santos; pinto - analfabetismo e a vergonha em questão o filme "o leitor"

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Analfabesmo e vergonha: em questão o filme “O LeitorEl analfabesmo y la vergüenza: en discusión la película “The Reader” Illiteracy and shame: in queson the film “The Reader” Teresa Crisna Carreteiro 1 , Paulo Fernando Oliveira dos Santos 2 e Bruna de Oliveira Santos Pinto 3 Resumo Este argo analisa o filme “O leitor”, uma coprodução germânico-americana do diretor Stephen Daldry, baseado no romance “Der Vorleser”, de 1995, do escritor alemão Bernhard Schlink. A discussão centra-se na vergonha associada ao analfabesmo, tema pregnante do filme. A “banalização do mal” também é um ponto discudo no trabalho. Usa-se como aporte teórico autores como Freud, Lacan, Hannah Arendt e Vincent de Gaulejac. Palavras-chave: analfabesmo, vergonha, invisibilidade. Abstract This arcle analyzes the film “The Reader”, a co-producon of German-American director Stephen Daldry, based on the novel “Der Vorleser”, 1995, the German writer Bernhard Schlink. The discussion focuses on the shame associated with illiteracy, pregnant theme of the film. The “banality of evil” is also a point discussed at the work. It is used as the theore- cal authors such as Freud, Lacan, Hannah Arendt and Vincent Gaulejac. Keywords: illiteracy, shame, invisibility. Resumen Este arculo analiza la película «The Reader», una co-producción alemana-estadounidense del director Stephen Daldry, basada en la novela “Der Vorleser”, de 1995, del escritor alemán Bernhard Schlink. La discusión se centra en la vergüenza asociada al analfabesmo, tema de importancia de la película. La «banalidad del mal» es también un punto discudo en el trabajo. Se uliza autores teóricos como Freud, Lacan, Hannah Arendt y Vicente Gaulejac. Palabras clave: analfabesmo, vergüenza, invisibilidad. 1. Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisadora do CNPq, psicanalista e psicossocióloga. Contato: [email protected]. 2. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), professor da UCAM/RJ e psicanalista da Escola Brasileira da Psicanálise Movimento Freudiano. Contato: [email protected]. 3. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Contato: bru- nauff@yahoo.com.br.

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Este artigo analisa o filme “O leitor”, uma coprodução germânico-americana do diretor Stephen Daldry, baseado no romance “Der Vorleser”, de 1995, do escritor alemão Bernhard Schlink. A discussão centra-se na vergonha associada ao analfabetismo, tema pregnante do filme. A “banalização do mal” também é um ponto discutido no trabalho. Usa-se como aporte teórico autores como Freud, Lacan, Hannah Arendt e Vincent de Gaulejac.

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Analfabetismo e vergonha: em questão o filme “O Leitor”El analfabetismo y la vergüenza: en discusión la película “The Reader”Illiteracy and shame: in question the film “The Reader”

Teresa Cristina Carreteiro1, Paulo Fernando Oliveira dos Santos2

e Bruna de Oliveira Santos Pinto3

Resumo

Este artigo analisa o filme “O leitor”, uma coprodução germânico-americana do diretor Stephen Daldry, baseado no romance “Der Vorleser”, de 1995, do escritor alemão Bernhard Schlink. A discussão centra-se na vergonha associada ao analfabetismo, tema pregnante do filme. A “banalização do mal” também é um ponto discutido no trabalho. Usa-se como aporte teórico autores como Freud, Lacan, Hannah Arendt e Vincent de Gaulejac.

Palavras-chave: analfabetismo, vergonha, invisibilidade.

Abstract

This article analyzes the film “The Reader”, a co-production of German-American director Stephen Daldry, based on the novel “Der Vorleser”, 1995, the German writer Bernhard Schlink. The discussion focuses on the shame associated with illiteracy, pregnant theme of the film. The “banality of evil” is also a point discussed at the work. It is used as the theore-tical authors such as Freud, Lacan, Hannah Arendt and Vincent Gaulejac.

