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FICHA TÉCNICA Título original: Salta, Bart! Autora: Susanna Tamaro Copyright © Susanna Tamaro 2014 Tradução © Editorial Presença, Lisboa, 2015 Tradução: Rossana Appolloni Ilustrações do miolo e da capa: Adriano Gon Ilustrações © 2014 by Giunti Editore S.p.A., Firenze-Milano — www.giunti.it Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda. 1. a edição, Lisboa, setembro, 2015 Depósito legal n. o 397 105/15 Reservados todos os direitos para Portugal à EDITORIAL PRESENÇA Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo 2730-132 BARCARENA [email protected] www.presenca.pt

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Page 1: Salta, Bart! Autora: Susanna Tamaro · Amaranta — e intermináveis conversas através do tablet. Fotografavam qualquer coisa insólita — um prato exó-tico, uma osga, um habitante

FICHA TÉCNICA

Título original: Salta, Bart!Autora: Susanna TamaroCopyright © Susanna Tamaro 2014Tradução © Editorial Presença, Lisboa, 2015Tradução: Rossana AppolloniIlustrações do miolo e da capa: Adriano GonIlustrações © 2014 by Giunti Editore S.p.A., Firenze-Milano — www.giunti.itComposição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda.1.a edição, Lisboa, setembro, 2015Depósito legal n.o 397 105/15

Reservados todos os direitospara Portugal àEDITORIAL PRESENÇAEstrada das Palmeiras, 59Queluz de Baixo2730-132 [email protected]

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1. Uma criança única no mundo

Bartolomeo Leonardo Atari Commodore tinha dez anos e vivia no bairro residencial de uma grande cidade. A casa onde ele morava tinha sido comprada pelos pais quando decidiram que, dali a não muito tempo, a família iria aumentar. Era um apartamento espaçoso, cheio de luz, equipado com as mais modernas inovações da domótica.

A mãe, Amaranta, trabalhava numa multinacional e viajava muito, enquanto o pai, Pierfrancesco, era piloto de aviões, sempre às voltas pelo mundo.

Ambos se conheceram num chat da Internet. Conversando através do chat, na solidão das noites, eles

rapidamente se aperceberam de que tinham muitos pon-tos em comum.

Por isso, ainda que com uma ligeira hesitação, pelo menos por parte da mãe, a uma dada altura decidiram encontrar -se. Quando revelaram os seus verdadeiros nomes, Pierfrancesco e Amaranta — aquele nome tinha--lhe sido dado porque o amaranto era a cor preferida da mãe dela — descobriram que viviam em cidades diferen-tes, muito longe um do outro. Mas isto não os desanimou.

Antes pelo contrário.

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Amaranta emocionava -se sempre que contava este epi-sódio a Bart.

«Não dormi durante três noites e, quando fui ao encon-tro do pai, as pernas tremiam -me. Tinha um medo terrível de que ele fosse diferente do que eu tinha imaginado.»

Porém, desde o primeiro instante sentiram -se perfeitos um para o outro.

Dado que ambos tinham ultrapassado havia já algum tempo a casa dos trinta, decidiram fazer as análi ses gené-ticas do costume e só depois de terem tido uma res-posta positiva — não havia nenhuma sombra ameaçadora no legado dos respetivos ascendentes e o ADN de cada um deles indicava que pareciam mesmo feitos para produzir algo excelente em conjunto — concordaram que tinha chegado o momento de pôr de pé o seu projeto parental.

Amaranta apercebeu -se de que alguma coisa estava a modificar-se no seu corpo logo três meses depois da mudança para a casa nova.

Dadas as circunstâncias, tinham a certeza de que a criança teria muitas probabilidades de ter um destino radioso e, por isso, puseram -se imediatamente à procura de um nome que se adequasse bem.

