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PAPERS PAPERS TEXTOS ESCOLAS SUMÁRIO n o 1 APRESENTAÇÃO - Victoria Horne Reinoso P 01 EDITO - Victoria Horne Reinoso P 04 1. 1 Sophie Gayard - ECF P 08 1. 2 Gabriel Racki - EOL P 11 1. 3 Vicente Palomera - ELP P 14 1. 4 François Ansermet - NLS P 17 1. 5 Domenico Cosenza - SLP P 20 1. 6 Alba Alfaro - NEL P 23 1. 7 Fernanda Otoni-Brisset - EBP P 26 As psicoses ordinárias  : alcance e limites Rumo à Barcelona 2018 : as psicoses ordinárias e as outras, sob transferência Comitê de ação da escola una/AMP 2016-2018 Paloma Blanco - Florencia Fernandez Coria Shanahan - Victoria Horne Reinoso (coordenadora) - Anna Lucia Lutterbach Holck - Débora Rabinovich - Massimo Termi- ni - José Fernando Velásquez Edição - Concepção e realização gráca Chantal Bonneau - Emmanuelle Chaminand-Edelstein - Hélène Skawinski Equipe de tradução para este número Rachel Amin - Vera Avellar Ribeiro - Bartyra Ribeiro de Castro

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PERS

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SUMÁRIO

no 1

APRESENTAÇÃO - Victoria Horne Reinoso P 01

EDITO - Victoria Horne Reinoso P 04

1. 1 Sophie Gayard - ECF P 08

1. 2 Gabriel Racki - EOL P 11

1. 3 Vicente Palomera - ELP P 14

1. 4 François Ansermet - NLS P 17

1. 5 Domenico Cosenza - SLP P 20

1. 6 Alba Alfaro - NEL P 23

1. 7 Fernanda Otoni-Brisset - EBP P 26

As psicoses ordinárias : alcance e limites

Rumo à Barcelona 2018 : as psicoses ordinárias e as outras, sob transferência

Comitê de ação da escola una/AMP 2016-2018Paloma Blanco - Florencia Fernandez Coria Shanahan - Victoria Horne Reinoso (coordenadora) - Anna Lucia Lutterbach Holck - Débora Rabinovich - Massimo Termi-ni - José Fernando Velásquez

Edição - Concepção e realização gráficaChantal Bonneau - Emmanuelle Chaminand-Edelstein - Hélène Skawinski

Equipe de tradução para este número Rachel Amin - Vera Avellar Ribeiro - Bartyra Ribeiro de Castro

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1.PAPERS

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APRESENTAÇÃO

PAPERS 7.7.7.Victoria Horne Reinoso

Os PAPERS se renovam. O novo Comitê da Escola Una lhes propõe uma nova série de PAPERS : os PAPERS 7.7.7.

O projeto dos PAPERS 7.7.7. está concebido como um programa de estudo para acompan-har a preparação do Congresso de Barcelona de 2018. Não exaustivo e necessariamente incompleto, este projeto visa não a percorrer tudo o que haveria para se dizer sobre esse tema, mas, antes, a provocar a reflexão, suscitar o desejo de inventar um saber, a fim de sustentar a « conversação permanente » que nos anima em torno da experiência da psi-canálise, mantendo a tensão necessária entre o Um e o múltiplo das 7 Escolas da AMP que fazem viver a Escola Una. Através dos sete eixos temáticos e ao longo dos diferentes textos que os constituirão, os PAPERS 7.7.7. interrogarão e desenvolverão o tema do Congresso. Como e de que maneira abordamos as psicoses – as psicoses ordinárias e as outras – no século XXI ?

As psicoses são um conjunto clínico surgido da nosologia kraepeliniana do século XIX. Foi a partir dessa nosologia que Freud abordou a psicose, mas foi partindo da neurose, da qual o inconsciente era o pivô, do Édipo, o núcleo duro, do recalque, o mecanismo funda-mental, que ele pensou as categorias de base da clínica psicanalítica. Lacan, retomando o legado freudiano, abriu suas perspectivas conservando, a um só tempo, as mesmas estruturas e prolongou sua reflexão a partir dos pontos de tropeço de Freud. A foraclusão do Nome-do-Pai se torna o que « confere à psicose sua condição essencial »1. Na outra ponta de seu ensino, Lacan se apoiará na psicose, notadamente em Joyce, a fim de pro-duzir uma revirada que introduzirá uma ruptura conceitual. O declínio da primazia da ordem simbólica e o fato de levar em conta a inexistência do Outro conduzem a uma pluralização dos Nomes-do-pai e abrem a via à sua concepção borromenana, transfor-

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APRE

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AÇÃO

1.

mando e orientando a clínica a partir do gozo e não mais da presença, ou não, de um significante primordial. A foraclusão se generaliza fazendo girar toda a clínica em torno de um furo fundamental. A consequência é que « Todo mundo é louco »2, todo mundo tem de se haver com um furo, com um ponto de real, de trou-matisme3 consecutivo e fora do sentido. O descontínuo das grandes estruturas clássicas, sem se apagar completamente, dá lugar a um contínuo no qual as diferentes amarrações borromeanas e suas possíveis desamarrações dão conta de soluções tão diversas quanto singulares. A concepção clássica e sintomática das psicoses situa a foraclusão do Nome-do-Pai em posição de causa. A perspectiva borromenana faz do Nome-do-Pai um sintoma, uma fun-ção que pode ser preenchida por um outro termo. Assim, a relação entre as diferentes psicoses, mas também entre as psicoses e o conjunto das neuroses, vacila, muda de pers-pectiva. Foi essa perspectiva que permitiu a invenção da psicose ordinária, que se fundamenta na possibilidade de um minimum de atrelamento dos três registros, RSI, em diversos graus e num espectro de nuanças muito amplo, mesmo sem o Édipo, mesmo sem o auxílio dos discursos estabelecidos. Como o diz Jacques-Alain Miller, trata-se de « uma criação que concebo como extraída do que chamamos “o último ensino de Lacan” »4. Em 2008, ele afirmava igualmente que a psicose ordinária não tinha uma definição rígida, não se tra-tava da invenção de um « conceito », mas da invenção de uma palavra com um « esboço de definição que pudesse atrair diferentes sentidos, diferentes ecos de sentido em torno desse significante »5 e que só poderia haver definição, talvez, num a posteriori.

Uma de nossas expectativas durante esse Congresso será a de responder à seguinte ques-tão  : chegamos a esse momento a posteriori que nos permita melhor definir o que é a psicose ordinária ? Poderemos, ao final de nossas elaborações, tornar mais claro o que chamamos de psicose ordinária, ou esse significante é votado a permanecer sem defi-nição rígida, como « uma categoria mais epistêmica do que objetiva »6 ? Será também necessário, para nós, nomeá-la como « psicose ordinária », ou então poderemos dizer que « pode-se muito bem prescindir dela, com a condição de dela nos servirmos » ?

Depois da série dos três últimos Congressos, que se debruçaram sobre as incidências ligadas às mutações acarretadas por este novo século para os falasseres, considerados nas três dimensões, simbólico, real, imaginário, reabordar a clínica pelo viés da psicose e, mais particularmente, da psicose ordinária, não é anódino. Isso nos indica uma orien-tação. Assim fazendo, essa escolha nos faz entrar em um terceiro movimento no estudo das psicoses ordinárias, uma nova etapa deste « programa de trabalho que chamamos de psicose ordinária »7. O primeiro tempo viu a invenção do termo por ocasião do último dos três encontros das Seções Clínicas Francófonas (Angers 1996, Arcachon 1997, Antibes1998). Este nos intro-duzia em uma perspectiva outra que não o binário rígido neurose-psicose, e vinha colocar um ponto de basta em uma reflexão conduzida, durante anos, concernente a todo um campo da clínica que demandava ser nomeado  : os inclassificáveis, casos em que não se tratava verdadeiramente de neuroses, sem por isso se apresentarem como psicoses

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APRE

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AÇÃO

1.

bem definidas. A partir daí, o significante « psicose ordinária » se impôs. « A solidez de um conceito clínico se mede pela eficácia de sua utilização », nos dizia Miquel Bassols no Congresso da NLS, em Dublin, em julho de 20168. Todavia, apesar de um apreço inegável por esse termo, a dificuldade própria a seu uso e sua falta de definição tornaram necessário um « Retorno às psicoses ordinárias »9, cujo seminário anglófono realizado em Paris, em 2008, foi o ponto forte. 1998, 2008…, dez anos mais tarde, estaremos em Barcelona, em 2018, para nosso próxi-mo Congresso. As questões concernentes à psicose ordinária passaram a ter, no contexto deste novo século, cada vez mais acuidade e pertinência. Portanto, teremos agora a ocasião de examinar a maneira como fizemos uso dessa fer-ramenta clínica, a fim de extrair seus ensinamentos. Atualmente, estamos prontos para afinar o alcance desse sintagma, diferenciar as nuanças clínicas do que chamamos de psi-cose ordinária e precisar as articulações possíveis entre as psicoses ordinárias e as outras. Seria importante também esclarecer a maneira como a psicanálise as acolhe e as trata e, se sim, como o fato de se levar em conta a psicose ordinária modificou a abordagem pela psicanálise das outras psicoses. Poderíamos igualmente refletir sobre o impacto que os ensinamentos das psicoses ordinárias poderiam ter sobre a própria psicanálise, notada-mente sobre a questão da transferência, mas também sobre a da interpretação e do saber inconsciente. Por essa razão, isso deveria nos interrogar a respeito das eventuais incidên-cias dessas mudanças de perspectiva sobre o conjunto das neuroses. Poder-se-ia pensar que às psicoses ordinárias, próprias à nossa época, se oporia o que se poderia chamar de neuroses extraordinárias ? O que parece importante é que as psicoses ordinárias questio-nem toda nossa clínica e nossa maneira de abordá-la, pois, como o enfatiza M. Bassols « As psicoses ordinárias fazem explodir o sistema de diagnóstico estrutural »10.