Keywords: illiteracy, shame, invisibility.

Resumen

Este artículo analiza la película «The Reader», una co-producción alemana-estadounidense del director Stephen Daldry, basada en la novela “Der Vorleser”, de 1995, del escritor alemán Bernhard Schlink. La discusión se centra en la vergüenza asociada al analfabetismo, tema de importancia de la película. La «banalidad del mal» es también un punto discutido en el trabajo. Se utiliza autores teóricos como Freud, Lacan, Hannah Arendt y Vicente Gaulejac.

Palabras clave: analfabetismo, vergüenza, invisibilidad.

1. Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisadora do CNPq, psicanalista e psicossocióloga. Contato: [email protected].

2. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), professor da UCAM/RJ e psicanalista da Escola Brasileira da Psicanálise Movimento Freudiano. Contato: [email protected].

3. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Contato: [email protected].

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LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011.

Este texto analisa o filme “O Leitor” (“The Reader”) articulando duas temáticas: a leitura e a vergonha. Trata-se de uma coprodução germânico-americana de 2008, dirigido por Stephen Daldry e baseado no romance “Der Vorleser”, de 1995, do escritor alemão Bernhard Schlink.

A película pode ser interpretada sob diversos ângulos: político, histórico, sociológico, psicológico, entre outros. Aborda de modo não maniqueísta uma situação complexa e aponta a imbricação existente entre a pluralidade de dimensões que atravessam a história. Por este motivo tal filme se presta a várias discussões e análises. A partir de uma abordagem ora psicossociológica, ora psicanalítica, optamos destacar o tema da leitura e do analfabetismo vinculados a questão da vergonha por pensarmos que eles perpassam mar-cantemente a obra. Por este motivo, o Holocausto, tema tão pregnante na obra, assim como na história da humanidade, não será o foco central de nossa análise.

Sobre o filme

A história tem início com Michael Berg, então advogado alemão, relembrando o passado através da passa-gem de um bonde. O ano é 1995. Já nas suas lembranças, o ano é o de 1958 e o cenário, a cidade de Neus-tadt, na Alemanha Ocidental. Na ocasião ele, um jovem adolescente, passa mal na rua e Hanna Schimtz, uma mulher de aproximadamente 36 anos, séria e firme, o ajuda.

O jovem é diagnosticado com escarlatina e meses depois, já recuperado, retorna ao local de moradia de Hanna, a fim de agradecê-la. Sempre demonstrando certa insegurança diante dela, ele estabelece peque-nos diálogos com Hanna que parece não lhe dar atenção, até o momento em que Michael afirma que durante seu período de convalescença, não teve vontade de fazer nada, nem mesmo ler. Estas últimas palavras dele despertam o interesse da mulher.

Inicia-se entre eles uma aventura, marcada por forte vínculo sexual e pontuado por leituras. Os encontros acontecem no apartamento de Hanna e passam, então, a ter sempre uma sessão de leitura seguida de uma relação sexual. As obras literárias lidas são livros estudados pelo jovem no colégio, como a “Odisséia”, de Homero, “A Dama do Cachorrinho”, de Anton Checkhov (1890), e “As aventuras de Huckleberry Finn”, de Mark Twain (1884).

Os dois amantes pertencem a horizontes sociais bastante diferentes. Hanna exerce a função de fiscal de bonde conferindo se os passageiros são portadores do ticket de transporte; mora em um simples aparta-mento, em um modesto bairro. Ele, ao contrário, pertencendo a uma família burguesa para a qual a edu-cação é um capital muito valorizado, mora em uma residência muito confortável.

O romance entre os dois se desenrola de maneira secreta. Ele foge para vê-la nos intervalos entre a escola e suas outras atividades. Isso provoca um distanciamento entre Michel e seus amigos que têm sua idade e também com relação à sua família.

