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SAUDADE DO FUTURO DA EPOPÉIA PORTUGUESA: UM CAMINHO PELA PEREGRINAÇÃO DE BARNABÉ DAS ÍNDIAS, DE MÁRIO CLÁUDIO Carlos Eduardo Soares da Cruz UFRJ [email protected] Resumo: O presente artigo pretende mostrar, a partir da análise do romance de Mário Cláudio, Peregrinação de Barnabé das Índias, como se dá a revisão historiográfica proposta por ele, qual sua motivação e o meio escolhido para tal. A mitologia da saudade como elemento caracterizador da identidade portuguesa é usada como arcabouço para a análise e para essa revisão do passado que aponta um outro futuro possível em meio ao caos do capitalismo avançado. Palavras-chave: Revisão Historiográfica; Saudade; Identidade Nacional Portuguesa Abstract: The present article intends to show how the historiographical revision proposed by Mário Cláudio in his Peregrinação de Barnabé das Índias takes place. What is the motivation for this revision and what is the way chosen for it. The mitology of the saudade that characterizes the Portuguese identity is used as framework for this analisys and for this revision of the past pointing out for a different future in the chaos of the advanced Capitalism. Keywords: Historiographic Revision; Saudade; Portuguese National Identity Quando se pensa nas Grandes Navegações que marcaram os séculos XV e XVI com portugueses cortando oceanos e “dando novos mundos ao mundo”, é difícil não se lembrar d’Os Lusíadas, de Camões, que canta a epopéia lusitana. Entretanto, não é desse heroísmo que trata o romance Peregrinação de Barnabé das Índias (1998), de Mário Cláudio (1941-), mas, como o próprio título indica, de uma peregrinação, concedendo um sentido religioso ao descobrimento do caminho marítimo para as Índias. O que o título não diz é que não se trata apenas da ida ao Oriente, e sim de muitas viagens. Além disso, tal como Os Lusíadas não é apenas a história de Vasco da Gama, mas de todos os portugueses, a peregrinação apresentada no romance não é só a de Barnabé, mas a do país como um todo. Portugal vive um momento de crise com o fim do seu império colonial, começado quinhentos anos antes. A própria negação desse passado expansionista, levada a cabo na Literatura Portuguesa desde o Romantismo, denota a problemática que envolve esse assunto. É em momentos assim que se deve olhar para o passado e revê-lo. Walter Benjamin diz que em momentos de perigo deve-se olhar para trás em busca de uma centelha de esperança, pois o presente é messiânico e redime o passado. Diz ele: “Sem dúvida, somente a humanidade

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SAUDADE DO FUTURO DA EPOPÉIA PORTUGUESA: UM CAMINHO PELA

PEREGRINAÇÃO DE BARNABÉ DAS ÍNDIAS, DE MÁRIO CLÁUDIO

Carlos Eduardo Soares da Cruz – UFRJ

[email protected]

Resumo: O presente artigo pretende mostrar, a partir da análise do romance de Mário Cláudio,

Peregrinação de Barnabé das Índias, como se dá a revisão historiográfica proposta por ele, qual sua

motivação e o meio escolhido para tal. A mitologia da saudade como elemento caracterizador da

identidade portuguesa é usada como arcabouço para a análise e para essa revisão do passado que

aponta um outro futuro possível em meio ao caos do capitalismo avançado.

Palavras-chave: Revisão Historiográfica; Saudade; Identidade Nacional Portuguesa

Abstract: The present article intends to show how the historiographical revision proposed by Mário

Cláudio in his Peregrinação de Barnabé das Índias takes place. What is the motivation for this

revision and what is the way chosen for it. The mitology of the saudade that characterizes the

Portuguese identity is used as framework for this analisys and for this revision of the past pointing out

for a different future in the chaos of the advanced Capitalism.

Keywords: Historiographic Revision; Saudade; Portuguese National Identity

Quando se pensa nas Grandes Navegações que marcaram os séculos XV e XVI com

portugueses cortando oceanos e “dando novos mundos ao mundo”, é difícil não se lembrar

d’Os Lusíadas, de Camões, que canta a epopéia lusitana. Entretanto, não é desse heroísmo

que trata o romance Peregrinação de Barnabé das Índias (1998), de Mário Cláudio (1941-),

mas, como o próprio título indica, de uma peregrinação, concedendo um sentido religioso ao

descobrimento do caminho marítimo para as Índias.

O que o título não diz é que não se trata apenas da ida ao Oriente, e sim de muitas

viagens. Além disso, tal como Os Lusíadas não é apenas a história de Vasco da Gama, mas de

todos os portugueses, a peregrinação apresentada no romance não é só a de Barnabé, mas a do

país como um todo.

Portugal vive um momento de crise com o fim do seu império colonial, começado

quinhentos anos antes. A própria negação desse passado expansionista, levada a cabo na

Literatura Portuguesa desde o Romantismo, denota a problemática que envolve esse assunto.

É em momentos assim que se deve olhar para o passado e revê-lo. Walter Benjamin diz que

em momentos de perigo deve-se olhar para trás em busca de uma centelha de esperança, pois

o presente é messiânico e redime o passado. Diz ele: “Sem dúvida, somente a humanidade

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redimida poderá apropriar-se totalmente do seu passado” (BENJAMIN, 1994, p. 223). Dessa

forma, para vencer o estado decadente em que se encontra, Portugal precisa rever seu passado

e apropriar-se dele em sua totalidade. Afinal, se a atualidade assombra, então é precisa uma

nova concepção de História, pois a existente é a que justifica tal situação.

O que Mário Cláudio parece fazer em Peregrinação de Barnabé das Índias é

justamente rever a época das navegações portuguesas, mostrando uma nova versão para a

viagem inaugural do caminho marítimo para as Índias. Agora há novos “varões assinalados”.

Não apenas os grandes vultos da História oficial como reis e capitães de esquadras, mas os

personagens do povo. A epopéia a ser contada não é mais apenas a marítima, mas a do

conhecimento de si mesmo.

Talvez esta seja a maior dificuldade do homem na crise do capitalismo avançado.

Vivendo em uma época em que nem a ciência nem a metafísica apresentam respostas para a

catástrofe única que é a história da civilização, o homem tem uma existência contingente, sem

saber ao certo quem se é e qual seu lugar no mundo. Então, a maior epopéia não é a da

viagem ao oriente, mas a própria vida moderna. Se em uma peregrinação busca-se algum tipo

de conhecimento interior a partir de uma elevação espiritual, a Peregrinação de Barnabé das

Índias mostra a busca pelas Índias internas e de seu lugar no mundo. O mesmo deve acontecer

com Portugal, que precisa encontrar sua nova missão no mundo globalizado.

Essa redenção do passado mostra que a peregrinação a ser feita realmente não é apenas

física, mas é também pela alma portuguesa. Esse é o espírito que Barnabé acaba por encarnar

muito bem ao unir a vida de navegante à saudade dos que ficam, como se vê no trecho abaixo:

acariciando o amuleto que lhe roçava a pele, tão áspera pela salsugem como

amaciada pelos dedos da que jamais o beijara, gritou em silêncio Barnabé

por quantos se plantam no cais donde os navios partem, ignorando que

destino se impõe conferir à sinuosa peregrinação das lágrimas a derramar

(CLÁUDIO, 1998, p.191).

A saudade parece ser o sentimento que melhor caracteriza a alma portuguesa. Logo, ao

rever o passado nacional, não poderia ficar de fora esse aspecto identitário dos portugueses.

