royer, sophie. buda - biografia

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OvaledoGangesnaépocadeBuda

NotasobreagrafiaeostextoscanônicosNo âmbito da literatura canônica budista, os nomes e os termos têm

várias transcrições diferentes e/ou um grande número de variações. Aautora deu preferência à versão do sânscrito, que émais conhecida dosleitoresocidentais.Damesmamaneira,para facilitar a leitura, as citaçõesdetextoscanônicosforamligeiramentemodificadasemalgumasocasiões.

PrólogoA intenção de retratar a vida de Buda de maneira realista pode ser

consideradaumdesatinopelosbudistas,porque,naverdade,aúnicacoisaque importa é o ensinamento “Daquele que Alcançou a Iluminação”.Masreconstituir a vida deBuda tambémé umdesa io para os pesquisadorescientí icos, já que os materiais históricos e arqueológicos disponíveis sãoescassosouestãosujeitosacontrovérsias.Frenteaestaconstataçãodupla,uma questão se coloca desde o início: qualquer biogra ia de Buda seriaequivalenteauma tentativaemvão.Emcomparaçãocomo interessequeexiste hoje pelo budismo – que se classi ica em quarto lugar na lista dasgrandes crençasmundiais –, aquilo que sabemos efetivamente a respeitoda vida de seu fundador histórico, nascido na Índia há cerca de 2,5 milanos, parecebempouco consistente: é possível praticamente resumir emuma frase o conjunto das informações estritamente históricas que temosdisponíveisarespeitodesuaexistência.Defato,asfontesquepermitemestabelecerumabiogra iadetalhadade

Budaencontram-se,emsuaquase totalidade,nasescriturascanônicasdobudismo. Esses textos formam umcorpus de amplitude considerável, quefoiescritoetraduzidoemdiversaslínguasporváriasgeraçõesdemongesàmedidaqueobudismofoiseexpandindopelaÁsia.TransmitidonoâmbitodaescolaTheravada,ouo“CaminhodosAntigos”,

ocânoneredigidonalínguapálifoiconservadonaíntegrapelosmongesdoSri Lanka e do Sudeste Asiático. O cânone páli é notável, tanto peladiversidade de seu conteúdo quanto por sua idade: oTipitaka, a “CoroaTripla”, é um texto que supostamente contém as palavras pronunciadaspelo Iluminado em pessoa, tal como foram tomadas por seus primeirosdiscípuloseregistradasporescritoporvoltadoséculoIa.C.O cânone redigido em sânscrito é, por sua vez, originário da tradição

Mahayana, ou o “Grande Veículo”, escola de budismo que pertence aoinício da era cristã. Ainda que incompleto, ele é igualmente rico emensinamentos a respeito do personagem de Buda, especialmente noMahavastu, o “Grande relato”, e mais ainda por todo o Lalitavistara, o“Desenvolvimento dos jogos”,muito popular. Infelizmente, quase todos ostextos se perderam em suas versões originais, às quais só temos acessopor meio de traduções tendenciosas em chinês e tibetano, estabelecidasquasedezséculosdepoisdamortedeBuda.Àmargemdasescriturascanônicas,citaremosoBudacharita,ou“Avida

de Buda”. Essa epopeia, de estilo hagiográ ico, foi redigida em sânscritopelofamosopoetaAshvaghosha,noséculoII.Essecorpus imenso foiredigidopelosprópriosbudistas,comoobjetivo

primordialde fornecerumtestemunhodasua féeglori icara lembrançadeseumestre,enãoderestituirosfatos.Fontesinesgotáveisdeinspiraçãopara pintores e escultores, esses materiais tradicionais ainda assimapresentam,aquieali,informaçõespreciosassobreavidadeBudaparaosbiógrafos.Mas,submetidasaumexameatento,elasemsuamaiorparteserevelam insatisfatórias. Apesar de vários episódios convergirem, asvariaçõessãomuitonumerosas–atédemais.Alémdisso,alendaeapoesiaandam sempre lado a lado com aquilo que é sobrenatural e simbólico. Oanacronismoérecorrente.Quantomaisseavançanaleituradessestextos,mais a análise racional vacila, o bom-senso se rebela e a esperança deconseguirrealmenteestabelecerfatosdiminui.Talvez o trabalho dos arqueólogos e dos epigra istas pudesse servir

para dar autenticidade a alguns vestígios do personagem histórico.Infelizmente, eles estão longe de serem capazes de responder a todas asperguntas – e muitas delas são objeto de polêmica. É necessário seentregar às evidências.Nãoexiste acontecimentoalgumnavidadeBuda,do modo como é narrada pela tradição budista, que possa ser tomadocomofatoconcreto;omaisfrequenteédescobrirqueaslendasconstituempor si sós a única certeza. Em resumo, a vida do Buda histórico é umaverdadeiraexistêncialendária.Nesse ínterim, como o indianista Hermann Oldenberg já ressaltava no

inal do século XIX, há mais uma questão fundamental a ser levada emconta:“Nãoexistenenhumabiogra iadeBudaquetenhasidoconservadadesde uma época muito antiga, a época dos textos sagrados em páli, epodemosdizercomtodaasegurançaqueelajamaisexistiu1*”.Aprópria ideiadeumrelatopreocupadocomorealismohistóricoé,de

fato,totalmentealheiaaessetempoe,maisainda,aessacultura.Ancoraravida de um indivíduo em um momento determinado, em uma situaçãoconcreta, jamaisocorreriaaumcontemporâneodeBudaouaumdeseussucessores.Diferentementedosgregosoudoschineses,osindianosnãoseinteressavampelotempoemqueviviam,nempelosacontecimentosqueomarcavam. Apaixonados por mitologia, iloso ia, gramática ou ciência, osindianos letrados deixaram imensos tratados cheios de sabedoria, masnenhum verdadeiro arquivo ou cronologia que possa esclarecer comprecisãoaoshistoriadoresdetalhesarespeitodebatalhas,dinastiasouos

grandes nomes da época. A Índia não deixou sua história por escrito. Aignorância da história, ou pelo menos um desinteresse manifesto emrelação a ela, chega a ser um dos traços fundamentais e paradoxais daabordagemprimáriadacivilizaçãoindiana.Portanto,éreveladorconstatarquesomenteapartirdaidentificaçãodoSnadrokottosdoshistoriadoresdeAlexandrecomaCandraguptaMauryadastradiçõesindianas,estabelecidaao im do século XVIII pelo estudioso britânico sir William Jones, foipossível instituir uma data precisa no meio da névoa da antiguidade dosubconscientequepudesseservirdereferênciacronológica.Assim, já que a biogra ia, por sua vez, é um exercício de caráter

eminentementeocidental–apesardenãoserexclusivodessasociedade–,comoentãoconciliarasduasabordagensparasercapazdeapreenderumpoucoquesejadoBudahistórico?Para seguir os passos do Iluminado, sem dúvida, a única alternativa é

tentar abrir mão do olhar ocidental e utilizar o ponto de vista de seusadeptos; ir e vir sem cessar entre a fronteira problemática que separa alenda da história; tanto caminhar ao lado dos discípulos do mestreespiritual – de onteme de hoje – quanto seguir os arqueólogos, ilólogos,historiadoresepensadoresdostemposmodernosquetentaramesclarecersua existência; aproximar-se de Buda pelos olhos de uns e também pormeio do olhar dos outros e vice-versa; oscilar constantemente entre asduas abordagens de mundo, crente e leiga, tradicional e moderna, ou,ainda,indianaeocidental–queparecemtãodiferentesemessência.Para ir ao encontro do Buda histórico, às vezes é necessário tomar

caminhos enviesados. Deixar-se perder um pouco. Porque essas trilhasjamais formarão um caminho único, irme e demarcado. A ausência decerteza dá a cada pessoa o direito de reconstruir sua própriarepresentaçãodeBuda.Nasentrelinhas.

*Asnotasbibliográficasestãoagrupadasnofinaldovolume,àpágina261.

NascimentoEm um dia sufocante devaisakha, imde abril ou talvez início demaio,

um palanquim avançava lentamente por uma estrada de terra batida.Envolvidoporumanuvemdepoeira,ocortejopareciadeslocadonavastaplanície que se perde nos contrafortes do Himalaia. As montanhascoroadasdeneveseternasparecembemlongínquasavistadasdali–longedemais,emtodocaso,paraesmagaraplaníciedesuaaltitudesoberana.Aoolharnadireçãodocéuabertoaonorte,erapossíveldistinguircontornosturvos e azulados no horizonte. Apesar do calor de primavera jáescaldante,aimensidãodocéueavegetaçãoabundanteeramumaespéciedeconviteparaimaginarquetudoépossível.A liteira, ricamente ornamentada, está rodeada por uma escolta

numerosadeserventesesoldados.Comoécontumaz,oLalitavistarapintaumquadro especialmente grandiosoda cena, onde se encontram “84milcarros com cavalos atrelados”, “84 mil carros carregados por elefantes,ornamentadoscomenfeitesdetodotipo”e“umexércitode84milsoldadoscom coragem heroica, belos e de boa constituição, bem armados comescudosecouraças1”.Outrosrelatos,porsuavez,dãopreferênciaàvisãoencantadadocortejosuntuoso,comumacarroçapesadapuxadaporbois.Então... seria uma charrete modesta, um palanquim ornamentado ou umcarrodebois fulgurante?Nãofazmuitadiferença.Paraonarrador, trata-se,emprimeirolugar,decativaropúblico.ArainhaMayaestáinstaladacomtodooconfortoemcimadealmofadas,

protegidadosraiosdosol.Seuscabelos têm“acordaabelhanegra”,mastambémsedizque“seurostoéclarocomoodiamante 2”.Elatemquarentaanos,idadejámuitoavançadaparadaràluzpelaprimeiravez...earainhaestágrávidade“dezmeseslunares 3”.Comoditaocostume,elasedirigeàcasadospaisparaoparto,emDevadaha,nolocalondeelamesmaveioaomundo.Mayanãoestápreocupada,asuairmãmaisnovaetodasasquevieram

antes estão lá para cuidar dela e a cidade de sua infância ica a apenascincoyojana de Kapilavastu, onde mora desde que se casou com o reiSudodana. Além disso, a estrada que leva a Devadaha é bem cuidada,algunsdizematéquefoipavimentadaespecialmenteparaestaocasião...Seisso é verdade ou não, o fato é que os trajetos menos frequentados sãocaóticoseperigosos.Há tantashistóriascirculandoa respeitodeembatesaterrorizantesqueàsvezesénecessáriolevarumelefante,umtigreouaté

umrinocerontepara seproteger.Apesarde fértil, a regiãoaindaémuitoselvagem, tirando algumas pequenas áreas habitadas e cultivadas. Apaisagemédominadapor lorestasdensascomespéciesvariadas,ondeaárvoresal se impõe – trata-se de uma árvore gigante que se ergue a atétrintametrosdealtura.Dasprofundezasúmidasesombreadas,devezemquando se ouve o grito conhecido do pavão. Uma imensidão de pássaroscortaoar,periquitosoumartins-pescadores.Portodososladosháriachos,pântanoserioscheiosdetartarugas,botosegaviais.Algumas horas depois de ter partido de Kapilavastu, o comboio chega

aos limitesdo jardimaprazíveldeLumbini, ondeMaya temo costumedefazerpasseios.Agoraqueosoljáanunciouseudeclínio,arainhaordenaaocortejo que pare, porque ela quer esticar um pouco as pernas. Roseiras,bambus,mangueirasetamarineiros, igueiras-dos-pagodescomfolhasqueparecemcoraçõese igueiras-de-bengalacomraízesexuberantes,alémdejasmins em lor, fazem de Lumbini uma parada deliciosa, protegida dosperigos que rondamos arredores selvagens.Diz-se até que é possível serefrescar com toda a tranquilidade em um laguinho de águas claras elímpidas. Depois de um banho relaxante, Maya passeia de arvoredo emarvoredo, passa de uma árvore a outra, avançando cada vez mais paradentro do bosque sombreado, “regado com água perfumada 4”, quesupostamenteseenchecomocantomelodiosodobulbul.A lua cheia já toma conta do céu, e ela se aproxima de uma árvore sal

magní ica – mas também pode ser umashoka majestoso, cujas loresalaranjadas, agrupadas em cachos redondos, são tão fragrantes nessaestação. Sempre exímio emmaravilhar sua audiência, oLalitavistara deupreferência,éclaro,à“maispreciosaentreasgrandesárvorespreciosas”,uma igueiraplakcha, “toda coberta de lores dos deuses e dos homens,que exalam perfumes dos mais suaves, com galhos nos quais estãosuspensas roupas de várias cores, que reluzem com o brilho variado dediversaspedraspreciosas, totalmenteornamentadacomtodo tipode joia,das raízes à copa, e também nos galhos e nas folhas, com ramos bemproporcionaiseestendidos,enterradaemumlocalqueécomoapalmadamão, coberto por um tapete de grama verde como o pescoço de umpavão5”.Sejasal, ashoka ouplakcha, as lendas se unem para dizer que Maya

pegou um galho da árvore com amão esquerda. Ela icou imóvel, gritouolhandoparaocéuqueseestendiaasua frenteequasede imediato,empé,deuà luz.Commaisprecisão, a criança saiude repentede seu lanco

direito, “sem feri-la6” em absoluto. Quando os deuses apareceram paraacolher o recém-nascido em seus braços, sessentamilapsaras formaramuma ileira de honra. Derramando-se da noite estrelada, dois generososjatosdeágua,umquenteeumfrio,purificaramamãeeacriança.Esse nascimento extraordinário não tem, no fundo, nada de realmente

surpreendente.Aconcepçãodacriançatambémfoimilagrosa,portersidoimaculada.Por ter feitovotodecastidadecomseumarido,o rei,Maya foifecundada em uma noite de lua cheia quando viu em sonho um enormeelefante branco “dotado de seis defesas” penetrá-la pelo lado direito.Duranteagestação,absolutamentemaravilhosa 7,acriança icouprotegidano seio de uma carapaça de pedras preciosas no ventre de Maya, ondeapenasumagotadeelixirfoisuficienteparaalimentá-la.Mal tinhanascido,obodisatva, tambémchamadodeo“Serprometidoà

Iluminação”, já tinhaplenocontroledesuas faculdades.Elesecolocouempé.Sobseuspés,umaimensa lordelótussurgiudaterra;porcimadesuacabeça,umguarda-solbrancoedoislindosmosquiteirosoacompanhavamcomoseele fosseumsoberano importante.Acriançaeradotadado“olhodivino que nada pode deter”. Graças a ele, a criança enxergou,instantaneamente,“tudoemsuatotalidade,areuniãodostrêsmilgrandessistemasdemilmundos,comsuascidades,seusvilarejos,suasprovíncias,suascapitaiseseusreinos,assimcomoosdeuseseoshomens”,tudocomose conhecesse “perfeitamente o pensamento e a conduta de todos osseres8”. O bodisatva deu então seus primeiros passos, sete para sermaisexato, e sob cadaumdelesapareceuespontaneamenteuma lorde lótus.Depois ele olhou, sucessivamente, em cada uma das seis direções douniverso – ou melhor, para os quatro pontos cardeais e também para aregião“inferior”ea “superior”9.Emseguida,eleapontoucomo indicadorpara o céu e pronunciou suas primeiras palavras. Esta é a cena, a maismemoráveldetodas,do“Rugidodoleão”:

Eusouomaiordestemundo, eu souomelhordestemundo, eu souomaisavançadodestemundo, este é o meu último nascimento; agora não haverá mais reencarnações em vidasfuturas.10

A partir de então, os relatos, que sãomais oumenos semelhantes em

relação ao teor desta declaração, competem entre si para ver qualconseguesermaiscriativoparadescreverain inidadedeprodígiosquesesucede. Em uma atmosfera serena e repentinamente luminosa, a terratremede“seismaneiras11”,aomesmotempoemqueumventosuavecomosedaseergue.“Osinstrumentosdemúsicadosdeusesedoshomens,sem

seremtocados12”, fazemcomqueuma sinfonia celestial se faça ouvir. Pósperfumados,guirlandasde lores,pérolaseornamentospreciososcaemdocéucomosefossemumachuva inaebenevolente.Oshomensderepentese livram de todas as suas a lições: paixão e ódio, ignorância e orgulho,tristezaedesânimo,medoeinvejadesaparecemdoscorações.

Ossofrimentosdosseresdoentesseacalmaram.Osseresacometidospela fomeepelasedeforam apaziguados. As pessoas inebriadas e prejudicadas pelos licores deixaram de icarembriagadas. A memória foi reencontrada pelos insensatos, a visão, obtida pelos cegos, aaudição, obtida pelos seres privados da audição. Aqueles cujos membros ou parte dosmembros e dos sentidos fossem imperfeitos ganharam órgãos sem imperfeições. Riquezasforamobtidaspelospobres; osprisioneiros foramsoltosde suas amarras [...].Amisériadosseres reduzidosàcondiçãodeanimaisquesedevoramunsaosoutrosassimcomo todososoutrosmalesforamapaziguados.13

No mesmo instante, vários seres privilegiados que teriam a sorte de

cruzaro caminhodobodisatvano futuroganharamvida: suaesposa, seucocheiroeseucavalo,assimcomodiversosgrandessoberanos.Durante sete dias, o universo todo celebrou o acontecimento. “Uma luz

como brilhode cemmil cores” iluminou “a reunião dos trêsmil grandessistemasdemilmundos”,tudoqueévivoseencheudealegria,asárvoresde todas as estações se cobriram de lores e de frutas, os homens“sentiram seus poros se arrepiarem de prazer! 14”. A comoção foi total,claro,masninguémdeviasesurpreender:“Quandoumbodisatvaqueestáem sua última existência nasce, e quando ele se reveste da qualidadeperfeitaecompleta,entãoessasmanifestaçõesdeseupodersobrenaturalsedão”,comoavisaoLalitavistara.Depois dessa chegada extraordinária aomundo, já não adiantavamais

para Maya seguir viagem até a morada de seus pais em Devadaha. Aslendassãounânimes.Arainhaeseu ilhodeixaramojardimdeLumbinieocortejotomouocaminhodevoltaparaacidadedeKapilavastu.

Lumbini,1896Apesar de a descoberta de Lumbini não rati icar a lenda, a ela não

faltamzonasdesombrasedeencenações...Primeiro de dezembro de 1896. Era um dia fresco e ensolarado. Alois

Führer atravessa a selva nepalesa a pé, acompanhado de várioscarregadores.Eleconsultaseurelógiodebolso:éumhomemapressadoepreciso,quenãotemtempoparapararemeditarperanteabelezadeumapaisagem.Dali a umahora nomáximo, se seus cálculos estiverem certos,ele chegará ao acampamento de base. O arqueólogo alemão está ansiosopara chegar a seu destino e começar as escavações. Ambicioso, ele querseroprimeiroadesvendarograndeenigmadonascimentodeBuda:ondeserá que se esconde Lumbini, no seio desta região imensa, chamada deTerai,queseestendedeumladoaooutrodafronteiraqueseparaaÍndiabritânicaeoreinodoNepal?Seráqueessejardimmaravilhoso,situadoemalgumpontoaonortedabaciadomédioGanges,realmenteexistiu?Seeleconseguisse encontrar seus vestígios, a descoberta teria tantarepercussão!De fato, os conhecimentos que os ocidentais tinham no inal do século

XIX sobre a vida de Buda, e mais amplamente sobre o budismo, erambastante confusos. Apesar de progressos imensos, lacunas importantespersistiam. O estudo do budismo, nascido de modo tardio no inal doséculo, no rastro da indologia, continua sendo uma disciplina bastantejovem: a própria palavra “budismo” nem existia um século antes noOcidente.FoiClementedeAlexandriaoprimeiroentreosantigosamencionar“um

talButa1”.ApartirdaIdadeMédia,osmissionáriosenviadosaoOrienteembusca do reino do Preste João, como dizia Guilherme de Rubrouck,começaram a coletar informações sobre Buda e sua religião; mas essesaber icou con inado às profundezas de suas bibliotecas eruditas: oestudonotável realizadopelo jesuítaHipólitoDesideri, no iníciodo séculoXVIII, sobre o budismo no Tibete, só foi descoberto no século XX – emoutraspalavras,tardedemaisparaserútil.OvenezianoMarcoPolotrouxedesuaviagemaoCeilãoumrelatobastantecompletosobreavidadosábio,mas,aindaassim,serianecessárioterconseguidoidenti icá-losobonomede“SargamonynBorcam2”...Emmeados do século XVIII, apesar de indícios encontrados aqui e ali,

