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Seminário América Latina: Cultura, História e Política - Uberlândia - MG – 18 a 21 de maio de 2015
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A Temática de Urbanização e Cultura em Lenine
Letícia GAVIOLI1
Resumo
A influência das questões urbanas sobre as manifestações culturais e o processo inverso,
de interferência da cultura de uma sociedade no âmbito urbano, mostra a importância de
se analisar as inter-relações do Urbano e da Cultura. Para tanto, estuda-se temas de
Urbanização e Cultura no âmbito de uma manifestação cultural brasileira: as canções de
Lenine. Assim, lê-se suas principais canções sob o arcabouço de autores consagrados
que abordam questões urbanas e culturais e o diálogo entre si, analisando como a
abordagem dessas temáticas nas letras de Lenine se relaciona com os posicionamentos
dos teóricos. Conclui-se que há uma frequente defesa da brasilidade enquanto
identidade que abriga a diversidade. Porém, em algumas canções foi destacada a
situação de exclusão de populações miseráveis e a necessidade de se afirmar o direito à
cidade e a uma civilidade. Logo, Lenine não considera em toda sua obra a identidade
brasileira como um todo harmônico.
Palavras-chave: Cultura; Urbanização; Lenine
1. Introdução
O fato de as questões do Urbano influenciarem fortemente as manifestações culturais e
as formas destas e, ao mesmo tempo, haver um processo inverso – dialético – onde a
cultura de uma sociedade interfere no âmbito urbano, tendo o poder de transformá-lo,
mostra a necessidade de verificar como a temática de Urbanização e Cultura se expressa
1 Mestranda em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais, e-mail: [email protected]
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em um âmbito particular da cultura, no caso, a música e, mais especificamente, em suas
letras.
Desse modo, propôs-se realizar uma espécie de metalinguagem indireta, que seria uma
forma mais ampla de tomar o código que se utiliza como objeto de descrição. Isto é,
considera-se a função metalinguística como tudo o que, em uma mensagem, serve para
dar explicação ou precisar o código utilizado pelo destinador (MAGNANTI, 2001).
Isto é, enquanto Lenine faz uso da metalinguagem tradicional em sua música
denominada “De onde vem a canção”2, onde - através de uma canção - descreve o
processo de compô-la, este trabalho toma como objetos de descrição os temas de
Urbanização e Cultura por meio de um código que seria um aspecto (a música) de
Urbanização e Cultura.
Assim, devido à amplitude de canções cujas letras abordam nossa temática de interesse,
o “cantautor” – como ele próprio se denomina – escolhido foi Lenine. Para Santos
(2010), Lenine seria um cancionista, ou seja, “aquele que faz canções e estabelece uma
relação discursivamente peculiar entre letra e música”, em contraposição ao poeta – que
faz poema -, e ao compositor – que faz música instrumental.
Enquanto pertencente a um movimento musical, Lenine é majoritariamente classificado
como pertencente à Música Popular Brasileira (MPB). Porém, discorda desta
classificação dizendo que, então, MPB significaria para ele “Música Predatória
Brasileira” no sentido antropofágico. Este foi elucidado por Oswald de Andrade e os
modernistas e retomado pelos tropicalistas, como Caetano Veloso, onde a antropofagia
se remeteria a uma “devoração intercultural” (ALMEIDA, 2002, p. 127). Isso, contudo,
sem deixar de lado inspirações nacionalistas.
Desse modo, muitos estudiosos classificariam Lenine como um sucessor dos
tropicalistas e do modernismo, porém ele prefere nomear suas produções musicais de
“híbridas”. Entretanto, o significado por ele atribuído ao termo “hibridagem” não seria
equivalente ao “hibridismo” presente em Canclini (2006). Isso porque, conforme
apontado por Pereira (2013), a terminologia de Canclini pressupõe que as novas
2 Do álbum “Chão” (2011).
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estruturas formadas pela hibridação seriam uma junção de práticas discretas, que
existiam de forma separada, de modo a superar “projetos patrióticos”. Lenine, ao
contrário, conjugaria estilos notórios que desde sua gênese estariam ligados a outros
gêneros, ou seja, não existiam de forma separada. Além disso, o “cantautor” apresenta
frequentemente em suas canções um discurso de defesa da brasilidade.