Inclusive porque, segundo Hall (2005), as identidades estão em crise na contemporaneidade.

Aliás, segundo sua concepção, a idéia de uma identidade nacional unitária nunca foi muito

verdadeira, tanto que Portugal era formado por cristãos, árabes e judeus, mas apenas os

cristãos-velhos seriam representados por essa lusitanidade. Sendo assim, é preciso ater-se a

uma concepção mais ampla para caracterizar os portugueses e a ligação com a saudade parece

ser a escolha instintiva.

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De qualquer forma, segundo Mercer (1990), só se traz o enfoque identitário à

discussão ao perceber-se que a identidade está em crise. É justamente isso que parece dominar

Portugal nos últimos anos do século XX. Juntando-se ao fim do império colonial após a

redemocratização em 1974, há o ingresso em 1986 na então Comunidade Econômica

Européia, atual União Européia. Associar-se a um bloco continental que visa a extinção de

fronteiras político-econômicas e o intercâmbio cultural e de pessoas vai ajudar a diluir ainda

mais as características que identificam a nacionalidade portuguesa. Sobretudo sendo esta uma

união à Europa, onde Portugal sempre teve dúvidas se pertencia ou não por não se sentir tão

culturalmente ligado a ela, e por ter ingressado conjuntamente com a vizinha Espanha,

inimiga histórica e contra quem teve que lutar diversas vezes para manter-se independente.

De modo a resgatar a identidade cultural portuguesa, Mário Cláudio aproveita a

celebração dos quinhentos anos da descoberta do caminho marítimo para as Índias. Aliás,

Portugal inteiro parece de alguma forma querer assumir-se como oceânico mais uma vez em

1998, tanto que Lisboa sedia a Exposição Mundial daquele ano, cujo tema não poderia ser

outro senão os oceanos. É em meio a esse clima de volta ao passado marítimo português para

assumir-se como nação cultural e identitariamente independente que o autor publica seu

Peregrinação de Barnabé das Índias, escrito no ano anterior.

O uso do passado como forma de melhor se preparar para o futuro é o que melhor

define a saudade. A saudade do passado não é apenas nostalgia do que já passou ou um desejo

romântico de retorno a uma época melhor, mas uma motivação para o futuro. É essa a

saudade presente nesse romance de Mário Cláudio, que, buscando um Portugal melhor e mais

seguro de si para o futuro, volta ao passado revendo-o e dando ao povo o controle de sua

História. Assim, tal como o romance, que acaba com “as luzes”, espera-se iluminar o futuro

de Portugal, que estaria ainda “encoberto”. Afinal, segundo Eduardo Lourenço, a saudade é

mais do que simples manifestação da memória. Ela é uma outra maneira de ser presente no

passado, ou de ser passado no presente, enquanto a memória é a autonegação do presente. “A

saudade não é da ordem da representação, mas da pura vivência” (LOURENÇO, 1999, p. 33).

Assim, Barnabé não nega o presente, mas procura uma vivência do passado em suas

visitas a Vasco da Gama. O jovem de Ucanha, atravessando a nevasca para visitar o velho

Vasco da Gama, lembra um peregrino caminhando por caminhos difíceis e tortuosos numa

longa jornada. Da mesma forma é a leitura desse romance, que foge à linearidade e por vezes

confunde o leitor mais inocente. É preciso estar atento e reparar nos sinais, pois o itinerário é

lento e sofrido, como a sinuosa peregrinação das lágrimas. Afinal, a viagem é interior e o

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caminho é o da vida toda. O que se busca é a salvação, mas o destino acaba por ser a morte,

como podemos perceber na epígrafe do romance:

De ti se servem, ó morte, inimiga nossa, para alcançar a alegria, tu, que és a

mãe do infortúnio; adversária da glória, ao serviço da glória é que te

colocam; de ti se servem, porta do Inferno, para entrar no Reino; de ti,

abismo da perda, para atingir a salvação (CLÁUDIO, 1998, p.11).

A morte é o sinal do heroísmo e é, portanto, utilizada como caminho para atingir a

alegria, a glória e a salvação. Contudo, deve-se alcançar esses objetivos sem que seja preciso

morrer, pois a alegria esperada é viver bem, a glória é vencer, e a salvação é a vida eterna.

Preso ao paradoxo apresentado no estilo de vida segundo a epígrafe, encontramos

Vasco da Gama no primeiro capítulo. Ele tem a glória de ter feito o caminho das Índias, mas

está esquecido. Vive longe da corte, e é alvo da inveja dos vizinhos. Sua única alegria é

verificar vezes e vezes o que ganhou com tal expedição. Entretanto, sabe que lhe falta algo.

Como não morreu heroicamente, não atingiu o que a epígrafe promete aos que da morte

fazem uso. Por outro lado, é como se já estivesse morto, apesar de ainda viver. Um velho no

inverno apenas espera “que se lhe cumpra o destino de velho” (CLÁUDIO, 1998, p. 13).

Muito diferente está dos heróis apresentados por Camões, “que por obras valerosas

se vão da lei da Morte libertando” (CAMÕES, 2002, I, 2). Quem vem tirá-lo dessa letargia é

Barnabé, através da rememoração de obras passadas. Porque somente com a aquisição do

passado glorioso é que se pode libertar do medo da morte e alcançar a alegria, a glória e a

salvação.

É essa ligação ao passado que impulsionará Vasco da Gama à sua própria

peregrinação. Tanto que é por ter esquecido o que não poderia esquecer que o interpela

Barnabé. Aliás, o próprio narrador heterodiegético também precisa voltar ao passado

remexendo em suas memórias, como se narrasse a partir de outro tempo. O uso do verbo na

primeira pessoa utilizado pelo narrador em alguns fragmentos pode confundir o leitor

intuindo-o a pensar que é de algum personagem esse discurso, tal como no primeiro capítulo

encontramos a passagem “um velho no Inverno é isto que conto...” (CLÁUDIO, 1998, p. 14).

Contudo, tanto num caso quanto no outro, não é possível associar o narrador a nenhum dos

personagens do romance. O que poderia remeter a Barnabé como narrador do segundo

capítulo é desfeito logo a seguir, quando a ele se refere como uma terceira pessoa: “Corre este

garoto chamado Barnabé com uma mancheia de canalha da sua criação” (CLÁUDIO, 1998, p.

46).

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De qualquer forma, o narrador heterodiegético não é o único presente no romance.

Barnabé contará parte de sua história em alguns trechos do romance, nomeadamente o

primeiro e o terceiro fragmentos do terceiro capítulo, e o primeiro, terceiro, quinto e sétimo

fragmentos do capítulo “As Cordas”. Além dele, o próprio Vasco da Gama também terá voz

ao buscar em sua memória as lembranças do passado, apesar de não serem mais parte de seu

pensamento.

Como se pode perceber, o narrador heterodiegético utilizado por Mário Cláudio

conhece bem o passado, tanto que se lembra dele, e também sabe das tradições do povo do

seu país, tanto cristãos quanto judeus. Além disso, por ser, antes de tudo, uma narrativa de

viagem, conta sobre acontecimentos e costumes de terras distantes. Sendo assim, aproxima-se

do narrador ideal, segundo Walter Benjamin (1994), que consegue aliar o local e o distante,

como cabe aos narradores comerciantes de antigamente. Nada mais acertado, visto que, apesar

de ser contemporâneo e como tal não ter experiências a narrar, ele propõe um retorno ao

passado e à grande tradição portuguesa do comércio marítimo.

