rui nunes - apresentação

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No prefácio a Diferença e Repetição, Gilles Deleuze afirma que “os pontos fracos de um livro – e, acrescentemos nós, de qualquer texto, - são frequentemente a contrapartida de intenções vazias que não soubemos realizar.” Desta forma, continua ele, “uma declaração de intenção dá testemunho de uma real modéstia em relação ao livro ideal”. É necessário, desta forma, esclarecer quais as intenções, ou, melhor ainda, quais os diversos gestos que pretendíamos realizar – não cabendo a nós, obviamente, aferir se eles foram, ou não, efectivamente realizados, se, por último, os gestos foram os adequados ou permanecem exorbitantes. Do que é, de facto, se tratou? De uma particular relação com a linguagem que julgámos encontrar em Rui Nunes. Seja, por exemplo, Barro, um dos últimos textos dele: “A minha chegada são estas palavras, com a sua clareza, ditas por ninguém. Voz sem corpo que soava um pouco atrás de mim, voz sem nome, sem sexo. Voz que afastava as coisas. Que me começou a perseguir, que me continuou a perseguir, que ainda me persegue. Voz que estará, no instante da minha morte, a dizer-me: -é ali (...) O mundo começava com uma chegada, que era uma partida.” Pensámos encontrar ai, nesta voz sem nome sem corpo e sem sexo, uma outra forma de designar a particular relação com que tantas das “personagens” de Rui Nunes se

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Rui Nunes

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No prefcio a Diferena e Repetio, Gilles Deleuze afirma que os pontos fracos de um livro e, acrescentemos ns, de qualquer texto, - so frequentemente a contrapartida de intenes vazias que no soubemos realizar. Desta forma, continua ele, uma declarao de inteno d testemunho de uma real modstia em relao ao livro ideal. necessrio, desta forma, esclarecer quais as intenes, ou, melhor ainda, quais os diversos gestos que pretendamos realizar no cabendo a ns, obviamente, aferir se eles foram, ou no, efectivamente realizados, se, por ltimo, os gestos foram os adequados ou permanecem exorbitantes.Do que , de facto, se tratou? De uma particular relao com a linguagem que julgmos encontrar em Rui Nunes. Seja, por exemplo, Barro, um dos ltimos textos dele:A minha chegada so estas palavras, com a sua clareza, ditas por ningum. Voz sem corpo que soava um pouco atrs de mim, voz sem nome, sem sexo. Voz que afastava as coisas. Que me comeou a perseguir, que me continuou a perseguir, que ainda me persegue. Voz que estar, no instante da minha morte, a dizer-me: ali(...) O mundo comeava com uma chegada, que era uma partida.Pensmos encontrar ai, nesta voz sem nome sem corpo e sem sexo, uma outra forma de designar a particular relao com que tantas das personagens de Rui Nunes se posicionam face linguagem e lngua. Chammos a esta relao abandono e tentmos pensar como que ela se encontra presente nos diversos textos de Rui Nunes. Teria sido necessrio, obviamente, numa leitura rigorosa e rente aos diversos textos, perceber a evoluo, os desvios, todas as pequenas diferenas que esta relao foi tendo ao longo do tempo e, por vezes, dentro do prprio texto. Teria sido necessrio estabelecer todas as cenas em que comparece, todas as dissimetrias que implica, enfim, teria sido necessrio uma anlise mais microlgica para a qual, no entanto, no haveria certamente espao. E isto porque, de facto, uma das intenes que tentmos estabelecer foi, efectivamente, que esta relao tudo menos homognea, repleta de focos de resistncias, linhas mveis de demarcao, pequenas diferenas que se vo insinuando. O que que estaria implicado nesta relao de abandono? Um certo silncio. Num daqueles pequenos textos de Kafka que tantos problemas colocam, um silncio anlogo convocado. Fazendo referncia histria de Ulisses, h uma parte que gostaria de realar e cujo dilogo com Rui Nunes seria interessante de estabelecer, tendo em conta que Ulisses igualmente convocado em