Os PAPERS 7.7.7. lhes propõem, então, um caminho, um percurso que tratará, por meio de muitos pontos temáticos, o tema que o próximo Congresso de Barcelona em 2018 nos convida a explorar.

Tradução par Vera Avellar Ribeiro

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1 Lacan J., De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose, em Escritos, Rio de Janeiro, JZE, 1998, p. 582.

2 Lacan J., Ornicar ?, nº 17-18, 1979, p. 278.3 N.T.  : troumatisme, neologismo cunhado por Lacan, formado pela junção das palavras trou (buraco,

furo) e traumatisme (traumatismo).4 Miller J.-A., Efeito do retorno à psicose ordinária, Opção Lacaniana online nova série, Ano 1, nº 3, novembro

de 2010.5 Ibid.6 Ibid.7 Laurent É., « L’interprétation ordinaire », Quarto nº 94-95, Janeiro de 2009, p. 144.8 Bassols M., « Psychosis, Ordered Under Transference », Conférence NLS Congress, Dublin, july 2016.9 Seminário anglófono em Paris, julho de 2008, publicado em Quarto nº 94-95, Retour sur la psychose

ordinaire, janeiro de 2009. 10 M. Bassols, op. cit.

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ÉDITO

As psicoses ordinárias : alcance e limites

Victoria Horne Reinoso

Este primeiro número de PAPERS 7.7.7. tem seu ponto de partida no título do próximo Congresso e, mais particularmente, em sua primeira parte  : As psicoses ordinárias E as outras. Como ler esse título ? A distinção que ele parece introduzir no registro das psicoses nos conduz a interrogar o alcance e os limites das psicoses ordinárias. Que relação lógica elas mantêm com as outras psicoses, mas também como situá-las em sua proximidade ou, por vezes, em sua semelhança com as neuroses ? Em que é pertinente nos interrogar-mos, hoje, sobre as psicoses, ordinárias ou não ?

De maneira pragmática, podemos conceber a psicose ordinária como uma maneira de localizar a psicose, quando os sinais que a atestam, por uma razão ou por outra, não são evidentes. Assim, detectar uma psicose ordinária equivaleria a dizer que se está confron-tado com uma psicose, mesmo na ausência de sintomas manifestos. No entanto, isso não nos exime de precisar o diagnóstico estrutural clássico. Mais além da localização da psi-cose como « ordinária », caberia então situar o que poderia se perfilar, em surdina, como paranoia, esquizofrenia, mania ou melancolia... Seria uma maneira de dizer  : as psicoses ordinárias são também as outras psicoses. Mas, então, a partir do momento em que se pode perceber que se trata de uma psicose, qual sentido haveria em continuar a chamá-la de « ordinária » ?

O sintagma « psicose ordinária » apresenta uma vantagem e um inconveniente. Sua van-tagem é a de realçar o significante « psicose », pois isso permite romper com as posições « borderline » e nos indica decididamente que podemos situar a psicose mais além da

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EDITO

1.

evidência de seus fenômenos habituais. Seu inconveniente, porém, reside do mesmo modo no fato de comportar a palavra «  psicose  ». Além das conotações negativas do termo no discurso comum e suas consequências de estigmatização no plano social, ele se reduz, hoje, essencialmente, na paisagem « científica » da psiquiatria atual, a designar as esquizofrenias. Mas, sobretudo, se quisermos nos situar em uma perspectiva borromeana, concluiremos, por certo, que não nos encontramos diante de uma neurose, quando os três registros, Real, Simbólico e Imaginário não estão enodados pela metáfora paterna. Contudo, por essa razão, estaríamos então forçosamente confrontados com uma psicose ? As psicoses ordinárias poderiam, talvez, nos ajudar a subverter os « diagnósticos » rígidos, a fim de permanecermos o mais próximo possível da experiência do sujeito, orientan-do-nos a partir do gozo particular de um falasser. Esta é uma clínica das soluções singulares, inventivas, pessoais, uma clínica dos « divinos detalhes »1. Ela nos impele a cingir, no caso por caso, o que está em jogo para cada um, a fim de tentar apreender o que o faz manter-se na vida, o desestabiliza ou pode fazê-lo vacilar em um dado momento. Isso não pode acontecer sem o « sob transferência » que acompanha o título deste Congresso.

Pedimos a sete colegas, cada um deles pertencente a uma das sete Escolas da AMP, para reagirem, por meio de um texto, a este argumento intitulado  : As psicoses ordinárias  : alcance e limites. Eles responderam de modos muito diversos, confirmando que a singula-ridade de cada um constitui a riqueza múltipla e fundamental de nossa Escola Una.

O texto de Sophie Gayard dialoga diretamente com o argumento. Ela situa seu ques-tionamento na própria junção do paradoxo apresentado pela psicose ordinária  : como continuar a se servir da clínica clássica, para qual são a presença ou a ausência do Nome-do-Pai que diferenciam os campos da neurose e da psicose e, a um só tempo, nada ceder da necessidade de ancorar nossa reflexão em uma clínica do gozo centrada no « como isso se mantém ? » A psicose ordinária seria uma ferramenta, um « Jano de duas faces » nos permitindo fazer frente a esse paradoxo.

Diante da questão maior de como pensar a neurose a partir da psicose, Gabriel Racki nos convida a considerar os ensinamentos da psicose partindo do fato de que cada época produz os psicóticos que lhe correspondem, em função do estatuto do Outro do momen-to. Se o psicótico rejeita a impostura do semblante de autoridade paterna, nos diz ele, na época do declínio dessa autoridade e do Outro que não existe essa rejeição passa despercebida, pois tal é um dos sentidos da palavra ordinária. Mas, além disso, considerar a neurose a partir da psicose implica entender que esta nos ensina que um dos valores do sintoma é o de ser o suporte de uma resistência intrínseca à regulação do gozo, mas também de uma classificação « para todos ».

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EDITO

1.

Apoiando-se nos exemplos de Joyce e de Aby Warburg, Vicente Palomera e François Ansermet nos demonstram que a psicose pode nos ensinar sobre a maneira como um sujeito pode construir soluções, a partir das falhas e faltas.

Vicente Palomera parte da constatação de que considerar os fenômenos discretos como sinais revela os significantes os mais singulares do sujeito. Nesse sentido, pelo fato de serem discretos, não deixam de ser « interessantes ». É o que Lacan demonstra, quan-do colhe, em Joyce, este fenômeno discreto, passado despercebido até então, de deixar cair o corpo para elevá-lo ao nível de sinal de uma falta de corpo, a partir da qual Joyce construirá o ego que vem reparar o nó. Se, para nós, a psicose ordinária é um instrumento para melhor ler as bricolagens dos sujeitos de nossa época, em Joyce, Lacan buscava localizar esses sinais discretos, a fim de « interpretar sua posição de gozo ».

François Ansermet se interroga sobre a invenção como via sintomática possível na psicose. Com o caso de Aby Warburg, ele nos apresenta as invenções desse brilhante historiador da arte como nascendo sempre de uma falha, de um lapso, de uma « explo-ração [...] dos intervalos de onde surge o novo sobre o fundo do retorno do mesmo ». Suas invenções são não apenas uma via resolutiva para sua psicose, mas também « seu funcionamento psicótico foi um vetor de sua criatividade ».

A originalidade do texto de Domenico Cosenza passa pela extração de um aporte feito por Jacques-Alain Miller, por ocasião da « Conversação clínica sobre as situações subje-tivas de abandono social  » (Conversation clinique sur les situations subjectives de déprise sociale2  ), para pensar a clínica das psicoses ordinárias. Trata-se de uma reinvenção do estatuto do objeto nada como causa de « não-desejo » e de um certo estado do sujeito que pode ser demarcado pelo matema S0, indicando « a atração do não-ser », « uma rela-ção com o nada ».

Alba Alfaro examina a questão de saber se, depois de vinte anos de pesquisas, a psi-cose ordinária pode se « consolidar », hoje, como uma categoria clínica. Desdobrando seu texto em três axiomas, ela mostra que a psicose ordinária surgiu como um programa de investigação para tentar dar conta das consequências, na clínica, das mutações do discurso contemporâneo. Posta à prova, em seguida, como « categoria lacaniana » per-mitindo afinar conceitos e categorias a fim de acolher as sutilezas de alguns fenômenos, a psicose ordinária pode ser considerada, atualmente, como uma forma contemporânea da psicose, de acordo com o discurso social atual.

Para concluir, Fernanda Otoni-Brisset formula a questão dos diagnósticos diferenciais e se interroga, então, sobre o sentido a ser dado ao termo « as outras » no título do Congres-so, uma vez que se trata de extrair as consequências da « igualdade clínica fundamental entre os falasseres »3. Ela enfatiza o deslocamento da questão clínica « qual estrutura ? » para « qual funcionamento ? ». Isso nos leva rumo a uma clínica unitária, a das invenções para se defender do real.

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EDITO

1.

Todos esses textos são igualmente reflexões e giros para pensar a clínica atual, a do falas-ser contemporâneo, a partir de uma posição de gozo singular, ou seja, a maneira como cada sujeito, seja qual for sua « estrutura » no sentido clássico, constrói um modo de ser no mundo fundando-se sobre sua própria falha.

Tradução por Vera Avellar Ribeiro

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1 Miller J.-A., « A orientação lacaniana. Os divinos detalhes » (1988-1989), ensino pronunciado no âmbito do Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris VIII, inédito.