Atravessar o texto descortinando as nuances dessa narrativa, que ora parece tranqüila

como o oceano em calmaria e ora apresenta sobressaltos como a travessia do Cabo das

Tormentas, é parte da peregrinação que o leitor deve fazer para melhor entendimento de si

mesmo. Somente assim é possível compreender o grande feito do passado para que se busque

um novo rumo na carta de marear que leva ao futuro.

Essa travessia liga os dois capítulos iniciais aos dois finais. Assim pode-se perceber a

grande mudança que vai acontecer no decorrer do romance. Observando-se os títulos desses

capítulos – “As Neves”, “Os Demónios”, “As Pombas”, “As Luzes” – pode-se perceber a

diferença antitética entre os pares: neves x luzes e demônios x pombas.

No princípio, o frio, as cinzas e a velhice dominam o campo semântico do romance,

em contraste com o final, luminoso, quente e novo. Não sem antes passar pelos capítulos que

lhes são contíguos. Enquanto demônios remetem-nos à idéia de inferno, desgraça, maldade,

problemas, as pombas passam a imagem celestial de pureza, leveza, paz, bondade. Ambas são

figuras muito presentes no imaginário católico com o maniqueísmo entre Céu e Inferno.

Sendo este representado pelo diabo e outras figuras demoníacas, e aquele por Deus e seus

anjos, figuras aladas. Além disso, é importante lembrar que na simbologia católica o Espírito

Santo é também representado por uma pomba.

Logo, a partir do índice, o leitor já pode esperar uma mudança na situação vigente.

Mas quem passará por essa transformação? Diferentemente do imaginado, não é mais Vasco

da Gama o personagem principal, mas o desconhecido Barnabé. Pelo título já se sabe que é

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ele quem fará a peregrinação. A diferença não está na travessia geográfica, já que os dois a

fazem. O problema é que não basta percorrê-la só no exterior. É preciso fazer a viagem

interior também, pois a maior e verdadeira é a do descobrimento de si mesmo. Além disso,

para alcançar essa paz interna, simbolizada pela pomba, é necessário não temer mais a morte.

Vasco ainda não logrou livrar-se do medo, por isso sua peregrinação não se completou,

enquanto a de Barnabé teve êxito.

De qualquer forma, a vida dos dois estará unida após o caminho para as Índias.

Vasco, que sempre dependeu do suporte do irmão Paulo da Gama, acaba descobrindo com a

visita de Barnabé que ainda possui um irmão. Paulo pode ter morrido antes de retornar a

Portugal, mas laços fortes foram dados ligando Vasco ao jovem de Ucanha. Somente assim

será possível que o almirante siga sua peregrinação.

Essa conexão entre os dois é primordial para compreender o que une esse romance

fragmentado. Estabelecer essa união é tarefa do leitor e a este também há anjos e amuletos

para ajudar. Os quatro capítulos que se ligam no princípio e no fim possuem uma

característica estrutural que os distingue dos demais. Cada um deles começa com um período

marcado por uma oração nominal.

Essas orações com predicado nominal parecem fugir à narrativa, já que nada é

efetivamente narrado. Não há uma ação propriamente dita, apenas união de idéias. A

peregrinação apresentada não é exatamente o percurso que se faz, mas o conhecimento de si

mesmo. Por isso, começar os capítulos que ligam os pontos desse caminho com predicados

nominais vai ressaltar que o mais significativo não é a ação praticada, mas no que ela torna

aquele que a pratica.

Assim, o uso de verbos de ligação vai reinstaurar o princípio da peregrinação. Tal

como no seu sentido religioso no qual o caminho é percorrido para que o peregrino aproxime-

se mais do divino, entrelaçando sua vida terrena à espiritual, essa nova também será para a

ligação. Nesse romance, Mário Cláudio mostra várias conexões. O que se liga não é apenas as

vidas de Vasco da Gama e de Barnabé, mas também o princípio e o fim, o círculo do tempo,

do passado ao futuro, além de unir todos os portugueses, de origens religiosas diversas e com

diferentes idéias e discursos. Inclusive, isso tudo é feito com um forte vínculo à tradição da

Literatura Portuguesa.

Essa ligação à Literatura vai aumentar o diálogo da obra de Mário Cláudio com as

artes. Em seus romances anteriores ele parecia buscar uma confluência das marcas de outras

expressões artísticas na palavra escrita (CALVÃO, 2000). Nesse, o diálogo é com a tradição

literária que a confluência se dá. Se antes ele buscava inspiração na música, na pintura e no

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artesanato para construir sua narrativa, agora ele vai aos relatos de viagem em busca de um

modelo para sua própria arte. Assim sendo, parece ter se inspirado no ritmo da narração de

Fernão Mendes Pinto. Quando se lê os fragmentos narrados por Barnabé (o mesmo pode ser

visto no capítulo narrado por Vasco da Gama, mas com menos intensidade) percebe-se um

novo ritmo, mais fluido. Isso institui assim uma sucessão aparentemente desconexa de frases

e orações separada apenas por vírgulas, muitas, em períodos extensos que ocupam a

totalidade, ou quase, de parágrafos longos. Essa parece ser uma característica de

Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, como se pode atestar pelo comentário de Menéres na

edição por ela atualizada:

Actualizei pois o sistema de pontuação. Respeitei, no entanto, a virgulação

intensa do autor, que me deu sempre a ideia de implicar numa sucessão

fluente, imparável, de coisas, factos, situações, e nos é não só visível sinal de

acumulação, mas também de inúmeras circunstâncias, sinal de propositada

insistência incisiva, colorida – acumulação e insistência que ao longo de

todo o texto nos deixam algum muito e algum como da comunicação de

Fernão Mentes Pinto (MENÉRES, 1980, p. XIV).

É justamente relembrando a acumulação que faz ligação entre Barnabé e o capitão

que o romance começa. Aproximando-se da morte, tanto que parece já ter sido esquecido

apesar de ainda viver, encontramos Vasco da Gama. Ele está afastado da luz vital que atira os

homens ao futuro, mas não consegue livrar-se de sua velhice interior. Isso porque ele não foi

capaz de fazer a peregrinação em sua jornada à Índia. Logo, não adianta seguir em frente, ou

continuará velhaco preso à cobiça em que passa seus dias, averiguando títulos e dividendos -

uma crítica ao pensamento capitalista de acumulação monetária e de mercantilização da vida.

A ele cabe recordar a viagem para refazê-la em seu interior. Quem o impulsionará nessa

aventura é Barnabé com sua visita. Sua chegada pára o envelhecimento, aparta-o da morte e

aquece-o, pois ao chegar as neves cessam de cair.

No entanto, para afastar a morte e as sombras de sua vida, Vasco precisa vencer seus

medos e relembrar velhas lições. Isso parte da tentativa de retorno à infância. Lá ele decorou

um lema que vai acompanhá-lo por toda a vida: “Discite justitiam moniti, et non temuere

divos, non temuere divos, non temuere divos” (CLÁUDIO, 1998, p. 18). Esse verso, retirado

da Eneida, de Virgílio, vai inspirar a peregrinação do almirante.

Aprender a ser justo e não tentar os deuses é um duro aprendizado. Por mais que

Vasco o tenha decorado, ainda não soube colocá-lo em prática, além de tentar seus próprios

medos, seus próprios demônios, pintando em sua casa a hidra que tanto teme. Ele guarda para

si a honra de ter descoberto sozinho o caminho para as Índias. Quando, no fundo, só o fez por

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ter tido sempre o apoio de seu irmão Paulo, o mesmo que lhe segredava esses versos durante a

infância. Também deve graças aos que o acompanharam nessa empreitada, principalmente a

Barnabé, que agirá como uma espécie de guia no retorno. Ainda mais, sem os conhecimentos

previamente adquiridos, como as cartas de marear do lado oriental da África conseguidas

pelos espiões judeus do rei, não teria obtido sucesso.