Buda continuava sendo uma igura obscura para os europeus e mal se

fazia notar por meio de algumas obras raras. Na época, as teses maismalucas eram apresentadas com frequência. A Enciclopédia de Diderot edeAlembert a irmava a respeitode “BuddaouXekia” que “este chefedeseitaeraafricano,quefoieducadoemfilosofiaenosmistériosdosegípcios;queaguerraqueassolouoEgitooforçouasairdelá,eeleserefugioucomseus companheiros junto aos indianos; que ele se tomou por um outroHermes eporumnovo legislador, que ele ensinou aopovonão apenas adoutrinahieroglíficadosegípcios,mastambémsuadoutrinamisteriosa3”.No início do século XIX, as teorias imprudentes ainda eram as mais

disseminadas. A dos dois Budas era uma das mais em voga, defendidaparticularmentepelo(autoproclamado?)barãodeEkstein,umpersonagemcuriosoapelidadode “barãoBuda4”. Segundo os partidários dessa tese, oPrimeiroBudateriavividonoséculoXVIIIa.C.,eoSegundoBuda,noséculoVI.OutraspessoasoassimilavamaodeusnórdicoOdin,queteriamudadode nome. Em 1833, também era possível ler noDictionnaire de laconversationetde la lectureumartigosobre“Boudha”, “quenãodeveserconfundidocomBouddha”:esteeraapresentadocomo“ogêniodoplanetaMercúrio”.A conclusãoquepodemos tirarde tudo issoéque, emrelaçãoaotemadeBuda,osocidentaisimaginaramtudoemaisumpouco,cadaumporsuavezeduranteumperíodomuitoextenso.No entanto, no decorrer do século XIX, enquanto ainda havia

especulaçãoemtornodastesesmaismalucas,adescobertaacadêmicadobudismo e de seu fundador começava a alçar voo. Na sequência de umpan leto publicado em 1817, em que o termo “budismo” era usado paradesignara“religiãodeBouddon5”,apalavra“budismo”começouaocuparseulugarapartirdadécadade1820emartigoscientí icos,cadavezmaisnumerosos. Pouco a pouco, o horizonte enevoado dessaterra incognitacomeçoufinalmenteasedesanuviar!QuandoFührerempreendeusuasescavações,em1896,é inegávelque

passos gigantescos já tinham sido dados pelos estudiosos orientalistas.Entre as descobertas já estabelecidas, a origem indiana de Buda eraunanimidade. Apresentada por alguns eruditos isolados, essa informaçãoindispensável foi rati icada pelos pesquisadores cientí icos de maisdestaque da época, como por exemplo o britânico Brian Hodgson, emmeados do século XIX. Esse fato essencial estava longe de parecerevidência já de início: o desaparecimento do budismo em sua região deorigem, a diversidade das nomeações e das representações do sábio, avariedadedosrituais religiososobservadosnaÁsia,do JapãoaoCeilão, já

tinhamapagadotodasaspistashaviamuitotempo.Mas se era certeza que Buda era uma igura de origem indiana, os

pesquisadoresdaquele imdeséculotinhamquepreencherváriasoutraslacunas que diziam respeito a sua identidade, começando pela dimensãohistórica do fundador do budismo – uma questão capital que dividia osestudiosos.Paraalgunsdeles,Budanãopassadeummito,umpersonagemde lendas. Sua existência seriapura invenção, nascidada imaginaçãodosindianos, e os diversos relatos de seu nascimento eram apenas fábulas:não é verdade que o nome de sua mãe, Maya, signi ica “ilusão” emsânscrito? Esta é a tese do indianista francês Émile Sénart que, noprimeiríssimoestudocientí icoa respeitoda lendadeBuda,publicadonoJournalasiatique,em1873,associouavidado Iluminadoaomitodoheróisolarcomumnasmitologiasindo-europeias.Demaneiraoposta,poroutro lado,haviaquemcompartilhasseda ideia

deHermannOldenberg,segundoaqual,apesardocarátermíticodecertosaspectos da vida de Buda, os textos comportam “um cunho de realidadeterrestre6” que serve como testemunho da historicidade do personagem.Führer compartilhava a visão de seu compatriota. Empregado pelogoverno das províncias do Noroeste e de Oudh desde 1885 comoresponsávellocalpeloArchaeologicalSurvey[levantamentoarqueológico],ele queria apresentar a prova da existência de Buda por meio dalocalização de Lumbini. E ele tambémnão escondia o fato de que tinha odesejo de, com isso, associar seu nome à história nascente, mas jáprestigiosa,daarqueologiaindiana.Durante muito tempo, essa disciplina permaneceu como obra de

amadores. A arqueologia só foi aparecer o icialmente no seio da Índiabritânica em 1861, com a nomeação o icial de Alexander CunninghamcomooprimeiroArchaeologicalSurveyor.Suamissãoeraestabelecer,nemmais nemmenos, “uma descrição exata – ilustrada com plantasmedidas,desenhos ou fotogra ias e com cópias das inscrições – de todas as ruínasdignasdeinteresse,acompanhadasemprequepossíveldeumrelatosobreas tradições ligadas a elas7”. Esse projeto gigantesco até hoje não foicolocadoemprática.Apesardeoarqueólogoalemão terodireitode reivindicar suaposição

o icial,elenãoéoúnicocandidatoaoposto.Ummédicomilitarempregadocomo professor do Calcutta Medical College, o dr. Lawrence AustineWaddell, tambémen iounacabeçaqueseriaeleodescobridordo jardimondeofundadordobudismoteriavindoaomundo.Oo icialbritânicofazia

parte do clube restrito dos amadores versados na arqueologia budista etinha em sua lista de feitos várias descobertas que não são exatamenteinsigni icantes.Waddell passoumuitos anos dedicando todo o seu tempolivre ao passatempo; sem poupar esforços, ele percorreu milhares dequilômetrosemsuasbuscas.ComoaÍndiaévasta!Sobre o que esses dois concorrentes se apoiavam para orientar suas

prospecções? Infelizmente,malpodiamsebasearnos textosbudistasquetinhamsidotraduzidosatéentão.Asdescriçõesdofamosojardimqueelesprocuravam, principalmente as doLalitavistara, são feéricas demais. EapesardeLumbinisercitadonosantigostextospális,apenasasescriturascanônicasmais tardias, e portantomenos con iáveis, são prolí icas a esterespeito.Piorainda,acredita-seamplamentequeosrelatosbudistassirvampara

dar ainda mais crédito à tese daqueles que consideram Buda umpersonagemlendário...De fato,pormeiodasnarrativas,percebe-sequeavidadeBudaremontaaumperíodobastanteanterioraseunascimento:ostextosnão se contentamem retraçar sua vida, pormaismaravilhosaquetenha sido, mas retratam também, com detalhes, suas vidas anteriores,assimcomoascondiçõesparaseusrenascimentossucessivos.AtradiçãoMahayanacontaque,depoisdeinumeráveisvidasanteriores,

obodisatva reinava, antesde seuúltimonascimento, entreosdeusesnoscéus do Tusita, o reino dos “Satisfeitos”, onde um dia equivale aquatrocentos anos do nosso mundo. Conhecido pelo nome de Svetakatu,“Estandarte Branco”, ele teria, um certo dia, tomado a “Grande Decisão”:depoisdetertidoumavisãodetalhadadascondiçõesdeseurenascimento,ele teria decidido retornar à terra para uma última encarnação. Já atradição Theravada, no famosíssimo Jataka – “Vida” –, faz a descrição denadamenos do que 547 existências anteriores de Buda.Nesses textos, épossível encontrarumaououtra entre suasvidas edi icantes,nodecursodasquaiselepodetersidoladrão,mulhercasta,elefante,pássaroereidasgazelas, mas também deus dos macacos, asceta, pária e até mesmo umcrustáceo.Ao ler essas histórias, dúvidas logo se instalamno espírito dosocidentais–atémesmonospartidáriosenosmaisotimistasemrelaçãoàhistoricidadedopersonagem.Assim, lendário ou não, como que para confundir aindamais as pistas,

nem o tradicional “era uma vez” serve para descrever o nascimento deBuda. O personagem ilustre tem biogra ias múltiplas e anteriores a seunascimento em Lumbini. Este seria apenas um nascimento predestinado,

fruto de um longo processo em virtude da crença indiana datransmigração das almas, o misterioso samsara que já assombrava tantoNovalis...Nesse ínterim, nossos dois pesquisadores europeus felizmente

dispunhamdeoutrasfontesdeinformação.FührereWaddellpuderamsebasearnostestemunhosdosperegrinoschinesesquepercorreramaÍndiabudista:Lumbini foivisitadoporFaHianem403,depoisporHuanTsangem636.Osrelatosfascinantesqueeles izeramarespeitodesuasviagens,traduzidos e publicados na Europa já fazia alguns anos, contêminformações preciosas para possibilitar a localização do lugar. Além defornecer coordenadas geográ icas indispensáveis para situar a região do“Lunmin”, segundoa transcriçãodeFaHian, elesapresentamum indício-chave que poderia permitir a identi icação precisa desse “pedaço deparaíso sobre a terra 8”: a presença no local de uma coluna erguida porAshokanoséculo III.À frentedomaior impérioquea Índia jáviu,aquelequeéconsideradooprimeirosoberanobudistadahistóriateriafeitoumaperegrinação ao local denascimentodeBuda.Ali, o piedosoAshoka teriamandado erguer especialmente uma estela para homenagear amemóriadoBem-Aventurado.Ochefedo impérioMaurya, convertidoaobudismooitoanosdepoisde

sua ascensão ao trono, mandou colocar em exposição dezenas de textosgravadosempedra,emdiversaslínguas,espalhadosportodooseuimensoterritório.Comointuitotantodecelebraropoderdosmauryasquantodedivulgar os novos valores espirituais emorais do soberano perante seussúditos, os éditos de Ashoka “constituem os documentos escritos maisantigos de caráter histórico que chegaram até nós 9” da Índia antiga. Noinal do século XIX, um certo número deles já tinha sido descoberto edesvendado pelos epigra istas. O grande conquistador, que formou seuimpérionapontadaespada,apresenta-secomoobenfeitordoshomensedosanimais,umimperadorquepregapaci ismoetolerância,compaixãoeperdão.Maisumavez,édifícildesvencilharomitoearealidade!EmrelaçãoaopilardeLumbini,HuanTsangdetalhaqueeleéenfeitado

com um motivo equestre e que foi quebrado em dois pedaços “peloestratagema de um dragão malé ico 10”, de acordo com a terminologiaimaginada pelos chineses para descrever um raio. Os relatos de viagemchineses especi icam também que estupas teriam sido erguidas nasproximidadesdapilastra.Munidos de indícios preciosos como esses, os dois rivais passaram um

bomtempopeneirandoaspistasatéchegaremaoTerai.Aregiãoéampla,eeles inicialmentederammaisatençãoaoTerai indiano,porcomodidade.O ladoda Índiaeramenos selvagem, tinhaacessomais fácil e, sobretudo,não exigia autorização o icial para ser explorado. Mas, ao utilizar oprocedimento de eliminação e entrevistando as populações locais, nossosdois aventureiros pouco a pouco foram se rendendo às evidências: todososindíciosconvergiamparaoTerainepalês,dooutroladodafronteira.Em 1893, ao retornar de uma expedição de caça na selva, um o icial

nepalês anunciou a presença de um antigo pilar de pedra gravada pertodo vilarejo deNigliva. A descoberta domajor Singh teve o efeito de umabomba.ParaatenderaopedidourgentedoBritishRaj,ogovernonepalêsautorizouFühreraatravessarafronteiraparaestudá-lo.Àprimeiravista,o vestígio de Nigliva era exatamente um édito de Ashoka. Infelizmente,quando a tradução do texto foi inalizada, dois anos depois, constatou-seque não se tratava da peça que Führer buscava. Apesar da decepção, oacontecimentoserviuparareforçarasesperançasdosdoisarqueólogosdelogo encontrar o édito de Lumbini, como tinha sido descrito pelosperegrinoschineses.Abrilde1896.AbolaagoraestavanocampodeWaddell.Obritânicofoi

o primeiro a compreender que o pilar deNigliva correspondia a um doslocais visitados por Huan Tsang: ele indicaria com muita exatidão alocalização da estupa de Kanakamuni. A partir disso, bastava seguir comatençãoorelatodasperegrinaçõesdomongechinêsnaregiãoparasituarLumbini. A partir das indicações deixadas por Huan Tsang, Waddellchegou à seguinte conclusão: o jardim sagrado icava muito próximo deNigliva;opilardeLumbinideviaestarescondidoemalgumpontodaselvanepalesa,provavelmentenadireçãodonoroeste,apoucosquilômetrosdedistância da estrutura examinada por Führer. Waddell resolveu nãoinformar ao outro suas conclusões, porque ele não queria lhe facilitar atarefa.Paradizeraverdade,elenãotinhaFühreremmuitaaltaconta.Alémda

disputa entre os dois homens, a falta de fair play da parte do alemãodeixavaobritânicochocado.NaocasiãodadescobertadopilardeNigliva,oo icial entraraemcontato comelediversasvezesparaobter informaçõessobre a inscrição, mas Führer nunca lhe retornou. Decidido a tirar omáximo de crédito possível do arqueólogo titular, Waddell escreveu àAsiatic Society para observar que a importância do pilar de Nigliva ia“muitoalémdasimplesinscrição,porqueforneceindícioprecisoarespeito

do local do nascimento de Buda11”. Ele icou surpreso com o fato de“ninguém”terpercebidoissoantesdele...Suacartafoidevolvidacomumanota informando que ele deveria esperar meses para receber umaresposta. Decepcionado com a falta de pressa, Waddell levou a públicosuas deduções ao publicar um artigo noCalcutta Englishman, intitulado“Onde icaolocaldenascimentodeBuda?”.Depoisdefornecerosindíciosnecessários para localizar Lumbini, ele conclui o texto declarando que osingleses estão às vésperas de “uma das descobertas arqueológicasindianas mais importantes do século” e que o governo deveria “tomarmedidasrápidas12”.Republicadopor todosos jornaisde língua inglesadoimpério,oartigodoarqueólogoamadorcausoumuitaagitação,apontodeogovernodeBengalalogolhefazerumapropostaatraente: inanciarsuasescavações nos arredores de Nigliva durante seis semanas. O governonepalês rapidamente lhe enviou a autorização, e Waddell, bem feliz,começouaarrumarasmalasparaaexpedição...Emumgolpedemásorte,o IndianMedical Service recusou-se a lhe dar uma licença especial paraqueseafastasse.Poucodepoisdisso,enquantofaziaoquepodiaparaconseguiralicença,

Waddell icou sabendo que o governo indiano acabara de nomear AloisFührercomodiretordaexploração.Uma vez que o arqueólogo amador do budismo foi descartado, o

caminho icou livreparaFührer.Elepreferiuesperarpelo imdamonçãopara iniciar as escavações no Terai nepalês. Lamacenta e infestada demosquitos,aregiãotemafamadeserparticularmenteinsalubreduranteatemporadadechuvas,quandoaterrível“febredoTerai”grassa.Aestaçãodoinvernoédelongeamelhorparaexploraraselva.No inal de novembro de 1896, sob sol radiante e céu sem nuvens,

Führer inalmentedeixousuaresidênciaemLucknow.Tomouotrematéafronteira com o Nepal e então chegou à região de Nigliva, que já tinhavisitado em 1893. Ele tinha encontro marcado com o governador dodistrito, o general Khadga Shamsher Jang Rana, que as autoridadesnepalesashaviamdesignadocomoseuassistenteo icial.Seuacampamentoestava instalado a vinte quilômetros de Nigliva, e ele providenciou paracolocar seus homens à disposição do alemão. Depois de dois dias decaminhada cansativa pela selva, Führer, acompanhado de seuscarregadores, inalmentechegouaolocaldoencontronatardedodia1 odedezembro,masogeneralnãoestavapresentepararecebê-lo.Enquantooarqueólogo fumegava de raiva, um soldado chegou com umamensagem:

Shamsher o convidava para se juntar a ele imediatamente, nasproximidadesdovilarejodeRummindei, onde tinha feitoumadescobertasensacional...O general nepalês tinha recebido naquele mesmo dia uma carta de

Waddell, transmitida pelo British Resident de Katmandu, sugerindo quefosse procurar o pilar de Lumbini ao lado desse vilarejo. Sem esperarpelasinstruçõesdeFührer,elelogosedirigiuparaRummindei.Osmoradoreslocaiscon irmaramaexistênciadeumaantigapedracom

inscrições ilegíveis que se encontrava no meio da loresta, perto de umpequeno templo. Um senhor de idade avançada até lhe contou como apedratinhasidoencontradaporacaso,faziamuitotempo,poraldeõesquecortavam lenha na loresta. “Ah, sim, podemos levá-lo até láimediatamente!” O britânico Duncan Ricketts, que morava a algunsquilômetros do vilarejo, uniu-se então à equipe. Administrador de umapropriedade agrícola, ele também conhecia o local e era apaixonado peloassunto. Dez anos antes, tinha até chegado a submeter uma cópia dainscrição do pilar a um arqueólogo amador da região,mas ele não tinhaconseguidodecifraraquela“estranhaescritamedieval13”!Depoisdeumacaminhadacurtapelobosque,opequenogrupochegoua

seudestino,nolocalemqueumpilardepedrasurgiadosoloeseelevavaamais de trêsmetros de altura. Sua base, que parecia estar quase todaen iada na terra, deixava aparecer algumas inscrições. O topo tinhadesaparecido...comosetivessesidoquebradoporumraio.Asondulaçõesdoterrenoaoredorlembravamdolmens,maspodiamrevelarestupasemruínas. Logo depois de escrever o bilhete a Führer, o general nepalêsordenouaseusescavadoresquedesenterrassemacoluna...Quando o arqueólogo alemão chegou, sem fôlego, o trabalho ainda não

estava terminado. Assim que avistou o pilar, seu coração deu um saltodentro do peito. De imediato sentiu que aquele era mesmo o pilar deLumbini. Sua intuição logo se con irmou. Totalmente desenterrado, omonólito de pedra tinha seis metros e meio de altura. Era possíveldistinguir nele uma inscrição de cinco linhas perfeitamente preservada,redigida em escrita brâmane. Fiel à vontade de Ashoka, de que suasinscrições fossem sempre inteligíveis às populações locais, o texto eracompostonalinguagemmaghadie,misturadacompalavrasquepertencemaodialetodaregião.DepoisdoanúnciodadescobertadopilardeLumbininojornalTimesde

28 de dezembro, uma tradução em inglês da inscrição misteriosa, que

permaneceutantotempoignorada,foipublicadaemfevereirode1897noboletimdaRoyalAsiaticSociety:

OreiPiyadasi,queridodosdeuses,vinteanosdepoisdesuaconsagração,veiopessoalmenteaestelocalparaprestarhomenagemedisse:“AquinasceuoBudaSakyamuni”.Elemandouconstruir ummuro de pedra, fez erguer uma coluna de pedra e declarou: “Aqui nasceu oVenerado”.

A terceira frase, mais di ícil, foi traduzida um pouco mais tarde, nos

seguintestermos:“ComooFelizardonasceuaqui,ovilarejodeLumminifoiliberado dos impostos, e classi icado em um oitavo14”. A proximidade de“Lummini” e Lumbini não representava nenhuma di iculdade. Já emrelação à identi icação entre “Piyadasi” e Ashoka, ela já tinha sidocon irmada desde a década de 1830 por James Prinsep, o secretárioeminentedaAsiaticSociety.Alguns meses depois, a descoberta de um baixo-relevo no pequeno

templosituadonasproximidadesveioacon irmara identi icaçãodo local.Datado aproximadamente do século II a.C., ele representa uma mulherdando à luz uma criança, em pé, segurando um galho de árvore.Consideradaumadeusahindu,elapareciaserveneradapelosmoradoresda região sob o nome de “Rummin” desde tempos imemoriais... Todas asprovas estavam, assim, reunidas. Os orientalistas, e também os budistas,aplaudiramadescobertafundamental.GraçasaopilardeAshoka,ojardimmítico de Lumbini, cuja lenda se perpetuava na memória havia séculos,tornara-serealidade.AloisFührersaboreousuavitóriasozinho.Oespíritocolonialprivilegiava

o“Sahib”emtodasascircunstâncias,assimconcedendotodasashonrasdadescobertasensacionalaoarqueólogoalemão,deixandoogeneralnepalêsde lado. Führer icou satisfeito com o “esquecimento” de Shamsher. Decaráternadaescrupuloso(voltaremosacruzarocaminhodelenaquestãodas relíquias de Buda), o alemão também fez questão de negligenciar acontribuiçãodeWaddellporserviçosprestados.Quando icousabendodoselogios feitos a Führer no boletim da Royal Asiatic Society, o o icial seamargurou. Enviou uma carta de reclamação à prestigiosa instituição,insistindo na “leviandade característica15” do arqueólogo em relação aosoutros protagonistas da descoberta. Desolado, Waddell abandonou suasbuscas arqueológicas sobre a vida de Buda e se voltou para outroshorizontes:assimcomoKim,oheróideRudyardKipling, tornou-seagentesecreto a serviço doBigGame conduzido pelos britânicos nos con ins daÍndia. Depois de não ter conseguido chegar a Lhasa a pé, disfarçado de

peregrino, ele participaria, em 1904, da expedição militar britânica aoTibete. Publicada no ano seguinte, sua obra,Lhasa e seus mistérios,finalmentelhetrariaanotoriedadecomaqualsonhava.MasvamosretornaraoéditodeLumbini,cujadescobertafezlevantara

cortina de névoa que cobria até então a igura de Buda. Naquele im doséculo XIX, um passo capital tinha sido dado: a coluna atestava não só aexistência do famoso jardim de Lumbini, mas também, e sobretudo, porextensão con irmava a historicidade de Buda. O testemunho de Ashoka(que,calcula-se,tenhasidoredigidoporvoltade245a.C.)dáautenticidadeao nascimento do sábio e obriga os mais céticos a reconhecerem aevidência.Ainda assim, essa descoberta de peso está longe de colocar im às

discussões.Mesmoque todososespecialistasadmitissemagoraqueBudarealmente existiu, uma nova questão logo surgiu: a datação da existênciado personagem histórico. Com base em recortes complexos efetuados apartir de indicações deixadas por historiadores gregos e chineses, ascrônicas cingalesas e os éditos de Ashoka, a maior parte dos indianistasconsidera que Buda nasceu por volta de meados do século VI a.C.:geralmente,tomamosoano563comoadatadeseunascimento.Comonãoháprovadireta algumaquepermita con irmar adatação, ela é vista comcautela; diversos especialistas a questionam amplamente, até hoje.Voltaremos ao assunto da eterna discordância dos especialistas emmaisdetalhesquandofalarmosdamortedomestre.Para inalizar aparte sobreadescobertadeLumbini, é surpreendente

constatarqueaquestãorespondidapelaciênciadofinaldoséculoXIXjásecolocavanaÍndiaantiga:

AexistênciadoBudaécomprovada?–Nagasena,vocêviuoBuda?–Não.–Osseusmestresoviram?–Não.–EntãooBudanãoexistiu.–Vocêviu,órei,orioUhânoHimalaia?–Não.–Seupaioviu?–Não.–EntãoorioUhânãoexiste!–Sim,existe,apesardenemmeupainemeuotermosvisto.AmesmacoisapodeserditaarespeitodoBuda.16

Esta é a informação que nos dá oMilinda-Pañha, famoso texto budista

quefazasvezesdemanualdeconversãoequeseapresentasobaformadediálogosentreomongeNagasenaeomonarcaMilinda–queviveunoséculo II a.C. Seu reino se estendia pelo norte do Punjab, no sopé dascristas nevadas da Caxemira.Mais conhecido noOcidente sob o nomedeMenandro I, esse rei indo-grego, que teria feito a conversão ao budismo,era descendente dos macedônios que acompanharam Alexandre, oGrande. Será que isso explicaria o caráter estranhamente “ocidental” emrelaçãoasuaperguntarelativaàprovadaexistênciadeBuda?SónossobraarespostadadapelomongeNagasena,confrontadocomas

“dúvidas da raposa17” de Milinda, bem diferente da dos pesquisadorescientí icos europeus. Indiferente à materialidade da prova, suademonstração,queprocedeporanalogia,temcaráterbemindiano.