2 Miller J.-A., Situations subjectives de déprise sociale, Navarin, Paris, 2009, p. 169.3 Miller J.-A., « O Inconsciente e o Corpo Falante », Scilicet – O corpo falante. Sobre o inconsciente no século

XXI, São Paulo, EBP, 2016, p. 31.

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1.1

A psicose ordinária, um Jano de duas faces 

Sophie Gayard – ecfA nova etapa do programa de estudo sobre a psicose ordinária, à qual nos convida o próximo Congresso da AMP, será « a ocasião de um retorno proveitoso da cinzenta teoria para o verde perpétuo da experiência1 », tal como Freud o almejava em um curto texto de 1927, no qual ele tentava precisar a diferença entre neurose e psicose ? De todo modo, apostemos que não será um deserto árido, uma vez que o alcance dessa « criação » extraí-da por Jacques-Alain Miller do último ensino de Lacan 2 nos conduz a reinterrogar toda a clínica. Nisso, o termo psicose ordinária sustenta particularmente bem suas promessas de « categoria epistêmica »3.

O exame dos casos inclassificáveis ou atípicos, do ponto de vista de nossa bipartição clássica neurose/psicose – proveniente da leitura freudiana do caso Schreber e de sua retomada por Lacan fundando, em « Questão preliminar a todo tratamento possível da psicose », nossa doutrina da psicose -, conduziu a convidar o clínico a aguçar sua aten-ção na busca de sinais discretos, indícios ínfimos, permitindo identificar psicoses que assim não pareciam, ordinárias e não extraordinárias, pelo menos em suas manifestações sintomáticas. Nesse sentido, a psicose ordinária aparece principalmente como uma cate-goria eminentemente transitória, não uma transição entre a neurose e a psicose, mas tempo de suspensão de um julgamento para o clínico. Uma vez levantada a incerteza diagnóstica, seriam, então, os recursos da teoria clássica da psicose - ou da neurose – que se tornariam novamente operantes para a leitura do caso e para as orientações a serem deles deduzidas quanto a seu tratamento analítico. Mas, se fizermos apenas um tal uso, certamente útil na prática, porém, mesmo assim, bastante restrito, é de fato a solidez da repartitória estrutural que retoma seus direitos e se vê quase paradoxalmente reforçada, pelo fato mesmo de seu questionamento temporário, em razão da consideração dessa nova categoria que pôde, num primeiro tempo, parecer soar o fim desse binarismo.

Formula-se a questão : trata-se de sair dele ? Caso sim, por que, então, uma vez que ele deu tantas provas de seu valor ? Caso não, por que, do mesmo modo, uma vez que, de fato, esse enquadramento nos deixa desconfortáveis tendo os clínicos, desde sempre,

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1.1

tentado também modulá-lo ? Disso dão testemunho as neuroses de caráter, personali-dade as if, narcísica, borderline, psicose branca, etc., tentativas que não deixaram de ser pertinentes para dizer alguma coisa da clínica, mas encontrando seu impasse por desco-nhecerem que « o estado do sujeito, S, (neurose ou psicose) depende do que se desenrola no Outro, A. O que nele se desenrola articula-se como um discurso (o inconsciente é o discurso do Outro), [...].4 »

A concepção da psicose a partir da foraclusão do Nome-do-Pai inscreve esta na tese geral do inconsciente estruturado como uma linguagem. O binário neurose/psicose repercute o binário presença /ausência de um significante na estrutura da cadeia. A causalidade aqui é, portanto, linguageira. Mas, pautar-se pelos fracassos da metáfora paterna é ainda conceber a psicose a partir da neurose e a neurose como o regime ordinário.A invenção do sintagma «  psicose ordinária » constituiu, assim, há aproximadamente vinte anos, uma inversão do ordenamento da clínica e – mudança de cardápio no ban-quete dos analistas  ! – um questionamento de nosso ordinário. Pois, manifestamente, este mudou nos tempos do declínio do Pai, do « Outro que não existe » e das incidências da ciência sobre os corpos. No caminho que vai da clínica estrutural do primeiro Lacan à clínica borromeana de seu último ensino, a psicose ordinária inscreve um marco. Ela é como um Jano de duas faces que pode se virar de um lado ou de outro, constituindo, aqui também, não uma transição, mas, antes, um ponto pivô permitindo perceber a inversão da perspectiva operada por Lacan ao colocar « o aro de barbante no lugar do uso em que [ele] colocava o significante5 ». E ele o fez conservando, a um só tempo, a pertinência do uso dos conceitos surgidos dos diferentes momentos do percurso. A psicose ordinária constitui, assim, um posto de observação no cerne da própria prática analítica, a partir do qual interrogar o Outro, o inconsciente, o sintoma, o estatuto da causa e o da crença.

Pois o que acontece quando se perfila, no final do ensino de Lacan, a substituição do inconsciente pelo falasser6 ? Nesse caminho, a psicose ordinária, na clínica, é afim com recolocar o corpo em primeiro plano, uma vez que ele não é apenas imagem, mas cor-po falante. Talvez seja por isso que nossa atenção se deporta de um « o que é que não funciona ?» para um « como isso se mantém ? », dos sinais de uma falha para os de um arranjo. O que deve se manter é, seguindo Lacan e ele mesmo seguindo Joyce, a amar-ração dos três registros, real, imaginário e simbólico. É o próprio nó que vem assegurar a possível localização de um gozo sempre em excesso, a relativa estabilização das signifi-cações e a possível inscrição do sujeito em um laço social suportável. Mas esta questão, « como isso se mantém ? », é também aquela que sempre se formula no que concerne ao corpo, este corpo que se tem, corpo afetado pela fala, corpo que goza e se goza e sempre ameaça « sair fora 7». Se a psicose ordinária, em suas manifestações, é, em geral, questão de variação de graus, de intensidade, de cores, não seria ela, então, na clínica, a categoria mais propensa a tornar perceptível que saímos da « estrada principal8 » e que só há cami-nhos transversais, restando como via, para o psicanalista, «seguir o rastro do real 9 », única maneira de contrapor a errância tomando emprestada a pista do sintoma ?

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1.1

Se a neurose pôde parecer « ordinária », no sentido da normalidade, será que a psicose ordinária teria tomado esse lugar ? Certamente não, pois não há normalidade senão ordi-nária, e, se a psicose ordinária parece consonar com o que se poderia chamar de « uma vida ordinária », o que ela eminentemente demonstra é a extraordinária singularidade das soluções e bricolagens de cada sujeito para manter o nó do simbólico, do imaginário e do real.

Tal como Jano, deus das portas e da passagem, a categoria « psicose ordinária » é, assim, um convite feito ao analista para se sentir à altura de uma clínica borromeana, que toma suas distâncias em relação ao que nossas categorias neurose/psicose ainda têm de apega-do ao discurso do mestre médico, ou seja, a um discurso fundado sobre o Um da exceção paterna, cujo poder organizador, hoje, dissolveu-se em grande parte –, o que não quer dizer renunciar ao saber que dele se depositou. Se chegarmos a isso, talvez, então, possa-mos prescindir dele.

Tradução por Vera Avellar Ribeiro

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1 Freud S., « Neurose e psicose », em Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud Vol. XIX, Rio de Janeiro, Imago, 2006.

2 Miller J.-A., « Efeito do retorno à psicose ordinária », Opção Lacaniana online nova série Ano 1, nº 3, Novembro 2010.

3 Ibid.4 Lacan J., « De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose », Escritos, Rio de Janeiro,

JZE, 1998, p. 555. 5 Miller J.-A., « A orientação lacaniana. Peças soltas », lição de 24 de novembro de 2004, inédito.6 Miller J.-A., « O inconsciente e o corpo falante », em Scilicet. O inconsciente e o corpo falante. Sobre o

inconsciente no século XXI, São Paulo, EBP, 2016, p. 26 « Essa metáfora, a substituição do inconsciente freudiano pelo falasser lacaniano fixa um lampejo. »

7 Lacan J., O Seminário, livro 23, o sinthoma, Rio de Janeiro, JZE, 2007, p. 64.8 Lacan J., O Seminário, livro 3, as psicoses, Rio de janeiro, JZE, 1988, 335 & sq.9 Lacan J., O Seminário, livro 23, op. cit., p. 64.

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Palpitações ordinárias

Gabriel Racki – eol1) As psicoses não são déficit, sempre ensinam

O diretor de uma clínica pediu a um interno para arrumar os ateliês correspondentes a cada um. O jovem psicótico, posicionado na porta de entrada com a certeza de ser o guardião da instituição, respondeu a seu atônito interlocutor em sua língua de guardião : Vamos, não atrapalhe, circule, circule, por favor  ! Com fineza, somente se interessou pela norma fálica para fazer pesar sobre esta a ironia, denotando a inconsistência da ordem.

As psicoses ensinam sobre o status do Outro. O louco de 1800 indicava sobre o Outro « Pineliano » que, por sua simples presença e prestígio procurava, sem muito êxito, dar tratamento moral às paixões transbordantes dos alienados do hospital de Bicêtre. A res-posta citada denota uma dialética subjetiva que não está regida pelo mestre. É o guardião de seu próprio mundo, sem sentir-se interpelado pelo Outro da ordem ou do prestígio. Com o passar dos tempos, o psicótico ensina sobre uma decisão insondável do ser : a de rechaçar a impostura do semblante de autoridade paterno, guardando tortuosos senti-mentos de culpa e dívida – desde Schreber, que « passeia com a baleia da impostura »1 da educação alemã, até o nosso jovem que, sem atordoar-se, faz circular seu chefe médico. No entanto, na atualidade – marcada pelo declínio do semblante paterno e pela ascensão ao zênite social do objeto – tal rechaço já não faz tanto barulho, passa despercebido.