Hanna não demonstra muita curiosidade sobre a vida do jovem, o que o incomoda. No entanto, o interesse dela é grande pelo que ele lê a cada dia quando estão juntos. Excetuando nas relações sexu-ais, ela é fria e até mesmo dura com ele em determinadas situações. Mesmo assim, o relacionamento ganha um cotidiano e o casal chega a fazer uma pequena viagem de bicicleta. Hanna sempre demons-tra emoção com as histórias lidas para ela e, na viagem, chora ao ver um coro de crianças cantando. Michael parece apaixonado.

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Por exercer bem suas atividades profissionais, Hanna recebe uma promoção: doravante ela teria uma função administrativa, em escritório. Ao receber a notícia, a mulher demonstra um semblante de preocupação, não de contentamento. Ao retornar à sua casa, encontra Michael. É a ocasião do ani-versário dele. Motivados pela reclamação dele sobre a frieza dela os dois brigam. Reconciliam-se em seguida e o jovem sai para comemorar o aniversário com amigos. Hanna arruma suas coisas e deixa sua residência, sem avisar nada a ninguém, nem mesmo a ele. Desaparece sem deixar rastro algum. Michael, ao se deparar com o fato de sua partida, fica muito triste e não o compreende. Nes-te momento, há um corte temporal no filme. Não há esclarecimento do que acontece com Hanna; subentende-se que Michael não torna a vê-la, o que é confirmado posteriormente.

Oito anos se passam e em 1966, Michael, enquanto estudante de Direito da prestigiosa Universidade de Heidelberg, participa de seminários especiais com um grupo de alunos, ministrados pelo professor Rohl, sobrevivente de um campo de concentração na Segunda Guerra. Eles lêem um texto de Karl Jaspers, “A questão da culpa germânica” e acompanham como ouvintes o julgamento de mulheres que são acusadas de deixarem morrer queimadas aproximadamente 300 judias, num incêndio em uma igreja, no ano de 1944, na Alemanha. Michael se surpreende ao perceber que entre as acusadas está Hanna. O estudante passa a acompanhar com muita atenção o julgamento, observando-a em especial. Ela parece não ter qualquer ajuda de advogados. Hanna relata em detalhes e com aparente naturalidade o que acontecia no trabalho que realizava na SS (Schutvstaffiel — Esquadrão do Exército Alemão).

Durante o julgamento, uma das sobreviventes narra que Hanna tratava as prisioneiras de modo dife-rente do que as outras funcionárias: algumas eram escolhidas para ler para a guarda que tinha então cuidados para com estas; tais cuidados faziam crer que elas não seriam escolhidas para a morte. Mas, ao contrário disso, Hanna geralmente indicava aquelas que eram suas leitoras para a câmara de gás.

A evidência chave do julgamento é o depoimento da sobrevivente judia Ilana Mather, que escrevera um livro contando como ela e sua mãe conseguiram sobreviver ao extermínio. Diferente das outras rés presentes, Hanna admite perante a corte que Auschwitz era um campo de extermínio e que dez mulheres eram “selecionadas” e enviadas à câmara de gás a cada mês. Ela é então acusada pelas outras rés de ser a autora de um relatório sobre o episódio das 300 mortes, chamado “Marcha da Morte”; Hanna nega tal autoria, apesar da insistência daquelas que a acusavam. Entretanto, quando o juiz lhe solicita uma amostra de sua caligrafia para comparar com a do relatório, Hanna prefere con-fessar a autoria a mostrar sua escrita. É neste momento que Michael, assistindo a tudo, desvela seu segredo: ele conclui que Hanna escolhe não demonstrar que, na verdade, é analfabeta, tendo oculta-do tal fato por toda a vida. Ele relembra uma série de ocasiões nas quais a mulher esquivou-se a ler. É tão caro a Hanna a revelação deste segredo que ela prefere pagar com sua condenação na corte a ter que demonstrar-se analfabeta. Ela escolhe aceitar a acusação da responsabilidade do documento, o que representa dizer que foi ela quem ordenou que não se abrissem as portas da igreja, deixando morrer todas as mulheres, à confessar publicamente em uma grande platéia que não sabia ler.