Mesmo entre os que estariam classificados como pertencentes ao estilo MPB enquanto
predatória, ou “Nova MPB”, Lenine discorda de que isso se trataria de um movimento.
Argumenta que o que os une, na realidade, é a diversidade. E que seriam, não um
movimento, mas “solidários solitários” (EVANGELISTA, 2011).
Quanto às principais temáticas de Urbanização e Cultura que foi possível encontrar nas
letras de Lenine, tem-se: direito à cidade; identidade e brasilidade; e diversidade. De
modo que são essas as estudadas.
Após esta introdução, este artigo apresenta uma seção metodológica, uma seção de
análise da temática de Urbanização e Cultura nas canções de Lenine, e uma seção para
as considerações finais.
2. Metodologia
A metodologia deste estudo seguirá em grande parte a de Zaluar e Alvito (1998). Em “A
palavra é favela”, os autores buscam todas as canções da MPB (em um sentido amplo)
em um recorte de tempo específico, que contenham a palavra “favela” e similares.
Entretanto, ressaltam que houve músicas cujos títulos não faziam referência àqueles
temas, mas que eram de grande interesse para o estudo. Desta feita, não se buscou, neste
trabalho, por palavras específicas, mas sim pelas temáticas de interesse.
Entretanto, por várias de suas canções tangenciarem mais de um dos temas a serem
estudados, não foi feito um recorte temático, e sim, cronológico. Isto é, trabalhou-se
apenas com composições musicais gravadas3 nos álbuns de Lenine, por ordem de
lançamento desses. Sendo, Lenine, o cantor e o autor - ou, ao menos, um dos autores -
da letra.
3 Como Zaluar e Alvito (1998).
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Os álbuns de onde constam as canções analisadas são: O dia em que faremos contato
(1997); Na pressão (1999); e Falange canibal (2002).
Após essas definições, apresentam-se as seis canções entre as mais famosas de Lenine,
subdivididas em seus álbuns, que, mais se aproximam da temática de Urbanização e
Cultura. Entretanto, ressalta-se que, assim como Zaluar e Alvito, permanece a
“síndrome do esquecimento”. Isso posto, não se está isento da possibilidade de haver
deixado de lado alguma canção relevante à temática de interesse.
3. Urbanização e Cultura nas canções de Lenine
Nesta seção apresenta-se os álbuns de Lenine - cujas descrições estão baseadas em
Lenine (2015) - que contenham as canções selecionadas para ilustrar e analisar a
temática de Urbanização e Cultura, o que é feito também nesta seção.
3.1 O Dia Em que Faremos Contato (1997)
Terceiro álbum da carreira de Lenine, O Dia Em que Faremos Contato é seu primeiro
álbum solo. Nele o cantor promove o contato da MPB com a tecnologia musical
contemporânea.
Composta exclusivamente por Lenine, a primeira canção apresentada do álbum é a faixa
4 - Etnia Caduca.
(...) É como um caldeirão
Misturando ritos e raças
É a missa da miscigenação. Um mameluco maluco
Um mulato muito louco
Moreno com cafuzo
Sarará com caboclo
Um preto no branco
E um sorriso amarelo banguelo (...)
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É o camaleão e as cores do arco-íris
Na maior muvuca
Ô… Etnia caduca!
Aqui, Lenine faz referência a uma brasilidade mestiça em um sentido muito positivo,
alegre - “É a missa da miscigenação”; “Ô... Etnia caduca!”. Porém, ao afirmar que a
miscigenação “É como um caldeirão/ Misturando ritos e raças” assume implicitamente
que esta mistura se dá de forma indistinta, homogênea.
No contexto da temática de Urbanização e Cultura, o autor que se aproxima dessa
posição é Da Matta (1986). Este trata a sociedade brasileira como indistinta em termos
de estilo e modos de fazer as coisas. Ou seja, a cultura e a ideologia de uma sociedade
seriam algo homogêneo.
Este pensamento já era explícito, de acordo com Souza (2009), na tese de Gilberto
Freyre, desenvolvida em Casa-Grande & Senzala, a ser criticada por aquele autor.
