estabelecer seu valor de verdade.

Gottlob Frege (1848-1925) foi um dos primeiros autores a elaborar as questões fundamentais da Semântica e Bertrand Russel (1878-1970) desenvolveu as ideias de Frege. Inicialmente, o léxico estava na base dessa abordagem com o estudo da polissemia, sinonímia, ambiguidade e antonímia. Quando o estudo da relação do linguístico com o extralinguístico se torna mais sólido entre os pesquisadores, fenômenos ligados à sentença como acarretamento, pressuposição, papéis semânticos, referência, entre outros, passam a compor a pauta semântica.

Vamos aprofundar, a seguir, os fundamentos dessa abordagem – referência e sentido; acarretamento e pressuposição.

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Temos discutido acerca da heterogeneidade presente no campo semântico e as controvérsias com relação ao conceito de significado. Essa falta de consenso se estende também ao conceito de referência atravessado por sentidos diferentes. O significado é composto por duas noções básicas: a referência, valor de verdade de uma sentença, o objeto no mundo; e o sentido, caminho que tomamos para chegar ao referente.

Não confundir sentido com efeitos de sentido.

• Sentido, para a abordagem referencial, é o modo como o objeto (referência) é apresentado, ou seja, são os caminhos (paráfrases) utilizados para apresentar a referência.

• Efeitos de sentido, nos estudos do discurso, constituem-se na relação entre interlocutores no uso da língua em relação às condições sociais de produção do enunciado.

DICAS

Os exemplos a seguir ilustram o significado.

(31) Arthur Zanetti erra e fica com a prata.

(32) Campeão olímpico erra e fica com a prata.

As expressões "Arthur Zanetti" e "Campeão olímpico" denotam a mesma pessoa, ou seja, o mesmo referente no mundo real, mas não possuem o mesmo sentido. Por quê? Porque cada uma dessas sentenças afirma proposições diferentes. Em (31), o nome Arthur Zanetti refere-se a uma única referência no mundo, uma vez que os nomes próprios são referência por excelência, de acordo com Frege (1978). O nome Arthur Zanetti é um sujeito único no mundo. Em (32), a expressão “Campeão olímpico” não recupera Arthur Zanetti, pois, se não tivermos este conhecimento, não conseguiremos recuperar esta informação. Então, a referência, nesse caso, estende-se a um indivíduo do grupo de ginastas que não conseguiu a medalha de ouro entre tantos ginastas.

A partir disso, as sentenças (31) e (32) não podem vincular o mesmo significado, pois não têm as mesmas informações e os sentidos são distintos, embora apontem para coisas no mundo. Se tivéssemos esta sentença:

(33) Campeão olímpico erra e fica com a prata nas argolas.

3.1.1 Referência e sentido

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Aqui teríamos uma mesma referência com relação a (33), pois seria possível alcançar uma mesma referência por diferentes sentidos, por caminhos distintos. Em (33), aprendemos algo novo acerca de Arthur Zanetti: ele é um campeão olímpico e é um ginasta da modalidade das argolas. Então, de acordo com Oliveira (2001, p. 95), “[...] o sentido é o caminho que nos leva à referência” e, nesse caso, temos dois caminhos para uma referência.

(34) O exemplo de Mari (2005) é muito ilustrativo acerca do sentido e dos caminhos que levam à referência:

“3” = segundo número ímpar da série dos inteiros;número primo;soma de 2+1;resultado da subtração de 5-2;resultado multiplicação de 3x1;resto da divisão de 8:5...

Mari (2005) aponta vários caminhos para falar do algarismo “3” e que vão garantir a referência desse algarismo. São modos de apresentar uma referência, são paráfrases, são relações semânticas entre expressões de uma língua. Para chegar à referência, é preciso que tenhamos apreendido o sentido da expressão que ouvimos e possamos comunicar ao outro sobre os vários sentidos para se chegar ao algarismo “3”. Assim, o significado de uma mesma referência pode ser alcançado por diferentes sentidos.

Estas são algumas paráfrases acerca do Brasil e exemplificam os caminhos que podem ser tomados para chegar à referência Brasil. A partir destes caminhos, aprendemos algo novo, descobrimos que podemos nos referir ao nosso país de formas diversas, por meio de sentidos diferentes, de olhares distintos para a mesma referência, de modos para chegar à verdade.

(35) SENTIDOS REFERÊNCIAPaís do CarnavalPaís da diversidadePaís das belezas naturaisPaís do futebolPaís multiétnico

BRASIL}Para a abordagem referencial, referência e sentido são aspectos objetivos

do objeto, porque são compartilhados pelos sujeitos, por uma comunidade. E quanto mais sentidos conseguirmos reunir sobre algo, maior é o nosso conhecimento. Assim, sentido e referência fazem parte do significado que carrega também o conceito de representação. Para representação, vamos ter presente a questão subjetiva que vai além dos aspectos semânticos, pois cada um tem sua representação.

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A referência de um nome próprio é o próprio objeto que por seu intermédio designamos; a representação que dele temos é inteiramente subjetiva; entre uma e outra está o sentido que, na verdade, não é tão subjetivo quanto a representação, mas que também não é o próprio objeto (FREGE, 1978, p. 65).

O próprio Frege (1978) nos dá uma explicação bem prática acerca desses conceitos. Ele toma a lua vista por algumas pessoas a partir de um telescópio. A lua seria a referência; a imagem projetada pelo telescópio, utilizada pelos observadores, seria o sentido e a imagem que se projeta na retina de cada observador seria a representação.

A partir disso, os estudos do significado da abordagem referencial são questionados em vista de três problemas que não vamos discuti-los, mas enfatizar que podem se constituir em um campo aberto para que você empreenda novos estudos semânticos.

• Há várias palavras que não têm referente no mundo real, como “fadas, unicórnios, anjos” assim como palavras, como “de, e, com” e, por isso, não têm significado, devendo ser excluídas de um modelo de descrição da linguagem. Sabemos que isso precisa ser superado, uma vez que sabemos o quanto a conjunção “e” tem significado.

• Para uma teoria que explica o significado como referência, expressões sinônimas em que uma delas não tenha referente no mundo real é considerada nula em seu significado. Essa classificação precisa ser revisada.

• Com relação aos nomes próprios, considerados de excelência na referência e semelhantes a outras classes gramaticais, deve ser questionada esta semelhança com nomes comuns, adjetivos e outras classes.

Existem outras questões que não são contempladas pela abordagem referencial por não abordar as relações com as metáforas, a intenção dos falantes, o uso da língua em situações reais e contextualizadas. Agora veremos outras propriedades semânticas sob a perspectiva referencial: as implicações que comportam o acarretamento e a pressuposição.

• Acarretamento

Muitas vezes, a dificuldade de compreensão de um texto pode estar em uma palavra e, geralmente, vamos em busca de nosso conhecimento de mundo para preencher as lacunas encontradas. Parece ser este o caminho mais viável, mas estamos no campo da abordagem referencial e o que temos de fazer é exatamente o contrário. Precisamos nos desenredar de todas as informações que, porventura, tenhamos acrescentado para facilitar o entendimento do texto e deixar apenas o que está explícito nas relações entre os itens lexicais.

3.1.2 Implicações

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HIPÔNIMOS HIPERÔNIMOS GatoCachorroCoelhoPapagaioZebra

ANIMAL}Em (36), temos a palavra "animal" que contém o conjunto menor de seres

(gato, cachorro, coelho, papagaio, zebra, etc.). Assim, há uma relação entre as palavras. Nosso interesse é entre as sentenças, o acarretamento, compreendido como “[...] a relação existente entre sentenças, quando o sentido de uma sentença está incluído no sentido da outra” (CANÇADO, 2012, p. 32).

(37) Vamos observar o exemplo para compreender esta relação:

a. A professora pediu aos alunos que lessem Camões. b. A professora pediu aos alunos que lessem um livro.

É possível evidenciar a relação de acarretamento entre as sentenças, pois a ideia contida em (37b) está contida em (37a) e que, portanto, podemos concluir que ambas são verdadeiras.

Vejamos agora as sentenças em (38), em que não ocorre acarretamento para observarmos os diferentes aspectos presentes nas sentenças.

(38) a. A professora pediu aos alunos que lessem Camões. b. A professora pediu aos alunos que entregassem a pesquisa.

Em outras palavras, precisamos desvincular o conhecimento extralinguístico construído a partir de conteúdos previamente elaborados por significados literais e outros resultantes do uso e atravessados por noções semântico-pragmáticas, acarretamento e pressuposição. Vamos nos dedicar à noção de acarretamento que, segundo Cançado (2012, p. 31), “[...] é uma noção estritamente semântica, que se relaciona somente com o que está contido na sentença, independentemente do seu uso.”

Antes de discutirmos o acarretamento que compreende uma relação entre sentenças, vamos observar como se dá a relação entre palavras, a hiponímia. “A hiponímia pode ser definida como uma relação estabelecida entre palavras, quando o sentido de uma está incluído no sentido de outra” (CANÇADO, 2012, p. 31). Um hiperônimo pode ser compreendido como um conjunto que contém os hipônimos. Vejamos no exemplo:

(36)

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Por que podemos dizer que em (37) temos acarretamento e em (38) não temos? A resposta está na falta de relação entre as ideias contidas nas sentenças, embora possamos ter uma relação, por exemplo, inferir que após a leitura a professora solicitou a pesquisa sobre o autor. No entanto, como estamos lidando apenas com o sentido expresso nas expressões lexicais, não é possível pressupor esta atividade escolar, pois, como afirma Ilari (2004, p. 85), “Temos acarretamento toda vez que a verdade de uma sentença implica a verdade de uma outra, simplesmente pela significação de suas palavras”. Portanto, não há acarretamento entre as sentenças em (38).

Imaginemos que entre os alunos considerados aplicados para irem à olimpíada de Português, você não considere que João está apto. Neste caso, teremos:

(39) a. O João está apto e vai para a olimpíada. b. Mas o João não está apto para ir à olimpíada, na verdade, ele é o mais

fraco do grupo.

A sentença (39a) não acarreta a sentença (39b) porque se (39a) for considerada verdadeira, necessariamente, a sentença (39b) não precisa ser verdadeira. A informação da sentença (39b) não está contida em (39a). A questão não é que seja verdadeira ou falsa, mas a contradição entre elas. Portanto, de acordo com Cançado (2012, p. 33), duas sentenças mantêm uma relação de acarretamento se:

• “a sentença (a) for verdadeira, a sentença (b) também será verdadeira;• a informação da sentença (b) estiver contida na informação da sentença (a);• a sentença (a) e a negação da sentença (b) forem sentenças contraditórias”.

Podemos afirmar e negar uma informação sem que sejam contraditórias. Ambas serão verdadeiras se estiverem se referindo a fatos que ocorram no mundo. Vamos, agora, tratar de um outro conceito de implicação, a noção de pressuposição.

• Pressuposição

Assim como apontamos acerca da noção de acarretamento, a pressuposição amplia o conceito de implicação, uma vez que se constitui como uma noção semântico-pragmática. O que isso significa? Como o uso dessa noção se distingue do acarretamento? Vamos começar por entender esta noção a partir do que dizem Ilari e Geraldi (2006, p. 76).

[...] as pressuposições não fazem parte do conteúdo acertado; entretanto, é preciso salientar que no processo pelo qual somos levados a compreender um conteúdo pressuposto, a estrutura linguística nos oferece todos os elementos que nos permitem derivá-lo.

TÓPICO 2 | A HETEROGENEIDADE SEMÂNTICA

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O que os autores nos fazem compreender é o fato de que a pressuposição está no meio do caminho, entre o acarretamento e as implicaturas conversacionais. Ou seja, enquanto no acarretamento o significado é construído a partir do sentido literal da sentença, de uma relação exclusivamente semântica e os atos de fala de uma relação somente pragmática, a pressuposição tem implicações semânticas e pragmáticas, sentido e uso linguístico. Vejamos:

(40) a. A farmácia é vítima de novos assaltos. b. A farmácia já foi assaltada outras vezes.

Para que a informação contida em (40b) seja compreendida, é preciso que os interlocutores partilhem do mesmo conhecimento. A noção de pressuposição envolve a condição de uso, de atuação do falante/ouvinte, autor/ leitor no discurso. Dessa forma, a pressuposição pode ser definida a partir da relação entre as duas sentenças, sendo que a informação de (40a) está pressuposta em (40b) e não é contraditória. Você precisa lembrar-se de que a pressuposição implica que os interlocutores devem compartilhar o mesmo contexto. No caso dos exemplos em (40), podemos dizer que "novos" é uma expressão que introduz uma pressuposição.

Se a noção de pressuposição aponta para o uso da língua, é importante enfatizar acerca da criatividade que se faz presente quando produzimos, entendemos e compartilhamos sentenças novas. Vale acentuar que a criatividade não está atrelada apenas ao gerativismo. Na Semântica, encontramos palavras e regras para combiná-las e Frege, no século XIX, já se propunha a analisar o “princípio de composicionalidade” que, traduzido como a criatividade, gera estruturas complexas a partir do uso e das combinações entre as palavras. Oliveira (2001), ao discorrer sobre a compreensão de sentenças novas, aborda a criatividade.

A criatividade é nossa capacidade de entender (e produzir) sentenças novas. A referencialidade diz respeito ao fato de que usamos a língua para falar sobre o(s) mundo(s) (inclusive o mundo interior, o dos sonhos, o da ficção) A rede de sentenças diz respeito ao fato de que saber uma sentença é saber muitas outras, porque as sentenças de uma língua se inter-relacionam (OLIVEIRA, 2001, p. 50).

Assim, a criatividade vai contribuir para a compreensão dos fatos da língua lidos ou ouvidos no cotidiano. Frege (1892 apud CANÇADO, 2012, p. 37), em suas pesquisas, observou que, em algumas sentenças, o sentido permanecia inalterado diante de uma negação, interrogação ou condição. Vejamos:

(41) a. Maria parou de trabalhar no hospital. a’. Não foi Maria que parou de trabalhar no hospital. a’’. Foi Maria que parou de trabalhar no hospital? a’’’. Se foi Maria que parou de trabalhar no hospital... b. Alguém trabalhava no hospital.

Todas as sentenças em (41) expressam uma verdade: o falante acredita que alguém trabalhava no hospital ou quer que seu interlocutor acredite. Assim, a sentença (41a) pressupõe a sentença (41b), porque a família da sentença (41a),

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expressa por a’, a’’, a’’’, toma a sentença (41b). A pressuposição atua sobre o enunciado e o falante quer direcionar a conversa, fazendo com que seu interlocutor crie expectativas com relação a (41b).

Portanto, as sentenças em (41), segundo Cançado (2012, p. 39), são definidas como família e são determinadas por “[...] quatro formas dessa sentença: a declaração afirmativa, a negação dessa afirmativa, a interrogação e a condição antecedente.” A pressuposição ocorrerá quando essa família tomar como verdade uma determinada sentença. Ainda, de acordo com Cançado (2012), há várias expressões, itens lexicais ou estruturas que desencadeiam a pressuposição. Vejamos alguns tipos, seus exemplos e a justificativa da pressuposição.

QUADRO 2 – DESENCADEADORES DE PRESSUPOSIÇÃO

Desencadeadores Exemplos Justificativa

Orações subordinadas

a. Maria já nadava, quando você conheceu o mar.a'. Maria ainda não nadava, quando você conheceu o mar.a''. Maria já nadava, quando você conheceu o mar?a'''. Se Maria já nadava, quando você conheceu o mar, ...b. Você conheceu o mar.

A sentença (b) é um pressuposto de (a), porque a família de (a) toma (b) como verdade.

Verbos factivos

a. João sabe/adivinhou/esqueceu que o time caiu na tabela.a'. João não sabe/adivinhou/esqueceu que o time caiu na tabela. a''. João sabe/adivinhou/esqueceu que o time caiu na tabela?a'''. Se João sabe/adivinhou/esqueceu que o time caiu na tabela, ...b. O time caiu na tabela.

A sentença (b) é um pressuposto de (a), porque a família de (a) toma (b) como verdade.

Mudança de estado

a. João parou de clinicar.a'. João não parou de clinicar.a''. João parou de clinicar?a'''. Se João parou de clinicar, ...b. João clinica.

A sentença (b) é um pressuposto de (a), porque a família de (a) toma (b) como verdade.

Orações adjetivas não restritivas

a. Saussure, que foi o pai da Linguística, foi estruturalista. a’. Saussure, que foi o pai da Linguística, não foi estruturalista. a’’. Saussure, que foi o pai da Linguística, foi estruturalista?a’’’. Se Saussure, que foi o pai da Linguística, foi estruturalista, ...b. Saussure foi estruturalista.

A sentença (b) é um pressuposto de (a), porque a família de (a) toma (b) como verdade.

FONTE: Adaptado de Cançado (2012)

Há outros tipos de desencadeadores de pressuposição e o relevante nesta implicatura é o fato de que as entidades linguísticas têm significações e sentido, respectivamente, na língua e no discurso, como vimos no início do Tópico 2. O encadeamento semântico nas sentenças é propiciado pelas marcas do falante/ouvinte, autor/leitor que são percebidas pela compreensão do enunciado. Por exemplo, nesse jogo semântico-pragmático, quando sua colega pergunta as horas e você responde que já deveria ter saído, a compreensão de sua colega deve ser a de que você tem um compromisso e já está atrasada. Assim, o objetivo não é reconhecer os desencadeadores, mas saber estabelecer a pressuposição presente no enunciado, realização e manifestação da frase, entidade abstrata.

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3.2 ABORDAGEM MENTALISTA

A heterogeneidade semântica continua fazendo parte de nossa pauta neste estudo e, em vista disso, a concepção de significado também tem sido diferente. Isso resulta em diferentes abordagens e algumas são mais difundidas, passando a delimitar seu objeto de estudo. Assim:

[...] para alguns, o significado é a relação que se dá entre as expressões linguísticas e o mundo externo que as expressões descrevem [...]; para outros, o significado é a relação que se dá entre as expressões linguísticas e o uso que os falantes fazem delas [...]; para outros, ainda, o significado é a relação entre as expressões e algo equivalente aos conceitos mentais propostos pela teoria ideacional do significado [...] (BORGES NETO, 1998, p. 5).

O que o autor resume são as bases da abordagem referencial na qual se dá a relação entre o léxico e mundo externo, da abordagem pragmática e o uso da língua e, por fim, a abordagem mentalista e a relação da língua com a mente. É esta abordagem que vamos tomar para explicar que grande parte da linguagem é estruturada metaforicamente e apenas o conhecimento linguístico não dá conta de uma análise semântica como queriam as teorias clássicas.

Dentro da abordagem mentalista, iniciada nos anos de 1970, embora os estudos ainda fossem compatíveis com as premissas básicas da constituição do significado, isso dava uma sensação de artificialidade da relação semântica e pragmática. Langacker (2008, p. 28) afirmava que essa “[...] visão estática e insular atribuída à semântica cognitiva deveria ser considerada incapaz de lidar com a natureza dinâmica, intersubjetiva e dependente do contexto de construção de significado no discurso real” (tradução nossa). A imagem de que a língua é um sistema formal autônomo deveria ser desconstruída para ceder lugar à ideia de que a língua reflete nossas experiências de nos movermos, percebermos e agirmos no mundo.

Pesquisadores como George Lakoff, Ronald Langacker, Leonard Talmy, Charles Fillmore e Gilles Fauconnier postulavam que o significado não poderia ser mais estudado como reflexo da realidade e visto como abstração. O significado deve envolver a pragmática, pois as palavras sempre ocorrem em um contexto. Em vista disso, há uma limitação na abordagem referencial com relação à Semântica de condições de verdade que deixava de incluir em suas investigações o uso da linguagem em contextos interacionais.

A ideia de estudar a língua de forma modular (fonologia, morfologia, sintaxe, semântica) é abandonada e surge a perspectiva integradora. Isso se justifica pelo fato de todos os níveis da língua compartilharem sentidos e existir um compromisso com a interdisciplinaridade, como no caso da polissemia que não se dá apenas no léxico, mas também na morfologia e sintaxe. Vejamos um exemplo ilustrativo, retirado de Ferrari (2011, p. 25):

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QUADRO 3 – POLISSEMIA

FONTE: Ferrari (2011, p. 25)

PALAVRAS SENTIDOSBigodão, barrigão Tamanho maior, avantajado

Sopão, pratão Quantidade de comidaAbração, tapão Intensidade

Resmungão, pidão Iteratividade / pejoratividadeSolzão, filmão Avaliação positiva

Nesses exemplos, o sufixo -ão produz sentidos um tanto distintos nas palavras como tamanho, quantidade, intensidade, iteratividade, avaliação. No entanto, as mesmas palavras compartilham a ideia de aumento que agrega sentidos positivos ou negativos ao léxico. A esse fenômeno damos o nome de polissemia, que estava no centro dos estudos semânticos de Bréal que já via no uso e na relação com a cognição e cultura a melhor resposta às necessidades dos falantes.

A polissemia precisa deixar de ser vista, conforme a abordagem referencial, apenas como fenômeno lexical. Ao contrário, deve ser realizada no contexto da pragmática, da língua em uso na qual os sentidos são intepretações determinadas pelo contexto. Veremos essa dimensão nos próximos itens, nos quais discutiremos a noção de papel temático e de metáfora que assumem um importante papel para a compreensão das experiências cotidianas.

3.2.1 Papéis temáticos

Vamos iniciar esta discussão a partir desses exemplos: (42) A Maria dirigiu até o supermercado.

(43) O João morreu.

Se formos analisar a partir da gramática tradicional, Maria e João, diríamos que são palavras que pertencem à classe dos substantivos e assumem a função de sujeito – lembrando que a definição de sujeito na gramática remete ao termo essencial da oração e é aquele que sofre ou realiza uma ação. Voltemos aos nossos exemplos. Agora, se analisarmos novamente as duas sentenças sob o olhar da Semântica mentalista, vamos encontrar outros processos relacionais nas sentenças.

Em (42), Maria é o desencadeador da ação de dirigir e tem o controle da situação, portanto, é agente e, em (43), há uma outra relação, pois "João" não é o desencadeador da ação, mas aquele que sofre o efeito da ação e, nesse caso, ele é o paciente. Essas informações nos levam a definir os papéis temáticos, ou seja,

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as funções semânticas desempenhadas pelas estruturas argumentais na língua portuguesa. O que seriam as estruturas argumentais e qual sua relevância para as definições dos papéis temáticos?

As estruturas argumentais são informações, sintáticas e semânticas, que orientam a construção das sentenças. Por exemplo:

(44) Mário colocou o carro na garagem.

Assim, as informações sintáticas do verbo "colocar" nos dizem que é um verbo transitivo direto; e as informações semânticas de que há um agente, um tema e um locativo. Essas últimas informações constituem as relações semânticas que se estabelecem, nesse caso, entre o verbo colocar e seus argumentos (sujeito e complementos) que se apresentam assim:

QUADRO 4 – COLOCAR: AGENTE, TEMA, LOCATIVO

FONTE: Adaptado de Cançado (2012)

Agente Tema Locativo

desencadeador da ação. entidade deslocada por uma ação.

lugar em que algo acontece ou está situado.

Mário o carro na garagem

Podemos perceber, então, que para cada verbo teremos diferentes papéis temáticos, pois as informações que estarão associadas aos verbos fazem parte dos nossos conhecimentos semânticos de nossa língua. Ou seja, vamos construindo essas informações e saberemos que o verbo "morrer" está associado à paciente, pois sofre a ação; da mesma forma, saberemos que "matar" implica um agente e um paciente, ou seja, aquele que desencadeia a ação, que tem tudo sob seu controle e o outro que vai sofrer os efeitos dessa ação.

Assim, os papéis temáticos são considerados como representações mentais e se constituem em noções que ligam o conceito mental ao sentido. Cançado (2012) afirma que os papéis temáticos têm sido tomados como objeto de estudo de diferentes correntes teóricas e a abordagem cognitiva defende a relação entre o mundo e o léxico, mediada pela cognição. Desse modo, o significado é uma construção cognitiva e, por meio dele, apreendemos e experienciamos o mundo atravessado por palavras que orientam a construção do sentido.

O papel temático de um argumento, ou seja, a função semântica que determinado argumento exerce em uma sentença, é definido como sendo o grupo de propriedades atribuídas a esse argumento a partir das relações de acarretamentos estabelecidas por toda a proposição em que esse argumento se encontra (CANÇADO, 2005, p. 28).

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Vejamos, então, a relação entre os argumentos e os papéis temáticos e sua relevância para a compreensão de uma teoria gramatical com base em quatro propriedades semânticas, propostas por Cançado (2003).

• Desencadeador – relacionada ao controle, pode ser agente, causa ou paciente. João derrubou a escada. • Afetado – relacionada a processos, a mudanças de estado. Maria recebeu a herança. • Estativo – relacionada a estados sem alteração aparente durante um tempo. João leu a obra toda. • Controle – associado a agentes e pacientes, relacionada à capacidade de

interromper uma ação, estado ou um processo. Maria pintou quadros (Maria decidiu não mais pintar quadros).

Com relação aos tipos de papéis temáticos, Cançado (2012) afirma que não é possível elencar todos os papéis e alguns sintagmas podem ser preenchidos com mais de um papel temático. Jackendoff (1972 apud Cançado, 2012), propõe, nesse caso, dois planos: o temático (relações espaciais) e de ação (agente-paciente) como em Vera beijou Fred e ficaria assim:

Vera → tema e agenteFred → alvo e paciente

Vejamos alguns papéis temáticos:

QUADRO 5 – PAPÉIS TEMÁTICOS

FONTE: Adaptado de Cançado (2012)

Agente Origem de alguma ação e de manter-se no controle da ação. O José prendeu o cachorro.

Paciente Sofre o efeito da ação, mudança de estado. O José prendeu o cachorro.Causa Desencadeia uma ação, sem controle. A chuva levou a ponte.Tema Entidade deslocada por uma ação. O João atirou a bolsa para Maria.

Locativo Lugar onde acontece algo. O filme vai passar no cinema.Alvo Entidade para onde se move algo. A Maria cruzou o canal.

Quando falamos em metáforas, logo vem a nossa memória aquelas sentenças estudadas em figuras de linguagem nos livros didáticos. A metáfora não é só isso e já começamos a delinear um perfil deste fenômeno semântico. Agora vamos aprofundar essa temática, tendo em vista que a Abordagem cognitiva tem dado grande importância ao processo metafórico, uma vez que os cognitivistas assumem que a nossa maneira de pensar e agir é basicamente de natureza metafórica.

3.2.2 Metáforas conceituais

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Lakoff e Jonhson (1980, p. 36 apud PAIVA, 2010) e suas obras se tornam referência nessa área e assumem que a metáfora categoriza o mundo e organiza nossos processos mentais. A metáfora faz parte da linguagem do cotidiano. Segundo Lakoff e Turner (1989):

As metáforas nos permitem entender um domínio de experiência em termos de outro. Para existir essa função, devem existir alguns tipos de conceitos básicos, alguns tipos de conceito que não são entendidos de uma maneira totalmente metafórica, para servirem de domínio de fonte (LAKOFF; TURNER,1989, p. 135 apud CANÇADO, 2012, p. 131).

Esse posicionamento refere-se à discordância com relação à posição dos românticos de que toda a linguagem era metafórica. Os pesquisadores identificaram inúmeras metáforas que estão presentes em nossa linguagem. Vamos compreender como essas metáforas fazem parte de nossa vida e organizam os sentidos a partir de características e propriedades.

Convencionalidade: associada ao grau de novidade da metáfora, ou seja, algumas metáforas são antigas, alguns diriam ultrapassadas, fossilizadas, mas os cognitivistas argumentam que sempre é possível renová-las.

• Metáfora para cima/para baixo. A moral da tropa subiu (fossilizada). Vi altos lugares na última viagem (renovada).

Sistematicidade: refere-se a um campo de comparações do alvo e da fonte. As famosas metáforas Tempo é dinheiro e A vida é uma viagem que permeia a vida de todos nós.

• Noções financeiras > tempo. Eu investi muito neste casamento. Esta reunião me custou horas de descanso.

• A viagem As pessoas são viajantes de si mesmas. O professor está embarcando em uma outra carreira.

Assimetria: não há semelhança entre as metáforas, mas uma transferência de características de um ponto a outro. Em A vida é uma viagem, só funciona em uma direção.

O voo para o México nasceu!!! (chegou). Chegando ao aeroporto, nosso voo morreu (???/ partiu).

Abstração: relacionada à assimetria, pois usamos uma linguagem mais concreta para falar sobre abstrações.

A vida é uma viagem.

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Não é só isso! A metáfora está presente em outras situações em nossa vida e é possível perceber o quanto metáforas básicas encaminham mudanças semânticas em muitas línguas. Além disso, muitos fenômenos particulares estão atrelados a variadas metáforas. Quando falamos em afeto e discussão, podemos dizer:

(45) a. Maria é uma pessoa fria quando toma suas decisões (temperatura). b. Ultimamente, ela está muito distante do grupo (distância espacial). c. Seu argumento não se sustenta (prédio). d. Esses argumentos nos levam a pensar na metáfora de outra forma (jornada). e. Eles precisam acompanhar meus argumentos com atenção (seguir alguém). f. Eu nunca venci seus argumentos (guerra).

Como ilustram os exemplos em (45), a metáfora está presente em nosso cotidiano e se constitui em um mecanismo que envolve a conceptualização de um domínio de experiência. Isso confirma o fato de que, em nossa língua, o caráter metafórico está na base de muitas de nossas ações e recorremos a nossa memória para representar certos movimentos a partir de esquemas imagéticos, pois, geralmente, exportamos nosso conhecimento de uma fonte mais concreta para uma fonte mais abstrata, unindo a razão com a imaginação. Além disso, mente e corpo, na abordagem cognitiva, não são separados, uma vez que o mundo é compreendido a partir de experiências corporais.

Por isso, há o questionamento dos teóricos acerca do tratamento dado ao sentido, à linguagem e à verdade dada pelas bases objetivistas, pois argumentam que a verdade não pode se fundar na relação palavras e mundo, em uma teoria da verdade, independentemente do modo como as pessoas usam a língua; o sentido, por sua vez, não pode ser tomado como objetivo e independente de como compreendemos. A essa perspectiva se contrapõe a ideia de que o sentido é fundamentado na aquisição e utilização do sistema estruturado pelas metáforas. Sob esta ótica, as sentenças não têm sentidos objetivos nem são dados previamente, sem levar em consideração o contexto, a cultura e a subjetividade.

Vamos a um outro desafio!

Você percebeu nos exemplos dados sobre as metáforas conceituais o quanto elas estão presentes em nosso cotidiano. As metáforas estão integradas à linguagem e se constituem em uma maneira de experienciar o mundo. Observe e anote como você e as pessoas com as quais convive se utilizam das metáforas para pensar e falar sobre o mundo.

IMPORTANTE

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3.3 ABORDAGEM PRAGMÁTICA

Como temos realizado nas outras abordagens, vamos situar a abordagem pragmática e compreendê-la a partir de sua heterogeneidade, característica natural do campo semântico, fluidez e da opacidade da linguagem. Quando falamos em opacidade, estamos querendo dizer que os sentidos são construídos na relação entre os sujeitos e que estes devem desconfiar da suposta transparência da linguagem, pois construímo-nos em uma rede de sentidos, na cultura, no social e no uso da linguagem.

A abordagem pragmática tem como base os estudos de John Austin e Paul Grice, filósofos da linguagem e precursores dos primeiros trabalhos relacionados à Pragmática. Austin (1911-1960) mostrava, por meio da teoria dos atos de fala, que a linguagem é uma forma de agir sobre o mundo. Os enunciados não são utilizados para descrever verdades, mas sim para realizar ações como Eu proponho uma trégua nesta relação e estes atos performativos podem ser enunciados por verbos como batizar, perdoar, condenar. Austin queria enfatizar a relação da fala com o uso que um sujeito faz dela.

[...] Devo alertar o leitor que a hipótese da separação da semântica e da pragmática em componentes distintos não é universalmente aceita. Na verdade, trata-se de um dos grandes pontos de discussão da linguística atual, e muitos negam a possibilidade de separar os dois tipos de fatores.

FONTE: PERINI, M. Gramática descritiva do português. São Paulo: Ática, 2000.

NOTA

Grice (1913-1988) se dedicou a estudar as implicaturas conversacionais, compreendidas como um princípio de cooperação entre os falantes. Ele observa que certos enunciados, aqui entendidos como carregados de sentido, têm mais elementos para a comunicação entre os sujeitos que as próprias palavras que remetem à sentença. As informações são retiradas do enunciado, por isso, a seleção do uso do termo implicatura a implicação, pois aquele é mais amplo para a conversação. Vamos observar a tirinha de Hagar.

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(46) Hagar

FIGURA 7 – VIOLAÇÃO DA CONVERSAÇÃO

FONTE: <http://4.bp.blogspot.com/-BWt2r704rpg/VlW11p8iG7I/AAAAAAAAEKk/Kcu0LoxPNlA/s280/hagar_28-06-07_pt.gif>. Acesso em: 8 ago. 2019.

Quais os sentidos produzidos na conversa entre Eddie e Helga, esposa de Hagar em (46)? Que conhecimentos são necessários para inferir os sentidos produzidos na fala de Helga? As lacunas a serem preenchidas pelo leitor estão na palavra "trono", compreendida como assento para monarcas e assento de banheiro. Eddie, amigo de Hagar, deveria inferir, então, que Helga está dizendo que Hagar está no banheiro. Eddie violou a conversação, deixando de inferir a informação para a produção de sentidos.

Sabemos que sempre há uma resposta melhor, mas como a abordagem pragmática toma o ponto de vista dos usuários, essas respostas podem ser ambíguas pelas próprias escolhas realizadas, pelos efeitos do uso da língua em contextos reais – lembrando que já estudamos, na abordagem referencial, o acarretamento, uma noção estritamente semântica, pois está relacionada ao que está apenas na sentença; e a pressuposição, uma noção semântico-pragmática, com base no léxico e no conhecimento prévio. Essas são noções de inferências ligadas ao conteúdo semântico. Agora, vamos estudar as inferências e as implicaturas conversacionais no contexto pragmático, no campo do discurso.

Para uma leitura mais detalhada sobre os vínculos entre semântica e pragmática, veja:

• FIORIN, J. Pragmática. In: FIORIN, J. (Org.). Introdução à linguística: princípios de análise. v. 2. São Paulo: Contexto, 2003. p. 161-186.

• MÜLLER, A.; VIOTTI, E. Semântica formal. In: FIORIN, J. (Org.). Introdução à linguística: princípios de análise. v. 2. São Paulo: Contexto, 2003. p. 137-160.

• PIETROFORTE, A.; LOPES, I. Semântica lexical. In: FIORIN, J. (Org.). Introdução à linguística: princípios de análise. v. 2. São Paulo: Contexto, 2003. p. 111-136.

DICAS

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Fica evidente que, quando se trabalha com um campo tão heterogêneo quanto o da Semântica, definir algumas noções parece ser uma tarefa um tanto trabalhosa. A noção de inferência passa ser uma delas, uma vez que pode ser considerada operação cognitiva para descrever tanto elementos presentes no texto, quanto aqueles que apontam para o uso do enunciado em determinado contexto.

Embora para alguns as inferências sejam semânticas e se refiram aos sentidos produzidos pelas sentenças, para outros, as inferências são pragmáticas e enfatizam a distinção entre o que o falante diz e o que ele quer dizer, realmente. Para chegar a um consenso, seria necessário pensar as inferências como experiências cognitivas em que falante e ouvinte compartilham uma realidade, na qual a maioria das informações não são explícitas, não são marcadas no texto e, por isso, precisam ser inferidas.

Inferência é um processo cognitivo que gera uma informação semântica nova, a partir de uma informação semântica anterior, em um determinado contexto. A Inferência é, pois, uma operação cognitiva em que o leitor constrói novas proposições a partir de outras já dadas. Porém, não ocorre apenas quando o leitor estabelece elos lexicais, organiza redes conceituais no interior do texto. Ocorre também quando o leitor busca extratexto informações e conhecimentos adquiridos pela experiência de vida, com os quais preenche os "vazios" textuais (COSERIU; DELL’ISOLA, 2001, p. 30).

O processo inferencial favorece a organização dos sentidos e o

entrelaçamento de significados que o leitor/ouvinte é capaz de produzir nas possibilidades dadas pelo enunciado. Na abordagem pragmática, Sperber e Wilson (1995 apud CANÇADO, 2012) afirmam que o produtor do conteúdo linguístico, produzido na interação, fornece pistas comunicativas ao ouvinte/leitor que deverá fazer inferências a partir dos enunciados, recuperando informações relevantes. Assim, a compreensão do enunciado resulta de conhecimentos partilhados e da confiança depositada nas inferências do leitor/ouvinte:

A. Você comprou o remédio que pedi? B. O carro estava quebrado.

O enunciado produzido por (B) implica uma relação de cooperação na produção dos sentidos, ou seja, (A) precisa inferir da fala de (B) que ele não comprou o remédio. A resposta de (B) deve contribuir para a conclusão que (A) deverá cognitivamente elaborar, pois eles partilham o mesmo contexto. Isso é um processo de inferência, (B) sonega a informação que poderia estar explícita, pois sabe que (A) é capaz de inferi-la. Segundo Cançado (2012, p. 151), “[...] o falante usa um processo econômico, apostando que o ouvinte preencherá as informações não explícitas nas sentenças, mas facilmente, inferidas”; além disso, devem partilhar o mesmo conhecimento de mundo.

3.3.1 Inferências

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Assim, as inferências são uma noção semântico-pragmática, pois são percebidas pelo leitor nas lacunas do enunciado a partir de um princípio de colaboração. E como postula Ducrot (1972, p. 12):

[...] a língua, então, não é mais apenas o lugar onde os indivíduos se encontram; ela impõe também, a esse encontro, formas bem determinadas. Não é mais somente uma condição de vida social, mas um modo de vida social. Ela perde a inocência.

É nessa perda da inocência que as inferências se fazem presentes a partir da cognição, construída nas relações sociais. As inferências pragmáticas dependem do contexto comunicativo que é dinâmico, contextualizado e dialógico e podem mudar conforme o contexto. Com base nas inúmeras informações pragmáticas de nossos enunciados, precisamos realizar várias inferências a fim de compreender o enunciado e produzir sentidos.

Para Austin (1990), essas informações não estão apenas nas palavras e estruturas gramaticais, mas também nas ações e no dizer, que alteram os sentidos. A língua não é virtual, mas realização colocada em prática por atos individuais de uso, por exemplo, alguém está saindo da casa de uma amiga e enuncia:

(47) Está chovendo!

O que a amiga espera da outra não é simplesmente concordar que está chovendo. Ela espera que a amiga ofereça um guarda-chuva, ou proponha que ela fique mais um pouco, ou alerte que ela pode pegar gripe, ou proponha que saiam andando como faziam quando eram crianças ou a lembre de um fato que aconteceu em um dia chuvoso. Enfim, o enunciado pode ter muitos sentidos e, por isso, podemos inferir outras situações possíveis que serão acionadas pelo compartilhamento de informações entre ambas.

“A frase é uma entidade abstrata suscetível de uma infinidade de realizações particulares [...], ao passo que o enunciado consiste em cada uma destas realizações, cada uma das suas ocorrências” (KOCH, 2000, p. 63).

NOTA

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Assim, inferir é uma prática do pensar, de unir elementos linguísticas com extralinguísticos na produção dos sentidos. Quando falamos em sentidos, estamos apontando para a rede complexa que forma estes elementos e as intrincadas possibilidades cognitivas de acionar conhecimentos e informações e lidar com eles. É preciso lembrar que usamos a língua com propósitos distintos e que estes vão além da estrutura linguística e das condições de verdade de uma sentença, pois a comunicação é uma questão de interação e não de verdade.

Se estivéssemos viajando em uma autoestrada e víssemos uma placa com o seguinte dizer: “animais na pista”. Inicialmente, precisaríamos ativar nosso conhecimento de mundo para inferir que esta placa não é um convite ao motorista para que ele pare e aprecie os animais que passam naquele local. Depois, deveríamos inferir que a placa é um alerta acerca dos acidentes que resultam em mortes de animais naquele trecho. Uma outra inferência seria sobre a necessidade de redobrar a atenção, diminuir a velocidade a fim de parar e evitar o atropelamento dos animais.

Essas inferências que se constroem a partir das informações e conhecimentos serão utilizadas para preencher as lacunas no texto acerca da possibilidade da presença de animais na estrada. São informações novas que não estão no texto, mas podem ser recuperadas cognitivamente para a compreensão da placa naquela estrada. Com relação a isso, Coscarelli (2003, p. 31) enfatiza que:

Nenhum texto traz todas as informações de que o leitor precisa para compreendê-lo. É preciso que o leitor o complete com informações que não estão explícitas nele. Sendo assim, o bom leitor é aquele capaz de construir uma representação mental do significado do texto, estabelecendo as relações entre as partes deste, e de relacioná-lo com conhecimentos previamente adquiridos.

Nessa perspectiva e sob o ponto de vista da abordagem pragmática, é imperativo a comunhão dos elementos linguísticos e extralinguísticos para a completude dos sentidos. As inferências são indispensáveis para a compreensão dos enunciados, sejam simples ou complexos, atrelada a uma imagem de leitor iniciante e experiente.

Por isso, a produção de sentidos nunca é a mesma, pois varia de acordo com os conhecimentos e experiências que cada um tem acerca do enunciado compartilhado. Agora, vamos estudar as implicaturas conversacionais que se dão em um processo de cooperação a partir de máximas conversacionais que podem ser confirmadas ou violadas na relação falante/ouvinte.

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No campo de estudos da abordagem pragmática, as implicaturas se constituem em um princípio de cooperação conversacional entre os falantes e uma das noções mais relevantes para a compreensão dos propósitos que atuam na conversação (GRICE, 1982). Entre os participantes há um acordo, o estabelecimento de regras, que se faz necessário, pois quando os sentidos não podem ser construídos apenas pelo significado literal, faz-se imprescindível recorrer a outras informações que estão implícitas na conversa. Por exemplo:

(48) A que horas Maria chega?

(49) Estou vendo um táxi parado aqui em frente.

Podemos observar que a resposta de (49) não atende à pergunta feita por (48). Será? De acordo com as implicaturas conversacionais, a informação contida na resposta de (49) é relevante e podemos associar as duas sentenças a um diálogo coerente. A implicatura apresentada em (49) é resultado do contexto compartilhado por (48) e (49), ou seja, ambos estão ansiosos pela chegada de Maria e, quando (49) diz que há um táxi em frente à casa, responde à pergunta de (48).

As implicaturas podem ser previstas por um princípio de colaboração: “faça sua contribuição conversacional tal como é requerida, no momento em que ocorre, pelo propósito ou direção do intercâmbio conversacional em que você está engajado” (GRICE, 1982, p. 86). Para o autor, os participantes de uma conversa sempre darão sua parcela de colaboração a fim de que os sentidos sejam construídos. Nem sempre damos as informações necessárias ou solicitadas, talvez, por economia ou por não estarmos dispostos em prolongar a conversa ou ainda, por sabermos que o outro irá fazer inferências e estabelecer os sentidos.

Muitas declarações não podem ser compreendidas em sentido literal, então, somos levados a nos orientar por este princípio e pelas máximas que dele derivam. Os sentidos que se produzem são as inferências pragmáticas, isto é, as implicaturas conversacionais, que nos termos de Grice (1982), constituem-se como resultado da adesão dos participantes ao princípio de cooperação que orienta a conversação. As implicaturas surgem de dois tipos de sentidos:

• As convencionais: são implicaturas cujos sentidos são gerados a partir do sistema linguístico.

• As conversacionais: são implicaturas que estão ligadas aos fatores extralinguísticos e, a partir delas, criam-se os princípios de cooperação e as implicaturas conversacionais.

3.3.2 Implicaturas conversacionais

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FIGURA 8 – MÁXIMA DA QUANTIDADE

FONTE: <https://www.espacoeducar.net/2012/07/muitas-tirinhas-da-mafalda-para.html>. Acesso em: 4 nov. 2019.

De acordo com a máxima de quantidade, os locutores devem ser objetivos e informar o necessário e nada mais. Pelo princípio de cooperação, o interlocutor fará as inferências necessárias à compreensão do diálogo. Em (50), Mafalda conversa com Miguelito acerca de algumas formas de governo e as compara com uma bala de caramelo. Mafalda, ao questionar se Miguelito havia entendido a comparação, ele diz apenas “entendi”. Mafalda, ao compartilhar o mesmo contexto do amigo, infere que ele entendeu e que não seria necessário prolongar a conversa, ou seja, Miguelito foi informativo, forneceu apenas o que era requerido pelo propósito comunicativo, o que era exigido naquela situação, naquele momento.

• Máxima da qualidade (seja verdadeiro)

Esta categoria relaciona a qualidade que a informação dada terá para seu interlocutor. Para isso, é preciso que não se diga aquilo que consideramos falso, pois não conseguiremos a adesão, a cooperação do outro na construção das inferências e produção dos sentidos esperados. Assim, não se diz nada que não possa ser comprovado e não consiga fornecer evidências. Observe o texto ilustrativo:

Com relação aos princípios de cooperação, Grice (1982) cria quatro máximas. Vamos entender como elas funcionam no uso da língua e como o ouvinte chega às inferências. Máximas de Grice (1982) (adaptadas de WILSON, 1995 apud MARTELOTTA, 2011, p. 91).