Este é um dos sentidos do ordinário, diferentemente do extraordinário nas psicoses  : converge com a ordem discursiva ou, melhor, com a não ordem, com a inconsistência do Outro para ordenar o gozo do sujeito contemporâneo. A investigação sobre a psicose ordinária mantém o clínico atento a respeito da outra eterna lição da psicose : o sintoma como suporte, não somente da existência, como da resistência do sujeito – ainda que com sinais ínfimos – a consentir tanto com uma lei de regulação de seu gozo, como com uma classificação para todos. Por este viés, psicose ordinária estende o valor subversivo e singular do sintoma a pequenos detalhes de corpo e de sentido que antes não chamavam a atenção ou passavam por neuroses graves ou loucas, ou que não entram em análise.

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1.2

Aprender com estes sinais discretos ensina menos sobre categorias estruturais que sobre a ética analítica frente ao que resiste de modo singular ao sentido fálico ou que está livre do intercâmbio entre gozo do sentido.

2) Que operação definiu a denominação psicose ordinária ?

Façamos uma síntese dos efeitos que esta operação permite :

Pontuar uma série de fenômenos discretos que graduam a clínica da psicose  : neode-sencadeamentos, neotransfereência, neoconversão, neoentradas, enlaces, desenlaces, fenômenos de corpo Φ0, S

o/objeto nada, desordem na articulação íntima do sentimento de vida e suas externalidades social, corporal e subjetiva2.

Interpretar a época com certo dado foraclusivo de loucura de ferro e desamor no social, que Lacan chama de « declínio do suporte fundamental do Édipo : o amor ao dizer não ao pai » 3, que converge com a depuração do conceito de pai como anel que une (já ante-cipado no Seminário 3, capítulo 25) : o pai não tomado como significante fundamental e tradicional do Outro, senão como um aparato suplementar que mantém unida a estrutura nodal do falante : make-believe, « fazer crer » 4. Nesta lógica, o Nome-do-Pai é um a mais (o da neurose), entre outros aparatos suplementares de « fazer crer », possíveis invenções para as quais o psicótico possui talento particular.

Polarizar entre a clínica binária clássica (deficitária, com clara distinção intensa entre Nome-do-Pai inscrito ou não, e que parte de um Outro prévio e de uma prática da arti-culação ou substituição delirante) e uma clínica nodal, continuísta pelo fato de partir da não relação sexual para todo falante (o não há como foraclusão generalizada associada à fórmula «  todo mundo delira », e correlativa de uma prática não centrada na função metafórica, mas na função de enodamento)

Deslocar a barreira neurose/psicose : lapsos-enodamentos paternos com dinâmica bor-romeana se opõem a lapsos-enodamentos paternos com dinâmica não borromeana. A função de enodamento passa a ser encarnada pelas soluções sintomáticas e, para todo ser falante, a questão é como se enodam, se desenodam, interpenetram, suturam, se juntam e se trançam os diversos registros. Esta riqueza clínica amplia o espectro entre psicoses extraordinárias e neurose, e permite captar com mais detalhe, como cada um se arranja para juntar corpo, vida, palavra e sentido para funcionar em sua existência.

Investigar a articulação que cada ser falante confere ao gozo que, para a psicanálise, é a vida. É o ponto desde onde cada sujeito palpita sua vida-gozo. É o « coração do falante » e converge clinicamente com a articulação mais íntima do sentimento de vida. Mediante o paradigma do « mundo estava oculto por um véu » do Homem dos Lobos5, podemos elucidar, em casos « ordinários », como essa articulação somente pode ser captada em externalidades sutis.

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Nomear um giro pragmático6 na clínica que já não se baseia somente em elucidar algo-ritmicamente a equação lógica como verdade, senão que é impulsionada até o encontro do acontecimento de corpo que traumatiza o parlêtre. Sinthoma nomeia uma clínica do uso singular que cada parlêtre faz deste acontecimento e da incitação à invenção de cada um a respeito deste trauma.

Sob transferência... amores - o amor às virtudes de pragmatismo linguístico do para-digma Joyce, que não requereu um analista para não enlouquecer, também inspira um limite : clínica do parlêtre, mas sem transferência. Joyce potencializa as vantagens de subs-tituir sujeito por parlêtre – talvez um limite, à indagação específica da ação da transferência analítica. Isto confere máximo sentido ao tema de nosso próximo Congresso.Dialogando com o DSM IV (que adora o consenso mundial de síndromes), a categoria de psicose ordinária exalta o amor pelo singular e faz romper as pretensões universalizantes que borromeiam o sujeito. Frente ao amor pelas neuroimagens cerebrais e ao progra-ma de ciframento da existência subjetiva, a psicose ordinária exige radicalizar a existência do amor ao detalhe do inconsciente e uma conversação sobre a palavra imposta e ao acontecimento de corpo. A prática com o psicótico sempre esclareceu o ato do analista e destituiu fantasias e ideais, por exemplo : tomar a neurose como norma, o que deixa o analista exausto e impotente frente ao louco.

Ela se cristalizou em diversas indicações segundo a época : ser secretário do alienado ; não compreender ; submeter-se às posições subjetivas do doente ; não atualizar o pai schre-beriano  ; deixar-se concernir pela liberdade do louco que não demanda nem transfere o a ao Outro ; fazer-se parceiro da invenção e, atualmente ; fazer-se destinatário dos sinais ínfimos da foraclusão.

Está calcada num ato só concebível sob transferência, induz a renovar o estudo minucioso dos tipos clássicos, ordinários e atuais da psicose e, frente à paixão mortífera pela imagem, faz palpitar o encontro transferencial como amor ao inconsciente, ou melhor, o amor pela raiz da poyesis7 do sintoma.

Tradução por Bartyra Ribeiro de Castro Revisão por Rachel Amin

................................................................................

1 Lacan J., « De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose », Escritos, Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1998, p. 588.

2 Miller J.-A. y otros, La psicosis ordinaria, Colección ICBA/Paidós, Buenos Aires 2003. Miller J.-A. y otros, Los inclasificables de la clínica psicoanalítica, ICBA/Paidos, Buenos Aires 1999 ; Miller J.-A, « Efecto Retorno en las psicosis ordinarias », El Caldero nº 14, EOL, Buenos Aires, 2010 ; Miller J.-A y otros, Desarraigados, ICBA/Paidos,Buenos Aires 2016, p. 170.

3 Lacan J. « Los no incautos yerran », Seminario 21, inédito, lição de 19-3-74.4 Miller J.-A., « Efecto retorno sobre la psicosis ordinaria », op. cit., p. 19 ; ver também : Miller J.-A., « Efeito

do retorno à psicose ordinária », Opção Lacaniana online nova série Ano 1, nº 3, Novembro 2010.5 Freud S., « História de uma neurose infantil », EM OBRAS COMPLETAS vol. XVII, IMAGO Editora LTDA, Rio de

Janeiro, p. 96.6 Laurent É., « El sentimiento delirante de la vida », Diva, Buenos Aires, 2011, p. 135.7 Laurent É., « El sentimiento delirante de la vida », op. cit., p. 45

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Sinais discretos interessantes 

Vincente Palomera – elpH. : O que você quer dizer com uma conversação tem contornos ?

Esta conversação teve contornos ? P. : Oh, sim ! Com certeza. Todavia, não podemos vê-los

porque a conversação não terminou. Gregory Bateson, Metálogos1

O caminho inaugurado pelas conversações clínicas que aconteceram entre 1996 e 1998, nas cidades de Angers, Arcachon e Antibes2, supuseram uma revitalização da clínica psica-nalítica das psicoses. Jacques-Alain Miller nos convidou a prestar atenção nos fenômenos discretos na psicoses, aqueles que não chamam a atenção precisamente por se ajustarem à norma ou a um sentido demasiado comum.

O fato de considerar os fenômenos discretos como sinais põe a descoberto os significantes que são mais próprios aos sujeito. Esses sinais discretos podem passar despercebidos por serem pouco chamativos e, muitas vezes, de uma banalidade notável. Este oximoro nos faz pensar no paradoxo de Edwin F. Bechenbach sobre os números inteiros positivos (Inte-resting Integers)3, em que se mostra que os números mais ordinários (dull) podem passar a ser interessantes. Martin Gardner o resume de um modo divertido : « Há pessoas interes-santes. Outras não se destacam por nada especial. Ao fazer as listas de todas as pessoas comuns e de todas as pessoas interessantes, em algum lugar da lista de pessoas comuns se encontra a mais anódina do mundo. Mas justamente isto a torna muito interessante. Teremos, então, de transladá-la para a outra lista. Agora haverá outra pessoa que será a mais comum de todas, convertendo-se, assim, em interessante. Ao final, todo mundo acabará por ser interessante »4.

Portanto, poderíamos dizer que os sinais discretos na psicose, por mais insípidos ou humildes que sejam, podem se tornar interessantes, sempre que sigamos a exortação de Lacan de abster-se de compreender5, e não apaguemos esse momento de perplexidade que os sinais discretos podem evocar, por mais insossos que possam parecer.

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1.3

As psicoses ordinárias são nosso instrumento para enfrentar o desafio apresentado pelos casos de psicose sem delírio explícito, sem um desencadeamento manifesto, mas que apresentam uma série de fenômenos que tornam difícil restituir a estrutura à qual res-pondem. O termo « psicose ordinária » nos obriga a ver nessas psicoses a forte influência da norma em jogo no individualismo das massas, o deste « homem sem qualidades » de Robert Mussil, que tão bem poderia ser representado por esses farrapos de homens que caracterizam os personagens de Samuel Beckett.6

O termo psicose ordinária nos ajuda a afinar melhor as diferentes tonalidades existentes nos modos de um sujeito bricolar-se para manter-se no laço social e dispor de um certo saber fazer com a vida, algo que não é fácil nas psicoses desencadeadas.