CriaçãoSete dias depois da partida, o retorno do cortejo a Kapilavastu, uma

grande cidade “excelente entre as excelentes 1”, aconteceu com grandepompa e circunstância: Maya era ninguém menos do que a primeiraesposa do rei Sudodana, “Alimento Puro”, o chefe do clã dos sakyas. E,acimadetudo,acriançaqueelatinhaacabadodedaràluzeranaépocaoúnicoherdeirodotrono.Na capital “próspera, feliz e lorescente 2”, localizada à beira do rio, a

novidade logo se espalhou. Os moradores não pouparam esforços parareceber a rainha e o pequeno príncipe com grandes honrarias: todas asruas que conduziam ao palácio real tinham sido limpas, decoradas elivradas de todos “aqueles que não são de bom agouro 3”: doentes,enfermos, zarolhos, corcundas... Ao mesmo tempo em que faixas,guirlandas e estandartes de cores vivas se desfraldavam nos portões dacidade e decoravam as fachadas das casas, lores frescas e vistosascobriamasruas.Quando a carroça real, puxada com a ajuda de uma “guirlanda de

pérolas”por “vintemilApsaras”, inalmenteentrounacidadedos sakyas,“cincomilmoçasagitaramlequesdepenasdepavãoreluzentesecincomilmoçascarregandovasosdeourocheiosdeáguaperfumada 4”molharamochão à frente dele. OLalitavistara informa ainda que “vintemil elefantes,enfeitados com todososornamentos”, e “vintemil cavalos, todos cobertosdeadornosdeouro”,tambémabriramcaminhoparaocortejo.Portodososlados,opovoseapressaparaver“anatadosseres”,segundoaexpressãodoMahavastu.Nomomentoemqueocortejopassa,cadapessoasecolocasolenemente“nobatentedaportadeentradadacasa,comasmãosunidas,ocorpoinclinadoecheioderespeito5”.Levado para o palácio como o bemmais precioso domundo, o recém-

nascidofoiapresentadoaseupai,orajáSudodana,quenãoescondeusuafelicidade. Mas os anciões da corte o lembraram de suas obrigações...Seguidoporumamultidãodeo iciaisedesúditosaindaemmaiornúmero,Sudodana logo levou o ilho ao templo para prestar homenagem àsdivindades. Observando escrupulosamente os rituais apropriados dossakyas, o rei e a criançaprimeiro se voltarampara a deusa protetora doclã,denominadadeAbhaya,“semmedo”.Foientãoqueummilagresedeu.Porserpoucocomum,deixouaaudiênciaenormementeimpressionada.Oboatoseespalhoue,commuitarapidez,todososhabitantesdeKapilavastu

foram informados do acontecimento incrível: em vez de aceitar ahomenagem que lhes era prestada, todas as imagens das deidades seergueram...eseprostraramaospésdacriança!Osrituaisdenascimentonãopararamporaí.Depoisdavisitaaotemplo,

era necessário consultar os adivinhos em relação ao futuro do jovempríncipe.Assim, osoitomelhores astrólogos foramconvocados aopalácio,ondedeveriamproceder ao exame atentoda criança, embuscade sinaiscorporaisquepermitiriamestabeleceraprevisãodeseudestino.Doreiaomais humilde de seus servos, todomundo desejava ardentemente que ofuturo do príncipe fosse radiante: isso signi icaria um futuro feliz paraKapilavastu.Os sinais ísicos que permitem identi icar umMahapurusha, o “Grande

Homem”, foram todos listados, numerados, classi icados e descritos commuito cuidado em relação à precisão em um catálogo de referência.Durante horas, a criança permaneceu impassível, sendo examinada dacabeça aos pés pelos oito adivinhos que, com a lista em riste, buscavamminuciosamenteas32marcasessenciais:crâniobemarredondado,cabeloescuroecacheado,testalargaelisa,tufodepelos“comobrilhodaneveedaprata”entreassobrancelhas,olhosescuros,“quarentadentes”brancose regulares, língua delgada e comprida, “mandíbula de leão”, costasrobustas,pelefinaemtomdourado,“braçoslongosatéosjoelhos”6...Terminadooprimeiroexame,osespecialistaslogorepetiramainspeção

no sentido oposto: pés estáveis, arcos das plantas dos pés que revelamduasrodas,“bonitas, luminosas,brancas,commilraiosearoseumarodacentral7”, dedos dos pés e das mãos “unidos por uma membrana até aprimeira falange”, tornozelos altos, calcanhares grandes, dedos longos,pernas “de gazela”, coxas arredondadas, “parte pubiana escondida emuma cavidade8”, pelos encurvados “para a direita”, tamanho igual ao docauledeumafigueira...Os oitenta sinais secundários também foram veri icados

escrupulosamente,umaum:“número40:eletemaposturaheroicadeumleão; número41: ele temaposturaheroicadeum touro; número42: eletemaposturaheroicadeumganso9”...No imdessa inspeção interminável,osoitoadivinhossereunirampara

conversarsobreoqueanunciariamaosoberano.Acriança tinha todosossinaiseossubsinaisdo“GrandeHomem”:nãohaviadúvidaalgumadequeo ilho do rei levaria vida excepcional!Mas que vida? Segundo umdeles,chamado Kondana, o pequeno príncipe só podia estar destinado a se

transformaremumIluminadoperfeitoecompleto,umBuda.Seuscolegasmaisprudentesrejeitaramaa irmaçãocategórica,queatribuíramàpoucaidadedeKondana.Elespreferiramadotarumaposiçãomenoscategórica...Eles então se apresentaram com toda a cerimônia perante o rei

Sudodanaparaanunciar-lhesuasconclusões:seufilhoiriasetornarouummonarca todo-poderoso e universal, quer dizer, um Cakravartin, ou iriaabandonartudoparaseguirocaminhodoascetismoeassimiriasetornarumgrandemestreespiritualpossuidordoconhecimentomáximo,ouseja,seriaumBuda.Depoisderefletir,orajáchegouàconclusãodequeaprevisãoduplados

homens da arte não o tinha deixado plenamente satisfeito. Será que elesnãopodiamsedecidirentreduasconjecturas tãodiferentes?Seráqueosastrólogos, que aliás eram sustentados generosamente pela corte, nãoestariamtentandoagradá-lodemaneirainsidiosaaoa irmarqueseu ilhoseriaumsoberanoforadocomum?Eseo ilhoumdiadeixasseopalácio,quemseriaseusucessor?ÉaíqueosábioAsitaaparece.Eletinhasidoograndesacerdotenacorte

do pai de Sudodana. Apesar da idade muito avançada, ainda não tinhaperdidonadadesuas “cinco faculdadessobrenaturais 10”...Depoisde icarsabendodonascimento do bodisatva graças a seupoder visionário, Asitadesceu de seu retiro no Himalaia ou, melhor ainda, voou pelos ares atéKapilavastu – não havia nada de mais banal para um grande santo...Segurando em uma aba de seu xale, seu discípulo e sobrinho Nalakatambém empreendeu a viagem. Logo que chegou à corte de Kapilavastu,Asita não demonstrou nenhuma hesitação ao examinar a criança, queagora estava com três dias: “Entre toda a raça bípede, ele é único 11!”, eleexclamou, no ápice da alegria. Diante dos sakyas reunidos, o velho sábiofez o anúncio profético de que chegaria o dia em que o príncipe iria setransformaremumBudaperfeito.Chorandodevidoasuaprópriavelhice,que não lhe permitiria assistir ao acontecimento, ele recomendou a seujovem sobrinho que estivesse pronto para se juntar àquele que seriachamadodeoIluminadoparasebeneficiardeseusensinamentos.AgorajátinhamsepassadodoisdiasdepoisdaprevisãodovelhoAsita.

Chegara omomentoda cerimônia dedar o nome à criança. Empresençade todosossacerdotesdacorte,Sudodana lhedeuoprenomedeSidarta,ou “aquelequealcança seuobjetivo”.Apartirdessedia, opríncipeentãopassaria a ser chamado de Sidarta Gautama, por causa do nome dalinhagemdosGautama,daqualseupaifaziaparte.

A alegria provocada no coração de cada um por esse nascimentoexcepcional foi então ofuscada pelo estado de saúde de Maya, quede inhavadiaapósdia.Depoisdesetelongosdiasdecama,semreclamar,amãedobodisatva inalmenteabandonouomundo terrestre.Aspessoasse consolaram com o fato de que ela, sem dúvida, não tinha mais papelalgum a desempenhar entre os homens depois daquele parto. Sidarta foientãocon iadoaoscuidadosdasegundaesposadorei,Mahapajapati,queera, aliás, a irmãmais nova da rainha. Apesar de também ter dado à luzummenino havia pouco tempo, ela aceitou a responsabilidade de criar opequenoSidartacomumamisturadealegriaegravidade.Felizmente,elanão estava sozinha para assumir aquele dever tão pesado. De maneirareconfortante, oLalitavistara especi ica que “32 amas de leite foramescolhidasparaservirobodisatva.Oitoamasde leiteparacarregá-lonosbraços, oito para amamentá-lo, oito para lavá-lo e oito para brincar comele12”.Sossegada, agradável, protegida das realidades do mundo externo, a

infância de Sidarta se passou sem percalços... ou quase. Durante osprimeiros anos, Mahapajapati passava o tempo todo cuidando dele. Paraisso,elaentregouomeio-irmãodele,Nanda,aoscuidadosdeumaamadeleite, e o mesmo iria acontecer com os outros ilhos que ela teria deSudodana. Comoo rei alimentava em segredo a esperançade que o ilhomais velho fosse seu sucessor, ordenou a seus súditos que seencarregassemde inundar a criançadenovosprazeres todos os dias, demodoquesetornassecadavezmaisapegadaàvidadesoberano.De acordo com as escrituras pális, o próprio Buda posteriormente

lembrariadesuainfânciadouradadaseguinteforma:

Euvivianore inamento,nomaiorre inamentopossível,ore inamentosupremo.Lagoscheiosdelótuseramconstruídosapenasparamim,nopaláciodemeupai.Emumdeles loresciamlótus azuis, em outro, brancos, vermelhos emum terceiro. Eu só usavamadeira de sândaloque viesse de Benares. Meu turbante, minha túnica, minhas roupas de baixo, minha capa,tudoeraconfeccionadoemBenares.Diaenoite,umguarda-solbrancosedeslocavasobreaminha cabeça, para que eu não sentisse nem frio nem calor, nem a poeira nem a garoapudessemmeincomodar13.

Apartirdosseteanos,Sidartarecebeuaeducaçãocorrespondenteasuaposição,oumelhor,asuacasta,queeraadosguerreirosnobres.Anoapósano,elefoiiniciadonas“64artes14”pelosmelhorespreceptores.Duranteaprimeira infância, o bodisatva já tinha surpreendido suas amas de leitecom suas capacidades precoces. É necessário destacar que, para grandesatisfação do pai, o menino rapidamente se tornou exímio em todas as

disciplinas: artes marciais, manejo do sabre e da espada, tiro de arco elecha, equitação e natação, além de pintura, música, canto, dança...Conduzir uma charrete oudomar umelefante erampara ele brincadeiradecriança,assimcomoaescritaeocálculo.SegundooLalitavistara, aliás,Sidarta se destacava em todas as artes possíveis e imagináveis, da“explicação dos sonhos” à “linguagem dos pássaros”, do “trançar dasmechas de cabelo” até a “disposição das guirlandas15”! Sua presençafrequentenasreuniõesdoconselhopresididasporseupaipermitiuaelefamiliarizar-secomagestãodosnegóciosdoreino;oprotocoloeaetiquetadacortelogodeixaramdetersegredosparaele.Nadadissoimpediaqueojovem príncipe encontrasse tempo para brincar com os meninos de suaidadeedesuaclasse.Elepassavahorascheiasdedespreocupaçãocomomeio-irmãoNanda, jogandobola,brincandodemacaco,fazendoadivinhas,jogandodadosexadrezcomoitooudezcasas...No entanto, à medida que Sidarta crescia e adquiria com brio as

qualidadesdeumnobreguerreiro,oreiSudodanafoi icandopreocupado.Devezemquando,ojovempríncipeassumiaumaralheio,sonhador,comose estivesse absorto em si mesmo. Será que ele se sentia atraído pelaintrospecção?Oreiaindanãosabia,mastinharazão.Sempretemerosodequeo ilhotomasseorumoprevistopelosábioAsita,decidiuprovidenciarseu casamento quando chegou aos dezesseis anos. Sudodana preferiuacreditarque,depoisdese tornaramanteepai, seu ilhocertamentenãoiriadesejarabandonartudo!Convidadas a se apresentar ao palácio para que Sidarta pudesse

escolherentreelasumaesposa,asprincesasvieramdetodososcantosdopaís. Apesar de a perspectiva de se casar não o atrair nem um pouco, oilhodoreisabiaquedeviasedobraraodesejodopai.Durantehoras,aspretendentes seapresentaramao rapaz semsuscitaramenor reação...E,então,aúltimamoçaapareceu.“Nãomuitogrande,nãomuitopequena,nãomuitogorda,nãomuitomagra,nãomuitoclara,nãomuitoescura 16”,elasechamavaYasodaraetinhanascidoexatamentenomesmodiaqueele.Só restava efetivar o casamento... Mas o pai de Yasodara, o sakya

Dandapani, logo exprimiu suas dúvidas em relação à valentia de Sidartaque,segundoboatos,teriasidocriadoemmeioaoluxoeaoóciototais.Eleexigiuqueorapazdesseprovasdesuacoragemedesuaforça.Sudodanarapidamente organizouum torneio. Convidou todos os jovensnobres quesedistinguiamnasartesdaguerraparaqueviessemenfrentaropríncipe.Con iante nas capacidades do ilho, propôs que a bela Yasodara fosse o

prêmiodavitória...Sete dias depois, quinhentos jovens sakyas dirigiram-se para o amplo

terrenodoladodeforadasmuralhasdeKapilavastu,ondedeveriasedara competição.Na frentedeles,marchava altivoDevadatta, bemconhecidoporseuorgulho.Quandosepreparavaparaatravessaroportãodacidade,orapazreparouemumgrandeelefantebranco.Desejosodemostrarsemdemora que era o mais forte entre todos os sakyas, Devadatta pegou oanimalpelatrombaeomatou“comapalmadamãodireita,comumúnicogolpe17”. Quando o bodisatva chegou a bordo de sua carruagem algunsinstantes depois, condenou o ato odioso de Devadatta. “Depois de terpegadooelefantepelacaudacomumdedãodopé18”, opríncipe lançouocadáver para bem longe de Kapilavastu, de modo que seu odor nãoincomodasseosmoradores.Todosqueassistiramàcena icaramtomadosdeadmiraçãopelaforçaextraordináriadeSidarta!Duranteo torneio,opríncipeconquistouamoçademaneira triunfalao

superar todos os outros participantes. A audiência iria lembrar durantemuito tempo que Sidarta tinha vencido a prova de tiro com o uso de umarco formidável, herdado de seus ancestrais, que ninguém jamaisconseguiraerguer!Aosolhosdetodosossakyas,jánãohaviamaisdúvidade que o rapaz era “um nobre de grande beleza, capaz de conduzir umexércitodehomensouumatropadeelefantes19”.Depoisdecasado,Sidartadescobriuasensualidade.Todososdias,elese

dedicava comvolúpia aos “cinco prazeres dos sentidos 20” e às delícias dogineceu: “Eu tinha três palácios: um para o inverno, um para a estaçãoquente,umparaasmonções.Nopaláciodaestaçãodaschuvas,menestréisme distraíam sem que houvesse um só homem entre eles 21”, Buda selembraria.E completaria: “Na casademeupai, os servos, osourives eosmembrosdaminhacomitivacomiamarrozbrancoecarne”,aopassoqueem outras partes só eram alimentados com “pratos de arroz quebrado esopa de lentilhas22”. Na corte de Sudodana, a vida era agradável e doceparatodos...Enãoéverdadequeaabundânciaéamarcadafelicidade?Como tanto desejava o rei, Sidarta parecia se apegar duplamente à

condição de príncipe, com suas distrações e seus prazeres semprerenovados.Duranteanos,parecequenadaincomodaopassardosdias,tãoagradáveiscomoumcéusemnuvens,semtempestade.Atéomomentoemque o príncipe, que secretamente se sentia cada vez mais tomado pordúvidas, inalmente descobre que esta vida é com certeza... perfeitademais.

NafronteiraNo pequeno vilarejo nepalês de Tilaurakot, o sítio arqueológico está

prestes a receber seus primeiros visitantes. Depois de ter guardado suavelhabicicleta,Vikram,oguarda,abriuastrêscorrentesgrossasdagradedeentrada.Dentrodopequenoescritóriodarecepção,protegidodavista,ele guardouomolhopesadode chaves e tambéma gamelademetal queacomodava seu almoço e logo foi conferir commuito esmero os talões deingresso,osmaçosdedinheiroeasmoedas.Eram exatamente dez horas, o museu também abria suas portas. De

todo ponto de vista, a construção é modesta; ao mesmo tempo, parecequase imponente comparada às fazendinhas vizinhas minúsculas, nafrentedasquaispastamduasou três vacas comcostelas salientes.AssimcomoVikram, os funcionários domuseu estão a postos. Um está atrás doguichêpara venderos ingressos, três outros estão acomodadosnas salasde exposição para vigiar os visitantes e lhes dar informações. Relaxados,todos esperam que a manhã seja, como sempre, bem tranquila. Tirandogrupos de escola que às vezes aparecem sem avisar, todos sabem quenenhumvisitante costuma chegar pelamanhã. Os turistas demodo geralsóaparecemdepoisdoalmoço,atémaisparao imdatarde.Detodomodo,os funcionáriospodematestarquenuncahámultidãopor ali...Os gruposde turistas sempre dão prioridade a Lumbini, a 25 quilômetros dedistância.Poroutrolado,comoobservaovigia,osperegrinosbudistasquevisitam

olocalsãocadavezmaisnumerososacadaanoquepassa.Vikramgaranteaté que, várias vezes, ele viu monges recolherem um pouco de terra dosítioarqueológicoemumgestodedevoção... comoseTilaurakot fosseumlocaltãosagradocomoLumbini!É bastante legítimo dedicarmais tempo à visita do jardim de Lumbini.