Como esperado, a volta à infância não é satisfatória. Essa tentativa de fuga não logra

os resultados esperados. O simples regresso ao passado não é suficiente, pois, por mais que

tudo sempre volte, como no Eterno Retorno de Nietzsche (2005), não retorna idêntico, mas

apenas semelhante. Dessa forma, a simples repetição do acontecimento passado não causará o

mesmo efeito, pois somente sob aquelas circunstâncias será o mesmo. Dessa forma, ao voltar

à sua realidade presente na narrativa, um velho no inverno, fica preso em seu tempo sem vida.

Sem os delírios da memória e a febre de futuro:

Um velho no Inverno aguarda a hora da ceia, e nisso se impacienta, e da

defesa contra as neves que não param de cair deriva ele a coragem de

arrostar com a velhice. Esgotou o delírio da memória e a febre do futuro,

remeteu-se a si mesmo e ao novelo das desilusões que vai acarretando

(CLÁUDIO, 1998, p. 31).

Afinal, ele ainda vive com seus fantasmas interiores e seus medos. Mesmo após

muitos anos desde a viagem, ainda teme a hidra: A intervalos pendia a crer que no subterrâneo

de si mesmo é que o monstro se alojava.

É preciso que Barnabé visite-o, tal como um anjo profeta visita o escolhido de Deus,

para que comece realmente a peregrinação de Vasco. De uma só vez recorda-se de toda a

viagem, tal como será contada a partir daí. Essa espécie de prolepse podemos perceber nas

imagens que lhe ocorrem ao vislumbrar Barnabé:

E corriam-lhe desconformes imagens, o grumete que tiritava de febre,

enroscado num sarilho de cordame, o náufrago que despontava do furor dos

vagalhões, alumiado pela sobrenatureza do clarão, o mancebo que lhe

beijava os vestidos, taxando-o de salvador de toda a equipagem (CLÁUDIO,

1998, p. 43).

Barnabé pode tê-lo chamado de salvador de toda a equipagem, mas é ele quem vai

salvar Vasco da Gama. Vai levá-lo à sua verdadeira peregrinação interior recomendando a

ele: “percorrei os caminhos e os atalhos que desembocam no passado” (CLÁUDIO, 1998, p.

42). A diferença está que não remeterá Vasco apenas ao passado, mas também falará de outras

navegações, outras peregrinações, não apenas a ida física às Índias. Por isso, indaga a Vasco

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se sabe quem ele é – “e de vós continuo a indagar a pessoa que sou” (CLÁUDIO, 1998, p.

42).

Além disso, é preciso domar seu temor pela hidra, pois sem vencer os medos não se

vence a morte. Para vencê-la, a vida de Vasco e de Barnabé precisam unir-se. Inclusive

porque, Vasco, fortemente ligado à vã-cobiça que o arremessou à aventura, ainda perturba-se

com imagem do monstro marinho:

e perturbava-se Vasco no mais recôndito de si, porque era o momento exacto

de se configurar a avantesma, e de atirar pelos ares os navios abarrotados da

cobiça de Portugal, e de vir demonstrar ao atrevimento das nações que

vaidade não há que resista à cegueira das arremetidas do ódio que se

desatrelou (CLÁUDIO, 1998, p. 39-40).

Então, para unir as vidas do jovem judeu ao almirante da esquadra portuguesa que

ruma à Índia são usadas muitas cordas. Representando não apenas todo o cordame utilizado

nas naus para amarrar e controlar aquela imensidão de velas, o título do quinto capítulo da

Peregrinação de Barnabé tem outras significações. Esse capítulo é o mais fragmentado do

livro, subdividindo-se em sete partes, narradas intercaladamente, ora por Barnabé ora por um

narrador heterodiegético. Dessa forma, cada pedaço apresenta a visão sobre um dos dois

personagens cujas vidas estão se unindo, como se a cada momento um nó fosse dado atando-

os.

Ao longo desse capítulo, tanto Vasco quanto Barnabé persistem no que é destacado

na sexta parte: “em tecer comentários sobre pessoas e coisas” (CLÁUDIO, 1998, p.143). No

início da viagem os dois pensam nas lendas e mitos relacionados à navegação e a o que a

impulsiona, seja fisicamente (os ventos), seja psicologicamente (os lugares paradisíacos a

descobrir). Barnabé, na primeira parte, reflete sobre os ventos, sua força e direção e pensa nas

explicações mitológicas e metafóricas para sua existência. Logo a seguir, Vasco faz algo

semelhante, também baseado em lendas, mas agora sobre ilhas mágicas a demandar.

Na quarta parte, também sobre Vasco, ele recorda-se de seu rival na tentativa de

descobrir o caminho para as Índias, Cristóvão Colombo. O navegador genovês relatara sobre

outros lugares lendários que seriam encontrados pelos europeus durante as navegações, mas o

português desprezava suas opiniões. Mais uma vez suas ações interligam-nos, pois na parte

anterior a essa, quando à Barnabé é dada voz, não são suas visões e seus comentários sobre

lendas que ocupam sua mente, mas o que fora dito por outros navegadores. Esses seus

companheiros de viagem afirmam terem visto figuras como uma sereia, um gigante e,

inclusive, um ser próximo a Netuno, como um concílio de deuses vigiando a travessia.

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Entretanto, Barnabé dá mais um nó na corda que o une ao capitão, pois de todas as figuras que

teriam sido avistadas, a que lhe causava mais aflição, aquela que não podia ser referenciada,

era justamente a que transtornava o capitão-mor a ponto de este mandar açoitar quem

pronunciasse seu nome, a hidra. Assim, seu medo passa a ser representado pela mesma figura

que simbolizava o do capitão. A diferença é que, enquanto Vasco tenta esconder o que o

aflige, Barnabé tenta exorcizá-lo.

A reflexão sobre as semelhanças e diferenças entre o cristianismo e o judaísmo vai

marcar os dois fragmentos seguintes. Na quinta parte do capítulo cinco, Barnabé ouve as

pregações do clérigo e o discurso de Paulo da Gama. Apesar de ambos falaram sobre

características do catolicismo, o jovem acaba por descobrir que não são muito diferentes

daquilo que era pregado por seus colegas judeus. Contudo, o garoto de Ucanha ainda declara

como superiores os costumes e crenças judaicas.

É interessante notar que a discussão sobre a superioridade ou não de uma religião

sobre a outra seja na quinta parte do quinto capítulo. Isso parece remeter ao mito fundador da

pátria portuguesa, no qual D. Afonso Henriques venceu os cinco reis muçulmanos justamente

por ser Portugal cristão, mais próximo de Deus. A repetição do número cinco está presente na

bandeira portuguesa e nos trecho d’Os Lusíadas que a essa batalha faz referência (CAMÕES,

2002, III, 53-54). “Assim fica o número cumprido”, não apenas pela memória “daquele de

quem foi favorecido”, mas também por Barnabé. Entretanto, Vasco ainda não é capaz dessa

ligação e, logo na parte seguinte, para criticar Colombo, acusa-o do que de pior pode

imaginar: chama-o de judeu. Para o navegador português, o descobridor das Américas seria

traiçoeiro e esperto, mas somente aos lusitanos caberia a verdadeira glória prometida.