Michael diz a seu professor que possui uma informação importante, favorável a uma das rés, mas não sabe se faz a revelação, já que a mesma havia optado por escondê-la. O professor lhe responde que, se ele, jovem estudante de Direito, não havia aprendido nada com o que ocorreu com os judeus, então qual seria o propósito do seminário que ele, professor, coordenava? Michael mantém o silêncio.

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Hanna é condenada à prisão perpétua. As demais rés recebem penas menores. A vida de Michael segue seu curso. Torna-se advogado, casa-se com uma colega de faculdade, tem uma filha e, depois de certo tempo, o casal se separa.

Após seu divórcio, revendo seus livros e notas de aula lembra-se de Hanna. Michael decide gravar em fitas cassete textos literários e enviá-los a ela na prisão, junto com um toca-fitas. Tudo é feito anonimamente. Com o tempo, Hanna recorrendo aos livros da biblioteca do presídio e às fitas recebidas acaba aprendendo a ler e a escrever. Passa então a remeter cartas a Michael — mensagens muito breves, contendo geralmen-te uma locução. Na primeira carta consta a frase: “Obrigada pela última menino, adorei”. Após recebê-la Michael cessa o envio de fitas e nunca responde as cartas, apesar de guardá-las.

No momento de Hanna sair da prisão, após revisão de sua pena, Michael, respondendo ao apelo da assis-tente social penitenciária, vai ao presídio. Tal funcionária pede que ele a ajude na vida fora do cárcere já que ela não tem ninguém além dele. Após a conversa com a assistente social, Michel se encontra com Hanna. Mesmo mantendo distância dela, ele afirma que tomará as providências extra muros relativas à habitação e que a auxiliará também para que ela receba os auxílios sociais. Hanna não chega a sair da pri-são, pois se suicida usando uma pilha de livros para se enforcar.

Vergonha e desejo

A vergonha de Hanna sobre sua incapacidade de ler é tão profunda que ela prefere a prisão per-pétua a ter que revelar este segredo. Sua escolha em assumir a culpa perante a corte é um esforço caríssimo para corresponder ao que se espera dela. Mas e Michael? Por que ele se silenciou quando percebeu o segredo de Hanna? Teria ele, estudante de Direito, também sentido vergonha de ter amado (ou de ainda amar) uma ré que contribuiu para o Holocausto? A ameaça de emergir seu caso amoroso com pessoa considerada tão nefasta naquele momento o impediu de revelar o que ele sabia sobre ela? Teria a vergonha o paralisado?

A vergonha é paralisante do sujeito — é um sofrimento social que produz efeitos na psiquê. Ela é um sentimento produzido socialmente pelo olhar do outro (Gaulejac: 2006) que traz uma avaliação negativa sobre sua existência. O olhar é reatualizado cada vez que o sujeito enfrenta uma situação que lembre a vergonha. No entanto, uma série de mecanismos de defesa são construídos buscando negar ou recalcar o embaraço sentido. Isto permite que o sujeito se proteja de situações geradoras de sofrimento. No filme, por exemplo, Hanna mostra no julgamento como prefere confessar a auto-ria do relatório a enfrentar, o que ela considera como uma humilhação pública: ser analfabeta. Ela sempre se valeu de posições de poder para ter acesso a leitura e escamotear seu analfabetismo. Foi assim enquanto guarda SS e no romance com o adolescente Michael.

Hanna decide pagar o preço de sua vergonha com a prisão perpétua, mas já presa, consegue final-mente aceder ao aprendizado de leitura. Em seu máximo de imobilidade, presa para o resto da vida, somente nesta circunstância, ela consegue aprender a ler. Mas parece que esta aprendizagem soli-tária, não foi tão solitária assim: o movimento de Michael, ao enviar-lhe gravações, ativa nela uma centelha desejante. E é esta centelha que faz fogo quando ela consegue unir as gravações aos livros da biblioteca. Neste sentido, é algo do desejo de Michael — algo que não fica circunscrito a um só sentimento — que dispara um movimento em Hanna.