DesdequeentrouparaalistadoPatrimônioMundialdaUnesco,em1997,o lugar descoberto por Führer desenvolveu-se bastante. Hoje, há tantoshotéis e mosteiros em seus arredores que existem até estudos para aconstrução de um aeroporto internacional na região. Cuidado com todo ozelo, talvez até excessivo, o jardim que viu Buda nascer se tornou tantodestino turístico célebre quanto local de peregrinação importantíssimoparaosbudistasdomundotodo.Ao chegar, os peregrinos japoneses, coreanos, chineses, tailandeses,

birmaneses, tibetanos, nepaleses, indianos ou ocidentais se recolhem

longamenteperanteuma igueira-de-bengalagigantesca,comcentenasdebandeirasdeoraçãomulticoloridaspenduradas, que representaa árvorenaqualMayateriaseapoiadohámaisde2,5milanos.AlémdacolunadeAshoka e o baixo-relevo que representa o nascimento de Buda, osvisitantes podem também admirar na região sagrada o fruto dasescavações edas restaurações, praticamente reconstituições, efetuadas jáháalgunsanos:vestígiosdeestupasedetemplos,tanquesdepuri icaçãoeum santuário da deusaRummindei – quede lá para cá foi rebatizadadeMayadevi.Entreasdescobertas recentes, feitaspelosarqueólogos,amaissensacional é sem dúvida uma pedra que indicaria o local exato donascimento de Buda. Segundo o testemunho de um peregrino chinês doséculo III, o próprio imperador Ashoka teria marcado o ponto com umapedracolocadanoaltodeumaplataformafeitadesetecamadasdetijolos.Osvisitantesentãosedirigemsemdemoraaoamplohangarqueabriga,nomeiodeumlabirintoderuínas,afamosapedra.Para os budistas, mais ainda do que para os simples turistas, não há

dúvida algumadequeLumbini realmentemereceumavisitaprolongada.Sódepois,esenãoformuitotarde,elesvãoverosvestígiosdeKapilavastu.É issooque recomendamosguiasdeviageme tambémoque se faznoscircuitoscomtítuloscomoSeguindoaspegadasdeBudaou,comaindamaispompa,PercursodeiniciaçãonasterrasdeBuda.Mas ainda seria necessário saber aonde ir exatamente para visitar as

ruínas da cidade fabulosa... Há várias décadas, dois vilarejos disputam apaternidade das ruínas de Kapilavastu. Situadas uma de cada lado dafronteira entre a Índia e o Nepal, as duas rivais localizam-se a apenasalgunsquilômetrosdedistânciaumadaoutra.Ovisitantequedispuserdepouco tempoprecisa escolher entreo sítio arqueológicodeTilaurakot,noNepal,eodePiprahwa,emterritórioindiano.Cadaumdosdoissítiostementreseusdefensores,éclaro,milharesdeespecialistas...Estaémaisumacontrovérsia, uma questão que não foi elucidada entre tantas outras. Noinaldascontas,nãopassadealgobanalparaaquelesquebuscamlançaruma faísca de luz sobre a escuridão espessa que rodeia a vida do Budahistórico.Mascomoescolher?Deacordocomquecritérios?Foraaslendas,que conhecimentos nós temos hoje em relação ao reino onde Buda foicriado?De Jean Filliozat a André Bareau, de Arthur Basham a Romila Thapar,

todos os grandes especialistas hámuito tempo são unânimes em admitirque, se o Buda histórico sem dúvida nasceu no seio de uma família

aristocrática, Kapilavastu não parece estar à altura da cidade delineadapelaliteraturabudista.AÍndiademeadosdoséculoVIa.C.jácontavacomreinos grandiosos e também com centros urbanos importantes, mas elesnãosesituavamnaregiãodoTerai.A geogra ia política da Índia antiga compreendia dezesseis grandes

monarquias, chamadas janapadas– “o lugaremqueopovopõeospés”–,estabelecidasdemaneiraglobalao longodovaledoGanges.Naépocadobodisatva, as regiões selvagens e atrasadas que, a nordeste, ladeavamasmontanhasdoHimalaiaeram,porsuavez,divididasemumain inidadede“repúblicas” aristocráticas, conhecidas sob o nome degana sanghas ou“Assembleias dos Iguais”. Kapilavastu era simplesmente a capital de umaentreessasnumerosasganasanghas,cujosistemadegovernopermaneciabem próximo do modelo de chefes tribais dos estados monárquicos quetinhamsedesenvolvidoaosul.Poroutrolado,a“república”àqualSidartaGautamapertencia só contava comuma tribo, a dos sakyas – da qual eletirouseunome.Seuterritório,portanto,certamenteeramenosextensodoque o dasgana sanghas formadas pela união de diversas tribos, como aconfederação dos vrjis. Em resumo, se o Estado dos sakyas ainda eraindependentedurantea infânciadofuturoBuda,eledesapareceriapoucotempo depois para se tornar vassalo, entre tantos outros, de seu vizinhopoderoso,oreinodeKosala.Paraconcluir,éaindanecessárioadmitirquea pequena “república” dos sakyas não ocupou espaço muito grande nahistória política da Índia. De fato, sua importância era tão pequena queapenasostextosbudistasamencionam.Confrontada com a realidade, a lenda esboçada pelos hagiógrafos em

torno da cidade de Kapilavastu perde sua aura dourada. A capital real,populosa, resplendorosa epróspera é eclipsadaaodar lugar aumburgomodesto. O palácio era certamente uma construção bem rústica, eSudodana era um pequeno rajá entre outros. Diferentemente de outrasgana sanghas em que diversos chefes compartilhavam o poder, elegovernava o pequeno território dos sakyas apoiado por um conselho deque dependia para tomar as grandes decisões. Ainda de acordo com omodelo que vigorava de maneira geral nas “repúblicas” aristocráticas, opaideSidartacertamente tinhasidoeleitopelosmembrosdanobrezadeguerreiros, e seu mandato, com duração que não era estabelecida deantemão, provavelmente não era hereditário. Assim, contrariamente aoque as lendas dão a entender, o “príncipe” Sidarta não era herdeiro dotronodeseupai...Anãoserqueumdiaviesseasereleitorajá,porsuavez,peloconselhodossakyas.

A transição da lenda para a história geralmente carrega consigo umcertodesencantamento. Já nodecursodoprimeiromilênio, os peregrinoschineses icavamenormementedecepcionadosaoconheceroreinoondeofuturoBudatinhasidocriado.SeacreditarmosnotestemunhodeFaHian,“tudoerasóruínaetristeza1”jánoiníciodoséculoV.Independentementedequaltenhasidoseupassadograndioso,acidadeestavaabandonada:“Aregião de Kapilavastu apresenta um quadro vazio e desolado. Oshabitantes são pouco numerosos e vivem afastados. Nas estradas, aspessoas andamatentas por causa dos elefantes e dos leões e não devemviajarsemprecaução2”.Doisséculosdepois,HuanTsangtambémfoiatéolugar. Apesar de ter constatado que “a terra é gordurosa e fértil, asemeaduraeacolheitaocorrememépocasregulareseasestaçõesnuncaseperturbam3”, ele ica consternado como “aspecto selvagem” de toda aregião.Emrelaçãoaoqueele identi icacomoopalácioemruínas,parece-lheestar“desertoháséculos4”.Miletrezentosanosdepoisdosintrépidosperegrinoschineses,amesma

decepção recai sobre os visitantes desavisados que se aventuram hoje aPiprahwaouTilaurakot. Autênticos ou não, os dois lugares não têmnadadegrandioso:ali sebuscamemvãoosrestosdeumacidade imensaedeum palácio lorescente. Apesar de o canto dos pássaros, as árvorescentenáriaseaatmosferabucólicadoslocaisseremcapazesdeencantarosimples turista, apenasosbudistasmais fervorosos e os especialistas sãocapazes de se entusiasmar com os vestígios minuciosamentedesenterradoseconservadoscomopassardosanos.Desde o im da dominação colonial sobre a Índia, a arqueologia

relacionada ao budismo no subcontinente indiano já não estámais sob aalçadadosbritânicos.Deláparacá,equipesindianasenepalesas,àsquaisse juntam especialistas do mundo todo, são as responsáveis pelaressurreiçãodopassado.OsítiodePiprahwafoidescobertoprimeiro,no inaldoséculoXIX, logo

depoisdeLumbini.EleselocalizanaÍndia,aapenasdezesseisquilômetrosda fronteira. Ali se veem vestígios de diversas estupas e também ummosteiro que data do século III a.C. Sabendo que Kapilavastu setransformou pouco a pouco em lugar elevado do budismo, essas ruínasconstituem indícios apropriados para localizar a cidade. Como passar dotempo, além de numerosas moedas e objetos da vida cotidiana – tigelas,pratos, pesos... –, também foram encontradas ali urnas de pedra quecontinham,segundoa inscriçãogravadanatampadeumadelas,relíquias

quepertenceramaBuda.Aestaveiosejuntaradescobertadeumtabletede barro cozido em 1973, sobre o qual estava gravado “comunidade dosmongesdeKapilavastu”.Nãohavia vestígio de umpalácio real, a não serem um local a um quilômetro de distância; mas isso não faz sentido namedidaemqueousodetijolossóapareceunaÍndianoséculoIIIa.C.eemqueasconstruçõesimportantesdotempodeBudaeramfeitasdemadeira.Situada no Nepal, a cerca de vinte quilômetros da fronteira indiana,

Tilaurakot parece ter ganhadomais importância do que Piprahwa desdeque lá foram descobertos, em 2001, diversos fragmentos de cerâmicacinzenta.FabricadonosuldaÁsiaentreosséculosIXeVIa.C.,essetipodepeçaébemconhecidodosarqueólogos.OsfragmentosatestamaocupaçãodeTilaurakotnaépocadajuventudedeBuda.Outroindícioéqueolocalsesitua perto de um rio, como se situava a capital dos sakyas – que outilizavam para irrigação, comércio e pesca, sem esquecer os banhos e alavagemdaroupa.Jáemrelaçãoaosoutrosvestígiosdeocupaçãohumana,há silos para cereais, fornos e choupanas de argila que correspondemperfeitamente à economia rural que vigorava nasgana sanghas, quepraticavam a criação de animais e o plantio de arroz, de cevada e degergelim.ComoHuanTsanghaviadescrito, inalmente foramdescobertasas ruínaselevadasdeummurode cercadeoitometrosde comprimento.Essevestígioconstituiumúltimoargumentodepesopara fazerabalançapender a favor de Tilaurakot. É possível supor, de fato, que Kapilavastudeviatersidofortificadaerodeadadefossos,comoeramoutrascidadesdeseu tempo. Mas a muralha é posterior à Kapilavastu que o bodisatvaconheceu...porqueéfeitadetijolos.Sejaqual tenhasidoo localdesuacriação,é inegávelqueascondições

devidadojovemSidartaforaminfinitamentemaisrudeseausterasdoquea literaturabudistadáaentender.Todasasmatérias-primasencontradasnosdois sítiosarqueológicossãodeorigem local, todososobjetosdavidacotidiana indicam uma vida rural e simples. Apesar de privilegiado pelaposiçãoderajádopai,o futuroBudanãosevestiacombrocadosdesedaluxuosos vindos de Benares, a prestigiosa cidade à margem do Ganges,situadaamaisdeduzentosquilômetrosdali,mas sim com tecidos sólidosfabricados no próprio local. É certo que os três palácios suntuosos do“príncipe” se resumiam a um prédio robusto demadeira. Apenas a áreaconstruída, a presença de andares e talvez a decoração externa seriamcapazesdedistinguiramoradadeSudodanadasdossakyasmaisricos,aopassoqueoshumildes se contentavamcomchoupanasde argamassa.AsruasdeKapilavastueramapenasdeterrabatida,assimcomoasestradas

quepartiamdacidade.Diferentementedoscaminhosque iamparao sul,nadireçãodo valedoGanges, relativamente seguros apesardapresençade bandidos, as estradas que partiam para o norte se embrenhavam emuma loresta virgem impenetrável povoada por tribos aboríginesmisteriosas,sendoqueossakyasnemcompreendiamsualíngua.Sobra a questão da localização exata de Kapilavastu... A opinião dos

especialistas continua dividida entre os dois locais. Alguns defendem aideia–queserviriaparareconciliar,demodohábil,osdoisendereços–dequeossakyas,depoisdeteremsidoatacadospeloreinodeKosala,teriamse deslocado para estabelecer umanova cidade umpoucomais adiante...Mas as parcialidades nacionais e os interesses econômicos locais, quepesam muito sobre a decisão, jamais icarão satisfeitos com essaprovidência.Assim,énecessáriodecidirentrePiprahwaouTilaurakot.Apesardenão

teremrevelado tesouros fabulosos,os sítiosarqueológicosnãopodemserconsideradosordinários: tantoumquantoooutropodemse tornar locaisenormemente sagrados para os milhões de seguidores de Buda que seespalham por todo o mundo. Em um revés temporal surpreendente, emqueamodernidadedaria lugaràtradição,épossível imaginarque, frentea provas cientí icas inegáveis, talvez sejam os próprios budistas queterminarão por designar, pouco a pouco e a seu modo, a localização deKapilavastu. A inal de contas, a identi icação do lugar onde viveu o Budahistórico esteve submetida à interpretação de seus seguidores desdesempre. Deste modo, o jardim de Lumbini não oferece nenhuma provadireta do nascimento de Sidarta Gautama sobre seu solo; sua localizaçãoatual baseia-se apenas em testemunhos budistas posteriores à vida domestrehistórico,emocasiãodoséditosdoperegrinoAshokaedosrelatosde viagemdemonges chineses. É por isso que, até hoje, como bempodeobservar o vigia Vikram, o enorme luxo de peregrinos a Tilaurakot, ouentão a Piprahwa, o grau dos indícios de respeito e as homenagens queelesmanifestamemrelaçãoaumlocalenãoaooutrorepresentamsinaisde identi icação tão bons como quaisquer outros da cidade antiga ondeBudafoicriado.SeaarqueologianãoforcapazdedesempataroresultadoentrePiprahwaeTilaurakot,quebaseosbudistasusarãopara fazerumaescolha de initiva entre os dois locais? A fé tem razões que a ciênciaignora...De todo modo, além da importância simbólica de encontrar o lugar

sagradodeKapilavastuparaaliserecolher, identi icara localizaçãoexata

de Kapilavastu é tão importante para os budistas como para ospesquisadoresporumasegundarazão: localizaracidadeperdidavoltariaa conferir uma parte de legitimidade suplementar à lenda. De um certomodo, assim como o jardim sagrado de Lumbini é hoje testemunho daautenticidadedonascimentodeBuda,alocalizaçãodeKapilavastuserviriaparareforçaracredibilidadedorelatolendáriodesuajuventude.Ofechoentãoseriafechado.Oprocedimentonãoénovo.Apesardea Índiaantiganãose interessar

pelos fatoshistóricos,os indianossempreatribuíramenorme importânciaaoestabelecimentoeàperpetuaçãodeuma topogra iade lendasquesãoelaboradas epropagadaspoucoapoucoemseu território.Os adeptosdeBuda não se desviaram dessa tradição de estabelecer uma geogra iasagradaemconjuntocomodesenvolvimentodasnarrativasmitológicas.Éassimque,norastrodoimperadorAshoka,osindianosseguemháséculosrotasdeperegrinaçãoquelevamaoslugaressagradosbudistas...Atéqueoluxo se esgote um dia e Lumbini e Kapilavastu caiam no esquecimento.Mas ainda é muito cedo para invocar aqui o surpreendente desamorprogressivodos indianosporBuda, que levou aodesaparecimentoquasetotaldobudismoemsuaterradeorigem.

PartidaOs questionamentos de Sidarta e seu distanciamento do mundo e dos

homensnãocomeçaramdepoisdeseucasamentoedeváriosanosdeluxoevolúpia.Não: suasexperiências interiores, tão inquietantesaosolhosdeseupai,Sudodana,remontamàinfância.A primeira ocorreu quando ele eramuito pequeno, na ocasião de uma

dasfestasdasemeadura.Naquelamanhã,orajáforapessoalmenteatéasplantações de arroz, nos arredores de Kapilavastu, para participar, comofazia todos os anos, da cerimônia ritualística do primeiro trabalho nocampo.Sudodanasefezacompanharportodaafamíliaepormembrosdacorte. Do primeiro-ministro ao mais humilde dos camponeses, todos ossakyas tinham colocado roupas novas e enfeitadas para participar doevento.Aoredordediversascarroçasdeboiornamentadascomarreiosdeouro e de prata, eles formavam uma imagem ainda mais deslumbrantecom o sol que fazia os campos de arroz reluzirem. Antes de a cerimôniacomeçar, o rei ordenou que o pequeno príncipe fosse acomodado sob aproteçãodeumaárvoregrandequecrescianomeiodaplantação.Como era o costume, Sudodana foi o primeiro a executar o ritual da

escavaçãodosulcosagrado.Sidartanãotiravaosolhosdopai:

Eume lembro de uma vez quemeu pai, o rei sakya, efetuou a cerimônia do trabalho noscamposeeuestavasentadoàsombrafrescadeumamacieira-canela.Então,completamenteforadequalquersensação,foradosestadosdeespíritogrosseiros,euentreiepermanecinoprimeiroestadodeabsorçãomeditativa:meuespíritoseencheudealegriaedebem-estar.1

Essa experiência, tanto inédita quanto inesperada, viria a se tornar o

ponto de partida de diversas interrogações de Sidarta a respeito daaquisiçãodoConhecimento:“Então,aodarcontinuidadeaessalembrança,ocorreu-meaideiadequeesteéocaminhoparaaIluminação.Eupensei:porque tenhomedodesseprazerquenão temnada a ver comodesejo,quenãotemnadaavercomosestadosdeespíritogrosseiros2?”.Cada lenda relata a experiência da cerimônia do plantio de maneira

diferente. Em particular, elas não concordam em relação à natureza daprimeiramanifestaçãodavidaespiritualdobodisatva.Contrariamenteaocânon páli, oLalitavistara, oMahavastu e até mesmo oBudacharita deAshvaghosha consideram que o espetáculo do trabalho no campo nãodespertou o príncipe à meditação, mas sim à consciência excruciante dosofrimento dos homens sobre a terra e à violência involuntária que elesin ligem às outras espécies por meio de suas ações. Sidarta teria então

identi icadoaliuma“grandepreocupação 3”aodescobrirqueohomemeoboi se exauriam com a tarefa. Simultaneamente, as consequências datarefa teriam feito com que ele icasse “transtornado 4”: por causa dosinsetosesmagados,domatoarrancado,daterrarevirada...AidadeexatadeSidartanomomentodeseuprimeiropassonadireção

do caminho da Iluminação é incerta, variando de um texto a outro.Sabemos que, quanto mais o menino crescia, mais o pai redobrava ocuidadoparapreservá-lodequalquervisãoqueinvocasseomaldomundoe a dor da existência. Nesse ínterim, Sudodana nem imaginava que aproteção excessiva estava surtindo o efeito inverso: a cada dia, fazia comqueseu ilho icasseaindamaisfragilizado.Porignorarquasetudorelativoà realidade, ele se mostrou ainda mais sensível ao drama da condiçãohumanaaosedepararcomelaporacidente.

Quandoestavacomcatorzeanos,elemandouatrelarsuacharreteparadarumpasseioesaiupelo portão oriental da cidade. Por acaso, avistou um velho de cabelos brancos e costasrecurvadas, apoiado sobre uma bengala, caminhando com di iculdade. Perguntou a seucocheiro:–Oquehácomaquelehomem?–Eleévelho.–Oqueéservelho?– Ele viveumuitos anos, suas faculdades estão em declínio, seu aspectomudou, sua tez sealterou.Quandoele se senta, temmuitadi iculdadede se levantar, a ele restamuitopoucavitalidade.Éporissoquedizemosqueévelho.–Euvouescapardessasina?–Porenquanto,não.Entãoeledeumeia-voltacomacharreteevoltouaopalácio.Comoaindanãoestavaliberadoda leidavelhice, icoutristeedeixoudeexperimentarqualquerprazer.Oreiperguntouaococheiro:–Opríncipeficoucontentecomopasseio?–Eleficoudesgostoso.–Porquê?–Poracaso,eleviuumvelho.Éporissoqueestádesgostoso.O rei receou que os adivinhos tivessem dito a verdade e que o príncipe em breveabandonariaavidaemfamília.Logofezcomqueoprazerdoscincosentidosaumentasse.5

Vários anos depois, quando se tornou um rapaz, o bodisatva foiconfrontado commais um encontro transtornador ao atravessar de novoasmuralhasdeKapilavastu,destavezsaindopelo“portãomeridional6”.Foientão que encontrou, com pavor, a doença, na pessoa de um homememaciadoevacilante,semfôlego.Aoretornaraopalácio,oreiquestionouocondutordacharrete:

–Opríncipeficoucontentecomopasseio?–Eleficouaindamaisdesgostoso.–Porquê?–Poracaso,eleviuumdoente.Éporissoqueestádesgostoso.7

Sudodana ordenou que se fornecessem ao príncipe ainda mais“prazeresdiurnosenoturnos8”.O terceiro encontro se passou “muito tempo depois 9”. Naquele dia, o

príncipe saiu de Kapilavastu pela “porta ocidental10”; estava passeandotranquilamentequandoumcortejo fúnebrecruzouseucaminho.Omorto,coberto com uma mortalha, era carregado em cima de uma padiola. Afamília ia atrás do cortejo, triste, em lágrimas. A revelação brutal daexistênciadamorteperturboutantoorapazqueeledecidiuinterromperopasseio.Mas,aoatravessarumparquenocaminhodevoltaà cidade, seuolhar de repente foi atraído por um homem de aspecto incomum. Elecaminhava olhando para o chão e trazia nas mãos uma tigela. Tinha acabeçaeabarbaraspadasesuasvestesconsistiamemumsimplespedaçodetecidoemtomalaranjado.Intrigado,Sidartaquestionouococheiro:

–Oqueaquelehomemé?–Eleéumreligiosoerrante.–Oqueéumreligiosoerrante?–Eledomouasimesmo,temmodosdignos,seportasemprecompaciênciaecompaixãoemrelaçãoaosoutros.Éporissoqueochamamosdereligiosoerrante.11

Depois de um momento de re lexão, esse quarto e último encontro oencheu de uma imensa alegria... Quando o cocheiro relatoumais tarde aSudodana as duas últimas descobertas de seu ilho, o rei declarou, comamargor:“Osadivinhosdisseramaverdade:elecertamenteabandonaráavidaemfamília12”.Entãoeleordenouqueosprazeresdopríncipe fossemmultiplicadosmaisumavez.Masagoraascartas jáestavammarcadas.Apartirdeentão,maisnada

seria capaz de desviar Sidarta do destino previsto pelo velho Asita. Osquatro encontros sucessivos tinham semeado nele dúvidas profundas,cada uma delas mergulhada em re lexões intensas, cada uma delaslevando-o a avançar um pouco mais no caminho de uma transformaçãoradical.Umaapósaoutra,asilusõespresunçosasdajuventude,dasaúdeedavidaterrestreoabandonaramdefinitivamente:

Dotado de uma fortuna total, de um re inamento também total, eu pensei: “Quando umhomemcomum,semeducação,queestásujeitoàmorte,quenãoestáprotegidodamorte,vêuma outra pessoa que está morta, ele se sente horrorizado, humilhado e indignado. Eutambémestousujeitoàmorte,nãoestouprotegidodamorte,enãoécorretodaminhaparteicar horrorizado, humilhado e indignado ao ver uma outra pessoa que está morta”. Aoconsideraristo,apresunçãodaexistênciameabandonouinteiramente.13