• Máxima de quantidade (seja informativo)

Esta categoria está relacionada com a quantidade de informações a ser fornecida durante a conversação. Por isso, informe apenas aquilo que está sendo solicitado em função dos propósitos comunicativos. Observe esta tirinha de Mafalda:

(50) Mafalda

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(51) Armandinho

FIGURA 9 – MÁXIMA DA QUALIDADE

FONTE: <https://www.facebook.com/tirasarmandinho/photos/np.1439422149118354.100005065987619/1025154594196513/>. Acesso em: 4 nov. 2019.

Em (51), Fê, amiga de Armandinho, utiliza-se em sua fala da máxima de qualidade. Para que a fala presente no quadrinho três seja verdadeira, Fê, nos dois primeiros quadrinhos, passa a constatar, a fornecer evidências e a comprovar a chegada da primavera. Para isso, ela se utiliza de um discurso verdadeiro materializado na imagem das margaridas, símbolo da primavera, principalmente, na região sul, onde as personagens moram.

As inferências a serem realizadas por Armandinho devem-se ao fato de

Fê se utilizar dessa relação margarida e primavera que deverá ser acionada, pois eles compartilham da conversa e Armandinho acaba convencido pela fala da amiga que não é considerada falsa. Portanto, nessa máxima, Fê não disse nada que acreditasse ser falso. Aliás, ela e Armandinho colocam em prática o princípio de cooperação a fim de que a comunicação entre eles aconteça.

• Máxima da relação (seja relevante)

A terceira categoria de Grice tem uma só regra: seja relevante em seu discurso. Ou seja, toda a contribuição conversacional deve revelar ser pertinente e estar relacionada com o tópico da conversa. É preciso que o ouvinte acredite na relevância do que é dito.

(52) Em uma conversa entre duas amigas, uma delas pergunta: — Você vai ao parque no domingo? (amiga A) E a outra responde: — Tenho prova na segunda (amiga B).

Para analisar este diálogo em (52), tomamos, inicialmente, a fala da amiga (A) que, ao fazer a pergunta à amiga (B), espera que ela diga que sim. No entanto, a resposta da amiga (A) é apreendida pela amiga (B) como relevante, uma vez que ela conhece a amiga e sabe o quanto é dedicada aos estudos. A inferência da amiga (B) leva a entender que a resposta é negativa. Assim, a resposta de (B) é relevante para colocar em prática esta categoria.

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• Máxima de modo (seja claro)

A quarta e última categoria refere-se ao modo como os interlocutores devem se utilizar da linguagem. A linguagem não pode ser obscura com expressões que dificultem a produção dos sentidos ou que sejam muito técnicas e incompreensíveis ao interlocutor. As expressões não devem, também, ser ambíguas nem prolixas, as informações devem estar em uma sequência organizada que facilite a compreensão. Vejamos um trecho de uma entrevista de Gisele Bündchen à Revista Vogue Paris.

(53) Descreva o seu dia perfeito quando você não está modelando.

— Acordar, aconchegar com os meus filhos, tomar café da manhã e passar o dia fora, pé descalço, jogada na natureza.

FONTE: <https://vogue.globo.com/moda/moda-news/noticia/2015/10/30-perguntas-para-gisele-bundchen-entrevista-da-top-para-vogue-paris.html>. Acesso em: 10 ago. 2019.

Em (53), a modelo coloca em prática a máxima de modo, pois, ao responder à pergunta realizada pela revista, ela é muito clara e objetiva. Gisele orienta seu interlocutor com relação às informações solicitadas, ou seja, descreveu, embora de forma sucinta, o seu dia perfeito, mas com uma série de passagens que ela considerou relevantes para o entrevistador. Na leitura complementar, você verá como essas máximas podem ser violadas.

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LEITURA COMPLEMENTAR

IMPLICATURAS E A VIOLAÇÃO DAS MÁXIMAS CONVERSACIONAIS: UMA ANÁLISE DO HUMOR EM TIRINHAS

Luciana Braga Carneiro Leão

ANÁLISE DE CORPUS

Apresentamos, a seguir, quatro tirinhas de humor; sendo duas tirinhas do Garfield, uma de humor meme e uma da Mafalda. Em cada uma dessas tirinhas, é possível identificar pelo menos uma violação de máximas conversacionais. As violações, como discutimos anteriormente, são intencionais. O locutor espera que seu interlocutor seja capaz de inferir o não mencionado. Assim sendo, o princípio cooperativo se mantém, apesar das violações. No caso do corpus desse trabalho, a intenção por trás dessas violações é a produção de humor.

VIOLAÇÃO DA QUANTIDADE

FIGURA 1 – TIRINHA DO GARFIELD

FONTE: <http://3.bp.blogspot.com/_bNFAovzuykE/TIU5jaPG2mI/AAAAAAAAAV0/XQrCW70ol4o/s640/ga060120.png>. Acesso em: 4 nov. 2019.

Nesse exemplo, Jon, o dono de Garfield, viola em sua fala a máxima da quantidade. Mais especificamente, viola o ponto da máxima que diz “Faça com que a sua contribuição seja tão informativa quanto o necessário”, pois não fornece informações o suficiente para que se compreenda o porquê de estar chateado. No entanto, Jon sabe que não está dando todas as informações de maneira explícita. Implicitamente, encontra-se sua indicação de que o encontro não ocorreu da maneira que desejava, provavelmente devido a algum acontecimento desagradável durante o mesmo, ou até a uma série de acontecimentos desagradáveis. Após alguns segundos de reflexão, Garfield chega à conclusão de que esses acontecimentos, que para Jon foram desagradáveis, para ele seriam interessantes, e até mesmo uma forma de diversão. Por conta disso, vai atrás de seu dono para obter maiores detalhes.

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Muitas vezes, utilizamos construções como essa de Jon ou similares, por exemplo, "você não sabe o que me aconteceu" e "nem te conto o que aconteceu" – com o intuito de introduzir uma narrativa. A implicatura por trás dessas sentenças é a de que existe algo que o locutor sabe e gostaria muito de narrar ao seu interlocutor. Utilizamos essas construções como forma de iniciar nossa narrativa. Essas introduções podem ser, até mesmo, maneiras utilizadas pelo locutor para checar se seu interlocutor tem interesse e disponibilidade de tempo para ouvir a estória completa. O interlocutor compreende que há muito mais a ser contado e que o locutor tem interesse em lhe contar. Consequentemente, fornecerá uma resposta com a qual pede – e, assim, permite – que o primeiro forneça uma narrativa detalhada.

Expressões como as exemplificadas acima já estão no conhecimento popular como possuidoras de significado próprio, sendo conhecidas, portanto, como expressões cristalizadas. De acordo com Xatara (1998, p. 2), expressões desse tipo são “uma lexia complexa, indecomponível, conotativa e cristalizada em um idioma pela tradição cultural”. A indecomponibilidade de uma expressão cristalizada diz respeito ao fato de que praticamente não há possibilidade de substituição por associações paradigmáticas. No que diz respeito à conotação, Xatara (1998) intenciona que sua interpretação semântica não pode ser feita com base nos significados de suas unidades individualmente. E quanto à cristalização, o que o autor pretende apontar é que o significado da expressão já está consagrado na comunidade em que é utilizada como ‘estável’.

Podemos afirmar, portanto, que a cristalização ocorre a partir do momento em que os significados das palavras não podem ser entendidos ‘ao pé da letra’, pois o significado não é dedutível dos valores das palavras que compõem a expressão. Assim sendo, entende-se que quando uma expressão passa a ter um significado diferente de seus constituintes, a forma linguística foi cristalizada.

VIOLAÇÃO DA QUALIDADE

FIGURA 2 – TIRINHA DO GARFIEL

FONTE: <http://1.bp.blogspot.com/_bNFAovzuykE/TEy5lmGgAlI/AAAAAAAAAUE/HNr6triR-kc/s640/ga080327.jpg>. Acesso em: 4 nov. 2019.

UNIDADE 1 | A SEMÂNTICA: OBJETO, HISTÓRIA E ABORDAGENS TEÓRICAS

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Na tirinha acima, a segunda fala de Jon viola a máxima conversacional em que devemos tentar fazer com que a nossa contribuição seja verdadeira, onde uma das formas de se alcançar é não dizendo aquilo que acreditamos ser falso. Jon afirma "e as galinhas dizem moo", indicando convencionalmente que as galinhas mugem. No entanto, o rapaz sabe que esse dado não é verdadeiro e as galinhas, na verdade, cacarejam. Ainda assim, a intenção de Jon não é a de enganar alguém, tentando convencer Garfield de uma mentira. A insinuação de uma negação está implícita à sua sentença, ou seja, a implicatura de que, tal qual as galinhas não cacarejam, Liz não tem razão e o seu apartamento não precisa de uma faxina.

É importante observar ainda que há, a princípio, uma inferência convencional na afirmação “Este lugar precisa de uma faxina”. No entanto, após refletir sobre a mesma, Jon realiza uma transgressão estratégica intencional e, então, recategoriza o pressuposto convencional inicial ao dizer “e as galinhas dizem “moo”. Desse modo, a fala inicial é verdadeira, e a violação só acontece após a recategorização.

Percebe-se claramente nesse exemplo o papel de caráter extremamente relevante do contexto na compreensão das implicaturas. Apesar da sentença "e as galinhas dizem moo" convencionalmente ser afirmativa, outros elementos contextuais, como a expressão facial de Jon, indicam que aquilo obviamente não é algo que ele acredite ser verdadeiro.

Podemos observar, ainda, que a última fala de Jon, explicitamente, não possui nenhuma relação com o que falava anteriormente. No entanto, há uma relação implícita de que, tal qual as galinhas não mugem – e sim cacarejam –, Jon acredita que sua casa não necessita de uma faxina, ao contrário do que afirmara Liz. Do mesmo modo, a fala de Garfield, aparenta não possuir nenhuma relação como tudo que havia sido dito anteriormente. Mas, por trás do significado convencional, encontra-se a implicatura de que homens solteiros não se importam tanto com a limpeza de sua moradia quanto as mulheres. Essas implicaturas se dão através da violação da máxima da relação, conforme veremos a seguir

VIOLAÇÃO DA RELAÇÃO

[...]

A máxima da relação prega que devemos ser relevantes em nossas proposições, o que significa dizer que nossa fala deve ser coerente, isto é, ter relação, com o que foi dito anteriormente. A tirinha apresentada inicia com um rapaz contando a seu amigo que sua namorada está grávida apesar de eles terem usado preservativo em suas relações sexuais. O amigo, no entanto, prossegue o diálogo com uma narrativa em que descreve um homem em meio à floresta, que, ao se perceber em perigo com a aproximação de um leão, aponta seu guarda-chuva para o animal e esse, em sequência falece com um tiro.

TÓPICO 2 | A HETEROGENEIDADE SEMÂNTICA

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Essa narrativa, a princípio, foge por completo do tema "gravidez e uso de preservativos", que o primeiro rapaz havia trazido para a interação. Esse resolve permanecer no tema abordado pelo amigo - "guarda-chuvas como armas letais que fazem uso de munição" - retrucando que outra pessoa provavelmente teria atirado de uma arma de verdade. O rapaz mantém a relevância ao ater-se ao novo tópico da conversa.

Seu amigo, por seguinte, afirma "exatamente". Nessa sentença encontramos duas implicaturas. A implicatura convencional é a de que o rapaz está correto e realmente havia sido outra pessoa que atirou no leão, levando-o a óbito. No entanto, o humor se dá na implicatura conversacional que também se encontra na última fala do amigo. Ao implicar convencionalmente que o rapaz está correto ao dizer que outra pessoa atirou no leão, o amigo implica também que, da mesma forma, outra pessoa havia engravidado a namorada do rapaz.

Indiretamente, a narrativa do amigo relaciona-se à fala anterior do rapaz. Ao narrar a estória do homem com o guarda-chuva e o leão, o amigo não estava abordando um assunto que não possuía relação com o problema do rapaz. Contrariamente, as duas falas se relacionam, pois narram situações em que alguém acreditava ser responsável por algo que não teria como ter feito, quando, na realidade, outras pessoas haviam cometido essas ações. A aparente violação de relação é dissolvida ao imaginarmos uma fala não dita, porém implicada, que liga os dois ditos.

VIOLAÇÃO DO MODO

FIGURA 3 –TIRINHA MAFALDA

FONTE: Quino (2003, s.p.)

A fala de Mafalda parece faltar com a máxima do modo, pois não segue a proposição "seja claro", principalmente no que diz respeito a evitar ambiguidades. O uso da fita métrica por Mafalda para medir a circunferência do globo terrestre, seguido do termo regime, remete ao sentido de dieta, redução alimentar com fins de emagrecimento. No entanto, a relação entre regime e o planeta Terra, por outro lado, se refere não à forma física do planeta, mas sim às formas de governo existentes ao redor do mundo.

UNIDADE 1 | A SEMÂNTICA: OBJETO, HISTÓRIA E ABORDAGENS TEÓRICAS

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O que gera esse caráter dúbio na tirinha é a ambiguidade polissêmica presente no termo regime. Esse vocábulo assume dois significados distintos: dieta e formas de governo. A escolha entre as duas implicaturas não pode ser feita de maneira convencional pelo leitor uma vez que linguisticamente ambas são possíveis, e paralinguisticamente ambas estão representadas nas imagens, ou seja, nas relações fita métrica e regime, e mundo e regime. É essa ambiguidade que traz humor à tira, justificando assim a violação da máxima do modo.

Devemos considerar ainda o contexto histórico das tirinhas de Mafalda em geral. Enquanto criança, Mafalda é muito nova para estar preocupada com a situação governamental e mundial. Contudo, como se sabe, as tirinhas de Mafalda foram escritas e publicadas por Quino entre 1964 e 1973 na Argentina, que vivia, na época, sob regime ditatorial. Por conta disso, as tirinhas de Mafalda apresentam um viés político marcante: através das personagens infantis, seu autor externava sua visão crítica da realidade levando seus leitores a refletirem sobre ela.

Percebe-se, assim, um caráter de uso abundante de implicaturas - e implícitos em geral, pois, ao levar o leitor a interpretar e alcançar o não-dito, Quino pode transmitir sua opinião. O mesmo seria impossível de ser colocado abertamente durante o regime militar sem sofrer severas punições. Através dos implícitos, Quino podia transmitir sua posição política e induzir o leitor a uma postura crítica, sem que fosse percebido pela censura, o que gera certa forma de humor por si só.

FONTE: LEÃO, L. B. C. Implicaturas e a violação das máximas conversacionais: uma análise do humor em tirinhas. Working Papers em Linguística, Florianópolis, v. 14, n. 1, p. 65-79, fev. 2014. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/workingpapers/article/view/1984-8420.2013v14n1p65. Acesso em: 13 ago. 2019.

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RESUMO DO TÓPICO 2Neste tópico, você aprendeu que:

• Há diferença entre a noção de significado e de sentido ao conceber que a atividade de linguagem não é apenas uma virtualidade linguística, mas também uma realização, uma atividade social e interacional.

• Na heterogeneidade semântica, é possível distinguir a abordagem referencial e a relação do linguístico com o mundo; a abordagem mentalista e a relação da língua com a mente; e, a abordagem pragmática e o uso dos enunciados na realização de ações concretas.

Ficou alguma dúvida? Construímos uma trilha de aprendizagem pensando em facilitar sua compreensão. Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo.

CHAMADA

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1 Historicamente, a Semântica tem sido definida como a ciência que estuda o significado. Sabemos que isso não se configura em um consenso e surgem abordagens que vão tratar dos significados a partir de diferentes sistemas linguísticos no estudo das línguas naturais. Sobre essa heterogeneidade, analise as sentenças a seguir:

I- A abordagem referencial estuda as implicações lógicas como a pressuposição e o acarretamento que se restringem aos sentidos contidos nas frases.

II- A abordagem mentalista estuda as relações existentes entre referência e valor de verdade para a construção do significado.

III- A abordagem pragmática estuda o desempenho, ou seja, o uso da língua em situações de comunicação concretas.

Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) As sentenças I e III estão corretas. b) ( ) Somente a sentença I está correta.c) ( ) Somente a sentença II está correta.d) ( ) Somente a sentença III está correta.

2 Arqueólogos descobriram novas relíquias sob as ruínas da cidade de Pompeia, destruída pela erupção do vulcão Vesúvio em 79 d.C., [...] eles encontraram um baú repleto de "objetos preciosos" – que podem ter pertencido a feiticeiras no passado. [...] entre os artefatos, havia cristais, pedras de âmbar e ametistas, [...] Massimo Osanna, diretor do parque arqueológico, explicou que os artefatos provavelmente pertenciam a mulheres e podem ser "o tesouro escondido de uma feiticeira". Entre as relíquias, havia ainda amuletos em forma de escaravelho, [...]. As palavras em destaque, de acordo com a abordagem referencial, constituem-se em:

FONTE: <https://g1.globo.com/turismo-e-viagem/noticia/2019/08/13/pompeia-objetos-encontrados-nas-ruinas-poderiam-ser-tesouro-oculto-de-feiticeira.ghtml>. Acesso em: 13 ago. 2019.

a) ( ) Papéis temáticos, pois são representações mentais de um item lexical.b) ( ) Sinonímias perfeitas, pois em qualquer contexto conservam o sentido. c) ( ) Inferências, pois demonstram o princípio de cooperação entre os

interlocutores. d) ( ) Sentidos, pois são o modo objetivo pelo qual o objeto é alcançado no

mundo, a referência.

AUTOATIVIDADE

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3 As metáforas, na abordagem mentalista, permitem entender um domínio de experiência em termos de outro. Ou seja, há uma transferência das semelhanças de um conceito para a compreensão dos significados de outro. Analise as metáforas em destaque nas sentenças e demonstre sua relevância para a linguagem cotidiana.

• As incertezas financeiras na guerra cambial.• Corredor vence GP com estratégia ousada. • Os emergentes deverão ser o alvo maior das discussões.

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UNIDADE 2

HETEROGENEIDADE SEMÂNTICA

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

PLANO DE ESTUDOS

A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• reconhecer os aspectos semânticos e pragmáticos presentes na construção dos significados;

• descrever o significado no sistema de escolha e na coesão discursiva;

• identificar o caráter performativo nos atos de fala e o uso da língua na produção do significado;

• distinguir as relações de sentido no nível lexical, frasal e discursivo;

• reconhecer o texto como uma unidade de sentidos.

Esta unidade está dividida em dois tópicos. No decorrer da unidade, você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – SIGNIFICADO E USO

TÓPICO 2 – O SENTIDO NAS SITUAÇÕES COMUNICATIVAS

Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.

CHAMADA

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TÓPICO 1

SIGNIFICADO E USO

UNIDADE 2

1 INTRODUÇÃOPara iniciarmos esta unidade, precisamos retomar algumas concepções

trabalhadas na Unidade 1 e que serão imprescindíveis para compreendermos como se amplia a visão de linguagem a partir da relação dos significados e do seu uso na abordagem pragmática. Por isso, quando falamos em uso, a ideia é de língua além de sistema, de estrutura e de independência contextual. É preciso entender que os significados não se atualizam na autonomia da língua, mas nas situações comunicativas, na vinculação entre língua e práticas sociais.

(1) Vejamos uma tirinha de Armandinho, de Alexandre Beck:

FIGURA 1 – LÍNGUA E PRÁTICAS SOCIAIS

FONTE: <http://twixar.me/rYRT>. Acesso em: 5 set. 2019.

Nessa tirinha de Armandinho, no primeiro quadrinho, vemos o desconhecimento de crianças da cidade com relação à origem dos alimentos do campo. Esse desconhecimento está estampado na expressão de dúvida presente em seus rostos e no questionamento de Armandinho – “Esse toco aí?” quando a planta é apresentada às crianças. No segundo quadrinho, há uma mudança na expressão das crianças, pois a planta, ao ser arrancada do solo, surge em conformidade com a imagem conhecida do supermercado, da feira ou de quando a mãe chega em casa com este alimento.

O que podemos compreender acerca dos aspectos semânticos e pragmáticos presentes na cena? Como analisar o caminho de compreensão proposto às crianças? Qual a intenção do homem em criar este jogo de linguagem?

UNIDADE 2 | HETEROGENEIDADE SEMÂNTICA

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Vamos começar a entender essas questões e a tirinha a partir da abordagem referencial, tomando o significado como uma referência, um valor de verdade no mundo; e o sentido como os possíveis caminhos para chegarmos ao referente. Teríamos, então: um referente – “planta”, e os sentidos possíveis que, neste caso, são “macaxeira, mandioca e aipim”. Esses sentidos apontam, de maneiras diferentes, para uma mesma referência.

“Mandioca, macaxeira e aipim” se referem ao mesmo objeto no mundo, mas o fazem de modo distinto. Essa distinção permite falar, de forma diferente, dessa planta, tornando possível a aprendizagem, pelas crianças, de algo novo sobre esse objeto no mundo. Os sentidos são os caminhos – significados, que podem ser tomados pelas crianças; e quanto mais caminhos puderem ser apreendidos, ou seja, quanto mais sentidos souberem, maior será seu conhecimento. Você poderia questionar que:

• Armandinho é uma personagem de ficção e esta abordagem semântica não se ocupa de exemplos que não sejam do mundo real; ou

• na abordagem referencial, as sentenças possuem significado independente de quem proferiu a sentença, quando e como proferiu; ou

• o sistema é extencional, ou seja, uma sentença tem como extensão um valor de verdade, um mundo real e um tempo presente.

Exatamente. Então, como ampliar a análise da tirinha com uma descrição semântico-pragmática, ou seja, que leve em consideração o significado e o uso da língua em mundos que podem ser apresentados como reais ou como similares aos reais? Uma das tentativas formais seria uma descrição a partir da Semântica dos Mundos Possíveis, que propõe como “mundos possíveis” os modos como as coisas podem ser em mundos possíveis que não são apenas o mundo atual como proposto pela abordagem referencial.

O mundo em que vivem Armandinho e seus amigos é um mundo possível de acontecer, pois, embora as personagens da história sejam do mundo da ficção, elas têm sentido e são interpretadas por nós como possíveis. Para a compreensão da tirinha, precisamos conceber um outro mundo em que as ações, as falas, as atitudes de Armandinho tenham referência e sentido e, assim, se produzam efeitos de sentido.

REFERENTE SENTIDOS

Plan

ta 1. Macaxeira2. Mandioca3. Aipim

TÓPICO 1 | SIGNIFICADO E USO

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Acerca dos “mundos possíveis”: São “modos como as coisas podem ser. [...] Evidentemente, o modo como as coisas são é um modo como as coisas podem ser. De modo que o mundo atual é um dos mundos possíveis”. Por “mundo atual” não se quer dizer o mundo de hoje em dia, mas apenas o mundo em ato ou efetivo.

FONTE: BRANQUINHO, J.; MURCHO, D.; GOMES, N. G. (Ed). Enciclopédia de termos lógico-filosóficos. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 489.

NOTA

AUTOATIVIDADE

Chegou o momento de darmos uma parada e realizar atividades que sejam pertinentes ao assunto estudado. Para isso, selecionamos questões de concurso que dão a dimensão da proposta aqui estudada.

FONTE: <http://download.inep.gov.br/educacao_superior/enade/provas/2014/30_letras_portugues_licenciatura.pdf>. Acesso em: 4 fev. 2020.

Verifica-se que a palavra "pena", na primeira fala, foi empregada com o mesmo sentido que no seguinte trecho.

FONTE: ENADE. Letras Português Licenciatura. 2014, p 16. Disponível em: http://download.inep.gov.br/educacao_superior/enade/provas/2014/30_letras_portugues_licenciatura.pdf. Acesso em: 4 fev. 2020.

a) ( ) "Às vezes ouço passar o vento; e só de ouvir o vento passar, vale a pena ter nascido" (Fernando Pessoa).

b) ( ) "Aprendi a amar menos, o que foi uma pena, e aprendi a ser mais cínica com a vida, o que também foi uma pena, mas necessário. Viver pra sempre tão boba e perdida teria sido fatal" (Tati Bernardi).

UNIDADE 2 | HETEROGENEIDADE SEMÂNTICA

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c) ( ) "E pra deixar acontecer/ A pena tem que valer /Tem que ser com você" (Jorge e Mateus).

d) ( ) "A primeira imagem que surge quando o assunto é pena são os pássaros" (Arte no Corpo).

e) ( ) "De boas palavras transborda o meu coração. Ao Rei consagro o que compus; a minha língua é como a pena de habilidoso escritor" (Bíblia Sagrada- Salmo 45).

A Semântica dos mundos possíveis permite, então, que coloquemos o mundo de Armandinho o mais próximo dos mundos efetivos e possamos compreender que os sentidos se atualizam quando levamos em consideração o contexto. O mundo em que ele e sua turma vivem é um mundo possível e a atualização dos sentidos se dá a partir da relação que estabelecemos entre os aspectos semânticos e pragmáticos. Além disso, precisamos lembrar que um semanticista não pode fechar a interpretação e nem pode afirmar que há apenas uma maneira de dizer algo sobre alguma coisa.

Retornando à tirinha de Armandinho (Figura 1), não são apenas as palavras que constroem os sentidos, mas o modo como as organizamos, como as expressamos e usamos em contextos distintos. Pela expressão das crianças, no primeiro quadrinho, o que chama sua atenção não são os sentidos de “macaxeira, mandioca e aipim”, mas a relação da palavra “toco” com o objeto mostrado que não se parece com o que já conhecem. Assim, a compreensão está na relação entre os sentidos, o “toco” e a planta quando é arrancada da terra. Neste momento, os sentidos passam, realmente, a ter referência e significação para Armandinho e sua turma.

Armandinho e amigos não estabelecem relação entre a palavra “toco” e a ideia que eles têm deste alimento. Isto evidencia que as palavras não são etiquetas, mas signos. Observemos:

SIGNO

Imagem acústica Conceito

Significante Significado

"toco" ?????

TÓPICO 1 | SIGNIFICADO E USO

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A tarefa do semanticista é, portanto, explicar as regras que permitem que o processo semântico funcione, uma vez que, uma teoria que lida apenas com referências (extensões) e despreza as intenções do usuário e os outros sentidos produzidos pela língua, torna-se insuficiente para descrever as sentenças construídas em uma língua natural. Ao unirmos a Semântica e a Pragmática, teremos um instrumental teórico mais renovador e produtivo como vimos na tirinha de Armandinho quando levamos em consideração ambos os aspectos.

Neste Tópico 1, vamos trabalhar estes aspectos e enfatizar sua significação e complementaridade para a compreensão da linguagem e da comunicação, uma vez que não há motivos para se defender que a Pragmática é mais relevante que a Semântica, mas considerar que o contexto de fala é importante para a significação.

2 ASPECTOS SEMÂNTICOS E PRAGMÁTICOS DA LÍNGUA PORTUGUESA

Na Unidade 1, demonstramos a relevância de três abordagens semânticas – referencial, cognitiva e pragmática – para a compreensão do significado. Nesta unidade, vamos enfatizar a interface Semântica e Pragmática em razão de se complementarem na compreensão de enunciados produzidos no cotidiano. Embora cada abordagem tenha seu próprio caminho, uma na significação linguística e outra no uso linguístico, é no contexto linguístico que estes dois aspectos andam juntos e, muitas vezes, imbricam-se de tal maneira que fica difícil reconhecer suas fronteiras. No entanto, vamos delimitar esses campos de estudo antes de apontar suas relações nos jogos de linguagem.

2.1 OS JOGOS DE LINGUAGEM

Quando abordamos acerca da relação entre os aspectos semânticos e pragmáticos da Língua Portuguesa, não estamos querendo dizer que seus objetos de estudo se confundem ou que suas fronteiras se diluem. É preciso compreender que:

Semântica PragmáticaEstuda a relação entre as expressões linguísticas e seu significado, mas as intenções do interlocutor não são consideradas.

Estuda as intenções dos interlocutores, o contexto e o quanto ele pode influenciar na compreensão de enunciados linguísticos.

Essa distinção esteve na pauta de muitos pesquisadores que assim o faziam para definir seu objeto de estudo ou delimitar seu campo de pesquisa. Por que essa preocupação com a delimitação de seu campo de pesquisa? A Semântica já tinha um campo consolidado? E a Pragmática? Ainda não tinha um caminho próprio ou precisava adotar técnicas de análise utilizadas pela Semântica e Sintaxe?

UNIDADE 2 | HETEROGENEIDADE SEMÂNTICA

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Em 1987, essa preocupação envolveu autores como Rajagopalan e Ilari em uma discussão acadêmica que derivou na produção dos artigos Quando ‘2+3’ não é igual a ‘3+2’: a semântica e a pragmática das construções simétricas em língua natural (RAJAGOPALAN,1987) e O que fazer quando ‘2+3’ não é igual a ‘3+2’: a semântica e a pragmática das construções simétricas em língua natural (ILARI, 1987). A discussão girava em torno do seguinte diálogo, publicado em outro artigo de Ilari (1983/1987), Dos problemas de imperfeita simetria:

(2) Diálogo

“A — Soube que você trabalha na mesma sala que o Paulo. B — Não sou eu que trabalho na mesma sala que o Paulo, o Paulo é que trabalha na mesma sala que eu” (ILARI, 1987, p. 51).

A discórdia entre os dois pesquisadores se deu pelo fato de Ilari analisar o diálogo (2) apenas sob o ponto de vista da Semântica e Rajagopalan afirmar que seria necessária uma explicação pragmática e não haveria necessidade de comparar as pesquisas pragmáticas às pesquisas semânticas e sintáticas. E, ainda, de acordo com Rajagopalan (2002), comentários como o de Ter Meulen (1988, p. 439 apud RAJAGOPALAN, 2002, p. 90), “a Pragmática, embora de forma menos marcante que a Sintaxe e a Semântica, é caracterizada por um conjunto de questões centrais de pesquisa que formam um programa científico coerente de investigação linguística”, deveriam ser reavaliados, pois a Pragmática não poderia ser considerada inferior a outras ciências.

Qual a “origem” desta “discórdia” entre os pesquisadores? O que esses linguistas consagrados afirmavam acerca dessa “inferioridade” da Pragmática ou de sua dependência a outras ciências? Por que Rajagopalan fazia essa afirmação? Vejamos:

Pragmática é ainda vista por muitos como uma ‘terra de ninguém’ ou melhor, um “terreno baldio” onde se despejam os detritos provenientes dos demais campos (escondido, é claro, dos olhares públicos, uma vez que há aterros sanitários apropriados para tal finalidade) (RAJAGOPALAN, 2002, p. 91).

São essas problematizações que nos fazem voltar ao tempo para compreender melhor como esta (in)dependência da Pragmática foi possível diante dos campos da Sintaxe e da Semântica. Além disso, é preciso lembrar que o século XX foi quase todo estruturalista e a Semântica de base lógica frege/russelliana, que vimos na Unidade 1, Tópico 2 (3.1 Abordagem referencial), foi a base para os estudos linguísticos que se distanciavam das línguas naturais, consideradas abertas, complexas e imperfeitas. Havia, então, uma necessidade dos pesquisadores em analisar a língua em uso e ir além dessa abordagem sintático-semântica.

TÓPICO 1 | SIGNIFICADO E USO

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Por que, então, nomear este item de “jogos de linguagem”? Qual a relação dos jogos de linguagem com a problematização desses aspectos na análise da língua?

Dependendo do contexto enunciativo, a palavra terá um determinado significado, ou seja, as palavras não descrevem apenas a realidade como supunham os semanticistas formais. Os usos que fazemos das palavras são inúmeros e seus significados não se sobrepõem um ao outro, pois tudo depende dos nossos objetivos, de nossas ações em determinado contexto comunicativo. Assim, os sentidos são produzidos dentro dos jogos, das inúmeras práticas que constituem a linguagem e que vão ser discutidas conforme a época em que estão localizadas.

Se estamos falando sobre jogos de linguagem, este é o momento de ampliar nosso conhecimento. Acesse o link https://www.youtube.com/watch?v=vkSMh1P_We8 e assista ao vídeo em que o filósofo Paulo Ghiraldelli Jr explica a obra de Wittgenstein.

DICAS

Do final do século XIX até os anos 1960, a Pragmática ainda não era considerada uma disciplina, pois havia uma indefinição do objeto de estudo e as bases teóricas vinham de ciências como a Biologia, Psicologia, Física e Ciências Sociais. Entretanto, já era reconhecida por vários autores como Peirce (1878), Bühler (1934 apud Blühdorn, 1997) Morris (1976), Carnap, Hahn e Naurath (1986), Frege (1978) e Wittgenstein (1999). Morris reconheceu que era preciso estabelecer os limites dos fenômenos pragmáticos e as concepções a serem utilizadas para analisar a linguagem em uso. Bühler (1934 apud Blühdorn, 1997), em seu modelo, apresentou a Pragmática como fundamento para a Semântica e as duas como base para a Sintaxe.

Morris é um semioticista que, em 1938, passou a descrever a semiose em uma relação triádica, ou seja, em três dimensões que poderiam ser aplicadas para a análise dos aspectos semânticos, sintáticos e pragmáticos. Nessa época, apenas a Sintaxe tinha seu campo delimitado e desenvolvido. A Semântica e a Pragmática precisavam ter seus limites estabelecidos e esse foi um dos caminhos tomados por Morris (1976) para a consolidação dessas disciplinas, a saber:

a) dimensão sintática: implica o modo como os signos se relacionam e se combinam segundo regras sintáticas;

b) dimensão semântica: designa as relações dos signos com as coisas e com o que significam;

c) dimensão pragmática: expressa a relação dos signos pelos intérpretes no uso que cada um faz do signo.

UNIDADE 2 | HETEROGENEIDADE SEMÂNTICA

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Vamos observar como essas dimensões se fazem presentes na entrevista da pesquisadora em tecnologias Renata Frade (RF) a Revista Visão Eleva.

(3) Entrevista

RF: A tecnologia, quando usada de forma consciente e responsável, pode revolucionar o mundo: salvar oceanos, livrar pessoas da fome, curar doenças, emocionar, entreter, conectar pessoas, ampliar conhecimentos. Não é possível mais dissociar a tecnologia de nossas vidas, ela sempre estará presente nos campos profissional e acadêmico (FRADE, 2017).

A Sintaxe é uma ciência formal e, por isso, estabelece regras e possibilidades de combinações entre signos. A Sintaxe pressupõe a Semântica, pois se essas regras e combinações não estiverem articuladas, haverá prejuízo para a construção dos significados e o enunciado ficará sem sentido. Ou seja, se tomarmos o enunciado de Renata “Não é possível mais dissociar a tecnologia de nossas vidas”, temos uma sentença cujo significado descreve a opinião da pesquisadora e todos podem entendê-lo.

No entanto, se combinarmos os mesmos signos dessa forma: “possível vidas nossas dissociar de não tecnologias é mais a”, eles estarão em desarmonia na dimensão sintática e afetarão a dimensão semântica e pragmática, pois a relação entre os signos não constrói significados com o tema abordado e não produz efeitos no interlocutor. Não é apenas dessa forma, geralmente, quando alteramos a ordem das palavras, modificamos, também, o significado e seus efeitos como em “João ama Maria” e “Maria ama João”.

Assim, a dimensão pragmática, na fala de Renata Frade à revista, evidencia o uso da linguagem em uma situação concreta, neste caso, a entrevista realizada sobre o uso da tecnologia na sociedade. Já a dimensão semântica consiste na relação entre signos e o fato discutido, a tecnologia na sociedade. E, por fim, a dimensão sintática está na base dessas duas dimensões, pois ancora as regras formais nas quais os signos se relacionam para a construção do significado nas frases formuladas por Renata e nos efeitos de sentido produzidos discursivamente.

Trata-se, então, da relação triádica da semiose apontada por Morris (1976) na qual os signos se relacionam formalmente consigo mesmos (Sintaxe), com os objetos (Semântica) e com os intérpretes (Pragmática) e há uma interdependência entre eles que pode ser traduzida no exemplo a seguir.

DIMENSÃO RELAÇÃOSINTÁTICA SIGNO SIGNO

SEMÂNTICA SIGNO OBJETOPRAGMÁTICA SIGNO USUÁRIO

TÓPICO 1 | SIGNIFICADO E USO

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A semiose é um termo criado por Charles Sanders Peirce (1839-1914) para indicar um processo de significação, ou seja, o signo representa o objeto que provocará um efeito interpretativo na mente de um intérprete. Vejamos este exemplo:

Escrevo um e-mail para minha irmã. O e-mail é um signo daquilo que desejo lhe transmitir, que é o objeto do signo. O efeito que a mensagem produz em minha irmã é o interpretante do e-mail que, ao fim e ao cabo, é um mediador entre aquilo que desejo transmitir a minha irmã e o efeito que esse desejo nela produz através da carta (SANTAELLA, 2002, p. 9).

FONTE: SANTAELLA, L. Semiótica aplicada. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2002.

NOTA

Influenciado por Peirce (1878), Morris (1976) acreditava na relevância do papel do interpretante e na sistematização dos fenômenos ligados ao uso da linguagem. É no trabalho de Morris (1976) que as palavras Semântica, Pragmática e Sintaxe aparecem juntas pela primeira vez. Vejamos um exemplo dessa “aliança” na contribuição de Ilari (2000):

[...] suponhamos que, durante uma partida de buraco, um dos participantes baixe uma trinca de seis. No contexto da partida, alguém que observa o jogo (1) conclui que essa jogada foi uma maneira de bloquear a última chance de canastra do adversário; (2) constata que, independentemente das consequências que a jogada terá para o desenvolvimento da partida, o jogador fez quinze pontos; e (3) verifica que a trinca foi aceita como válida enquanto combinação de cartas “baixadas” porque, pelas regras do jogo, é uma combinação permitida. A primeira observação é pragmática, a segunda semântica e a terceira sintática (ILARI, 2000, p. 112, grifos nossos).

Morris (1976) afirma que colocar em prática essas três noções exige alguns termos específicos como “implica”, na Sintaxe, na Semântica, “designa”, “denota” e na Pragmática, “expressa”. Na relação triádica da semiose, como essas noções se fazem presentes? Por que Morris (1976) elege esses termos para singularizar cada ciência? Vejamos.

A singularidade dessas ciências está atrelada à relação que cada uma estabelece com os signos, ou seja, se consultarmos o significado da palavra “tecnologia”, presente no enunciado de Renata Frade (2017) em (3), nem sempre teremos um só. De acordo com o dicionário Michaelis on-line (2015), há cinco entradas para esta palavra. Por isso, a dimensão sintática implica, ou seja, sugere uma relação do signo com outros signos, neste caso, com as palavras “uso” “responsável” e “consciente” presentes na entrevista.

UNIDADE 2 | HETEROGENEIDADE SEMÂNTICA

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Dentre as sugestões propostas, a palavra “tecnologia” denota (designa, significa), dentre as cinco entradas, apenas aquela que é aplicável ao objeto ou à situação em questão na entrevista. Neste caso, a dimensão semântica é recuperada na entrada do dicionário cujo significado de “tecnologia” aponta para conhecimentos científicos que podem transformar a sociedade e relações construídas pela dimensão sintática. Por fim, a dimensão pragmática expressa o uso efetivo das combinações dos signos (Sintaxe) e seus significados (Semântica) pelos usuários de um grupo social, evidenciando certas condições de uso.

O autor enfatiza, também, que essas distinções seriam necessárias para que não fossem criadas confusões entre os níveis do processo de semiose e a independência dessas dimensões fosse demonstrada com maior rigor científico. Ou seja, para Morris (1976), a Pragmática é a disciplina mais abrangente e inclui a Semântica e a Sintaxe.

Charles Morris (1903-1979), filósofo e semioticista americano. Suas pesquisas foram influenciadas pela lógica e semiótica de Peirce. Seu objetivo era desenvolver uma ciência baseada na Sintaxe, Semântica e Pragmática.

FIGURA - CHARLES MORRIS

FONTE: <http://www.victorianweb.org/photos/morris/4.jpg>. Acesso em: 20 set. 2019.

NOTA

Oliveira e Basso (2007) afirmam que essa divisão é embrionária, pois a proposta de Morris (1976) não estava atrelada às línguas naturais e essa representação hierárquica não ampliava os estudos da linguagem. Para uma análise empírica, a interpenetração dessas disciplinas seria imprescindível. Além disso, não comportava os estudos atuais, uma vez que havia uma independência das dimensões propostas por Morris (1976) e uma limitação semântica, que já vimos na Abordagem referencial, na Unidade 1, quando são excluídas das análises as expressões que não capturam uma referência no mundo real como afixos, preposições, quantificadores, personagens literários.

TÓPICO 1 | SIGNIFICADO E USO

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Para um estudo mais aprofundado acerca da dimensão semântica da semiose e das dimensões sintáticas, semânticas e pragmáticas, sugerimos a leitura da obra Fundamentos da Teoria dos Signos, de Charles Morris.

FONTE: MORRIS, W. C. Fundamentos da teoria dos signos. Rio de Janeiro: Eldorado, 1976.

NOTA

Agora, vamos realizar uma análise tomando como base as considerações de Oliveira e Basso (2007) e demonstrar que o modelo de tripartição de Morris (1976) possui lacunas. Para realizar um estudo que tome os fatos da linguagem sob os aspectos semânticos e pragmáticos, é preciso reavaliar esta separação analítica proposta por Morris (1976) e considerar que nenhum campo pode ser totalmente independente do outro como ele propunha em seu modelo. Para uma concepção sociointerativa, a Pragmática implica a Semântica e vice-versa, mediante o uso da língua e a relação entre as palavras e sentenças.

Tornemos mais claro, na figura a seguir, como se estabelecem essas relações semânticas e pragmáticas na produção dos sentidos e o quanto a proposta de Morris (1976) não contempla a compreensão das escolhas lexicais e sintáticas que são constitutivas dos enunciados e seus sentidos.

(4) Armandinho

FIGURA 2 – RELAÇÕES SEMÂNTICAS E PRAGMÁTICAS

FONTE: <https://files.nsctotal.com.br/styles/paragraph_image_style/s3/imagesrc/23794138.jpg? EceWK.66sGYRmwEAgQx5OyhI01CtyjuO&itok=2_U42DoR&width=750>. Acesso em: 15 jan. 2020.

A palavra “tira”, presente no primeiro e terceiro quadrinhos da tirinha de Armandinho, quando analisada sob o ponto de vista linguístico, seu significado literal, provavelmente, seria, entre outros, “lista, policial, faixa, fita e história”, determinados sem relação aos modos de produção dos sentidos e

UNIDADE 2 | HETEROGENEIDADE SEMÂNTICA

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o uso da linguagem. Essa pluralidade de significados, evidenciada na palavra “tiras”, demonstra a flexibilidade semântica e a impossibilidade de um sinônimo absoluto ou perfeito – para rever este assunto, retome à Unidade 1, Tópico 1 (6.1 Sinonímia e paráfrase).

Como se institui esta flexibilidade do significado? Como a imbricação semântica e pragmática são necessárias para a compreensão da tirinha?

As experiências, as formas de representar o mundo sempre em mudança, as adaptações a novas situações, a incorporação de mais informações, o menor esforço cognitivo, as culturas, são alguns mecanismos responsáveis pela flexibilidade e compreensão. É essa flexibilidade que se evidencia na fala de Armandinho quando ele questiona “Moço, é aqui a oficina de tiras?”. Nesse enunciado, está implícita em “tiras” a ideia de conserto, que se materializa no terceiro quadrinho quando ele retira da sacola a sandália com a tira arrebentada. O desapontamento de Armandinho é visível no seu semblante no segundo e terceiro quadrinhos ao perceber que o “moço” não compreendeu sua pergunta, ou seja, não entrou no seu jogo de linguagem.

[...] as palavras sempre possuem significados anteriormente ao uso que se faz delas. O falante-ouvinte ou o leitor, ao usar uma palavra, já a recebe com um significado que a ela foi atrelado pela sua comunidade linguística. Isso não significa, entretanto, que o leitor e o falante-ouvinte não possam acrescentar significações ao significado literal. Os falantes-ouvintes e os leitores e escritores compartilham esses significados, mas cada um os interpreta a sua maneira, de acordo com sua história pessoal e com o contexto em que se encontra (OLIVEIRA, 2017, p. 174).

Assim, as palavras têm sentidos literais que passam a controlar a interpretação do que é enunciado e a impedir sentidos que sejam mais convenientes para o produtor e seu interlocutor; da mesma forma, as mudanças de significado das palavras não são realizadas de forma aleatória e nem individualmente, mas por toda uma comunidade. Esses limites semânticos são necessários para que a convivência entre os falantes de uma língua não se torne uma “babel” durante seu uso. Esses fatos não seriam levados em consideração por Morris (1976), uma vez que, para ele, os sentidos estariam desvinculados do léxico e do uso da linguagem em determinado contexto.

Voltando ao enunciado (4), por que houve uma compreensão diferente entre os dois com relação à palavra “tiras”? Por que o “moço” não entrou no mesmo jogo de linguagem de Armandinho? Por que a palavra “tiras” não contribuiu para a mesma produção de sentidos?

No jogo de linguagem que atravessa a tirinha, a significação da palavra “tiras” não é uma questão de sentido e referência, das condições de verdade, da pureza e exatidão da linguagem como queria a Semântica formal. A palavra “tiras” está atrelada à palavra “oficina” que, ao ser contextualizada, também adquire

TÓPICO 1 | SIGNIFICADO E USO

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sentidos diferentes. Para o “moço”, “oficina” significa local onde se produz o gênero tiras, história em quadrinhos; para Armandinho, “oficina” significa local onde se consertam tiras de chinelo.