Naquela põe-se luz à cultura e não mais sobre a raça4. Logo, ser mestiço passa a ser algo
positivo e o brasileiro aparece caracterizado como povo do encontro cultural.
Por outro lado, Souza (2009) argumenta que os teóricos do mito da brasilidade
objetivam “retirar qualquer legitimidade do diferente e da diferença, do crítico e da à
crítica” (p.38). Assim, abolindo a crítica, a vida social seria naturalizada e,
consequentemente, naturaliza-se a cultura.
A canção seguinte, escrita em parceria com Bráulio Tavares, é a que dá nome ao álbum,
O Dia Em que Faremos Contato, faixa 6.
A nave quando desceu, desceu no morro.
Ficou da meia-noite ao meio-dia.
Saiu, deixou uma gente,
Tão igual e diferente,
Falava e todo mundo entendia. Os homens se perguntaram,
Por que não desembarcaram
Em São Paulo, em Brasília ou em Natal.
Vieram pedir socorro,
4 O racismo possuía prestígio científico internacional até a época em que a obra de Freyre foi publicada em 1933.
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Pois quem mora lá no morro,
Vive perto do espaço sideral. Pois em toda a Via Láctea,
Não existe um só planeta
Igual a esse daqui.
A galáxia tá em guerra,
Paz só existe na terra,
A paz começou aqui… (...) A nave estremeceu, subiu de novo,
Deixou um rastro de luz no meio-dia
Entrou de volta nas trevas,
Foi buscar futuras levas
Pra conhecer o amor e a alegria. A nave quando desceu, desceu no morro,
Cheia de “ET” vestido de orixá.
Vieram pedir socorro,
E se derem vez ao morro
Todo o universo vai sambar. Pois em toda a Via Láctea
Não existe um só planeta…
…Baticum, ziriguidum, dois mil e um.
Só tem aqui…
Em “Vieram pedir socorro/ Pois quem mora lá no morro,/ Vive perto do espaço sideral”,
mostra que quem vive no morro está mais perto dos excluídos, de quem pede socorro.
Porém em “Cheia de ET vestido de orixá” e “E se derem vez ao morro/ Todo universo
vai sambar” há uma exaltação da identidade cultural do morro, que apesar de excluído
possui a alegria do samba.
Aqui também se vê uma intertextualidade – recurso utilizado recorrentemente por
Lenine – com a canção O Morro Não Tem Vez de Tom Jobim e Vinícius de Moraes.
Nesta, os compositores também exaltavam a cultura do samba do morro e pediam
espaço para esta. A diferença da letra de Lenine é que trata do universo e também
explicita o samba – “Todo universo vai sambar”, enquanto que na original está “O
mundo inteiro vai cantar”. Outro aspecto da canção analisada é que no refrão vangloria-
se a cultura de todo o planeta, indistintamente.
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No âmbito do estudo de Urbanização e Cultura pode-se relacionar esta canção com
Canclini (2008), quando este apresenta os imaginários culturais da cidade. Assim, a
configuração imaginária sobre o urbano que estaria presente aqui seria a “cidade do
reconhecimento de diferentes”, as quais se relacionam às multi e interculturalidades
proporcionadas pelas migrações. No escopo de O Dia Em que Faremos Contato, o
diferente a ser reconhecido seria a cultura do morro e a interculturalidade proporcionada
pelas migrações seria a relacionada aos extraterrestres.
Em relação à forma de reconhecimento da classe marginalizada que vive no morro,
Rubim e Rocha (2010) sugeririam uma política cultural que descobrisse uma forma de
instrumentalizar agentes e grupos populares sem cooptá-los e sem necessariamente
desejar vendê-los para uma cidade turistificada.
3.2 Na Pressão (1999)
Com duas canções com temas de relevância ao trabalho, Na Pressão é o quarto álbum
de Lenine.
Sua primeira faixa é Jack Soul Brasileiro, provavelmente a mais estudada do cantor,
pois abarca diversas temáticas. Em especial, para o presente propósito, a brasilidade, a
diversidade e as técnicas de reprodução.