Contrariamente aos três primeiros encontros, o último, com o asceta

mendigo, não fez com que nada lhe fosse tirado. Ele lhe trouxe alegria

profundapor lhemostrarqueoutro caminhoépossível, “aoar livre”, emoposiçãoà“vidadesenhordeumlar,sufocanteepoeirenta14”.Sidarta tinha 29 anos no dia em que tomou a decisão irrevogável de

renunciar ao mundo para levar uma vida de religioso errante. Naquelanoite, quando todo mundo estava dormindo, ele saiu de Kapilavastu,abandonoutudo,seusprivilégios,suasriquezas,seusamigos,seuscriadose sua família. De acordo com o JatakaNidanakatha, sete dias antes, suaesposaYasodara lhederaum ilho,Rahula,oprimeiroeúnico.Deacordocom outras lendas, esse nascimento teria ocorrido na própria manhã dodiaemqueSidartatomousuadecisão.Aoreceberanotícia,opríncipeteriase mostrado ao mesmo tempo a lito e aliviado. A lito porque Rahularepresentavamaisumapegoàvidanomundo.Aliviadoporque,aomesmotempo, aquilo o libertavadeumpeso: onascimentodeum ilhopermitia,segundoascrençasreligiosasemvigornaépoca,quesepagassea“dívidacomosancestrais”.Naquela noite, o príncipe foi até o gineceu onde cortesãs, musicistas e

dançarinas o esperavam, enviadas por seu pai, como acontecia todas asnoites.Pelaúltimavez,eleexperimentouos“prazeresdoscincosentidos 15”antes de cair no sono. Algumas horas mais tarde, acordou de umsobressalto.Oscandelabroselevadoscontinuavamqueimando,masafestatinha acabado... Meio desnudos, os corpos das bailarinas, largados pelochão entre harpas, alaúdes, lautas e pandeiros, pareciamumamontoadode cadáveres. O palácio lhe passava a impressão de ser um imensocrematório, lúgubre e nauseabundo. Estava na hora de partir para longedessa felicidade enganadora, para longe desse mundo ilusório! Algunsinstantesdepois,obodisatvaabriuaportadoquartodesuaesposa:“Umalâmpada de óleo perfumado queimava. Deitada em cima de um leitocobertode lores,amãedeRahuladormiacomamãonacabeçado ilho.‘Se eu tirar a mão da rainha para pegá-lo nos braços, ela vai acordar eimpedir a minha partida. Eu voltarei para vê-lo quando me tornar umBuda16’”. Sem demorar-se mais, Sidarta desceu até o pátio interno dopalácio, onde seus companheiros iéis o aguardavam: Channa, seuescudeiro,eKanthaka,seucavalodebatalha.Nascidosnomesmomomentoqueobodisatva,assimcomoYasodara,osdoistinhampapelpredestinadoadesempenharemsuavida.Era exatamente meia-noite. Sob a luz da lua cheia, o príncipe pediu a

Channaque selasse seu cavalo,porquequeria sairdeKapilavastuomaisrápido e mais discretamente possível. O escudeiro icou um pouco

surpreso,masobedeceu.ElearreourapidamenteKanthaka, cujapelagemimaculadaevocavaabrancura leitosadeumaconchasagrada.Graçasaosdeusesquevelarampelosucessodafugadobodisatva,todososhabitantesde Kapilavastu estavam mergulhados no mais profundo dos sonos.Nenhum deles acordou com o barulho dos cascos e, quando o cavaloalcançou a muralha da cidade, o portão se abriu como que por encanto.Também adormecidos, os “quinhentos homens armados17” encarregadosda vigilância deixaram o príncipe passar... acompanhado do corajosoChanna,quetinhasependuradonorabodeKanthaka.Depois de olhar pela última vez para trás, Sidarta se afastou de

Kapilavastu.Foientãoqueos“An itriõesdasViagensPuras 18”,quetinhamfacilitadosuafuga,apareceramparaformarumcortejoalegreaseuredor.Prodígios ocorreram por todos os universos para comemorar a “GrandePartida19”dobodisatva–quesedeuprecisamentenadatadoaniversáriode seu nascimento. A terra tremeu, lores e pérolas caíram do céu aosmilhares...Enquantomanifestaçõesdasmaisfeéricasacompanhavamesse“segundo nascimento”, o terrível Mara – literalmente, “aquele que fazmorrer” – entrou em cena. O deus malé ico, tão temido por sua astúcia,tentou persuadir Sidarta a retroceder em seu caminho, acenando com apossibilidade de lhe conceder a soberania sobre todo o universo. Opríncipe rejeitou a proposta e prosseguiu em seu caminho ainda maisbelo...O amanhecer surpreendeu os fugitivos nas margens arenosas do rio

Anoma. Depois de ter atravessado os territórios dos três rajás, ele seencontrava a boa distância de Kapilavastu, trinta léguas em direção aosudeste,exatamente.Assimquedesceudocavalo,Sidartaselivroudesuasvestessuntuosas,retirousuasjoiaspesadaseraspouocabelopretocomopunhal.Depoisordenouaseuescudeiroquelevasseocavaloetudoaquiloque acabarade abandonar até o palácio de seupai.O bodisatva tambémlhe con iou a missão de anunciar aos seus que os estava abandonandoparasetornarumreligiosoerrante,queiriaseembrenharpeloscaminhosda realização espiritual, mas que retornaria um dia. Concluiu suamensagem com estas palavras simples: “Desejo que eles não iquemtristes20”. Channa icou completamente transtornado com a resolução dopríncipe. SegundooBudacharita,Kanthaka também icoudesamparado:ocavalo “lambeu os pés de seu dono e derramou lágrimas ardentes”.Maselesprecisavamobedecer,eoscompanheiros iéisdoprínciperetomaramorumodeKapilavastu.

Livre de todos os bens e de todos os laços que o obstruíam, cheio deserenidade, Sidarta se afastou das margens do rio e penetrou em umbosquedemangueiras,pertodovilarejodeAnupiya.Logocruzoucomumcaçador paupérrimo e trocou sua última túnica de seda pelos andrajosamarelados do homem, feliz de ter encontrado o estrangeiro.Irreconhecível, o rapaz seen iouaindamais fundona loresta,damesmamaneira que semergulha no oceano. Ummundo novo se abriu para ele.Estava completamente sozinho, talvezpelaprimeira vezdesdeo iníciodesuaexistência.Onobreguerreiro,o ilhodoreinãoexistiamais.Aosolhosdoshomens,SidartaapartirdeentãoseriaoascetaGautama.No entanto, o caminho da renúncia é di ícil, e a busca da salvação,

perigosa. Depois de uma semana de meditação solitária na loresta demangueiras, o jovem noviço foi tomado por mil perguntas. Ele tomouconsciência de sua ignorância. Percebeu que tinha necessidade de serensinadoeguiadoemseunovocaminho.Então se lembroude terouvidodizer que mais ao sul, no vale sagrado do Ganges, a vida religiosa eraintensaequeas comunidadesdeascetas loresciam.Diziam tambémqueláseencontravamosmestresespirituaismaisrenomados.Obodisatvase levantoue tomouseurumo.O longoe tortuosocaminho

doascetismotinhacomeçado.

Índia,porvoltade1800a.C.Elesavançavammuitodevagar,progredindoa cadadiamaisumpouco

nadireçãodosolnascente.Conheciamarodaesabiamlidarcomcavalos.Originários das grandes estepes da Ásia central, tinham atravessado astemíveismontanhas doAfeganistão, abrindo caminhopelas passagens deKhyber e de Bolan, portas abertas para o gigantesco subcontinenteindiano.Nãoforamosprimeirosapenetrarnessaterradesconhecida.Empequenosgrupos,alguns integrantesdeseupovo jáos tinhamprecedido.Outros os seguiriam... Eles não se assemelhavam a hordas de invasores,massimapequenosgruposnômadesquesedeslocamcomsuasmanadasdebois.Desdeoiníciodosegundomilênioelesmigram,séculoapósséculo,tribo após tribo, em busca de novas pastagens. E de pilhagens também,quandoaocasiãoseapresenta.Porvoltadoano1500a.C.,váriosclãsjátinhamchegadoaovaledoIndo.

Será que atravessaram as cidades em ruínas da brilhante civilizaçãoharappiana, desaparecida? Ninguém sabe. De todo modo, eles logochegaram ao Punjab, nas planícies férteis do “País dos Cinco Rios”.Progressivamente, aqui e ali, os nômades foram se sedentarizando. Poralgum tempo, pelomenos. Os pastores também se tornaram agricultores,osartesãosdesenvolveramseuo ício.Delínguaindo-europeia,começarama compor oralmente hinos sagrados que, de lá para cá, jamais seafundariam no esquecimento... Em resumo,eles saíram da noite dostempos, apresentando aquele que viria a ser o relato doRig Veda, “aSabedoria”apresentadaemestrofes,comadenominaçãodeArya,“nobre”,emsânscritoarcaico.Para entrar em contato com os deuses e garantir sua proteção, os

arianos se reuniam ao redor do fogo. Entoando sempre seus hinossagrados,elesrecorriamaosacri ício.Dopontodevistadeles,osacri ícioéprimordial porque permite também, e sobretudo, a manutenção daquiloqueeleschamamderta,oumelhor,aordemcósmicaetemporal.Seosrioscorrem sossegados, é porque correm de acordo com o rta; se a aurorasurge a cadamanhã, é porque “a aurora nascida do céu semanifesta deacordocomorta1”.Cumprir os rituais da maneira correta ao redor do fogo de sacri ício

tambéméagirdeacordocomorta.Comopassardotempo,osrituaisvãoicando cada vez mais complexos... As grandes cerimônias que incluemsacri ícios de cavalos são as mais solenes e necessitam da presença de

diversos o iciantes especializados. São inevitavelmente ritmadas pelaladainha de hinos aos deuses que, quando não estão representados porimagens, são nomeados, classi icados, enumerados e contados semdescanso nas novas estrofes compostas pelos sacerdotes chamados debrâmanes. Entre as numerosas divindades do panteão, Agni, o deus dofogodomésticoedosacri ício,assimcomoSurya,osol,sãoparticularmentevenerados; mas Indra, o deus da guerra que carrega o relâmpago, vaiconquistando cada vez mais terreno... Porque travar batalhas é umaatividadequeocupaosarianoscadavezmais.Quandoastribosnãoestãolutando umas contra as outras, atacam os dasas, as populações locais.Graças a Indra, o temível “tourobrancodamanadahumana 2” que “odeiaaspelesescuras3”equeosarianoscomfrequência lançamparacimados“Sem-Leis”... De fato, sua supremacia militar é inegável: montados emcarros leves de tração animal, com rodas com raios, os “nobres”,recobertos com couraças espessas, sabem atirar com precisão mortal “aflechadivina,untadacomveneno4”...Essas batalhas vitoriosas são pretexto para novas migrações. Elas vão

levandoosarianoscadavezmaisparaoleste,naspegadasdodeusIndra,que adora se embriagar com Soma, a ambrosia celestial do sacri ício. Apartirdoano1000a.C.,essastribospenetraramnovaledoGanges.Comaajuda do deus Agni, incendiaram as amplas lorestas que ladeiam o rioantes de ará-las – logo começariam a usar utensílios de ferro. Àmedidaque foramocupandonovos territórios,ocasionando fusãopelo con lito, osarianos se misturaram às populações autóctones dominadas. Apesar deimporemsuastradiçõesecrençasemgrandeparte,nãohádúvidasdequesuaculturatambémfoienriquecidaporelementosnãoarianos.O acampamento nômade formado por um simples círculo de carroças

passou a ser uma memória longínqua. A partir de então, os arianoscomeçaram a viver em cidades rodeadas de grandes cercas demadeira,capitaisdepequenosreinoscomsistemaadministrativoaindarudimentar.Postos forti icados estabelecidos ao longo do Ganges e das fronteiras sãotestemunho da insegurança permanente que persistia. Como icouregistradonoMahabharata,aguerratravadapelosarianosparecenãoterim... Encabeçando cada um dos reinos, a aliança entre soberanos esacerdotes se reforçava e parecia inabalável. Os reis detinham a ordempormeio da forçamilitar, ao passo que os brâmanes garantiam a ordemcósmicaetemporalpormeiodosrituais:naocasiãodegrandescerimôniaspúblicasquetinhamoobjetivodegarantiraproteçãodoreino,osacri ício

era executado em nome do soberano pelo o iciante brâmane.Complementares, sacerdotes e guerreiros eram os atores principais dosrituaisdesacri ício;apreservaçãodaharmoniadomundosefundenessaaliança.No século VI a.C., na época em que o futuro Buda nasceu, a sociedade

“arianizada” dominava todo o Norte da Índia. Ainda continuava emexpansão,masseunúcleoprosseguialocalizadonovaledoGanges,ondeosreinos modestos tinham se transformado em verdadeiras monarquias.Eternamente rivais, todos eles buscavam alcançar a supremacia. Aspequenas repúblicas independentes, como a dos sakyas, que seconstituíramàsmargensdessasmonarquias,nãotinhamcomoescapardomodelo sócio-religioso impostopelosdescendentesdosprimeiros arianos.Apenas osadivasis, “os primeiros ocupantes”, viviam nas lorestas maisrecuadaseescapavamdesuainfluênciacultural.Mil anos tinham se passado desde a época da composição doRigVeda.

Transmitido oralmente de geração em geração, o texto sagrado foi sendoprogressivamente estendido e àquela altura já contava com quase milhinos.Trêsoutros conjuntosde textos também tinhamsidoadicionadosaele, oYajurVeda, que trata das fórmulas litúrgicas; oSamaVeda, com asmelodias litúrgicas; e oArthavaVeda, com fórmulas mágicas. Juntos, elespassaram a formar um corpus imenso chamado deVeda, ou “Saber” porexcelência,queéaautoridadeemrelaçãoàscrenças,àspráticasreligiosase, de maneira mais ampla, aos costumes de toda a sociedade. Como oprimeiromonumentoliteráriodacivilizaçãoindiana,oVedacomeçouaserescrito em sânscrito pelos brâmanes, pouco a pouco, no século VI a.C. Ofato de o período de transmissão oral ter sido tão longo e de ter seperpetuado aindamais de um século depois de a escrita ter entrado emuso não tem nada de surpreendente: o Veda, considerado a “Revelação”,deveser“escutado”.Paraseusadeptos,essaliteraturasagradanãoéumaobra humana. Eterna, sua inspiração é divina. Espíritos excepcionais,poetas inspirados chamados derishis, tiveram a intuição na aurora dostempose transportaramessa revelaçãoparaaspalavrashumanas.Éporisso que o Veda, também chamado de “Audição”, deve ser aprendido decor, da bocadeummestre.A palavra, a voz, vak, termopróximodo latimvox,dopontodevistaetimológico,éconsideradadivinadesdesuaorigemporessemotivo.Assim,noseiodasmonarquiasedasrepúblicas,nemtodomundotemo

direito de escutar esse Saber: a sociedade indiana do século VI a.C. é

segmentada em diversas classes especializadas, sendo que nem todastinham omesmo acesso à religião. O fato não era novo. Desde sempre, aliteratura sagrada estabelecia a sociedade ideal dividida em quatrograndes classes hierarquizadas entre si, cada uma chamada de varna,palavraquesigni icaaomesmotempo“cor”e“categoria”.Essaconcepçãoreligiosa do corpo social se baseia no mito de Purusha: do sacri ícioprimordial do homem cósmico, de seu corpo desmembrado, nasceram asquatrograndescategoriassócio-pro issionais.“Suabocasetransformounobrâmane; o guerreiro foi o produto de seus braços; suas coxas setransformaram no artesão; e de seus pés nasceu o servo 5”, ensina oRigVeda.Noaltodessahierarquia,querapidamentesetornouhereditária,estáo

varna dos brâmanes e, em razão da pureza associada a sua função, elespodemexercerosacerdócio.Letradosporexcelência,elestêmopoderdeexecutarosrituaisdesacri ício,deestudar,depreservareensinaroVeda.São seguidos pela categoria real doskshatriyas, os guerreiros, varna aoqualSidartaGautamapertencepornascimento.Pordispordearmas,estacategoria detém o poder político e tem a vocação de estender seuterritório. Para garantir a proteção de seu reino, os kshatriyas devemmandar executar, a sua custa, sacri ícios conduzidos pelos brâmanes. Emescalaaindamaisbaixanahierarquiaestãoos vaishyas, osprotetoresdosbensmateriais. Estes últimos têm a função de trabalhar, cultivar a terra,negociarecuidardosanimaisdecriação.Nofinalvemaclassedosshudras,pessoas que não têm outra especialização além de servir aosvarnassuperiores.Diferentementedasoutrastrêsclasses,essaspessoasnãotêmdireitodeestudarnemdeescutarostextossagrados.Enquantoos shudrassão reduzidos apenas ao nascimento biológico, os integrantes dos trêsprimeirosvarnas têm em comum o privilégio de estar entre osdvijas, ou“nascidos duas vezes”: os meninos recebem iniciação no Saber querepresentaumsegundonascimento.NãohádúvidasdequeosautoresdoVeda impuserammuitocedoosistemahierárquicoàspopulaçõesnativas.Talvez ovarna dos servos tenha sido constituído originalmente pelosfamososdasas,os“inimigos”dosarianos...Enquantoisso,nosgrandesreinosdoséculoVIa.C.,asociedadeevoluía:

aurbanizaçãoeocrescimentodocomérciotraziammodi icaçõesaocernedasestruturassociais.Osprodutosquecirculavamcadavezmaispormeiodasrotasdascaravanas–queiamparaooesteatéaPérsiaeparaolesteatéaChina–garantiamprosperidadecadavezmaioràclassemercante.A

in luênciadoscomerciantessereforçavadiaadianascidades lorescentesdas margens do Ganges. Os artesãos também enriqueciam e semultiplicavam. Na medida em que os o ícios iam se diversi icando porcausa da especialização, foram aparecendo subcategorias dentro de cadavarna.Naturalmente, essas castashereditárias – que logopassariama sechamarjatis, ou “nascimentos” – passam a se hierarquizar entre elasmesmas e cada uma deve se conformar demaneira rígida à função queestásobsuaincumbêncianoseiodasociedade.Ninguémpodefugirdessaestrati icaçãodoshomens,queéconsideradasagradaeinalterável, jáqueela se ordena de acordo com a organização sociocósmica do mundo, oDarma.Essa opressão tão acentuada fez com que as novas classes urbanas a

contestassem. Em primeiro lugar, elas questionam a supremacia dosbrâmanes, e principalmente seu controle total sobre a vida religiosa. Nafunção de depositários do Veda, eles continuavam sendo em efeito asúnicaspessoashabilitadasaefetuaras cerimôniasde sacri ício, sejaparasi próprios ou, por meio de recompensa inanceira, em nome de outrosdvijas. Osvaishyas, cuja vocação consistia em enriquecer cada vez mais,demonstravam indisposição em participar desses rituais custosos aosquais não estavamhabituados.Os novosnotáveis preferiamempregar osbrâmanes, letrados por excelência, para serem contadores de suasatividades comerciais... Já osshudras, excluídos do estudo do Veda,simplesmente não tinham direito de mandar executar sacri ícios aosgrandesdeusesvédicos.Existiam pessoas atémesmo no seio da classe religiosa que colocavam

em dúvida o estado das coisas. Apesar de os brâmanes continuarem ahonrar as divindades por meio de rituais sanguinolentos de sacri ícios,alguns deles tomaram a iniciativa de introduzir novas perspectivas àreligião herdada dos tempos antigos. Na ausência de um clérigocentralizado, as correntes que agitavam a vida religiosa indiana semanifestavam por meio do surgimento de numerosas correntesreformistasedeumain inidadedemovimentossectários.Nomomentoemqueo jovemSidartaGautamasedirigiaaosgrandesreinosparaprocurarum mestre espiritual, a religião védica estava, portanto, em plenatransformação, dando lugar ao que chamamos de bramanismo. Este, porsua vez, daria origem, alguns séculos mais tarde, ao hinduísmo como oconhecemoshoje.Assim como os primeiros rituais dos arianos podem ser apreendidos

comoestudodos textosdoRigVedaquechegaramaténós,essamutaçãoreligiosa é perceptível no estudo da literatura em sânscrito elaborada naépoca.NoséculoVIa.C.,acomposiçãodostextospertencentesàRevelaçãoainda não tinha sido concluída. Às quatro narrativas de referência, osbrâmanes renovadores tinham juntado uma nova camada de textos,compostadetratadosemprosaqueexplicam,interpretamecomentamosmitos, as fórmulaseos rituais.Trata-sedosBrâmanas, ou “interpretaçõessobre obrâman”, e depois dosAranyakas, “tratados lorestais”, einalmente os primeirosUpanixades, as “abordagens” que vão aindamaislongenoafastamentodaherançavédica.Utilizandoanalogiascomfrequência,essestextossagradosdesenvolvem

em todaa suaamplitude certasdoutrinasquemal aparecemgerminadasnos antigos hinos. Ilustram especulações que até então eram quaseinéditas, como por exemplo as ideias fundamentais que dão conta daidenti icação entre microcosmo e macrocosmo e o conceito do ciclo dasreencarnações. A ênfase é dada à busca pessoal que permite atingir afusãodaalmaindividual,atmã,comaalmauniversal,brâman.Essauniãoésinônimo de salvação porque coloca im aosamsara, a transmigraçãocontínua da alma. Nessa perspectiva, as iguras dos grandes deusesvédicosdãolugarparaobrâman,queselocalizabemnoalto,porcimadosdestinadosaomundoterrestre.Obramanismorejeitaasgrandescerimôniassolenesedálugaraoutras

vias, como ameditação e as práticas do ascetismo, que permitem a cadaumaascensãopessoalatéafusãocomoabsoluto.Oritualcoletivodeixadeocuparposiçãocentralnaspráticas religiosas;omodeloemvigorpassaaserodarenúnciaaomundo.Masapesardeoritualperdersuaprimazia,os sacri íciosnão sãoabandonados. São, sim, reinterpretados: segundoosautores dos Upanixades, ameditação é comparável à fricção de gravetosqueserveparaacenderofogodosacri ício,oatmãestápresenteemtodosos homens, de maneira latente, assim como a fagulha está nos gravetos.Interiorizadodestemodo,osacrifíciotomounovadimensão.A antiga religião védica não ignorava as práticas de ascetismo nem as

especulaçõesmeta ísicas.Emseusprimeirostextossagrados,osarianosjáconsagravam um hino ao “Asceta peludo 6”. Eles também questionavam,comprofundidade surpreendente, oprincípioúnico eneutroque estánaorigemdacriaçãodomundovisível,quefoiprecedidapelonascimentodosdeuses:“Deondeveioessacriaçãosecundária,se foiounãofabricada,sóAquelequevigia estemundodasmaiores alturasdo céu sabe– amenosque não saiba7?”. Enquanto isso, o ritualismo e até mesmo a magia

dominavam a vida religiosa da era védica. A busca pessoal e a místicaestavampraticamenteausentes.Nãohádúvidadeque,comobramanismo,engendradopelaemergênciadacivilizaçãourbana,umapáginadahistóriareligiosa indiana foi virada. E isso aconteceu bem no momento em queSidartaGautamatomouocaminhoespiritual.Essa longa viagemno tempo, às origens da civilização indiana, permite

lançar um outro olhar sobre as lendas que narram a juventude dobodisatva. Ela chega a ser indispensável para apreender com maisexatidãoascondiçõesdopercurso,passadoefuturo,dofundadorhistóricodobudismo.SelevarmosemcontaainfânciaeajuventudedeSidartaGautama,tudo

indica que ele foi criado na religião dominante de sua época. Mas arepública dos sakyas, situada nos con ins da região “arianizada”, eraapenas um posto avançado da civilização bramânica. Assim, eleprovavelmente recebeu educação religiosamais conservadoranoquedizrespeito às mutações que se operavam no vale do Ganges. Em diversasocasiões,ostextosbudistasatestamquehaviabrâmanespresentesàcortedeSudodana.Eledevia lhesdarsuporte inanceiro,emformadedoações,emtrocadeseusserviçosbonseleais.Assim,osoitoadivinhosconsultadospelaocasiãodonascimentodobodisatvaseriambrâmanes,assimcomoossacerdotes que o iciaram na ocasião de seu casamento. O rapaz tambémconheciaosgrandesdeusesdopanteãovédico,comoatestaporexemploaaparição mencionada na lenda das “Trinta e Três8” divindades, tendo àfrente o poderoso Indra, na ocasião de sua partida de Kapilavastu. Damesmamaneira, a cerimôniadeararo campo tambéméumantigo ritualvédico que, supervisionado pelos brâmanes, abria a temporada detrabalhonocampo.Naposiçãodenobrekshatriya, o rapazocupavaposiçãoprivilegiadano