A compreensão diferente é válida, pois nem sempre há um mútuo entendimento acerca das palavras quando utilizadas em um ato comunicativo. O conhecimento de mundo de um adulto é diferente do conhecimento de mundo de uma criança. Em qualquer prática de linguagem, há efeitos de sentido que vão além do simples reconhecimento do significado das palavras. É preciso lembrar que, embora uma palavra tenha sentidos diferentes, há sempre um significado literal de onde partimos para nossas interpretações.

Ambos, “moço” e Armandinho, atribuíram significados diferentes às palavras, mas que podem ser recuperados pragmaticamente na enunciação, uma atividade social e interativa, da qual eles participam e permite determinados efeitos de sentido. Os sentidos são intencionais e produzidos quando a linguagem é colocada em funcionamento por sujeitos em determinados jogos linguísticos e que pertencem a comunidades interpretativas distintas e de culturas diferentes.

Em vista disso, essa pluralidade de sentidos evidencia uma atualização dos jogos de linguagem que, como afirma Wittgenstein (1999, p. 35), ao referir-se ao paradigma construído pela linguagem:

Quantos tipos de sentenças existem? Talvez asserção, pergunta e ordem? – Há inúmeros desses tipos: inúmeros tipos diferentes de aplicação de tudo o que chamamos de “sinais”, “palavras”, “sentenças”. E essa multiplicidade não é nada fixa, dada de uma vez por todas; mas novos tipos de linguagem, novos jogos de linguagem, poderíamos dizer, passam a existir, e outros envelhecem e são esquecidos.

O que o filósofo demonstra é o fato de que não é possível separar a linguagem, ações e instituições de nossa visão de mundo e o jogo é parte dessa atividade como acontece na tirinha de Armandinho. Não há como separar os aspectos semânticos dos aspectos pragmáticos, ou seja, o uso desses significados aplicados ao processo de enunciação.

Não é a linguagem que estabelece os sentidos como um vínculo entre nomes e objetos, conforme realizado pela lógica. Os sentidos são construídos nos jogos de linguagem em que as palavras se inserem, nas múltiplas práticas da linguagem em uso. Assim, ao levarmos em consideração os aspectos semânticos e pragmáticos, evidenciamos que a construção dos sentidos depende do jogo em que entramos, uma vez que há uma multiplicidade de jogos com significados que não são neutros. Vamos verificar a palavra “coisa” (5) e seu uso em enunciados retirados do dicionário (AULETE, c2021, s.p.).

UNIDADE 2 | HETEROGENEIDADE SEMÂNTICA

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(5) A palavra “coisa”

COISA

O tempo, o espaço são coisas que mal se definem.Pela terra pergunta e coisas dela.Queremos coisas e não palavras.Para tratar de coisas importantes.Das que nos tocam temos dito alguma coisa em seus lugares.Não tenho coisa nenhuma com ele.Enfim deparei com um pobre homem, assim coisa de sacristão.

Voltando ao exemplo (4) e ao (5), a análise não seria possível, na visão de Morris (1976), uma vez que, para o autor, a Pragmática independe da Semântica porque a Pragmática tem relação do signo com a referência e a Semântica, do signo com seus intérpretes. É preciso compreender que uma disciplina depende da outra e não é possível “[...] determinar a proposição expressa por uma sentença, tarefa da semântica, sem a relação de referência [...] que se estabelece no uso (pragmática), ou seja, a referência é pragmática e ela é pressuposta pela Semântica (OLIVEIRA; BASSO, 2007, p. 9).

Ilari (2000) afirma, ainda, que essa tripartição de Morris (1976) apresenta alguns problemas como a falta da inclusão de estudos lexicológicos na Semântica e a relevância dada à Pragmática que inclui a Semântica e essa, a Sintaxe, dificultando a análise dessas disciplinas “menos relevantes”. Ilari (2000) acrescenta, ainda, que Morris constrói uma história da Pragmática com os “problemas” que a Semântica não abordava de forma satisfatória.

De acordo com Maria João Marçalo (2009), Doutora do Departamento de Linguística e Literaturas da Universidade de Évora/Portugal:

A lexicologia, enquanto ciência do léxico, estuda as relações deste com os outros sistemas da língua, mas sobretudo a relações internas do próprio léxico. [...] relaciona-se necessariamente com a fonologia, a morfologia, a sintaxe e em particular com a semântica.

FONTE: MARÇALO, M. J. Lexicologia. 2009. Disponível em: http://twixar.me/wp61. Acesso em: 15 jan. 2020.

DICAS

TÓPICO 1 | SIGNIFICADO E USO

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Bühler (1934 apud Blühdorn, 1997) é outro pesquisador que também propõe um modelo tríplice da linguagem – o Órganon – baseado em três funções de comunicação da língua:

FUNÇÕES DA LINGUAGEM (BÜHLER)Função Objetivo

Primeira função Expressão Ligar o signo ao emissor (enunciação de algo)

Segunda função Apelo Ligar o signo ao receptor (regular as ações e comportamentos do outro)

Terceira função Representação Ligar o signo aos objetos (falar sobre as coisas a partir dos elementos linguísticos)

Bühler (1934) é considerado um dos protagonistas da Pragmática linguística, motivado pelos atos enunciativos e por levar em consideração os interlocutores desses atos. Em 1934, publica Teoria da Linguagem na qual discute a ação dos atos de fala e a instância do outro que passa a ter um caráter de realce na Pragmática linguística. Os sentidos, nesse estudo, são construídos na enunciação e devem ser compreendidos quando atrelados ao produtor do enunciado que vai coordenar as ações intersubjetivas, a relação com o outro.

O Órganon, proposto por Bühler (1934), toma como referência o Órganon, do grego, que se refere a um estilo constituído por várias vozes, neste caso, o autor elege o eu, você e ele. Ou seja, a linguagem é uma ferramenta pela qual uma determinada pessoa transmite a outra pessoa algo sobre as coisas ou o estado das coisas.

DICAS

Assim, a positividade de sua concepção está no fato de o autor já ter enfatizado, em sua época, os atos de fala que serão abordados mais tarde por Austin em seu livro Quando dizer é fazer (1990) e que estudaremos neste tópico. No entanto, comunga com Morris (1976) acerca da relevância da Pragmática sobre a Semântica e a Sintaxe e, novamente, temos uma concepção na qual a linguagem é usada para investigar o que está fora dela. Não busca explicitar a linguagem em termos de uso. Outro fator a ser considerado é que a língua é vista como código e, nessa ideia, fica implícita a transparência e de que os sentidos estão atrelados apenas aos elementos linguísticos. A língua não é neutra.

Vamos averiguar, então, a língua em uso, em um enunciado do cotidiano, na linguagem ordinária, comumente usada pelos falantes de uma língua e apontar as lacunas da teoria de Bühler (1934 apud Blühdorn, 1997). Suponha uma conversa entre duas irmãs:

UNIDADE 2 | HETEROGENEIDADE SEMÂNTICA

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(6) Ana e Bia estão no quarto. Bia se arruma para sair e Ana olha pela janela e diz: “O céu está escuro!”

Temos alguém que produz para alguém um enunciado, neste caso, Ana diz para Bia que o céu está escuro após olhar pela janela e notar que o tempo se prepara para uma chuva. Esse enunciado permite pensarmos os atos de fala a partir do raciocínio de Ana em seu ato de pronunciar a sentença, conforme regras gramaticais, com certo significado e conteúdo informacional. Ao proferir tal enunciado, Ana realiza determinada ação com uma intenção que deve corresponder aos efeitos esperados em Bia, ou seja, Ana espera que Bia tenha determinada ação e que, segundo Bühler (1934 apud Blühdorn, 1997), deveria ser, prontamente, compreendida por Bia, pois os conhecimento linguísticos de Bia deveriam bastar para que ela apreendesse o sentido pretendido por Ana: não sair de casa.

Entretanto, não temos domínio completo sobre o que ocorre em uma situação discursiva, uma vez que desconhecemos as implicações dos atos de fala. Para que Bia consiga produzir sentidos a partir da fala de Ana, será necessário levar em consideração o contexto de produção do enunciado, olhar para o tempo e entender as “instruções”. As pistas de Ana, ao enunciar “O céu está escuro”, seria dissuadir a irmã de fazer algo em vista do tempo que se prepara para uma chuva. Se o dia estivesse ensolarado, esse ato de fala não teria sido produzido, mas Ana não pode prever a reação de Bia que pode dizer:

“— Vai chover, vou levar o guarda-chuva”. “— Realmente o tempo está escuro, mas vou ao cinema”.“— Tenho certeza de que não vai chover, por isso, vou encontrar os amigos”. “— Não se preocupe, vou à casa de Joana”.

Nesse caso, a reação de Bia não é a prevista por Ana que espera que ela não saia de casa. Então, por que a comunicação não alcança sucesso? O que faz Bia agir de forma diferente do esperado por Ana? De acordo com Bühler (1934 apud Blühdorn, 1997), Ana deveria ter compreendido a fala de Bia, pois a linguagem é vista como um instrumento de comunicação. Contudo, não é mais possível analisar a linguagem desse ponto de vista. A linguagem é uma prática social interativa e não uma transmissão de mensagens de um emissor a um receptor. Os usuários da língua se envolvem interativamente quando utilizam a língua.

Além disso, é preciso considerar a opacidade da linguagem e que Bia não participa dos mesmos jogos de linguagem de Ana, pois as regras de uso é que definem o que é ou não apropriado para um determinado ato de discurso. Um outro ponto a ser considerado é que o enunciado de Ana vai muito além do seu sentido literal e não é suficiente para assegurar a compreensão de Bia.

Será que essa partição proposta por Morris (1976) e Bühler (1934 apud Blühdorn, 1997) se justifica na contemporaneidade? A relevância dada à Pragmática seria suficiente à compreensão das proposições e dos contextos em

TÓPICO 1 | SIGNIFICADO E USO

93

que são produzidos os enunciados? As teorias semânticas deveriam bastar-se, conforme advogam alguns puristas ou, o contexto seria suficiente para impor os limites entre essas ciências?

Parece que os questionamentos acerca da separação dessas teorias são muitos e que se desejássemos ampliar as singularidades de cada uma, teríamos muito material. Não é isso que queremos, pois já estudamos na Unidade 1 as contribuições da Semântica e suas condições de verdade, assim como já vimos a abordagem pragmática e o uso da linguagem em situações comunicativas concretas.

O que vai nos interessar agora é demonstrar que os limites entre a Semântica e a Pragmática devem ser repensados, como argumenta Cançado (2012, p.19-20):

A semântica pode ser pensada como a explicação de aspectos de interpretação que dependem exclusivamente do sistema da língua e não de como as pessoas a colocam em uso [...] O estudo da pragmática tem relação com os usos situados da língua e com certos tipos de efeitos intencionais. Entretanto, [...] nem sempre é tão clara essa divisão e nem sempre conseguimos precisar o que está no terreno da semântica e o que está no terreno da pragmática.

Para apreender que estamos em um terreno movediço, devemos propor, no estudo da Língua Portuguesa, jogos de linguagem que corroborem para a compreensão de que a relevância dada à Pragmática por esses autores resulta, como diz Ilari (2000), em certa desinformação acerca dos avanços dos estudos semânticos. É preciso valorizar os aspectos semânticos e pragmáticos, demostrando o quanto são indispensáveis para a apreensão da significação e de que nem tudo é pragmático e nem tudo é semântico.

Vamos ao nosso primeiro desafio desta unidade!

As palavras carregam seus sentidos literais que passam a controlar a interpretação do texto e as mudanças de significado das palavras não são realizadas de forma aleatória e nem individualmente, mas por toda uma comunidade.

Observe nas situações de seu cotidiano como as pessoas utilizam a linguagem e aponte como elas, ao utilizarem determinadas palavras, constroem sentidos em seus textos.

Faça uma listagem dessas construções semânticas e observe como elas trazem ecos de outras enunciações.

IMPORTANTE

UNIDADE 2 | HETEROGENEIDADE SEMÂNTICA

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3 O SIGNIFICADO NO SISTEMA DE ESCOLHA E COESÃO DISCURSIVA

Temos trabalhado com o significado a partir de abordagens que exploram a relação da língua com o mundo, com a mente e com o uso dos enunciados. Vimos que os significados não estão colados às palavras, mas são construídos a partir de jogos de linguagem, ou seja, algumas abordagens, ao reduzirem o significado a um plano abstrato, sem relação com o contexto enunciativo, deixam de lado aspectos históricos, sociais, culturais que interferem na produção dos sentidos e na sua interpretação pelos interlocutores.

Como afirma Marques (2001), é preciso unir o conhecimento proveniente da língua em isolamento, ou seja, em nível abstrato-conceitual, com o conhecimento de fatores presentes na língua em atos comunicativos contextualizados. Para que os fenômenos de significados ultrapassem o plano denotativo e conceitual, é imperativo conhecê-los, examinar sua natureza a fim de explicá-los e, para isso, aspectos semânticos e pragmáticos devem ser considerados.

Quando se busca entender um enunciado, muitas vezes, procuramos no dicionário o significado de uma palavra. No entanto, ao discutirmos, na Unidade 1, Tópico 1, acerca da quase completa inexistência de uma sinonímia perfeita, esta seria uma tarefa exitosa? Ao tomarmos a palavra “menino”, vamos encontrar em muitos dicionários os seguintes itens lexicais como sinônimos: garoto, guri, pequeno, piá, moleque, miúdo e outros. Se levarmos em consideração os falantes, o formalismo da língua, a afinidade dos interlocutores, a situação, todas essas palavras sinônimas podem ocupar o lugar de “menino” em “Você já é um menino”?

Vamos discutir mais acerca desses aspectos e o quanto essas escolhas lexicais interferem ou não no sentido dos enunciados. Para isso, explorar o nível paradigmático e sintagmático será o caminho tomado para compreender como se dá a produção de sentidos. Ao tomarmos esses dois níveis, estamos retomando a noção de significado e sentido discutida na Unidade 1, Tópico 2 (a noção de significado e sentido) e reafirmando que, do ponto de vista semântico e pragmático, a frase, entidade teórica, é carregada de significação, e o enunciado, entidade empírica, é a realização da frase e carregado de sentidos.

A linguagem funciona a partir de dois níveis. Os interlocutores escolhem as palavras no eixo paradigmático, que se constitui como uma memória, e as combinam no eixo sintagmático de acordo com os seus objetivos. Veja o exemplo:

TÓPICO 1 | SIGNIFICADO E USO

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(7) Eixos da linguagem

Podemos observar que, no eixo paradigmático, as palavras são colocadas em ordem, conforme a estrutura da língua, que sintaticamente, nesse exemplo, seria: adjunto (o, a, os), sujeito (menino, criança, vestidos), predicado (é, está, são), predicativo (estudioso, alegre, bonitos), in absentia, pois estão armazenadas em nossa memória. Já, no eixo sintagmático, tomamos apenas aquelas palavras que vamos utilizar para produzir o enunciado; as outras ficam “guardadas” para quando precisarmos para compor outros enunciados. São palavras que combinamos no enunciado, in praesentia.

Passemos agora para um estudo mais aprofundado dessas relações. Para isso, vamos dar mais sentido a estes conceitos e demonstrar que o eixo sintagmático e o eixo paradigmático são responsáveis pela construção de enunciados atravessados por elementos que conduzem a argumentação, a “orientação” de leitura.

3.1 RELAÇÕES SINTAGMÁTICAS

Ao falar nas relações sintagmáticas, vem à lembrança o legado teórico deixado pala escola estruturalista que denomina de sintagma a duas ou mais unidades combinadas de variadas formas. O estruturalismo defendia que os signos devem ser estudados no seio da vida social e já antecipava que seu estudo se daria a partir da enunciação, dos efeitos produzidos pela língua em determinadas situações previstas ou não. Como já afirmamos em outros momentos, Unidade 1 (Percurso histórico: considerações gerais), o signo não une a palavra a uma coisa, não é uma etiqueta, nem uma colagem. O signo possui um laço arbitrário entre o significante e o significado e representa uma extensão mensurável e linear, mas, o que significa isso?

Significa, segundo Saussure (1975), que não existe a possibilidade de pronunciar dois elementos ao mesmo tempo e que estes elementos estão presentes em duas ou mais unidades linguísticas como, “refazer, posição irregular, o tempo está chuvoso” que se relacionam in praesentia em um mesmo contexto sintático. Analisemos, a título de ilustração, o enunciado retirado da Revista Nova Escola, edição 320, março/2019:

Eixo Paradigmático (associações)

Eixo Sintagmático(relações)

↓ ↓

O menino é estudiosoA criança está alegreOs vestidos são bonitos

→ →

UNIDADE 2 | HETEROGENEIDADE SEMÂNTICA

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(8) “Chega de "aulinhas" para os pequenos”

FIGURA 3 – RELAÇÕES SINTAGMÁTICAS

FONTE: <http://twixar.me/r6N1>. Acesso em: 15 jan. 2020.

Todos os elementos foram combinados de forma linear e subsequentemente. No nível fonológico, as unidades foram combinadas para a formação das sílabas como em “pe-que-nos”, que segue a regra proposta pelo sistema linguístico de que cada sílaba é formada por um som vocálico (pe/que/nos). No nível morfológico, as unidades foram combinadas como em “pequenos” na qual o “s” aponta para o sentido plural. No nível sintático, as unidades, ao se combinarem, constroem o enunciado presente em nossa língua e na qual a combinação “aulinhas de chega” seria inadmissível. Com relação ao nível semântico, a palavra “pequenos” significa “curtos, compactos, baixos, poucos, crianças” que receberão um outro tratamento do nível paradigmático.

A análise dessas unidades é relevante para a compreensão dos aspectos semânticos e pragmáticos? Apenas as relações sintagmáticas contribuem para a construção dos significados? Ao sabermos o significado de uma palavra, sabemos utilizá-la?

Não estamos trabalhando com nenhuma abordagem de linguagem cujo objetivo é a compreensão dos fenômenos a partir da verdade, da correção e da singularidade. A linguagem, sob esta ótica, teria um papel secundário, pois seria apenas um instrumento de comunicação do pensamento. A concepção que estamos abordando implica vários jogos de linguagem nos quais cada palavra, sentença e enunciado remete à multiplicidade de sentidos em vista das mais variadas situações de uso. Assim, a relevância não está na análise propriamente dita das unidades, mas na compreensão de que as unidades não são dispostas de forma aleatória, mas ocorrem pela exclusão de outras combinações.

TÓPICO 1 | SIGNIFICADO E USO

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Além disso, as relações entre palavras e expressões se manifestam discursivamente a partir dessa disposição proposta pelo locutor que são combinadas discursivamente. Lopes (1975, p. 90) afirma que "[...] o sintagma se constrói com base na contiguidade e na irreversibilidade: seus elementos estão dotados de uma distribuição característica, funcional". Essa distribuição contribui na produção dos sentidos, uma vez que as modificações nessa cadeia apontam para implicações semânticas.

Acadêmico do curso de Letras, recortamos e adaptamos um trecho do capítulo “Teoria X-barra”, do Novo manual de sintaxe de Mioto, Silva e Lopes (2013). O texto a seguir pretende tornar acessível para leitores iniciantes as relevantes abordagens sobre o sintagma e relações sintagmáticas a partir de uma sentença ambígua por sua estrutura.

A noção de sintagma

Um sintagma é uma unidade sintática construída hierarquicamente, embora se apresente aos olhos como uma sequência de letras ou aos ouvidos como uma sequência de sons. Nenhuma teoria sintática se dedica a determinar sua extensão, uma vez que não é possível prever qual o número máximo de itens que podem pertencer a ele. Por isso, em vez de procurar estabelecer a extensão de um sintagma, a sintaxe o delimita a partir de um núcleo. O segundo é identificar os itens que gravitam em torno do núcleo, desempenhando as funções determinadas por ele.

Nesta seção, vamos jogar com nossa intuição para tomar pé da noção de sintagma [...]. Para tanto, consideremos (1) perguntando se aquela ré culpada é um sintagma e, supondo que seu núcleo possa ser o nome, se é um sintagma nominal:

(1) O juiz julgou aquela ré culpada.

Se a resposta for sim, ela vai ser válida e representamos aquela ré culpada entre colchetes com o rótulo SN (sintagma nominal), como em (2a); mas se a resposta for não, ela também vai ser válida e nesse caso representamos apenas aquela ré entre os colchetes, como em (2b):

(2) a. O juiz julgou [SN aquela ré culpada]. b. O juiz julgou [SN aquela ré] culpada.

UNIDADE 2 | HETEROGENEIDADE SEMÂNTICA

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Vamos abordar as relações paradigmáticas e compreender o quanto elas ocorrem concomitantemente às relações sintagmáticas.

Vamos supor que as duas possibilidades de interpretação de (1) sejam o resultado de duas formas diferentes de combinar (em relações sintagmáticas) os elementos que as formam. Então, a ambiguidade de (1) vai estar espelhada em (2’).

Analisando a interpretação de (2a), de trás para frente, podemos observar: primeiro combinamos ré com culpada e formamos o complexo ré culpada; depois combinamos aquela ré culpada com julgou e formamos julgou aquela ré culpada; e por fim combinamos julgou aquela ré culpada com o juiz e formamos O juiz julgou aquela ré culpada que corresponde a sentença em (1). O que merece nossa atenção em (2a) é que culpada forma um complexo com aquela ré porque culpada já é uma característica da ré (ela é culpada pelo crime cometido).

Na sentença (2b), por outro lado, culpada é como o juiz a julgou, independentemente da culpa da ré. Sua análise consiste nas seguintes combinações: primeiro combinamos aquela com ré e formamos o complexo aquela ré; depois combinamos aquela ré com julgou e formamos julgou aquela ré; depois combinamos julgou aquela ré com culpada e formamos julgou aquela ré culpada; e por fim combinamos julgou aquela ré culpada com o juiz e formamos O juiz julgou aquela ré culpada que corresponde a sentença em (1). O que merece nossa atenção agora é que culpada não forma um sintagma com aquela ré.

Tanto (2a) como (2b) são estruturas que confirmam que em (1) há uma ambiguidade cujos efeitos são os seguintes: por um lado, quando o adjetivo culpada não se combina com aquela ré, como em (2b), isto é, quando não pertence ao mesmo sintagma nominal, ele representa o veredicto do juiz, que é a culpa da ré; por outro lado, quando é combinado com aquela ré, como em (2a), ele pertence ao sintagma nominal e o veredicto do juiz não é expresso na sentença. Assim, o fato sintático de a sequência em (1) tolerar mais de uma estrutura espelha a ambiguidade de que ela exibe: nesta sequência, não fica claro se culpada pertence ou não ao sintagma nominal. Se qualquer indício deixasse claro qual é a estrutura de aquela ré culpada, a ambiguidade não se instauraria.

FONTE: Adaptado de MIOTO, C.; SILVA, M. C. F.; LOPES, R. Novo manual de sintaxe. São Paulo: Contexto, 2013. pp. 47 – 49.

TÓPICO 1 | SIGNIFICADO E USO

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3.2 RELAÇÕES PARADIGMÁTICAS

Atrelado ao nível sintagmático, há o nível paradigmático que apresenta relações associativas estabelecidas in absentia, ou seja, externamente ao enunciado, entre palavras e expressões que tenham algo em comum. Como isso se dá no contexto linguístico? Como se estabelecem as relações fora do discurso? É preciso compreender que, nas relações paradigmáticas, a associação se estabelece entre termos presentes e termos que estão ausentes do contexto, ou seja, que não estão explícitos no sintagma. Outro ponto a ser compreendido é que sua ausência na materialidade do sintagma implica relevância na coesão discursiva, pois o sentido vai sendo construído entre as unidades e cognitivamente.

É o caso da Figura 4, em que Armandinho supõe que Fê saiba do que ele está falando. Ao selecionar no eixo paradigmático “Ela”, “vive”, “de”, “renda” e combinar essas palavras na formação do enunciado “Ela vive de renda”, a partir das relações sintagmáticas, evidencia-se, pragmaticamente, que Armandinho conhecia a situação, pois ele selecionou as palavras “vive”, “de” e “renda” que remetem à profissão da velhinha, mas essa seleção levou Fê a mobilizar sentidos distintos dos pretendidos por Armandinho.

É hora de observarmos como poderia se dar essa cadeia associativa apenas em “Ela vive de renda” e que outros termos poderiam ter sido mobilizados se a situação fosse outra:

Ela vive de renda Ele gosta das criançasNós ensinamos com carinhoElas corresponderam ao esperado

Relações Sintagmáticas

RelaçõesParadigmáticas

Desse modo, as relações paradigmáticas estão em consonância com as relações sintagmáticas e a linguagem é atravessada pela alteridade para fazer sentido. Essa alteridade é sustentada pela presença do outro na relação entre palavras e enunciados, entre frases e enunciados, entre interlocutores, entre discursos e na construção dos sentidos. As palavras têm significação na língua e sentidos no discurso que podem ser resgatados nas relações sintagmáticas e paradigmáticas.

O exemplo publicado na página da Volkswagen: “Inovação é contar com segurança em qualquer situação”, vai ilustrar o que estamos discutindo.

UNIDADE 2 | HETEROGENEIDADE SEMÂNTICA

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(10) Detector de fadiga

Nossos itens de segurança são pensados desde o início do desenvolvimento do carro. Alguns deles são mais fáceis de ver em prática, como o sensor de fadiga, que reconhece quando o motorista está cansado e emite sinais de alerta para chamar a sua atenção (WOLKSWAGEN, 2019, s.p.).

Esse fragmento exemplifica a relação que estamos abordando na produção de significados e sentidos. No nível paradigmático, o locutor tem disponível um leque de palavras, mas ele sabe quais selecionar para reafirmar os sentidos pretendidos e convencer seu interlocutor sobre as inovações do carro. No nível sintagmático, o locutor combina as palavras na construção dos enunciados direcionados a um interlocutor específico, o consumidor de carros desta empresa.

Por exemplo, em “Nossos itens de segurança são pensados desde o início”, há uma relação sintagmática que se refere a uma distribuição linear desses itens e paradigmática, pois as escolhas não são aleatórias, uma vez que a empresa mostra seu diferencial ao se subjetivar na expressão “Nossos itens”. A combinação da expressão “Desde o início” implica pragmaticamente que, na produção dos carros, a empresa está preocupada com a proteção dos motoristas, não apenas no produto, mas no processo. A palavra “início” não remete apenas ao tempo em que a empresa se dedica a essa e outras inovações, mas também ao sentido de renovação, evidenciando que a empresa não utiliza a tecnologia apenas como um acessório do carro.

São essas implicações pragmáticas e semânticas que emergem do enunciado quando uma palavra é combinada com outra e disposta no enunciado de certa maneira pelo produtor. A combinação das palavras como “nossos, segurança, desenvolvimento, mais fáceis de ver” orientam a intenção do produtor em direção a uma “resposta” do interlocutor, ou seja, a apreensão do seu pensamento. O produtor espera que seu interlocutor apreenda do enunciado um discurso de autoridade, inovação, tecnologia, versatilidade.

É na “resposta” do interlocutor que os enunciados podem ter outros sentidos. Por exemplo, o interlocutor não considerar a proposta da empresa como um diferencial do carro ou considerar que outros carros de outras marcas já trazem essa tecnologia como um diferencial. É preciso lembrar que um enunciado pode ser repetido diversas vezes, mas a enunciação é única, não repetível. São os jogos de linguagem dos quais, neste caso, empresa e consumidores podem, por razões distintas, não participar do mesmo jogo.

As relações paradigmáticas e sintagmáticas orientam a interpretação em um processo de combinação e associação de itens lexicais. Ao associar mentalmente as unidades no paradigma e combiná-las no sintagma, o locutor tem consciência de suas escolhas e os sentidos que deseja produzir em função das

TÓPICO 1 | SIGNIFICADO E USO

101

situações sociodiscursivas. Essa seleção pode mobilizar no interlocutor sentidos diferentes daqueles pretendidos pelo locutor e, desse modo, a compreensão pretendida pelo locutor não acontece. Mais uma vez estamos diante do fato de que os sentidos não estão colados às palavras.

Então, como articular a linguagem em busca dos sentidos? Como selecionar e combinar na cadeia linguística a “melhor” forma de enunciar? No excerto do poema O trem de ferro, de Manuel Bandeira (1976), é importante ressaltar que as escolhas e combinações realizadas pelo poeta não foram aleatórias. Ele relata uma viagem de trem pelo interior do Brasil, registrando as imagens que passam pela janela sob o ponto de vista do passageiro.

(11) Trem de ferro

Café com pão Café com pão Café com pão

Virgem Maria que foi isto maquinista?[...]

Voa, fumaça Corre, cerca

Ai seu foguista Bota fogo

Na fornalha Que eu preciso

Muita força Muita força Muita força

[...]

Para demonstrar que as relações paradigmáticas e sintagmáticas ocorrem simultaneamente, vamos constatar que as imagens dessa viagem são construídas pela sonoridade das palavras. A sonoridade em “Café com pão” é conseguida no plano paradigmático no qual o poeta associa o som do trem aos fonemas /k/, /p/, /f/ que, ao serem combinados entre si no plano sintagmático, simbolizam a cadência do trem no início da viagem.

O verso “Virgem Maria que foi isto maquinista?” reproduz o som do apito do trem. Como essa imagem sonora foi conseguida pelo poeta? Pela agudez expressa na repetição do fonema /i/ nas palavras, lembrando que o fonema /e/ toma a forma do fonema /i/ em Virgem [virgi], que [qui] e se fortalece na junção em [fo/i/sto]. Na cadeia paradigmática, o fonema /i/ se opõe ao fonema /e/. A escolha da expressão “Muita força” e sua repetição vem marcar a combinação dos fonemas dentre tantos outros que não proporcionariam o sentido do deslocamento do trem por uma encosta íngreme.

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Assim, os sentidos não se constroem a partir de palavras isoladas, em estado dicionarizado, nos fonemas, mas no discurso, no uso que fazemos dos signos. O que o locutor enuncia não depende só do que diz, mas das circunstâncias que demonstram em qual jogo de linguagem ele se encontra. O interlocutor conhecendo esse jogo decide se vai jogar ou não. É isso que as relações paradigmáticas sinalizam quando, em uma situação enunciativa mais formal, o processo de escolhas se faz de maneira mais consciente diante das inúmeras possibilidades que a língua apresenta. É o que discutiremos no próximo tópico ao abordar os atos de fala e o uso que se faz da língua em práticas sociais.

Vamos a mais um desafio nesta Unidade!

A vida é feita de seleções e combinações. Abrimos nosso guarda-roupa e lá estão nossas roupas, mas para ir à praia só precisamos de algumas peças e não podem ser casacos nem luvas. Quando escrevemos nossas mensagens no WhatsApp, também selecionamos apenas aquelas palavras que comporão nosso enunciado, embora as outras estejam armazenadas em nossa memória. Quando selecionamos as palavras pouco, bem pouco ou pouquíssimo, os sentidos mudam.

FONTE: A autora

Sua tarefa é encontrar outros exemplos e discutir:

• O quanto as relações paradigmáticas e sintagmáticas são responsáveis pela produção de sentidos nos enunciados.

• Como essa seleção e combinação lexical orientam o interlocutor a certos sentidos em detrimento de outros.

Depois desta atividade, vamos continuar com nossos estudos!

IMPORTANTE

TÓPICO 1 | SIGNIFICADO E USO

103

4 ATOS DE FALA E USO DA LÍNGUA Já tratamos dos atos de fala quando discutimos a Abordagem pragmática

na Unidade 1. Trabalhamos as inferências como um processo cognitivo que atualiza informações antigas, dando-lhes um outro sentido. Vimos também as implicaturas conversacionais e o princípio de cooperação, entendido como uma contribuição do falante na conversação quando algo lhe é solicitado ou o momento exige, visando propósitos comuns e guiando a interação verbal, como esse diálogo entre o filho e a mãe:

(12) Diálogo mãe e filho Filho: — Você viu minhas meias? Mãe: — Estou indo ao supermercado.

Pela resposta da mãe, as evidências apontariam para uma incoerência pelo fato de a mãe não estar dando a devida resposta ao filho. No entanto, a mãe responde e os sentidos produzidos por sua resposta não estão evidenciados no contexto linguístico de forma explícita, mas a partir de implicaturas (GRICE, 1982), de inferências. Ou seja, o ouvinte deve reconhecer a intenção do falante ao proferir seu enunciado. O filho, ao perguntar se a mãe viu suas meias, espera que a mãe o ajude a procurá-las. A mãe, ao dizer que está saindo de casa, não diz explicitamente que não vai ajudá-lo a procurar ou que não sabe onde estão as meias.

O filho precisa, a partir de um processo inferencial baseado nas máximas conversacionais ou leis do discurso, que já estudamos na Unidade 1 e que vão desempenhar um papel relevante na interpretação dos enunciados, compreender o que a mãe disse e tentar chegar a uma implicatura coerente com a atitude da mãe. Embora o conteúdo não esteja acessível ao filho, é preciso que ele perceba os implícitos nesse ato de fala, isso é, a negativa da mãe em ajudá-lo. Ele precisa recuperar no ato de fala da mãe o dito e procurar suas meias.

Portanto, seria desnecessário o filho insistir, pois a mãe já tomou sua decisão. Salientamos que os diálogos como o dessa mãe e filho, não são desconexos, mas cooperativos e “[...] cada participante reconhece neles, em alguma medida, um propósito comum ou um conjunto de propósitos ou, no mínimo, uma direção mutuamente aceita” (GRICE, 1982, p. 86). Como nem sempre o que dizemos corresponde à realidade ou ao que deveria ser realmente dito, recorremos, para a compreensão do diálogo, ao princípio de cooperação que deveria atravessar a relação dialógica entre mãe e filho.

De acordo com Grice (1982, p. 86), o princípio de cooperação é definido

a partir desta expressão: “faça sua contribuição conversacional tal como é requerida, atendendo ao que é solicitado, pelo propósito ou direção aceitos no intercâmbio conversacional em que você está envolvido”. Nem sempre os interlocutores entram no mesmo jogo de linguagem ou não querem entrar por várias razões. Por exemplo:

UNIDADE 2 | HETEROGENEIDADE SEMÂNTICA

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(13) Diálogo pai e filha Pai: — Onde está sua mãe? Filha:— Saiu.

Os interlocutores devem compartilhar informações para que a atividade sociocomunicativa obtenha êxito. Evidencia-se, pelo sistema linguístico, que a filha não coopera e nem fornece informações relevantes ao pai para que ele possa saber onde a mãe está. Embora reconheça a dificuldade da filha de entrar no mesmo jogo de linguagem que ele, o pai tenta chegar à informação por conta própria e entender a fala da filha. O pai não se deteve no sentido literal da resposta da filha, mas encontrou a resposta que queria, pois ele tinha interesse no enunciado, ou seja, saber onde a esposa havia ido pelas implicaturas conversacionais, reconhecidas pelas inferências no diálogo entre eles.

Como em qualquer atividade, é preciso que todos reconheçam seus direitos e deveres. Maingueneau (2002) é um dos autores que abordam esse assunto, ele afirma que essa atividade de cooperação também se dá na escrita e cita a conhecida expressão “Não fumar”. O autor afirma que por ser conhecida pelos interlocutores, seus sentidos são produzidos, levando ao processo de compreensão.

Apesar de trazer contribuições relevantes para a apreensão dos sentidos durante uma atividade comunicativa entre os interlocutores, algumas críticas são realizadas ao princípio de cooperação de Grice (1982), como:

• trabalha com interações idealizadas das práticas sociais; • despreza as interações conflituosas;• conecta as máximas ao valor de verdade das sentenças; • analisa apenas atos de fala declarativos, formais e padronizados.

Embora essas críticas sejam apontadas como certo problema à interpretação dos sentidos, os estudos de Grice (1982) oferecem ao falante um papel ativo, pois é capaz de modificar e conduzir as interações segundo seus propósitos comunicativos. Charaudeau (2009) vê positividade neste exercício interativo e assevera que, nesse “contrato de comunicação”, há normas, convenções aceitas pelos interlocutores e um reconhecimento de seus papéis no contexto comunicativo.

Tanto nas implicaturas conversacionais, quanto no princípio de cooperação, a compreensão dos fatos linguísticos se faz presente em vista de ser uma realização concreta, ou seja, a linguagem em uso na enunciação. Enunciação compreendida como o ato de produção de enunciados cuja função é enunciar algo a partir de dêiticos, conectores, negações e advérbios.

TÓPICO 1 | SIGNIFICADO E USO

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QUADRO 1 – TIPOS DE ENUNCIADOS

FONTE: A autora

DêiticosElementos que indicam o lugar e o tempo da enunciação: aqui, lá, este, aquele, agora, ontem, hoje.

“Vencedores do Emmy Internacional de Jornalismo foram anunciados ontem à noite em Nova York” (http://twixar.me/KdM1).

Conectores Conectam atos de enunciação.

O programa educativo “Escola, Museu e Território” tem entrada gratuita, mas a participação para algumas atividades depende de senhas. (adaptado) (http://twixar.me/ddM1).

Negações A negação incide sobre a afirmação.

“Não gosto de inglês. Adoro!!!” (http://twixar.me/FdM1).

Advérbios Qualificam o ato de fala.

“Infelizmente, o tempo respondeu, diz secretário que há 14 anos falou sobre risco iminente de incêndio no Museu Nacional” (http://twixar.me/LdM1).

Todos esses enunciados presentes em nossa língua são ações sobre a realidade, ou seja, são atos de fala (AUSTIN, 1990). Austin afirmava em sua obra Quando dizer é fazer que o dizer não é apenas a transmissão de informações, mas também uma maneira de agir sobre o outro e sobre o mundo. Essa maneira de agir se dá quando realizamos ações de prometer, pedir, afirmar, jurar, agradecer, ordenar, solicitar, comentar, advertir, aprovar, cumprimentar, exigir, contrapor-se e outras, pois nossas ações são numerosas e diversificadas. Para que essas ações se realizem e sejam compreendidas, condições como circunstâncias adequadas e interlocutores atentos são necessárias. Vejamos:

(14) a. Maria arrumou um emprego. b. — Maria, arrumou um emprego? c. Que ótimo, Maria arrumou um emprego!

Considerando que o falante utilize esses enunciados em situações adequadas, podemos examinar que as ações são distintas. Em (14a), o falante faz uma afirmação sobre a condição de Maria. Em (14b), o falante realiza a ação de questionar Maria sobre seu emprego. E, em (14c), o falante manifesta uma aprovação sobre a ação de Maria.

Sob esta perspectiva da língua em uso, Austin (1990) rompe com as condições de verdade da Semântica Formal e a Teoria dos Atos de Fala se torna uma corrente importante para o estudo da linguagem contemporânea em relação à análise pragmática. Austin (1990) sabia que aquele terreno em que se inseria era um tanto “movediço” e, então, passa a descrever os enunciados em constatativos e performativos. Seu interesse está nesse último, pois, por performativo compreende todos os enunciados que, ao serem proferidos, realizam uma ação em relação ao que é enunciado.

UNIDADE 2 | HETEROGENEIDADE SEMÂNTICA

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QUADRO 2 – ENUNCIADOS CONTATATIVOS E PERFOMATIVOS

FONTE: A autora

Enunciados Constatativos Enunciados PerformativosDescrição de fatos e eventos Realização de uma ação.Rigor do verdadeiro e falso Circunstâncias apropriadas de enunciação.Independentes da enunciação Pessoa deve ter autoridade para execução da ação.Maria foi ao cinema. Prometo que levarei você ao cinema.

Dessa forma, buscou ampliar os usos da linguagem em uma concepção performativa que contemplasse os jogos de linguagem propostos por Wittgenstein (1999). Para Austin (1990), são as condições de felicidade (sucesso) e fracasso dos performativos que vão tornar o enunciado um ato de enunciação e não mais a condição de verdade e falsidade dos enunciados como queria o formalismo.

O que são essas condições de felicidade e fracasso? Como elas contribuem para a realização de um ato de fala? Todos os atos de fala se realizam ou dependem de várias circunstâncias para sua realização no uso da língua?

Austin (1990) observou que muitos enunciados não são realizados, pois as condições em que são enunciados são inadequadas. Para que um enunciado seja efetivamente realizado, é preciso que o falante tenha autoridade para realizar o ato de fala e a linguagem deve se constituir em uma ação que seja capaz de produzir efeitos de sentido sobre o seu interlocutor.

John Langshaw Austin (1911-1960) é um filósofo britânico cujas ideias revolucionam a filosofia, abrindo caminho para o estudo da linguagem presente no cotidiano dos usuários de uma língua. Um filósofo à frente de seu tempo, pois assume uma postura pós-moderna com relação à linguagem e rompe com a postura positivista.

"Onde está a fronteira? Há uma em alguma parte? Você pode colocar esta mesma questão nos quatro cantos do horizonte. Não há fronteira. O campo está livre para quem quiser se instalar. O lugar é do primeiro que chegar. Boa sorte ao primeiro que encontrar alguma coisa" (AUSTIN, 1958, p. 134).

NOTA

TÓPICO 1 | SIGNIFICADO E USO

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FIGURA - JOHN LANGSHAW AUSTIN

FONTE: <https://www.iep.utm.edu/wp-content/media/Austin-JL.jpeg>. Acesso em: 15 jan. 2020.

Vejamos este exemplo:

(15) Juiz de paz surpreende noivos com promessa durante os votos no interior de São Paulo: “Prometo não agredi-la” (http://twixar.me/pFM1).

O juiz de paz Benedito Roberto de Ramos, ao realizar o casamento de Ellen Nocetti Benedete e Eric Moraes Benedete, incluiu aos tradicionais votos de “Prometo ser fiel, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, todos os dias de nossas vidas" mais um voto na fala do noivo, que continha a promessa de não agredir a futura esposa. Para que esse ato performativo seja efetivamente realizado, é preciso que:

• A promessa seja executada por Eric nas circunstâncias apropriadas, ou seja, na vida de casado.

• Ao dizer “prometo não agredi-la”, Eric precisa assumir o enunciado para que não se torne nulo (quando se diz apenas por dizer) ou fadado ao fracasso (não cumprimento da promessa).

Por isso, Eric, ao enunciar a promessa, deverá adotar o comportamento implicado na enunciação. Caso contrário, a promessa será apenas um ato verbal e o performativo não será reconhecido no ato da enunciação. O fracasso do ato performativo revela que as regras do jogo de linguagem podem ser rompidas. Tanto no sucesso quanto no fracasso, os falantes seguem regras, condutas, procedimentos que são constitutivos de sua forma de conduta e realização dos atos de fala.

Austin (1990) verifica que nem sempre os performativos estão explícitos no enunciado e podem se realizar de outras formas. Em muitos enunciados performativos, a primeira pessoa e o tempo presente não estão marcados no enunciado, como em (16a), que traz o pronome “ele” e, em (16b), cujo verbo “advertir” está no passado.

(16) a. Ele adverte sobre a saída de sala. (3ª pessoa) b. Eu adverti sobre a saída de sala. (tempo passado)

UNIDADE 2 | HETEROGENEIDADE SEMÂNTICA

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Além disso, os performativos de proibição, autorização, advertência e outros não estão presentes no enunciado. Verifiquemos a fala de Elisabeth Grimberg, coordenadora da área de Resíduos Sólidos do Instituto Pólis, em entrevista à Folha de São Paulo. Ela não se mostra no enunciado.

(17) A incineração não é uma técnica sustentável. É justamente o contrário: é cara e perigosa (https://polis.org.br/noticias/incineracao-uma-saida-cara-e-perigosa/).

FIGURA 5 – PERFOMATIVO DE PROIBIÇÃO

FONTE: <https://polis.org.br/wp-content/uploads/lixao2.jpg>. Acesso em: 15 jan. 2020.

Embora não seja possível encontrar as marcas do performativo de forma explícita nas palavras relativas ao ato de fala, podemos recuperar nessas mesmas palavras uma correspondência ao performativo implícito. O que está subentendido na fala da coordenadora em (17), é uma advertência materializada em “Eu te advirto que a incineração é cara e perigosa”.

Austin (1990) problematiza os atos de fala e afirma que, quando dizemos algo, realizamos três atos simultaneamente: ato locucionário, ato ilocucionário e ato perlocucionário como descrito no quadro a seguir.

QUADRO 3 – ATOS DE FALA

FONTE: A autora

ATOS DE FALA (AUSTIN)

ATO LOCUCIONÁRIO

Todo conteúdo linguístico, as palavras e as sentenças utilizadas conforme as regras de uma língua. É o que o falante diz.• “Para mim, o mais importante é o estudo".

ATO ILOCUCIONÁRIO

Realiza-se na linguagem e associa-se ao modo de enunciar algo, à força do ato que vai além do linguístico. É o que o falante quer que o seu interlocutor faça.• “Espero que agora você estude de verdade”.

ATO PERLOCUCIONÁRIO

Realiza-se pela linguagem e corresponde aos efeitos de influenciar, persuadir, constranger o outro. É o que o interlocutor faz.• “Estou estudando muito desta vez”.

TÓPICO 1 | SIGNIFICADO E USO

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Como agem os falantes ao realizarem esses atos?

(18) Armandinho

FIGURA 6 – ATOS DE FALA

FONTE: <https://i.pinimg.com/236x/d9/11/d8/d911d8db05345928ac7914fce015eae6--ski.jpg>. Acesso em: 15 jan. 2020.