Um nome que contivesse a marca de algo grandioso.— Leonardo! — veio logo à boca de ambos.Desataram a rir -se, olhando um para o outro.Que outro nome podia ter o seu menino?Um génio maior que Leonardo — inventor, cientista,

pintor, escritor — nunca tinha aparecido no mundo.Leonardo, sim, seria Leonardo, não havia sombra de

dúvida.Mas só Leonardo era demasiado pouco.— Quantos mais nomes se tem, mais importante se

é — disse Pierfrancesco.

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Assim, acrescentaram Wolfgang, em honra de Mozart; Charles, em honra de Darwin; Vincent, em homenagem a Van Gogh e, por fim, Atari Commodore, para recordar o primeiro computador que entrou na casa de todos nós.

— Leonardo Wolfgang Charles Vincent Atari Com-modore? — repetiram os avós estupefactos, assim que lhes foi comunicado o nome do herdeiro. — Nem pen sem nisso!

Gerou -se uma discussão bastante acesa.— Carmelo! — gritaram os pais da Amaranta.— Bartolomeo! — gritaram ainda mais alto os pais do

Pierfrancesco.— Carmelo, como o bisavô!— Bartolomeo, como o trisavô!Por fim, deram a vitória aos avós paternos. O pai de Pier-

francesco, de facto, possuía uma magnífica empresa con-cessionária de carros antigos enquanto o pai de Amaranta, de sua propriedade, só tinha uma modesta casa de campo, com uma horta e um pomar, onde vivia com a mulher.

Dado que a técnica se desenvolve, mas o coração dos homens é sempre o mesmo, por fim, o novo pai começou a dizer:

— Que seja Bartolomeo...

Naquela mesma noite, teve de consolar durante bas-tante tempo Amaranta, que estava muito zangada:

— Porque é que te submeteste à prepotência do teu pai? — repetia com os lábios cerrados.

— Para quê dar -lhes um desgosto? São velhos e não nos custa assim tanto...

— Não nos custa assim tanto? Não nos custa assim tanto? Um nome de velho?! Um nome que fará rir toda a gente?!

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Acalmou -se apenas quando ele disse:— Faremos o seguinte: em casa vamos chamá -lo Bart.— Bart? — repetiu a Amaranta. — Bart! Mmm... Não

soa mal. E depois, no fundo, se vier a fazer alguma coisa de extraordinário é melhor que tenha um nome diferente dos outros todos. Se calhar, um dia as crianças serão cha-madas Bartolomeo, exatamente em sua honra.

Assim, numa manhã de verão cheia de sol — para a alegria dos pais e dos avós — Bartolomeo Leonardo Atari Commodore veio ao mundo.

Nos primeiros dez anos da sua vida, Bart cresceu como uma criança obediente e serena. De seis em seis meses, os pais atualizavam o sistema eletrónico de casa para mante-rem elevado o nível de conforto.

Aos sete meses, Bart já tinha recebido o primeiro tablet.Quando fez um ano, graças ao sistema estereofónico

inserido na almofada, já tinha ouvido toda a obra musical de Mozart e, mantendo -se de pé apoiado nas grades do berço, batendo o pezinho, acompanhava o ritmo de algu-mas sinfonias.

Quando Bart começou a ir à escola, propuseram à mãe um cargo de grande responsabilidade que a obrigaria a viajar muito. Amaranta não hesitou em aceitar, até porque Bart já era capaz de cuidar de si próprio.

De facto, em cada divisão da casa tinha sido instalado um ecrã que permitiria à mãe estar sempre presente. Bastava que Bart carregasse num botão e Amaranta, estivesse onde esti-vesse, apareceria imediatamente. Além disso, tinha também equipado o apartamento com um watchphone, um telefone de pulso, com as mesmas funções; assim poderiam permanecer em contacto mesmo quando ele estava na escola ou na rua.

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* * *

A mãe chamava o pai pelo seu nome, Pierfrancesco, e pretendia que Bart fizesse o mesmo com ela.