Agora é através de Martim Afonso, escrivão da frota e língua nas paradas em África,

que mais um nó é dado. Tanto Vasco quanto Barnabé consideram ainda sua religião superior à

do outro. Mas o escrivão, que conhece outras línguas, outras culturas, e outras civilizações é

quem vaticina. Ele pensa que cada povo considera-se maior que os demais inspirados por sua

própria fé e pela relevância que vêem em sua missão nesse mundo. Tanto os portugueses,

cristãos, quanto os judeus, supõem serem o povo eleito e aquele com a mais importante

missão, mas os dois estão atrás da terra prometida juntos nas mesmas caravelas, atravessando

os mesmos oceanos.

Sendo assim, nada mais natural do que a reflexão de Barnabé na última parte do

capítulo. A figura que os portugueses tanto magicavam e demandavam é apropriada pelo

grumete. Prestes João, um monarca cristão governando um reino africano muito poderoso a

quem muitos outros prestam vassalagem, é imaginado por Barnabé como sendo judeu.

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Todavia, todo esse poder atribuído ao lendário rei causava receio ao jovem. Seu maior medo

era de ir parar às terras desse monarca africano e que ele não fosse nem judeu nem cristão,

afirmando assim, inconscientemente, a pouca diferença nessa classificação. O pior para ele

seria deparar-se com o próprio Lúcifer governando o reino, com todas as feras que o

protegeriam.

Toda essa preocupação religiosa é uma forma de retomar o lado místico e messiânico

de Portugal. No entanto, essa busca pretérita pelas raízes místicas não é inocente. O país não é

simplesmente visto mais uma vez como escolhido de Deus para governar o mundo num

quinto império. Essa retomada é para unir o passado do povo português, fortemente marcado

por perseguições religiosas – que são apontadas várias vezes ao longo do texto.

Esse é o passado que precisa ser revisto em meio à crise. Os portugueses, vendo-se

como o povo eleito abençoado por seu Deus, buscavam realizar sua missão. Tal como outras

nações ao longo da História, Portugal, valendo-se do preceito de que existe unicamente graças

à intervenção divina, vê-se com o dever de servir aos céus. Assim, pretendiam, em sua

expansão, ir “dilatando a fé e o império” (CAMÕES, 2002, I, 2).

Por causa dessa visão de mundo, “as terras viciosas de África e Ásia andaram

devastando” (CAMÕES, 2002, I, 2), o que reflete o acontecido ao longo da expansão

portuguesa. Apesar de terem lutado muitas vezes com seus vizinhos católicos, Leão e Castela,

são os mouros ao sul os constantemente apresentados como inimigos. A diferença religiosa

foi fator primordial para a exaltação do ódio contra aqueles que não fossem cristãos. Primeiro

os muçulmanos, expulsos do litoral atlântico da Península Ibérica para depois perderem a

cidade de Ceuta, na costa do Marrocos. Depois os judeus, sempre vistos como cidadãos de

segunda classe, até que foram expulsos ou convertidos à força.

Todo esse fervor religioso acabou unindo o poder real ao da igreja, que se

suportavam mutuamente. Inclusive porque a religiosidade já era forte na cultura portuguesa e,

assim, a Igreja tinha muita influência sobre a população. Entretanto, essa submissão religiosa

acabou por ser duramente criticada. Tanto que na Literatura Portuguesa Contemporânea

ocorre uma mudança de paradigma. Os mouros deixam de ser os eternos inimigos, como se de

uma cruzada se tratasse. José Saramago, na História do Cerco de Lisboa, mostra os árabes

como as verdadeiras vítimas da reconquista portuguesa. Além disso, os muçulmanos que

ocupavam Lisboa são apresentados como lisboetas, sem distinção entre eles e os portugueses

que vivem hoje nessa cidade.

É algo semelhante o que Mário Cláudio intenta fazer em Peregrinação de Barnabé

das Índias. Enquanto no romance saramaguiano os mouros entrelaçam-se aos portugueses, no

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Peregrinação, portugueses judeus e cristãos confundem-se. Afinal, o personagem principal da

epopéia portuguesa escrita por Mário Cláudio é um judeu que conseguiu escapar à conversão

forçada. Entretanto, consegue embarcar em uma nau a caminho das Índias como se cristão-

novo fosse.

De qualquer forma, a história passa-se numa época de grande perseguição religiosa,

principalmente contra os judeus. Porque para que os Reis Católicos de Espanha consentissem

no casamento entre as duas famílias reais, Portugal deveria expulsar os hebreus de seus

territórios, assim como fizeram os espanhóis anos antes. Por causa disso, o personagem Vasco

da Gama chega a supor que Cristóvão Colombo seja judeu, já que, segundo aquele, este teria

marcado a data da partida de sua esquadra para a data limite dada aos adeptos do judaísmo

para saírem das terras espanholas.

O romance de Mário Cláudio revê o passado colocando parte da glória da conquista

do caminho para as Índias no conhecimento e esforço dos judeus portugueses, e não só nos

cristãos-velhos, como conta a historiografia oficial.

Todavia, a união entre os crentes das duas religiões só ocorre mesmo, apesar dos

fatos em comum e semelhanças apresentadas, quando Barnabé vê-se na mesma situação que

seus companheiros. Interessantemente, nesse relato, não são os cristãos que precisam se ver

como judeus para aceitá-los, mas o hebreu que precisa sentir-se tão sofredor quanto os

católicos para que aceite que todos são iguais. É isso que ocorre no capítulo seis, quando

Barnabé percebe que estão todos juntos perdidos em meio ao oceano, como peixes fora

d’água a secar ao sol estirados no convés das caravelas. Depois, ainda sofre com eles nas

tormentas do “Adamastor”. Por fim, recorda-se das histórias que ouviu sobre Santo Antônio,

que teria feito um sermão aos peixes. O jovem judeu que já se sente um peixe, e que foi

resgatado do mar como se pescado fosse, ouviu as palavras do anjo como um sermão de

santo. Assim, assume que também se regalaria com o de um santo católico. Aliás, não o de

um santo qualquer, mas o de um português, popularmente cultuado em Portugal.

Sendo assim, os milagres podem voltar a acontecer, pois já não há distinção clara

entre os dois povos que se consideram escolhidos por Deus. Seu destino messiânico é a união.

Seja com a ajuda de anjos, santos, deuses ou espíritos, a sobrevivência e a libertação de cada

um depende do conhecimento e da aceitação de que são todos iguais, independentemente da

religião.

Por conseguinte, a peregrinação é a mesma para todos que quiserem vencer seus

medos e avançarem por novos caminhos em busca de novos horizontes e novas terras a

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demandar. Não obstante, para alcançar esse objetivo é preciso passar por uma fase de

purificação, de expurgação dos erros passados e aceitação de uma nova vida.

Por conseqüência, é justamente no capítulo imediatamente posterior a essa união

religiosa que ocorre a purificação na peregrinação de Barnabé. Em “Os Anjos”, começa uma

visão que vai ampliar a união religiosa, ratificando a idéia de Saramago e retificando a forma

como os muçulmanos são descritos na literatura portuguesa até então. Os mouros

apresentados nesse capítulo não são inatamente malvados. Muito pelo contrário, são descritos

inicialmente como anjos, como pode ser visto em:

E tendo arribado a Moçambique, foi o império dos anjos que se lhe

descerrou, já que se passeavam eles de branco, e usavam barretes debruados

em seda, e bordados a oiro, e não era qualquer língua de trapos que falavam,

mas a das Arábias (CLÁUDIO, 1998, p. 179).