As psicoses clássicas, que Miller situava em Antibes como psicoses extraordinárias, são psicoses mais raras. Miller opunha essas psicoses clássicas, ou extraordinárias, às psicoses ordinárias. O que encontramos nas psicoses ordinárias é o fato de que as relações com a língua, efeito da foraclusão, mais do que remeter aos transtornos da linguagem próprios das psicoses clássicas, nos falam da especificidade de determinadas funções da lingua-gem. A questão é saber como cada um consegue « fazer-se » (hacerse) com uma língua própria, a partir da língua comum. Na apresentação dos casos de psicoses ordinárias observamos que o sujeito não fala nossa língua, tendo conseguido, de um modo mais ou menos bem sucedido, construir uma língua com um alcance semântico inédito.

O primeiro exemplo na literatura psicanalítica do que poderia ser um modo de enoda-mento diferente da metáfora delirante na psicose clássica é o que Lacan apresenta com a suplência construída por James Joyce. Definitivamente, segundo a tese de Lacan, Joyce foi o artesão de um narcisismo de suplência. O que é outra maneira de dizer que, com sua arte, conseguia voltar a enodar o imaginário. Ele não se amava na mesma medida em que alguém se ama normalmente, mas, ao converter-se no artista, conseguiu ser o artesão de um narcisismo de suplência. Lacan observa não apenas que Joyce é o sintoma, mas que ele quer sê-lo. Há, nele, uma vontade de publicação. Com efeito, Joyce não escreve pelo prazer de jogar com a lingua-gem. O horizonte de redução do sintoma à sua função de enodamento está presente no começo de « Lituraterra », de 1971, apoiando-se no deslizamento joyceano da letra (letter) ao lixo (litter). Para Lacan, tão importante quanto o fato de ter se dedicado durante dezessete anos a escrever Finnegans Wake, é o fato de tê-lo publicado. Ou seja, Joyce não se contenta em « latrinizar » a letra, em deixá-las na latrina ou em um armário, como costuma acontecer com muitos sujeitos psicóticos. Pelo contrário, Joyce aspirava que sua obra fosse indelével durante 300 anos, se dirige aos universitários – trabalha para lhes dar trabalho -, e Lacan se interroga pela estranha conivência entre Joyce e os universitários aos quais se dirige. Joyce não se dirige aos psicanalistas, mas toma o discurso universitário que se caracteriza por excluir o sujeito do lugar da verdade.

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1.3

É muito interessante o modo como Lacan se introduz no idílio que Joyce mantém com os universitários destinatários de sua obra. Lacan não busca, em momento algum, interpretar o sentido da obra de Joyce (que, justamente, reduz o sentido à sua fuga em Finnegans). O que interessa Lacan é interpretar sua posição de gozo, interessando-se pelos meios com os quais ele obtém o gozo : o escabelo. Qual é a modalidade joyceana de fazer para si um escabelo ? Embora seu escabelo seja um jogo de letras fora do sentido, cabe dizer « sim, mas não fora do gozo ». A particularidade do escabelo joyceano é sua falta de envoltura imaginária que está em estreita relação com a que Joyce mantém com seu corpo. Lacan insiste sobre o carácter suspeito de um deixar o corpo, em Joyce. Antes, ninguém havia chamado a atenção para estas passagens de O retrato do artista quando jovem, em que vemos destacar-se o desarranjo concernente à imagem do corpo, onde seu corpo e a dor lhe são alheios. A escrita oficia como um corpo que faz suplência a essa falha no investi-mento narcisista do corpo. Lacan chama sua obra de Ego joyceano, um ego fora do corpo. O corpo dessa obra conforma um nome próprio : o mesmo Joyce nomeia sua obra como « recriar o espírito incriado de minha raça ».

Essa falta de paixão do corpo e de sua imagem, em Joyce, faz com que Lacan fale de his-secroibeau (elesecrêbelo-eleselevabelo), para situar essa dimensão narcisista do escabelo de Joyce, que não é a do homem comum, porque não encontraremos nele essa paixão pelo eu, pela fantasia da esfera. Essa é, finalmente, a razão pela qual Lacan assinala que o defeito de enodamento faz com que Joyce não faça do escabelo um delírio egoico, já que o delírio comporta sempre uma produção de sentido. Joyce consegue fazer suplência desse deslizamento do nó imaginário graças a uma escrita desabonada do sentido que, por fim, opera como ego corretor

Tradução por Vera Avellar Ribeiro

................................................................................

1 Bateson G., « ¿Por qué las cosas tienen contornos ?, em Metálogos, Ed. Tiempo Contemporáneo, Buenos Aires, 1969.

2 « Le conciliabule d’Angers - Effets de surprise dans les psychoses », Agalma-Le Seuil, Paris, 1996. « La conversation d’Arcachon. Cas rares, les inclassables de la clinique  », op. cit., 1997. «  La convention d’Antibes - La psychose ordinaire », op. cit., 1998.

3 Em sua nota sobre « Enteros interesantes », ver Bechenbach, E.F., The American Mathematical Monthly vol. 52, nº 4, 1945, p. 211.

4 Gardner M., « Aha ! Gotcha. Paradoxes to puzzle and delight », Scientific American, Inc., New York, 1975. 5 Lacan J., O Seminário, livro 3, as psicoses, Rio de Janeiro, JZE, 1999.6 Ver os interessantes capítulos « La soledad de Samuel Beckett » e « La letra y la estructura », em Naveau P.,

Las psicosis y el vínculo social, Gredos, Madrid, 2009.

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Warburg, entre invenção e descorberta 

François Ansermet – nlsA invenção seria uma via de saída possível, sinthomática, para a psicose1. Esta é a posi-ção de Jacques-Alain Miller, a partir do último Lacan. Uma invenção pode permanecer uma bricolagem própria ao sujeito, mas ela pode também se manifestar como tendo um alcance que vai bem mais além : uma invenção privada pode se revelar uma descoberta2 para todos. É o que parece ensinar o extraordinário trajeto intelectual de Aby Warburg, este historiador da arte, fundador de uma corrente importante que não cessou de se referir a ele, de levar seu nome. Suas surpreendentes interpretações em história da arte abriram a via para toda uma escola inovadora - permitindo-lhe ultrapassar as insuportá-veis tensões mentais que o assombraram. Warburg viveu o desencadeamento de um estado psicótico em 1918. Em seguida à derro-ta da Alemanha e ao desmoronamento de um regime, ele se sentiu perseguido, acossado, chegando até a ameaçar sua família com um revolver, com o projeto de fazê-los todos desaparecer, a fim de lhes permitir escapar ao destino que ele imaginava. Hospitalizado, inicialmente, em Jena, foi transferido em 1921 para a clínica Bellevue, dirigida por Ludwig Binswanger, em Kreuzlingen perto de Zurique. Em sua entrada, apresentava uma estado psicótico severo3, acompanhado de uma excitação psicomotora intensa, necessitando de um serviço fechado. Como o precisa seu dossiê : « Graves ideias delirantes que persistem : a couve crespa é o cérebro de seu irmão, as batatas são as cabeças de seus filhos, a carne é a carne dos membros de sua família.... Ele não deve comer os pãezinhos no café da manhã, caso contrário é seu próprio filho que ele come. »4

Se Warburg foi a princípio considerado como apresentando uma psicose de tipo esqui-zofrênico com dimensões paranoides, a discussão sempre foi em torno do diagnóstico diferencial em relação à psicose maníaco-depressiva, tendo em vista sua alternância entre momentos de exaltação, de fuga de ideias, e momentos de depressão, de inibição, de improdutividade, nos quais seu trabalho se congelava. O próprio Kraeplin veio À clínica

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Bellevue, em 1923, e participou da discussão do diagnóstico diferencial, fazendo com que se optasse, por fim, pelo diagnóstico de um estado misto maníaco-depressivo5, insistindo também no fato de que ele não considerava que a patologia de Warburg fosse irre-versível6. Essa posição de Kraeplin quanto a « um diagnóstico absolutamente favorável »7, certamente foi um fator que participou de uma cura possível de Warburg, com o risco de que esta pudesse ser infinita.Com efeito, Warburg sairá da clínica de Biswanger clinicamente curado, depois de haver pronunciado a célebre conferência : « O ritual da serpente » (Le rituel du serpent)8, diante dos pacientes da clínica, dentre os quais o bailarino Nijinski, o pintor expressionista Kirch-ner e Bertha von Pappenheim, a célebre paciente de Freud, Anna O. Nessa conferência, que parece ter tido, ao longo de sua preparação, funções resolutivas quanto à sua psicose, Warburg agrupa os rituais dos índios Hopi, que ele pôde observar por ocasião de uma viagem à América do Norte, com a idade de 29 anos - em particular, as danças que tanto o impressionaram, com serpentes vivas, para chamar a chuva. Anos mais tarde, esse ritual lhe dá a chave do mistério do Renascimento, a enigmática figura da Ninfa Florentina, no centro de suas múltiplas buscas ao longo de sua vida, que resistiam a toda interpretação. Em sua conferência, que mais tarde ele intitulará « O começo de meu Renascimento »9, ele se centra particularmente nas representações da jovem que chega, em seguida ao nasci-mento de Maria, à direita da cena, usando turbantes na cabeça, com frutos, num afresco de Ghirlandaio na capela Tornabuoni, em Santa Maria Novella, em Florença. Por toda a sua vida, ele ficou obcecado pela significação dessa jovem que ele nomeou como a « Ninfa ». E foi ao se lembrar do ritual Hopi, por ocasião de sua hospitalização em Kreuzlingen, que ele resolveu seu enigma, que o coloca na pista de novas elaborações de sua teoria de interpretação iconológica. Uma invenção que dava sua solução à sua busca, colocou War-burg na pista de novas descobertas.