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Podemos tecer outra dimensão de análise a partir do conceito de gozo na psicanálise. Lacan vai mostrar que o que Freud tenta nomear como estando além do princípio do prazer é o gozo, isso que captura o sujeito e que não cabe na definição de prazer enquanto diminuição do nível de energia do aparelho psí-quico (Lacan, 1988). Se Freud fala de pulsões a partir de zonas privilegiadas corporais tais como a boca, o ânus e o falo (Freud, 1980), Lacan vai incluir nos rol das pulsões a pulsão invocante e a orelha (Lacan, 1985).

No filme podemos pensar que Hanna goza escutando a leitura de um outro a ela. Isso já vinha ocorrendo antes de Michael, na época da guerra com algumas prisioneiras eleitas por Hanna. Podemos supor que até certo ponto esta forma de gozar contribuiu para que ela não se mobilizasse para aprender a ler. Por sua vez Michael, jovem adolescente na explosão da sexualidade que emerge nesta época da vida, fascina-se por aquela mulher que lhe abre as portas da vida sexual carnal. Neste sentido, Hanna, experiente do mundo carnal, goza escutando seu jovem amante lendo-lhe histórias, goza ao adentrar a um outro mundo que não o carnal pelo som da voz do amante e ele, em contrapartida, de seu mundo acadêmico e letrado, tem acesso ao gozo sexual, propriamente desconhecido até então, pelo corpo de sua amante.

Nesta dimensão pulsional, a voz e o silêncio marcam a história. Inicialmente, a voz dele a faz gozar ao ler as histórias e ela permanece em silêncio. No tribunal, surpreendentemente escutar a voz da amante o desperta para tudo o que viveu e Michel titubeia em seu silêncio: ele falará ou não sobre aquilo que sabe sobre ela? No momento de impasse, quando o juiz a convoca a mostrar sua caligrafia, ela falará ou não sobre a marca de analfabetismo que ela carrega consigo? Diante desses silêncios marcados pela vergo-nha, dentre outros sentimentos, sela-se o destino de Hanna: a prisão perpétua. Depois, em um terceiro momento, Michael, de alguma forma responde ao silêncio dela no tribunal colocando-se em trabalho ao retomar a ação de ler histórias para ela, mas dessa vez algo acontece de diferente: presa, longe do corpo físico ou do calor da convivência de Michael, a voz dele lança Hanna a finalmente aprender a ler. Gozar com a voz dele não é mais suficiente a Hanna — ela quer mais, quer outra coisa. Mexe-se desejantemente para ir em direção aquilo que lhe envergonha. Confronta-se com a vergonha e o desejo de ler. Ela já não tenta mais invisibilizar aquilo que causa vergonha, ou seja, o analfabetismo, em face de uma sociedade onde a leitura é um capital importante. De certo modo, o sentimento que move Michael a fazer as gravações para Hanna dispara nela uma dimensão de desejo que a leva a aprender a ler; o que faz Hanna ler é o desejo que é acionado nela quando não tem mais nada. Neste sentido, é a falta que aciona o desejo e, para apren-der é fundamental que haja desejo.

Talvez essa seja uma questão interessante para pensarmos no analfabetismo: o desejo envolvido na situa-ção de aprendizagem: como se pode disparar um impulso que se desdobre em alfabetização?

Mas o que ocorre na relação quando ela envia a Michael a sua primeira carta? Esta mensagem condensa várias dimensões que marcaram a relação dos dois: Hanna chama Michael da forma que sempre o deno-minou, “kid”, traduzido por menino. Esta forma de nomeá-lo existente desde o começo da relação pode apontar a diferença que havia entre eles: de idade e de experiência da vida. A evocação “kid” representa ao mesmo tempo uma forma afetiva e superior, marcando que ela era uma mulher e ele um menino. Deveria ser também um modo de sempre significar ao jovem e a ela própria os lugares correspondentes que cada um ocupava, povoados por diferenças de idade, sociais, culturais, intelectuais. A palavra “kid” era o balizador do limite da relação.