Além disso, é em Moçambique que Barnabé vai encontrar mais um dos anjos de sua

peregrinação. Uma mulher o encanta com seu caminhar e faz com suas argolas um som

descrito como celestial. É esta mulher quem lhe dá o amuleto com o qual ele conta para

salvar-se. E a forma de salvação é a saudade. Pois, em momentos de perigos e aflição, ele

segura o amuleto e, apertando-o, aviva a saudade que sente da moçambicana. Assim, Barnabé,

além de associar-se definitivamente à alma portuguesa, livra-se do medo e toma coragem para

continuar sua peregrinação. Ignorando o destino do sofrimento, ignora o caminho sinuoso das

lágrimas a derramar. Mas assim mesmo ele parte, pois sofre mais quem fica parado no porto

do que os que se lançam à descoberta do novo. Desse modo, ele transforma-se no verdadeiro

herói lusitano, aquele que vence a morte a partir da fabulação que é a arte de navegar, como

lembra Bachelard:

parece que a utilidade de navegar não é bastante clara para determinar o

homem pré-histórico a escavar uma canoa. Nenhuma utilidade pode

legitimar o risco imenso de partir sobre as ondas. Para enfrentar a

navegação, é preciso que haja interesses poderosos. Ora, os verdadeiros

interesses poderosos são os interesses quiméricos. São os interesses que

sonhamos, e não os que calculamos. São os interesses fabulosos. O herói do

mar é um herói da morte. O primeiro marujo é o primeiro homem vivo que

foi tão corajoso como um morto (BACHELARD, 1997, p.76).

A partir do encontro com seu anjo mouro, a saudade vai distraí-lo do temor,

deixando-o mais confiante. Sua relação com seus anjos estende-se. Cumprem esse papel, ao

longo do romance, não apenas a negra de Moçambique, mas também sua amada Revocata,

seu amigo que morreu afogado durante a infância, e o próprio anjo São Rafael que protege sua

nau, como pode ser visto no seguinte trecho:

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Impávido se erguia na proa o anjo pretector, e da consciência da sua

presença auferia o rapaz a certeza de que alcançariam o desejado livramento,

já que para algo o salvara quem lhe botara a mão, não autorizando a que sem

glória tudo acolá se consumasse. E auxiliou-os a maré alta, e o empenho dos

companheiros das naves irmãs, e acariciou Barnabé o amuleto da mágoa que

do temor o distraía (CLÁUDIO, 1998, p.194).

Nesse momento, Barnabé se dá conta de sua peregrinação pessoal. Ele não apenas

vivenciou o perigo, mas livrou-se mais de uma vez da morte. Para ele a viagem foi como a

travessia do Mar Vermelho fugindo do Egito, pois estava em direção a algo novo e guiado

pelo divino. Essa percepção da influência metafísica em sua vida, tal como Portugal sente-se

messiânico, inspira-o a continuar. Assim compreende que atravessar o Mar Vermelho é parte

do percurso do ser humano e que é preciso vivenciar o perigo para sobrepujá-lo. Sente-se,

então, puro:

Seguro se considerava o de Ucanha de ter atravessado o mar Vermelho,

conforme Joseph, seu primo, lhe vaticinara, o mar Vermelho que se patenteia

a determinado passo do percurso do ser humano. [...] E não vence a morte

quem a morte não temeu, deduzia ele, já que não chega ao final da sua rota

quem se não afoitou aos monstros que pelas voltas da peregrinação se lhe

avantajam. E em seu corpo tinham sarado as chagas que o afligiam,

deixando-o limpo da miséria do pus e do ferrete da culpa [...] E para trás

haviam engolido dois oceanos os pesadelos que lhes habitam o abismo e o

abismo de quem os cruza (CLÁUDIO, 1998, p. 202).

Todavia, essa percepção da peregrinação não ocorreu com Vasco da Gama em sua

travessia dos oceanos. Em Moçambique, enquanto alguns ficavam extasiados com as belezas

mouras, Vasco ainda espera unir todos os povos pela dilatação da fé e do império. A

intolerância religiosa demonstrada por ele, comum em sua época, acaba levando-o à loucura

momentânea durante a viagem. E em meio ao caos interior em que se encontra, relembra a

antiga lição da Eneida, de ser justo e não tentar os deuses. Contudo, ainda não a coloca em

prática.

Ainda assim, nem tudo está perdido para Vasco. Afinal, sua peregrinação só começa

realmente após a visita de Barnabé pedindo-lhe que remexa em sua memória. Dessa forma,

Vasco também vivencia a saudade. Tanto que ele mesmo narra o capítulo em que isso

acontece, “As Cidades”.

Em seu capítulo, ele sente saudade de sua infância. Não de como ela era, mas de seus

planos de futuro. Porque ele relembra da chegada a Calecute e compara as cidades imaginadas

quando criança vendo os mapas de lugares distantes e as atuais avistadas na Índia.

Freud (1969) diz que as fantasias de artistas e escritores provêem do mesmo

manancial criativo das brincadeiras da infância. A criança, quando brinca, está ainda presa à

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realidade em sua imaginação de brincadeira. Já os escritores não. A fantasia do poeta é

desconectada da realidade. Para Freud, quando o homem sonha com o futuro, está na verdade

fazendo um retorno ao passado na tentativa de suprir uma frustração. Ele volta a uma época

em que teve um desejo atendido (normalmente na infância) e projeta essas sensações de

satisfação na situação atual para imaginar um futuro. Sendo assim, sentir saudade é um pouco

como fantasiar. É isso que Vasco faz. Quando imaginava suas cidades na infância, estava

preso à realidade, aos mapas que via e às cidades que conhecia. Quando ele volta a fantasiar

com as cidades da época de criança e como ficava satisfeito com elas, está planejando o futuro

e buscando sonhos a realizar. Dessa forma, se sua satisfação estava nas brincadeiras de

criança, a melhor forma de retomar essa criatividade para seus planos é agindo como poeta,

por isso, somente ele pode ser o narrador de seu encontro com a saudade e de suas

impressões.

Ele começa seu relato falando que por mais que a viagem tenha lhe proporcionado

títulos e riqueza, não esquece os “tesouros da memória da infância” (CLÁUDIO, 1998, p.

205). Situação diferente daquela do começo do romance, em que ele extasiava-se conferindo

suas posses e condecorações. Agora ele sente realmente saudade – “como lembro com

saudade os mapas originariamente avistados” (CLÁUDIO, 1998, p. 206). E é esse sentimento

que o torna capaz de mudar sua vida, pois o que lhe faltava era o tempo em que se projetava

no futuro. Por isso a simples recordação da infância não é a solução. É preciso aprender sua

lição ao recordá-la, pois revisitá-la somente não trará a mesma sensação, já que ele não é o

mesmo.

A diferença está no descobrimento de si mesmo. Vasco da Gama, velho, sente mágoa

por se dar conta que o real não é como a fantasia e que sua imaginação da infância é como os

castelos de areia que construía em Sines e acabavam sendo destruídos. Assim, ele descobre

nessas recordações que “ao que imaginamos se junta o que vivemos” (CLÁUDIO, 1998, p.

214). E o que vivemos é o que nos faz diferentes a cada momento, apenas ligados por um fio-

memória.