Na figura 6, os atos performativos se fazem presentes. O ato locucionário está explícito no conteúdo linguístico da tirinha quando Armandinho e Fê assumem os atos de dizer. O ato ilocucionário, embora com o verbo implícito, está presente na fala de Armandinho no terceiro quadrinho quando ele diz “Não se mete, Fê!”. O menino realiza um ato ilocucional que pode ser explicitado pela forma performativa “ordenar”.

Em outras palavras, a fala de Armandinho pode ser traduzida por “Eu ordeno que você fique calada”, que evidencia, pragmaticamente, a visão performativa da linguagem, a forma de Armandinho agir sobre Fê. Semanticamente, seus enunciados produzem efeitos de ameaça por parte de Armandinho contra Fê. Seu discurso marca a ideia de superioridade de gênero que é reforçada na expressão “Isso é papo de homem”, desconsiderando as experiências femininas de Fê sobre o assunto.

Quanto ao ato perlocucionário, resultado dos atos ilocucional e locucional, a produção de sentidos dos enunciados da tirinha depende da enunciação, nesse caso, a persuasão de Fê com relação a ficar calada. Esse ato se realiza pela linguagem e Fê percebe que Armandinho a ameaça com suas palavras. Essa ameaça está evidenciada em seu semblante que passa do sorriso, segundo quadrinho, para a surpresa, terceiro quadrinho, pois Fê desconhece essa atitude de Armandinho. Por isso, a linguagem é ação, é uma forma de agir sobre o interlocutor e o valor do ato de fala só é determinado na enunciação.

Embora Armandinho se valha do ato de fala indireto como forma de minimizar a ordem dada a Fê, sua fala demonstra um ato ameaçador que é reconhecido pela amiga evidenciado em sua expressão. Além disso, a fala de Armandinho comunica uma informação que está além do linguístico ou que emerge do linguístico de forma não expressa e se materializa em uma ordem.

UNIDADE 2 | HETEROGENEIDADE SEMÂNTICA

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Enfim, procuramos nesse subtópico, acerca dos atos de fala e o uso da língua, descrever temas tratados pela Pragmática, enfatizando, em todos os exemplos, que o objetivo dessa disciplina com a Semântica é de preocupação com o uso da linguagem e os sentidos produzidos a partir desse uso em situações reais. Além disso, é relevante sinalizar que esses sentidos são construídos a partir de um interacionismo no qual variam de cultura para cultura, de época para época, de um grupo social para outro.

Desse modo, no Tópico 2, vamos trabalhar com as relações de sentido em situações sociodiscursivas e abordar o texto como unidade linguística na qual os sentidos se atualizam a partir da interação entre o produtor e o leitor/ouvinte.

Para aprofundar os estudos, sugerimos a leitura do seguinte fragmento:

TEORIA DOS ATOS DE FALA

José Luiz Fiorin

[...]

São muitos os exemplos de performativos:

(a) Declaro aberta a sessão.(b) Aceito (Resposta à pergunta: Aceita esta mulher como sua legítima esposa? na cerimônia

de casamento).(c) Prometo que a situação não vai ficar assim.(d) Lamento que isso tenha ocorrido.(e) Eu te perdoo.

É preciso observar mais uma coisa sobre os performativos: para que a ação correspondente a um performativo seja de fato realizada, é preciso não somente que ele seja enunciado, mas também que as circunstâncias de enunciação sejam adequadas. Um performativo pronunciado em circunstâncias inadequadas não é falso, mas nulo, ele fracassou.

Assim, por exemplo, se o irmão da noiva e não o noivo diz aceito, na cerimônia de casamento, o performativo é nulo, porque quem realizou o performativo não é aquele que, nessa circunstância de enunciação, deve realizá-lo. Por isso, Austin vai estudar as condições de felicidade (sucesso) e fracasso dos performativos, ou seja, as circunstâncias de enunciação que fazem com que um performativo seja efetivamente realizado. As principais condições de sucesso de um performativo são:

• A enunciação de certas palavras em determinadas circunstâncias tem, por convenção, um determinado efeito. Portanto, as pessoas e as circunstâncias devem ser aquelas convenientes para a realização do enunciado em questão. Por exemplo, se um faxineiro e não o presidente da Câmara diz: Declaro aberta a sessão, o performativo não se realiza, porque o faxineiro não é a pessoa que pode executar a ação de abrir a sessão; por outro lado, se o presidente declara aberta a sessão sozinho no seu gabinete, o performativo não se realiza, porque não está sendo executado nas circunstâncias apropriadas para sua realização.

DICAS

TÓPICO 1 | SIGNIFICADO E USO

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• A enunciação deve ser executada corretamente pelos participantes. O uso da fórmula incorreta toma nulo o performativo. Assim, no batismo, é preciso usar a fórmula correta, para que o performativo se realize. Se o padre diz Eu te perdoo em lugar de Eu te batizo, o batismo não ocorre.

• A enunciação deve ser realizada integralmente pelos participantes. Assim, quando um performativo exige outro para ser realizado, é necessário que os dois sejam realizados para que haja sucesso. Por exemplo, quando alguém diz Aposto dez reais como vai chover, para que o ato de apostar tenha sucesso, é preciso que o outro aceite a aposta, enunciando a aceitação.

FONTE: FIORIN, J. L. A linguagem em uso. In: Introdução à Linguística. São Paulo: Contexto, 2004.

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RESUMO DO TÓPICO 1Neste tópico, você aprendeu que:

• Os aspectos semânticos e pragmáticos presentes na construção dos significados são complementares para a construção dos sentidos. Embora as abordagens tenham vida própria, no contexto as fronteiras desaparecem para dar lugar a um só jogo de linguagem.

• O significado nos eixos sintagmáticos e paradigmáticos é evidenciado pelas escolhas realizadas que contribuem para a coesão discursiva em um contexto enunciativo, no qual aspectos históricos, sociais, culturais interferem na produção dos sentidos e interpretação.

• O caráter performativo nos atos de fala é evidenciado na enunciação e sua constituição se dá por uma ação que leve à produção de sentidos e os sentidos produzam efeitos sobre o interlocutor.

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AUTOATIVIDADE

1 Para a consolidação da Semântica e da Pragmática, pois a Sintaxe já tinha seu campo delimitado, Morris (1976) identificou três pontos de vista para que pudessem definir os limites para essas disciplinas e orientar, com mais precisão, o estudo da linguagem, a saber:

I- Dimensão sintática, implica o modo como os signos se relacionam e se

combinam segundo regras sintáticas.II- Dimensão semântica, expressa a relação dos signos pelos intérpretes no

uso que cada um faz do signo.III- Dimensão pragmática, designa as relações dos signos com as coisas e com

o que significam.

Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) As sentenças I e III estão corretas.b) ( ) Somente a sentença I está correta.c) ( ) Somente a sentença II está correta.d) ( ) Somente a sentença III está correta.

2 De acordo com Fiorin (2013, p. 52), “falar consiste em encadear sons, enquanto compreender uma sequência fônica implica em segmentá-la em unidades de sentido. [...] Os obstáculos ao entendimento residem no fato de que os sons se juntam sem qualquer separação e, nesse processo, existem quedas de sons [...]” e outros fenômenos que levam o falante a selecionar e combinar elementos na produção de seus enunciados. O que o autor procura definir está relacionado ao paradigma e sintagma, eixos presentes na língua. Sobre o paradigmático, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) As relações são in praesentia.b) ( ) As relações associativas são externas ao enunciado. c) ( ) O locutor combina as palavras para construir o enunciado. d) ( ) As possibilidades de escolhas são reduzidas.

3 Austin (1990) afirmava em sua obra Quando dizer é fazer que o dizer não é apenas a transmissão de informações, mas também uma maneira de agir sobre o outro e sobre o mundo. Levando em consideração essa afirmação, discuta a força enunciativa de “Um dia, eu quero chegar lá. Mas quero chegar linda”, presente na propaganda.

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FONTE: <http://ig-wp-colunistas.s3.amazonaws.com/consumoepropaganda/wp-content/uploads/2011/04/Dupla_Beleza_01-652x429.jpg>. Acesso em: 15 jan. 2020.

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TÓPICO 2

O SENTIDO NAS SITUAÇÕES

COMUNICATIVAS

UNIDADE 2

1 INTRODUÇÃODe acordo com Wittgenstein (1999, p. 43), “[...] o significado de uma

palavra é o seu uso na linguagem”, ou seja, o sentido só é construído nos jogos de linguagem, no emprego da língua em situações sociodiscursivas. Temos discutido ao longo desta unidade o quanto é preciso pensar de outra forma a respeito da linguagem e ultrapassar a ideia de que as condições de verdade de uma sentença são suficientes para a compreensão dos significados. Essa recusa da lógica pela linguagem ordinária, considerada heterogênea, incerta, opaca e subjetiva tem levado muitos linguistas a não perceberem que a linguagem deve ser compreendida como uma forma de interação social na qual os sentidos se atualizam a cada relação intersubjetiva.

Considerando essa breve noção iniciada aqui no Tópico 2, começamos nosso estudo acerca da linguagem, agora no viés da Pragmática ou seria das pragmáticas (RAJAGOPALAN, 2010). Isso se deve à indefinição de suas fronteiras, uma vez que ao se preocupar com os fatos da linguagem vividos pelos usuários e não inventados pelo pesquisador, a Pragmática se vincula a várias áreas (análise do discurso, análise da conversação, sociolinguística, linguística do texto) que possibilitam superar a distância entre a teoria e sua aplicação.

Por isso, nos jogos de linguagem, há uma mudança de foco. A linguagem sai de uma concepção simbólica para uma concepção pragmática na qual as palavras adquirem vida no seu uso, nas práticas, nas construções que possibilitam uma infinidade de sentidos, uma vez que as estruturas não são fixas, mas estão atreladas a situações concretas de fala. Desse modo, o estudo do uso da linguagem é imprescindível, pois, muitas vezes, os sentidos só são interpretados quando analisados na situação sociointerativa. Por exemplo:

UNIDADE 2 | HETEROGENEIDADE SEMÂNTICA

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FONTE: <http://40.media.tumblr.com/bee5ca5cdd01c12a968d1295763d4958/tumblr_nq2016ffJw1u1iysqo1_500.png>. Acesso em: 15 jan. 2020.

FIGURA 7 – JOGO DE LINGUAGEM

(19) Armandinho

Para a compreensão da Figura 7 e da fala de Armandinho, no terceiro quadrinho, é preciso entender a situação comunicativa. É necessário lembrar que a inferência é um processo cognitivo que produz informações novas na interação entre o produtor do conteúdo linguístico e o ouvinte/leitor. Vamos pensar, inicialmente, na situação de produção da cena enunciativa e, depois, na situação propriamente, que se traduz no ato de fala e está relacionada ao discurso, ao uso da língua.

Evidencia-se uma cena entre a “mãe” e o filho. Está muito frio e Armandinho se recusa a sair debaixo do cobertor, cena típica do sul do país, local em que essas tirinhas são produzidas e retratam a região. No primeiro quadrinho, infere-se que a mãe já tenha chamado o filho para fazer algo sem fazer referência à sobremesa. A mãe, no segundo quadrinho, diz a Armandinho que não reprova sua recusa em ir até ela, “Tudo bem”. No entanto, uma outra ação, que não era esperada por Armandinho e que se traduz em “Eu como a sobremesa”, enunciada pela mãe, muda a cena toda.

Essa mudança na cena enunciativa não se realiza na significação das palavras da mãe de Armandinho ou apenas no conteúdo semântico como na abordagem referencial. Essa mudança na fala de Armandinho, que se reflete na ação de levantar e ir até a mãe, é construída pragmaticamente, ou seja, pelos efeitos de sentido produzidos na participação ativa do filho no diálogo com a mãe. Essa relação propicia a “felicidade” ou o sucesso da comunicação entre eles, apontando para o significado como a soma dos aspectos semânticos e pragmáticos.

Por esse exemplo, podemos compreender que o sentido emerge nas situações comunicativas não apenas do significado das palavras, mas também do sentido das palavras produzido discursivamente pelos usuários em um determinado contexto. No Tópico 2, abordaremos as relações de sentido nos níveis lexical, frasal e discursivo e o texto como uma unidade de sentido.

TÓPICO 2 | O SENTIDO NAS SITUAÇÕES COMUNICATIVAS

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2 RELAÇÕES DE SENTIDO Na Figura 7, foi possível evidenciar que os falantes, Armandinho e a

mãe, não escolheram previamente as palavras que iriam usar para produzir determinados sentidos. As palavras não estão com seus sentidos prontos e acabados para serem utilizados em determinada interação entre os usuários. Os sentidos das escolhas lexicais e sintáticas dos enunciados emergem do momento de fala, sem nada acertado previamente e sujeitos a todos os desdobramentos da situação de comunicação.

A compreensão de Armandinho sobre a fala da mãe “Eu como a sua sobremesa” vem dos atos performativos. Como se aplicam esses atos na tirinha e na sua compreensão? Como se produzem os sentidos? Vamos tomar o segundo quadrinho e evidenciar que em “Eu como a sua sobremesa” há um ato locucional. A mãe seleciona no eixo paradigmático os elementos e os combina no eixo sintagmático para compor a frase. Quando ela enuncia essa frase para Armandinho, realiza-se o ato ilocucional que traz implícito a “promessa” de “Eu prometo que como a sua sobremesa”. E, por fim, ao compreender os sentidos pretendidos pela mãe em suas palavras cujos efeitos de sentido apontam para uma “ameaça” de comer sua sobremesa, prontamente, Armandinho se levanta e diz “estou indo”.

Ao jogarem o mesmo jogo de linguagem, mãe e filho compartilham os sentidos desta situação sociointerativa. Linguagem, portanto, é ação, é agir sobre o outro, é uma força ilocutória. É dessa força ilocutória que a mãe se utiliza para criar uma estratégia linguística ao enunciar sem a força do verbo performativo “eu prometo”. Como define Austin (1990), não há necessidade de que os performativos estejam presentes na sentença para criar efeitos de sentido de proibição, autorização, promessa e ameaça. Os sentidos desses elementos linguísticos se fazem presentes na enunciação, no ato de falar, no uso da linguagem, na cultura de um grupo e em uma sociedade. Vamos conferir em (20) o uso de três verbos performativos – declaro, absolvo, aplico – presentes na sentença de um juiz na cidade de Barretos, em São Paulo.

(20) Notícia

"Declaro o réu Ricardo Santos Lobo Viana, qualificado nos autos, absolutamente inimputável nos termos do Art. 26, caput, do Código Penal, absolvo-o sumariamente nos termos do Art. 415, Inc. IV, do Código de Processo Penal, das imputações que lhe são irrogadas na denúncia e, por consequência, aplico-lhe a medida de segurança de internação por prazo indeterminado em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico", expediu a Justiça (http://twixar.me/DpfT).

Vale aqui retomar que a enunciação é a atividade social e interativa na qual os enunciados são colocados em funcionamento por aquele que enuncia, tendo em vista o seu interlocutor e onde se produzem as relações de sentido. A enunciação traz consigo a concepção de “sujeito” que se constitui como tal na exata medida

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em que se apresenta na e pela linguagem (BENVENISTE, 1995). De acordo com Fiorin (2004, p. 167), a enunciação é “[...] o ato de produzir enunciados, que são as realizações linguísticas concretas”. Nessa realização, a significação de uma frase, o tempo e espaço linguísticos constroem sentidos, pois:

A significação é o produto das indicações Linguísticas dos elementos componentes da frase. Assim, a significação de Está chovendo é Tomba água do céu. O sentido, no entanto, é a significação da frase acrescida das indicações contextuais e situacionais. Num contexto em que se comenta o problema do racionamento de energia derivado do esvaziamento das represas das hidrelétricas, Está chovendo pode significar Agora o racionamento vai acabar (FIORIN, 2004, p. 168-169, grifo do autor).

O sentido é o uso e se atualiza quando as palavras, frases, são empregadas em variados contextos, permitindo compreender o mundo e transformar os sujeitos. Usar a linguagem não é tomar um roteiro e segui-lo na busca dos sentidos perdidos em uma interação. Usar a linguagem é compreender que os sentidos poderiam ser outros e que as experiências pessoais dos sujeitos contribuem para reafirmar ou transgredir sentidos.

Quando tomamos a linguagem em uso, estamos analisando o nível linguístico – fonológico, morfológico, sintático etc. – e reforçando que não há um nível mais relevante que o outro, mas que todos contribuem para a produção de sentidos. O que queremos demonstrar é que um enunciado pode ser examinado sob o ponto de vista lexical ou frasal e ainda teremos uma concepção sociointerativa na qual a língua é uma prática social, atravessada pelos seus aspectos históricos, culturais e discursivos.

Desse modo, os sentidos não podem ser considerados como produto da linguagem. Os sentidos são fluidos, líquidos e heterogêneos e não se constituem em concepções fechadas, conforme divulgavam os lógicos. Sua produção, em vista dessas características, depende das condições em que os sentidos são produzidos, tempo e espaço em que circulam e as relações entre interlocutores. A partir dessa introdução às relações de sentido, vamos explorar nos próximos subtópicos as enunciações e alguns de seus níveis linguísticos.

Então, como evidenciar esses níveis linguísticos? Como o produtor constrói sentidos na relação entre enunciados? Como a organização dos enunciados pode ser responsável pela produção de sentidos no discurso?

TÓPICO 2 | O SENTIDO NAS SITUAÇÕES COMUNICATIVAS

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Vamos a mais um desafio!

Antes de iniciarmos nossa discussão acerca dos níveis linguísticos, vamos construir nossas observações acerca do sentido literal das palavras que utilizamos ou lemos em diversos textos presentes em jornais, revistas, mídia.

Sua tarefa é recolher alguns enunciados que tragam, em sua materialidade, palavras cujos sentidos mudam de acordo com o contexto em que são utilizadas e, a partir desses exemplos, discuta:

• O sentido não está no texto.• O sentido depende da enunciação.

IMPORTANTE

2.1 NÍVEL LEXICAL

Na Unidade 1, Tópico 1 (Percurso histórico), abordamos o signo linguístico e enfatizamos que as palavras não representam as coisas, ou seja, o nome não está colado ao objeto. Em uma concepção moderna da linguagem, inaugurada no século XX, com Ferdinand de Saussure, os sentidos não estão atrelados a uma concepção de verdade e nem esta seria a condição para a definição do sentido.

Ao tratarmos do nível lexical na produção de sentidos, nossa preocupação não está no aporte teórico da Semântica Lexical em sua abordagem clássica que trata da sinonímia, antonímia, acarretamento e pressuposição na relação semântico-lexical e sintática, pois esses conceitos já foram abordados na Unidade 1. Nosso interesse está nas palavras e nos sentidos produzidos no seu uso e, também, no sentido literal das palavras que não é único. Os sentidos são produzidos no momento da enunciação, na intersubjetividade e vão além da estabilidade literal dos dicionários e dos sentidos que o leitor deseja.

Nos anos 1980, divulgaram-se várias teses acerca da produção dos sentidos e a mais difundida é a de que o leitor é o único a produzir significados no enunciado. Possenti (2009) e Oliveira (2017) desconstroem essas teses uma vez que o sentido literal não deve ser confundido com sentido exato e preciso. O sentido é construído historicamente, discursivamente, culturalmente, socialmente, enfim, o sentido literal não pode ser confundido com original, antigo, sempre o mesmo.

UNIDADE 2 | HETEROGENEIDADE SEMÂNTICA

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Sírio Possenti, professor, pesquisador e escritor, desenvolve seus trabalhos no Departamento de Linguística da UNICAMP. Seus interesses estão voltados para a análise dos preconceitos linguísticos em textos humorísticos e para a questão da subjetividade. Atualmente, tem um blog na Editora Contexto onde publica a maioria de seus estudos. Quer saber mais? Acesse: https://www.parabolablog.com.br/index.php/blogs/blogger/sirio-possenti.

FIGURA - SÍRIO POSSENTI

FONTE: <https://www.rumo.com.br/lojas/00034487/images/Autores/sirio-possenti.jpg>. Acesso em: 16 jan. 2020.

NOTA

A língua é utilizada para marcar as posições discursivas de quem enuncia e a construção de realidades. Por isso, as palavras se constituem em veículos para marcar essas posições do sujeito. Percebemos o lugar de onde alguém fala pelas escolhas lexicais realizadas. Veja estes enunciados:

(21) Bêbado e embriagado (adaptado) a. Casal embriagado se envolve em confusão no Sion (JORNAL ESTADO

DE MINAS. Disponível em: http://twixar.me/46x1. Acesso em: 7 out. 2019). b. Casal bêbado se envolve em briga em Minas (CORREIO BRASILIENSE.

Disponível em: http://twixar.me/96x1. Acesso em: 7 out. 2019).

Geralmente, usamos as palavras bêbado e embriagado como sinônimas e parece que os jornais também procederam da mesma maneira. Será que os enunciados evidenciam os mesmos sentidos? Será que as palavras bêbado e embriagado podem ser utilizadas indiscriminadamente em qualquer enunciado? Vamos observar que os dois jornais publicaram a mesma notícia, mas se utilizaram de um léxico distinto. Além dessas duas palavras, os jornais, em seus enunciados, ainda associaram as palavras confusão e briga.

É preciso ressaltar que essas palavras são sinônimas, mas não são perfeitas, pois não encaminham para os mesmos sentidos. Em (21a), o jornal utiliza uma linguagem mais formal, “embriagado”, expressão também presente em textos

TÓPICO 2 | O SENTIDO NAS SITUAÇÕES COMUNICATIVAS

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jurídicos. Já, em (21b), o uso de “bêbado” é mais informal e utilizado com o sentido de viciado, de alguém que usa a bebida com frequência. Além dessas expressões, os jornais se utilizam de “confusão” e “briga”. Na expressão “confusão” em (21a) está implícita a ideia de briga, mas em “briga”, palavra utilizada em (21b) não é possível recuperar “confusão”, uma vez que os sentidos apontam para conflitos, embates entre pessoas.

Desse modo, é possível recuperar nos dois enunciados jornalísticos que os sentidos são construídos na enunciação, ato individual irrepetível. Como afirma Possenti (2009, p. 192), “as palavras vêm de discursos prévios e são retomadas enquanto tais, trazendo consigo ecos de enunciações anteriores.” Os sentidos literais são produzidos pelo uso, são efeito do discurso. Nos enunciados analisados, evidencia-se que, embora os sentidos não sejam os mesmos, há uma correspondência semântica entre eles, ou seja, é possível recuperar a mesma ideia: embriaguez e briga.

A seleção lexical não é uma tarefa para ser decidida em uma interação

face a face de forma unilateral. A compreensão de uma conversa, por exemplo, é uma atividade em que os interlocutores compartilham sentidos. Por isso, os sentidos não são “desempacotados” pelo interlocutor ao serem enviados pelo falante que orienta os sentidos para que o ouvinte siga as “instruções” e construa os sentidos, como podemos observar na tirinha (22) de Armandinho em que os sentidos não estão no texto, mas na enunciação. Como se dá a construção interativa dos sentidos?

(22) Armandinho

FIGURA 8 – PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DAS PALAVRAS

FONTE: <https://i.pinimg.com/236x/78/ea/6d/78ea6d23299f3f7b0d61fcb3bff7c353--cartoons-rotary.jpg>. Acesso em: 16 jan. 2020.

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Tanto na escrita quanto na fala, o processo de construção dos sentidos das palavras se dá na interação entre os interlocutores. Na fala de Armandinho e do professor, evidencia-se que a língua não é transparente e os sentidos não são depreendidos apenas do sistema linguístico. Os sentidos são construídos quando os interlocutores participam das mesmas experiências não pelo fato de utilizarem a mesma língua ou transmitirem uma informação, mas pelo fato de a enunciação produzir efeitos, uma vez que, muitas vezes, os recursos linguísticos podem ser insuficientes para a intepretação semântica.

Isso quer dizer que os enunciados podem ser parafraseados e traduzidos em outras palavras, em outros enunciados que permitem um conjunto de paráfrases. Urge lembrar que a sinonímia se caracteriza semanticamente entre palavras e a paráfrase, entre enunciados. Já estudamos esses conceitos com um viés formal na Unidade 1, Tópico 1 (Tipologia das relações de significado). Vamos então, abordar os sentidos no nível frasal tomando a Semântica Frásica como norte para a compreensão dos sentidos que vão além das relações entre palavras.

2.2 NÍVEL FRASAL

Quando vamos conversar ou escrever, o primeiro passo é selecionar as palavras no nível paradigmático. Por exemplo, se queremos dizer a alguém o quanto é bonito, podemos escolher entre belo, formoso, lindo que são palavras que temos armazenadas em nossa memória. Depois, precisamos combinar, no nível sintagmático, uma dessas palavras com outras para constituir um enunciado como, “você está muito linda” ou “você é muito bela”. Cada língua tem suas regras e, de acordo com a maneira como organizamos nossos enunciados, construímos sentidos diferentes, uma vez que, semanticamente, linda e bela não produzem os mesmos efeitos de sentido.

Assim, o estudo semântico sempre esteve atrelado ao lexical e, somente a partir dos anos 1960, do século XX, as unidades maiores de significação como a frase, o enunciado, foram sendo objeto de análise. Por isso, o princípio fundador da Semântica Frásica é evidenciar que o significado de uma palavra passa a ser compreendido pela relação entre enunciados.

É importante ressaltar dois conceitos essenciais para a produção de sentido: a frase e o enunciado. Semanticamente, a frase, entidade linguística teórica, tem significação. O enunciado, entidade empírica, tem sentido. O enunciado se constitui pela realização da frase e ambos são inseparáveis, assim como a significação e o sentido. O sentido é produzido pelo linguístico, selecionado pelo locutor no eixo paradigmático e combinado no eixo sintagmático, a sentença, para produzir sentidos discursivamente que vão orientar o interlocutor.

Ao estabelecermos as relações semânticas entre as palavras, frases e discursos, a partir dos encadeamentos discursivos, teremos os sentidos de uma expressão. Por encadeamento discursivo, entende-se uma relação conclusiva

TÓPICO 2 | O SENTIDO NAS SITUAÇÕES COMUNICATIVAS

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entre dois enunciados a fim de torná-lo um texto. Então, o sentido é constituído por uma sequência de dois enunciados ou mais, ligados por um conectivo em que cada encadeamento é constituído por um bloco semântico. Por exemplo, vejamos como os jornalistas construíram seus enunciados para publicação acerca das manifestações em Hong Kong:

(23) Hong Kong a. Polícia de Hong Kong prende manifestantes com máscaras em protestos.

Reação veio após aplicação de lei que proíbe ativistas de cobrirem o rosto em protestos (FOLHA UOL. Disponível em: http://twixar.me/mhx1. Acesso em: 5 out. 2019).

b. Mascarados desafiam proibição nas ruas de Hong Kong. A polícia de Hong Kong lançou hoje gás lacrimogêneo para dispersar manifestantes que desafiaram a proibição de protestar com máscara (JN DIRETO. Disponível em: http://twixar.me/Ghx1. Acesso em: 5 out. 2019).

O enunciado, em (23a), inicia-se com a informação de que os manifestantes são presos e, em (23b), a informação refere-se a manifestantes desafiadores. Embora a palavra “manifestantes”, em (23b), não esteja presente no enunciado inicial, é possível resgatar pelo segundo enunciado, ou seja, pelo encadeamento discursivo. A escolha das palavras “manifestantes” e “ativistas”, em (23a), e “mascarados” e “manifestantes”, em (23b), pelo locutor produz sentidos e orienta o discurso do interlocutor. A referência a “ativistas” constrói efeitos distintos de “mascarados”.

O jornalista, em (23a), atribui aos manifestantes o sentido de “ativista”, pessoa que é militante em uma atividade política exaltada e, em (23b), o jornalista recupera sentidos de “máscaras” e faz uma alusão aos “mascarados”, deixando de considerar o sentido literal de fingido, hipócrita. A argumentação do enunciado (23a) conduz o interlocutor a sentidos com efeitos negativos e que, em (23b), não se fazem presentes. O enunciado, em (23a), demonstra o posicionamento mais exacerbado do jornalista e que podemos entender como:

(23a) ativistas, portanto, presos. (23b) mascarados, portanto, dispersados.

Desse modo, a escolha lexical, o encadeamento do léxico na frase e a compreensão dos sentidos produzidos no enunciado evidenciam o posicionamento do locutor e a aprovação de um ponto de vista que, embora não saibamos se o jornalista se identifica com o discurso, ele o admite ao enunciá-lo. Vejamos outros enunciados:

(24) Brumadinho a. Impacto ambiental da tragédia de Brumadinho ‘será sentido por anos’, diz

WWF (REVISTA ISTO É ON-LINE. Disponível em: http://twixar.me/brQ1. Acesso em: 29 jan. 2019).

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b. Especialista da WWF-Brasil fala do impacto ambiental com a tragédia em Brumadinho (RÁDIOS EBC. Disponível em: http://twixar.me/9rQ1. Acesso em: 3 fev. 2019).

c. Entenda quais são os impactos ambientais do rompimento da barragem em Brumadinho (UFMG. Disponível em: http://twixar.me/zrQ1. Acesso em: 14 fev. 2019).

Os enunciados que constituem o exemplo (24) foram extraídos de três instituições, sendo uma jornalística (ISTO É), uma de rádio (EBC) e uma de ensino (UFMG). Os enunciados foram veiculados durante o mês de janeiro e fevereiro de 2019, período que sucedeu o rompimento da barragem de Brumadinho em Minas Gerais. É possível evidenciar pelas escolhas lexicais que os três enunciados abordam o mesmo tema: a barragem de Brumadinho, ou seja, são equivalentes semanticamente.

No entanto, é possível evidenciar que “[...] o sentido que uma palavra assume em seu uso não é simplesmente dado por significações lexicais válidas fora do contexto. O sentido da palavra é muito mais produzido pelos usuários da língua dentro do contexto” (DEPPERMANN, 2006, p. 13 apud HILGERT, 2012, p. 79-80). Em outras palavras, os sentidos não estão vinculados à língua nem são um acervo “tatuado” na mente dos falantes de uma língua. Os sentidos das palavras são construídos em função de cada enunciação e, no caso dos jornais, muitas vezes, há um apelo ao sensacionalismo.

Nessas situações de comunicação, as exigências são noticiar o “impacto ambiental” provocado pelo rompimento da barragem e três palavras protagonizam este tema: impacto, rompimento e especialistas. Os títulos (24a) e (24b) abordam “impacto ambiental”, utilizando um marcador singular, ou seja, os enunciados evidenciam que houve apenas “aquele” impacto que, talvez, para o leitor, seja mais compreensivo. Outro ponto a ser destacado são as implicações semânticas e pragmáticas com relação à palavra “impacto” que demonstra em seu uso, nos enunciados, efeitos de repercussões, consequências e efeitos, ressaltando marcas de manipulação linguística que vão interferir nos julgamentos dos leitores, distanciando-se do caráter informativo e impessoal do jornalismo.

Já, em (24c), por ser uma instituição em que a pesquisa, com a extensão e o ensino, é um dos pilares da universidade, a expressão “impactos ambientais” aponta, semanticamente, atrelado à expressão “entenda”, para estudos, experts que se distanciam da área jornalística e fazem emergir um discurso de autoridade. Diferente das notícias, a Universidade não se utiliza de marcas de subjetividade que, no caso dos veículos de comunicação, trazem a voz dos especialistas de outra instituição.

Outra expressão de (24c) que provoca, no leitor, o distanciamento da notícia jornalística é “rompimento da barragem em Brumadinho”. Em termos semânticos, “rompimento” evoca rachadura, fenda, divisão, que foi o que

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ocorreu na barragem. A Universidade procura se abster de juízos de valor com relação ao acidente e limita-se apenas aos fatos. A expressão “Entenda” evidencia que já foram realizados estudos e que a instituição tem autoridade e competência para elencar fatos que vão levar os interessados a entender os danos causados pelo rompimento.

Em (24a), “impacto ambiental” é o tópico do título, enquanto, em (24b), o tópico é “especialistas”. Nos dois primeiros títulos, o leitor, se não tiver conhecimento de mundo acerca das instituições que defendem a questão do “impacto ambiental”, não compreenderá quem são “WWF” e “WWF-Brasil”. Em (24c), essas expressões não aparecem, pois o foco está nos “impactos” e na objetividade do estudo. Em (24a), é possível estabelecer relação entre “impacto” e “por anos” reafirmando que os efeitos serão sentidos por muito tempo.

Assim, os sentidos dos três enunciados são atualizados em um movimento pendular no qual o sentido se constitui na enunciação sempre única e singular, renovando-se e se reconfigurando a cada atualização. Foi possível perceber que os enunciados se constituem em paráfrases pragmáticas, pois se baseiam nas intenções do produtor do enunciado, ou seja, cada jornalista, ao produzir os enunciados, quis imprimir sua “marca” ao enunciado e provocar determinados efeitos de sentido no leitor do periódico.

A paráfrase, isso pôde ser apontado nesses enunciados, toma como base a semelhança de significação lexical ou de construções gramaticais, mas elas nunca são completas, uma vez que não há uma identidade absoluta de sentidos. Margotti (2003, p. 31, grifos do autor) acrescenta:

Como fenômeno situacional, a paráfrase fundamenta-se na semelhança de sentido que advém do uso. Deste modo, as frases Que belo dia! e O sol está brilhando são a paráfrases não porque as palavras significam a mesma coisa (sinonímia lexical) ou porque as construções sintáticas são semelhantes (sinonímia estrutural), mas porque, em certas circunstâncias, traduzem a mesma intenção e visam obter o mesmo resultado.

De acordo com Hilgert (2012, p. 81), “sentidos, por uso reiterado nas interações, sedimentam-se em novas significações, imprimindo à língua mudança, transformação, dinamismo e vida”, por isso, toda significação emana da produção de sentidos. No caso dos enunciados analisados em (24), é possível evidenciar que, a cada enunciação, os sentidos foram renovados, pois a situação comunicativa nunca é a mesma.

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Para ampliar a compreensão de paráfrases, indicamos a leitura de “Parafrasear: por quê? Para quê?”.

FONTE: FLÔRES, O. C. Parafrasear: por quê? Para quê? Letrônica, Porto Alegre, v. 9, n. 2, p. 253-263, jul.-dez. 2016. Disponível em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/letronica/article/view/23314/15316. Acesso em: 21 jan. 2020.

IMPORTANTE

Observemos que, como no exemplo (24), o nível lexical é o fator responsável pela produção de sentidos, compreendido no contexto frasal e discursivo. Por isso, a compreensão linguística em (23) e (24) amplia os efeitos de sentido e reformula, a partir do uso, a língua. No próximo subtópico, vamos abordar o nível discursivo.

2.3 NÍVEL DISCURSIVO

Abordamos os efeitos de sentido no nível lexical e frasal. Ambos encaminhavam os sentidos a partir das palavras e destas com o enunciado. Agora, vamos tomar o nível discursivo na produção dos sentidos e perceber que não há um sentido único que permitiria a compreensão entre todos os outros sentidos. O que temos é a opacidade dos sentidos e, por isso, texto e discurso precisam ser compreendidos como instâncias distintas.

OPACIDADE DA LINGUAGEM

Com Base em Orlandi (2003), a opacidade da linguagem é a não transparência dos sentidos. O que é dito ou enunciado não produz os exatos efeitos de sentido desejados, e sim produz sentidos outros que precisam ser compreendidos, analisados. Por isso, a linguagem é opaca. Não emerge, de imediato, toda a carga de sentido que ela comporta.

FONTE: ORLANDI, E. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 5. ed. Campinas: Pontes, 2003.

NOTA

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O texto é a materialidade do discurso e é pelas escolhas de modos diferentes de enunciar, relacionando palavras e frases, que o produtor constrói os seus sentidos em consonância com outros sentidos. São os valores argumentativos presentes nas escolhas linguísticas que irão orientar os sentidos e a descrição semântica. Por exemplo, se enunciamos Maria é estudiosa, os efeitos produzidos são de que Maria é uma boa aluna. Esse valor não permite que digamos que Maria não é boa aluna.

Ducrot (1972), na condição de semanticista, afirma que a ordem em que os enunciados aparecem no discurso orientam esse sentido e assumem determinado valor semântico. É preciso considerar o movimento discursivo, no qual não há uma linearidade nos enunciados. Um segundo enunciado pode impor sentidos diferentes ao primeiro e o discurso passa a ser outro. Vejamos esta notícia sobre Abiy Ahmed Ali, o primeiro-ministro da Etiópia, ganhador do prêmio Nobel da Paz em 2019.

(25) Abiy Ahmed – Nobel da Paz Ele [Abiy Ahmed] libertou milhares de ativistas da oposição da prisão e

permitiu que dissidentes exilados voltassem para casa. Mais importante ainda, ele assinou o acordo de paz com a Eritreia. No entanto, suas reformas também reforçaram as tensões étnicas da Etiópia e a violência resultante forçou cerca de 2,5 milhões de pessoas a abandonarem suas casas (G1. Disponível em: http://twixar.me/XC61. Acesso em: 11 out. 2019).

A notícia acerca das ações do primeiro-ministro da Etiópia, Abiy Ahmed, que o levaram a ganhar o Nobel da Paz, exemplifica a tese defendida por Ducrot (1972), de que os sentidos são produzidos na enunciação, ou seja, dependendo dos enunciados e da maneira como são organizados, produzem efeitos distintos. Para que o leitor da notícia apreenda esses sentidos, é preciso que ele mobilize regras pragmáticas, ou seja, o leitor precisa buscar recursos (linguísticos, conhecimentos) que propiciem a compreensão do enunciado e o discurso que o atravessa.

Ao analisarmos a notícia, vamos empreender uma trajetória discursiva na qual teremos um discurso de enaltecimento da figura do primeiro-ministro, uma vez que “libertou milhares de ativistas”, “permitiu que dissidentes exilados voltassem para casa” e “assinou o acordo de paz”. São três ações: libertar, permitir e assinar que, de acordo com Ducrot (1972), estão marcadas linguisticamente e permitem o movimento argumentativo de convencer o interlocutor das ações de Abiy Ahmed e, portanto, de seu merecimento ao prêmio.

Há elementos em (25) que representam o contra-argumento e invertem a direção argumentativa que vinha sendo seguida. A expressão “No entanto”, que faz o encadeamento com os outros enunciados, desconstrói a argumentação que vinha sendo realizada. A notícia toma outro rumo e o leitor precisa buscar elementos para sua compreensão. O uso de “também” traz a ideia de que àquelas

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ações outras se somam, mas os valores dessas são diferentes. O uso de “reforçar” e “forçar” evidenciam um conflito na identidade de um primeiro-ministro da “paz”. Os efeitos dessas duas ações, tensão étnica e violência contra as pessoas, reafirmam que a paz e a democracia ainda estão longe da Etiópia.

Assim, os sentidos desses elementos linguísticos se produzem no discurso que aponta para uma dualidade bom/mau, correto/incorreto, democrata/antidemocrata. Ou seja, o discurso se constitui pelo trabalho realizado com e sobre os recursos linguísticos como no conector “no entanto”. “No entanto” se constitui como transgressivo no discurso, uma vez que sua compreensão se dá apenas no encadeamento entre enunciados, demonstrando a posição do jornal. Assim, é preciso considerar que:

[...] o que se pode chamar de discurso não é nem complemento da língua, nem resulta do simples uso da língua. [...] embora sempre haja um ‘suporte’ linguístico para um discurso, nem sempre o mesmo recurso da língua ‘expressa’ o mesmo discurso, ou seja, aceita a mesma interpretação (POSSENTI, 2009, p. 16).

Qual a relação entre o nível léxico-frasal e o nível discursivo? É preciso entender que o discurso se materializa no texto e, para isso, precisamos selecionar palavras e com elas construir estruturas sintáticas que evidenciem os efeitos de sentido pretendidos pelo produtor. Em “Doce que custa uma infância” (CENDHEC, 2018. Disponível em: http://twixar.me/Lm61. Acesso em: 21 jan. 2020) e “Criança não deve trabalhar. Infância é para sonhar” (FNPETI, 2019. Disponível em: http://twixar.me/Zm61. Acesso em: 21 jan. 2020), evidencia-se um discurso de reflexão acerca do trabalho infantil e do direito que as crianças têm de brincar nessa fase de suas vidas. Esse discurso é o mesmo nas duas campanhas, apenas a seleção lexical é diferente. As expressões “doce”, “infância”, “criança” e “sonhar” pertencem ao mesmo campo semântico de que lugar de criança é na escola e não no trabalho sendo explorada.

O posicionamento dos órgãos responsáveis pelas campanhas carrega o mesmo sentido, mas não se materializam na língua da mesma forma, ou seja, não há uma relação biunívoca entre gramática e discurso como podemos observar nessas duas campanhas. Qual o sentido disso na compreensão de um texto e na apreensão do discurso? O discurso é trabalho e constituído com e sobre a linguagem que produz certos efeitos a partir da enunciação. Geralmente, não temos determinada intenção e, mesmo assim, os efeitos se produzem.

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Recomendamos essas leituras sobre discurso:

POSSENTI, S. Os limites do discurso: ensaios sobre discurso e sujeito. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.

POSSENTI, S. A pragmática na análise do discurso. In: Cadernos de Estudos Linguísticos, 30. Campinas, IEL-UNICAMP, 1996, p. 71-84.

DICAS

Vamos considerar os textos a seguir para compreender como o nível discursivo é responsável, também, pela produção de sentidos.

(26) Carnaval a. Cartaz ONU

FONTE: <http://twixar.me/y361>. Acesso em: 8 out. 2019.

UNIDADE 2 | HETEROGENEIDADE SEMÂNTICA

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b. Cartaz Skol

FONTE: <http://twixar.me/5361>. Acesso em: 8 out. 2019.

Esses dois cartazes fazem parte de uma campanha produzida para o carnaval de 2015. A campanha da ONU Mulheres Brasil (26a) foi lançada em vista de uma campanha publicitária da Skol que tomou as redes sociais com severas críticas e trazia em seu texto o seguinte enunciado: “Esqueci o ‘não’ em casa” e "Topo antes de saber a pergunta" (<http://twixar.me/MK61>). O discurso dessa campanha da Skol vinha na contramão de um discurso de que mulher tem voz e quando ela diz “não” é “não”.

Para se redimir dessa campanha, cujos sentidos não foram os esperados, a Skol lançou outro material baseado na campanha da ONU Mulheres Brasil. Ao analisarmos a campanha da ONU, é possível perceber que o texto revela um discurso quando seleciona palavras como “paquerada”, “agressiva”, “constrangida” e as organiza sintaticamente no texto. O modo como a campanha da ONU apresenta o texto não implica uma verdade ou uma realidade, mas o modo de o produtor fazer ver suas ações em relação ao seu posicionamento discursivo quanto ao respeito às mulheres e ao dar voz a elas.

Em (26b), temos a propaganda da Skol que, mesmo sendo produzida com outra seleção lexical, evidencia-se o mesmo discurso de respeito às mulheres. A noção de paráfrase parece operar nesse cartaz como uma atividade de reformulação do discurso de (26a), variando os sujeitos e a situação em que é produzida. Outro ponto a ser ressaltado é o fato de que a linguagem em (26b) oferece evidências de que as palavras não refletem a realidade, mas a refratam, ou seja, a expressão “não deu jogo” permite compreender que, se a mulher disser não, deve ser respeitada sua opinião.

É possível verificar que, embora o discurso de respeito às mulheres no carnaval esteja presente em ambos os cartazes, o direcionamento é diferente. Enquanto em (26a) a seleção lexical é direcionada às mulheres, pois as formas verbais “foi”, “sentiu-se”, “perca”, “denuncie” e “ligue” expressam em forma ativa a relação entre o produtor do texto e seu interlocutor, as mulheres; em (26b)

TÓPICO 2 | O SENTIDO NAS SITUAÇÕES COMUNICATIVAS

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o direcionamento é para os homens nos termos “tire o seu time”, ou seja, homens, deixem de constranger as mulheres, e “respeite” que traz implícita a ação dos homens de respeitarem as mulheres.

Nos textos em análise, vamos pensar, então, qual a relação entre as formas lexicais e a discursividade? A partir de uma seleção sistemática configurada em uma estrutura sintática como observamos em (26a) e (26b), materializa-se o discurso conforme a situação em que é abordado, nesse caso, o respeito pelas mulheres no carnaval. O discurso acerca do respeito é veiculado nos cartazes pela seleção lexical que o produtor dos cartazes realiza. Como já enfatizamos anteriormente, a partir dessas escolhas foi possível evidenciar para quem era dirigido cada um dos textos.

Assim, o nível discursivo apontado nos cartazes poderia ser materializado por uma seleção e combinação lexical diferentes. O que importa destacar são os efeitos de sentido que estão associados à enunciação dos enunciados. Como argumenta Fiorin (2002, p. 31):

[...] o sentido de um texto não é redutível à soma dos sentidos das palavras que o compõem nem dos enunciados em que os vocábulos se encadeiam, mas que decorre de uma articulação dos elementos que o formam: que existem uma sintaxe e uma semântica do discurso.

Essa semântica do discurso é uma manifestação gerativa de sentidos, na qual as formas abstratas se revestem de elementos concretos. Por isso, não podemos confundir texto com discurso e, no próximo subtópico, essa discussão tomará corpo para que possamos utilizar esses conceitos com mais propriedade, ampliando nossos olhares e nossas práticas.