Mas ao mesmo tempo a missiva de agradecimento a Michael, agora não mais um “kid” mas um homem, rompe o vínculo do tempo da prisão. Ele interrompe qualquer tipo de correspondência, não responde às suas cartas e não remete mais gravações. Muitas hipóteses podem ser evocadas. Ele se dá

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conta que Hanna é alfabetizada. Seria ela alfabetizada anteriormente? Poderia ele ter alguma suspeita sobre o relatório da matança na Igreja, durante a guerra? Ou a partir do momento em que ela sabe ler ele estaria liberado da função de ser seu leitor? Algo muda com o fato dela poder ser doravante uma leitora. Estaria rompido o jogo desejante/gozante que antes existia? Estas são algumas das questões que colocamos, mas há outras relativas à questão histórica e ao Holocausto.

A banalidade do mal e a vergonha

Do julgamento no filme destacamos dois momentos importantes e decisivos do modo de Hanna se con-duzir. Ela foi trabalhar em um campo de concentração na Cracóvia, pois soube que estavam recrutando guardas. Este campo, depois de existir por algum tempo, é fechado. No inverno de 1944, Hanna ajuda a levar as prisioneiras para o oeste, o que foi denominado no julgamento como “Marcha da Morte”. Muitas mulheres morreram devido às péssimas condições da viagem. Uma noite pararam em uma igreja e, no relato de uma das sobreviventes, houve satisfação por passarem a noite em um lugar fechado. No entanto, a igreja foi bombardeada na madrugada. Todos os que estavam dentro correram para as portas, buscando escapar do fogo. Era impossível sair, visto estarem trancadas. Ninguém abriu as portas e todas morreram.

Durante o julgamento o juiz pergunta a Hanna porque as portas não foram abertas e ela responde com um tom de voz forte e convicto, apoiando-se em argumentos profissionais: “éramos guardas, nossa tarefa era vigiar as prisioneiras. Não podíamos deixá-las escapar”. E continua “se saíssem seria o caos. Como restabeleceríamos a ordem? Não podíamos deixá-las sair; éramos responsáveis por elas!”.

Neste aspecto podemos recorrer a Hannah Arendt no livro “Eichmann em Jerusalém” (1999) quando ana-lisa o processo de Eichmann e diz que ele se comporta como um funcionário: executa o que compõe a sua tarefa. Hanna, como Eichmann, não pensou em nenhum momento na desumanidade e crueldade que era deixar morrer as mulheres, na responsabilidade que ela e outras guardas tiveram por aquelas mortes. Suas argumentações são de dois níveis: afirma, por um lado, que se as deixasse partir não estaria executando sua tarefa — aqui o humano é reduzido ao plano da burocracia; por outro lado, alega a desordem que seria liberar as mulheres. O mundo do genocídio do qual Hanna fez parte pretendia exterminar tudo que era considerado mal, que causava transtorno. O ato de não abrir as portas situava-se no próprio pensamento do Holocausto: um mundo purificado poderia surgir pela exterminação dos judeus e o encontro da raça pura. Tudo isto a encaminhou para a impossibilidade de abrir as portas e liberar as mulheres da morte. Hanna, como Eichmann, pronuncia frases que são vividas como verdades absolutas, como clichês, e repre-sentam a normalização inquestionável da filosofia nazista, encaradas na guarda da SS.

Em outro momento do julgamento Hanna é inquirida pelo juiz se, quando na Cracóvia, tinha conheci-mento de estar selecionando prisioneiras para irem para Auschwitz para serem enviadas para a morte. Ela novamente responde com afirmativas burocráticas dizendo: “A toda hora outras prisioneiras chega-vam e as antigas tinham que dar lugar às mais novas. Não podíamos guardar todas. Não havia espaço”. Este argumento apresentado por Hanna não se refere ao extermínio de seres humanos, mas à necessida-de de espaço. Era insensível à questão do extermínio. Mais tarde esta questão ressurge, quase no final do filme, em um dos únicos diálogos que Michael teve com ela quando estava preste a sair da prisão.