Já que sou brasileiro,
E que o som do pandeiro
É certeiro e tem direção
Já que subi nesse ringue,
E o país do suingue,
É o país da contradição.
Eu canto pro rei da levada,
Na lei da embolada,
Na língua da percussão,
A dança, a muganga, o dengo,
A ginga do mamulengo,
O charme dessa nação (...) “E diz aí, Tião!
Tião? – Oi…
Foste? – Fui.
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Comprasse? – Comprei.
Pagasse? – Paguei.
Me diz quanto foi? – Foi 500 reais.” (...) “Eu só ponho o bebop no meu samba
Quando o Tio Sam pegar no tamborim
Quando ele pegar no pandeiro e no zabumba
Quando ele entender que o samba não é rumba
Aí eu vou misturar miami com Copacabana
Chiclete eu misturo com banana
E o meu samba, e o meu samba vai ficar assim…” (...)
Desde o título, a canção apresenta intertextualidade. Ao mesmo tempo em que faz uma
homenagem a Jackson do Pandeiro, faz referência à brasilidade e à mistura. “Soul”, por
exemplo, pode fazer referência ao ritmo musical estadunidense – presente em trechos da
música - ou à tradução para o inglês da palavra “alma”, inferindo que, apesar de adotar
elementos estrangeiros – Jack –, a alma seria brasileira.
Nesta única canção Lenine mistura diversos ritmos – além do soul, o funk-rock, o
maracatu e o coco. Também faz uso do recurso musical sampler, o qual permite
introduzir na música trechos de outra canção. Assim, o compositor reforça sua
defendida “hibridagem”, que para Pereira (2013) possui o sentido de antropofagia. Para
a temática do estudo, poder-se-ia dizer apenas “diversidade”.
Mas diversidade em um sentido positivo, ou seja, não se trata de uma via de mão única,
onde apenas uma cultura é incorporada a outras. Isso fica evidente na estrofe que cita a
letra de Chiclete com Banana, interpretada por Jackson do Pandeiro e de autoria de
Almira Castilho e Gordurinha. A dita canção defende que só se deveria agregar a
cultura estadunidense à brasileira quando a nossa fosse reconhecida e valorizada por
eles. Na canção original, inclusive, sugere-se que em compensação iríamos querer que o
“Tio Sam” incorporasse também nossa cultura a dele.
Este ponto, da não subordinação cultural, é defendido por Reis (2007). Ela defende, no
âmbito da diversidade cultural como objetivo de política pública, a meta de preservar a
cultura nacional diante da ameaça de uma hegemonia cultural global e capacitá-la para
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participar dos fluxos de ideias e comércio de produtos e serviços culturais mundiais.
Assim, não se trataria de negar o que vem de fora, mas de permitir que coexista com o
que brota de dentro, de forma que não haja o imperialismo cultural, e sim a diversidade
cultural.
Quanto ao sampler, usado para a inserção do trecho de Cantiga de Sapo de composição
de Jackson e Buco do Pandeiro, pode-se relacioná-lo à temática da reprodutibilidade –
além da “hibridagem” endossada por Lenine, pois permite reproduzir dentro de uma
canção um trecho de outra de forma integral e não somente a letra, como ocorre na
estrofe de Chiclete com Banana.
Sobre esse tema – o da reprodutibilidade técnica – quem trata é Benjamim (2007). Para
ele uma canção com um recurso como o sampler certamente não possuiria uma aura,
pois esta se refere a uma unicidade temporal e espacial, presente nas obras de arte
autênticas. Estas apresentavam sempre, além da aura, um fundamento teológico do valor
único da obra de arte. Desse modo, qualquer música gravada em álbuns que podem ser
infinitamente reproduzidos já não possuiria uma aura. Talvez só quando interpretada em
um show autêntico, não preso a um formato pré-determinado, é que a música
recuperaria parte de sua aura.
Em menor medida, o “cantautor” faz críticas aos problemas brasileiros em “Já que subi
nesse ringue/ E o país do suingue/ É o país da contradição”. Como aponta Pereira (2013,
p. 56): “O Brasil é um ringue (espaço de lutas), um país de balanço, da “levada”
(suingue), mas também é o país de paradoxos (ou contradições)”. Ou seja, haveria na
identidade brasileira uma ligação entre as lutas, o ritmo e a desigualdade social (Silva,
2011).