BarroS que agora as sereias tm uma arma ainda mais aterradora do que o canto, e esta o silncio. Nunca aconteceu, mas concebvel que algum conseguisse salvar-se do canto das sereias, mas certamente no do seu silncio.Este silncio das musas no equivalente, certamente, ao silncio que pretendemos encontrar no abandono. No entanto, ele est a para provar que tambm o silncio e, talvez, em especial o silncio pode ser aterrador. No entanto, dir-nos-iam, como falar de silncio quando na realidade o que se d a ler em Rui Nunes , de facto, uma voz mesmo que esta voz seja, como afirmado na citao, sem nome, isto , tambm, indeterminada? Porque, acima de tudo, esta relao de abandono deixa-se ler a partir de uma suspenso da lngua que, em Rui Nunes, equivalente ao que, em Barro, se intitula o faa-se inicial. Esta suspenso da lngua, desta forma, teria como consequncia que a lngua e a linguagem encontram no seu centro, no o sentido ou o querer-dizer, mas a palavra de ordem. Como referem, alis, Deleuze e Guattari, a linguagem no a vida, d ordens vida; a vida no fala, ouve e espera. Em qualquer palavra de ordem, mesmo de um pai a um filho, h uma pequena sentena de morte um Veredicto, dizia Kafka. Esta suspenso da lngua, desta forma, enquanto palavra de ordem, seria sem contedo: ela no imporia nada, no obrigaria a nada, a no ser, digamos assim, prpria obrigao, prpria relao; desta forma que ela se d a ouvir enquanto ali, isto , enquanto errncia sem sada e, igualmente, enquanto culpa. Porque, na realidade, esta suspenso da lngua, no impondo nada, implica, no entanto, uma lgica do intervalo: em Boca na Cinza, por exemplo, que permanece uma das mais conseguidas experimentaes de Rui Nunes a partir do abandono, Sara encontra, a partir de uma injuno linguagem, um desfasamento enquanto ndice de uma vida culpada. De facto, perante uns olhos to grandes que desaparece neles a inteno e cuja nica injuno , como em Barro, um fala sem contedo, Rui Nunes vai descobrir, no abandono a que as suas personagens se encontram votadas, que toda e qualquer palavra, toda e qualquer frase, vai adensar esta fala sem contedo, esta voz sem nome, vai, digamos assim, cavar o abismo e a diferena que, entre palavra e injuno, se insinua. Existe, desta forma, uma diferena, um lapso temporal, um pequeno hiato, que no permite que esta errncia que o ali impe se feche, que no permite que este vazio que a voz sem nome impe seja apropriado. como se, digamos assim, chegssemos sempre demasiado tarde a esta voz sem nome. a partir deste demasiado tarde, de uma lgica do intervalo que imposta pelo prprio contexto de culpa do abandono, que tentmos, num segundo gesto, ler de outra forma, a partir de outros lugares, esse mesmo abandono. Porque, de facto, e apesar de no haver, em Rui Nunes, um retrica da salvao, do que permanece a salvo e indemne, multiplicam-se as sadas e as linhas de resistncia. Em Que Sinos Dobram Por Aqueles que Morrem como Gado, , por exemplo, essa absoluta opacidade do primeiro sentido que , ao mesmo tempo, uma consequncia dessa voz sem nome que no impe nada como se esse primeiro sentido coincidisse, sem resto, com a prpria desfigurao numa espcie de teleologia negativa mas, igualmente, aquilo que pra e interrompe o prprio sentido, ou seja, em Rui Nunes, a melodia e o ritmo, pensados, nele, como reunio e mesmidade. So, enfim, esses atalhos que levam a atalhos e que, na periferia interminvel da morte, vo interromper essa voz sem nome. No entanto, tentmos cartografar essas diversas sadas a partir de diversos gestos Deleuze e Guattari diziam, em relao a Kafka, que o Castelo tem entradas mltiplas cujas leis de utilizao e de distribuio no so exactamente conhecidas. Ns diramos, pelo contrrio, que mltiplas so as sadas ou que, dito de outra forma, s h sadas. O primeiro motivo seria, certamente, esse rosto de cinza que, enquanto diacronia imemorial e sem presena, permite olhar de frente o vazio inarticulado da lngua e, de certa forma, desvelar essa vazio enquanto