Michael indaga o que ela pensa do passado. Ela inquire o “passado com você?” Ele lhe res-ponde que não e ela acrescenta: “antes do julgamento eu não tinha necessidade de pensar no passado”. Diz ainda que os mortos estão mortos e, num tom quase vitorioso, lhe conta ter

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aprendido a ler. Os atos cometidos, as atrocidades das quais participou não tiveram peso na vida de Hanna. O importante para ela foi ter acedido a uma outra condição: não era mais uma cidadã analfabeta. Dizer que tinha aprendido a ler é como se estivesse afirmando não precisar mais se envergonhar da condição desvalorizada que tinha anteriormente. Agora ela podia con-fessar que antes não sabia ler. Talvez, a partir de então, ela se sentisse igual a todos os outros — todos aqueles que participam do mundo dos letrados e alfabetizados. Mas a pergunta de Michael referia-se ao que havia apreendido e refletido sobre os atos cometidos enquanto guarda do campo de concentração. A pergunta voltava-se para a condição de humanidade dela. A construção subjetiva de Hanna é fruto do regime nazista e, por isso, ela não entra em sintonia com a indagação de Michael; sua resposta enfatiza uma perspectiva unicamente indi-vidual: ela havia aprendido a ler.

Sobre os livros

Um detalhe interessante percebe-se quando nos damos conta dos livros que Michael, aos 15 anos, lia para Hanna. “As aventuras de Huckleberry Finn” (2008) foi escrito por Mark Twain representa uma das primeiras grandes novelas estadunidenses. Conta a história de um menino pleno de coragem que desce o rio Mississipi com o objetivo de chegar a Ohio em companhia de Jim, amigo e escravo fugitivo. Vivem muitas aventuras no caminho. A aventura juvenil recheada de sátiras trata de questões vinculadas ao racismo e à amizade — uma história sobre a relação entre um escravo e um rapaz. São temas que, de certa forma, circulam na relação entre Hanna e Michael — ela uma simples fiscal de transporte urbano e ele, jovem adolescente de outro horizonte social. Ela numa vida sem excessos; ele de família abastada. Ela vinda de uma trajetória com marcas pesadas de guarda de campo de concentração e ele desco-brindo o mundo, tendo uma aventura sexual com muitas outras, sexuais ou não, despontando em seu horizonte. Ela com uma história de oprimida e opressora e ele com a liberdade de fazer muitas escolhas.

Outra leitura de Michael a Hanna foi a “Odisséia” (2010), poema épico da Grécia Antiga, atribuído a Homero. Na história, o herói grego Odisseu (ou Ulisses, como era conhecido na mitologia romana) faz sua longa viagem para casa depois da queda de Tróia. Odisseu leva dez anos para chegar à sua terra natal, Ítaca, depois da Guerra de Tróia, que também havia durado dez anos. Vale notar que a palavra “Odisséia” passou a ter um sentido no léxico em diferentes línguas que significa “longa viagem cheia de aventuras, peripécias e eventos inesperados”. Num certo sentido, a estrutura de viagem de aventuras se repete nes-tes dois livros citados. Poderíamos pensar na vida de Hanna como uma Odisséia? Ou, diferentemente, o quanto isso era um dos elementos que fascinava Hanna, que abria a Hanna um mundo diferente do seu tão contido, opressor e oprimido? O quanto, na verdade, a vida de Michael parecia a Hanna uma futura viagem de aventuras, com tantos destinos e experiências distintas? E o quanto era a capacidade de leitura que, no imaginário de Hanna, proporcionaria a Michael esse descortinar do mundo?