Abordando a conexão entre suingue e contradição, é possível buscar em Canclini (2013)
os argumentos acerca dos desajustes entre modernismo e modernização. Enquanto que
aquele se refere aos aspectos ideológicos, culturais, de consumo, os quais teriam se
espraiado por diversos países formando uma cultura transnacional - conforme a
“hibridagem” e diversidade em nossa canção sugerem -; o segundo refere-se aos
aspectos econômicos e sociais, os quais permanecem desnivelados muito mais
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significativamente entre as nações desenvolvidas e as subdesenvolvidas - fato que
expressaria a dita contradição.
Ademais, Lenine homenageia Jackson do Pandeiro e exalta a identidade brasileira
durante toda a letra. Ou seja, retoma o mito da brasilidade defendido por Freyre e Da
Matta.
A outra letra estudada deste álbum é Relampiano (faixa 10), em parceria com Paulinho
Moska.
Tá relampiano, cadê neném?
Tá vendendo drops no sinal pra alguém
(...) Todo dia é dia, toda hora é hora,
Neném não demora pra se levantar,
Mãe lavando roupa, pai já foi embora
E o caçula chora para se acostumar
Com a vida lá de fora do barraco,
Hai que endurecer um coração tão fraco,
Para vencer o medo do trovão,
Sua vida aponta a contramão (...) Tudo é tão normal, todo tal e qual,
Neném não tem hora pra ir se deitar,
Mãe passando roupa do pai de agora,
De um outro caçula que ainda vai chegar,
É mais uma boca dentro do barraco,
Mais um quilo de farinha do mesmo saco,
Para alimentar um novo João Ninguém,
A cidade cresce junto com neném
Esta canção é uma espécie de canção-crônica, abordando o cotidiano da família de
“neném”, o qual é composto por uma miséria sem melhores perspectivas, o que é
expresso em “Sua vida aponta a contramão”. Reforçando este aspecto, tem-se os versos
“Mais um quilo de farinha do mesmo saco,/ Para alimentar um novo João Ninguém”, os
quais indicam tanto a demanda por mais comida, quanto a irrelevância, para a
sociedade, da criança que irá nascer.
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Dada a descrição da família de neném, tem-se que, para Souza (2012), ela pertenceria à
ralé brasileira. Portanto, à classe desprovida das pré-condições sociais, morais e
culturais que permitam a apropriação cultural e econômica presente nas outras classes.
E, como se não bastasse, é abandonada social e politicamente de forma consentida por
toda a sociedade. Ela não seria, então, vista como classe, mas como “indivíduos”
carentes ou perigosos.
Entretanto, a intertextualidade com a célebre frase de Che Guevara em “Hai que
endurecer um coração tão fraco” sugere que se deve lutar contra as inúmeras
adversidades postas pela vida (SANTOS, 2010).
Além disso, a música trata do meio urbano apresentando um duplo papel: o de cidade
que sufoca e o de ganha-pão. O primeiro é expresso nos versos “E o caçula chora pra se
acostumar/ Com a vida lá de fora do barraco” e o segundo em “Tá vendendo drops no
sinal...”. E por fim, o último verso da canção remete ao crescimento urbano que ocorre
simultaneamente às miseráveis condições de neném e sua família.
É possível relacionar esta canção com Lefebvre (2001), no sentido de que a vida urbana
dos personagens da canção não possui o atributo de “habitar”. Ou seja, não possibilita a
participação de uma vida social, de uma comunidade ou cidade, não havendo, portanto,
o direito à cidade no que se refere a seu valor de uso. Pelo contrário, há uma imposição
que atenta contra a diversidade de maneiras de viver e prende aquela família em um
cotidiano miserável repetitivo e a reduz à realização de algumas funções elementares
como comer, dormir, reproduzir. Dessa forma, os personagens da música estariam
presos à lógica do “habitat” (URIARTE, 2012).