Destarte, ele sabe que mudou, que não é mais o mesmo. Não é mais o “Vasco de

outrora que mal hoje se reconhece, mas que teima em que assim o considerem” (CLÁUDIO,

1998, p. 231). Também percebe que não fez a peregrinação durante a viagem, como tantos

fizeram:

havendo realizado a viagem que ninguém ousou, comigo arrastando para a

morte um ror deles, e raros trazendo de regresso, iluminados por luzes que

jamais me visitaram... (CLÁUDIO, 1998, p.231).

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Por isso ele ainda tem medo, ainda teme a hidra. Para ele foi só uma viagem em

busca da glória. Mas essa só alcança quem se liberta da lei da morte. Ele apenas libertou-se

das terras do oriente. E mesmo essas cidades que visitou ficaram no passado, destruídas como

os castelos de areia de sua infância. É como se tudo não tivesse passado de um sonho com

cidades imaginadas atacadas pelo “troar das canhoadas, quero dizer, este pranto da fúria de

Portugal” (CLÁUDIO, 1998, p. 234).

Diante disto, é ao recordar-se dessa jornada sabendo que é possível uma iluminação

que se abre a possibilidade de uma vida nova, de um futuro diferente do previsto.

Compreendido isso, os capítulos iniciais unem-se aos finais na vida de Vasco da Gama. Dos

demônios que afligem chega-se às pombas que salvam e glorificam. Das neves que esfriam

sua vida, atinge-se as luzes que iluminam um novo futuro.

Tal como visto, a peregrinação de Barnabé não começa com as neves, pois ele não

morre para o mundo estando vivo. Mas ele também é atacado por demônios e chagas, dos

quais só liberta-se com a purificação. Esses males representam a vanglória de mandar e a

cobiça de Portugal na época das navegações, além da infecção social causada pela forte

influência clerical no país, criticada desde Garrett. Tanto que, no capítulo “Os Demónios”,

criticam-se as ordens religiosas, os roubos nas romarias e os misticismos e crendices católicas

populares.

Nesse capítulo, que começa no pomar de um mosteiro, os frades são associados aos

demônios e à morte. Aliás, são vários os símbolos da morte que cercam Barnabé quando

criança: os monges que se vestem de forma sombria, com o hábito e capuz pretos; o coveiro

com sua enxada; a bruxa da aldeia; a maçã com o verme dentro; o corvo assustador; além do

amigo que morre afogado.

A partir daí, a vida do jovem rapaz é a busca do exorcismo desses demônios.

Contudo, é a presença constante da morte que o torna especial. Barnabé escapa dela não

apenas na viagem, mas do contato com ela desde sua infância, passando pelas chagas em

Lisboa, pela loucura e doenças na viagem, até ser resgatado do mar e salvo pelo que imagina

ser o anjo São Rafael. De qualquer forma, afastar-se do mal é o que consome seus

pensamentos. A bruxa o exorcizou, mas não foi suficiente. A seguir, espera que seu primo

ajude-o a livrar-se do mal, como se vê:

Aproveitando a generosidade com que o hospeda o conceituado judeu,

reveste-se o rapaz de Ucanha da determinação de triunfar em ofício que o

parente lhe faculte, conquanto o liberte ele dos demónios que na terra o

atenazavam (CLÁUDIO, 1998, p. 64).

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Entretanto, ele só se sente afastado do inferno junto a Revocata. Ela que é o primeiro

anjo de outros que se seguiram, como dito acima. Todavia, não é fácil e não será agora que

ocorrerá a purificação. Afinal, em “As Chagas”, pode-se notar que não era só Barnabé que

precisava de um exorcismo, mas todo o reino precisa livrar-se de sua decadência:

Considerando que o Reino de si próprio se evadia, roído pelas feridas que

expunha no escadório dos templos, buscando uma alternativa à sua arrastada

podridão, consumindo-se na tessitura de um imenso sonho salvífico

(CLÁUDIO, 1998, p. 84).

Barnabé, lembrando com saudade do seu primeiro anjo, Revocata, vê-se melhorado

para o futuro, transformando-se num galanteador sensual. Entretanto, ainda está preso à

ganância e cobiça material que adquiriu nas ruas de Lisboa, capital comercial da Europa na

época das navegações e assim mais fortemente vinculada à mercantilização capitalista que a

Modernidade ensejou. Isso impede que ele se conheça a si mesmo. De forma que, mesmo

sabendo que terá um papel importante na História e imaginando terras a demandar, não sabe

ainda o que será, porque está preso ao egoísmo, diferente do que deveria alcançar, sua aliança

com o tempo. Afinal, só essa união pode realmente livrá-lo da morte, já que os tempos estão

todos juntos, como lhe diz o primeiro anjo que lhe mostra a “máquina do mundo”:

atenta como imensíssimo se nos oferece o Mundo, e em como todavia cabe

ele em minhas mãos, e firma-te bem nas maravilhas que o compõem, as

quais claramente divisarás na pureza do teu coração, pois que superiores aos

da vista da carne se hão-de denunciar os prodígios que alcançar a vista do

espírito [...] e não existe antes, nem depois, nem hoje, nem amanhã

(CLÁUDIO, 1998, p.97-98).

Todavia, essa união com o tempo só será possível após sua correção. Depois dela,

sua vida não está mais ligada aos demônios que o afligem, mas com as pombas que o guiam.

Elas, que representam a pureza celestial da alma, aparecem uma a uma no navio de regresso a

Portugal. A glória da morte fez com que todos os marujos que morreram nessa empreitada

virassem pombas.

A chegada columbina faz desvanecer por completo as imagens demoníacas das

chagas que atormentavam Barnabé no início de sua peregrinação. Destarte, íntegro, ele passa

a olhar o passado em busca de motivação para novas passagens para o futuro:

No júbilo da conquista de si, desapoderado de quanto não equivalesse ao que

no âmago da natureza lhe residia, ia andando o moço. Um perpétuo tinido de

campainhas o rodeava para onde quer que se dirigisse, evocando-lhe factos

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da infância que há muito julgara esquecidos, abrindo-lhe paisagens de um

futuro que jamais conjecturara (CLÁUDIO, 1998, p. 250-251).

Com isso, aliado ao conhecimento divino trazido pelas aves, Barnabé serve de guia

no retorno. Os nautas são agora seres iluminados que compreenderam o sentido da

peregrinação. Diante disto, tal como uma pomba branca pousando sobre a caravela, Barnabé

vai visitar Vasco em meio às neves.

A conseqüência dessa visitação é causar duas mudanças. A primeira, particular, é

levar Vasco à sua própria romaria interior. A segunda, plural, é o próprio sentido do romance:

unir os portugueses ao seu passado que estava sendo recusado, além de revisá-lo e, com isso,

instaurar novas perspectivas de futuro.

Por isso, Barnabé começa pedindo a Vasco que se recorde melhor do que aconteceu e

de quem é esse que o visita. Desse modo, as glórias das conquistas ultramarinas não serão

dadas somente aos grandes vultos da História, uma elite que controla a vida dos portugueses,

e sim aos pequenos, que tanto sofreram e morreram, a quem cabe a verdadeira recompensa.

De outra forma, a salvação não será possível e isso tudo não terá valor algum, como se pode

obter da fala de Barnabé:

porque se vos não consente a grandeza a lembrança de um desgraçado que

convosco imensamente penou, e se dos pequenos mortais não cura o orgulho

de almirante de Portugal, bem mesquinha será a recompensa que havereis de

obter no outro Mundo, ainda que admita eu que do passado vos ficou a

bondade com que tratáveis os que sob vosso mando serviam, e tantos gelos

não terão derretido que se vos haja alterado a disposição, e como é facto que

ameniza a idade a crueza do ânimo, diferente dos mais não sereis, já que a

vosso favor registáveis a preciosa qualidade da valentia, e bravos a sério não

existem, estou em crer, que a modéstia não transformem em esteio da sua

compleição [...] (CLÁUDIO, 1998, p. 237).