3 TEXTO: UNIDADE DE SENTIDONossa discussão, neste Tópico 2, tem girado em torno dos efeitos de

sentido entre os interlocutores mediados pelo uso da língua e resultantes da enunciação. Muitos pesquisadores têm se debruçado no estudo da categoria texto e se defrontado com a dificuldade de sua definição quando a reflexão deixa de lado o texto empírico, em sua materialidade, e toma o texto como um espaço discursivo heterogêneo, compreendido como reunião de diferentes textos, discursos e subjetividades.

Dependendo da concepção teórica e o viés adotado, Linguística Textual, Teoria da Enunciação, Teoria Argumentativa, Semiótica e Análise do Discurso, o texto poderá ser compreendido de forma diferente. Portanto, antes de falarmos em texto como uma unidade de sentido, vamos, inicialmente, situar nosso posicionamento. O texto será compreendido a partir das noções de blocos semânticos e polifonia como pressupostos para a construção dos sentidos, tomando como norte a perspectiva teórica de Ducrot (1972).

UNIDADE 2 | HETEROGENEIDADE SEMÂNTICA

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Ducrot (1972) aponta três aspectos com relação ao texto. O primeiro, a polifonia, compreendida como os enunciadores (as vozes) presentes no texto. Segundo, a argumentação definida pelos enunciadores e, terceiro, o discurso visto como um bloco de sentidos onde se manifestam os enunciadores, materializado na relação semântica entre os enunciados. Vamos retomar algumas noções já visitadas nesta unidade.

Sobre polifonia em Ducrot

A polifonia é construída na apresentação das várias funções do sujeito pelo autor. Sujeito empírico – não é objeto da linguística.Locutor – responsável pela reunião dos enunciados, das vozes.Enunciadores – origens dos pontos de vista presentes no texto. Para um aprofundamento deste conceito leia o artigo: A polifonia linguística.

FONTE: CAREL, M. A polifonia linguística. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 46, n. 1, p. 27-36, jan./mar. 2011.

NOTA

Ao abordamos o nível discursivo, compreendemos que o discurso não é:

• A fala de alguém como, “O formando fez um belo discurso”.• Uma fala imprudente como, “Não acredito! Isso é só discurso”. • A abreviação de textos como, discurso educacional, discurso polêmico. • A vinculação a ideologias, crenças, elementos extralinguísticos.

Pensar em discurso é tomar uma sucessão de enunciados que são encadeados a partir de blocos de sentido e remetem às argumentações, aos pontos de vista dos enunciadores apresentados pelo autor/locutor. Esses pontos de vista são assumidos ou refutados, construindo, então, os sentidos do texto. Vamos retomar o exemplo (25) e observar que os enunciados passam a ter significação na língua e sentido no âmbito discursivo, ou seja, o texto como um bloco semântico realiza-se na argumentação.

O encadeamento semântico pode ser observado em (25) Abiy Ahmed – Nobel da Paz, na palavra “também”, presente na materialidade do texto, que significa inclusão, adição de mais argumentos; discursivamente, “também” marca o posicionamento do jornal que, ao fazer a seleção linguística, evidencia sua intenção discursiva.

TÓPICO 2 | O SENTIDO NAS SITUAÇÕES COMUNICATIVAS

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Por isso, é relevante conceituar discurso, uma vez que o discurso reúne não só os enunciados, como também a enunciação, o acontecimento, a singularidade do texto, o material linguístico, traduzido em blocos semânticos (DUCROT, 1972). Por blocos semânticos podemos entender o encadeamento de duas sequências ligadas por um conectivo que passam a ser uma unidade semântica concreta: o texto. Esses blocos semânticos são atualizados pelos encadeamentos argumentativos.

Esses encadeamentos se fazem presentes na argumentação, ato presente em nosso cotidiano e que, muitas vezes, nem nos damos conta. Por exemplo, quando o outro age sobre nós, querendo nos influenciar, convencer, utilizando uma seleção lexical na qual se faz presente uma força argumentativa. São anúncios publicitários, reportagens, notícias, cuja argumentação se efetiva discursivamente. Vamos examinar em (27) como se constrói o sentido do texto a partir de sua materialidade linguística:

(27) Futuros professores: 61% dos calouros de pedagogia ou outra licenciatura estudam a distância <http://twixar.me/pnC1>.

Para evidenciar os sentidos do texto em (27), é necessário examinar o texto como um bloco semântico, inscrito no sistema linguístico realizado pelo encadeamento discursivo. Em (27), não há marcas explícitas de persuasão do interlocutor. No entanto, há um discurso persuasivo construído a partir da expressão “61% dos calouros” que evidencia a expansão do ensino a distância em relação ao ensino presencial. O discurso de expansão da EAD associado ao de flexibilização do ensino “a distância” se materializa com maior intensidade exatamente nos cursos de licenciatura, por isso, a inscrição linguística de “futuros professores” como um convite: “venha fazer EAD!”.

Material linguístico – conjunto sistêmico de estruturas, de entidades abstratas, o qual persiste nos múltiplos e diferentes empregos que o falante faz de uma dada língua. Frase. Realização linguística – equivale à fala e definida como o que pode ser observado. É a manifestação, a concretização, pelas produções do falante, daquelas estruturas que constituem o material linguístico. O texto e o discurso.

FONTE: AZEVEDO, T. M. de. Discurso didático: um modelo para descrição do sentido pela semântica argumentativa. Conjectura, Caxias do Sul, v. 16, n. 2, maio/ago. 2011.

NOTA

UNIDADE 2 | HETEROGENEIDADE SEMÂNTICA

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De tal modo, o discurso é concebido como um sistema semântico organizado a partir de suas partes, reconhecidas como unidades no texto. Como define Azevedo e Mileski (2011, p.48):

[...] um discurso é um todo composto de partes inter-relacionadas, que, mesmo nessa interação, não perdem as propriedades que lhes possibilitam ser percebidas como unidades, mas que, simultaneamente, precisam ser compreendidas e descritas à luz de sua função de formar o todo. O subencadeamento só é assim percebido por contribuir para a construção do encadeamento global que constitui o sentido do discurso.

Por isso, texto e discurso são muito complexos de serem definidos, pois há uma rede de relações que os constituem e conferem a essas unidades linguísticas o caráter de unidade de sentido, reconhecida e produzida pelos falantes. Como reconhecer esta unidade de sentido? Como o encadeamento argumentativo dá suporte à produção de sentidos? O texto seria responsável pelos sentidos na realização dos blocos semânticos?

O discurso realiza o texto a partir dos encadeamentos. Os encadeamentos, como estamos nos referindo, constituem-se de uma “[...] sequência de dois segmentos de discurso, com interdependência de sentido, ligados por um conector” (FLORES et al. 2009, p. 97), que pode ser normativo do tipo donc, conclusivo (DC/portanto) ou do tipo pourtant, concessivo (PT/no entanto, mesmo assim, ainda que). Esses encadeamentos realizam o bloco semântico. Vamos observar estes exemplos:

(28) De acordo com Cappelo, o convite ao cantor foi feito pelo próprio maestro Nelson Neves, baseado em seu estilo peculiar. “O maestro já havia presenciado um show meu e, portanto, ele conhece o estilo que costumo cantar <http://twixar.me/BKC1>.

(29) Stories do Snapchat terão propaganda, confirma o CEO Evan Spiegel. No entanto, ele afirma que elas serão voltadas para a timeline de histórias e

não apontadas para determinados públicos <http://twixar.me/cKC1>.

Tomando (28) e (29) como textos, teremos duas entidades abstratas, que se realizam no discurso, entidade concreta. O exemplo (28) corresponde a uma argumentação discursiva externa, pois está marcada no texto, na palavra “portanto” que se constitui em um encadeamento normativo “presença DC estilo”. Em (29), temos uma argumentação também externa, mas transgressora, marcada por “no entanto” entre “propaganda PT timeline”. Essas relações são necessárias para a compreensão do encadeamento argumentativo na produção de textos e na construção da significação (frase) e dos sentidos (realização da frase – o enunciado).

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Portanto, o texto é um bloco semântico e para chegar a sua significação enquanto entidade abstrata, é preciso partir do sentido do discurso, de sua descrição semântica. Sendo assim, o discurso como unidade semântica expressa os pontos de vista pelos quais o locutor se responsabiliza.

Logo, o texto é uma construção interacional na qual os interlocutores se envolvem no processo de construção e compreensão dos sentidos. Para tanto, as vozes têm autor e são introduzidas no texto pelo locutor que não quer assumir a responsabilidade pelo discurso. Como esses discursos aparecem no enunciado? Eles emergem do texto, da materialidade linguística e nos levam a identificar os sentidos no discurso. Portanto, o valor semântico do texto é definido pelos discursos produzidos que podem ser descritos em termos de blocos semânticos e pelas entidades linguísticas, levando a se constituir como uma unidade de sentido.

Para ampliar o estudo acerca da polifonia, sugerimos a leitura de Outras vozes na argumentação: atualização da polifonia e reformulação da descrição semântico-argumentativa do discurso, de Tânia Maris de Azevedo.

FONTE: AZEVEDO, T. M. de. Outras vozes na argumentação: atualização da polifonia e reformulação da descrição semântico-argumentativa do discurso. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 46, n. 1, p. 64-72, jan./mar. 2011. Disponível em: http://twixar.me/6LC1. Acesso em: 10 ago. 2019.

IMPORTANTE

UNIDADE 2 | HETEROGENEIDADE SEMÂNTICA

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LEITURA COMPLEMENTAR

ARGUMENTAÇÃO, TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO NA LÍNGUA E DESCRIÇÃO SEMÂNTICO-ARGUMENTATIVA DO DISCURSO (fragmento)

Tânia Maris de AzevedoIvanete Mileski

5 Descrição semântico-argumentativa de um discurso

Com o objetivo de mostrar como a argumentação está inscrita na língua, e também como uma forma de aplicar o modelo proposto por Azevedo (2006a) para a descrição semântica do discurso, passaremos a analisar agora um discurso publicado pela revista Nova Escola, na seção Assim não dá! (v. 25, n. 233, p. 28, jun. 2010). Em geral, os temas tratados nesse espaço são assuntos polêmicos do cotidiano escolar, sobre os quais a revista apresenta seu posicionamento.

Seja o discurso D:

Deixar o papel higiênico longe dos banheiros

A prática, adotada em algumas escolas para coibir o desperdício e as traquinagens das crianças, pode constrangê-las. Afinal, há que se expor em público para pedir o papel na secretaria, na diretoria, ou diretamente à professora. A atitude, que visa evitar a indisciplina, não contribui para a aprendizagem proporcionada pelos problemas do cotidiano escolar e poderia ser conduzida de forma a propiciar aos alunos uma reflexão sobre o problema.

Com base na hipótese interna 3.2 (HI3.2: o encadeamento argumentativo que expressa o sentido global do discurso expressa igualmente o ponto de vista (o enunciador) assumido pelo locutor desse discurso), o discurso D será segmentado para que possa ser feita a análise polifônica. No enunciado (1), tem-se:

(1) A prática, adotada em algumas escolas para coibir o desperdício e as traquinagens das crianças, pode constrangê-las.

O locutor (L) de (1) atualiza os seguintes enunciadores:E1: deixar o papel higiênico longe dos banheiros é uma práticaE2: algumas escolas deixam o papel higiênico longe dos banheirosE3: as crianças desperdiçam papel higiênicoE4: as crianças fazem traquinagens com papel higiênicoE5: deixar o papel higiênico longe dos banheiros coíbe o desperdício e as

traquinagens das criançasE6: crianças podem ficar constrangidasE7: deixar o papel higiênico longe dos banheiros pode constranger as

crianças

TÓPICO 2 | O SENTIDO NAS SITUAÇÕES COMUNICATIVAS

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A posição de L no enunciado (1) é a de aceitar E1, E2, E3, E4, E5 e E6 e assumir E7. Assim, o encadeamento argumentativo que expressa a posição do locutor em (1) pode ser expresso por papel higiênico longe dos banheiros DC constrangimento das crianças.

Seja, agora, o enunciado (2):

(2) Afinal, há que se expor em público para pedir o papel na secretaria, na diretoria, ou diretamente à professora.

Nesse enunciado, L atualiza os enunciadores:E8: é possível pedir o papelE9: é possível pedir o papel na secretariaE10: é possível pedir o papel na diretoriaE11: é possível pedir o papel diretamente à professoraE12: pedir papel é se expor em públicoE13: pedir papel na secretaria, na diretoria ou diretamente à professora é

se expor em público

Com relação à atitude de L frente aos enunciadores que atualiza, pode-se afirmar que aceita E8, E9, E10, E11 e E12, e assume E13. Assim, o encadeamento argumentativo que expressa a posição de L em (2) pode ser textualizado como pedir papel DC expor-se.

Passemos à análise polifônica do enunciado (3):

(3) A atitude, que visa evitar a indisciplina, não contribui para a aprendizagem proporcionada pelos problemas do cotidiano escolar e poderia ser conduzida de forma a propiciar aos alunos uma reflexão sobre o problema.

Em (3) o locutor põe em cena os seguintes enunciadores:E14: deixar o papel higiênico longe dos banheiros é uma atitudeE15: existe indisciplinaE16: evita-se a indisciplinaE17: evita-se a indisciplina com atitudesE18: deixar o papel higiênico longe dos banheiros tem um objetivoE19: deixar o papel higiênico longe dos banheiros visa a evitar a indisciplinaE20: existem problemas no cotidiano escolarE21: problemas do cotidiano escolar proporcionam aprendizagemE22: os alunos podem refletir sobre o problemaE23: deixar o papel higiênico longe dos banheiros não é uma forma de

propiciar aos alunos uma reflexão sobre o problemaE24: deixar o papel higiênico longe dos banheiros contribui para a

aprendizagem proporcionada pelos problemas do cotidiano escolarE25: deixar o papel higiênico longe dos banheiros não contribui para a

aprendizagem proporcionada pelos problemas do cotidiano escolar

UNIDADE 2 | HETEROGENEIDADE SEMÂNTICA

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Em (3), L aceita E14, E15, E16, E17, E18, E19, E20, E21, E22 e E23, rejeita E24 e assume E25. Assim, o encadeamento argumentativo que manifesta a posição de L em (3) é deixar o papel higiênico longe dos banheiros DC neg-aprendizagem a partir dos problemas do cotidiano escolar.

É possível perceber que a análise polifônica dos enunciados que compõem D permite que se chegue à posição assumida pelo locutor em cada enunciado e aos encadeamentos argumentativos existentes. Vamos agora testar a HI3.1 (HI3.1: o discurso, como encadeamento argumentativo complexo, é composto de subencadeamentos, estes igualmente argumentativos, já que compreendidos como a inter-relação semântica de um segmento-argumento e um segmento-conclusão), a fim de verificar se os encadeamentos atualizados por D podem constituir também subencadeamentos (SE) do encadeamento argumentativo global (EAG) de D.

Retomemos os encadeamentos argumentativos que compõem o sentido dos enunciados (1), (2) e (3):

EA1: papel higiênico longe dos banheiros DC constrangimento das criançasEA2: pedir papel DC expor-seEA3: deixar o papel higiênico longe dos banheiros DC neg-aprendizagem a partir

dos problemas do cotidiano escolar

O EA1 atualiza, no nível do discurso, o bloco semântico ausência de papel-constrangimento, sob o aspecto normativo. Assim, tal bloco poderia atualizar um enunciado como: se não há papel nos banheiros, haverá constrangimento.

EA2 relaciona, também sob o aspecto normativo, os conceitos de pedido e exposição, formando o bloco semântico pedido-exposição, que poderia ser realizado por um enunciado do tipo de: quando há pedido, há exposição.

Por fim, o EA3 relaciona, mais uma vez sob o aspecto normativo, ausência de papel e ausência de aprendizagem, que formam o bloco semântico ausência de papel-ausência de aprendizagem, cuja atualização poderia ser um enunciado como: se não há papel, não há aprendizagem.

Tendo em vista que D é um discurso (logo, uma entidade de nível complexo, cujos enunciados realizam encadeamentos argumentativos), convém, então, analisar a possibilidade de os encadeamentos constituírem subencadeamentos. Pela descrição, percebe-se que D se constitui a partir de dois subencadeamentos: SE1 e SE2.

Como apresentado anteriormente, o sentido do enunciado (1) constitui-se na relação entre os conceitos ausência de papel e constrangimento, sob o aspecto normativo. No enunciado (2), L põe em relação os conceitos de pedido e exposição. Se assim for, podemos dizer que EA1 e Ea2 compõem o subencadeamento SE1 de D, que se realiza pelo aspecto normativo entre ausência de papel DC pedido DC

TÓPICO 2 | O SENTIDO NAS SITUAÇÕES COMUNICATIVAS

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exposição cujo enunciado correspondente poderia ser: se há ausência de papel, haverá pedido e, portanto, exposição. Vale lembrar que constrangimento, que é o elemento conclusivo em EA1, aproxima-se semanticamente de exposição, que compõe o segmento conclusão de EA2. Ressaltamos, ainda, o uso da palavra afinal, que a gramática normativa chama de “conjunção” e que a Semântica Argumentativa denomina “articulador”5, em (2); tal vocábulo reforça a relação semântica que constitui SE1, algo como há constrangimento, porque há exposição. Como afirma a linguista (2006b, p. 147-148), o subencadeamento não provém da soma dos encadeamentos dos enunciados, mas da relação argumentativa que se estabelece entre eles. Assim, tendo em vista a relação em donc que se verifica entre EA1 e EA2, pode-se propor a seguinte forma para SE1: ausência de papel DC exposição, que poderia ser realizado por um enunciado como: se não há papel, haverá exposição.

Já para SE2, diremos que se constitui pela relação argumentativa entre EA2 e EA3. EA2 relaciona os conceitos de pedido e exposição, ao passo que EA3 relaciona ausência de papel à ausência de aprendizagem. Assim, a relação argumentativa dos dois encadeamentos constitui-se sob o aspecto normativo: exposição DC ausência de aprendizagem, que pode ser atualizado por um enunciado como a exposição (gerada pelo pedido em decorrência da ausência de papel) não proporciona aprendizagem.

Uma vez analisada a constituição dos subencadeamentos de D, com base no conteúdo da HI4 (HI4: a segmentação do discurso em subencadeamentos é feita com base na condição de que os subencadeamentos assim se configurem por contribuírem para a constituição e a consequente interconexão dos segmentos argumento e conclusão os quais formam o encadeamento argumentativo complexo que expressa o sentido global do discurso), e, para que se possa descrever o EAG de D, analisamos a relação de SE1 e SE2.

Se SE1 relaciona normativamente ausência de papel e exposição, e SE2, exposição e ausência de aprendizagem, em que exposição (segmento-conclusão de SE1, é o segmento-argumento de SE2) decorre da ausência de papel e caracteriza a ausência de aprendizagem, então é possível afirmar que o EAG de D seja ausência de papel DC ausência de aprendizagem, no qual o segmento-argumento de SE1 encadeia-se sob o aspecto normativo ao segmento-conclusão de SE2.

Cabe salientar que o enunciador E25 (E25: Deixar o papel higiênico longe dos banheiros não contribui para a aprendizagem proporcionada pelos problemas do cotidiano escolar), assumido por L em (3) e que dá origem ao EA3 (EA3: deixar o papel higiênico longe dos banheiros DC neg-aprendizagem a partir dos problemas do cotidiano escolar) expressa o EAG de D (EAG: ausência de papel DC ausência de aprendizagem), como prevê a hipótese interna 3.2 (HI3.2: o encadeamento argumentativo que expressa o sentido global do discurso expressa igualmente o ponto de vista (o enunciador) assumido pelo locutor desse discurso).

UNIDADE 2 | HETEROGENEIDADE SEMÂNTICA

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É preciso discorrer também acerca da comprovação da HI3, que diz respeito ao entendimento do texto como um bloco semântico, afinal, a descrição do EAG de D coloca D em tal patamar, como unidade semântica indecomponível. Destacamos, também, a confirmação de HI3.1, no que concerne ao entendimento do discurso como um encadeamento argumentativo e à existência de subencadeamentos em tal unidade de sentido.

Uma vez possível a realização da análise do discurso D, resta dizer que também HI1 e HI2 ficam confirmadas, afinal, a segmentação de D foi realizada, fez-se a análise polifônica, a identificação dos encadeamentos argumentativos e dos respectivos blocos semânticos, o que corresponde ao proposto por Azevedo (2006a, p. 134), na primeira HI do modelo, “a Teoria da Argumentação na Língua (TAL) fornece mecanismos para a descrição de entidades linguísticas complexas como o texto e o discurso.”

FONTE: AZEVEDO, T. M.; MILESKI, I. Argumentação, Teoria da Argumentação na Língua e descrição semântico-argumentativa do discurso. Conjectura, Caxias do Sul, v. 16, p. 169/10-184, 2011. Disponível em: http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/conjectura/article/view/1205/838. Acesso em: 21 jan. 2020.

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RESUMO DO TÓPICO 2Neste tópico, você aprendeu que:

• As relações de sentido no nível lexical, frasal e discursivo são distintas e que o sentido é o uso que se atualiza na materialidade linguística e se concretiza na realização linguística, permitindo uma compreensão de si mesmo e do mundo.

• O texto é reconhecido como uma unidade de sentidos e que a argumentação é inscrita no sistema linguístico como um bloco semântico, cuja realização se dá pelo encadeamento discursivo.

• O texto pode ser compreendido como a materialização de sentidos e é o espaço onde o discurso se assenta.

• O discurso é o efeito de sentido entre os locutores.

Ficou alguma dúvida? Construímos uma trilha de aprendizagem pensando em facilitar sua compreensão. Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo.

CHAMADA

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AUTOATIVIDADE

1 Com relação aos níveis de sentido, analise as sentenças a seguir:

I- No nível lexical, as palavras se constituem em veículos para marcar as posições do sujeito no texto.

II- No nível frasal, os sentidos das palavras são construídos em função de cada enunciação.

III- No nível discursivo, a ordem em que os enunciados aparecem no discurso orientam esse discurso, mas deixam de determinar seu valor semântico.

Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) Somente a sentença I está correta.b) ( ) Somente a sentença II está correta.c) ( ) Somente a sentença III está correta.d) ( ) As sentenças I e II estão corretas.

2 Texto e discurso são constituídos por uma rede de relações que confere a essas unidades linguísticas o caráter de unidade de sentido, reconhecida e produzida pelos falantes. A partir dessa afirmação e da imagem, aponte como se dá a construção de sentidos na fala das mães.

FONTE: http://3.bp.blogspot.com/-duSrBDvss-A/TtLFdgg4AZI/AAAAAAAAASE/eYm5ykiGsRQ/s400/charge.jpg>. Acesso em: 10 set. 2018.

a) ( ) O nível lexical constrói os sentidos a partir dos encadeamentos argumentativos de pourtant, traduzidos em “portanto” no texto.

b) ( ) Os sentidos são construídos por meio do léxico, marcado no texto pela expressão “fora” e aponta para a desigualdade.

c) ( ) O nível frasal é responsável pela produção de sentidos, pois como entidade concreta produz um discurso acerca da redistribuição de renda marcado na expressão “fora”.

d) ( ) Os sentidos de discriminação são construídos no nível discursivo a partir do encadeamento do conector “e” na fala da mãe de Juca.

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3 Para a compreensão do texto como uma unidade de sentido, é preciso considerar os blocos semânticos construídos a partir dos enunciados presentes no discurso e resultantes do encadeamento argumentativo. Para isso, siga as orientações:

1- divida a notícia em segmentos (encadeamentos argumentativos);2- selecione a palavra ou expressão em torno da qual os discursos se constroem

e o movimento discursivo se faz presente. 3- por fim, destaque o encadeamento global do texto que vai constitui-lo como

uma unidade de sentido.

As novas tecnologias na educação são uma importante ferramenta para dinamizar o processo de ensino-aprendizagem. Se aplicada de modo responsável e criativo, a tecnologia pode apresentar diferentes benefícios para os alunos e até mesmo para a equipe de educadores. Com a popularização dos aparatos tecnológicos, é comum que as novas gerações tenham esses equipamentos inseridos em seu dia a dia, e a escola não deve estar alheia a essas influências.

FONTE: Adaptado de <http://twixar.me/FWC1>. Acesso em: 10 out. 2019.

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UNIDADE 3

A ESTILÍSTICA: DISCURSO E SUBJETIVIDADE

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

PLANO DE ESTUDOS

A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• identificar os conceitos de estilo com relação à língua e à expressividade;

• distinguir o estilo como desvio da norma, expressividade e trabalho;

• reconhecer as figuras de retórica e seu potencial expressivo na constituição de subjetividades;

• descrever a estilística no nível do som, da palavra, da frase, da enunciação; • evidenciar o estilo como efeito de sentido, uma construção discursiva.

Esta unidade está dividida em dois tópicos. No decorrer da unidade, você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado.

TÓPICO 1 – NOTAS SOBRE ESTILÍSTICA E ESTILO

TÓPICO 2 – CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESTILO

Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações.

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TÓPICO 1

NOTAS SOBRE ESTILÍSTICA E ESTILO

UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃOEstamos iniciando mais uma unidade da disciplina Semântica e Estilística.

Nas Unidades 1 e 2, tratamos, respectivamente, da heterogeneidade dos campos de estudos semânticos e dos limites tênues dos aspectos semânticos e pragmáticos da língua. Nesta unidade, vamos ampliar esses estudos, abordando a Estilística e as implicações das escolhas realizadas pelo usuário da língua na produção de certos efeitos de sentido em relação a outros.

Quando estudamos, na Unidade 2, o sentido nas situações comunicativas, observamos o trabalho realizado pelo usuário em busca de determinados sentidos e que estes não estão “amarrados” às palavras presentes no texto, mas à enunciação. Por enunciação, entendemos toda atividade social e interativa na qual os enunciados são produzidos e colocados em funcionamento pelo enunciador/sujeito do discurso.

Essa perspectiva entre enunciado e enunciação nem sempre esteve na pauta dos estudos estilísticos que viam no enunciador a responsabilidade pelas escolhas das expressões que eram consideradas ora desvio da norma, ora um conjunto de características individuais/coletivas, ora a construção de um bom estilo. Esse bom estilo é advindo da retórica que sempre subsidiou as técnicas para o uso das palavras a fim de organizar de forma clara e convincente a escrita.

De tal modo, o enunciador tinha estilo ou não tinha. Seguia as normas da língua ou se afastava delas. Restringia-se a uma estilística da frase ou do discurso. Expressava suas emoções de forma individual na obra ou em uma fase específica de sua vida. Sobrecarregava a linguagem, estruturando formas de expressão para criar um estilo próprio ou se detinha no grau zero da expressão, porém, estilo não se circunscreve apenas ao individual. Podemos falar de estilo em um gênero literário, em um movimento literário, em uma obra, em um parágrafo, em um enunciado. Enfim, dos estudos retóricos passando pelos modelos de análise estilísticas tradicionais até uma estilística do discurso há muito a ser discutido.

Afinal, o que é estilo? Quais as implicações desse percurso estilístico para a concepção de estilo? Quando se fala em estilo, do que estamos falando exatamente? A noção de estilo pode ser precisa ou é permeada de conflitos? É uma forma de falar, de expressar, de violar regras, de fazer escolhas, de caracterizar, de

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individuar? Estilo está relacionado ao enunciador, à obra ou ao leitor? Estilo está na língua, no discurso ou em ambos? A escolha de certas palavras, expressões ou construções sintáticas revelam a subjetividade do enunciador? Como?

Antes de iniciarmos nosso percurso pela Estilística, vamos observar como é possível fugir da ideia de estilística apenas como estudo de figuras de linguagem e ampliar para marcas individuadas do sujeito na enunciação. De acordo com Bakhtin (2013, p.23):

As formas gramaticais não podem ser estudadas sem que se leve em conta seu significado estilístico. Quando isolada dos aspectos semânticos e estilísticos da língua, a gramática inevitavelmente degenera em escolasticismo. Às vezes, ele [professor] até aborda a estilística nas aulas de literatura [...], mas o conteúdo das aulas de língua materna é a gramática pura.

Parece que as palavras do filósofo com relação ao ensino da língua russa não estão longe da nossa realidade. Bakhtin (2013) enfatiza que não deve haver uma dissonância entre Semântica, Estilística e Gramática, mas uma articulação que contribuiria para um movimento em direção à relação do sujeito, linguagem, expressividade e autoria. Vejamos este enunciado (1) produzido pelo atleta Julio Agripino, em Dubai, que, com seu guia, Lutimar Paes, ganharam a medalha de ouro e conseguiram uma vaga para os Jogos Paralímpicos de Tóquio.

(1) — Só eu sei o quanto trabalhei com meus guias. Eu estou muito feliz. É meu primeiro título, em meu primeiro Mundial. Eu estava com essa vitória entalada na garganta, porque fui mal no Parapan de Lima <http://twixar.me/wrKT>.

1.a. Eu estava com essa vitória entalada na garganta, porque fui mal no Parapan de Lima.

1.b. Eu estava com essa vitória entalada na garganta, uma vez que fui mal no Parapan de Lima (adaptado).

1.c. A vitória estava entalada em minha garganta: fora mal no Parapan de Lima (adaptado).

Tomando a discussão realizada por Bakhtin com seus alunos, será possível avaliar esses três enunciados (1.a, 1.b, 1.c) como gramática e estilisticamente corretos. Em 1.a e 1.b, temos enunciados compostos pelas conjunções “porque” e “uma vez que” e, em 1.c, não temos conjunção. Como podemos evidenciar nesses enunciados, a expressividade é diferente. Como argumenta Bakhtin (2013), as conjunções, em 1.a e 1.b, carregam estilisticamente um volume excessivo e uma sonoridade desagradável, ou seja, são pesadas, sem harmonia, frias e sem alma.

Já, em 1.c, sem a conjunção e organizado de forma diferente de 1.a e 1.b, evidencia-se uma expressividade máxima, nas palavras de Bakhtin (2013). Estilisticamente, há uma expressividade que não é sentida nos outros dois enunciados, principalmente, pela palavra “vitória” estar em evidência o que torna

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a construção mais singular, autoral, demarcando um estilo, uma forma muito própria de expressar seu desabafo. A entrada ou saída da conjunção serve como um marco que evidencia uma relação de causa (o que vem a partir da conjunção) e efeito (o que abre a frase), evidenciando, estilisticamente, um esclarecimento acerca do enunciado.

A ausência das conjunções e a introdução dos dois pontos em 1.c, contribuem, também, para um estilo mais dinâmico, criativo no enunciado que representa “[...] uma arma poderosa na luta contra a linguagem livresca e privada de personalidade: neles, [...] a individualidade do falante revela-se com maior liberdade e a sua entonação viva soa com mais clareza” (BAKHTIN, 2013, p. 43).

Ao propor aos alunos esse trabalho com enunciados vivos, Bakhtin (2013) destaca um trabalho estilístico que não se afasta da língua, mas se manifesta nos processos de escolha e de estruturação diferente da linguagem. As discussões propostas, nesta unidade, serão encaminhadas a partir de uma discussão sobre a questão de estilo, tentando evidenciar que estilo está atrelado a escolhas e que estilo se aprende a partir de uma multiplicidade de práticas.

Essa discussão será aprofundada ao longo da unidade, mas o que queremos enfatizar com relação ao estudo do estilo é sua heterogeneidade aliada aos recursos lexicais, sintáticos e semânticos oriundos da exploração das escolhas vocabulares e das inúmeras ocorrências sintáticas e semânticas que são percebidas na compreensão de um discurso e que vão evidenciar os efeitos de sentido dos textos e, consequentemente, a autoria.

2 ESTILO E ESTILÍSTICAO que é estilo? Como definir o estilo? O estilo é apreensível a partir de

palavras que fogem à norma? Estilo é desvio ou estilo é um trabalho de escolhas? O que considerar sobre norma? E desvio? E trabalho? O crítico literário e o linguista compartilham da mesma concepção de estilo? Quando entramos no campo da Estilística, tudo é um tanto impreciso, questionável e ambíguo. Pode até parecer, mas precisamos entender, inicialmente, de que não há uma dicotomia entre a Literatura e a Linguística quando abordamos a estilística e o estilo.

A Estilística é constituída por inúmeras concepções de estilo que estão ancoradas em diversas correntes estilísticas. Antes de definirmos estilo, vale lembrar que o enunciado e a enunciação ancoraram as discussões nas unidades anteriores de Semântica e Pragmática. E, nesta unidade de Estilística, não poderia ser diferente, uma vez que sempre privilegiamos a língua em uso e, consequentemente, os mecanismos de produção de sentidos da enunciação.

Vamos considerar o panorama evolutivo da Estilística e situá-lo no campo da retórica e da poética. Para Aristóteles (339-338 a.C.), o estilo compreendia clareza e adequação ao contexto, tratando dos desvios e dando destaque à metáfora. No

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século XV, a retórica e a poética se unificam e a linguagem passa a ser trabalhada com rigor formal, sobriedade, objetividade levando a uma moderação no uso das figuras de linguagem. A obra tem autonomia com relação ao enunciador.

A noção de estilo individual, como conhecemos atualmente, passa a fazer parte do campo literário no século XVII. No século XVIII, em vista de a linguagem ter mais liberdade formal, ser menos elaborada, uma profusão de figuras de linguagem passa a compor os textos da época. A noção de estilo, confinada ao mundo das artes, torna-se um valor de mercado, pois dá autenticidade às obras e eleva seu preço no mercado. É somente no século XIX que a noção de estilo vai se vincular à literatura e vai designar unidade, traço familiar ou de um grupo.

Após a “morte” da retórica, a estilística surge no século XIX como uma visão singular, ou seja, o enunciador é uma marca subjetiva presente no discurso. Somente no século XX que esse campo de estudo se institui como disciplina. Guiraud (1970, p. 9-10) explica essa relação após um estudo da retórica:

A estilística, em sua dupla forma, é uma retórica moderna, é uma ciência da expressão e uma crítica dos estilos individuais; mas essa definição só se destaca lentamente, e a nova ciência do estilo só vagarosamente reconhece seu objeto, seus alvos e seus métodos. [...] A tarefa mais urgente da estilística é a de definir seu objeto, sua natureza, seus fins e seus métodos, começando pela própria noção de estilo. [...] O estilo é o aspecto do enunciado que resulta da escolha dos meios de expressão determinada pela natureza e as intenções do indivíduo que fala ou escreve.

A preocupação dos linguistas em ultrapassar o estudo da gramática normativa e sua visão parcial da língua, desvinculando a poética de seus estudos, foi em vão, pois suas pesquisas passaram a invadir os domínios da literatura. Guiraud (1970), em seu ensaio A estilística, no começo do século XX, aponta para o surgimento de duas estilísticas: uma que estuda a relação da forma com o pensamento e outra que estuda a relação da expressão com os usuários e com a coletividade.

Dessas concepções surge a Estilística da língua, também denominada de Estilística descritiva, da linguística ou da expressão, iniciada por Charles Bally, que estuda os recursos afetivos presentes na língua. Paralela a essa, surge a Estilística literária, também conhecida como idealista, individual, genética, iniciada por Leo Spitzer, que analisa os desvios com relação ao uso “normal” da língua e vai servir de base para a estilística da enunciação, cujo interesse está na subjetividade discursiva e tem como representantes Benveniste, Culioli, Ducrot, Authier-Revuz, Culioli, Fuchs.

Para entendermos a questão do estilo, um dos caminhos é compreender essas duas correntes, a da língua e a literária e sua relação com o objeto de estudo, observando como se efetivam na prática. Sem um aprofundamento e estudo mais apurado, vamos apresentar cada uma dessas correntes, seus representantes e sua forma de conceber estilo. A abordagem do estilo e sua relação com a língua será apresentada sob uma perspectiva plural.

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AUTOATIVIDADE

Vamos ao nosso primeiro desafio desta unidade!

Deixar é grandeza, pedir é sujeição; deixar é desprezar, pedir é fazer-se desprezado; deixar é abrir as mãos próprias, pedir é beijar as alheias; deixar é comprar-se, porque quem deixa livra-se. Pedir é vender-se, porque quem pede cativa-se. Deixar, finalmente, é ação de quem tem; pedir é ação de quem não tem. E tanto vai de pedir a deixar, quanto vai de não ter a ter (VIEIRA, 1998, s.p.).

FONTE: VIEIRA, A. Sermões. Erechim: Edelbra, 1998.

A partir desse fragmento, sublinhe partes que evidenciem algum tipo de singularidade de construção sintática ou semântica. Depois, você deverá explicar por que as partes selecionadas carregam uma força estilística.

2.1 ESTILÍSTICA DA LÍNGUA

Assim como a Semântica, a Estilística da língua se desenvolveu tardiamente, demonstrando a necessidade de uma delimitação de seu objeto de estudo para sua autonomia como disciplina. No início do século XX, os estudos linguísticos saussurianos vão tornar possível a criação de diferentes posições teóricas e uma delas é descoberta da estilística que passa a ganhar outra direção. O objeto de estudo não é mais apenas a língua, mas a fala comum, conversacional e textos escritos sem cunho literário. Qual a relação desse objeto de estudo com o estilo?

Bally, em 1905, antes dos cursos ministrados por Saussure em Genebra, já

se dedicava aos estudos estilísticos e publicava Précis de stylistique e, em 1909, Traité de stylistique française. Ao definir que seu estudo tinha como base os fatos afetivos da linguagem em detrimento da informação neutra, Bally separa o linguístico do estilístico. O objeto de estudo da Estilística eram “[...] os fatos da expressão da linguagem, organizada do ponto de vista de seu conteúdo afetivo” da língua falada (BALLY,1952 apud MOREJÓN; MARTINS, 1967, p. 159), afastando-se das disciplinas literárias.

Para Bally (1952 apud MOREJÓN; MARTINS, 1967, p. 159), "a linguagem expressa sentimentos e ideias além de refratar a realidade impondo-lhe deformidades que são da natureza do sujeito". Por isso, a sensibilidade na estilística é traduzida nos recursos que expressam afetividade, julgamentos, emoções, presentes no enunciado, e que afetam o outro de forma persuasiva. Bally se dedicou a estudar a língua francesa com relação aos aspectos estilísticos e didáticos e apontou dois efeitos estilísticos: a palavra provoca (expressa) emoção e a palavra evoca um contexto de uso. Para compreender esses efeitos das palavras, tomamos o exemplo de Lapa (1998) exposto em (2):

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(2) a. O pobre homem morreu cheio de sofrimento. b. As dez horas, o mariola esticava o pernil. c. O estadista expirou com o pensamento em seu país. d. Faleceu ontem o Sr. José dos Santos Abreu.

Lapa (1998) evidencia que:

• Em (2a), “morreu” torna o enunciado menos expressivo. • Em (2b), “esticar o pernil” evoca uma linguagem coloquial. • Em (2c), “expirou” evidencia um termo literário. • Em (2d), “faleceu” está atrelado ao meio burocrático, jornalístico.

O estilo, nesse caso, residiria nas possibilidades expressivas oferecidas pela língua ao falante para provocar determinados efeitos no interlocutor evocados por um determinado contexto. Conforme apontado por Lapa (1998), há potencialidades expressivas distintas nesses quatro enunciados propostos em (2). Essas palavras produzem sentidos diferentes ao serem utilizadas, também, em contextos diferentes. Ao analisarmos as palavras “morreu”, “esticar o pernil”, “expirou” e “faleceu”vemos que essas possibilidades de uso apontam para diferentes maneiras de o falante manifestar seus sentimentos na relação com o outro.

Charles Bally (1865-1947), francês, fundador da estilística. Publicou, com Albert Sechehaye e Albert Riedlinger, as lições de Saussure. Sua obra versa sobre subjetividade, língua francesa e elementos afetivos da linguagem. Obras em português: Compêndio de estilística (1905), Tratado de estilística francesa (1909) e A linguagem e a vida (1913).

FIGURA - CHARLES BALLY

FONTE: <https://alchetron.com/cdn/charles-bally-da8ace51-a973-435a-b4d3-af4cc1387d7-resize-750.jpeg>. Acesso em: 13 nov. 2019.

NOTA

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Para Bally (1951 apud POSSENTI, 2001, p. 252), estilo é o “estudo efetivo dos fatos de expressão na linguagem organizada”, ou seja, um sistema no qual estão relacionadas à afetividade e à subjetividade no uso da língua. Ao criar a Estilística da língua, Bally fundamenta seu aparato teórico na enunciação que é o ato de construção do enunciado e suas ideias serão significativas para a Estilística/Linguística da Enunciação, uma vez que, em 1932, o linguista traz um capítulo intitulado Teoria geral da enunciação em seu livro Linguistique générale et linguistique française.

Bally (1932), a partir da enunciação, acentua a relação entre o sujeito

na linguagem e o enunciado no qual procura o caráter estilístico, separando os elementos afetivos e atribuindo a eles um lugar no sistema de expressão da língua. Para ele, a enunciação é condicionada por três aspectos: lógico, psicológico e linguístico que não podem ser separados, pois um implica o outro. Na atualização do sistema linguístico e no aumento do conhecimento da língua, surge o estilo individual.

Embora alguns atribuam a Bally um pensamento estruturalista, esse linguista foi apenas um divulgador das ideias de Saussure. Bally é considerado, a partir de suas obras, um precursor da teoria da enunciação, na qual a enunciação está centrada no sujeito, manifestando sua subjetividade. Flores (2005) o denominam como o “primeiro pós-saussuriano”. Bally, em sua estilística, afirma que a enunciação se dá no enunciado e o sujeito, ao enunciar, cria um estilo próprio. Já Benveniste é considerado o “pai da enunciação”, embora não tenha sido um pioneiro nas ideias enunciativas.

Para uma maior discussão acerca dos trabalhos de Bally e Benveniste sobre a enunciação, ver: Aspectos da teoria enunciativa de Charles Bally (CREMONESE; FLORES, 2010); Por que gosto de Benveniste? (FLORES, 2005); Introdução à Linguística da Enunciação (FLORES; TEIXEIRA, 2013).

NOTA

Nessa vertente estrutural e enunciativa da língua, temos, também, os pensadores russos Mikahel Bakhtin e Valentin N. Voloshinov que, como Bally, já problematizavam a enunciação. Para Bakhtin e Voloshinov (2010), a enunciação é uma atividade dialógica na qual o “eu se constrói” a partir do outro. Portanto, o uso da língua admite uma pluralidade de sujeitos que vão se fazer presentes no enunciado. São os pontos de vista construídos na interação e nas escolhas realizadas que implicam o estilo, apresentado em qualquer atividade de linguagem seja literária, seja linguística, nas quais o estudo do sentido também se faz presente.

O que é estilo no nosso cotidiano? Como o construímos? Como somos singularizados pelo estilo? Como fazemos as escolhas?

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A estilística, ao tratar do estilo, considera as escolhas feitas pelo falante com relação ao sistema da língua que está à disposição de todos. Essas escolhas são realizadas para que o enunciado produza determinados efeitos na enunciação como vimos em (2) e realizadas no sistema da língua. Por isso, estilo e escolha andam juntos e são responsáveis pela expressividade, criatividade, subjetividade, liberdade e trabalho realizado pelo falante. Vamos tratar de estilo como trabalho, no Subtópico 3.3 quando retomaremos à discussão sobre as escolhas realizadas por quem fala ou escreve.

Bakhtin (2013) em Questões de estilística no ensino de língua, publicado pela primeira vez em 1940, problematiza o ensino de língua com base na gramática. Para ele, a língua deve ser ensinada a partir de seu uso e “[...] entender o que muda quando escolho esta ou aquela palavra, esta construção sintática em lugar de outra” (BAKHTIN, 2013, p. 14), realizando o diálogo entre as formas gramaticais e a estilística. Ele questiona a diferença entre um enunciado com ou sem a conjunção e apresenta um exemplo de Púchkin. Vejamos em (3):

(3) a. Triste estou: o amigo comigo não está. b. Triste estou, porque ao amigo comigo não está. c. Estou triste, porque o amigo não está comigo. c’. Estou triste, uma vez que o amigo não está.

Bakhtin (2013) chega às seguintes conclusões:

• Em (3.b), houve a tentativa de inserir mecanicamente a conjunção, sem mudar o enunciado. Conclui que há uma inadequação e o enunciado deve ser construído como em (3.c) e (3.c’).

• Percebe que a reformulação em (3.c) e (3.c’) perde a expressividade emocional da frase de Púchkin. Não há mais a dramaticidade e entonação inicial que foram perdidas com a inclusão das conjunções “porque” e “uma vez que”.

• A inclusão dessas conjunções dá aos enunciados uma sonoridade desagradável assim como um caráter livresco e seco e por isso, muitos autores evitam usá-las.

• Estilisticamente, as conjunções preenchem o enunciado de forma improdutiva, ou seja, enfraquecem o peso entonacional da palavra “triste”, “comigo” e “não” quando suas posições no enunciado são modificadas.

• A inclusão dessas conjunções enfraqueceu a relação dramática entre a tristeza do poeta e a ausência do amigo; diminuiu a entonação e a dramaticidade; e ficou mais adequado para uma leitura silenciosa do que uma leitura expressiva em voz alta.