Um elemento interessante na obra atribuída a Homero que faz conexão com Hanna e Michel são as sereias, ninfas do mar que seduzem os navegantes para a sua ilha com um canto magnífico para depois devorá-los. O canto da sereia é um exemplo interessante do que falávamos acima sobre a pulsão invocante e o gozo aí atrelado. Só que na história aqui debatida, o canto da sereia parece estar na voz de Michel que seduzia e encantava Hanna. Entretanto, ao final, os dois personagens são, de algum modo, devorados por aquilo que viveram — Hanna acaba se suicidando e Michel parece viver num estado melancólico sem fim.

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Vale a pena ressaltar que o poema “Odisséia” foi composto originalmente seguindo a tradição oral, e destinava-se mais a ser cantado do que lido — o que faz-nos pensar que não foi escolhido pelo pelo escritor alemão Bernhard Schlink, autor do romance que deu origem à película, por acaso. É nessa conjunção entre oralidade e texto que o filme tem a sua chave.

Outro detalhe interessante quanto ao livro é o fato de que os eventos narrados dependem tanto das escolhas feitas por mulheres, criados e escravos quanto dos guerreiros, ou seja, transportando a história para os ouvidos de Hanna em 1958, posições sociais semelhantes às desempenhadas por ela — mulher exercendo função pouco instigante — estariam no mesmo patamar de influenciar a história que os guerreiros, os poderosos.

Por último, o livro “A Dama do Cachorrinho” também é apresentado como uma das leituras de Michael a Hanna. Trata-se de um conto de Anton Checkhov que narra a história de um caso de adultério entre um banqueiro russo e uma jovem que ele conhece enquanto tirava férias. Depois de retornarem às suas respectivas vidas cotidianas, cada qual com seu cônjuge, o banqueiro não con-segue esquecer a moça que vive em outra cidade. Acaba indo em busca de um re-encontro com ela, pois percebe que, pela primeira vez na vida, ele realmente está apaixonado. Finalmente se encon-tram e se perguntam como podem continuar juntos; o conto acaba sem resolução.

Quanto a este livro, podemos pensar o quanto Michael, jovem de família abastada, era o banqueiro na vida de Hanna, simples fiscal de trem, o homem que amava a moça e que estava disposto a apos-tar muito para tê-la ao seu lado. O fato de o conto terminar sem solução parece ser um prenúncio do caso entre Hanna e Michael.

À guisa de conclusão

Por fim, certamente os efeitos da vida de Hanna, suas limitações, medos, vergonhas e gozos marcam Michael para o resto de seus dias. Dentre esses elementos que caracterizam a vida desta mulher encontramos o analfabetismo e a vergonha — não poderia ter sido diferente?

Hanna internalizou a vergonha do analfabetismo toda durante a sua vida. A vergonha se enquista no aparelho psíquico destruindo toda a possibilidade de reação (GAULEJAC, 2006:60). No entanto Hanna provavelmente invejava muito os que sabiam ler, aqueles que tinham a faculdade de poder, através da leitura, viajar imaginariamente a mundos distantes e dispares, conduzidos pelos roman-ces, seus personagens e intrigas. Ela, enquanto guarda SS do campo, enviava para a morte as suas leitoras que eram, talvez, as possíveis sabedoras de seu analfabetismo. Usava o seu poder para fazer cinzas do que as outras tinham: a capacidade de leitura. Hanna eliminava todas aquelas que pode-riam desvendar o seu segredo, o analfabetismo. Isto é provavelmente uma de suas marcas psíquicas mais fortes, o que a fazia se sentir diferente dos outros. Hanna concentrou sua vida a invisibilizar seu analfabetismo. Este lhe causava vergonha e a fazia se sentir diferente dos outros. No entanto, ela participou de um dos momentos mais cruéis da historia da humanidade: o Holocausto. Este fato não a fazia se envergonhar pois ela, como muitos outros, compartilhavam a ideologia nazista.

Envio: 14 fev. 2011

Aceite: 20 mar. 2011

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Referências bibliográficas

ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

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