— Percebes, meu amor? — perguntou -lhe uma vez, quando era mais pequeno. — Há milhares de mães, milhões, biliões no mundo. Mas eu, para ti, quero ser única, como tu és único para mim. Por isso, para ti, serei sempre e só Amaranta. Nunca irei chamar -te filho e tu nunca irás chamar -me mãe. Prometes? E, natural-mente, nunca vais chamar pai ao pai, mas apenas Pier-francesco. Combinado?

Depois abraçou -o fortemente e repetiu a fórmula mágica: Ailaviuailaviuailaviu.

Ailaviu tornara -se a forma de encerrar todos os seus diálogos telemáticos. Ailaviuailaviuailaviu, repetiam um ao outro. Depois, Bart encostava uma cadeira ao ecrã e pre-gava um beijo no rosto eletrónico de Amaranta.

Amaranta já não vinha a casa mais do que dois ou três dias por semana, enquanto Pierfrancesco sobre-voava a sua cidade uma vez de dois em dois meses. No entanto, durante o verão, passavam duas semanas todos juntos. Normalmente, apanhavam uns quantos aviões, visto que para Pierfrancesco as viagens eram gratui-tas, e iam para um mega -hotel qualquer numa praia tropical qualquer. Ali, os pais deitavam -se à beira da pis-cina e passa vam o tempo entre o spa — o lugar onde se faziam massagens e tratamentos de beleza, explicara -lhe Amaran ta — e intermináveis conversas através do tablet. Fotografa vam qualquer coisa insólita — um prato exó-tico, uma osga, um habitante local em roupa típi ca — e enviavam -nas através do Facebook aos amigos que

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tinham ficado em casa, os quais, por sua vez, respondiam: — Uau! Que inveja! — acrescentando ainda alguma piada.

Bart, pelo contrário, depois do pequeno -almoço ia ter com o grupo de animadores e passava o dia inteiro com eles. Infelizmente para ele, faziam -se vários torneios de aptidão física — jogos na piscina, com a bola, tiro ao arco, ou com uma corda —, brincadeiras para as quais Bart não tinha jeito absolutamente nenhum. Depois, quando os animado-res ficavam fartos, punham -nos a todos numa sala de jogos de vídeo e abandonavam -nos ali, diante dos ecrãs lumino-sos. Antes de regressarem a casa, Amaranta, Pierfrancesco e Bart costumavam tirar uma fotografia juntos na praia.

— Divertiste -te? — perguntava -lhe invariavelmente a mãe, no fim das férias.

— Sim, claro — respondia invariavelmente Bart.Durante a longa viagem de avião de regresso, enquanto

os pais, bronzeados e relaxados, dormitavam ao lado dele, Bart sentia -se sempre estranhamente perturbado.

Tinha -se mesmo divertido?Ou teria dito uma mentira?E o que é que significava verdadeiramente «divertir -se»?De qualquer forma, voltar para casa era sempre um alí-

vio. Era ali que estava o mundo que ele conhecia, ali nin-guém lhe pedia para se divertir fazendo coisas das quais não percebia o sentido.

Dado que o Bart não tinha irmãos e os avós viviam muito longe, os seus dias eram organizados com o pro-grama que a mãe lhe inseria na central robótica da casa.

Durante os dias de escola, o despertador tocava sempre às sete em ponto. Assim que a cama o fazia levantar -se, inclinando -se mecanicamente para o chão, as luzes da casa de banho e da cozinha acendiam -se.

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Quatro minutos exatos eram para o duche, dois para lavar os dentes, quatro para fazer plin plin e plon plon.

De facto, exatamente dez minutos depois, a torradeira da cozinha torrava as suas fatias de pão; o micro -ondas aquecia o chocolate quente e a máquina de sumos fazia o seu trabalho, espremendo exatamente duas laranjas.

Oito minutos para comer e depois aparecia a mãe no vídeo. Normalmente ainda estava de robe e, atrás dela, via -se um quarto de hotel.