O trabalho estilístico realizado por Bakhtin na língua viva e criativa, evidencia o trabalho de seleção elaborado pelo falante. Verificar como essas escolhas podem alcançar os efeitos afetivos e expressivos e definir o estilo é um dos objetivos da Estilística da língua. A tarefa, portanto, dessa corrente é sistematizar e/ou descrever as possibilidades oferecidas pela língua para expressar a afetividade presente no enunciado e que definirão o estilo não do enunciador ou do orador, mas das particularidades na construção e organização de enunciados e na expressão de sua afetividade.

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Ao perceberem o quanto é possível revelar a individualidade do enunciador, Jules Marouzeau e Marcel Cressot, continuadores de Bally, passaram a ver limites muito estreitos na teoria de Bally e, diferente deste que desconsiderava a língua literária, tomaram sua variada e rica expressividade como objeto de estudo. Marouzeau vai além e desloca o enfoque da língua para o discurso e propõe a análise do estilo na linguagem dos autores; Cressot também analisa a linguagem literária e deixa de fora a análise dos autores e suas obras. A preocupação de ambos é descrição do estilo na construção linguística da linguagem literária.

No Brasil, merecem ser mencionados nessa perspectiva estilística dos estudos expressivos da língua, trabalhos como os elencados a seguir.

QUADRO 1 – AUTORES NO DOMÍNIO DA LÍNGUA PORTUGUESA

Manuel Rodrigues Lapa

Obra: Estilística da Língua Portuguesa (1945)Objetivo: aplicação prático dos valores expressivos encontrados no uso das classes de palavras, léxico e sintaxe.“[...] em volta de cada palavra ou, para melhor dizer, de certas palavras, se estabelece uma atmosfera fantasiosa e sentimental que constitui o seu valor expressivo. Há, evidentemente, palavras mais evocadoras do que outras” (LAPA, 1998, p. 4).

Joaquim Mattoso Câmara Júnior

Obra: Contribuição à Estilística Portuguesa (1952)Objetivo: estudar possibilidades expressivas da língua portuguesa, analisando aspectos fônicos, léxicos e sintáticos em falantes que alteram seus enunciados para exprimir sentimentos e influenciar seu interlocutor. “A Estilística vem complementar a gramática” (CÂMARA JR, 1952, p. 25).

Gadstone Chaves de Melo

Obra: Ensaio de estilística da língua portuguesa (1976)Objetivo: analisa o valor expressivo do vocabulário e a sintaxe (uso do verbo, das formas nominais, dos determinantes, regência, colocação e outros)“Mais razoável é remeter o leitor ao pertinente capítulo [...] para que vendo os esquemas e examinando as possibilidades, se torne capaz de realizar com segurança as escolhas expressivas e impressivas” (MELO, 1976, p. 172).

Nilce Sant’Anna Martins

Obra: Introdução à estilística: a expressividade na língua portuguesa (1989)Objetivo: analisa fonemas, palavras, frases e enunciação, apontando para este campo de estudo como promissor. “O estudo [...] trata da expressividade da língua portuguesa, isto é, os meios que ela oferece aos que falam ou escrevem para manifestarem estados emotivos e julgamentos de valor, de modo a despertarem em quem ouve ou lê uma reação de ordem afetiva” (MARTINS, 1989, p. 23).

FONTE: A autora

Embora alguns se distanciem e outros se aproximem, todos os autores da Estilística da língua demonstram o quanto os fatos da linguagem são complexos e quanto o enunciador tem relevância. Na página Opinião Geral, de Manuel Sanchez, é possível compreender a construção das marcas estilísticas na linguagem a partir das escolhas no repertório. Na tag: Bakhtin e linguagem, “Acerola ensinando História na sala de aula ao estilo de Bakhtin”, vamos encontrar uma singularidade estilística na fala de Acerola com um léxico particular que se distingue de outros modos, como o da professora, e está ligado à esfera de uso da língua.

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Assista a um trecho do filme no qual Acerola, personagem de Douglas Silva, “traduz” a história francesa a partir das escolhas feitas em seu repertório.

FONTE: <https://www.youtube.com/watch?time_continue=175&v=RP77PkL5TMg &feature=emb_title>. Acesso em: 17 nov. 2019.

FIGURA – ACEROLA EXPLICA HISTÓRIA

FONTE: <https://i.ytimg.com/vi/RP77PkL5TMg/hqdefault.jpg>. Acesso em: 22 jan. 2020.

DICAS

Mikhail Bakhtin (1895-1975) – pensador preocupado com o estudo da linguagem, literatura e artes. Sua inovação e dos outros estudiosos do Círculo de Bakhtin era distanciar-se da língua como sistema autônomo, proposta por Saussure, e conceber a língua como um processo de interação, mediado pelo diálogo.

FIGURA - MIKHAIL BAKHTIN

FONTE: <https://i.pinimg.com/originals/a2/1c/fb/a21cfbae53d5a30591aa542e8faa6a03.jpg>. Acesso em: 22 jan. 2020.

NOTA

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Diante da pressão de autores como Benedito Croce, opositores do pensamento de Bally e interessados também em textos literários, eis que surge um outro Bally, mais aberto em suas pesquisas, a considerar que:

Já é hora de deixarmos de considerar a língua literária como uma coisa à parte, uma espécie de criação ex nihllo: a língua literária é antes de mais nada uma transposição especial da língua de todos; só que os motivos biológicos e sociais da língua falada tornam-se motivos estéticos na literária" (BALLY, 1947, p. 99 apud MOREJÓN; MARTINS, 1967, p. 160, grifo do autor).

Esse posicionamento presente em sua obra El linguaje y la vida (1962) não deixa de ser um paradoxo, pois Bally nunca comungou das ideias de Croce, que considerava qualquer expressão linguística como um fenômeno estético. Surge, então, um outro momento histórico para a estilística e Karl Vossler, inspirado pelas ideias de Croce, passa a ver no material linguístico um elemento estético, um enunciado artístico, fortalecendo o laço entre a língua e a estética e o projeto de uma construção da Teoria Literária. Vamos compreender melhor esse pensamento, abordando a estilística literária.

2.2 ESTILÍSTICA LITERÁRIA

A estilística literária nasceu paralelamente à Estilística da língua, mas seus estudiosos viam limitações nesta corrente linguística quando as questões envolviam o texto literário, em meio às discussões do Curso de Linguística Geral e às concepções saussurianas, bem como à construção de uma teoria que explicasse a linguagem literária. Se na Estilística da língua, para Bally (1962), o objeto de pesquisa era o estudo e análise dos elementos afetivos inscritos na língua usual, entendida a partir de Saussure, para Leo Spitzer (2003), fundador da Estilística literária, além dos elementos afetivos, era preciso considerar, também, os conceptuais e imaginativos, mais férteis na língua literária.

Benedetto Croce é um dos idealizadores do pensamento no campo da literatura. Inicialmente, opunha-se aos estudos que não levavam em consideração a estética. Mais tarde, reconhece que a Linguística contribui para as investigações estilísticas. Dessa forma, suas ideias passam a ser respeitadas por seus discípulos Karl Vossler e Leo Spitzer. Vossler oferece materiais e orientações a Spitzer para a criação da Estilística literária e da corrente literária psicologizante.

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Leo Spitzer (1887-1960), alemão, reconhecido por seus estudos estilísticos e crítica literária. Dedicou-se a estudar os escritos de Henri Barbusse e a estabelecer relações entre os traços estilísticos e a psicologia do autor. Obras em português: Linguística e história literária (1955) e Três poemas sobre o êxtase (2003).

FIGURA - LEO SPITZER

FONTE: <https://i.warosu.org/data/lit/thumb/0062/52/1426035478278s.jpg>. Acesso em: 13 nov. 2019.

NOTA

A corrente psicologizante analisa os desvios presentes na obra e considera que esses desvios são resultantes do estado emocional do enunciador que se afastam do uso normal da língua. Spitzer é um dos nomes mais importantes dessa corrente e sua obra evidencia que esses desvios são intencionais, ou seja, para expressar seu estado psicológico, o enunciador recorre à língua. As expressões compõem o estilo do autor e revelam uma visão da obra. Essa é a corrente mais importante em vista do caráter influenciador que exerceu e exerce até hoje, mas seu problema está no fato de conferir relevância ao autor e considerar apenas a literatura dotada de expressividade e estilo.

Outra corrente seria a sociologizante, defendida por Auerbach (1972), que aborda o vínculo entre estilo, ideologia e concepção da realidade no qual “[...] a concepção de mundo de uma época, que o autor capta [...] introduz ou elimina elementos da natureza, para expressar a concepção global de homem e realidade” (POSSENTI, 2001, p. 191). Ou seja, personagens, conflitos e cenários são uma representação do contexto da época. O estilo é conferido aos aspectos socioideológicos evocados na obra, mas esse modo de conceber o estilo deriva em estudos muito amplos, deixando de lado a figura do autor e as escolhas realizadas.

A corrente formalista, ligada ao Círculo Linguístico de Moscou e, posteriormente, de Praga, é outra corrente cuja preocupação está na materialidade da obra. Os estudos poéticos estavam próximos dos estudos linguísticos e a concepção de estilo advinha dos desvios, das formas linguísticas pouco usuais

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empregadas para evidenciar sentidos expressivos. A repetição de um fonema, de uma sílaba, gerava uma estratégia estilística, mas essa corrente leva em consideração apenas os aspectos formais da língua, limitando os estudos e excluindo o trabalho do enunciador e os aspectos expressivos, constituintes da linguagem. Como se constroem as análises literárias a partir destas correntes?

Possenti (2001) apresenta alguns fragmentos de um ensaio de Auerbach (1972) no qual se evidenciam marcas do seu trabalho idealista em textos literários. Algumas dessas marcas estão presentes no modo como Auerbach entende estilo e na organização elaborada pelo autor e maneira como interpreta a realidade. O ensaísta deixa de abordar o sentimento e se volta para o real da obra, como as características sociais, históricas, religiosas dos homens, retratadas nas personagens.

[...] o teatro elizabetano oferece um mundo dos homens muito mais múltiplo do que o teatro antigo; a sua disposição estão todos os países e tempos. [Em Shakespeare] a economia de suas peças está inspirada pela concepção da concatenação universal do mundo (POSSENTI, 2001, p. 190-191).

A toda essa multiplicidade de fatores que interferem na ação do texto, é denominado por Auerbach (1972) de “quadro estilístico”, pois “[...] a própria base sobre a qual os homens se movimentam e os acontecimentos se desenvolvem é mais insegura e parece estar agitada por acomodações internas; não há um mundo fixo como pano de fundo” (POSSENTI, 2001, p. 191) que pode ser evidenciada quando Auerbach atrela o teatro ao “mundo dos homens” e à universalidade.

Outra contribuição nessa vertente idealista vem de Vera Lucia Follain

de Figueiredo, ao analisar a obra de Rubem Fonseca sobre o tema violência como algo inerente ao ser humano. Como diz Figueiredo (1994), há um “estilo cinematográfico” na obra do autor que cumpre a função estilística e a autora demonstra isso nesta análise realizada acerca da obra:

O amplo painel sobre a violência em que se constitui a ficção do autor nos coloca em contato com as várias faces do fenômeno, rompendo com a ideia corrente de identificação do comportamento violento como atributo exclusivo dos indivíduos das camadas sociais menos favorecidas. Isso é conseguido não apenas através da composição do enredo de cada texto ou do recorte operado sobre “a matéria prima” oferecida pelo real, mas, principalmente, pela preocupação com aquilo que podemos chamar de o monopólio da palavra. É essa preocupação que nos permite encontrar no conto “Feliz Ano Novo”, por exemplo, um assalto narrado do ponto de vista do próprio assaltante (FIGUEIREDO, 1994, p. 73).

O trabalho de Dâmaso Alonso e Amado Alonso também são significativos para a estilística. A Estilística de Dâmaso é psicologizante e a intuição tem papel relevante, principalmente, na apreensão da essência do poema. Para esse poeta espanhol, é possível compreender uma obra literária a partir da leitura por prazer do leitor, da compreensão do crítico e da intenção de desvendar a obra e seus efeitos sobre o leitor.

UNIDADE 3 | A ESTILÍSTICA: DISCURSO E SUBJETIVIDADE

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Com relação ao trabalho de Amado Alonso, esse é mais amplo, pois vê as duas correntes da Estilística como complementares. Para ele, traços linguísticos e literários devem ser integrados nas análises da obra no intuito de enfatizar o valor estético da obra. Há outros pesquisadores que se dedicam à crítica literária e percebem que a individualidade na pesquisa já não é mais suficiente para a análise de fenômenos tão complexos atrelados à linguagem. Por isso, a necessidade de linguistas e críticos caminharem juntos.

Vamos, agora, discutir a questão do estilo e compreender o quanto essas correntes são significativas para a delimitação do conceito de estilo.

AUTOATIVIDADE

Vamos unir teoria e prática e realizar atividades pertinentes ao assunto estudado. Esta é a primeira de muitas questões que você encontrará ao longo da unidade e que darão a dimensão da proposta aqui estudada.

Olhava mais era para Mãe. Drelina era bonita, a Chica, Tomezinho. Sorriu para Tio Terêz: —“Tio Terêz, o senhor parece com Pai...” Todos choravam. O doutor limpou a goela, disse: —“Não sei, quando eu tiro esses óculos, tão fortes, até meus olhos se enchem d’água...”Miguilim entregou a ele os óculos outra vez. Um soluçozinho veio. Dito e a CucaPingo de Ouro. E o Pai. Sempre alegre, Miguilim... Sempre alegre, Miguilim... Nem sabia o que era alegria e tristeza. Mãe o beijava. A Rosa punha lhe doces de leite nas algibeiras, para a viagem. Papaco o-Paco falava, alto, falava (ROSA, 2001).

FONTE: ROSA, J. G. Campo Geral. In: Manuelzão e Miguelim. 11. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

Como não é mais possível tratar a obra apenas do ponto de vista literário, os fenômenos estilísticos devem ser analisados também sob o ponto de vista linguístico. A respeito da construção do estilo nesse fragmento, analise as sentenças a seguir

I- A escolha das palavras revela as estratégias estilísticas utilizadas pelo autor para emocionar o leitor.

II- O autor consegue separar os aspectos lógico, psicológico e linguístico na construção de um estilo individual.

III- A expressividade e criatividade do texto está relacionada ao estilo e às escolhas realizadas pelo autor no repertório disponível.

IV- A linguagem do texto evidencia as possibilidades oferecidas pela língua e expressa o estilo do autor no enunciado.

TÓPICO 1 | NOTAS SOBRE ESTILÍSTICA E ESTILO

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Assinale a alternativa CORRETA:a) ( ) Somente a sentença I está correta.b) ( ) Somente a sentença II está correta.c) ( ) As sentenças II e III estão corretas.d) ( ) As sentenças I, III e IV estão corretas.

3 CONCEPÇÃO DE ESTILO Temos sinalizado o quanto a Estilística é uma ciência jovem e seu objeto,

métodos e conceito de estilo precisam ainda ser melhor definidos. Abordar a questão do estilo, na literatura ou na linguística, é um desafio, especialmente quando consideramos que muitos estudos têm deixado de lado esse conceito. Nos anos 1990, o estilo retorna à cena das pesquisas, mas está longe de uma definição única, pois não é um conceito puro; é complexo, ambíguo, múltiplo, pois houve um acúmulo de concepções: desvio, ornamento, trabalho, cultura.

Em sua obra, Martins (1989) trata dessa complexidade no tratamento do estilo e reúne as categorias propostas por George Mounin e Nils Erik Enkvist acerca de estilo em três e seis grupos, respectivamente. Vejamos como cada um desses pesquisadores concebe o estilo:

QUADRO 2 – CONCEPÇÕES DE ESTILO

FONTE: Adaptado de Martins (1989)

George Mounin Nils Erik EnkvistEstilo como desvio Estilo como adiçãoEstilo como elaboração Estilo como escolhaEstilo como conotação Estilo como características individuais

Estilo como desvio da normaEstilo como características coletivasEstilo como relações linguísticas

Martins (1989) apresenta algumas definições de estilo e seus autores:

QUADRO 3 – DEFINIÇÕES DE ESTILO

Buffon O estilo é o homem. Dâmaso Alonso Estilo é o que é peculiar e diferencial numa fala.Marouzeau Estilo é a qualidade do enunciado, resultante de uma escolha [...].Jakobson Estilo é expectativa frustrada.

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FONTE: Adaptado de Martins (1989)

Guiraud Estilo é o aspecto do enunciado que resulta de uma escolha dos meios de expressão [...].

Câmara Júnior Estilo é a linguagem que transcende do plano intelectivo para carrear a emoção e a vontade.

Mounan [O estilo] É um fenômeno humano de grande complexidade.

Por essa multiplicidade de definições de estilo, é possível entender o quanto a Estilística é uma disciplina plural e o quanto a definição de estilo não se constitui em uma categoria fechada e que procura se distanciar do grau zero da linguagem, afastado da linguagem viva e literária e que não tem estilo. Para estudar o estilo e definir uma concepção para trabalhar em nossas atividades profissionais, é necessário reconhecer que o falante, a partir de seus objetivos, cria o estilo levando em consideração a língua na qual está inserido.

Elegemos três concepções de estilo – desvio, expressividade e trabalho de escolhas – a fim de delinear suas singularidades e apontar como se comportam discursivamente os recursos linguísticos selecionados pelo enunciador e como as palavras, expressões, adquirem outras funcionalidades e sentidos na enunciação.

3.1 ESTILO COMO DESVIO

Antes de discorrermos acerca do estilo como desvio, é preciso definir o que estendemos como norma. É preciso lembrar que, quando falamos em estilo e desvio, estamos lidando com língua em uso. Definir “norma”, assim como muitos conceitos linguísticos, é um tanto complexo, uma vez que “norma” quase sempre vem acompanhada do qualificador “culta”, “padrão” que implica algo ideal, a ser seguido, contrato linguístico, feixe de normas, e que, aqueles que não comungam de suas regras, cometem erros.

Erros e desvios podem ser tratados da mesma forma? Qual a relação entre erro, desvio e norma? O desvio rompe com a norma ou com o código linguístico? O que determina a norma? Norma e desvio estabelecem uma relação biunívoca com gramática e estilo? Qual a relação entre desvio, escolha e estilo?

Na linguística clássica, o erro está atrelado à gramática, à norma culta, ao falar e escrever corretamente. O erro presente nas variações linguísticas deve ser corrigido, segundo os gramáticos Cunha e Cintra (1985) e Lima (1985), e estão presentes em determinados fenômenos morfossintáticos e de estilo como barbarismos e solecismos, apontados como vícios de linguagem ou transgressão da norma.

TÓPICO 1 | NOTAS SOBRE ESTILÍSTICA E ESTILO

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Barbarismo – vício de linguagem que consiste em erros: na pronúncia (abóboda em vez de abóbada); na grafia (ância em vez de ânsia; na forma gramatical (esplodir em vez de explodir; na significação (retificar “corrigir” com o valor de ratificar “confirmar”). Solecismo – vício de linguagem que consiste em erros sintáticos na concordância (A gente vamos/ a gente foi); regência (Assisti o filme/assisti ao filme); colocação (Não enganei-me/ não me enganei).

FONTE: Adaptado de <https://centrodemidias.am.gov.br/storage/dmdocuments/ 18J5LIP039P2.pdf>. Acesso em: 22 jan. 2020.

NOTA

Para os linguistas Bortoni-Ricardo (2006), Faraco (2008), Neves (2008) e Travaglia (2008), o erro não existe. O que há são variações que precisam ser adequadas a uma situação de interação comunicativa e ao atendimento às normas sociais de uso da língua. Quanto ao desvio, no campo da linguística, embora os linguistas também discutam essa questão, ainda é possível evidenciar uma sinonímia entre erro e desvio ou uma troca da palavra, erro por desvio como uma forma de amenizar o sentido de erro presente entre os gramáticos. Vejamos o exemplo (4) sobre erro e desvio, retirado de Brito (1995, p. 7):

(4) a. Eu prefiro ir ao cinema do que ir à festa. b. Eu prefiro ir ao cinema a ir à festa.

Para Brito (1995), o desvio poderá ser um erro se infringir uma regra invariante. Ou, não ser um erro se implicar uma regra variante. Em (4), não há erro. Então o que distingue um enunciado do outro? Em (4.a) há um desvio, pois, sua construção é uma variante coloquial com relação ao registro culto da língua em (4.b). É no campo da Estilística, principalmente, nos trabalhos de Pierre Guiraud (1970), que vamos encontrar uma discussão mais aprofundada acerca dos desvios linguísticos, quase sempre inconscientes, que correspondem às nuances do sentimento e da ideia.

A tradição psicologizante, proposta por Leo Spitzer, afirma que a cada emoção, afastamento dos hábitos normais da mente, corresponde um afastamento do uso normal da linguagem. E, dessa forma, o espírito do escritor é determinante para a relação entre a expressão verbal e a obra. Assim, o princípio criador está na alma do escritor e esta subjetividade se estende, por meio do texto, ao leitor. Contudo, para ser um desvio, é preciso pensar em vários fatos da língua:

• Não há apenas uma norma, mas várias que dependem dos ambientes socioculturais, ou seja, traços de uma região podem não ser aceitos em outra.

• O desvio só se materializa a partir do registro linguístico como no cordel em que a norma se constitui o desvio. A linguagem dos românticos é desvio em relação aos clássicos.

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• O contexto determina o que pode ou não ser considerado norma e desvio, como no caso do superlativo que será inexpressivo em um ambiente saturado desse recurso.

• O desvio nem sempre carrega expressividade, mas apenas uma possibilidade de escolha de uma palavra dentro da norma.

• A expressividade da língua nem sempre está no desvio, mas no uso, na recriação e, para isso, não é preciso “forçar” a língua.

• O desvio, para ser considerado uma mudança, deve empreender um novo rumo à história, em uma nova forma linguística.

Vamos observar em (5) como o autor José J. Veiga constrói seu texto e como se configura o desvio como estilo.

(5) “De repente os muros, esses muros. Da noite para o dia eles brotaram assim retos, curvos, quebrados, descendo, subindo, dividindo as ruas ao meio conforme o traçado, separando amigos, tapando vistas, escurecendo, abafando. Até hoje não sabemos se eles foram construídos aí mesmo nos lugares ou trazidos de longe já prontos e fincados aí” (VEIGA, 2001, p. 30).

Para compreendermos os desvios do texto de Veiga, vamos situá-lo no gênero fantástico, alicerçado entre a realidade e o imaginário. Como foi possível enquadrar a obra desse autor nessa tendência? Quais são os desvios que pressupõem a singularidade do autor? Se pensarmos em estilo como desvio, vamos perceber que o texto do autor se constrói a partir de caraterísticas singulares em que o narrador se afasta da realidade, mas essa realidade só pode ser percebida pelo leitor em vista da elaboração artística, aos elementos que fogem à norma ou que carregam uma expressividade que se faz presente no uso.

Esses desvios se configuram em construções lexicais que se aproximam do insólito e se afastam do uso comum da linguagem. Observemos as escolhas lexicais realizadas por Veiga:

• [Esses muros] Da noite para o dia eles brotaram.• Separando amigos.• Tapando vistas, escurecendo, abafando.• Construídos aí [...] ou trazidos de longe já prontos e fincados aí.

Essas expressões evidenciam o estilo do autor, uma vez que a expressividade presente nesse fragmento se traduz em criatividade como em “brotaram” quando faz referência ao fato de os muros surgiram de repente, “da noite para o dia”. O uso de “brotar” no lugar de “erguer, construir” evidencia-se como um desvio que provoca efeitos no leitor que transcendem o uso comum dessa palavra. Além disso, o uso de “separar, tapar, escurecer, abafar” aponta para o extraordinário, pois são ações propostas aos muros que parecem ter estado sempre “prontos e fincados aí” ou terem sido “trazidos de longe”.

TÓPICO 1 | NOTAS SOBRE ESTILÍSTICA E ESTILO

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Os traços estilísticos do autor se constroem entre o real e o imaginário, ultrapassam os sentidos propostos pela norma e os efeitos sobre o leitor que precisa intuir acerca da ação desviante proposta no texto. Portanto, conceber o estilo como desvio pressupõe uma norma e um afastamento do uso proposto para esta. Não se constituem erros, mas em desvios utilizados pelo enunciador para realçar aspectos criativos da linguagem.

Vamos tratar dos desvios estilísticos quando abordarmos figuras retóricas e evidenciarmos que o desvio não é apenas mais uma figura de nome estranho, mas se configura em um potencial expressivo, uma estratégia argumentativa que todos recorrem na busca da persuasão, convencimento, pedagogia e liberdade.

AUTOATIVIDADE

Vamos fazer mais uma parada nesse assunto e realizar uma reflexão sobre desvios linguísticos que dão a dimensão da proposta aqui estudada. Observe os efeitos de sentido desses clichês, recursos considerados desvios com relação à norma.

Agora é sua vez! Pesquise sobre outros clichês do nosso cotidiano para compreender os efeitos de sentidos em tais desvios estilísticos.

“comer o pão que o diabo amassou” passar por grande sofrimento, privações.“meter o rabo entre as pernas” ficar calado, amedrontado, culpado.“estar com a faca e o queijo na mão” impor a vontade, ter poder.

3.2 ESTILO COMO EXPRESSIVIDADE

Se a concepção de estilo como desvio se faz a partir da relação com a língua no seu grau zero, cujos enunciados são estilisticamente neutros e sem expressividade, vamos abordar agora a língua como um campo de fatos expressivos, uma vez que o desvio ou suposto erro, muitas vezes, é apenas mais uma variante linguística com efeitos de sentido específicos.

Esses efeitos estão nas estratégias expressivas da linguagem presentes nos enunciados e que definirão o estilo por meio do uso da língua. Bally (1951 apud POSSENTI, 2001) afirma que há duas possibilidades de enfatizar o caráter expressivo da língua: pela comparação entre línguas ou pela seleção de palavras que sensibilizam os falantes e ouvintes de uma língua. Assim, o estilo está relacionado à expressividade do fato linguístico atrelado a uma emoção. Ou seja, na capacidade de persuadir, na força argumentativa, na capacidade apelativa da linguagem.

UNIDADE 3 | A ESTILÍSTICA: DISCURSO E SUBJETIVIDADE

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Assim, o estilo está presente quando é possível separar os elementos afetivos da linguagem e atribuir a eles um lugar no sistema expressivo da língua. Em outras palavras, para que os efeitos estilísticos se materializem, é preciso provocar uma emoção e evocar uma palavra que provoque tal emoção. Algumas palavras parecem ser mais expressivas que outras e, por isso, os sinônimos de um mesmo referente não possuem o mesmo valor emotivo.

Vejamos as enunciações acerca de uma demissão em (6) <http://twixar.me/b1gT>.

6.a. “Não sei como esse escritório funcionaria sem você! Mas a partir de segunda-feira, eu vou descobrir”, conta Tracey Bryan.

6.b. "Eu tive que dar um tiro em outro refém hoje. O resto da equipe estava começando a ficar relaxada", relata Richard Brasser.

6.c. "Nós decidimos que seu perfil e seus talentos são ideais para o setor de freelancers", conta John Bagnall.

Esses enunciados têm grande expressividade, mas estão associados a um estado emocional que, com certeza, não desperta a criatividade dos chefes. Para quem está sendo demitido, essa expressividade se transforma em ironia, sarcasmo e só produz efeitos neste contexto. Por exemplo, “vou descobrir (6.a); “tiro em outro refém” (6.b); “setor de freelancers” (6.c) são expressões que carregam a expressividade pretendida apenas neste contexto.

Todavia, a expressividade pode estar em uma palavra bem banal, enunciada de forma simples, clara e eficaz em determinado contexto. Monteiro (2009) traz um exemplo bem ilustrativo de Gilberto Freire que elegeu a palavra “molambo” em lugar de “farrapo” em seu texto. Isso demonstra que a escolha de uma palavra por outra é subjetiva e, no caso de “molambo”, a expressão evidenciava uma aura afetiva para o escritor. É o que podemos perceber nestes outros enunciados em (7):

(7) a. [...] na entrada do arraial, para não ficar feio eu, como ajudante do senhor, o

povo me ver amontado neste burro esmoralizado… (ROSA, 2019. p. 39). b. Eis-me prostrado a vossos peses... (ANDRADE, 1976. p. 3). c. Lóri: uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de (LISPECTOR,

1980. p. 25).

Em (7.a), Guimarães Rosa faz uso da expressão “burro esmoralizado”. A palavra “desmoralizado” perde o fonema “d” para evidenciar sentidos depreciativos e vincular a esmola, sugerindo que o animal é imprestável. Em (7.b), Drummond utiliza a palavra “peses” não por desconhecer a flexão da norma culta, mas pela intenção expressiva, por uma estratégia estilística. Clarice Lispector, em (7.c), ao trazer a expressão “apesar de” para o final da frase, desconstrói a sintaxe proposta na gramática tradicional a fim de alcançar maior expressividade e ganhar riqueza no arranjo dos termos.

TÓPICO 1 | NOTAS SOBRE ESTILÍSTICA E ESTILO

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No próximo subtópico, vamos tratar do estilo como trabalho que vai se distinguir do estilo como expressividade. Embora estejamos trabalhando com a linguagem tanto no desvio quanto na expressividade, é na concepção de estilo como trabalho que a linguagem se oferece como uma prática de múltiplas escolhas.

3.3 ESTILO COMO TRABALHO

Embora tenhamos várias abordagens sobre estilo, vamos nos ater em três delas. Estilo como desvio e estilo como expressividade já abordadas anteriormente e uma terceira na qual a concepção de estilo é reconhecida como trabalho, baseado na noção de escolha e de intenção consciente da escolha dos recursos expressivos. Como assevera Possenti (2007, p. 20), “estilo se aprende”. Como? O que seriam estas escolhas? Como estas escolhas se efetivam como um trabalho do autor? Qualquer um pode ter estilo?

Para delinear um caminho para esses questionamentos, é preciso compreender como se dá o trabalho de escolha e como se efetiva a noção de intenção. Com base em Possenti (2001), a escolha se constitui no traço constitutivo do estilo e, portanto, a individuação se dá a partir da multiplicidade de estruturas possíveis para representar um fenômeno. A linguagem disponibiliza possibilidades de escolha ao enunciador e este deve decidir qual delas usar. Ao efetivar a escolha, o enunciador toma posição e realiza um trabalho no qual é possível verificar as etapas constitutivas do seu estilo e a escolha entre uma forma e outra.

É por isso que a forma deve ser considerada muito significativa nessa concepção de estilo, pois é por meio da multiplicidade de recursos expressivos disponíveis, que o enunciador se singulariza e constrói uma maneira de se distinguir e criar uma identidade. Forma e conteúdo são inseparáveis, são complementares, embora a forma suscite vários efeitos de sentido conforme o contexto.

Forma – é o veículo linguístico, realizado sonoramente, que veicula ou provoca os efeitos de sentido. Materialidade significativa e constitutiva do estilo presente na fonologia, morfologia, sintaxe e na organização do texto.

Conteúdo – qualquer efeito de sentido que a forma, utilizada contextualmente, é capaz de produzir, seja uma informação, um ato ilocucional, perlocucional, inferência, enfim, todos os elementos recobertos pelas diversas teorias da significação (Adaptado de POSSENTI, 2001, p. 158).

NOTA

UNIDADE 3 | A ESTILÍSTICA: DISCURSO E SUBJETIVIDADE

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A construção do estilo depende, então, das escolhas que vão ser relacionadas às intenções do enunciador em atingir determinado efeito de sentido e operar sobre a realidade. As escolhas são frutos desse trabalho, então,

[...] se o locutor busca, dentre os possíveis, um dos efeitos que quer produzir em detrimento dos outros, terá que escolher dentre os recursos disponíveis, terá que “trabalhar” a língua para obter o efeito que intenta. E nisto reside o estilo. No como o locutor constitui seu enunciado para obter o efeito que quer obter (POSSENTI, 2001, p. 215, grifo do autor)

O enfoque de Possenti é o estilo como trabalho das escolhas linguísticas realizadas pelo autor e é nesse ponto que entra o repertório. Essa noção de repertório implica exatamente as escolhas, ou seja, temos a nossa disposição um conhecimento linguístico e, quando produzimos um enunciado, dentro das possibilidades que nos são dadas, podemos escolher a forma mais adequada que produzirá determinado conteúdo ou efeito. O estilo se faz a partir dessas escolhas, das finalidades, das intenções do autor, dos efeitos do discurso.

Nunca temos um texto igual ao outro, pois as possibilidades dadas ao falante são muitas. Em vista disso, ele é “[...] capaz de variar não só segundo o contexto, o que é relevante, mas segundo seus objetivos, embora não necessariamente esteja consciente desse fato” (POSSENTI, 2001, p. 259). Não é só isso. É fundamental, também, quem escolhe e quem realiza essas escolhas. Se a multiplicidade do repertório é condição do estilo, os fatos do estilo não resultam de desvios ou da expressividade da língua, mas de um trabalho com as variações da língua.

Analisemos a notícia em (8), publicada por quatro jornais on-line sobre o vulcão na Nova Zelândia, no dia 10 de dezembro de 2019.

(8) a. Número de mortos em erupção de vulcão na Nova Zelândia sobe para seis (G1. 2019.< http://twixar.me/g3gT>. Acesso em: 22 jan. 2020).

b. Vulcão surpreende turistas e mata 5 na Nova Zelândia (FOLHA. 2019. <http://twixar.me/w3gT>. Acesso em: 22 jan. 2020).

c. Sobe para seis o número de mortos na erupção de vulcão na Nova Zelândia (R7. 2019. http://twixar.me/J3gT>. Acesso em: 22 jan. 2020).

d. Erupção de vulcão faz cinco mortos na Nova Zelândia (CORREIO DA MANHÃ. 2019. <http://twixar.me/y3gT>. Acesso em: 22 jan. 2020).

A informação semântica produzida pelo jornal em (8.a) sinaliza para a ênfase dada à expressão “número de mortos”, mas essa ideia só é completada ao final da manchete “sobe para seis”. O leitor precisa ler todo o enunciado para obter a informação completa. Esse enunciado é expresso de outras maneiras, a partir das escolhas realizadas pelo jornal. Vejamos a manchete em (8.b), em que a ênfase é para o agente, o “vulcão”, e a informação dos que foram atingidos é deixada em segundo plano. Em (8.c), a informação é o inverso de (8.a) e o destaque é para o aumento de pessoas atingidas pela erupção na expressão “sobe”. Em (8.d), a “erupção”, ou seja, o produto do fato em si ganha destaque pelo jornal. Resumindo as escolhas realizadas pelos jornais.

TÓPICO 1 | NOTAS SOBRE ESTILÍSTICA E ESTILO

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QUADRO 4 – ESCOLHAS REALIZADAS PELOS JORNAIS

FONTE: A autora

G1 Número de mortos erupção de vulcão Nova Zelândia sobe para seisFolha vulcão turistas Nova Zelândia mata 5R7 número de mortos erupção de vulcão Nova Zelândia sobe para seisCorreio erupção de vulcão Nova Zelândia faz cinco mortos

As escolhas realizadas pelos autores em seus jornais apontam para os diferentes efeitos de sentido, as possibilidades dadas pelo repertório e os recursos expressivos que manifestam o estilo de cada um. As escolhas não são aleatórias, mas fruto de um trabalho do autor sobre a língua que não é homogênea. Os recursos gramaticais dos quais se valem os autores podem ser um tanto rígidos, mas isso não impede seu caráter estilístico como no uso dos verbos “sobe”, “mata” e “faz”. Esse repertório variado significa um avanço para as concepções de estilo, uma vez que os recursos utilizados significam que:

• Os mesmos recursos expressivos podem ser utilizados de acordo com estratégias distintas para expressar sentidos diferentes como em (9), no poema Moda da menina trombuda (MEIRELES, 1987, p. 724).

(9) E a moda da menina muda da menina trombuda que muda de modos e dá medo. [...]

(A menina amada!)

A palavra “muda” é utilizada duas vezes nesse poema e evidencia sentidos distintos. A “menina muda” aponta para o sentido de “calada”, de alguém que está “brava” e não quer falar. Já, em “muda de modos”, aponta para efeitos de “transformação”. Então, o mesmo recurso expressivo produz sentidos diferentes.

• Um determinado sentido pode ser expresso por diferentes recursos expressivos, como a notícia sobre o ENEM em (10).

(10) a. Enem 2019 para pessoas “privadas de liberdade” será aplicado nesta terça e quarta (G1. 2019. <http://twixar.me/83gT>. Acesso em: 22 jan. 2020).

b. Enem 2019: mais de 1,4 mil “presos” no DF fazem provas nesta terça e quarta (G1. 2019. <http://twixar.me/B3gT>. Acesso em: 22 jan. 2020).

c. Enem: “Detentos” fazem provas do Enem nesta terça e quarta (UOL. 2019. <http://twixar.me/R3gT>. Acesso em: 22 jan. 2020).

UNIDADE 3 | A ESTILÍSTICA: DISCURSO E SUBJETIVIDADE

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São três manchetes sobre o mesmo assunto, mas os jornais selecionam de seu repertório uma palavra que evidencie os sentidos propostos para seu público e contexto. Não vamos abordar a questão jurídica dos termos, mas demonstrar seu uso em jornais que circulam na internet e todos têm acesso. O termo pessoas “privadas de liberdade” é utilizado pelo MEC e a manchete (10.a) faz uso dos mesmos termos em referência ao exame, já as manchetes (10.b) e (10.c) se utilizam das expressões distintas, “presos” e “detentos”, respectivamente, para evidenciar as marcas estilísticas e o mesmo sentido entre as expressões.

• Os elementos fônicos têm a função gramatical distintiva e podem assumir uma função poética como em (11), no poema Sonhos de menina (MEIRELES, 1985, p. 730).

(11) [...] Sonho risonho: O vento sozinho no seu carrinho. De que tamanho seria o rebanho? [...]

O poema cria um jogo de natureza sonora que provoca no leitor sensações agradáveis e sugere fantasias e devaneios. Esse jogo se faz a partir da ressonância do fonema /η/ representado pelas letras “nh”. É nesse jogo que surge a expressividade das palavras e que demonstra o trabalho da poeta ao escolher as palavras que vão demonstrar o potencial poético dos sons.

• Os mecanismos morfológicos podem produzir itens lexicais não usuais, mas podem ser facilmente identificáveis, conforme o exemplo (12), fragmento da obra Grande Sertão: Veredas (ROSA, 1985, p. 291).

(12) “Viver é muito perigoso; e não é não. Nem sei explicar estas coisas. Um sentir é o do sentente, mas outro é o do sentidor”.

As escolhas realizadas pelo escritor não são usuais em nossa língua, mas produzem efeitos que não precisam ser explicados, mas sentidos, pois a expressividade das palavras pode ser identificada como aqueles que vivem essa vida que, às vezes, é perigosa e outras não.

• Algumas regras da sintaxe podem receber um novo papel cuja função não é prevista, mas pode ser cumprida em (13).

(13) a. Soube que você trabalha na mesma sala que o Paulo. b. Não, o Paulo é que trabalha na mesma sala que eu.

TÓPICO 1 | NOTAS SOBRE ESTILÍSTICA E ESTILO

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A inversão dos termos “você trabalha” em (13.a) e “Paulo é que trabalha” em (13.b), torna-se irrelevante, mas não com relação aos efeitos produzidos. Evidencia-se que quem fala em (13.b) assume uma posição superior a Paulo, é mais antigo na sala ou é mais velho. As escolhas realizadas nessa inversão demonstram o trabalho realizado pelos enunciadores para que os sentidos fossem evidenciados.

Vejamos como o trabalho de escolhas lexicais é construído nesta reportagem e, ao mesmo tempo, como essas escolhas passam a ser um jogo de formas que não se repetem, mas são condicionadas ao contexto. Em (14), temos uma notícia publicada em 2018 acerca do prêmio recebido por uma bióloga e que mereceu destaque na mídia. A notícia não será apresentada na íntegra e as palavras a serem analisadas estão em destaque no texto por meio de aspas.

(14) “Pesquisadora” de Brasília ganha prêmio de melhor tese de biologia do Reino Unido. “Bióloga” estudou evolução de espécies do Cerrado. Prêmio é dado por instituição onde Charles Darwin apresentou a teoria da evolução. [...] Pegamos espécies de vários países da América do Sul, América Central e ilhas do Pacífico. Coletamos as amostras das plantas, sequenciamos e, comparando o material genético delas, pudemos reconstruir o parentesco e história evolutiva, detalha a “pesquisadora”. [...] Para “Thaís”, o prêmio serve como incentivo à pesquisa e à ciência no Brasil, considerada por ela "ainda com pouco investimento". A “bióloga” destaca que, apesar de viverem em meio ao cerrado do Distrito Federal, por exemplo, as espécies desse bioma ainda são pouco exploradas (MARQUES, 2018, s.p.).

A autora da notícia utiliza várias formas para se referir à pesquisadora, mas não é apenas uma questão de sinonímia. A autora emprega a palavra “pesquisadora” quando se refere ao prêmio de “melhor tese”, confirmando a relação pesquisa/tese, e quando dá voz a ela, demonstrando sua autoridade no assunto. Ao utilizar a palavra “bióloga”, a autora dá voz, indiretamente, à profissão em “estudou evolução de espécies do Cerrado” e “as espécies desse bioma ainda são pouco exploradas”, opinião compartilhada por outros biólogos. Refere-se à “Thaís” quando ela opina sobre o “pouco investimento”, ou seja, a autora do texto não se compromete com esta opinião.

Assim, nessa concepção, Possenti (2001) aponta que o estilo é uma relação entre forma e conteúdo (forma e sentido) e que estilo não está associado à literatura, nem a desvio ou um jeito pessoal. Estilo está relacionado às escolhas que estão à disposição do enunciador por meio dos múltiplos recursos dispostos pela língua. O estilo não evidencia a particularidade nem a universalidade. O estilo se faz a partir do particular que caminha com relação ao universal, remetendo a uma singularidade. Ou seja, o estilo é um jogo de sons, ritmos, sutileza, palavras, pluralidade, heterogeneidade, contexto e escolhas.

UNIDADE 3 | A ESTILÍSTICA: DISCURSO E SUBJETIVIDADE

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AUTOATIVIDADE

Mais uma parada para realizarmos atividades pertinentes ao assunto estudado. Esta é mais uma questão que dá a dimensão da proposta aqui estudada.

As notícias a seguir referem-se ao mesmo assunto: pedido de ajuda de venezuelanos. No entanto, o trabalho realizado pelos jornais evidencia sentidos distintos que implica no estilo proporcionado pelos recursos selecionados e, além de se efetivar como uma estratégia argumentativa.

a. Novas famílias de venezuelanos voltaram a pedir ajuda <http://twixar.me/hXyT>.

b. Refugiados venezuelanos pedem dinheiro em semáforo <http://twixar.me/gXyT>.

c. Indígenas venezuelanos pedem ajuda nas ruas do Recife <http://twixar.me/wXyT>.

Sua tarefa: evidenciar a construção do estilo a partir dos sentidos produzidos pela referência aos venezuelanos em cada matéria e apontar a contribuição dessas escolhas na produção do estilo e posicionamento de cada jornal.

4 ESTILO E RETÓRICAJá discorremos acerca da retórica quando situamos a Estilística em seu

panorama evolutivo. Vamos, agora, demonstrar que a retórica não é uma disciplina confinada à antiguidade e nem a termos como, “epanortose, hipotipose, tapinose” que não cabem mais em nosso vocabulário. A retórica que tratava o discurso apenas como algo pomposo e formal dá lugar às retóricas, pois não é mais possível trabalhar o discurso apenas de uma perspectiva e de um reducionismo teórico.

A retórica na contemporaneidade ratifica sua antecessora clássica em relação ao estudo da arte da persuasão por meio do discurso, compreendido por toda produção verbal, escrita ou oral. É uma disciplina que se propõe a colocar em prática ideias de que os signos precisam ser estudados no seio da vida social e de que o princípio de argumentatividade se faz presente nas mais variadas atividades discursivas.

TÓPICO 1 | NOTAS SOBRE ESTILÍSTICA E ESTILO

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Epanortose – correção retórica que produz efeito de sinceridade.Hipotipose – quadro retórico cujo papel é, ao mesmo tempo, poético e argumentativo.Tapinose – depreciação retórica

FONTE: REBOUL, O. Introdução à retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

NOTA

Essas retóricas ou neo-retóricas, como são denominadas, surgem a partir dos anos 1960 do século XX com os estudos argumentativos de Chaim Perelman e seus seguidores, que vêm dar uma nova roupagem ao trabalho desenvolvido pelos retóricos clássicos desde Aristóteles. Guiraud (1970) caracteriza esse trabalho com uma imagem positiva que será retomada e renovada, longe de ideias cristalizadas acerca da retórica.

De todas as disciplinas antigas, é a que melhor merece o nome de ciência, pois a amplidão das observações, a sutileza da análise, a precisão das definições, o rigor das classificações constitui um estudo sistemático dos recursos da linguagem, cujo equivalente não se encontra em qualquer dos outros conhecimentos daquela época (GUIRAUD, 1970, p. 35).

A desvinculação da noção de verdade, presente na época, dá lugar à persuasão e a uma concepção de discurso que torna possível o convencer e agir sobre o interlocutor por meio da palavra que está intimamente atrelada à disposição do auditório e a sua reação. Em outras palavras, o discurso persuasivo assume certas características que vale conhecê-las para compreendermos sua relação com o estilo, com as marcas subjetivas presentes no enunciado, com o trabalho de escolhas realizado pelo enunciador. Qual a relação da retórica com a estilística? Estilo e argumentação se completam ou se contrapõem?