Mesmo se, como o escreve Binswanger, Warburg « nem sempre consegue formular lógica e verbalmente as conexões das quais ele teve a intuição »10, a ligação entre estas e sua estrutura psicótica aparece central em seu processo de descoberta. As conexões que ele faz, a intuições que desenvolve, suas invenções, abrem para descobertas impressionantes de verdades inéditas, que fazem pensar que seu funcionamento psicótico foi um vetor de sua criatividade científica. Assim, Warburg tentou uma abertura para o que se poderia nomear, com Agamben, uma « ciência sem nome »11  : uma ciência da cultura que ultrapassa os limites das ciências vigentes em sua época, enodando história da arte, antropologia, etnologia, mitologia, psicologia, incluindo uma referência à biologia. Nesse sentido, um conceito chave de Warburg é o de Nachleben , ou seja, sobrevivência12 de um símbolo, de uma imagem, transmitido de maneira mnésica, mais além de toda referência consciente. Disso decorre sua pesquisa que associa obras de diferentes épocas veiculando as mesmas tensões estéticas e emotivas, que desembocam na construção de seu famoso Atlas Mnemosyne, que contém as sobrevivências de múltiplas épocas, colo-cadas juntas em uma simultaneidade, uma sincronia surpreendente mais além de toda diacronia.

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Como o enuncia Georges Didi-Hüberman, o material posto em jogo entre memória e sensação é, para Warburg um material plástico13. É um material a vir a ser, capaz de meta-morfoses, entre sobrevivência e vir a ser, entre continuidade e descontinuidade, o que o levou a associar obras de diferentes épocas, onde estão inscritas as tensões de uma cultura, entre repetição e criação. A exploração é a dos pontos de fratura, dos intervalos, de onde surge o novo sobre um fundo de retorno ao mesmo. Para Warburg, o símbolo e a imagem pertenceriam, de fato, a uma esfera intermediária - Zwischenraum, um outro conceito introduzido por Warburg –, uma espécie de no man’s land no centro do humano14, que leva Warburg a ir em direção a uma « iconologia do intervalo » : intervalo entre as causas e as imagens, entre as emoções e os símbolos. Há também a noção de Warburg do Pathosformel, isto é, do indissolúvel emaranhado de uma carga emotiva com uma fórmula iconográfica, que representa, para ele, um guia em sua leitura das obras de arte. É assim que seu método passa pela análise dos detalhes – « Deus se aninha no detalhe », segundo Warburg -, em um movimento de ida e vinda, do detalhe ao todo e do todo ao detalhe que, afinal, não está tão distante do método clínico próprio à psicanálise. Seu método se desenvolve em espiral, entre muitas ciências, sem que nenhuma delas seja suficiente para seu projeto. Desse modo, ele tende para uma « ciência sem nome », que possa dar conta do que está em jogo, sem que o artista o saiba, tanto quanto do cientifico. A psicanálise não poderia ser um dos nomes desta « ciência sem nome », para a qual Warburg tende ?

Tradução por Vera Avellar Ribeiro................................................................................

1 Miller J.-A., « A invenção psicótica », em Opção Lacaniana. Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, nº 36, maio de 2003, p. 6-16.

2 Miller J.-A., « Un rêve de Lacan », Le réel mathématique. Psychanalyse et mathématique, Textos reunidos e editados por Pierre Cartier e Nathalie Charraud, Paris, Agalma, 2004, p. 124.

3 Cf. Freud S., Binswanger L., Correspondência 1908-1938, « A carta de Binswanger a Freud, de 8 de novembro de 1921 », Paris, Calmann-Lévy, 1995, p. 231-232.

4 Binswanger L., Warburg A., La guérison infinie, Paris, Payot & Rivages, Dossiê clínico, 15 de novembro de 1921, 2007, p. 108.

5 Binswanger  L., « Der Fall Ellen West, eine anthropologisch-klinische Studie », Schweizer Archiv für Neurologie und Psychiatrie, 1944-45, p. 53-55.

6 Stimmili D., « La teinture de Warburg », prefácio a Binswanger L. et Warburg A., La guérison infinie, op. cit., p. 16.

7 Ibid., p. 15.8 Warburg A., Le rituel du serpent, Paris, Macula, 2003. 9 Ibid., p. 28. 10 Cf. Binswanger L., Warburg A., La guérison infinie, « Lettre de Ludwig Binswanger à Max Warburg le 1er

mai 1925 », op. cit., p. 250. 11 Foi Giorgio Agamben que avançou a noção de uma « ciência sem nome », como sendo o que Warbug.

Cf., Agamben G., « Aby Warburg et la science sans nom », Image et mémoire, Éditions Hoëbeke, 1998, p. 9.

12 Precisemos que a noção de sobrevivência, em Warburg, não tem nada a ver com a de arquétipo, de Jung.

13 Didi-Huberman G., L’image survivante, Paris, Édit. De Minuit, 2002, p. 158.14 Didi-Huberman G., Survivance des lucioles, Paris, Édit. De Minuit, 2009, p. 23.

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A dimensão S0 e o objeto nada nas psicoses ordinárias Domenico Cosenza – slp

Um ponto de incontestável interesse relativo ao campo da psicose ordinária, sobre o qual eu gostaria de dar minha contribuição, diz respeito a um avanço oferecido por Jacques-Alain Miller na conversação clínica « Situações subjetivas de abandono social »1, (Situations subjectives de déprise sociale), realizada em junho de 2008, em Paris, da qual participei. A psicose ordinária foi o pano de fundo de tal conversação clínica, com uma ênfase posta, em particular, no tema da desconexão e da desinserção do laço social. A déprise, ou exclusão2, que apareceu no tema da conversação, fazia série com os de des-conexão e desinserção, muito debatido no nosso campo naquele período, para marcar – em tal desenganche do Outro - um traço estrutural fortemente presente nos momentos de crise, nos quais a psicose, em sua forma ordinária, revela algo da estrutura psicótica em um sujeito até então aparentemente bem inserido no laço social. Se hoje estamos interrogando, em particular, os sinais discretos na psicose ordinária3, naquele momento, de fato, a atenção do nosso debate teórico-clínico se focalizava sobre as modalidades de ruptura do laço que a caracterizam.Num período próximo àquele em que Jacques-Alain Miller pronuncia em Paris a conferên-cia « Efeitos de retorno sobre a psicose ordinária » 4 e dez anos após a Convenção de Antibes, na qual a teoria psicose ordinária encontrou o momento de sua própria formalização, a conversação clínica acima mencionada de 2008 participa do processo de après-coup sobre o tema da psicose ordinária, oferecendo-nos algo precioso que possibilita um avan-ço no processo de sua definição. Por esta razão, me parece importante deter-se nela e estudá-la visando uma precisão do nosso modo de ler a psicose ordinária na perspectiva de Barcelona 2018, uma vez que se trata de um texto que, talvez, ainda não tenha sido valorizado como merece no nosso debate.

De um modo extremamente sintético, direi que a contribuição introduzida por Jacques-Alain Miller sobre o tema da psicose ordinária nessa conversação clínica pode ser reduzido

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a dois pontos nodais : 1) um retorno a um conceito-chave do ensino de Lacan - o objeto nada (rien) - que reinventa seu estatuto ; 2) a introdução de um novo matema particular-mente, segundo Miller, para pensar a clínica da psicose ordinária : S0.Essa elaboração se produziu ao longo da conversação, a partir de um caso de psicose ordinária apresentado por Maleval, o caso de Charles5. A questão do nada está no cora-ção desse caso e se expressa fenomenologicamente em uma inércia estrutural, que torna impossível que ele faça alguma coisa, seja trabalhar, seja construir uma relação. Isso leva Charles a se autodefinir como « uma nulidade ». Nesse caso, sustenta Miller de acordo com Maleval : « encontra-se regularmente este S0 muito característico da psicose ordinária, que não deve ser confundido com o sujeito barrado. Este « Eu sou nulo » remete a um outro modo, muito mais radical do que um simples ataque à auto-estima. Trata-se, como o enfatizou Maleval, da atração do não-ser, que não deixa de evocar Heidegger. Uma relação com o nada está presente neste sujeito ». 6Num certo sentido, o caso de Charles se apresenta como um caso paradigmático e per-mite, segundo Miller, repensar o objeto rien (nada) que Lacan havia inserido na lista dos objetos a. Trata-se, nesse caso, não de uma reelaboração do rien a partir da histeria ou da anorexia mental (mas também, em alguns pontos de seu ensino, da neurose obsessiva ou da fobia) que podemos rastrear em Lacan, mas a partir da psicose ordinária, diferença que introduz uma nova definição do estatuto de objeto causa. Para Miller, um matema que permite pensar o objeto rien na psicose ordinária é o S0. Este matema, de fato, « remete à ordem do dia o objeto a na abordagem da psicose ordinária : parece lhe estar colado nele e, de certo modo, lhe dar seu estatuto ». 7Desse modo, parece que Jacques-Alain Miller abre as portas para uma revisão da doutrina lacaniana dos objetos a8, dando ao rien um destaque sem precedentes, que torna este objeto heterogêneo aos outros objetos da lista dos objetos causa formulada por Lacan. Podemos notar todo o peso desta passagem na nova definição do objeto rien que Miller traz à conversação à luz desse caso de psicose ordinária : « O objeto a como nada seria, entre os objetos a, o único a ser causa de não-desejo e causa de deserto ».9A clínica das psicoses ordinárias se apresenta, assim, como um terreno a ser explorado, levando-se em conta a específica função que o objeto rien exerce nela, aquém das com-pensações imaginárias e das soluções que o sujeito encontra na existência, e da bússola propiciada pelo matema S0.