vazio. Da mesma forma, a ideia de ausncia de abrigo, que de certa forma j referimos enquanto errncia, preenche tambm ela a funo de revelar a palavra de ordem enquanto centro da linguagem. Por ltimo, enquanto inominvel que, em Rui Nunes, acaba por coincidir com o prprio nome, com aquilo que neste surge sempre sobre a forma de um atraso constitutivo, a prpria vida nua enquanto vida culpvel que surge e que interrompe essa voz sem nome. aprofundando, no entanto, essa lgica do demasiado tarde que chegmos ao que tentmos pensar como palavra pobre. Dois momentos surgem, na obra de Rui Nunes, como ndices dessa pobreza. O primeiro , de facto, o final de Barro. D-se a ler a queescrevo, no desabrigo de no saber o regresso. No uma histria que repete a morte. Mas uma palavra que procura a indeciso de outra palavra. E dessa unidade to dbil, da veemncia dessa pobreza, se fez, se faz, um texto. Sem ptria. Sem poder. Quase sem nomeO segundo momento, onde a palavra pobre efectivamente nomeada, surge em Boca na Cinza. A, num extrato do dirio de Abel, surge a ligao da palavra pobre com o gesto.A palavra mais pobre diz a eternidade. Por exemplo: ama-me. A palavra absolutamente pobre um gesto. Qualquer.Esta equao, em Rui Nunes, entre gesto e palavra torna-se pensvel a partir de cesuras. Nem que seja porque, de facto, os gestos em Rui Nunes nunca chegam a acabar, interrompem-se sempre a meio, como se, na realidade, o perigo consistisse neste gesto completo, neste sentido enfim devolvido, que ele equaciona violncia da linguagem. Esta palavra enquanto gesto que, na sua pobreza, interrompe o sentido, no deixa de convocar todos os problemas que o envio e o endereamento da linguagem colocam. Mas convoca antes de mais o problema da memria, a onde o gesto lido a partir do demasiado tarde. Porque o que dado neste gesto apenas o intervalo que d lugar a esta indeciso de outra palavra de que fala em Barro e, desta forma, a memria que assim convocada, enquanto outro nome do gesto da palavra, no salva nada tal como o gesto interrompido, tal como o endereo nunca estvel ou fivel. Encontrmos desta forma, na relao entre gesto, palavra e memria, o problema do imemorial, isto , o problema das relaes entre memria e esquecimento. Em A Ideia de Prosa, e falando sobre a memria involuntria, Agamben afirma:Nela, a recordao que nos devolve a coisa esquecida esquece-se tambm dela, e este esquecimento a sua luz. Da, porm, vem a nostalgia que a anima: h uma nota elegaca que vibra to tenazmente no fundo de toda a memria humana que, no limite, a recordao que no recorda nada a mais poderosa das recordaesEsta dialctica para que Agamben aponta em que a memria no interioriza ou incorpora nada mas, digamos assim, se expe ao esquecimento talvez no permita pensar at ao fim aquilo que se encontra em causa em Rui Nunes. Porque, de facto, nesta dialctica entre memria e esquecimento, em que a palavra enquanto memria recorda que h esquecimento, a prpria memria poderia ainda resgatar-se atravs desse ltimo gesto. Em Rui Nunes, no entanto, no acreditamos encontrar nem essa salvao nem, igualmente, essa nota nostlgica de que fala Agamben. Pelo contrrio, julgamos encontrar uma lacerao da prpria memria que no sa, desta forma, inclume. Aquilo de que no h memria, desta forma, no apenas , de facto, inesquecvel, mas, e porque no pode ser salvo, aquilo que abre uma ferida que palavra alguma poder selar. O que julgamos encontrar neste imemorial , tal como em Rostos, a figura de Lzaro:Lzaro abandonado pela morte, pela ressurreio e pela vida, Lzaro o que no pode morrer porque j morreu, o que no pode ressuscitar porque j ressuscitou, o que no pode viver porque j viveu, Lzaro expulso dos stios que um homem tem por definitivosDe Lzaro no h, na realidade, memria alguma Rui Nunes afirma, alis, que ele foi esquecido por Deus depois de ele o ter ressuscitado. E talvez seja este, por fim, o gesto da escrita de Rui Nunes: chegar sempre demasiado tarde a esta vida que no nos reconhece.