— Ailaviuailaviuailaviu. Bom dia, meu amor! Como dormiste?

— Muito bem, mam... Amaranta.A mão consultava então o seu tablet.— Na verdade, ao ler os sensores da almofada e do len-

çol, parece que entre as três e as três e dez, na fase REM, tu tiveste um pesadelo.

— Não.— Tens a certeza? Se calhar não te lembras.— Hum... Não, não me lembro de nada.— Estás a dizer -me a verdade?— Claro.— Espero que não haja nada que te esteja a perturbar.— Não, não há nada. A sério.A mãe, descansada, passava para o sensor instalado na

casa de banho. Junto ao lavatório tinha corrido tudo bem — mãos, dentes, cara no tempo certo —, mas na sanita tinha havido um problema qualquer.

— Fizeste plin plin?— Sim.— Mas o sensor assinala uma anomalia dos valores.

Bebeste o suficiente ontem?— Acho que sim...— Os dois litros que o médico prescreveu?

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— Talvez um pouco menos.— Se amanhã não melhorarem, temos de fazer outro

controlo à dieta. Provavelmente são corpos cetónicos a mais. Mmm... e plon plon? Aqui assinala -me: nada! É assim?

Bart, normalmente, naquela altura olhava para o chão.— Sim, infelizmente é assim.— Não consigo perceber porquê. Comeste as vinte

ameixas habituais?Por sorte, Amaranta ainda não tinha arranjado o último

modelo do Pinok, o sensor caça -mentiras.— Naturalmente! — respondia Bart, com demasiado

entusiamo. Mas dado que as detestava, tinha -as atirado

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para o primeiro caixote do lixo que encontrara ao ir para a escola.

— Então teremos que tomar providências mais sérias, a purg...

Por sorte, antes que aquele programa ameaçador ga -nhasse consistência, normalmente começava a piscar uma luz vermelha em cima à direita. O tempo da conversa da manhã estava a terminar.

— Beijinhobeijinho — dizia então Amaranta.— Beijinhobeijinho — respondia Bart antes de se

levantar da cadeira e beijar o ecrã.

Se não houvesse eventos extraordinários, Amaranta normalmente aparecia três vezes por dia no ecrã. De manhã, quando Bart voltava da escola e à noite. Várias câmaras de vídeo, equipadas com sensores com raios infra vermelhos seguiam todos os movimentos nas várias divisões da casa, na varanda, ao longo das escadas, até em cima do portão do edifício. Outros dispositivos tinham sido colocados na mochila, enquanto o seu watchphone, no pulso, estava sem-pre ligado para as comunicações urgentes.

Dado que o Pinok — o sensor caça -mentiras que era acionado à mínima alteração de calor nas bochechas e às deslocações milimétricas do nariz para diante — ainda não tinha entrado no seu apartamento, para Bart era por enquanto possível não dizer toda a verdade nas suas con-versas à distância. Assim, mentia quase sempre sobre as ameixas e outras mixórdias que a Amaranta lhe dava, na esperança de o seu nível de plon plon correspondesse ao que estava indicado nas tabelas para as crianças da sua idade e do seu peso.

Deveria fazer pelo menos quatrocentos gramas de plon plon por dia, mas as vezes que conseguia fazer duzentos

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gramas eram já um milagre. Uma vez até tinha tentado alterar o sensor de medição do plon plon, escondido na sanita, entrando na casa de banho às escuras para tapar a câmara de vídeo, mas tinha sido uma tarefa impossível.

Assim, não tendo conseguido sabotar a técnica, um dia Bart recorreu à criatividade artesanal. Enfiou nos bolsos do pijama três ou quatro bolinhas de plasticina castanha e, duas vezes por semana, fazia -as deslizar com um gesto hábil sobre a sanita, enquanto estava lá sentado.

Plong plong!Pluff pluff!