âmbitodahierarquiasocialereligiosa.Assim,talvezeleatétenharecebidoa iniciaçãonoSaber reservadaapenasaosdvijas. Seja lá como tenhasido,eledeviaseconformaràsnumerosasprescriçõesinerentesdosistemadosvarna, principalmente às que diziam respeito ao casamento. Sua esposa,assimcomoele,eraumakshatriya,eteriasidodi ícilparaelesecasarcomumamulherquepertencesseaumvarnainferior.Porsuaposiçãosocial,orapazprovavelmentenãotinhadireitodecompartilhararefeiçãocomumshudra. Por outro lado, tinha a obrigação de assistir regularmente aosrituaisdetalhadosoperadospelosbrâmanesapedidodeSudodana.Entreas“64artes9”àsquaisSidartafoiiniciadonajuventude,segundoaslendas,

aparecem com destaque a manutenção do fogo sagrado, os rituais dossacri ícios e o estudo do Veda. Mas como tinha inclinação espontânea àmeditação e à especulação, o rapaz logo passou a considerar o caminhoritualista particularmente formalista e repetitivo. Depois de deparar poracaso com um asceta errante, ele teve a intuição de que a busca dasalvaçãoempreendidaporaquelereligiosoatípicocarregavaconsigoumaaventuraespiritualbemmaisemocionantedoqueascerimôniasancestraisperpetuadaspelosbrâmanesnacortedeKapilavastu.Ao combinar o conhecimento histórico atual da Índia religiosa com as

lendas antigas – escritas pelos próprios budistas com a intenção deaumentar a lembrança de seu mestre –, diversos episódios da vida deSidarta Gautama de repente assumem um tom mais familiar. Desde asnumerosas reencarnações que precederam o último renascimento emLumbiniatésuaescolhaderenunciaràvidamundana,otrajetoespirituale religioso do bodisatva só oferece informaçõesmuito comuns no âmbitodocontextoindiano.Aquelequeéapresentadocomoa“NatadosSeres 10”édescritocomoumhomemdeseutempoedeseumeio.Porvoltadaidadede 29 anos, ele se enveredou em sua busca pessoal pela salvação, comoacontecia com outros contemporâneos seus. A partir de então, ano apósano, por meio do contato com diversos mestres espirituais e outrosrenunciantes,o jovemasceta foiamadurecendo lentamenteatécomeçaraelaborarsuaprópriadoutrina...Nãoapartirdonada,massimem funçãodo meio em que evoluiu, em interação com o contexto religioso de suaépoca.Um exemplo entre outros que re letem a profunda transformação que

agitava a religiãodominantena Índiado séculoVI a.C., obudismonão foifrutodoacaso.

BuscaObodisatvaavançavapassoapassoparasudeste,adireçãodosdeuses.

EssaeratambémarotadecaravanasquelevavaaoreinodeMagada,umdos mais poderosos da época. Sob seus pés nus, o solo era seco epoeirento.Aoredordele,aluzeratãoclaraeanaturezaeratãoluxuriantecomotinhamsido29anosantes,nodiadeseuúltimorenascimentoentreoshomens.A cada dia que passava, Sidarta mendigava com humildade para se

alimentar quando atravessava vilarejos. Eles iam se tornando cada vezmaisnumerososàmedidaqueeleseaproximavadascidadesprósperasàsmargensdoGanges.Àportadeentradadoscasebresdebarro,osaldeõesentregavam de bom grado ao jovem renunciante biscoitos de cereal earrozcozido, frutasmadurase leite fresco.Àsvezes,ofereciamatéabrigoparapassaranoite.Senão,onoviçodormianomeiodomato,enroladoemumpano,sozinhosobacoberturadasestrelas.Depoisdealgunsdiasdecaminhada,oascetaGautamachegouaVaisali,

acapitaldos licchavis.Comonunca tinhasaídodapequenacidadedesuainfância, ele se demorou ali um pouco, até ouvir falar de um mestreespiritual de boa reputação que vivia rodeado de numerosos discípulosnos limites da cidade. “Em busca do estado supremo da paz sublime, fuivisitar Alara Kalama e lhe disse: ‘Amigo Kalama, desejo viver como umsanto de acordo com esta doutrina e esta disciplina’.” O guru aceitou seupedidosemdi iculdade:“Vocêpode icaraqui,meuamigo.Deacordocomesta doutrina, uma pessoa sábia é capaz de atingir rapidamente oconhecimentodaquelequeoensinaerealizá-lapormeiodoconhecimentodiretodaquiloqueseupróprioprofessorsabe 1”.Omestrenãomentiu.Porforçaderecitaçõeserepetições,onovoalunoaprendeurápidoadoutrinade Alara Kalama. Ele adquiriu ao mesmo tempo o domínio sobre novosconceitos que eram debatidos entre os religiosos reformistas. Com boasegurança,Sidartanãohesitouemselançaremdiscussõesprofundascomosoutrosdiscípulos.Sentadosnochãoemroda,osnoviçoscomvestescordeaçafrão,acordarenúncia,passavamlongosperíodos jogandocomseunovosaber,comparandoseuníveldeconhecimento.Semanas se sucediam a semanas. O jovem discípulo se destacava na

doutrinaensinadaporAlaraKalama,masoconhecimentoteórico,pormaisperfeito que fosse, não lhe bastava. Agora precisava experimentar essesabercomprofundidade,precisava realizá-lopessoalmente.Sidarta foiao

encontro de seumestre espiritual. Perguntou a ele até onde era possívelviverinteriormenteadoutrinaqueeleensinava,queriasaberatéquenívelo próprio guru chegara a experimentá-la... “Até a esfera do vazio 2”, omestre lhe respondeu. O bodisatva mobilizou toda sua convicção e suaforça de vontade, toda sua atenção e sua concentração, e rapidamenteconseguiu realizar interiormenteadoutrinadoguru, semnecessidadedeperseverarduranteváriosanos, comoaconteciacomosoutrosdiscípulos.Alara Kalama recebeu a notícia com entusiasmo: “Nós temos sorte, meuamigo, muita sorte de ter um companheiro assim na vida santa!”. Emseguida,omestrecompletou,emtommaissolene:“Osaberqueeuconheçoéomesmosaberquevocêconhece;osaberquevocêconheceéomesmosaberqueeuconheço.Venha,meuamigo,vamosagoradirigir juntosestacomunidade3”. Era uma honra muito grande, mas a proposta do mestredeixou Sidarta acanhado. No fundo, ele sabia com pertinência que adoutrina de Alara Kalama não levava à abolição do desejo, nem à pazinterior, nem ao verdadeiro conhecimento, nem à iluminação máxima...“mas somente à base constitutiva do nada4”. Depois de ter recusado aoferta,naquelemesmodia,ojovemrenuncianteabandonouoashram...Láestavaele,maisumavez, a caminhodo reinodeMagada.Depoisde

atravessaroGangesemumabarcaça,elecaminhouporumalindaestrada,largaebemplana,queacabaradeserlimpa.Diaapósdia,Sidartacruzavao tempo todo com muita gente: comerciantes empoleirados em cima decharretes transbordantes de mercadorias, mulheres e crianças que iamatéorioparaseubanhomatinal,pastorescomseusrebanhosdecabrasede vacas ou de búfalos, grupos de peregrinos a caminho de um localsagrado, soldados altivos conduzindo elefantes de guerra, trupes desaltimbancos acompanhados de ursos ou de macacos adestrados. E, àsvezes, até mesmo ascetas errantes, como ele. Ao seu redor, a paisagemtinha mudado. As lorestas virgens cheias de jasmins se tornavam maisraras, dando lugar a vastas extensões verdes de arroz que amadurecia.Enquanto altas colinas se per ilavam no horizonte, ele continuavacaminhando em ritmo regular, sem se deixar perturbar pela agitaçãocrescentequeanunciavaachegadabreveaRajagrha,aprestigiosacapitaldoreinodeMagada.Finalmente, certo dia, Sidarta atravessou os portões da imponente

cidade forti icada e rodeada por cinco montes íngremes que tambémserviam de proteção natural. Muito populosa, Rajagrha lhe pareceu, demaneiramuitojusta,maisextensadoqueVaisali.Etambémbemmaisrica.

Graçasaseusenormesjazigosdeminériodeferro,oreinodeMagadaeraparticularmentepróspero;estava,defato,emplenaexpansão.Giribbaja,aantiga capital, edi icada em uma elevação, tinha icado pequena demaispara abrigar todos aqueles que vinham se instalar na capital com aesperança de ali fazer fortuna. Construída bem a seus pés, Rajagrha, anova cidade vistosa, impressionava bem mais os recém-chegados. Mas oascetaGautamapermaneceuimperturbável.Nomeiodo luxoininterruptode passantes, foi penetrando tranquilamente na cidade, com o intuito demendigar o alimento do dia. Ele logo abandonou a ampla via ondecirculavamosveículosde traçãoanimal e seembrenhouemum labirintode vielas, ao longo das quais as moradias, os ateliês dos artesãos e asbarraquinhasdoscomerciantesseapertavam.Osestrangeirosseperdiamcomfacilidadenoemaranhadoruidosoecolorido...Felizmente,Sidartanãoprecisou se demorarmuito pelas ruelas com sua tigela demadeira paraesmolas nas mãos. Do mercador próspero ao servente modesto, eramnumerosos os habitantes que, desejando obter mérito, disputavam oprivilégio de dar alimento àqueles que tinham feito a escolha peloascetismo.Eaoveraquelejovemmendigandodemaneiraassimtãodigna,tãohumilde,emsilêncioecomacabeçabaixa,“semolharmaisadiantedesidoqueocomprimentodeumacarroça5”,oscidadãosnãohesitavamemsemostraraindamaisgenerososquedecostume.Umgrandeprédio tinhasidoerguidohaviapouco temponocoraçãoda

cidade para abrigar os viajantes e um amplo caravançará tinha sidoconstruído perto das muralhas para o repouso dos mercadores depassagem. O bodisatva, que preferia icar longe da agitação dos homens,logodeixoupara trásosmurosdacapitalpoderosa,antesqueosportõespesadosfossemfechadosparapassaranoite.Orapazchegouatéaencostado monte Pandava, ali bem próximo. Enquanto esperava para encontrarumnovomestre espiritual, o lugar lhepareceuperfeitoparameditar emsolidão.Duranteodia,umrochedoenorme,quetodomundochamavapeloapelido de Pico dos abutres, devido ao seu formato que lembrava a ave,protegiaobodisatvadosol.Comojáeraseuhábito,elepermitiaqueanoitequenteeestreladaenvolvesseseusonocomternura.Todas as manhãs, logo ao amanhecer, o asceta Gautama deixava seu

novo refúgio e descia até a cidade para recolher seu alimento do dia.Crente de que passava despercebido no meio da multidão, Sidarta nemdescon iava de que era objeto da observação atenta e discreta de umrapaz... Elevado ao trono com a idade de quinze anos, o soberano

Bimbisara só tinha cinco anos a menos do que ele. Desde que tinhaavistado o bodisatva pela primeira vez, no dia em que este chegara aRajagrha, o rei de Magada icava cada vez mais intrigado pelodesconhecidocomvestescordeaçafrão,esuaadmiraçãoporelecresciaacada dia devido a sua atitude exemplar. Como muitos de seuscontemporâneos,eleconsideravaocaminhodarenúnciaomaisnobredetodos. A cada manhã, ele espiava o jovem renunciante da torre de seupalácioeobservavacomatençãoomenordeseusmovimentos.Bimbisara acabou por incumbir seus homens de obter informações a

respeito do ascetamisterioso. Namanhã do dia seguinte, quatro agentesreaisseguiramSidartadepoisdesuacaminhadapelacidadepararecolheresmolas e chegaram ao sopé do Pico dos Abutres, onde o sábio estavasentadoàsombradeumaárvoreparaconsumirsuarefeiçãododia.Logo,um deles partiu para informar ao rei: “O monge, vossa majestade, estáacomodadonaencostadoPandavacomoumtigre,umtouro,um leão 6”. Osoberanoentãodecidiuirpessoalmenteatéolocalparaconhecera iguraquepareciasertãoforadocomum.Elelogofoiobrigadoaabandonarsuacharrete e percorrer o resto do caminho a pé. Ao chegar, umpouco semfôlego,Bimbisara inclinouo corpopara “saudar seuspés coma cabeça 7”,depois se sentou com todo o respeito ao lado do bodisatva. A aura queemanava dele o impressionou sobremaneira. Depois de uma troca deamáveis cortesias, Bimbisara lhe fez uma proposta inesperada: “Você énovo, jovem, na lor da juventude, dotado da estatura e da cor de umguerreiro de nascimento elevado. Faria bonito frente a um exército,liderandoumesquadrãodeelefantes.Ofereço-lhefortuna:aceite.Indagoarespeitodeseunascimento:conte-mecomofoi8”.Sidarta o informa de bom grado a respeito de sua linhagem real e de

pertenceraoreinodossakyas.Maselenãoaceitaaofertadorei,dignadeuma armadilha habitual do astutoMara. Ele tinha abandonado a vida depríncipe e renunciara ao desejo, cujos perigos ele tinha compreendido,para se refugiarno caminhoda renúncia edabuscada salvaçãoporque,como ele explica com muita paciência ao soberano, “é assim que o meucoraçãosealegra 9”.Escondendoadecepção,Bimbisaraentãofezcomqueele prometesse fazer-lhe uma visita no dia em que tivesse atingido ailuminação,paraensinarsuadoutrinaaele.Poucodepoisdesseencontro,Sidartase tornoudiscípulodeummestre

espiritual chamado Rudraka Ramaputra. De acordo com o Lalitavistara,esse guru, “conhecido, solicitado, muito venerado, estimado entre ossábios”, era um dos mais famosos da região. Incluindo a prática de

morti icações e de austeridades, assim como exercícios de respiração, osensinamentos dispensados por Rudraka Ramaputra tinham a fama deconduzir à contemplação absoluta, “à viagem em que não existem ideiasnem ausência de ideias10”. Seu retiro icava instalado em um bosque noslimitesdeRajagrha, seusdiscípulos “somavamonúmerodesetecentos11”.Sidartanãodemorouemseaproximardealgunsdeles.Observandoodomespiritual excepcional de seu companheiro de ascetismo dia após dia,Kondana, Bhaddiya, Vappa, Mahanama e Assaji logo adquiriram grandeestima pelo recém-chegado. Imagine só, o asceta Gautama era tão bemdotado que Rudraka Ramaputra até tinha lhe proposto que assumisse aliderança de sua escola! Deste modo, assim que o bodisatva atingiu omesmonível de conhecimento domestre e, insatisfeito com suadoutrina,anunciou sua partida para dar continuidade à busca pela verdade emoutrasparagens,osCinconãohesitaramnemumpouco:decidiramsegui-lo. “Sem dúvida, ele vai se transformar no preceptor do mundo e vaicompartilhar conosco aquilo que descobrir12”, os jovens noviçosesperavam,cheiosdeconvicção.Obodisatvaentãopartiu“emexcursãopelopaísdeMagadacomascinco

igurasdeboacasta13”.Láestavameles,deslocando-semaisparaosul,nadireção da cidade de Gaya, caminhando através da planície fértil doGanges, uma imensa colcha de retalhos de plantações e de arrozais,pontuadaaquiealiporpequenosbosquesemontesrochosos.Avidadoserranteséleveefeliz,oritmodacaminhadacombinaperfeitamentecomameditação,cadapassoéumapromessarenovadadealcançararevelaçãomáxima,aquelaquecolocafimaociclodasreencarnações.Ao chegar a cerca de dez quilômetros de Gaya, perto da localidade de

Uruvela,oascetaGautamaderepente icouprofundamentecomovidocomoespetáculodo“rioNairanjanacomsuaságuaspuras,suasbelasescadasde acesso, os lindos arvoredos que omargeiam, os lugarejos de pastoresque o rodeiam; e ali o espírito do bodisatva icou encantado desobremaneira: este canto domundo é cômodo,maravilhoso, favorável aoretiro... Preciso me instalar aqui 14”, ele teria declarado a seus iéiscompanheirosdeestrada.Mas, segundooutros relatosdo cânonepáli, foisomentenessemomento,quandoobodisatvase instalouemUruvela,queos Cinco teriam se juntado a ele para acompanhá-lo em sua busca pelaIluminação. Destemodo, eles são descritos como iguras que não tinhamnenhumaligaçãocomRudrakaRamaputra...Omaisvelhodeles,Kondana,éapresentadocomoomaisjovementreosoitoastrólogosqueexaminaramo

corpo do príncipe quando de seu nascimento. Seus quatro companheirossão os ilhos de seus antigos confrades, todos já mortos. Assim comoKondana, eles escolheramabandonarKapilavastupara seguir Sidarta emsua busca pela Iluminaçãoporque os pais os tinham informado, antes demorrer, do destino excepcional que estava reservado para o ilho deSudodanasealgumdiaadotasseavidadeasceta.Sejalácomotenhasido,ainstalaçãoemUruvelanacompanhiadosCinco

inauguraparaobodisatvaumperíodointensodebuscaespiritual.Apesarde ter avaliado como insu icientes as duas doutrinas ensinadas por seusprimeirosmestres,oascetaGautamanãorenunciouaosexercíciosdeiogae às práticas de austeridade em que eles o iniciaram: chegou até a sededicar a elas com ardor radical, experimentando em profundidadediversos caminhos religiosos considerados pouco ortodoxos pelosbrâmanes mais conservadores. Começava então uma busca deconhecimentoqueseriatãolongacomodifícil.O bodisatva se entregou primeiro a exercícios de retenção da

respiração: “É necessário que, depois de cerrar os dentes e pressionar opalatocomalíngua,euretenhacom irmezameupensamento,comaajudado espírito, que euo subjugue, que euo esmague completamente15”.Mêsapósmês,eleforçavacadavezmaisosexercíciosrespiratórios... Instaladoem um local afastado dos vilarejos, em uma pequena choupanarudimentar,queconstruíracomasprópriasmãos,oascetaGautamaseviaregularmente mergulhado em isolamento total, porque os Cinco nãopassavam todo o tempo a seu lado. Ele sentiu então, pela primeira vez, omedodeviversozinhonomeiodanaturezaduranteperíodosprolongados:“Asolidãoda lorestaédi ícildesuportar,édi ícilencontrarprazernofatode estar sozinho. Quando eu icava à noite em um desses lugaresassustadoreseangustianteseumanimalpassavaouumpavãoquebravaum galho ou o vento gemia entre as folhas, eume enchia de terror e depânico16”. Poucoapouco, ele foi aprendendoadomaromedoe amanterseuespírito“concentradoeunificado17”,fossemquaisfossemascondições.Sidarta prosseguiu mais e mais com seu trabalho respiratório, até a

cessaçãototalde“qualquerinspiraçãoequalquerexpiração,pelasorelhas,assimcomopelabocaepelonariz18”.Mas,apesardessesesforços levadosaoextremo,osresultadosespirituaisobtidosnãoiamaoencontrodesuasexpectativas. Em vez disso, ele se viu acometido de dores de cabeçaviolentas,problemasintestinaiseacessosdefebre...Ojovemascetadecidiuabandonaressesexercícios.