Tradução por Vera Avellar Ribeiro................................................................................

1 Miller J.-A., (sob a direção de), Situations subjectives de déprise sociale, Paris, Navarin, 2009.2 N.T. : Déprise sociale, ou abandono social das pessoas idosas, é um conceito proveniente da sociologia

da velhice ou do envelhecimento, que permite analisar a renúncia destas pessoas a algumas atividades devido ao avançado de suas idades. Disponível em : https ://fr.wikipedia.org. Pelo que o autor desenvolve em seguida, optamos por traduzir déprise por exclusão.

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3 A esse respeito, ver Mental. Revue internationale de Psychanalyse, Revue de la Eurofédération de Psychanalyse, Signes discrets dans les psychoses ordinaires, nº 35, janeiro 2017, em particular Y. Vanderveken, « Vers une généralisation de la clinique des signes discrets », p. 13-32.

4 Miller  J.-A., «  Effetto di ritorno sulla psicosi ordinaria  », La Psicoanalisi, nº 45, gennaio-giugno 2009, p. 225-248 ; ver também : Miller J.-A., « Efeito do retorno à psicose ordinária », Opção Lacaniana online nova série Ano 1, nº 3, Novembro 2010.

5 Maleval J.-C., «  Déprise sociale paradoxale et clinique du desert  », in Miller J.-A., (sob a direção de), Situations subjectives de déprise sociale, op. cit., p. 37-48.

6 Miller J.-A., (sob a direção de), Situations subjectives de déprise sociale, op. cit., p. 150. Tradução livre do autor ; tradução livre do tradutor.

7 Ibid. p. 169-170.8 A esse respeito, me permito remetê-los a « L’objet rien comme le seul objet a qui n’est pas cause de

désir. Uma contribuição recente de Jacques-Alain Miller », in Cosenza D., Le refus dans l’anorexie, Presses Universitaires de Rennes, 2014, p. 146-148.

9 Miller J.-A., (sob a direção de), Situations subjectives de déprise sociale, op. cit., p. 170.

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As psicoses ordinárias. Três axiomas 

Alba Alfaro – nelO tema de nosso próximo Congresso nos convoca a recolher os « ecos » da aposta lançada por J.-A. Miller com o significante Psicose Ordinária, a fim de verificarmos, a posteriori, se, depois de vinte anos de investigação, os resultados permitem consolidá-la como uma categoria clínica. Apostamos que sim, agrupando em três axiomas as contribuições.

1) A Psicose ordinária : « um programa de investigação »

Com este termo se inicia um movimento, inspirado no último ensino de Lacan, para dar conta de um « novo contexto teórico, clínico e político »1, no qual se inscreve e opera a psicanálise hoje. Este esforço coloca em tensão as duas posições nas quais Lacan dividiu a tarefa (quehacer) do analista : a do praticante e a do clínico2, demandando um « saber fazer », em uma pragmática do caso por caso3 e um « saber dizer » de acordo com a época. A psicose ordinária surge no contexto de uma mudança, do inconsciente freudiano para o falasser (parlêtre) lacaniano, com o qual Lacan nos deu o « índice do que muda na psi-canálise no século XXI »4. Exorta-nos a adentrarmos na noção do inconsciente real para dar conta de uma clínica que toma como referência a psicose e não a neurose, onde o significante unário aparece em seu estado original, em sua dimensão de letra, e a relação entre Um-corpo e lalíngua remete ao gozo autístico do parlêtre, ao que não faz laços e onde as referências são absolutamente singulares. Trata-se, então, de um programa de investigação sobre esses novos fenômenos clínicos que surgem do estado atual do discurso do mestre e põem em questão a consistência mesma de uma clínica que, por ser do real, aponta para « obter em um sujeito uma des-crição o mais vinculada possível à sua particularidade »5.

2) A psicose ordinária : categoria lacaniana

Nessa relação dialética entre prática e teoria, a psicose ordinária vem oferecer uma susten-tação clínica aos axiomas desenvolvidos por Lacan na teoria do sinthoma. Permite afinar o conceito de neurose6 e atualizar o de psicose, brindando as bases para consolidar uma clínica diferencial orientada pela topologia borromeana.

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Se a pergunta sobre o que mantém Joyce enodado permitiu a Lacan fazer avançar sua teoria dos nós, esta mesma questão inscreve, hoje, a psicose ordinária no contexto de seu ultimíssimo ensino. A função de nomeação cumprida pelo Ego como sinthoma, em Joyce, ofereceu a Lacan uma referência essencial para abordar as formas que, distintas do NdP, podiam exercer função de suplência nas psicoses. Nos dias de hoje, as psicoses ordinárias abrem todo um campo de investigação clínica sobre as formas de suplência que, ade-mais, operam sem o recurso da metáfora delirante. As PO inspiraram uma releitura dos casos clássicos da literatura psicanalítica, para situar essas sutis formas de desencadeamento e de suplência não estudadas até agora. Trouxe-ram também novas evidências para situar os fenômenos de localização do gozo, que sustentam a base mesma da clínica borromeana7, e novos suportes à concepção da linguagem como «  parasitária  ». Por exemplo, os desencadeamentos produzidos pelo encontro não com Um-pai, mas com a dimensão da escrita na fala8, permitiram dar conta de como o sentido-gozado pode assumir uma forma inclusive « radical »9, quando se trata da letra.

3) A psicose ordinária : forma atual das psicoses

Partimos de uma afirmação essencial : a psicose ordinária é uma psicose e, mais especifi-camente, o modo das psicoses se apresentarem no contemporâneo. Miller nos exorta a introduzirmos nessa clínica delicada, oscilante, caracterizada pelos pequenos indícios10, os matizes e intensidades, onde se alternam desencadeamentos com períodos de estabilização e de desestabilização. Fazê-lo, tem permitido ir perfilando a psicose ordinária como nova categoria clínica das psicoses.Embora exista o debate em torno da questão  : trata-se de psicoses desencadeadas, ou não, parece haver acordo a respeito de um ponto, a saber, os fenômenos elementares se apresentam ajustados às coordenadas do discurso social. Nesse sentido, o « confor-mar-se à forma perfeita », com um ar de normalidade, dá conta de uma suplência operada pela função « nomeado-para ». Esta nomeação implica um sujeito identificado ele mes-mo com a função social11, a qual exerce, reduzindo-se a uma aparência, um « Como se » (fazer crer compensatório do NdP)12 que constitui seu laço social13. Os desencadeamentos podem produzir-se quando o sujeito deixa de ser esse papel ou entra em contradição com a aparência associada a ele. A desconexão social, o descuido extremo de sua pessoa, as deslocalizações ou deslocamentos do gozo são característicos de um desencadeamen-to captado sob transferência. Há também um enorme e constante esforço de invenção14

para ater-se a seu corpo, típico nos psicóticos ordinários. No que concerne à direção do tratamento, a aposta orienta para a construção de um sinthoma, ali onde há um incurável. Em muitos desses casos, o analista sabe que pode ocupar o « único lugar social que liga o sujeito à humanidade »15.

Tradução por Vera Avellar Ribeiro

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1 Brousse M.-H., « La psicosis ordinaria a la luz de la teoría lacaniana del discurso », Freudiana nº 76, 2016, p. 103, ELP-Catalunya.

2 Lacan J., : O Seminário, livro 22 : R.S.I., lição de 10-12-74, inédito.3 Laurent É., « Las psicosis ordinarias », Virtualia nº 16, 2007, Revista digital de la EOL. 4 Miller  J.-A., «  O inconsciente e o corpo falante  ». Apresentação do tema do X Congresso da AMP 2016, São Paulo, Ed. Escola

Brasileira de Psicanálise – EBP, 2016, p. 19-32. BLOG DE L’AMP. Disponível em  : http://wapol.org/pt/articulos/Template.asp?intTipoPagina=4&intPublicacion=13&intEdicion=9&intIdiomaPublicacion=9&intArticulo=2742&intIdiomaArticulo=9

5 Laurent  É., «  El sentimiento delirante de la vida  », entrevista realizada por Silvia E. Tendlarz, en el Blog  : Hilos de Ariadna, 25 oct. 2011. Disponível em  : http://hilosde-ariadna.blogspot.fr/2011/10/el-sentimiento-delirante-de-la-vida.html

6 Miller  J.-A., «  Efecto retorno sobre la psicosis ordinaria  », Consecuencia nº 15, Maio de 2015, Revista digital do ICB, EOL ; ver também « Efeito do retorno sobre a psicose ordinária », Opção Lacaniana online nova série Ano 1, •nº 3, Novembro 2010.

7 Miller J.-A. y otros, La Psicosis ordinaria : la convención de Antibes, op. cit., p. 269.8 Referencia al caso de A. Artaud y la palabra « helado », citado por Lilia Majhoub, Cf., Ibídem., p. 233.9 Cf., Ibídem., p. 232.10 Miller J.-A., « Efecto retorno sobre la psicosis ordinaria », ver também « Efeito do retorno sobre a psicose

ordinária », Opção Lacaniana online nova série Ano 1, nº 3, Novembro 2010, op. cit.11 Miller J.-A. y otros, La Psicosis ordinaria : la convención de Antibes, op. cit., p. 236.12 Miller J.-A., « Efecto retorno sobre la psicosis ordinaria », op. cit.13 Schribiane P., « La psychose ordinaire du point de vue borroméen », Quarto nº 94-95, Enero 2009, p. 22,

ECF, Bruselas.14 Miller J.-A. y otros, La Psicosis ordinaria : la convención de Antibes, op. cit., p. 255.15 Caroz G., « Quelques remarques sur la direction de la cure dans la psychose ordinaire », Quarto nº 94-95,

Enero 2009, p. 59.