Normalmente, Bart recorria a este estratagema quando se previa no horizonte a horrível solução da purga. Desconhecendo as consequências daí decorrentes, tinha -a tomado só uma vez, e aquela vez tinha sido sufi-ciente. O sabor nem sequer era mau — podia ser sumo de laranja ou algo do género —, mas assim que aquela bebida aparentemente inofensiva chegou à sua barriga desencadeou o fim do mundo, como se dois exércitos tivessem começado a combater a ferro e fogo, invadindo todas as pregas do intestino e fazendo -o dobrar -se em dois por causa da dor.

Naquela vez, só teve tempo para se levantar e chegar à casa de banho, antes que acontecesse uma verdadeira catástrofe. Ficou a noite inteira na casa de banho, na sanita. A força do plon plon era de tal ordem que, por momentos, mais do que um ser humano, sentiu -se um foguetão pres-tes a ser disparado da rampa de lançamento.

Superspronzspronzspruuuuzz

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Ao nascer do Sol, exausto, voltou para a cama e jurou que aquela seria a primeira e a última vez na sua vida que tomava aquela solução.

Procurou no tablet a palavra certa para definir aquela circunstância e encontrou -a rapidamente. «Anátema»! Uma coisa para rejeitar para sempre. Sim, para o resto dos seus dias, a purga seria um anátema.

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2. Aonde foi parar o Kapok?

Resumindo, a vida de Bart era mesmo invejável.Não lhe faltava nada e não havia nenhum tipo de

imprevisto nos seus dias. Provavelmente, muitas pessoas gostariam de estar no seu lugar. Apesar disso, Bart sentia--se cada vez mais sozinho e infeliz.

O único amigo que tinha tido até então era o Kapok. O Kapok era o seu ursinho, o seu fiel companheiro de todas as noites.

De luz apagada, construíam sempre uma cabana com mantas e ficavam ali a falar até o sono lhes fechar os olhos.

O Kapok vinha de muito longe e contava -lhe muitas coisas.

Desde que Bart abrira os olhos, lembrava -se de o ter sempre a seu lado.

Esteticamente, não se podia exatamente definir um ursinho bonito. Primeiro, porque as quatro patas não eram articuladas, portanto não conseguia caminhar ou pôr -se de pé. Só conseguia ficar sentado de pernas separadas, com os braços sempre abertos, como se estivesse à espera de alguém para abraçar. Depois, os olhos não eram de vidro,

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mas sim de plástico, o que tornava o seu olhar, no mínimo, opaco. Já para não falar da cor do pelo, que não era cas-tanho, bege, ferrugem, ou preto — isto é, as cores de um urso que se respeite —, mas ridiculamente azul. Como se isso não bastasse, tinha um lacinho de pano com flores ao pescoço e um incurável sorriso estampado no focinho.

Bart tinha -se apercebido havia já algum tempo de que a mãe o detestava, mas ele adorava o Kapok com um amor intenso, de tal maneira que, ao longo de anos, o momento mais feliz da sua vida era quando ia para a cama para poder estar com ele.

Aos três anos de idade — assim que foi obrigado a aprender a ler — também descobriu o seu nome. Kapok 100% estava escrito na etiqueta que o acompanhava.

Ele chamava -o Kapok, mas a mãe chamava -o apenas «coiso». Uma vez ouviu -a falar com uma amiga ao telefone.

«Não percebo este seu apego. Achas que errámos nal-guma coisa? Além de ser mesmo horrível, fá -lo perder tempo. Achas que devemos ir ao médico? Já tem dez anos, é constrangedor vê -lo agarrado àquele coiso. Uma criança com o seu quociente de inteligência! Vê lá tu que até queria andar com ele sempre por casa. Pelo menos nisso consegui impedi -lo. “O coiso fica na cama”, intimei -o. “E não se discute.” Felizmente que o Bart é muito obe-diente. Mas, sim. O que me estás a sugerir parece -me a melhor solução. Sim, sim, depois conto -te.»