Ele se voltouparao jejum.Maisumavez, foi estendendoa experiênciaprogressivamente até o limite, ou melhor, a supressão completa dealimentação. Depois de vários meses, seu estado se tornouverdadeiramentepavoroso:

Meus lancos, em ruínas, tinham icado, sob o efeito do jejum, exatamente iguais às vigasapodrecidasdeumacabanavelha.Minhaspupilasbrilhantes,afundadasnasminhasórbitas,tinham icado exatamente iguais ao círculo de água espelhado que se vê no fundo de umpoçoprofundosoboefeitodo jejum.Apeledaminhacabeça,enrugadaeendurecida, tinhaicado, sob o efeito do jejum, exatamente igual à casca crua de uma abóbora amarga. Naverdade,eupensava:“Voutocarapeledabarriga”quandopegavanaespinhadorsale“voutocaraespinhadorsal”quandopegavanapeledabarriga,porqueeutinhachegadoaopontoemque,soboefeitodojejum,apeledabarrigaaderiraàespinhadorsal.19

Um dia, relata o livro dos Jataka, o bodisatva perdeu os sentidos

totalmente. Os boatos de sua morte então chegam até seu pai, emKapilavastu.Sudodana,quetinhacolocadofénaprofeciadeAsita,recusou-seadarcréditoànotícia...Umoutrorelatotradicionalinformaaindaqueojovem asceta, no im de suas forças e incapaz de fazer o menor dosmovimentos, terminou por icar tão parecido com um cadáver que asprópriasdivindadescomeçaramaacreditarqueeleestavamorto!Enquanto Sidarta impunha sofrimentos terríveis todos os dias a seu

corpoimóvel,adúvidaiaseinstalandoprogressivamenteemseuespírito...Até omomento emque uma velha lembrança de infância de repente lheabriuosolhos:aorelembrarodiaemque,longedequalquerausteridade,o espetáculo da cerimônia do trabalho no campo permitira que atingissepela primeira vez o estado meditativo, ele tomou plena consciência dainutilidade do ascetismo extremo e até de qualquer forma de penitência.Compreendeuque,durantetodosaquelesanos,seenganaraemrelaçãoaocaminho.

Poucodepois,aoabandonarde initivamenteojejummuitoseveroquepraticaraatéentão,obodisatva comeu um pouco de arroz e de cozido de grãos grelhados para adquirir forçassu icientes. Quando ele consumiu esta pequena quantidade de alimento, os cinco homensque o seguiam icaram completamente decepcionados e o abandonaram, dizendo um aooutro:“OascetaGautamaéinsensato,estúpido,perdeuoCaminho.Então,seráquenãoexisteumCaminhodaVerdade?”,epartirampelocampo.20

Quando os cinco tomaram a direção de Kashi, a cidade sagrada às

margens do Ganges, para ali dar continuidade à busca do conhecimentojunto a um outro sábio, Sidarta resolveu ir mendigar alimento nospovoados vizinhos. Muito enfraquecido, ele mal conseguia andar. Suasvestes tinham se tornado farrapos havia muito tempo, e ele precisava

cobrirocorpo.Então,encontrounocaminhoamortalhadeumcadáverou,segundo outras lendas, os andrajos de uma velhamoribunda. Depois delavar esses traposno rioNairanjana– alguns falamdeumriachinhoqueteria aparecido como que por encanto –, ele os ajeitou como se fossemvestes de monge. E agora estava pronto para se dirigir ao vilarejo maispróximo.Masnãoconseguiu irmuito longe.Exausto,sentou-seaospésdeuma árvore. Foi nesse momento que o destino chegou para ajudá-lo...Sujata,a ilhadochefedovilarejodeSenani,tinhaenviadosuacriadaparafazer umabela oferendade arrozpara a divindadequemorava emumaárvore sagrada da loresta vizinha. Aliás, ela tinha dado à luz um ilhonaquelamanhãe, comoeramuitodevota, não tinha esquecidodehonrarsuapromessa.EfoiassimqueacriadadeSujata,acreditandoqueSidartanão era ninguémmenos do que a divindade encarnada, entregou a ele acopiosaoferenda!Graças a essa oferenda providencial, o bodisatva recuperou

rapidamente a força ísica. Mas se viu totalmente desorientado em suabusca espiritual e completamente sozinho. Ele tinha abandonado suafamília, seus amigos, seus dois mestres espirituais e agora tinha sidoabandonado, da noite para o dia, pelos seus cinco discípulos. Com aaproximação de seu aniversário de 35 anos, ele já tinha esgotado doisgrandesdomíniosdaexperiênciahumana:avolúpiadavidadepríncipedesua infância e depois o ascetismo da vida de renúncia à qual ele sededicara durante seis anos. Cada um por sua vez, ele tinha renunciadode initivamente a esses dois caminhos opostos, mas absolutamenteextremos. Como acontecera depois de sua fuga de Kapilavastu, lá estavaele mais uma vez totalmente entregue a si próprio em sua busca pelasalvação.Noentanto,oascetaGautamanãosedeuporvencido.Umaúnicaperguntanão lhe saíada cabeça: “Seráquenãoexisteumoutro caminhoparaaIluminação21?”.

ValedoGanges,porvoltade500a.C.Na Índia, a efervescência intelectual chegava a seu auge. Por todos os

lados, espíritos livres e críticos apresentavam novas especulaçõesmeta ísicas, imaginavam novas práticas religiosas para agitar a herançavédica.Nas terras férteisbanhadaspeloGanges, uma revolução ilosó icaestava em andamento. A sociedade mudava, e a religião dominantetambém. Nas cidades dos grandes reinos, as elites intelectuais seentregavam a debates in lamados a respeito das questões espirituais.Organizadas empraça pública, as disputas de oratória entre brâmanes egrandesmestres espirituais passavam a interessarmais àsmultidões doque os grandes rituais de sacri ício. Nas rotas de caravana,monges semdomicílio e ascetas vagabundos se cruzavam e confrontavam suasdoutrinas aomesmo tempo em que, à sombra das lorestas, novos gurusatraíam um número cada vezmaior de adeptos vindos para seguir seusensinamentos. Isolados ou em grupo, esses renunciantes usavam toda aimaginaçãoparasedestacarpormeiodaaparência...Alguns,comocabeloeriçado sem nunca ter sido cortado e vestes de casca de tronco,confundiam-se comas árvores; outros andavamde cabeça raspadaepésdescalços, cobertos simplesmente com uma pele de tigre; outros aindaicavam completamente nus, apenas “vestidos de ar” ou com o corpocoberto de cinzas. Muitos entre esses ascetas se faziam notar por votosquase sempreconsideradosexcêntricos, comoporexemploodeadotarocomportamentodeumavaca...Duranteseus longosanosdebusca,SidartaGautama inegavelmente foi

iniciadonopensamentobramânicodeseutempo,assimcomoemumcertonúmero de outras correntes espirituais inovadoras. É isso que conclui oestudodosrelatosbudistas,queoferecemumbomapanhadodocaldeirãoreligioso fervilhante do Norte da Índia. Já os textos originários de outrasgrandes tradições religiosas indianas permitem que se complete opanorama de múltiplas seitas e movimentos de reforma que sedesenvolveram na época e que, de perto ou de longe, também puderamin luenciaro futuroBudaemsuabuscaespiritualenaelaboraçãodesuaprópriadoutrina:“ApesardeterseexpandidoparaamaiorpartedaÁsiano decurso dos séculos, o budismo é profundamente indiano em suasorigens; nasceu em um meio inteiramente indiano, em resposta apreocupaçõesespirituais tipicamente indianas,queénecessárioconhecerpara poder compreender 1”, observa, com muita propriedade, o grande

especialistaAndréBareau.Oper ildoprimeiromestreespiritual encontradopelobodisatva,Alara

Kalama, permanece obscuro e di ícil de discernir. Por outro lado, osegundo, Rudraka Ramaputra, aparece com bastante clareza como ummestre bramânico que ensinava os conceitos desenvolvidos pelosUpanixades,textosquefaziampartedaRevelaçãocompostaemsânscrito.OsprimeirosUpanixades–palavracujosentidoliteralé“sentar-seperto

de,aospésde”–apresentam-secomoescritos iniciaisbastantecurtosemque os ensinamentos esotéricos e secretos têm como objetivo sertransmitidos do mestre aos discípulos. “A viagem em que não existemideiasnemausênciadeideias2”descritaporRudrakaRamaputrapodeseraproximada da famosa fusão entre oatmã e obrâman pregada pelosUpanixades.Essaosmosesalientamaisumconhecimentodotipomísticoougnóstico,queultrapassaaspalavras,doqueumatomadadeconsciênciadeordem intelectual. De acordo com o bramanismo, ela permite alcançar amáxima libertação, amoksha. Emoutros termos, a união entreoatmã e obrâman conduz diretamente à salvação, já que permite à alma queinalmente se liberte dosamsara, o ciclo infernal das reencarnações, noqualelaémantidacomoprisioneiradevidoàleidocarma.Comosigni icadoliteralde“ação”,ocarmaéarelaçãodecausaeefeito

emvirtudedaqualcadaato–emesmoqualquerpensamentoequalquerpalavraparaos“seressuperiores”–acarretaconsequênciasqueafetamoeu profundo de renascimento em renascimento. A lei do carmacorresponde ao peso dos atos, bons ou ruins, executados ao longo dasexistênciasanteriores,quecondicionacadaumanascernestaounaquelasituação. Em outras palavras, em um lugar especí ico no seio de um dosquatrovarnas: “Aquelesque se conduzemdemaneiraagradávelna terrapodemesperar entrarnamatriz agradável deumamulherda classedosbrâmanes, doskshatriya oudosvaishya.Masaquelesquetêmmácondutadevem saber que vão entrar em umamatriz imunda, de uma cadela, deuma porca3...”, lembra um dos mais antigos entre os 108 Upanixadestradicionalmentecitados.Nessas condições, o sofrimento humano encontra sua explicação e a

hierarquiasocialse justi ica...A teoriadocarma forçacadauma icaremseu lugar, quer dizer, a se contentar com os direitos e deveres que suaposiçãocompreendesequiserorientarseudestinodemodofavorável–oumelhor, nascer em melhor condição. Ainda assim, os homens podem selibertar do ciclo de reencarnações, aqui e agora, no decurso de suaexistência presente: para tanto, é necessário realizar em si mesmo o

famoso preceito doUpanixade Chandogya: Tat tvam asi, “Você é Isso”.Aquelequeconseguesetornaumjivanmukta,um“libertovivo”quejánãotemmaisnenhumaobrigaçãosocialoureligiosa.Por professar teorias e opiniões diversas, osUpanixades não são textos

dogmáticos; eles estão na origem das seis grandes escolas ilosó icas dohinduísmo clássico. A corrente ilosó ica denominadaVedanta, ou“Realização doVeda”, apoia toda a sua problemática nos Upanixades paraa irmar que o mundo empírico não passa de um re lexo e que não temexistênciapor si só: a osmoseatmã-brâman é, assim, cadavezmaisdi ícilde atingir, uma vez que omaya, a força da ilusão, impede que o homemperceba a essência das coisas e o mantém na ignorância meta ísica. AoidealismodoVedanta,queéummonismo,iráseopororealismodaescolachamada “Samkhya”, ateísta, que reconhece a existência da matéria emmesmotítuloqueadoespíritoevisaaoconhecimentodouniversoemsuatotalidade. Apesar de desconhecermos a natureza exata dos elosestabelecidos entre os dois, o fato é que a escola Samkhya e o budismoapresentamemseusdesdobramentosdiversospontosdeconcordância.Por hora digamos que, apesar de os primeirosUpanixades deixarem

transparecer “visões”diferentes,aconcepçãogeraldomundoqueadvémda doutrina bramânica da união com a alma universal leva a uma certanegação da vida terrestre. Esta se torna sinônimo de sofrimento, e umacerta descon iança relativa a seus atos se instala. Para alcançar oconhecimentomáximoquelibertaohomemdosamsara,omelhorcaminhoexaltado pelos autores dosUpanixades é, assim, o da renúncia aomundo,tanto aos bens terrestres quanto aos apegos familiares. Contudo, arenúncia àquilo que é temporal não será su iciente em si para obter aunião com obrâman. É necessário também conseguir se libertarcompletamente do desejo, dominar o pensamento e se concentrar nomundo imaterial. OsUpanixades dão diversas instruções a respeito damaneira de atingir essa absorção no in inito: para aquele que abandonatudo,asportasseabremnadireçãodediversaspráticasdeascetismo,taiscomo a meditação, o jejum ou otapas, “sufocamento”, exercício deautocontrolequeépraticadoentrequatrofogueirassobosolmaisquentedodia.Sinal dos tempos, namedida emqueos caminhosda libertação tomam

formas variadas, o vocabulário utilizado para designar os renunciantestambém se multiplica. Retornando ao Veda,yati, que signi ica “asceta”,continua sendo usado, assim comouratya, “aquele que faz um voto”, e

muni, que designa um anacoreta silencioso. A partir de então, fala-setambém dosbhikshu, “mendicantes”, dos vanaprastha, “eremitas daloresta”, dos pravrajin, “aqueles que partem”, ou ainda dosavadhuta,“despojados”. Só mais tarde os sannyasin viriam a se transformar nosrenunciantesporexcelência.MasSidartaGautamanão foi iniciadoapenasnos conceitosbramânicos

dosUpanixades.ÀsmargensdoGanges,asespeculaçõesmeta ísicas,assimcomo a experimentação de técnicas psico isiológicas, não estavamreservadasaosbrâmanesouaos“nascidosduasvezes”queescolheramarenúncia:diversostextosmencionamaexistênciade iguraschamadasdeshramanas, “aqueles que se esforçam”. Eles se entregavam igualmente aumavidadeascetismoedemeditação,masàmargemdomeiobramânico.Vivendo em solidão ou em grupos, eles pertenciam a movimentosalternativos,oueramassimiladosporeles.Atradiçãobramânicaconsiderasuasteoriasoumétodoscomonãoortodoxos.ApartirdodiaquerejeitaoensinamentodeRudrakaRamaputra,obodisatvaentraprogressivamenteno movimento shramânico. Depois de atingir a Iluminação, Buda iria setransformar,poucoapouco,emumdosshramanasmaisrenomadosdeseutempo.Quemserãoentãoos“hereges”dequeobodisatvapodeterouvidofalar,

oucomquematémesmocruzoupelocaminho?PorvoltadoséculoVa.C.,contam-se pelo menos duas dezenas de seitas heterodoxas diferentes.Entre elas, muitas continuam sendo di íceis de identi icar por não teremsobrevivido a seu tempo. Às vezes, os únicos vestígios deixados são seunomeouo títulode suadoutrina, citadospelos textosdobramanismo,dobudismoedojainismo,quebuscavamnegá-lasoucondená-las.Formandoumgruporelativamente importante,masnãohomogêneo,os

materialistasseapresentavamemoposiçãototalaobramanismo,tantoemrazãode suadoutrinaprovocativaquantode seumodode vida, bastantelibertino.Algunsdelessãobemconhecidos.ÉocasodeAjitaKesakambala,literalmente,“AjitadoTecidodeCrina”,ograndemestredoslokayatas,quenegavaarealidadedasvidaspassadasoufuturas:“Quandoocorpomorre,os insensatos, como os sábios, perecem. Eles não sobrevivem à morte 4”.Acreditando nos fenômenos naturais, o fundador da seita prega arealidadeeternadamatériaeconsideraqueseregozijardosprazeresdavida presente é o objetivo supremo: “É um tolo, tanto quanto um animal,aqueleque,portemor,desprezaoprazerquelhecabe5”.Namesmafamíliaencontram-se ainda os niilistas, ou nastikas, “aqueles que dizem não”,

assimcomooscharvakas,“belosoradores”,comoosbrâmanesoschamamparadenegrirsuafilosofiaateiaehedonista.Umaoutraseitain luentecontemporâneadeBudaéadosajivikas.Essa

ordemdeascetas,queperdurariaatéoséculoXIV,segueosensinamentosde um famoso guru denominado Gosala Maskariputra. Os ajivikasrefutavam o conceito do carma,mas aceitavam o dosamsara. Fatalistas edeterministas, eles pregavam uma teoria do destino segundo a qualnenhumaaçãotemin luênciasobreociclodasreencarnações:“Nãoexisteforça, nem esforço, nem energia humana, nem empreendimento humano.Todos os seres vivos, toda a vida, todos os seres, todas as almas sãoimpotentes, privadas de força, desprovidas de esforço 6”. A libertação sópode ser atingida ao cabo de um número considerável de vidas que sesucedemdemaneira inexorável, “damesmamaneira que um carretel delinha, quando lançado, chega ao im apenas se desenrolando, da mesmamaneira, depois de terem transmigrado e vagado a esmo, os sábios e ostolos, igualmente, chegarão ao im do sofrimento7”. Considerando quetenham atingido o último renascimento, os monges ajivikas se preparampara a Libertação pormeio de um ascetismomuito austero. Vários delesseguem o exemplo do mestre Gosala Maskariputra no fato de andaremtotalmentenus eusaremasmãosemvezdeuma tigelademadeirapararecolheraesmolaquelhesédada.Mestre espiritual próximo da seita dos ajivikas, Purana Kassapa era

aindamaisradicaldoqueGosalaMaskariputra.Elecriticavacomfervoroconceito bramânico do carma e chegava a negar qualquerresponsabilidade moral. De acordo com a tese de Purana Kassapa, oassassinato e o roubo não são atos repreensíveis, assim como não existemérito algum em se tornar asceta. Por consequência, Purana Kassapaensina uma teoria do não agir chamadaakriyavada. Finalmente, umterceiromestre,PakudhaKacchayana,viriaainfluenciarigualmenteaseitados ajivikas com sua doutrina do atomismo e das sete substâncias“eternas”–asaber,aterra,aágua,ofogo,oar,aalegria,atristezaeavida.Aessascorrentesmaterialistase fatalistasse juntavaadoscéticos,que

era composta por vários grupos. Os textos bramânicos citam os tarkins,dialéticos imbuídos de especulação e versados em lógica. Já osparibbajakas formamumgrupo importantedeascetasdecabeçaraspadaque seguem os preceitos de um mestre agnóstico chamado SanjayaBellatthiputta. Considerando que é impossível ter qualquer certeza emrelação ao além, esse cético absoluto se recusava a responder qualquerpergunta em razão de suas dúvidas sobre a natureza do saber e os

fundamentosdalógica.Poravaliarquenãoépossívelrespondernemsim,nemnão,nemmesmo“nem-sim-nem-não”,elepediaaseusdiscípulosquese concentrassem na realização interior e na preservação daimpassibilidademental.Osadeptosdaiogaescapavam, inalmente,dequalquerclassi icação.Os

iogues não constituíam uma seita distinta; eram encontrados tanto juntoaos brâmanes quanto junto aosshramanas. Apesar de suas doutrinasseremdiferentes,tantoRudrakaRamaputraquantoAlaraKalamaensinamvisivelmenteaiogaaseusalunos.Várias hipóteses coexistem em relação às origens da ioga, mas todas

concordamema irmarqueelas remontam, semdúvida, amuitoantesdoséculoVI a.C., época emque a palavra aparece noUpanixadeKatha. Paraalguns, a fonte principal da ioga é com certeza otapas praticado desde aépocavédicapelosgrandesbrâmanescomoobjetivodeadquirirpoderessobrenaturais.Paraoutros,aiogaterianascidodoencontrodaculturadosarianos com a das populações autóctones do vale do Ganges quepraticavam o xamanismo. Finalmente, segundo uma terceira hipótesebaseadanadescoberta,noPaquistão,deumselocomumhomemsentadoem postura de iogue, a ioga seria anterior ao vedismo e remontaria àcivilizaçãodoIndo,ouseja,entre2500a.Ce1800a.C.Sejacomofor,comoatestaefetivamenteorelatodosseisanosemqueo

bodisatva vagou, a ioga era bastante disseminada na Índia antiga. Osiogues são apresentados como ilósofos especializados no domínio datécnicadocorpoedoespírito,eaioga,comoumadisciplinapsicossomática,uma técnica de condicionamento ísico que visa a salvação individual. Àimagem do termo ioga – que vem do sânscritoyug, “ligar”, “atrelar”,“domar”–,éfácilcompararoresultadodaiogasobreopensamentocomoadestramento de um animal astuto e fogoso por um cavaleiro. De acordocom osUpanixades, a ioga representa uma via de acesso aobrâman queimplica reabsorção em si mesmo, uma suspensão das percepções e dassensações: “O caminho supremo é nomeado quando os cinco modos deconhecimento do pensamento estão em repouso e a razão não semovimenta.Eleécompreendidosobonomedeioga,odomínio irmesobreos sentidos. Ficamos então concentrados, porque a ioga é produto de ummundo interior eda reabsorçãodaspercepções externas 8”.O objetivodaioga é, portanto, atingir, por meio do treinamento duplo do corpo e doespírito, um estado de meditação e de concentração absoluta chamadosamadhi,umaexperiêncialibertadoramáximaquenãolevaaoêxtase,mas

sim,segundoaexpressãodeMirceaEliade,ao“ênstase”.A prática da ioga geralmente compreende o trabalho das posturas e

também da ixação do espírito em um objeto determinado que deve seseguir pela meditação interior. No entanto, o exercício incontornável daioga,queSidartapraticoucommuitoardor,éodomíniodarespiração,oupranayama,porqueoaréumarepresentaçãoaomesmotempoempíricaesimbólica doatmã, ou pelo menos é uma emanação dele. “A respiraçãonasce do atmã9”, ensinam de fato osUpanixades, já que é o suportepermanenteeindispensáveldavida,aúnicaenergiaquecontinuaativadomesmomododuranteosonoeoestadodevigília.O panorama da efervescência religiosa e intelectual da Índia no tempo

de Buda icaria incompleto se deixássemos de mencionar Vardhamana,mais conhecido sob o título honorí ico de Mahavira, o “Grande Herói”.Figura-chave entre os numerosos shramanas queensinavamumcaminhoque levava à salvação, Mahavira é considerado pelos historiadores ofundadordareligiãojainista.Paraseusadeptos,ojainismoremontaaumadata bem anterior à existência do mestre. Os jainistas, aliás, consideramque Mahavira tenha sido o último de uma linhagem de homensexcepcionaisquealcançaramoconhecimentosupremo,os24Tirthankarasou “Atravessadores de Vau”, que eles reconhecem como os mestreshistóricosdesuareligião.Se acreditarmos nos relatos tradicionais, Vardhamana primeiro se

associou, por seis anos, a Gosala, o chefe dos ajivikas, antes de seuscaminhossesepararemdevidoadivergênciasdedoutrina.Diferentementedo fatalismo pregado por Gosala, Mahavira acredita no livre arbítrio. Eleensina a seus discípulos que os atos podem in luenciar o curso dasreencarnações: o termo jain, que vem do sânscritojina – “vencedor”,“vitorioso”–,designaaqueleque,porsuadisciplina,chegouase livrardociclodosrenascimentos.Entre todos os movimentos xamânicos de sua época, a grande ordem

monástica desenvolvida por Mahavira iria se impor com muita rapidezcomoaconcorrenteeadversáriamaisimportantedobudismo.Aindamaispelofatodequeosensinamentosdosdoismestreshistóricosencontraramdiversas semelhanças... Será que Buda se inspirara diretamente nojainismo para elaborar sua própria doutrina? Ou seria o contrário?Voltaremos a cruzar o caminho de Mahavira mais adiante para tentarsolucionar essa questão. Mas é necessário admitir que estabelecer acronologia, e portanto a genealogia, das ideias ilosó icas e religiosas da

épocanãoé tarefa simples.Restituirprecisamenteo jogode in luênciasedeadoçãode ideiasentreosgrupospresentes se revela comoalgoaindamaisdifícil.Aconclusãoéqueoaparecimentodobudismo,emsoloindiano,porvolta

doséculoVIa.C.,nãotemnadadefortuito.ComoAndréBareaujárepetiutantasvezes,obodisatvaeraindiano,damesmamaneiraqueadoutrinadeBudaseria,antesdetudo,indiana.Quandocomeçousuapregação,osábionão era considerado o fundador de uma nova religião, no sentido queentendemos hoje em dia, mas sim um dos numerosos reformistas dareligião dominante que se a irmava no movimento do shramanismo. Edevidoao fatodequeadoutrinadeBudaserevelouespecialmenteapardastransformaçõesnasociedadeindiana,obudismoacabousendoemsuaterradeorigemumverdadeirosucessopopular,superioraoquequalqueroutromovimentosectáriopudessealegar,incluindoojainismo.