3.3 Falange Canibal (2002)
Deste álbum – o quinto de Lenine – cujo título remete à tradição antropofágica,
apresenta-se duas composições. A primeira faixa é Ecos do Ão, escrita em parceria com
Carlos Rennó.
Rebenta na febém rebelião
Um vem com um refém e um facão
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A mãe aflita grita logo: não!
E gruda as mãos na grade do portão
Aqui no caos total do cu do mundo cão
Tal a pobreza, tal a podridão
Que assim nosso destino e direção
São um enigma, uma interrogação E se nos cabe apenas decepção,
Colapso, lapso, rapto, corrupção?
E mais desgraça, mais degradação?
Concentração, má distribuição?
Então a nossa contribuição
Não é senão canção, consolação?
Não haverá então mais solução?
Não, não, não, não, não… (...) (...) Porque não somos só intuição
Nem só pé de chinelo, pé no chão
Nós temos violência e perversão
Mas temos o talento e a invenção
Desejos de beleza em profusão
E ideias na cabeça coração
A singeleza e a sofisticação
O choro, a bossa, o samba e o violão (...)
Esta canção expressa a problemática da estratificação social entre os jovens, tendo em
seu expoente mais degradante a febém. Este espaço é apresentado através de sucessivas
negativas, onde o próprio título da canção reverbera a palavra “não”. Assim a febém
seria um não-lugar, onde não se habita – na perspectiva de Lefebvre.
De acordo com Silva et al (2011), “São um enigma, uma interrogação” sugere a
incerteza acerca dos rumos de uma sociedade que oferece a febém como espaço
alternativo (ou seria imperativo?) para a (re)educação de jovens. Entendam-se, aqui,
jovens pertencentes à ralé brasileira.
A rebelião representaria, então, a resistência do jovem deslocado para a febém em
resposta à sua desidentificação com esse não-lugar. Para transcendê-lo Lenine justifica,
na quinta estrofe, a necessidade e a validade de tornar aquele lugar de negação em um
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lugar desejável. Isso se daria, mais uma vez, com elementos da cultura brasileira: “Mas
temos o talento e a invenção/ .../ O choro, a bossa, o samba e o violão”. Ou seja, o
“cantautor” reforça novamente o argumento de que a solução para nossos problemas
sociais postos na lógica urbana se daria pela cultura brasileira.
Na perspectiva de Urbanização e Cultura, a rebelião seria, para Rubim e Rocha (2010),
uma fonte de pressão dos segmentos sociais, que se organizam para lutar por seus
direitos e, assim, interferem no processo de modelagem cultural das cidades
inaugurando uma “nova nossa civilização”. Assim, a sustentabilidade das cidades
estaria relacionada à sua habitabilidade, a qual é o objetivo daqueles que lutam pela
moradia.
Sem embargo, na argumentação da quinta estrofe, o recurso para a superação sugerido
por Lenine é novamente a brasilidade de Freyre e Da Matta. Para Canclini (2013) tratar-
se-ia, como em Jack Soul Brasileiro, do desajuste entre modernismo e modernização,
ou seja, entre uma cultura desenvolvida e aspectos sociais subdesenvolvidos. Já para
Lefebvre (2001):
O quadro dessa miséria generalizada não poderia deixar de se fazer
acompanhar pelo quadro das “satisfações” que a dissimulam e que se
tornam os meios de eludi-la e de evadir-se dela (LEFEBVRE, 2001, p.
118).
Sendo as “satisfações” os aspectos da cultura brasileira citados na canção, através dos
quais aqueles jovens buscariam evadir-se da situação de miséria.
A faixa 8 do álbum é Quadro Negro, também em parceria com Carlos Rennó. Como
Ecos do Ão, trata de um não-lugar, mas aqui de forma ampliada, como um retrato do
mundo de hoje “No sub-imundo mundo, sub-humano”. De acordo com o próprio
Lenine, o verso “O último a sair do breu, acenda a luz” representa o mote para falar dos
paradoxos, injustiças e contradições que se fazem presentes em nosso planeta.