Uns dias depois, aconteceu uma catástrofe.À noite, quando se enfiou nos cobertores, em vez do

Kapok, Bart encontrou outro urso. Era maior, com um magnífico pelo castanho -escuro e dois olhos de vidro que brilhavam como estrelas. Só de o tocar começou a falar em inglês.

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«Good evening, dear child, I am your new bear and I will tell you a lot of stories. Press start, please, and choose your favorite program.»

É difícil explicar quais foram os sentimentos que, naquele instante, Bart sentiu, porque eram os primeiros e os mais fortes da sua vida. Porém, não havia nada de posi-tivo neles. A primeira sensação foi a de estar a precipitar--se para um poço negro sem fundo.

Mal conseguia respirar.Uma faca tinha -se espetado no seu coração e tentava

arrancá -lo do seu lugar natural.Até agora, Bart nunca se tinha apercebido de que tinha

um coração e, sobretudo naquele preciso momento, de que se podia sentir tanta dor.

Durante toda a noite andou às voltas na cama, sem conseguir pregar olho.

Assim que os primeiros raios de sol entraram pelos estores, a voz do novo urso começou a invadir o quarto.

«Good morning, my child! Wake up, today is a beautiful day, the sun is shining and...»

Bart fez a única coisa que tinha vontade de fazer.Agarrou -o por uma pata e atirou -o com violência

con tra a parede.Enfiou as pantufas e foi a correr para a cozinha.Talvez não estivesse tudo perdido!

Abriu a tampa do caixote do lixo, o seu coração pal-pitava velozmente. Se o Kapok ainda lá estivesse... Infe-lizmente, o recipiente ainda estava intacto. Além de dois saquinhos de tisanas depurativas e das cascas de laranja, não havia mais nada no fundo.

Então saiu a correr do apartamento, voou pelas esca-das abaixo e chegou à rua, mesmo a tempo de ver o

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camião do lixo vazar para o seu interior o conteúdo do grande caixote.

Bart ficou ali imóvel, petrificado, com a boca escan-carada pelo esforço. Quando lhe pareceu ver algo azul brilhar, entre o monte do lixo, o seu coração ficou imóvel, pesado e frio como uma pedra.

Dado que não existem sensores capazes de decifrar os movimentos do coração, nem Amaranta, nem muito menos Pierfrancesco se aperceberam imediatamente de que algo tinha mudado no interior do seu filho.

Só nos meses seguintes os sensores que controlavam o seu sono assinalaram alterações frequentes dos parâmetros noturnos.

Preocupada, Amaranta interrogou -o sobre os motivos desta inexplicável perturbação.

— Quero um cão! — respondeu Bart pelo vídeo.Um seu colega de escola tinha recebido um cãozinho

e há semanas que o inundava com maravilhosos vídeos sobre a vida deles juntos.

— Um cão? Nem pensar nisso!— Então um gato! Até pode sair pelo telhado.— Negativo! O Pierfrancesco é alérgico ao pelo.Bart percorreu todo o reino animal, até chegar à tarta-

ruga e ao peixe - vermelho.Nada a fazer.Amaranta estava inabalável.— Não é que não goste de animais — disse antes de

desligar. — Adoro ver documentários sobre a vida deles. Mas animais são animais, há demasiada diferença entre nós e eles. Além disso, levam para casa sujidade e são uma grande perda de tempo.

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* * *

Assim, no fim de semana seguinte, Amaranta levou -o a um centro comercial e comprou -lhe o último modelo de Tamagotchi, um pintainho virtual que, para sobrevi-ver, precisava de ser alimentado todos os dias, como se fosse real.

— Vês? — disse ela ao sair da loja. — A tecnologia tam bém nos permite isto. Aprender a cuidar de um ani-mal, sem os inconvenientes que um animal verdadeiro comporta.

Com é natural, Bart não queria saber do Tamagotchi para nada.