Na Antiguidade grega, falar em estilo implicava, inicialmente, recorrer à prosa oratória e distinguir a poesia, produzida com linguagem arcaizante, da prosa cotidiana, ancorada em uma linguagem vulgar. Outra ação era selecionar palavras e construções sintáticas que produzissem um discurso com correção e beleza. Para isso, evitavam arcaísmos e neologismos e faziam uso da metáfora e outras figuras retóricas de ritmos flexíveis que propiciassem sentidos singulares.

É possível perceber que não há muita mudança do mundo grego para o contemporâneo, pois, ao utilizarmos um gênero acadêmico, por exemplo, selecionamos as “melhores” palavras do nosso repertório para convencermos nosso interlocutor de nossas ideias, daquilo que acreditamos, da nossa tese. Assim, o estilo é construído a partir dessa seleção cuja finalidade é persuadir racional e afetivamente o ouvinte. A persuasão do outro é um processo argumentativo.

UNIDADE 3 | A ESTILÍSTICA: DISCURSO E SUBJETIVIDADE

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Daí a defesa de que não há um discurso neutro e a linguagem não é só um instrumento de comunicação, mas também, um instrumento de ação sobre o outro, uma estratégia argumentativa. Em vista disso, quando o falante/orador/enunciador faz uso das figuras retóricas, elas não têm apenas efeito persuasivo, mas também argumentativo para convencer o outro. A obra do Padre Antônio Vieira apresenta traços estilísticos e argumentativos que exemplificam esse processo de argumentação na linguagem. Analisemos algumas palavras em (15).

(15) “O primeiro remédio é o tempo. Tudo cura o tempo, tudo faz esquecer, tudo

gasta, tudo digere, tudo acaba”. “Tudo acaba a morte, tudo se acaba com a morte, até a mesma morte”. “O mesmo amar é causa de não amar e o ter amado muito, de amar menos”

(VIEIRA, s/d, p. 265).

Evidenciam-se a repetição na obra do enunciador que produz um encadeamento de ideias, marcando o ritmo expressional do texto e a força da homofonia nas palavras “tudo”, “morte” e “amar”. Essa repetição compreende um jogo de palavras responsável pelo sentido pretendido por Vieira de reforçar uma ideia. A figura de repetição, também conhecida como anáfora, aumenta a expressividade dos enunciados, uma vez que enfatiza os termos repetidos na relação com o outro, ou seja, no convencimento, na persuasão.

Essas marcas no texto não fogem à norma, mas assumem, a partir da repetição das palavras, “tudo”, “morte” e “amar”, uma força argumentativa que se efetiva no repertório utilizado pelo enunciador. Essa figura retórica evidencia uma alteração do sentido dessas palavras que sozinhas não conseguiriam tal carga semântica, pragmática e estilística. O enunciador, neste caso, utiliza-se do plano de conteúdo e do plano de expressão, pois o seu objetivo não é apenas que o seu auditório entenda a mensagem, mas também a significação do texto como um todo.

A questão nessa figura retórica não está apenas em repetir palavras que poderiam ser substituídas por um sinônimo. O que cria o estilo do autor é o modo como é utilizada a repetição ou qualquer outra figura de retórica que modifica o uso normal e lógico da língua. Ou seja, o estilo do autor é constituído pelas escolhas dos meios expressivos e determinados pela intenção de quem fala e escreve, nesse caso, do Padre Antônio Vieira.

Trazer da retórica clássica em que temos o orador e o auditório para a contemporânea na figura do autor e leitor não é uma tarefa difícil. Tanto em uma como na outra temos uma ação da linguagem concretizada na enunciação, lugar de produção do estilo em que conveniência, clareza, vivacidade e brevidade são procedimentos presentes no enunciado. Nessa relação autor/leitor evidencia-se uma relação pragmática, pois desde a Antiguidade já havia essa relação entre linguagem e os efeitos de sentido sobre o auditório.

TÓPICO 1 | NOTAS SOBRE ESTILÍSTICA E ESTILO

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QUADRO 5 – REGRAS DE COMPOSIÇÃO DO ESTILO

FONTE: Adaptado de Reboul (2004)

1. Conveniência Adaptar o estilo ao assunto (gênero) para comover, informar, explicar e agradar 2. Clareza Adaptar o estilo ao público, pois o que é claro para um grupo não o é para outro.

3. Vivacidade Observar regras de estilo como a seleção, ritmo, brevidade de palavras a fim de o orador parecer dinâmico, engraçado, imprevisto.

4. Brevidade Evitar a redundância, fazer-se ver no discurso como autor.

5 FIGURAS RETÓRICASAs figuras sempre estiveram presentes no campo da retórica e tiveram

uma relevância muito grande a ponto de ser estudada de modo exclusivo. Isso levou os estudiosos a se distanciarem do campo discursivo e a se voltarem apenas para o texto literário. Assim, era preciso retomar os estudos que Aristóteles desenvolveu no campo da retórica e da poética quando tratava da metáfora.

A metáfora era abordada como um processo de enriquecimento, mas os efeitos de sentido estavam atrelados à função, ao seu uso no texto persuasivo (atualmente, publicitário, jornalístico, político) e literário. Na Poética, sua função era estética, de ornamentação; na retórica, sua função era argumentativa. É essa função argumentativa que a Nova Retórica atualiza e define como uma prática cujo objetivo é conseguir a adesão e a atenção do auditório.

Em vista disso, as figuras de retórica passam a desempenhar um papel argumentativo e persuasivo utilizado pelo enunciador para exprimir suas ideias. É o poder argumentativo, de convencimento que produzirá certos efeitos discursivos, semânticos e pragmáticos e acarretará mudanças no outro. Um aspecto importante está no fato de como as figuras se fazem presentes no texto para compor a argumentação e o estilo do autor.

A presença das figuras pode se dar no enunciado quando as identificamos em suas singularidades fônicas, morfológicas, sintáticas; e na enunciação quando temos uma relação autor e seu auditório e a manifestação da subjetividade. As figuras, então, são modos de o autor expressar-se e devem ser analisadas do ponto de vista do trabalho realizado sobre a língua e a necessidade de argumentação.

Para Reboul (2004, p. 66), “[...] a figura eficaz pode ser definida como algo que se desvia da expressão banal, mais precisamente por ser mais rica, mais expressiva, mais eloquente, mais adaptada, numa palavra mais justa do que tudo que a poderia substituir”. Vejamos esta campanha, na Figura 1, da FIESC ao distribuir este outdoor no estado para levar informação a trabalhadores e comunidade sobre a dengue e a zika.

UNIDADE 3 | A ESTILÍSTICA: DISCURSO E SUBJETIVIDADE

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FIGURA 1 – CAMPANHA FIESC

FONTE: <http://twixar.me/sTgT>. Acesso em: 20 nov. 2019.

Já discutimos Estilo como uma estratégia de desvio com relação à norma. Agora, a Figura 1, será utilizada para descontruir a ideia de que uma figura de retórica se faz a partir do erro construído com relação ao normativo da língua, de uma variação ornamental ou, ainda, de uma sinonímia. O estilo deve ser visto como individuação, como uma atividade de escolha e pelo trabalho realizado com a língua. É isso que vamos observar na composição da campanha publicitária e nas estratégias estilísticas realizadas pelo enunciador com a linguagem.

É essa concepção de estilo como trabalho que Compagnon (1999, p. 189) discute em sua obra ao afirmar que “[...] há maneiras bastante diferentes de dizer mais ou menos a mesma coisa”. Em outros termos, não há necessidade de fazermos uso de palavras sinônimas, que não são perfeitas e nem exatas. Foi o que a FIESC fez em seu texto (Figura 1) ao dizer o mesmo, mas de uma outra maneira.

O discurso de prevenção no qual são listados uma série de cuidados em uma linguagem sem ornamentos para que possa ser compreendida por todos, como em “Guarde as garrafas sempre com a ponta para baixo” ou “Mantenha bem tampados tonéis e barris de água” é utilizada pela FIESC de forma criativa e argumentativa ao produzir o enunciado “é só virar” ao contrário e que se completa com a imagem dos vasos, também, virados.

Discurso é definido como “[...] efeito de sentido entre interlocutores” (PÊCHEUX, 1990, p. 82), é uma prática de linguagem, uma construção histórico-social.

NOTA

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Nessa relação do linguístico com o imagético constrói-se a enunciação que se instaura no outdoor, suscitando efeitos de convencimento no leitor. Não há referência à palavra “vasos”, mas o uso da elipse não afeta o sentido. As escolhas realizadas pelo enunciador constituem o seu estilo e elas não foram feitas aleatoriamente, mas de forma consciente a fim de obter o efeito que interessa, alertar a comunidade acerca do combate ao mosquito da dengue e do zika vírus de forma expressiva.

O que é uma elipse? Qual o seu poder de argumentação? Como se produz a função argumentativa nas figuras de retórica? Qual a relação das figuras com o discurso? Como categorizá-las?

Para Reboul (2004, p. 113), uma figura é um [...] recurso de estilo que permite expressar-se de modo simultaneamente livre e codificado”. Livre porque o autor não se vê na obrigação de utilizar uma figura para comunicar-se, e codificado porque as figuras possuem uma estrutura manifesta, repetível, transmissível que objetiva se adequar ao enunciado e imprimir uma força estilística à enunciação. Para Fiorin (2014, p. 28), “[...] a figura é um desvio, que incide sobre a palavra, a frase ou o discurso. Além disso, é uma construção livre, que está no lugar de outra”.

Para constituir-se como figura, a palavra ou expressão deve desempenhar um papel persuasivo e argumentativo no diálogo, ou seja, o autor tenta ganhar a adesão de sua audiência utilizando a linguagem de uma forma inusitada para seu interlocutor. Para isso, o autor faz uso de técnicas discursivas, como as figuras, para provocar a sua audiência a comungar de sua tese. Ao selecionar um repertório, o autor recorre a recursos expressivos que podem ser mobilizados de acordo com estratégias diferentes para expressar pensamentos iguais.

As figuras estão presentes no campo da retórica em um número considerável, chegando ao exagero e, conforme Monteiro (2009), é quase impossível gravar a nomenclatura e função de cada uma delas. Por exemplo, a figura de repetição poderia ser designada como “[...] anáfora, epístrofe, diácope, epizeuxe, anadilose, homoptoto, epanáfora, epanalepse, epanadiplose, epanástrofe, epânodo, diáfora, mesoteleuto, poliptoto etc., conforme a posição ou a forma em que aparece a palavra repetida” (MONTEIRO, 2009, p. 59-60). Diversos autores tentaram categorizar as figuras de retórica. Dentre eles, destacamos:

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QUADRO 6 – CATEGORIZAÇÃO DAS FIGURAS RETÓRICAS

FONTE: A autora

Fontainer (1968) Figuras de significação, expressão, dicção, construção, elocução, estilo, pensamento.

Lausberg (1982) Metaplasmos (figuras formais), metataxes (figuras de sintaxe), metassememas (figuras de semântica), metalogismos (figuras de pensamento).

Perelman (1997) Figuras de presença, seleção e comunhão.Reboul (2004) Figuras de palavras, significação, construção e pensamento

Essa diversidade na categorização das figuras se constitui em um dos fatores para a valorização dos estudos acerca das figuras e uma volta ao mundo grego aristotélico. Nessa diversidade, o que são as figuras de argumentação? E as de estilo e de linguagem? São diferentes teoricamente? Vamos observar algumas singularidades em relação às figuras retóricas.

• Figuras de linguagem: são definidas apenas no enunciado, independem da

enunciação, ou seja, sem a observância dos efeitos de sentido produzidos na relação autor/interlocutor. Conhecidas, também, por figuras de palavras ou tropos.

• Figuras de estilo: são definidas, geralmente, como desvios da linguagem. Vistas como ornamento no texto e o foco para o plano da expressão.

• Figuras de argumentação e retórica: são definidas como dialógicas, sociais produzidas no discurso persuasivo e interferem no sentido global do texto. Também definidas como figuras de pensamento.

Para uma melhor compreensão das figuras retóricas, vamos tomar a categorização propostas por Reboul (2004, p. 114-115) assim definidas:

• Figuras de palavras, como o trocadilho, a rima, que dizem respeito à matéria sonora do discurso.

• Figuras de sentido, como as metáforas, que dizem respeito à significação das palavras ou dos grupos de palavras.

• Figuras de construção, como a elipse ou a antítese, que dizem respeito à estrutura da frase, por vezes do discurso.

• Figuras de pensamento, como a alegoria, a ironia, que dizem respeito à relação do discurso com o seu sujeito (o orador) ou com seu objeto.

Vejamos agora o poder argumentativo dessas figuras e exemplos ilustrativos que constituem estratégias estilísticas construídas discursivamente.

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5.1 FIGURAS DE PALAVRAS (SOM)

Compreendem as figuras de ritmo e figuras de som. Entre os filósofos, essas figuras desempenhavam um valor argumentativo com relação ao ritmo das frases que era compreendido como uma música do discurso e facilitava a retenção do conteúdo do texto. Fonemas, sílabas e frases marcam o ritmo e a força persuasiva das figuras.

Fonema: são os sons distintivos em uma língua. Representam as menores unidades sonoras que se articulam para formar as palavras. A troca de um fonema produz outra palavra, como o fonema /l/ em /lata/ que, ao trocá-lo por /p/ temos /pata/.

Os fonemas constituem as sílabas e podem ser classificados em: os fonemas compõem as sílabas e podem ser vogais – /a/, /e/, /i/ etc. – ou consonantes – /p/, /f/, /s/, /∫/ etc. Como se pode notar pelos exemplos dados, os fonemas são transcritos entre barras. Também, eles são representados com uma notação específica, o Alfabeto Internacional de Fonética.

IMPORTANTE

Vogais /a/ /ã/ /e/ /o/ /u/... bala, campo, belo, saudade...

Consoantes /b/ /c/ /d/ /k/ /m/... Bola, cola, dente, casa, mala...

Lembrança e atenção são facilitadas pela repetição, harmonia e identificação. Ao pensarmos no signo, as figuras de sim estão relacionadas ao significante e à imagem acústica constituída pelos fonemas presentes em uma palavra. Para recordar o signo linguístico, retorne à Unidade 1, tópico sobre o percurso teórico da Semântica. Nas figuras de palavras temos:

• Aliteração: repetição de consoantes ou de sílabas. Muito utilizado em composições musicais, poemas, trava-línguas. Na Figura 2, a empresa Oi se utiliza da expressão “blá blá blá” como argumentação de um discurso experiente e sem “enrolação”. O leitor, ao ver a expressão “blá blá blá” estabelece relação com a empresa Oi, facilitando, de imediato, a identificação da marca pelo cliente. É a argumentação sendo construída por prender a atenção do cliente e reforçar a Oi como uma empresa séria.

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FIGURA 2 – ALITERAÇÃO

FONTE: <http://www.97news.com.br/hd-imagens/noticias/93-oi-bla.jpg>. Acesso em: 22 jan. 2020.

• Assonância: a repetição de sons vocálicos é muito próxima da aliteração, essa figura provoca efeitos de estilo. Na Figura 3, temos um anúncio, criado por alunos de marketing de uma universidade. Evidencia-se, a construção do refrão “eta eta eta”, na qual observa-se a repetição dos fonemas “a” e “e”, presentes na palavra “paleta”. A repetição configura-se como uma argumentação retórica que visa motivar e prender a atenção do consumidor, facilitando a identificação do produto.

FIGURA 3 – ASSONÂNCIA

FONTE: <https://i.pinimg.com/236x/d8/4b/a5/d84ba5749efb11ff76af127de2951d80.jpg>. Acesso em: 22 jan. 2020.

• Paronomásia: aproximação de palavras que têm sonoridades semelhantes e sentidos diferentes, os parônimos. É um jogo de palavras, um trocadilho, cujos efeitos argumentativos implicam a ampliação da expressividade, o caráter lúdico do texto, o duplo sentido. Figura característica do gênero publicitário, humorístico, haikai. Em Hora de ter saudade (16), haikai de Guilherme de Almeida (1947) , o uso das palavras “houve” e “ouve” são empregadas pela semelhança sonora.

(16) Houve aquele tempo... (E agora, que a chuva chora, ouve aquele tempo!)

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• Onomatopeia: são palavras ou fonemas que reproduzem ou imitam, de forma aproximada, sons do cotidiano, de instrumentos musicais, da natureza, gritos, sussurros e vozes de animais. Muito utilizada em histórias em quadrinhos e música popularizou-se na internet e na conversação digital. A similitude entre palavra e sentido e a percepção dos sons e a transcrição fonética depende de cada língua.

Observe a Figura 4, na qual há uma onomatopeia na representação do som de beber, traduzida do inglês, russo, alemão, japonês, búlgaro. No português, é traduzido por “glup glup”. Esses sons são utilizados como recursos estéticos e argumentativos, uma vez que apontam para o potencial dos sons, enriquecendo o texto e estimulando a imaginação do leitor.

FIGURA 4 – ONOMATOPEIA

FONTE: <https://img.ibxk.com.br/2015/01/09/09153111126597.jpg?w=1040>. Acesso em: 4 dez. 2019.

AUTOATIVIDADE

Vamos a mais um desafio!

FONTE: <https://bit.ly/2tKpxpX>; <https://bit.ly/2uqg2g2>. Acesso em: 10 fev. 2020.

a) O que há em comum nas capas? b) Que recurso linguístico está presente nas capas? c) Qual a relevância desse recurso e como sua seleção evidencia o trabalho do

autor e marca seu estilo?

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5.2 FIGURAS DE SENTIDO

Enquanto as figuras de palavras (sons) se referem ao significante, as figuras de sentido estão relacionadas ao significado do signo linguístico, a ideia que temos acerca de algo ou o modo singular de expressar um pensamento ou ideia. A força argumentativa está no emprego de termos com sentidos que não são habituais e não são desvios ou transgressões da norma, mas um enriquecimento dos sentidos presentes no texto como em, “já disse mil vezes...”. A palavra “mil” deixa de ser considerada um numeral e assume o sentido de repetição, ênfase, desempenhando um papel retórico. Há várias figuras de sentido, vamos explorar algumas delas.

• Metonímia: figura retórica na qual um elemento fonte passa a ser utilizado para designar uma realidade por contiguidade (semelhança) produzindo efeitos de sentido no interlocutor. A força argumentativa dessa figura está na familiaridade entre o que é dito e como é aceito pelo outro. Ou seja, ao utilizar uma palavra para se referir a outra ou a um fato é preciso que seja compreendido pelo outro para que os sentidos tenham o efeito pretendido pelo autor do enunciado. A metonímia cria símbolos em uma cultura que produz, cognitivamente, determinados sentidos, condensando um argumento muito forte como em “suor” associado a trabalho, “lágrimas” associada à tristeza, sofrimento.

Na Figura 5, é criado um cenário que conduz o leitor à identificação do produto, a moto. A figura se constitui pela relação de contiguidade entre “moto” e “Honda” cuja imagem está associada ao símbolo de “aventura”, de “sobrenatural”, de “intensidade”.

FIGURA 5 – METONÍMIA

FONTE: <http://luciocunha.com.br/wp-content/uploads/2018/02/hondamotossobrenatural2_fbiz-1024x637.jpg>. Acesso em: 4 dez. 2019.

Na Figura 6, a palavra “pé” foi utilizada como um recurso estilístico no qual o autor quer evidenciar que a praia é um espaço que não podemos estar inteiros, ou seja, diariamente. É um espaço de liberdade eventual. O anúncio usa “pé” por “corpo”, a parte pelo todo. Há uma relação de contiguidade que reforça o poder argumentativo influenciando o consumidor a comprar Havaianas.

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FIGURA 6 – METONÍMIA

FONTE: <https://pt-static.z-dn.net/files/d74/9487db0f86aa7484a8e18c3603d54451.jpg>. Acesso em: 4 dez. 2019.

• Sinédoque: distingue-se da metonímia por designar um elemento por meio de outro com o qual tem uma relação, ou seja, é uma contiguidade semântica em que a primeira ideia se faz pela existência da segunda. Sua função é condensar as ideias da parte pelo todo ou do todo pela parte, provocando o inusitado. Na Figura 7, temos a expressão “futebol” que é personificado, ou seja, assume a função do sujeito que solicita à torcida menos violência. A ação de pedir é atribuída ao “futebol”, neste caso, os times.

FIGURA 7 – SINÉDOQUE

FONTE: <http://blogs.diariodonordeste.com.br/target/wp-content/uploads/2014/02/paz.jpg>. Acesso em: 4 dez. 2019.

• Antonomásia: assim como a sinédoque, esta figura é uma metonímia que consiste em representar o referente por uma qualidade. O referente, uma pessoa, é substituída por palavras que o caracterizam. Em (17), o “Rei do Pop” é utilizado para fazer referência ao cantor Michael Jackson que ficou conhecido pelo público por essa expressão.

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Na Figura 8, o escritor se utiliza da expressão “a primeira-dama do teatro paraense” em referência à atriz Margarida Scgivazappa, destacando sua relevância no século XX na música e no teatro da região norte brasileira. Em outras palavras, essas expressões servem de argumento estilístico para validar os enunciados, conferir autoridade e destacar as qualidades do referente.

(17) “Confira 6 sucessos do Rei do Pop, que completaria 60 anos hoje” <http://

twixar.me/zLgT>.

FIGURA 8 – ANTONOMÁSIA

FONTE: <https://www.livrariadoteatro.com.br/upload/produtos/big/PantojaAntonio_Margarida_20151210112313.jpg>. Acesso em: 5 dez. 2019.

• Metáfora: figura que estabelece uma relação entre dois elementos heterogêneos, ressaltando um elemento comum entre eles e mascarando outros. É muito utilizada no cotidiano e se baseia em uma comparação implícita, ou seja, sugere o “como” ou “tal que” que introduz uma característica atribuída a algo. Os efeitos de sentido se dão pelo jogo de palavras no enunciado que funciona como uma estratégia estilística-argumentativa.

A metáfora é a figura mais utilizada e está presente na fala cotidiana, nas notícias, nas palestras formais, na música, na publicidade, na web, enfim, uma variedade de situações comunicativas se utilizam desse recurso. Sua utilização enriquece linguisticamente os textos e valida os argumentos.

Em (18), o jornal estabelece uma comparação implícita na escolha das palavras “bullying” e “iceberg” e estabelece uma relação entre elas, ou seja, há muito mais do que podemos ver ou do que é apresentado.

(18) “O bullying é a ponta do iceberg” <http://twixar.me/VLgT>.

Na Figura 9, o enunciado faz uma comparação abreviada, o conectivo “como” não está presente, ou seja, a expressão “corrente sanguínea” é comparada à “corrente do bem” e sua estratégia estilístico-argumentativa está na sensibilização

TÓPICO 1 | NOTAS SOBRE ESTILÍSTICA E ESTILO

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de todos a entrarem na campanha de doação de sangue. A palavra “corrente” evidencia sentidos de união, laços, grupo, ação coletiva reforçada por “Ajudar está no sangue”, “sangue” como material da doação e como ato voluntário.

FIGURA 9 – METÁFORA

FONTE: <https://comuniquec.files.wordpress.com/2009/07/doesangue.jpg>. Acesso em: 6 dez. 2019.

Na poesia de Quintana, em (19), vemos a sensibilidade aflorar na metáfora “Os poemas são pássaros” e [os poemas] “pousam”, como o poeta diz, poesia não se explica, sente-se.

(19) “Os poemas são pássaros que chegam não se sabe de onde e pousam no livro que lês” (QUINTANA, 1980).

QUADRO 7 – METÁFORA, COMPARAÇÃO E ANALOGIA

FONTE: A autora

Distinção entre metáfora, comparação (símile) e analogia

Metáfora Comparação abreviada, subentendida Futebol é uma caixinha de surpresas!

Símile Comparação de elementos semelhantes(ver/“como mergulhar, como não morrer)

“Te ver e não te querer […] / É como mergulhar no rio / E não se molhar / É como não morrer de frio / No gelo polar” (Te Ver – Samuel Rosa, Lelo Zaneti e Chico Amaral).

Analogia Semelhança entre coisas diferentes.(futuro/figo púrpura; figo/lar/poeta)

“Da ponta de cada galho, como um enorme figo púrpura, um futuro maravilhoso acenava e cintilava. Um desses figos era um lar feliz com marido e filhos, outro era uma poeta famosa, outro, [...] (PLATH, S. A redoma de vidro. Tradução de Chico Mattoso. São Paulo: Globo, 2014).

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• Hipérbole: figura utilizada para aumentar ou diminuir algo em excesso. Essa estratégia estilística-argumentativa produz, por meio desse excesso, os efeitos de algo que entra na linguagem de forma veemente e exaltada. Os sentidos se ampliam para criar argumentos que levem o outro a acreditar no que é enunciado. Os textos produzidos na web têm se utilizado dessa figura, uma vez que o uso de termos e expressões exageradas chamam a atenção do leitor, convencendo-o de adquirir ou fazer algo.

Em (20), temos trechos das músicas “Eu quero apenas” e “Podres poderes” que apresentam hipérbole e evidenciam sua força argumentativa em “milhão de vezes” e “setecentas mil vezes. Se trocássemos essas expressões por “muitos amigos” e “gritar várias vezes”, esse poder de argumentação seria minimizado ou desapareceria, dependendo do contexto em que fosse enunciado.

(20) Eu quero ter um milhão de amigos e bem mais forte poder cantar… (Eu quero apenas – Roberto Carlos)

Queria querer gritar setecentas mil vezes Como são lindos, como são lindos os burgueses (Podres poderes – Caetano Veloso)

Na Figura 10, o cachorro tenta convencer Nique Náusea a partir das expressões “Eu juro!!! Fui abduzido!”, no primeiro quadrinho. O efeito de sentido por essa fala provoca o exagero do discurso. O cachorro, com o excesso na linguagem, faz o que chamamos de “drama” e provoca o riso.

FIGURA 10 – HIPÉRBOLE

FONTE: <https://alehand.files.wordpress.com/2009/09/niquel1.gif?w=500&h=160>. Acesso em: 6 dez. 2019.

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• Oxímoro ou paradoxo: é uma figura que, na produção do texto, une dois termos de sentidos incompatíveis, contraditórios em uma mesma unidade de sentido. Em um enunciado paradoxal, um mesmo referente é construído a partir de noções excludentes que são colocadas em relação. Na música de Caetano Veloso, “Tiranizar”, em (20), a ideia construída é de oposição com as palavras “prender” e “soltar”, ou seja, os sentidos dessa relação excludente apontam para que a “prisão” funcione, é preciso que a liberdade caminhe junto.

(20) “Se você quiser me prender, vai ter que saber me soltar” (Tiranizar – Caetano Veloso).

Em (11), a fala do professor cria um paradoxo, pois ao mesmo tempo que afirma que “toda certeza é relativa”, ele desconstrói ao responder quem tem “absoluta” certeza. Relativa e absoluta tem o mesmo referente certeza, constituindo-se um paradoxo ou oxímoro.

FIGURA 11 – PARADOXO OU OXÍMORO

FONTE: <https://wordsofleisure.files.wordpress.com/2015/01/img_0134.jpg?w=740>. Acesso em: 10 dez. 2019.

5.3 FIGURAS DE CONSTRUÇÃO OU DE SINTAXE

São recursos estilísticos caracterizados por inversões, repetições ou omissões na construção de enunciados. Essas figuras dão maior expressividade ao texto e, muitas vezes, são consideradas como erros gramaticais. No entanto, esses “erros” são recursos estilísticos que podem interferir na construção sintática, modificando a concordância, regência ou colocação.

• Elipse: figura na qual são retiradas palavras, verbos, frases necessárias à

construção. A sua omissão não altera o sentido que pode ser subentendido a partir do contexto. O resultado, muitas vezes, é inusitado para o leitor. Na Figura 12, a elipse é evidenciada na omissão da expressão “pode doer” que deveria compor o enunciado “o preço não pode doer”, mas essa omissão não prejudica o sentido, pois ainda é possível compreender que o jornal preza pela verdade a um custo bem pequeno, que não dói no bolso.

UNIDADE 3 | A ESTILÍSTICA: DISCURSO E SUBJETIVIDADE

188

FIGURA 12 – ELIPSE

FONTE: <http://twixar.me/lWgT>. Acesso em: 10 dez. 2019.

• Assíndeto: é uma elipse na qual são suprimidos os conectivos tanto cronológicos (antes, depois, após) quanto lógicos (porém, pois, portanto). É uma figura com valor expressivo e pedagógico, uma vez que, ao deixar de utilizar a conjunção e substituí-la por uma vírgula, o sentido do enunciado será alterado. A vírgula tornará o texto mais dinâmico, as ações terão sentido de rapidez.

A força argumentativa dessa figura estilística está na cumplicidade, pois é preciso suprir as lacunas deixadas pelo autor. Nos dois exemplos, temos um assíndeto. Em (21.a), quando o compositor lista as ações a serem realizadas, utiliza vírgulas e retira o conectivo evidenciando rapidez ao enunciado. Em (21.b), o enunciador também produz essa dinamicidade ao enunciado quando narra, por exemplo: Fiquei roendo, olhando que traduz a própria “angústia” da personagem.

(21) a. “Tem que ser selado, registrado, carimbado, avaliado, rotulado, se quiser voar. Pra lua, a taxa é alta. Pro sol: identidade” (Carimbador Maluco de Raul Seixas).

b. “Era impossível saber onde se fixava o olho de padre Inácio, duro, de vidro, imóvel na órbita escura. Ninguém me viu. Fiquei num canto, roendo as unhas, olhando os pés do finado, compridos, chatos, amarelos” (Angústia de Graciliano Ramos).

• Aposiopese ou reticência: consiste em uma supressão do pensamento por meio de um corte inesperado. Há uma insinuação que deve ser completada pelo auditório. Geralmente, o corte se dá quando o autor percebe que vai dizer além do que precisa ser dito. Sua força argumentativa vem do fato de o outro ter o controle de preencher as lacunas e de o discurso não ser fechado, permitindo a criação de sugestões, insinuações.

A campanha do Bradesco Seguros, na Figura 13, utiliza-se dessa figura ao sugerir, pelo uso das reticências após a expressão “Vai que...”, que o grupo cuida de sua vida, oferecendo uma vida tranquila.

TÓPICO 1 | NOTAS SOBRE ESTILÍSTICA E ESTILO

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FIGURA 13 – APOSIOPESE

FONTE: <http://2.bp.blogspot.com/_bKkQu_ToTM8/TUi-MFpjBkI/AAAAAAAAASg/23m3kCqovyY/s1600/An%25C3%25BAncio%252BB...jpg>. Acesso em: 10 dez. 2019.

• Antítese: recurso estilístico utilizado para enfatizar o discurso e esclarecer pontos de vista, acentuando a expressividade do enunciado. Figura encontrada em abundância nos textos barrocos. Atualmente, as propagandas fazem uso dessa estratégia de forma comedida, tornando o texto interessante e transformando-o em um argumento persuasivo. Na Figura 14, a antítese se faz presente nesta publicidade ao contrapor “olhos” e “coração”, dois referentes, a partir de duas ações importantes no mundo publicitário, ou seja, é preciso “ver” para “comprar”.

FIGURA 14 – ANTÍTESE

FONTE: <https://mir-s3-cdn-cf.behance.net/project_modules/max_1200/f8bf4f12852545.5626e25c20aa1.jpg>. Acesso em: 11 dez. 2019.

UNIDADE 3 | A ESTILÍSTICA: DISCURSO E SUBJETIVIDADE

190

QUADRO 8 – PARADOXO E ANTÍTESE

FONTE: A autora

Não confundir paradoxo com antítese

Paradoxo

Termos contrários(falados/calam)

↓Mesmo referente

(segredos)

“Falados os segredos calam” (Tribalistas)

Antítese

Termos contrários (salgar/adoçar)

↓Diferentes referentes

(pés/alma)

“É preciso salgar os pés para adoçar a alma” (www.linguaportuguesa.blog.br)

• Anacoluto: é um recurso estilístico que muitos dizem “perturbar” a frase, pois há um questionamento acerca de ser um desvio com relação à norma ou marcas de estilo. Preferimos seguir a ideia de que faz parte do estilo pessoal e se constitui em uma argumentação mais expressiva. Nessa figura retórica, há uma quebra da estrutura e a topicalização de um elemento que recebe maior ênfase na construção do enunciado.

A palavra “propaganda”, na Figura 15, vem posicionada no início do enunciado. Em uma estrutura tradicional estaria antes da forma verbal “indicando” e, se escrita, conforme a norma seria: “Há muito tempo, a propaganda vem indicando ...”.Essa topicalização da palavra “propaganda” demonstra criatividade do enunciador e foge do lugar comum da estruturação da frase, característica desse gênero discursivo.

FIGURA 15 – ANACOLUTO

FONTE: <http://www.pulsarpropaganda.com.br/wp-content/uploads/2012/12/banner_facebook_0412121-520x346.jpg>. Acesso em: 11 dez. 2019.

TÓPICO 1 | NOTAS SOBRE ESTILÍSTICA E ESTILO

191

• Quiasmo: figura utilizada para contrastar sentidos na inversão dos termos. Utilizado, geralmente, para enfatizar algo. Nos versos de Olavo Bilac (1888), em (22), evidencia-se o uso dessa figura retórica na inversão AB/BA. Vejamos:

(22) Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada E triste, e triste e fatigado eu vinha. [...]

• Hipérbato: é um recurso de inversão na ordem direta da frase (sujeito – verbo – complementos) cuja finalidade é a expressividade. Muitas vezes, essa inversão prejudica a compreensão do enunciado. O Hino Nacional Brasileiro é o exemplo clássico, em (23), dessa figura de construção que inverte a ordem dos termos na oração. A ordem direta seria: "Das margens plácidas do Ipiranga ouviram um brado retumbante de um povo heroico".

(23) “Ouviram do Ipiranga as margens plácidas De um povo heroico o brado retumbante”.

A – fatigada B – tristeA – triste B – fatigada

5.4 FIGURAS DE PENSAMENTO

Definir estas figuras apenas pela relação entre ideias seria abandonar a ligação entre língua e pensamento. Sua identificação está ancorada em três critérios. O primeiro diz respeito ao discurso e às estratégias estilísticas, como a ironia. O segundo, à relação entre discurso e referente ao convencimento de algo que pode ser verdadeiro ou falso, como a alegoria. O terceiro diz respeito ao sentido nestas figuras de pensamento que ser literal ou figurado, como na ironia. Nessas figuras de pensamento os sentidos são alterados para provocar emoções a partir da exploração dos significados das palavras.

• Alegoria: utilizada de forma retórica, essa figura amplia os sentidos de uma palavra, expressão além do literal. Considerada uma figura didática não pela clareza, mas pela motivação de aprendizagem produzida pelo texto. As alegorias não trazem respostas, mas problematizações. Na Antiguidade, era muito utilizada pelos mestres para incitar seus discípulos a entender uma coisa no lugar de outra. Além da alegoria da Caverna e das parábolas cristãs, temos O Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa, uma obra literária que faz parte das Crônicas de Nárnia e traz referências mitológicas e alegorias bíblicas ambientadas em um mundo da fantasia no qual há uma luta constante entre o Bem e o Mal.

• Ironia: é uma figura cujo objetivo é a gozação, a denúncia, a crítica e a censura. O uso da linguagem evidencia sentidos contrários, como de desvalorização, de sátira, de ofensa e/ou de algo não esperado. Seu uso se dá com relação a pessoas, situações ou acontecimentos que pareçam engraçados ou que chamem a atenção de alguma forma. Por isso, às vezes, a ironia aponta sentimentos amenos ou cruéis, sutis ou grosseiros, amargos ou engraçados.

UNIDADE 3 | A ESTILÍSTICA: DISCURSO E SUBJETIVIDADE

192

Nesta conversa de WhatsApp, na Figura 16, o professor, ao ser questionado pelo aluno se a aula será “Normal?”, responde, em tom irônico, que a aula será “anormal”, pois Batman, dinossauro e Papa-Léguas estarão em sala. A resposta do professor provoca graça, mas é uma alegria sádica, uma espécie de “prazer maligno”.

FIGURA 16 – CONVERSA NO WHATSAPP

FONTE: <http://2.bp.blogspot.com/-BWRNaBOkToA/VpOkd9p-RVI/AAAAAAAADKs/MRYfnEPLpZw/s640/whatsapp-prof.jpg>. Acesso em: 10 dez. 2019.

QUADRO 9 – IRONIA E SARCASMO

FONTE: Adaptado de <https://static.todamateria.com.br/upload/qu/ad/quadrinhosexemplos.jpg>. Acesso em: 23 jan. 2020.

Diferença entre ironia e sarcasmo“Quando uso o humor como escudo, é ironia. Quando uso o humor como arma, é sarcasmo”

(Gabito Nunes).

Ironia Sutil, dissimulada, fingida, implícita, crítica.

https://www.todamateria.com.br/sarcasmo-e-ironia/

Sarcasmo Malicioso, provocativo, explícito, maldoso

https://www.todamateria.com.br/sarcasmo-e-ironia/

TÓPICO 1 | NOTAS SOBRE ESTILÍSTICA E ESTILO

193

AUTOATIVIDADE

É hora de desafiar nosso conhecimento sobre a ironia!

A tarefa é produzir enunciados utilizando essa figura, levando em consideração os contextos apresentados. Lembre-se de que a ironia manifesta sentidos dissimulados, contrários, implícitos.

• Contexto 1: você foi convidada para um churrasco, mas você é vegetariana. • Contexto 2: você viajou para a praia e levou roupas adequadas ao calor,

mas o tempo mudou e esfriou muito.

• Prosopopeia ou personificação: animização, antropomorfismo. Figura de retórica que trabalha com significados velados, implícitos na palavra ou expressão e permite que atitudes, sensações, emoções estejam presentes em todos os seres animados ou não. Esse recurso estilístico pode ser observado na Figura 17 cuja construção de sentidos na charge se faz a partir da conversa entre dois cachorros em frente a uma máquina de assar frangos, conhecida como “TV de cachorro”. O riso se produz a partir da crítica feita por um dos cachorros com relação à diversidade de canais, que, na realidade, são bem repetitivos como na maneira de servir o frango.

FIGURA 17 – TIRINHA

FONTE: <http://bp0.blogger.com/_VET6g5Bb-KU/R_N_WM5nWHI/AAAAAAAAAKA/R4l1fG5KIKs/s400/tvdecachorro.jpg>. Acesso em: 10 dez. 2019.

UNIDADE 3 | A ESTILÍSTICA: DISCURSO E SUBJETIVIDADE

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O conceito de estilo em Bakhtin: dimensão teórica e prática

Beth Brait

Considerar a dimensão estilística da produção verbal, visual ou mesmo verbo-visual, parece, ao menos para os linguistas, uma maneira de lidar com o discurso, com a enunciação, dentro do domínio dos estudos literários ou artísticos, na medida em que o tema, de longa data, é propriedade das vertentes diretamente interessadas nas particularidades expressivas de determinados autores, poetas, artistas em geral ou nos conjuntos de características que definem determinados movimentos artísticos, também denominados estilos de época, caso do romantismo, do impressionismo, do cubismo etc.

Ainda que o termo não se restrinja necessariamente às artes, ele sempre diz respeito às idiossincrasias, e à maneira de se expressar de uma determinada pessoa, sugerindo uma estreita e exclusiva relação entre estilo e personalidade, estilo e individualidade. Na melhor das hipóteses e de um ponto de vista dos estudos linguísticos mais recentes, o estilo pode estar pensado em função do texto e de suas formas de organização em relação às possibilidades oferecidas pela língua, estendendo-se a textos não necessariamente literários ou poéticos.

A consulta a determinadas obras especializadas confirma essa ideia de que, por um lado, o termo estilo está diretamente associado a produções individuais ou conjunto de produções de determinados momentos, vinculadas às artes em geral ou exclusivamente à personalidade de alguém. Por outro, pode ser pensado, de maneira mais ousada, como conjunto de diferentes instâncias textuais que implicam escolhas em relação às diferentes possibilidades oferecidas pelo sistema linguístico.

[...]

Tratar da concepção bakhtiniana de estilo significa, dentre outras coisas, percorrer os escritos concebidos e publicados em diferentes épocas e, a partir daí, tentar delinear a noção de autor/autoria, conceito forte dentro do que poderíamos denominar “análise e/ou teoria dialógica da linguagem”, e que ainda está à espera de um trabalho mais alentado. Isso, certamente, com consequências significativas para os estudos de manifestações artísticas e, especialmente, as não artísticas, inteiramente desprezadas no que diz respeito ao estilo. Também é importante frisar que essa perseguição deve ser realizada, necessariamente, com um olhar desprovido de preconceitos linguísticos ou literários, isto é, assumindo mais uma vez, que os discursos verbais, estudados efetivamente por Bakhtin e seu círculo, são geralmente de natureza literária, mas que, para chegar as essas análises (referência aos estudos sobre Dostoievski, Rabelais, a teoria do romance e a poética), os trabalhos dão preciosas indicações sobre o discurso cotidiano, não literário, incluindo-se aí a dimensão não verbal. [...]

FONTE: BRAIT, B. O conceito de estilo em Bakhtin: dimensão teórica e prática. [s.d.]. Disponível em: http://s3images.coroflot.com/user_files/individual_files/300336_SYpIFll91l9A lN1U9PfecIDUk.pdf. Acesso em: 22 jan. 2020.

IMPORTANTE

195

RESUMO DO TÓPICO 1

Neste tópico, você aprendeu que:

• As diversas concepções de estilo com relação à língua e à expressividade se constituem, muitas vezes, em um obstáculo para a definição de estilo e de seu objeto de estudo.

• As concepções de estilo estão atreladas a desvios e que esses não se constituem em erros, mas são variedades da língua. O estilo como expressividade implica clareza, e o fenômeno da linguagem é tratado de forma mais objetiva. O estilo como trabalho está relacionado com as escolhas realizadas pelo enunciador a partir de um repertório disponível.

• As figuras de retórica possuem um potencial expressivo que contribui para a

constituição de subjetividades e para a força argumentativa do enunciado.

196

1 De acordo com Antonio Suárez Abreu (2006, p. 115), em A arte de argumentar: gerenciando razão e emoção, as figuras retóricas “[...] possuem um poder persuasivo subliminar [...] criando atmosferas de suspense, humor, encantamento, a serviço de nossos argumentos”. Observe o quadrinho de Cibele de Abreu e marque a resposta que justifica a figura retórica utilizada.

AUTOATIVIDADE

FONTE: <http://twixar.me/YV8T>. Acesso em: 6 fev. 2020.

a) ( ) Metáfora com comparação subentendida nos dois quadrinhos. b) ( ) Eufemismo para suavizar a fala marcada no primeiro quadrinho. c) ( ) Ironia cujas marcas estão na explicação do segundo quadrinho. d) ( ) Comparação com marcas linguísticas explícitas nos dois quadrinhos. e) ( ) Paradoxo na qual as ideias são de oposição entre os dois quadrinhos.

2 Canção

1

4

6

8

11

13

16

Nunca eu tivera queridoDizer palavra tão louca:bateu-me o vento na boca,e depois no teu ouvido.Levou somente a palavra,Deixou ficar o sentido.O sentido está guardadono rosto com que te miro,neste perdido suspiroque te segue alucinado,no meu sorriso suspensocomo um beijo malogrado.Nunca ninguém viu ninguémque o amor pusesse tão triste.Essa tristeza não viste,e eu sei que ela se vê bem...Só se aquele mesmo ventofechou teus olhos, também.

FONTE: MEIRELES, C. Poesias completas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1993, p. 118.

197

Com base no poema Canção, assinale a alternativa CORRETA no que diz respeito à especificidade da linguagem literária.

a) ( ) Embora o texto seja um poema, sua linguagem não revela transfiguração artística nem opacidade.

b) ( ) Da linguagem denotativa do texto depreende-se que o poema é uma declaração de amor à pessoa amada.

c) ( ) A palavra, de acordo com o poema, não revela toda a força do sentimento que habita o eu lírico.

d) ( ) Sem os versos de sete sílabas e as rimas, a literariedade estaria ausente do poema.

e) ( ) Versos como “neste perdido suspiro que te segue alucinado” revelam a dimensão literal das palavras no contexto do poema.

3 O estilo como desvio se dá com relação a sua construção como uma variante do registro culto da língua e se caracteriza pelos seus efeitos expressivos. Com base nesta afirmação, analise os enunciados:

“Eis-me prostrado a vossos peses” (Carlos Drummond de Andrade).

“A Onça vai esturrandoatrás do Porco-selvagem:matá-lo-á na passagem,

com nosso Prinspe ajudando!” (Ariano Suassuna).

Com relação aos enunciados, podemos afirmar que:

I- Não há apenas uma norma, mas várias que dependem dos ambientes socioculturais como em “peses” e “Prinspe” utilizados pelos poetas.

II- A expressividade da língua nem sempre está no desvio, mas no uso, na recriação como em “prostrado” mais expressivo que “abatido”.

III- O contexto nunca pode determinar o que pode ou não ser considerado norma e desvio como no caso da forma linguística “Prinspe” que se configura um erro.

Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) Somente a sentença I está correta.b) ( ) Somente a sentença II está correta.c) ( ) Somente a sentença III está correta.d) ( ) As sentenças I e II estão corretas.