Essa busca pela relação entre tempo e memória e entre realidade e ficção é uma

característica na obra desse autor, tal como nos fala Calvão sobre os romances biográficos de

Mário Cláudio, as preocupações constantes são a dúvida sobre as possibilidades ou

impossibilidades da apreensão da existência através da escrita, as reflexões sobre o tempo e

sua permanência na memória (CALVÃO, 2000, p. 27).

É, justamente, esta busca pelo passado na memória, revendo-o e dando a todos o

devido valor pelo que aconteceu, que vai levar a um novo desejo de futuro no último capítulo.

Este, iluminado pelo próprio título, “As Luzes”, mostra que o nauta não pode ficar longe do

oceano, já que o mar é representação do horizonte, que aponta para o futuro. Com isso, Vasco

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lembra com saudade de um momento em sua infância com seu irmão, quando pela primeira

vez avistou uma caravela, numa tarde em Sines:

reportava-se-lhe a lembrança de uma tarde em Sines, e à hora a que,

achando-se todos na sesta despenhados, haviam subido os dois manos à torre

do castelo, e de mãos dadas, e perante o Atlântico, uma nau ardente tinham

descortinado, prosseguindo em sua rota para o Sul, e dela se extravasava um

prodigioso clarão, desenvolvido em luzes e luzes que os cegavam...

(CLÁUDIO, 1998, p. 262).

A visão de uma nau é motivo de felicidade. Vasco, lembrando-se da caravela

avistada, vai iluminar mais uma vez suas perspectivas e aceita, assim, o pedido do rei de ir

mais uma vez às Índias.

O futuro pode ser contingente, dependente do acaso, levando a vida a lugares

escuros. Isso pode acabar levando ao ponto em que se é fraco, como se vê em:

Mas complexa sorte se lançando nas jogadas da existência, facto é que, se o

itinerário tanta vez se nos mostra, tanta vez se traduz num atalho que na

carência do que somos desemboca, ao arremeter por lugares que as luzes não

testemunham (CLÁUDIO, 1998, p. 264-265).

Contudo, é possível sempre sair das cinzas da velhice, rever o passado e, assim,

iluminar mais uma vez o horizonte. Dessa forma, Vasco, que sempre foi dependente do irmão,

acaba por estabelecer com Barnabé um laço de irmandade:

Nele atentou Vasco da Gama por tempo maior do que o que costumava

conceder ao reparo de quem com ele se cruzava, e percebeu o rapaz que só

então, mas para sempre, o elo dos irmãos que do mesmo ventre não

promanam, nem de semente idêntica derivam sua origem, nesse instante se

fechava (CLÁUDIO, 1998, p. 271).

Esse laço começou a ser atado na primeira visita de Barnabé. Depois, foi fortemente

amarrado com as cordas da viagem. Contudo, só agora se fecha. Não é apenas a ligação entre

os dois personagens, mas a união de todos os que fizeram as glórias de Portugal, que, agora,

podem olhar mais uma vez para o horizonte e avistar as caravelas iluminadas. Tanto que

Vasco, ao final, diz que não foi ele quem descobriu o caminho para as Índias, mas Barnabé.

Também, lamenta pelo que se perde para se ganhar. Com isso, toma coragem para seguir em

frente e de enfrentar mais uma vez seus medos. Ao voltar a fantasiar seu futuro, não é mais

um velho no inverno aguardando a morte.

Assim, os tempos passado, presente e futuro estão definitivamente ligados. O

controle temporal é, na verdade, uma característica importante desse romance. Vários

acontecimentos narrados, a infância de Barnabé em diversos momentos, além da de Vasco e

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Paulo, a viagem às Índias, as visitas que Barnabé faz a Vasco, o que aconteceu ao jovem

judeus após a viagem, e a velhice do capitão português, são intercalados, intercortados e

religados diversas vezes nesse livro, cabendo ao leitor discernir qual é o fluxo correto do

tempo. Isso se houver correção. Afinal, nessa narrativa o tempo é capaz de parar e voltar

atrás, para somente depois seguir adiante. Então, esse jogo temporal ajuda a redimir o

passado, tal como proposto.

Se o objetivo da peregrinação era livrar-se do medo da morte, controlando o tempo

isso se torna possível. Ela, que esteve presente com Barnabé desde sua infância, já não o

assusta mais, pois ele conhece o movimento do mundo e os preceitos divinos. Mesmo Vasco,

que não fez a peregrinação, está aberto a enfrentar mais uma vez sua hidra. Por fim, é preciso

enfrentar seus medos para livrar-se do inverno. Ficar parado em decadência, encoberto, não

trará resultados. Deve-se ir em direção à luz, avistar mais uma vez a caravela.

Respondendo ao velho do Restelo d’Os Lusíadas, talvez o maior desastre seja perder o

rumo e ficar parado. Portugal parece ter se esquecido de si mesmo, de sua autenticidade, de

sua independência tão habilmente mantida ao longo dos séculos, e de seu passado. Assim,

depois que nada restou de nada, ainda ficou “o tudo desse nada”, a marca da identidade

portuguesa, a saudade, como comenta Eduardo Lourenço:

Talvez só um povo permanentemente distraído da sua existência como

tragédia, ou imbuído e inebriado dela a ponto de a esquecer, pudesse tomar

por brasão da sua alma a figura da saudade. Talvez, simplesmente, porque,

como povo, feliz na sua inconsciência que é a vida, não se resigne a que

nada fica de nada, como disse Unamuno. Quando nada resta de nada, fica

ainda o tudo desse nada. É isso que vivemos como saudade, unindo numa só

intuição as visões, no fundo semelhantes, dos nossos maiores poetas, de

Camões a Garrett, de Pascoaes a Pessoa (LOURENÇO, 1999, p. 34).

Mário Cláudio soube perceber esse problema, talvez ainda maior do que as longas

guerras coloniais discutidas por outros romancistas portugueses contemporâneos. Por isso,

resolve fazer uma revisão desse passado renegado. A ele cabe cantar as obras valorosas dos

portugueses que foram da lei da morte libertando Portugal. Contudo, não é uma visão ufanista

do passado lusitano. Ao contrário, ele presta homenagem saudosa ao passado de navegação

português em dez capítulos, numa referência aos dez cantos d’Os Lusíadas. Contudo, não

heroiciza os grandes capitães, mas o povo que sofreu todo esse tempo devido à tragédia da

busca desse destino imperial.

Destarte, com sua identidade redimida e sua História efetivamente glorificada por ter

sido dada a seu povo, Portugal pode mais uma vez aspirar a um futuro promissor. O velho

Portugal expansionista de D. Afonso Henriques, do Infante D. Henrique, de Vasco da Gama e

Page 21: SAUDADE DO FUTURO DA EPOPÉIA PORTUGUESA: UM … · saudade do futuro da epopÉia portuguesa: um caminho pela peregrinaÇÃo de barnabÉ das Índias, de mÁrio clÁudio carlos eduardo

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de tantos outros, liberta-se das neves que o aprisionava. Seu povo pode voar como pombas e

ir em busca de novas Índias. As luzes agora iluminam o horizonte. O caminho a seguir

continua incerto, mas possível, basta percorrê-lo. Afinal, não é feliz quem nunca viu uma

caravela!

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