No sub-imundo mundo, sub-humano Aos montes, sob as pontes, sob o sol
Sem ar, sem horizonte, no infortúnio
Sem luz no fim do túnel, sem farol
Sem-terra se transformam em sem-teto
Pivetes logo se tornam pixotes
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Meninas, mini-xotas, mini-putas
De pequeninas tetas nos decotes Quem vai pagar a conta?
Quem vai lavar a cruz?
O ultimo a sair do breu, acende a luz No topo da pirâmide, tirânica
Estúpida, tapada minoria
(...) O que prometeu não cumpriu
O fogo apagou
A luz extinguiu
Em relação à falta de perspectivas positivas, também vista em Ecos do Ão, Quadro
Negro mostra a inevitável transformação de pivetes que “logo se tornam pixotes” e
meninas que serão “mini-xotas, mini-putas”, “Sem luz no fim do túnel, sem farol”.
Questionando-se “Quem vai pagar a conta?/Quem vai lavar a cruz?”, está implícito que
não será a “tapada minoria” no topo da pirâmide que acenderá a luz que trará esperança
ao sub-mundo imerso na barbárie, nem trará uma identidade cidadã aos que foram
privados desta.
Assim, como abordado por Holston (1996), depreende-se que os personagens-símbolo
apontados na canção talvez sequer desfrutariam de uma cidadania formal, estando a
substantiva – a cidadania de fato - somente relegada àquela minoria mais abastada.
De Canclini (2008) pode-se depreender que o espaço tratado na letra seria a
representação de uma cidade paranoica. Isto é, onde há uma percepção de temor e
insegurança caracterizada pelas catástrofes associadas a narcotraficantes, assaltantes e
miséria.
Por fim, em “O que prometeu não cumpriu/ O fogo apagou /A luz extinguiu” é mais
uma vez caracterizada a falta de perspectivas de mudanças para a ralé brasileira, para a
qual nenhuma promessa se cumpre.
4. Considerações Finais
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No decorrer do estudo das letras das canções de Lenine – por meio de uma espécie de
metalinguagem indireta - notou-se a presença de diversas temáticas que relacionam
questões de Urbanização e Cultura. As mais recorrentes e evidentes foram: a
identidade/brasilidade, a diversidade e o direito à cidade. Entretanto outros temas
também apareceram ou foi possível estabelecer alguma relação com eles, como:
reprodutibilidade técnica; políticas culturais; e modernismo e modernização.
É importante ressaltar, mais uma vez, que as composições apresentadas não esgotam os
temas que tratam do urbano e da cultura na obra de Lenine. Entretanto, priorizou-se as
canções que os continham de forma mais densa, descartando também letras que
tratavam de forma muito semelhante assuntos já abordados por outras canções
previamente selecionadas.
Assim, buscou-se analisar de que forma aquelas temáticas de Urbanização e Cultura
presentes na obra do “cantautor” se relacionam – se os reforça ou os contradiz - com os
posicionamentos dos estudiosos sobre os temas. De todas as reflexões realizadas foi
possível depreender, de forma geral, uma frequente defesa da brasilidade enquanto
identidade que abriga a diversidade. Essa posição é fortemente defendida por Da Matta
(1986) e é contestada - principalmente o aspecto da brasilidade como cultura
homogênea e naturalizada defendido por aquele autor - por Souza (2009).
Porém, em algumas canções foi destacada a situação de exclusão de populações
miseráveis e a necessidade de se afirmar o direito à cidade e a uma civilidade,
concordando com Lefebvre (2001). Ou seja, não se pode dizer que, em toda sua obra,
Lenine considera a identidade brasileira como um todo harmônico. Entretanto, mesmo
quando destaca aquelas adversidades, o “cantautor” reforça seu argumento de que a
solução para os problemas sociais inseridos na lógica urbana se daria através da cultura
brasileira.
Por outro lado, canções adeptas da brasilidade e da diversidade servem bem aos
propósitos de uma boa política cultural que, conforme defendidos por Reis (2007),
devem abarcar: i) a diversidade cultural; ii) a democracia cultural e inclusão; iii) o
reforço das identidades culturais; iv) a regeneração geográfica e qualidade de vida; e v)
a cultura como imagem nacional.
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Desse modo, comprovou-se a riqueza da obra de Lenine para a cultura brasileira e para
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