4 Com relação ao estilo como trabalho, assinale a alternativa CORRETA:

a) ( ) O trabalho estilístico está baseado na noção de escolha e de intenção consciente da escolha dos recursos expressivos.

b) ( ) O trabalho estilístico não está relacionado à individuação, mas à multiplicidade de estruturas da língua.

198

c) ( ) O trabalho estilístico se efetiva quando o enunciador escolhe a forma correta. d) ( ) O trabalho estilístico está relacionado aos efeitos de sentido que só são

conseguidos com determinadas palavras. e) ( ) O trabalho estilístico está associado à literatura, ao desvio e à expressão

pessoal.

5 As escolhas lexicais realizadas pelo enunciador são relevantes para a construção dos sentidos no texto e uma estratégia de persuasão. Isso pode explicar o motivo de procurarmos as palavras mais adequadas para compor nossa argumentação. Com base nessas escolhas realizadas pelo enunciador, disserte acerca da concepção de estilo como trabalho a partir desta tirinha, evidenciando as escolhas lexicais e os efeitos de sentido.

FONTE: <http://twixar.me/VV8T>. Acesso em: 6 fev. 2020.

199

TÓPICO 2

CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESTILO

UNIDADE 3

1 INTRODUÇÃOTemos desenvolvido esta disciplina com base na noção de estilo como

trabalho, ou seja, como as escolhas realizadas pelo autor produzem certos efeitos de sentidos em relação a outros possíveis. A singularidade de um discurso não está no fato de fugir ou não às normas de uso, mas de se constituir uma enunciação. Por isso, o trabalho empreendido pelo autor com as palavras não está nas rupturas, mas no posicionamento e na sua inscrição no texto. Vejamos esta chamada para o Oscar 2020 <http://twixar.me/sKBT>.

'1917' deve ganhar como melhor filme e 'Parasita' éazarão, dizem 'termômetros' do Oscar

As escolhas lexicais realizadas pelo repórter Cesar Soto, do G1, evidenciam sentidos de uma corrida de cavalos. Como isso se materializa no enunciado? A materialização se dá pelas palavras “ganhar” e “azarão”. O enunciado parece evidenciar que foi “dada a partida” para um páreo que será muito disputado entre os filmes “1917” e “Parasita”, ambos com muitas indicações ao prêmio de melhor filme.

Ao enunciar que “‘1917’ deve ganhar”, o repórter traz o sentido de “barbada”, aquele cavalo em que todos apostam, o favorito. Ao denominar o filme “Parasita” de “azarão”, o repórter evidencia que o filme (o cavalo) é o menos cotado para vencer no maior evento cinematográfico. Os “termômetros” parecem apostar que ainda é possível “Parasita” sonhar com o prêmio.

O que podemos compreender desse enunciado é o fato de seu autor escolher as palavras, combiná-las, criar uma situação de enunciação na qual produz certos efeitos em seus leitores que não podem ser fechados em si mesmos, uma vez que o autor não tem controle sobre seus leitores e seu conhecimento de mundo.

Para compreender um pouco mais de como os sujeitos, na posição de autor, de sujeito enunciador, constroem seu estilo, vamos abordar o estilo sob o ponto de vista da Estilística Fônica ou do Som, da Palavra, da Frase e da Enunciação e evidenciar que o estilo não se constrói apenas sob o ponto de vista de uma dessas estilísticas, mas que elas se complementam no trabalho desenvolvido sobre a língua.

200

UNIDADE 3 | A ESTILÍSTICA: DISCURSO E SUBJETIVIDADE

Vamos, então, compreender o estudo da expressividade dos fonemas e sua motivação sonora na Estilística do som que não se dá apenas na linguagem poética. Essa motivação está presente em vários textos e se dá pela imitação sonora, ilustração sonora e simbolismo sonoro em meio às escolhas pelo autor.

A respeito da Estilística da palavra, evidenciaremos que as palavras isoladas não têm sentido. É preciso construir um emaranhado de relações que se dão quando o autor seleciona as palavras a fim de que elas produzam determinados efeitos quando pensa em seu interlocutor. Com relação à Estilística da frase, ou da sintaxe, a seleção das palavras vai evidenciar expressividade, poeticidade e a subjetividade do autor que as combina de forma a fugir da forma usual, marcando seu estilo.

Quanto à Estilística da Enunciação, demonstraremos que as fronteiras

entre enunciado e enunciação não existem, uma vez que o estilo se compõe a partir das vozes presentes na enunciação. Essas vozes marcam o processo estilístico em uma atividade do autor com e sobre a língua.

Além dessas considerações a respeito das várias estilísticas, vamos abordar também, a construção do estilo e os efeitos produzidos pela atividade do autor sobre a língua. São as escolhas, as entonações, as combinações, os efeitos, fruto do trabalho do autor que procura romper com as normas impostas pela língua.

Neste Tópico 2, da Unidade 3, vamos trabalhar esses aspectos e enfatizar que o estilo é o resultado do trabalho realizado pelos usuários da língua. Como afirma Possenti (2001), esse trabalho é um processo no qual o autor vai descobrindo as múltiplas possibilidades de escolha que a linguagem oferece para a singularização do discurso.

2 AS ESTILÍSTICASAo trabalhar o estilo, precisamos compreender que não há apenas uma

maneira de tratar o trabalho realizado pelo autor/sujeito de um texto. O trabalho estilístico implica diferentes olhares e significativas abordagens. Entre elas, podemos destacar quatro abordagens que vão definir as escolhas e as maneiras de construir a subjetividade e os efeitos de sentidos: o som, a palavra, a frase e a enunciação.

Essas abordagens também vão evidenciar a pluralidade dos modos de estruturação da linguagem e as possibilidades que a escolha de determinados itens lexicais e sua arrumação no enunciado vão produzir no outro. Ou seja, as marcas do trabalho que o sujeito vai deixar no enunciado para direcionar o trabalho de leitura do seu interlocutor. Essas abordagens não são estanques, mas se imbricam na construção dos efeitos de sentido produzidos pelo enunciado na enunciação.

TÓPICO 2 | CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESTILO

201

A Fonoestilística, ou Estilística Fônica ou Estilística do som, como abordaremos aqui, trata dos valores expressivos presentes nos fonemas que compõem as palavras e enunciados. A escolha dos sons não é aleatória. Cada fonema carrega sentidos e valores distintos, tornando as palavras selecionadas em manifestações emotivas e de valores que despertam reações em quem ouve ou lê. Por exemplo, a expressividade da vogal “i” sugere pequenez, agudez, estreiteza como em apito, mínimo, fio, pavio.

A Estilística da palavra se constitui a partir das escolhas e combinações que fazemos para evidenciar certos valores que muitas vezes aderem à significação das palavras. Ao observarmos dados reais de fala, podemos identificar que algumas palavras evidenciam novos sentidos como na palavra “super” em “supervalorização” e em “super vale a pena” que sai da posição de prefixo para a de intensificador, respectivamente. Dessa forma, as escolhas realizadas vão constituir o estilo e isso fica bem evidente em propagandas.

Outra maneira de evidenciar o estilo é a partir das escolhas que fazemos na construção de frases que consiste em separar elementos que evidenciem a expressividade presente na linguagem a fim de provocar sentimentos e evocar sentidos. Essa seleção constitui um repertório variado que traz marcas de subjetividade a partir do uso de certos recursos expressivos como em “eliminei as fronteiras da minha vida”. O sentido metafórico da palavra “fronteira” é de remover os obstáculos e se abrir para novas conquistas, evidenciando novos efeitos da palavra.

Finalmente, a Estilística da Enunciação possibilita que o estilo seja definido pelas escolhas das palavras, das suas combinações destas na frase e no modo como são enunciadas. Em outras palavras, o estilo está atrelado às escolhas e à existência de quem escolhe, embora não esteja livre de ser orientado pelas regras gramaticais e sociais, elas permitem abrir novos espaços para o estilo, para outras subjetividades, para as vozes presentes na enunciação.

Enfim, essa diversidade de estilísticas propicia não só a rupturas de regras, mas também e, principalmente, evidencia que o estilo é o resultado de um trabalho cujas escolhas implicam certas preferências que revelam não só o estilo do sujeito, mas também suas experiências, vontades, objetivos.

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UNIDADE 3 | A ESTILÍSTICA: DISCURSO E SUBJETIVIDADE

2.1 ESTILÍSTICA DO SOM

A Estilística do som também é denominada por alguns estudiosos de Fonoestilística e seu objetivo é estudar a sonoridade – ritmo, intensidade, entonação, prosódia e ortoépia – nas palavras e nos enunciados. A língua é um repertório no qual o usuário realiza suas escolhas e manifesta determinados sentidos a partir dessa seleção realizada no plano linguístico, na forma. No campo da fonologia, a forma deve ser compreendida como uma matéria sonora cujo papel seja significativo no domínio do discurso.

Ainda, sobre a forma relevante nos estudos que empreendemos acerca da estilística, a materialidade sonora deve ser compreendida em sua poeticidade. Como conseguimos essa poeticidade? Como o som dos fonemas alcançam essa expressividade? Segundo Possenti (2001, p. 160), essa poeticidade pode ser conseguida pelo arranjo, combinações, repetitividade, entonação, como também pelos aspectos culturais reunidos em sentidos de irritação, ironia, agressividade etc. e aspectos pragmáticos que vão marcar a individuação dos sujeitos.

Essa vertente da estilística, que se dedica à expressividade dos elementos sonoros, foi defendida por Maurice Grammont, Henri Morier e Charles Bally que, nas palavras de Martins (1989, p. 27), os fonemas só apresentam potencial expressivo na articulação som-ideia. Ou seja, a linguagem sugere impressões que estavam latentes e são “acordadas” pelo autor quando realiza um trabalho de buscar em seu repertório fonológico os recursos responsáveis pelos efeitos pretendidos.

Vejamos, em (24), o porquê de o compositor realizar as escolhas dos fonemas /r/, /i/ para compor seus versos. E, então, questionamos acerca da implicação semântica da recorrência desses fonemas no texto? O uso desses recursos estilísticos evidencia efeitos no leitor? Quais?

(24) Irene ri, Irene ri, Irene ri, Irene ri, Irene ri, Irene ri, Quero ver Irene dar sua risada. (Irene, Caetano Veloso)

Essa é uma canção de Caetano Veloso que produz efeitos sensoriais pela repetição dos fonemas /r/ e /i/. “Irene”, que dá título à música, é repetido sete vezes e a palavra “ri”, seis vezes. Essa repetição poderia passar despercebida, mas o compositor usa essa estratégia para sugerir uma risada [ri ri ri ri...], analisada como uma onomatopeia, já estudada nas figuras de retórica.

Outra estratégia para sugerir essa risada é a terceira vogal na palavra “Irene” que, na fala passa a representar o fonema /i/ em “Ireni”. A repetição desse som vocálico /i/ é uma assonância e reforça, mais uma vez, a risada (ireniri ireniri ireniri). Esse jogo sonoro se amplia no terceiro verso: [keroveirenidasuaaaarizaaaada] com o prolongamento do fonema /a/, sugerindo, mais uma vez, a risada de Irene [hahahaha...].

TÓPICO 2 | CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESTILO

203

Além da imitação sonora presente na música de Caetano Veloso, na qual o fonema /i/ está associado à agudeza, estreiteza da risada, à assonância, na Figura 18, a potencialidade expressiva do fonema /m/ está na ilustração sonora. O efeito não está na imitação, mas na sugestão visual, provocada pela aliteração da repetição do /m/ em “melhor” e “melhores” lembrando o símbolo do “McDonald’s” que é um arco em forma da letra “M” maiúscula. Além disso, o “M” da marca se associa e se repete no slogan “melhor dos melhores” servindo de argumento para o convencimento do consumidor e marcando o estilo do estabelecimento que se reproduz em outras publicidades.

FIGURA 18 – SUGESTÃO VISUAL

FONTE: <https://pbs.twimg.com/media/CqFZYwqWAAAfj6D?format=jpg&name=900x900>. Acesso em: 10 dez. 2019.

Vamos analisar a expressividade dos fonemas em outros textos e compreender que a motivação sonora está presente, principalmente, na linguagem poética. O poeta realiza um trabalho de seleção, seja consciente ou inconsciente, de certos recursos linguísticos que serão responsáveis pelos sentidos e vão construir ideias, por exemplo, de que as vogais sugerem sensações claras, agudas, brilhantes, escuras, e as consoantes sugerem um simbolismo atrelado à secura, dureza, docilidade, leveza, rapidez, vibrações etc. O caráter arbitrário dos sons é identificado pela imitação sonora, ilustração sonora, simbolismo sonoro. Observe o quadro:

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UNIDADE 3 | A ESTILÍSTICA: DISCURSO E SUBJETIVIDADE

QUADRO 10 – MOTIVAÇÃO SONORA

FONTE: Adaptado de Monteiro (1991)

Café com pãoCafé com pãoCafé com pãoVirge Maria que foi isso maquinista?(Manuel Bandeira)

Imitação sonora: “[...] as palavras isoladamente não revestem caráter imitativo, mas, articuladas entre si, conseguem comunicar a impressão dos ruídos desejados” (MONTEIRO, 1991, p. 106).A repetição rápida dos fonemas /k/, /f/, /p/ sugere o som dos trilhos, a saída do trem da estação, e o fonema /i/ presente no quarto verso sugere a buzina do trem deixando a estação. Onomatopeia.

a onda andaaonde andaa onda?a onda aindaainda onda [...] (Manuel Bandeira)

Ilustração sonora: “[...] a linha melódica pode dar a sugestão de que os fonemas estão expressando algo inerente à natureza do que se comunica” (MONTEIRO, 1991, p. 109). A repetição dos fonemas /a/ e /õ/ sugere o ritmo das ondas do mar. Assonância

“A grande dor das cousas que passaram” (Camões)

Simbolismo sonoro: [...] procedimento subjetivo e nisso reside a grande dificuldade de sistematização” (MONTEIRO, 1991, p. 110).A vogal nasal /ã/ em “grande”, a vogal fechada /o/ em “dor” e o ditongo /ou/ em “cousas” simbolizam a tristeza do poeta.

2.2 ESTILÍSTICA DA PALAVRA

O objeto de estudo da estilística léxica ou da palavra é a expressividade das palavras em seus aspectos semânticos, gramaticais e pragmáticos. As palavras isoladas não significam nada. A forma produz efeitos, mas é preciso escolher um dos efeitos possíveis tanto do ponto de vista do autor quando do interlocutor e esses efeitos assumem valores de realce, estranheza, imprecisão, afetividade, avaliação, imaginação e outros. Esses valores se constituem em desvios ou inovações que implicam em criações, novas formas lexicais e novos sentidos.

O sentido de uma palavra é construído na enunciação, ou seja, na atividade prática, social e interacional da linguagem quando o enunciador coloca em funcionamento a língua, tendo em vista seu interlocutor. Os enunciados produzidos a partir dessa atividade carregam expressividades distintas que se efetivam nas palavras e em seu uso efetivo. Nesse uso, as palavras passam a ser agrupadas, segundo Bally (1909 apud MARTINS, 1989), em três tipos: imagens concretas, sensíveis e imaginativas, imagens afetivas e imagens mortas.

Essas imagens são apreendidas pela imaginação individual e que é completada pelo sujeito como em “O vento engrossa sua grande voz” (sopra forte), pelos sentimentos que sugerem uma imagem que pode variar de um para outro, como em “estou passada” (não acredito/estou chocada) e por uma operação intelectual, pois as imagens mortas só são regatadas quando remontamos a sua origem como em “escrúpulo”, do latim scrupulu, cujo sentido era de uma “pedrinha” para pesar coisas, depois passou a significar “honestidade” em relação ao cliente e se estendeu ao sentido de “meticulosidade, senso moral”.

TÓPICO 2 | CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESTILO

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As escolhas realizadas e sua distribuição no enunciado apontam para as inúmeras possibilidades à disposição do autor que pode seguir rituais rigorosos ou chegar ao nonsense como o exemplo dado em (25).

(25) “Quando um locutor anunciava que “os atletas do Diabo Rubro adentram o quadrilátero gramífero dos altos da Santa Cruz, banhado pelos raios do Astro-Rei, numa canícula causticante não muito propícia para a prática do esporte bretão”, você traduzia por “entra em campo o time do América, no estádio que fica situado no bairro Santa Cruz, num calor de rachar, quase matando os doidos que tinham que jogar futebol naquele horário” <https://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Revista&id=346>.

Essa criatividade só é possível porque há um repertório à disposição do qual selecionamos as palavras que vão compor nossas estratégias enunciativas. Em (25), evidencia-se o uso do jargão como em “quadrilátero gramífero” (campo), “canícula causticante” (calor de rachar), “esporte bretão” (futebol) que demonstra a relevância da forma e a multiplicidade de recursos expressivos a serviço do autor.

A manifestação dessas escolhas pode ser evidenciada na Figura 19 em que temos o estilo McDonald’s aparecendo novamente, como vimos na estilística do som. Dessa vez, a empresa utiliza como força argumentativa a prova do ENEM e constrói seu texto na plataforma Twitter a partir do discurso oficial sobre as recomendações aos candidatos do que levar no dia da prova. A linguagem utilizada é descontraída, popular e evoca o grupo social formado por estudantes a partir do uso de gírias como “Alô”, “passar no Méqui”, “corre lá” que se constituem em força expressiva no texto.

As marcas estilísticas da empresa não param por aí. O “internetês” também é uma linguagem utilizada para convencer os estudantes de que há uma relação muito próxima entre eles. Por isso, o uso de “pfvr” (por favor), “mt” (muito), “Méqui” (McDonald’s), “app” (aplicativo). Há ainda a fuga à norma com relação ao verbo “esquecer”. A empresa escreve: “não pode esquecer ... da caneta preta”, sendo que essa forma se aproxima da oralidade sem a presença do pronome (não pode se esquecer da...) mas, é uma construção cada vez mais utilizada pelos falantes.

FIGURA 19 – TWITTER MÉQUI

FONTE: <http://twixar.me/Q4gT>. Acesso em: 12 dez. 2019.

206

UNIDADE 3 | A ESTILÍSTICA: DISCURSO E SUBJETIVIDADE

2.3 ESTILÍSTICA DA FRASE (SINTÁTICA)

A estilística da frase está relacionada à sintaxe, ao nível sintagmático. As palavras são escolhidas no paradigma, combinadas no sintagma e a maneira como são combinadas aponta para o estilo. É no enunciado que a frase se materializa e é na enunciação que os sentidos do enunciado são evidenciados. Por que estamos falando em enunciado se o foco é a frase? Porque estamos tratando a língua do ponto de vista de situações reais de comunicação e não apenas de sequências de palavras bem organizadas formalmente, isoladas de seu contexto. Assim, estamos tratando estilo não como desvio ou erro, mas como o trabalho de escolhas entre uma forma e outra. Vejamos, brevemente, este exemplo em (26):

(26) Conversa entre amigas em um evento: A. — “Você veio de carro?

O que podemos supor desse enunciado? Inicialmente, se formos analisar apenas a relação entre as unidades, teremos uma frase interrogativa, marcada pelo ponto de interrogação. Na enunciação, as escolhas realizadas em “Você veio de carro?” evidencia que (A) talvez queira saber se a amiga veio de carro para (i) pedir uma carona; (ii) informar que a volta do evento está complicada pelo rua X; (iii) ter cuidado com os roubos no estacionamento; (iv) dizer que um amigo está precisando de carona; ou se amiga não veio de carro para (i) dar-lhe uma carona; (ii) dizer que também está sem carro e o melhor é pedir carona; (iii) convidá-la para pegarem o ônibus juntas; (iv) dividirem um táxi.

Na estilística da sintaxe, o autor escolhe as palavras e as organiza criando certa expressividade, poeticidade, subjetividade, ao fugir da arrumação usual da língua, constituindo inovações estilísticas ou inadequações que passam a ser utilizadas como um traço original de estilo. Vamos analisar esta campanha da Crocobeach na Figura 20 acerca do uso consciente do canudinho.

FIGURA 20 – CROCOBEACH

FONTE: Adaptado de <https://ebmquintto.com.br/wp-content/uploads/2019/01/canudo-1.jpg>. Acesso em: 23 jan. 2020.

“Usar um canudo custa 4 minutos da sua vida, porém a vida inteira de uma tartaruga”.

TÓPICO 2 | CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESTILO

207

A escolha lexical presente na Figura 20 traz implícita a ideia de que canudo de plástico e vida animal não combinam e a escolha em não usar canudo é do cliente. Monteiro (2009) afirma acerca da dificuldade em se definir quando há uma ruptura da sintaxe ou se é apenas uma escolha. Para ele, a expressividade é que legitima as estratégias estilísticas e é isso que vamos encontrar no enunciado.

O enunciador dá ênfase à expressão “usar”, mas a proposta é “não usar”, que é marcada no item lexical, “porém”, ou seja, a maneira como as palavras são arrumadas no enunciado produz o efeito da “proibição” dessa prática no restaurante. “Usar” e jogar fora. Essa ação dura “4 minutos de sua vida” que se contrapõe à expressão “vida inteira de uma tartaruga”. O trocadilho “sua/dela” evidencia os efeitos estilísticos e a utilização da expressão “usar um canudo”, no início do enunciado, na posição de sujeito, marca a força argumentativa do enunciado. A intenção não é ensinar nem defender uma causa, mas sustentar a tese de que o uso do canudo plástico é prejudicial à saúde dos animais no mar.

Frase: uma unidade de comunicação abstrata que não precisa ser uma oração (sujeito e predicado). Pode ser declarativa, exclamativa, interrogativa ou imperativa. Exprime um sentido e pode estar ligada a outras frases por conectivos e por um elo semântico.

• Estacionamento idoso.• Tal pai, tal filho!• Cuidado!• E o menino?

Para mais informações acerca de frase e oração no campo da Estilística, consulte Martins (1989) e Câmara Júnior (1974).

NOTA

2.4 ESTILÍSTICA DA ENUNCIAÇÃO

A Estilística da enunciação tem como objeto de estudo o ato de comunicação verbal, a enunciação. A enunciação é a atividade social e interativa na qual a língua é colocada em atividade por um enunciador, tendo em vista o seu interlocutor. O produto da enunciação é o enunciado, oral, escrito ou construído a partir de outras linguagens. O discurso é o próprio enunciado quando produzido em uma situação de enunciação, determinado por condições sociais e históricas.

De acordo com Benveniste (1995), é na e pela linguagem que a subjetividade se constitui e que o locutor assume a capacidade de se tornar sujeito da enunciação. A subjetividade pressupõe uma relação eu/tu sendo que o “eu” é interior ao discurso e o “tu” exterior, mas esse é importante para o reconhecimento do eu. Além dessa correlação eu/tu, há um espaço (aqui) e um tempo (agora).

208

UNIDADE 3 | A ESTILÍSTICA: DISCURSO E SUBJETIVIDADE

Essa relação pessoa, tempo e espaço é questionada por autores como Possenti (2001), Maingueneau (1998), Brandão (2004) e Zandwais (2011). Para Maingueneau (1998, p. 53), “[...] a enunciação não deve ser concebida como a apropriação, por um indivíduo, do sistema da língua”, pois a enunciação não é um ato individual, mas uma “imposição” das regras ligadas aos gêneros discursivos.

Zandwais (2011) afirma que não pode haver fronteira entre enunciado e enunciação, uma vez que é preciso se distanciar dos aspectos formais desses limites. Além disso, o enunciado só pode ser compreendido por meio das vozes que o compõem e por meio do acontecimento, ou seja, a enunciação é atravessada por vozes que se mesclam e como algo que não se repete. Brandão (1998) também se contrapõe às ideias de Benveniste e assegura que o autor, ao centralizar a enunciação no “eu”, parece marcar, de forma acentuada, “[...] uma subjetividade ‘ego-cêntrica a reger o mecanismo da enunciação” (BRANDÃO, 1998, p. 49).

Todos esses argumentos são corroborados por Possenti (2001) que se afasta da teoria benvenistiana ao assegurar que a subjetividade não se manifesta apenas nos índices de pessoa, tempo e espaço, pois isso seria simplificar a questão da enunciação já que a instância do “eu” pode ser marcada de outra forma. Possenti (2001) argumenta, ainda, que a enunciação é um processo que se realiza com e sobre a língua e, nessa atividade, o sujeito se constitui.

E o estilo? Quais as implicações da enunciação na constituição das estratégias estilísticas? Em que a estilística da enunciação se distingue das outras concepções de estilística? Como identificar as marcas da enunciação?

Como a língua não se apresenta pronta e estruturada, o sujeito escolhe seus aparatos linguísticos como os mais adequados aos seus interesses. O estilo vai se constituir a partir dessas escolhas que não implicam um “eu”, mas na maneira de o sujeito enunciar algo. Essa maneira de dizer denuncia seu ponto de vista, seu estilo e sua assinatura. São as marcas da enunciação que se encontram nos enunciados e vão indicar o estilo sob o efeito de uma unidade.

Essas marcas nem sempre estão explícitas ou marcadas por “eu”. A subjetividade pode se manifestar marcada explicitamente no enunciado em 1ª pessoa ou implícita quando não se apresenta diretamente no enunciado. Por isso, no trabalho do enunciador, ao selecionar os recursos expressivos para instaurar a relação com o interlocutor, a subjetividade pode ser ressaltada ou apagada de acordo com as expectativas.

Vejamos como essas marcas se evidenciam na enunciação a partir deste texto em (26).

(26) a. “Eu estava passando pela vila e vi a loja, eu aprecio arte e resolvi entrar. Achei os quadros bonitos, eu vou levar para mim e para dar de presente”, falou o empresário Vinicius Martins, que é turista de São Paulo <http://twixar.me/mlgT>.

TÓPICO 2 | CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESTILO

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Em (26.a), temos a enunciação marcada linguisticamente e de forma explícita. O enunciador marca seu texto com a expressão “eu”, indicadora da 1ª pessoa, e a reforça com as formas verbais “estava”, “vi”, “aprecio”, “resolvi”, “achei”, “vou levar” e “dar”. Esses verbos de elocução têm a função de estabelecer relações entre enunciados e ressaltar um valor estilístico relevante em vista da riqueza semântica dos termos escolhidos. Marcas de apreciação e valoração estão presentes em “aprecio”, “bonitos”, “levar para mim” e “dar de presente”.

Essa unidade enunciativa que se faz na enunciação e é construída pela multiplicidade de recursos colocados à disposição do falante serve como argumento para a construção da imagem do lugar como um espaço que vale a pena conhecer. Além disso, visa demonstrar que o estilo não se produz no desvio da norma, nem apenas na expressividade pessoal, mas no agenciamento dos recursos gramaticais específicos no repertório do autor que vão individuar seu discurso e produzir efeitos de sentido que ressaltarão as marcas estilísticas. Observe esta outra passagem da mesma reportagem em (26.b).

(26) b. “Algumas peças custam R$ 5, mas também existem produtos exclusivos, feitos por encomendas, que custam um pouco mais caro, que podem valor ser vendidos por R$ 600”, falou Silvia <http://twixar.me/mlgT>.

Analisando o enunciado em (26.b), temos outra enunciação na qual a

subjetividade se mostra de outra forma e não há mais os verbos de elocução, parecendo ser uma informação geral e impessoal. No entanto, o enunciador continua presente nas escolhas dos recursos expressivos que são mobilizados para produzir determinados efeitos de sentido em seu interlocutor e marcar seu estilo. Não há mais uma voz, mas vozes, a de Sílvia, representante da associação, e a dos artesãos reproduzidas na voz de Silvia. Neste caso, o enunciador se utiliza de expressões como “algumas”, “R$ 5”, “exclusivos”, “um pouco mais caro” que vão funcionar como uma avaliação apreciativa ou axiológica dos produtos e do o espaço, acessível a todos. Outro enunciado, em (26.c), completa a análise sobre as marcas de enunciação.

(26) c. “O arquipélago de Fernando de Noronha é conhecido pelas belezas naturais, que encanta turistas e também inspira artistas locais” <http://twixar.me/mlgT>.

É possível evidenciar, em (26.c), que a subjetividade está implícita. Não há verbos de elocução e o enunciado produz efeitos de objetividade. O enunciador se ausenta do enunciado e não há marcas de enunciação explícitas. É o enunciado pelo enunciado e sua objetividade pode ser comprovada pelo seu interlocutor e pela produção de uma vista real do lugar. São os recursos linguísticos “arquipélago”, “Fernando de Noronha”, “belezas naturais”, “turistas”, “artistas” que passam a estruturar a realidade apontada no enunciado.

210

UNIDADE 3 | A ESTILÍSTICA: DISCURSO E SUBJETIVIDADE

Conforme os enunciados analisados, a subjetividade está presente na linguagem e, com o estilo, revela-se pelo simples ato de enunciar e não há necessidade de dizer “eu”, como vimos em (26.c). Possenti (2001) argumenta que na enunciação, a subjetividade pode ser ressaltada ou apagada e isso implica dizer que a língua não contém a enunciação, mas “[...] ela é o aparelho de enunciação e individuação. Não é que possa ser: ela é, ela implica a subjetividade” (POSSENTI, 2001, p. 73). Ou seja, o estilo e a subjetividade não está naquilo que é dito na enunciação, mas na maneira como é dito, nos efeitos de sentido.

3 ESTILO E EFEITOS DE SENTIDOAo longo dessa unidade, temos falado muito em estilo e efeitos de sentido

produzidos pelos recursos linguísticos na enunciação. É preciso compreender que os efeitos não são constituídos pelo reconhecimento lexical e enunciativo, uma vez que nem sempre o interlocutor apreende os sentidos, pois “[...] não são nem escravos nem senhores da língua. São trabalhadores” (POSSENTI, 2001, p. 77).

Por exemplo, na Figura 21, temos a fala da mulher que, em um tom de sarcasmo, malícia e maldade zomba da ingenuidade do homem. Palavras como “parabéns” e “desvendou” evidenciam o trabalho do enunciador, nesse caso, a mulher, entendido como a escolha de uma seleção de recursos expressivos que vai produzir no seu interlocutor, o homem, determinados efeitos.

Os efeitos desses sentidos evidenciam que a apropriação e a criação, mas

isso não é produzido por meio de um sistema pronto que se mostra ao enunciador e nem apenas de um discurso criativo. Esses efeitos vêm de uma atividade do sujeito enunciador sobre a língua. Assim, “[...] produzir um discurso é continuar agindo com essa língua não só em relação a um interlocutor, mas também sobre a própria língua” (POSSENTI, 2001, p. 76).

FIGURA 21 – EFEITOS DE SENTIDO

FONTE: <http://1.bp.blogspot.com/_EJEc1ukjmGs/S5bIrpseYjI/AAAAAAAAAFU/Bem8D6qrT-Q/s400/sarcasmoeestupidez.jpg>. Acesso em: 14 dez. 2019.

TÓPICO 2 | CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESTILO

211

Assim, a “ingenuidade” do homem aponta que os efeitos de sentido na construção do estilo não estão prontos, mas são construídos na relação entre os interlocutores. A constituição de um enunciado não é garantia da produção de certos efeitos de sentido, pois os sujeitos não são iguais e sua compreensão das escolhas lexicais realizadas pode não ser coincidente.

Então, a construção do estilo e o trabalho de escolhas realizados pelo enunciador pode ser realizada na seleção consciente dos recursos expressivos para a obtenção de determinado efeito que aparece tanto na seleção das palavras quanto nas entonações conferidas ao enunciado. Isso nos leva a conceber o estilo como fruto de um trabalho sobre recursos variáveis nos quais a subjetividade se manifesta de forma ativa, permitindo romper com regras estabelecidas pela língua.

212

UNIDADE 3 | A ESTILÍSTICA: DISCURSO E SUBJETIVIDADE

LEITURA COMPLEMENTAR

A ESTILÍSTICA APLICADA A POEMAS COMO ESTRATÉGIA DE LEITURA

Jardeni Azevedo Francisco JADEL

Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ)

[...]

4 ANÁLISE DOS TEXTOS SELECIONADOS É importante que o professor questione o aluno sobre o gênero textual

ao qual pertence o poema, evidenciando as suas características e levando-o à comparação com outros gêneros. Essa atividade deve ser realizada antes da leitura, com a função de criar expectativas e motivar os alunos, despertando a curiosidade sobre o conteúdo e a forma do poema: levando em conta as predições (KLEIMAN, 2004, p. 51) ou “o conhecimento prévio dos alunos com relação ao texto em questão” (SOLÉ, 1998, p. 91).

Texto 1 Troco um fusca branco por um cavalo cor de vento um cavalo mais veloz que o pensamento. Quero que ele me leve para bem longe e que galope ao deus-dará que já me cansei desse engarrafamento...

O uso da primeira pessoa marca a subjetividade afetiva que se prende

ao fato de a autora mostrar-se emocionalmente envolvida no conteúdo do enunciado. O uso das formas verbais troco e quero revela, não somente, a oferta para substituição de um meio de transporte (fusca) por outro (cavalo), mas o seu desejo explícito de fugir dali, afastando-se do problema, sem se importar com o destino: a essência é a mudança.

Para isso, ela anuncia o produto que quer se desfazer (fusca) e manifesta o

seu objeto do desejo (cavalo cor de vento), que ultrapassa a condição de meio de transporte, mas que representa uma alteração no processo da viagem: não é mais ela quem conduzirá, é ele (o cavalo) que tem o poder de levá-la para bem longe. É uma proposta inusitada de troca que contrasta o que é banal (fusca branco) e o que é extraordinário (cavalo cor de vento).

Para caracterizar o elemento cavalo a autora escolhe palavras como cor de

vento e veloz. Vento não se trata de uma cor a ser percebida pelos olhos, mas sugere a possibilidade de voar, ratificada pela combinação com a palavra veloz.

TÓPICO 2 | CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESTILO

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A identificação das cores dos veículos envolvidos branco e cor de vento envolve registros sensoriais diferentes (sinestesia): branco está ligado ao visual e vento associado à sensação táctil. Essa fuga ao rigor lógico da previsibilidade promove associações semânticas surpreendentes que só são compreendidas à luz da sensibilidade. Seu tom e seu propósito são eminentemente psíquicos e o seu efeito é essencialmente poético. O exagero de expressão mais veloz que o pensamento é uma figura que pretende projetar nossas expectativas mais desmesuradas. A expressão exagerada (hipérbole) amplia o ponto de vista sobre a matéria apresentada, revelando o juízo passional da autora sobre o fato.

A repetição da palavra cavalo foge à característica do anúncio comum, mas

torna-se, no texto, um recurso para marcar o elemento principal: o veículo a ser substituído, o seu produto de troca que viabilizará, na sua imaginação, a fuga desejada.

Outro aspecto interessante é a sonoridade de caráter contínuo do v nas

palavras vento e veloz, dando-nos a sensação de uma corrente de ar que passa forte. Essa evocação sonora sugerida pelos fonemas pode ser explorada estilisticamente nas aulas de português.

O último verso anuncia o problema, o motivo da insatisfação da autora,

num desabafo, na expectativa de situar quem está lendo, no seu espaço concreto. O uso de reticências ao final do poema marca a suspensão do pensamento que permite ao leitor imaginar a dimensão de sua extensão, um longo e interminável engarrafamento. Segundo Martins (1989, p. 87), “os sinais de pontuação ajudam a reconstituir a entoação que o autor pode ter pretendido para o seu texto”.

Texto 2 Troca-se um homem aranha de mentira por uma aranha de verdade. Uma aranha competente que teça belas teias transparentes, que pegue moscas, mosquitos e não entenda nada de bandidos. Uma aranha que seja uma aranha simplesmente.

A escolha da autora na forma verbal troca-se afasta o caráter emotivo em

relação ao produto de troca. Percebe-se que a noção de pertencimento do eu-poético não acontece. A função semântico-estilística da voz passiva na construção do texto possibilita diferentes efeitos de sentido advindo desse recurso linguístico. É uma forma para representar um processo em que se menciona o paciente tirando o foco do agente: valoriza-se mais o processo que o próprio agente, omitindo o sujeito.

O primeiro verso remete o leitor a outro (con)texto: um herói das telas

e histórias em quadrinho, trazendo à tona o conceito de intertextualidade que, segundo Martins (1989, p. 237), é um “assunto muito importante de que se vem ocupando a linguística/estilística da enunciação. Koch (2003, p. 59) afirma que:

214

UNIDADE 3 | A ESTILÍSTICA: DISCURSO E SUBJETIVIDADE

[...] todo texto é um objeto heterogêneo, que revela uma relação radical de seu interior com seu exterior; e, desse exterior, evidentemente, fazem parte outros textos que lhe dão origem, que o predeterminam, com os quais dialoga, que retoma, a que alude, ou a que se opõe.

O termo intertextualidade provém dos estudos da crítica literária francesa Julia Kristeva, que introduziu o conceito na década de 60, a partir dos postulados bakhtinianos. Assim, tem-se como princípio que a retomada de um texto em outro revela como a textualidade faz-se enquanto processo, pois a intertextualidade é um elemento que, nas palavras de Koch, Bentes e Cavalcante (2008, p. 9-10), demonstra:

[...] essa necessária presença do outro naquilo que dizemos (escrevemos) ou ouvimos (lemos), procurando dar conta das duas facetas desse fenômeno: a intertextualidade em sentido amplo (lato sensu), constitutiva de todo e qualquer discurso, e a intertextualidade stricto sensu, atestada pela presença necessária de um intertexto.

A autora utiliza a figura do super-herói da TV apelando para a imaginação

do leitor, remetendo-o para o jogo entre o real e a fantasia, construindo, assim, novas possibilidades de descobertas. Sem perder o foco, ela brinca com a antítese verdade/mentira, explorando a oposição entre duas ideias, valorizando as características dos dois elementos através da contraposição simétrica das palavras, para dar relevo a uma noção de contrariedade que se manifesta no espírito da enunciadora.

A intenção de persuadir o leitor com o produto a ser trocado fica mais evidente quando ocorre a adjetivação da aranha de verdade. Ela é competente e tece belas teias transparentes. Os adjetivos são carregados de afetividade e exprimem julgamento pessoal, atribuindo qualidades valorizadoras que atuam como poder diferenciativo. Por outro lado, o produto a ser trocado traz o rótulo de mentira, associado à existência de bandidos – elemento de valor pejorativo, depreciativo.

Numa tentativa de resgatar a autenticidade de uma aranha de verdade,

contrapondo-a ao personagem fictício do herói divulgado nas telas, a autora revela a sua verdadeira função: pegar moscas e mosquitos. Esse resgate é reforçado no último verso com o uso do advérbio simplesmente que, posposto ao substantivo aranha, exerce um duplo papel: indicar o modo e a qualidade da simplicidade de ser uma aranha.

O artigo indefinido foi bem valorizado neste poema e tem forte valor estilístico ao acompanhar o substantivo aranha. Como afirma Lapa (1945, p. 91), “A capacidade estilística do artigo indefinido está na imprecisão que dá às representações. Serve para traduzir a imprecisão e o mistério”. Ele também afirma que “a indeterminação e o mistério vão quase sempre acompanhados de movimento de sensibilidade”.

TÓPICO 2 | CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESTILO

215

Dentro do nível fônico temos de considerar os recursos estilísticos que não são propriamente figuras de estilo, como é o caso da rima utilizada no texto para imprimir um ritmo poético pelo uso coincidente dos sons no final das palavras competente, transparentes e simplesmente; e mosquitos e bandidos. A rima foi empregada como recurso estilístico com a função expressiva de agradar o ouvido pela repetição de sons em determinados intervalos, realçando as ideias contidas nas palavras em que ocorre. Segundo Câmara (2004, p. 45):

É a motivação sonora que especialmente justifica do ponto de vista estilístico a rima. O poeta se fixa, para ela, nos sons que a sua intenção poética condiciona, ou num vocábulo que é praticamente evocado pelos sons que encerra.

O termo uma aranha ocorre cinco vezes no decorrer do texto. Essa repetição

– que não é comum no gênero classificados – deve ser reconhecida como recurso de modalização que mobiliza o movimento do enunciador com a matéria anunciada. Esse recurso estilístico, além de chamar atenção do receptor da mensagem pelo artifício da repetição em si, acrescenta a ela um sentido suplementar de ênfase.

[...]

FONTE: JADEL, J. A. F. A estilística aplicada a poemas como estratégia de leitura. 2013. Disponível em: http://www.ileel.ufu.br/anaisdosilel/pt/arquivos/silel2013/115.pdf. Acesso em: 23 jan. 2020.

216

RESUMO DO TÓPICO 2

Neste tópico, você aprendeu que:

• A Estilística pode abordar a expressividade a partir dos níveis sonoros, lexicais, frasais (enunciados) e da enunciação. Em todos eles, o enunciador desenvolve um trabalho de escolhas que vai produzir determinados efeitos de sentido ao seu enunciado.

• O estilo está intimamente ligado aos efeitos de sentido, que se insurgem na enunciação a partir das escolhas dos recursos expressivos que são mobilizados a partir de diferentes estratégias para a construção discursiva.

Ficou alguma dúvida? Construímos uma trilha de aprendizagem pensando em facilitar sua compreensão. Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo.

CHAMADA

217

AUTOATIVIDADE

1 Observe os quadrinhos, analise as alternativas e marque a sequência CORRETA.

FONTE: <http://twixar.me/CQgT>. Acesso em: 15 dez. 2019.

a) ( ) Há um jogo de palavras em “saia pra fora” utilizados com o mesmo sentido pela mulher e pelo cachorro.

b) ( ) O uso de “saia pra fora” constrói uma redundância cujo efeito é reforçar a ideia de “sair”.

c) ( ) A redundância na escolha das palavras evidência um paradoxo nas ideias da mulher e do cachorro (terceiro quadro).

d) ( ) Há uma antítese entre as ideias da senhora e do cachorro.

2 Quando utilizamos o dicionário, as palavras parecem ter o mesmo sentido. No entanto, quando colocadas em uso, em um contexto, as mesmas palavras criam vida e efeitos que direcionam nosso olhar. É o que podemos evidenciar nesses três enunciados cujo tema é o mesmo: a greve na França em 2019. O uso das palavras “grevistas, manifestantes, trabalhadores” não estão nas manchetes sem uma intenção de seu enunciador. Com relação ao estilo do jornal a partir da seleção lexical, analise as sentenças a seguir:

I- “Jean-Pierre Farandou pediu aos grevistas uma trégua de natal”. O jornal evidencia em “grevistas” sentidos de ilegalidade da manifestação, reforçados na palavra “trégua”. O jornal é contra a greve.

II- “Manifestantes fizeram barricadas de fogo durante protestos na França”. O jornal evidencia sentidos de militante, atribuído à “protestos”. O jornal é a favor da greve.

III- “Trabalhadores e trabalhadoras da França paralisaram os transportes”. O jornal evidencia sentidos de alguém que exerce uma profissão e busca seus direitos. O jornal é a favor da greve.

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Assinale a alternativa CORRETA:a) ( ) Somente a sentença I está correta.b) ( ) Somente a sentença II está correta.c) ( ) Somente a sentença III está correta.d) ( ) As sentenças I e III estão corretas.

3 Todo ponto de vista é a vista de um ponto. Para entender como alguém lê, é necessário saber como são seus olhos e qual é sua visão de mundo. Considerando o fragmento de texto apresentado, avalie as asserções a seguir e a relação proposta entre elas:

FONTE: BOFF, L. A águia e a galinha: uma metáfora da condição humana. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997. p. 9.

I- Na leitura, fazemos mais do que decodificar as palavras.

PORQUE

II- A imagem impressa envolve atribuição de sentidos a partir do ponto de vista de quem lê.

Assinale a alternativa CORRETA:a) ( ) As asserções I e II são proposições verdadeiras, mas a II não é justificativa

da I.b) ( ) As asserções I e II são proposições verdadeiras, e a II é uma justificativa

da I.c) ( ) A asserção I é uma proposição falsa, e a II é uma proposição verdadeira.d) ( ) As asserções I e II são proposições falsas.

4 A sensibilidade na Estilística é traduzida nos recursos que expressam afetividade, julgamentos, emoções, presentes no enunciado, e que afetam o outro de forma persuasiva. Observe:

1. Recife lança mosquitos inférteis no combate ao Aedes aegypti (Rádio Jornal/ 20/12/19).

2. Recife libera 350 mil mosquitos estéreis para combater arboviroses Folha de Pernambuco/20/12/19).

3. Recife começa a lançar mosquitos aedes aegypti estéreis em Brasília Teimosa (Diário de Pernambuco/ 20/12/19).

Acerca dos enunciados apresentados e a palavra que desperta a emoção de acordo com o contexto, analise as sentenças a seguir:

I- As escolhas realizadas pelos três jornais apontam para potencialidades expressivas distintas.

219

II- No jornal 1, a escolha da palavra “inférteis” torna o enunciado neutro, ou seja, menos expressivo.

III- No jornal 2, a escolha da palavra “arboviroses” expressa uma linguagem coloquial, mais próxima de seu leitor.

Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) As sentenças I e III estão corretas.b) ( ) Somente a sentença I está correta.c) ( ) As sentenças I e II estão corretas.d) ( ) Somente a sentença III está correta.

5 Analise os enunciados em (a) e (b) e discuta acerca da construção do estilo pelos enunciadores.

a) O jogo será aproveitado por José Gomes para cimentar as ideias <http://twixar.me/kQgT>.

b) Muitos especialistas acreditam no poder do pensamento positivo e sua capacidade de varrer para longe as ideias negativas [...] <http://twixar.me/qQgT>.

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