Ele queria um cãozinho quente e peludo, de orelhas compridas, uma barriga vibrante e uma língua rosada sempre pronta a lamber -lhe a cara. Queria um cãozinho que saltasse para a sua cama e dormisse a seu lado, como o Kapok fazia dantes.

Então Amaranta, com paciência, sentara-se junto dele no sofá e tinha começado a brincar, para tentar convencê--lo a participar.

— Oh, olha como é fofinho! — dizia, fingindo diver-tir-se.

Porém depois, vendo a indiferença do Bart, tinha pas-sado para as recriminações:

— Se continuares assim tão indiferente, ele vai morrer. E o dinheirão que custou...

Nessa mesma noite, como no dia seguinte partiria de novo, a mãe comunicou -lhe que, a partir da próxima semana, começaria a frequentar também um curso de chinês.

Efetivamente, ao consultarem o programa informati-zado, Amaranta e Pierfrancesco tinham reparado que, nas

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tardes de quarta -feira, o seu filho dispunha de duas horas livres e, é claro, não podiam certamente deixar que ele perdesse aquele tempo precioso.

Ao deitar-se na sua cama vazia, Bart pensou que até um pintainho, no fundo, não seria mau. Na verdade, nunca vira um ao vivo, mas no ecrã pareciam quentes, fofinhos e cheios de alegria.

Sim, até um minúsculo pintainho poderia ser um antí-doto ao gelo que sentia aumentar dentro de si.

Antes de adormecer, pensou com angústia no curso de chinês.

Quantos cursos é que já tinha feito na sua vida?Aos cinco anos já falava quatro línguas.Tocava harpa céltica, flauta de Bornéu, violino segundo

o método Suzuki. Tinha tido aulas de pintura com as mãos, de aguarelas,

de papel -machê, de cerâmica Raku.Tinha frequentado um curso para equilibristas e outro

para desenvolver a arte de ser palhaço.Durante anos, apanhou frio na piscina, bebendo água

e cloro, para adquirir um estilo perfeito, e logo agora que sobre ele pairava a ameaça de um curso de mergulho — a obsessão de Pierfrancesco, que na juventude tinha sido um pequeno campeão, antes de passar ao paraquedismo —, eis que lhe caía em cima também um curso de chinês!

Amaranta e Piefrancesco sempre quiseram que Bart fosse o primeiro em qualquer coisa, enquanto Bart se estava nas tintas. Aliás, às vezes até se tornava bastante difícil pensar nisso.

Até agora sempre se tinha esforçado por não os desiludir.— Estás contente? — perguntavam -lhe à saída das várias

escolas.

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— Sim — respondera sempre, ainda que com dema-siado entusiasmo.

Até já tinha chegado a desejar que Amaranta comprasse o sensor Pinok, de maneira a conseguir finalmente ler -lhe os seus pensamentos.

Mas seria melhor ou pior?Ela ainda iria gostar dele?Mas, afinal, o que significava gostar?De uma coisa tinha a certeza. Ele gostava muito do

Kapok. Mas o Kapok já não existia, tinha ido parar a uma lixeira, triturado juntamente com outro lixo e, no horizonte, não se perfilava nem a sombra de um minús-culo pintainho.

Com aquele triste pensamento, Bart adormeceu e sonhou poucas coisas mas confusas, todas de cor amarelo--azulada.

Acima da sua cabeça, havia o teto do quarto.Acima do teto, o telhado.E, acima do telhado, o céu com dezenas de aviões que

piscavam na noite.Acima dos aviões, havia os satélites, gélidos e obtusa-

mente regulares a percorrer a sua órbita à volta da Terra.Acima dos satélites — muito acima —, por sorte, ainda

havia as estrelas.E sabem como funcionam as estrelas?Como um enorme e antiquíssimo relógio mecânico.Clac clac clac, uma vai para aqui, clic clic clic, outra vai para

ali, e quando um clic e um clac se encontram, um raio invi-sível desce à Terra e algo extraordinário, algures, acontece mais cedo ou mais tarde.

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