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Simplesmente, parlêtre !

Fernanda Otoni-Brisset – ebpUma animada conversa entre colegas do campo freudiano girava em torno da precarie-dade da clínica binária diante da atualidade da experiência analítica. Fragmentos clínicos notavam a plasticidade de casos que, sob transferência, exigiam-nos levá-los mais longe antes que uma precisão diagnóstica se firmasse. Seria uma neurose ? Psicose ? Mais ou menos... O pêndulo do sino de Gauss balançava conforme a intensidade dos pequenos indícios, dos divinos detalhes. Impossível reduzir a um simples sim ou não, presença ou ausência do Nome-do-Pai, face ao que essa clínica nos entregava. Tal elasticidade indicava onde estávamos : na era do Outro que não existe ! Sem critérios repartidores, a medida é flou, irredutível à classificação. O último ensino de Lacan orien-ta-nos a seguir o que funciona como amarração diante da perturbação da língua e do corpo no laço social. Poderíamos prescindir da certeza diagnóstica, na condição de nos servir daquele que nos fala como um « sujeito suposto saber »1 ? Estávamos aí, quando os ventos do Campo Freudiano sopraram nos convidando a um retorno sobre a psicose ordinária. Este sintagma resolveria o impasse daquela conversa ? Acrescente à clínica binária esse terceiro termo, robusteça o tronco das categorias clínicas e repouse na sombra desse ternário a inquietude dos analistas ? « O perigo do conceito da psicose ordinária – é o que se chama um asilo para a ignorância »2. Não por acaso, o XI Congresso acrescentou ao título A Psicose Ordinária – um pedacinho a mais – e as outras, sob transferência. Um penduricalho imprescindível por abrir ao real que anima a surpresa no cerne da lógica de nossa ação.

Afinal, quais são as outras ?

Essa questão alcança e ilumina o furo do saco. Seriam uma referência às outras psicoses ? Psicose paranóica, esquizofrênica, adormecida, explodida, joyceana, discreta, compensa-da  ? Caberia enfiar dentre as outras, as neuroses  ? «  A neurose, não é mais sempre, a neurose... tem-se aí o diagnostico diferencial, mas tem também um continuum : ‘todas as mulheres são loucas’ ; ‘o mundo é louco’. Lancem um olhar sobre a neurose, os delírios de que ela é capaz, aqueles de que ela é feita ; a neurose é um patchwork. »3 As elocubrações fervilham, entre essas e outras, « todo mundo delira »4.

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Sigo a abertura que « as outras » evocam para explorar as consequências da « declaração de igualdade clínica fundamental entre os falasseres »5, resgatando o fio da meada entre o X e o XI Congresso da AMP : um estreito continuum a perseguir.

Fundamentos de igualdade

Se a clínica diferencial define-se por localizar índices da descontinuidade entre as estrutu-ras clínicas, algumas das proposições de Lacan nos permitem declarar que somos todos iguais quanto ao real sem sentido da existência. Cada um fala a sua lalíngua e para todos « falar é em si uma perturbação da linguagem »6. Onde houver um ser falante, do encon-tro da língua com o corpo, acontece a junção mais íntima do sentimento de vida (clips !) e uma « conexão bem mais estreita do gozo e do significante »7 se faz. Desde então, a vida porta sentido. Essa relação do gozo com o significante é um fundamento comum a todos, ainda que sejam distintos os modos como tal conexão acontece, mais ou menos intensa para cada um, ao enodar esse Um da língua ao Outro. Para os neuróticos, o Nome-do-Pai faz o nó ; e no vasto mundo das psicoses, outros modos de nós e grampos se apresentam a partir de algum elemento específico que funciona como se fosse um Nome-do-Pai.A passagem da clínica diferencial à borromeana, de forma alguma nos permite apagar as pegadas que sulcam o modo neurótico ou psicótico de ser, mais ainda, exige-nos seguir a finesse dos pequenos sinais, indícios de pinças, amarras ou nós, numa perscruta perma-nente, atentos ao singular do sinthoma. A lanterna se desloca da querela do diagnóstico para iluminar o real no interior do tratamento ; a pergunta se desloca do « o que será que ele é », para « como é que funciona ». Uma clínica do funcionamento, das conexões, dos ínfimos detalhes onde o toque de singularidade é a bússola. Com Miller, podemos dizer que as psicoses ordinárias e as outras, neuroses e psicoses, são, a um só tempo, « saídas diferentes para a mesma dificuldade do ser »8, para o que não cessa de não se escrever e que pulsa na « junção mais íntima do sentimento de vida no sujeito »9. Mas o que é que há e acontece nessa junção mais íntima ?

« É a pfuit ! do sentido e a busca dos pontos de basta »10

Laurent, em Antibes, sublinha : « o que faz com que em um dado momento minha cabeça dá o fora... Pfuit... (...) A pfuit de sentido »11. Nada mais humano ! Tal pfuit ! também aparece em relatos de AE quando, na solidão analítica, entram na terra do petit a e testemunham a experiência real do non-sens da sua existência.12 É quando a inexistência da relação eclode e o clips se abre para o nada, exalando a pfuit ! pulsante cujo eco ressoa sob um fundo sem fim de silêncio. É só, isso ! A vida é sem sentido, para todos, de forma ordinária e cotidiana. Ao propor o sintagma psicose ordinária, Miller desejou provocar um « eco no clínico »13. Que eco seria esse senão o que ressoa em nossa experiência e advém de um oco real, incrustrado na junção mais íntima do ser ? Ao sondar os indícios da desordem ordinária encontramos vestígios que contam da experiência para com o furo, quando o nó se afrou-xa, ora bambeia ou até se solta desatando a junção. É a desordem do real  : o hors-sens

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do gozo ! « Todos inventamos um troço para tapar o furo no real. Aí onde não há relação sexual, inventa-se o que se pode. »14 Afinal, as estruturas são como defesas, defesas contra o real15, sempre notável por sua pulsação invisível nesse toro do ser.Banhado pelas contingências, desconfio que o falante do ser emerge da conexão que engendra o pfuit ! pulsante a um ponto de basta capaz de agarrá-lo de novo a um arranjo para com o real, que é singular para cada um e constitui seu sinthoma. O sinthoma é a expressão viva dessa junção mais íntima, sempre insensata, e que acontece do encontro inédito e impossível de lalíngua e o laço social.

Uma clínica unitária

Por fim, pergunto se o alcance dos trabalhos rumo ao XI Congresso podem nos levar a confirmar que a psicose ordinária e as outras, sob transferência, circunscrevem o convívio de nossa experiência com o que Miller evocou como « uma clínica unitária, as três em uma. Como a Santíssima Trindade ! » 16, e conforme reza a clínica dos nós. Uma clínica desse porte, que se orienta do real ao laço social, vive da inquietude perma-nente que bouleversa a conversação no banquete dos analistas. Mais além da estrutura, tratamos de cerzir com o falante, aí implicado, o que lhe serve para grampear-se quando do encontro com um pai furado. A igualdade clínica fundamental entre os falasseres, ainda mais esclarecida a partir do efeito de retorno à psicose ordinária, ao desfazer as insígnias do déficit, permite-nos explorar o detalhe das nuances/nuages de cada caso, feitas dos inúmeros tons que vibram conforme a loucura de cada um.Se seguirmos assim, neuroses e psicoses, guardadas as distinções e segundo a lógica da forclusão generalizada, encontram-se igualmente reunidas no interior do conjunto dos seres que Lacan definiu como, simplesmente, parlêtre. É Carnaval em Belô, foliões mascarados estão a cantar. É hora de seguir la folie até Barcelona !

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1 Lacan J., (1973) « Televisão », Outros Escritos, Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 2003, p. 529-530.2 Miller J.-A., (2008) « Efeito de retorno sobre a psicose ordinária », A Psicose Ordinária – A Convenção de

Antibes. Belo Horizonte, EBP/Scriptum, 2012, p. 412-413.3 Miller J.-A., « On n’est pas sérieux quand on a dix-sept ans », La Cause Freudienne nº 67, Paris : Navarin

Editeur, outubro 2007, p.23.4 Miller J.-A., La Conversation d’Arcachon, Paris : Le Seuil, 2005, p.257.5 Miller J.-A. « O Inconsciente e o Corpo Falante », Scilicet – O corpo falante, Rio de Janeiro : EBP, 2016, p.316 Miller, J.-A. « Perturbações da linguagem », A Psicose Ordinária – A Convenção de Antibes..., op. cit., p. 2507 Miller, J.-A. « Gozar da linguagem », A Psicose Ordinária – A Convenção de Antibes..., op. cit., p.264.8 Miller, J.-A. « Clínica fluída », A Psicose Ordinária – A Convenção..., op. cit., p.242.9 Lacan J., « De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose », Escritos, Rio de Janeiro :

Jorge Zahar, 1998, p. 565.10 Laurent É., « A pfuit ! do sentido », A Psicose Ordinária – A Convenção de Antibes..., op. cit., p. 273.11 Ibíd, p. 273.12 Cf. : Laurent É., « Enseignement de la passe », Quarto nº 100, Belgique : ECF, septembre 2011, p.25.13 Miller J.-A, « Efeito de retorno... », op. cit., p.401.14 Lacan J., O Seminário, livro XXI, « Les non-dupes errent », lição 8, aula de 19/02/1974, inédito.15 Cf. : Miller J.-A., « Efeito de retorno... », op. cit., p.42216 Ibíd, p. 420-421.