IluminaçãoEraprimavera,a tarde iachegandoao im.Graçasàoferendagenerosa

deSujata,obodisatvarecuperouinstantaneamentetodooseuvigoresuaa beleza do passado. Apesar de seus companheiros o terem abandonadodanoiteparaodia,elenãoduvidavadequesuadecisãoderenunciaraoascetismo extremo estava bem embasada. Para dizer a verdade, Sidartanuncasesentira tãopertodoobjetivoque tinhaestabelecidoparasi, seisanos antes, aopartir deKapilavastu... Pouquíssimo tempoantes, umdeusviera “das Viagens Puras 1” para revelar-lhe que ele iria se elevar aoconhecimentomáximoaopédeumaárvoresagradachamadafigueira-dos-pagodes. Melhor ainda, na noite anterior, cinco sonhos premonitóriostinham-noavisadosobreaiminênciadaaquisiçãodeBodhi,ailuminação...Sereno, o bodisatva se embrenhou em uma loresta de árvores sal

próxima a Uruvela, que logo se transformou em cenário fantástico. Asárvores se inclinavam quando ele passava, depois, “no meio de duaspalmeiras2”, apareceuum riacho “cheio de águaperfumada, como fundodeareiasdeouro,cobertode loresde lótusazuis,amarelas,vermelhasebrancas3”. Enquanto tambores repicavam à distância, “às centenas demilhares4”, papagaios, gaios, cisnes e pavões apareciam para saudá-lo.Imperturbável, ele prosseguia tranquilamente em seu caminho. Foi entãoque avistou uma árvore majestosa, cujas folhas, escuras e reluzentes,terminavam em pontas compridas, recurvadas para cima. Sidartareconheceu imediatamente a venerável igueira-dos-pagodes. Prima daigueira-de-bengala, ela cresce sempre isolada nos bosques, como sequisessesedistinguirdasoutrasespécies.Éumaplantasolitária,àimagemdo rapaz naquele dia. Desta vez, o bodisatva sabia que tinha chegado aolocal exato onde aquilo que ele tanto procurara iria se realizar. Embaixodaquelafigueira-dos-pagodes,elechegariaàiluminação.Naquelanoite...oudepoisdealgunsdias.O sol deslizou lentamente para trás das árvores. Em pé ao lado da

igueiragigantesca,Sidartaestavaabsorvidoemsuaconcentraçãoquandoumhomem,semdizerpalavra,entregouaeleoitobraçadasdefenoaindaverde. O desconhecido logo se retirou, como que engolido pela escuridãoque começava a cair. O bodisatva deu então sete voltas na Árvore doConhecimento e a saudou com respeito, depois se acomodou emumbelotufodeervasdekuça.VoltadoparaoOriente,elesesentoucomaspernascruzadas e o tronco bem reto, na posição de lótus, em seu “trono de

sabedoria5”. O “Ser prometido à Iluminação” tocou a terra com a mãodireita.Sua intençãoeraquea “mãedosseres 6” fosse testemunhadesuaresoluçãosolene:“Seminhapeleressecar,semeusmúsculosmurcharem,se meus ossos se dissolverem, assim como a carne e o sangue do meucorpo, eu não irei me preocupar! Enquanto eu não tiver penetrado asabedoria suprema e de initiva, não irei me mexer deste assento 7”. Asdivindades benevolentes se aglomeraram ansiosas ao redor da igueira-dos-pagodesparaassistiràIluminaçãodeSidarta...Elasqueriamtantovê-loconseguir!O bodisatva mal tinha entrado em estado meditativo quando Mara

resolveuinterferir.Odeus,tãopoderosocomodemoníaco,tinhaaintençãode não permitir que ele alcançasseBodhi: se o rapaz descobrisse ocaminho da salvação e o divulgasse aos homens, colocaria em perigo odomíniodeMarasobreodesejoeo samsara!O“SenhordasSombras8”nãohesitou em deslocar seu exército formidável para junto da árvore... “Dedeixar os cabelos em pé9”, o exército é formado de criaturas ao mesmotempo apavorantes e grotescas. Meio humanos, meio animais, essesdemônioshorrorososedisformes,com“olhosvermelhosefaiscantescomoos da serpente negra cheia de veneno10”, erguem nas mãos, com fúria,armasmortais... Mas todas as espadas, lechas, machados, clavas, raios efoguetes, ao atingirem a aura luminosa que rodeava Sidarta,transformavam-se instantaneamenteem lores frescasecaíamaseuspéssemtocá-lo.Depoisdessaderrotahumilhante,Marapreferiuaparecernaforma do senhor dos prazeres sensuais. Munido de lechas com pontasloridas que excitavam os sentidos, ele se fez acompanhar dasmulheresmais bonitas. Ao se aproximarem do bodisatva, “cheias de desejo 11”, elasmostrarampara ele toda “amagia dasmulheres, que tem32 espécies 12”.Enfeitadascomsininhosepulseiras,algumasrevelavamcorposdemenina;com os cabelos untados com unguentos perfumados, outras mostravam“formas de mulheres em idade madura 13”. Algumas, com o rostomascarado, brincavam e davam risada, desnudando-se naturalmente desuasvestestransparentes.Comoolharoucompalavras,todasconvidavamo bodisatva a se juntar a elas... Em vão. Como não conseguia desviar aatenção de Sidarta nem mesmo pelo espaço de um instante com oschamativossensuais,Maraentãodesencadeoutodasasforçasdouniverso.A igueira-dos-pagodesnãofoicapazde impedirqueachuvatorrencial,ofuracão, os ventos furiosos e os raios se abatessem sobre o rapaz. Asprópriasdivindades logo icaramcomtantomedoque fugiramnadireção

de seus reinos. Mas o bodisatva, inabalável, permanece profundamentemergulhado em sua meditação. “Como a gralha que ataca um rochedo,estoume cansandodeGautama14”, constatou comamargoro “SenhordasSombras”.Eseretirouparaomundodastrevas.Como na ocasião do nascimento de Sidarta, a lua cheia do mês de

vaisakha iluminava a cena. Coma apariçãodo astro, começavauma longanoitedecisiva:quandochegasseoamanhecer,obodisatvateriadadolugaraBuda.Os deuses reapareceram em peso ao redor da igueira-dos-pagodes

para assistir ao “grandemilagre 15”. Este se desdobrou em três etapas ou“vigílias16”. Durante a primeira, Sidarta percorreu sucessivamente osquatroestadosdemeditaçãoque liberamtotalmenteoespíritodomundosensível.Porterrejeitadopoucoapoucoaspaixõeseodesejo,oraciocínioeare lexão,aalegriaeoprazer,adorea tristeza,eleatingiuumestadode “pureza perfeita de indiferença e de atenção, nem di ícil nemagradável17”. A segunda vigília o levou a penetrar progressivamente emtodos os mundos dos seres acorrentados pela lei do carma: Sidartaprimeiro adquiriu a visão grandiosa e detalhada de suas próprias vidasanteriores,depoisadosrenascimentosdetodososoutrosseres,“humildesou ilustres, belos ou feios, com destino bom ou ruim18”. Durante a últimafase da noite, ele meditou longamente sobre a natureza da experiênciahumana, até tomar consciência das leis que regem o sofrimento daexistênciaeociclodasreencarnações.Sóentãoelealcançoua“Iluminaçãosupremaecompleta19”.Com as primeiras claridades da aurora, Sidarta Gautama se libertou

para sempre da condição humana. Com a idade exata de 35 anos, ele setornou um “Buda perfeito e realizado20”. As primeiras palavras doIluminado saudaram o acontecimento: “A vida santa foi levada até suaconclusão!Aquiloquedevia tersidoconquistado foi conquistado,esteéomeu último nascimento, não haverá mais volta21!”. Outras lendasapresentam a seguinte versão: “Eu atravessei um ciclo de diversosrenascimentos sem conseguir encontrar o criador desta morada; esterenascimento perpétuo é doloroso. Agora que foste descoberto, óconstrutordesta casa, jánão construirásmaisnenhuma22”. Naturalmente,entre as diferentes versões que relatam o “Grande Milagre”, a doLalitavistaraéamaismaravilhosa:enquantotremoresdeterraeprodígiossemanifestavam aomesmo tempo “em todos osmundos”, os deuses “detodas as classes”, acompanhados de todos os bodisatvas e de todos os

budas, apresentavam-se “aosmilhares” ao redorda “rainhadas árvores”paraprestarhomenagemaoAfortunado!Buda passoumais sete semanas emmeditação completa; outros dizem

que foram “quatro vezes sete dias 23”. Na primeira semana, como um reiquenãodeveabandonaro localde sua consagraçãoduranteos setediasqueaseguem,elepermaneceusentadoemposiçãodelótussobreo“tronoda Iluminação24”, protegido pela árvore do Bodhi. Quando começou asegunda semana, ele mudou de lugar. De acordo com algumas fontes, oIluminado se instalou a nordeste da igueira-dos-pagodes, à distância decatorze passos. Depois de dar meia-volta, ele ixou o olhar no trono doConhecimento durante sete dias, sem jamais piscar os olhos. Os deusesicaram inquietos, avaliando que ele talvez estivesse apegado demais aotrono. Para dissipar suas dúvidas, o Afortunado deu então uma pequenademonstração de seus poderes: ele se ergueu até o céu e depois, aoretornar ao solo, deixou jorrar simultaneamente uma gigantesca tromba-d’águadeumaorelhaeumaforteerupçãodefogodaoutra!Nodecursodasduassemanasseguintes,oIluminadovagoulongamente

sobre uma passarela de ouro e de prata, incrustada de pérolas, deesmeraldas,de rubis edeolhos-de-gato,depoismeditouna casadas setejoias que os deuses construíram para ele a nordeste da igueira-dos-pagodes. OLalitavistara chegaatéa invocar “umcurtopasseiodomardoOrienteatéomardoOcidente25”.Buda passou a quinta semana também em meditação. Mas agora ele

tinha se acomodado a oeste da igueira-dos-pagodes, embaixo de umaigueira-de-bengala.As ilhasdeMara,por iniciativaprópria, tentammaisuma vez desconcertá-lo, assumindo traços de beleza lasciva. Totalmentedevotas de seu pai, elas adorariam ser capazes de lhe dar um pouco deconsolo!Escondidonasombra,odevamalé icode fatoobservavatodasasações de Buda depois de sua realização. E quanto mais as semanaspassavam, mais ele se cansava de esperar. A última tentativa de suasmulheres foi um iasco: Buda permaneceu impassível e se contentou emtransformá-lasem“velhasdecrépitas26”.Durante a sexta semana, o Iluminado se colocou a sudeste da igueira-

dos-pagodes, embaixo de uma outra árvore, perto do lagoMucalinda. Derepente,uma tempestade terrível se iniciou.Eraocomeçodaestaçãodaschuvas.Empoucosinstantes,odiasetransformouemnoiteeachuvacaiucomviolência.AárvoresobaqualBudaestavasentadonãobastavaparaprotegê-lo das trombas-d’água... Foi então que uma serpente majestosa

saiudasprofundezasdolago–outalvezdasombradaárvore–semfazerbarulho. Mucalinda, porque este é o nome do rei dosnaga, enrolou comsuavidade seus anéis ao redor do corpo de Buda, sete vezes, até colocarseucapuzdenajaporcimadacabeçadeleeformarumextensoanteparo.Quando as nuvens inalmente se dissiparam, o rei das serpentes setransformou, como que por encanto, em um lindo adolescente que seprostrouperanteBuda.A sétima semana se passou ao sul da igueira-dos-pagodes. Buda,

sentado embaixo da árvore chamada de “Rajayatana”, “viagem de rei”,terminou sua meditação. No último dia, dois homens chegaram para seapresentar a ele. Chamados Tapussa e Bhallika, eles eram irmãos ecomerciantes. Estavam fazendo uma longa viagem através do Norte daÍndiacomuma“grandecaravanadequinhentascarroças 27”.Ao chegaremà regiãodeUruvela, eles foram informadospor umdeusdapresençadeum ser excepcional. Depois de se prostrarem, Tapussa e BhallikaofereceramaBuda substanciososdocesde arroz commel.Apesarde terpassado semanas sem comer, o Afortunado permaneceu completamenteimóvel, e isso signi icava que não podia aceitar a oferenda. Os “quatroguardiões divinos dos pontos cardeais 28” que vigiam o universoconstantementelogocompreendemoproblema...ElesaparecemperanteoIluminado e opresenteiamcomquatro tigelas feitasdepedraspreciosas.Mas Buda recusa a oferenda deles damesmamaneira. Os guardiões lheoferecemmaisquatrotigelas,destavezfeitasdematériacomum.Desejosode que cada um deles pudesse se bene iciar do mérito da oferenda, oIluminado aceita todos os recipientes. Depois, como que por magia, eleinstantaneamentetransformaasquatrotigelasemumasó.Buda então consumiu os doces de arroz oferecidos pelos dois irmãos.

Antesdepediremlicençaparaseretirar,elesseprostraramcomdevoçãoaseuspéseproclamaram,porsuavez:“Apartirdehojeedurantetodootempo em que vivermos, nós con iaremos em você29”. Depois, Tapussa eBhallikapediramaosábioumamechadecabeloparaquepudessemlevarpara seu país um objeto de veneração. O Afortunado atendeu ao pedidodeles e lhes entregou exatamente oito cabelos. Os devotos, satisfeitos,foramembora.NoquinquagésimodiadepoisdaIluminação,Budavoltouparabaixoda

igueira-de-bengala,ondeenfrentouaúltima investidadas ilhasdeMara,oastuto.Nodecursodassetesemanasque tinhamacabadodesepassar,ele meditara longamente sobre a Iluminação, aprofundara seu

conhecimentodaverdade,amadurecerasuadoutrina.Mas,então,começouaseracometidopordúvidas:“Esteconhecimentoqueeuatingiéprofundo,di ícil de conceber, di ícil de realizar, tranquilo, re inado, além dacompreensão da razão, sutil, acessível apenas aos ajuizados. Mas estageração icafelizcomoapego,emociona-secomoapego,regozija-secomoapego30”. QuantomaisBuda re letia,mais hesitava em sair para pregar ocaminhodasalvaçãoparaseuscontemporâneos:“Seeudevesseensinaradoutrina e os outros não me entendessem, isso seria cansativo, seriapenoso31”. Sem dúvida, “aqueles que fazem suas delícias da paixão,cobertos pela massa da escuridão32”, serão incapazes de enxergar aVerdade.Ao escutar as reticências de Buda, Brahma icou muito preocupado.

Inquietoemrelaçãoàsalvaçãodomundo,ograndedeusapareceujuntoaoAfortunadoparaconvencê-loanãoseafastardoshomens.“Livredepesar,veja que o povo está submerso na tristeza, oprimido pelo nascimento epela velhice. Levante-se, herói, vencedor da batalha! Ó Professor, vaguepelo mundo sem dívidas. Ensine a Doutrina, ó Bendito do Céu: haveráquem o compreenda33.” O deus argumentou: “Há seres que têm poucapoeira nos olhos, mas que desabam porque não conhecem a Doutrina.Haverá quem compreenda aDoutrina 34”. Por compaixão por aqueles quesãocapazesdeobteraluz“à lord’água35”,Budaterminouporlhedarseuconsentimento.OgrandeBrahmadeumeia-voltaelogodesapareceu.O Iluminado colocou uma nova questão a si mesmo: a quem ele iria

revelar sua doutrina em primeiro lugar? Logo pensou em Alara Kalama.“Sábio, competente, inteligente36”, seu primeiromestre espiritual que “hámuito tempo tempoucapoeiranosolhos37.”Mas os deuses o informaramqueo guru tinhamorridohavia apenas setedias.Budapensou então emseu segundo mestre. Infelizmente, Rudraka Ramaputra também já tinhapartido,eforaapenasnanoiteanterior...OIluminadoselembroutambémdaqueles que o acompanharam durante anos em seu caminho deascetismo extremo: “Eles me foram de grande ajuda, o grupo de cincomonges queme serviu quando eu estava dedicado àsmorti icações. E seeu ensinar a Doutrina a eles primeiro? Então me vem a questão: ondemoraogrupodecincomongesagora?Ecomoolhodivino,purificadoequeultrapassaohumano, euviqueelesmoravampertodeKashi, noBosquedasgazelas38”.Nodiaseguinte,BudaabandonouUruvelaetomouocaminhodacidade

sagrada, localizada àsmargens do Ganges. O tempo da busca inalmentetinhachegadoaofim,agoracomeçariaodoensinamento.

AlendailustradaAÍndiaamasuasárvorescompaixão,maisdoquequalqueroutrolugar.

Do Himalaia até o cabo Comorin, o culto em torno das árvores, dosarbustos e dos bosques é onipresente. Essa prática, herdada de umpassado distante, permanece especialmente vigorosa no âmbito dohinduísmo contemporâneo. As árvores, aos olhos dos hindus, podem serveneradassobdiversosângulos:porsisós,casopertençamaumaespécieconsiderada sagrada; por serem a encarnação de uma divindadeespecí ica; por serem a morada que oferece abrigo e proteção a umadivindade. Até hoje, nas vastas áreas do interior indiano, agramade-vata,oudeusadovilarejo,sempretemcomotemploumpequenonichoaospésdeumaárvorecentenária.E,nasmegalópoles,nascalçadasapinhadasdeMumbaioudeCalcutá, igueiras-de-bengalacontinuamservindoderefúgioaos deuses. O terreno da Índia é tão coberto de árvores sagradas queninguémjamaissedeuaotrabalhode fazerumlevantamentodelas...Masno meio dessa imensa loresta existe uma que se sobrepõe a todas asoutras:a igueira-dos-pagodesdopequenoburgodeBodh-Gaya,noestadode Bihar, a cerca de cem quilômetros do vilarejo de Patna. Essa árvoremajestosaatraiduranteoano inteiroumamultidãodedevotos,vindosdomundo todo.Osbudistas a chamamde árvoredoBodhi, ou árvore deBo.Todasas igueiras-dos-pagodespresentesnostemplosbudistasdomundosupostamentesãodescendentesdestavenerável ficusreligiosa.EcomonaEuropaoclimanãoéfavorávelaestaárvore,os iéisdeBudaàsvezessecontentam com uma simplesficus benjamina, que está, de todo modo,simbolicamenteassociadaàfigueira-dos-pagodesdeBodh-Gaya.Todos os budistas sonham em poder um dia fazer a peregrinação até

Bodh-Gaya. A igueira-dos-pagodes representa, de certo modo, o santomáximodeles, já que foi, basicamente, a única testemunhada Iluminaçãodeseumestrehistórico.IssoporqueBodh-Gayaéidenti icadacomoolocalpróximo da antiga Uruvela – hoje, desaparecida. Aos pés desta árvore,Sidarta Gautama se tornou Buda; sob sua proteção, o jovem asceta selivrou de sua identidade e da condição humana. A árvore doBodhi é tãopreciosa para os budistas que hoje é considerada tão sagrada como oacontecimentoquemarca.Elaéveneradaaomesmotítuloqueosábio,elase confunde literalmente com ele. A cada dia, as pessoas se recolhem aseuspés,elaéenfeitadadeguirlandasvotivasfeitasdepedaçosdetecidocolorido.Quandoasfolhascaem,sãorecolhidascommuitorespeito,umaa

uma. Ao se observar a devoção extraordinária que suscita, dá paraimaginar que a igueira-dos-pagodes de Bodh-Gaya seja a árvore maisveneradadetodaaÍndia!Éverdadequesãorarasaquelasque,entresuasirmãs, são capazes de reivindicar uma história tão longa,movimentada efantásticacomoadela...Umavidafeitadelendas,emresumo,àimagemdomitodohomemquefoiseacomodarsobsuasombrabenevolentehámaisdedoismilanos.Naturalmente, é absolutamente impossível que a igueira-dos-pagodes

deBodh-GayasejaamesmaqueBudaconheceunotempoquepassouemUruvela. Até seus admiradoresmais fervorosos admitem o fato. Mas sualinhagem em relação à árvore da Iluminação é supostamente direta. Elaseriadescendentedaprimeira,umaherdeiramaisoumenosdistante,emfunçãodasdiversaslendasquecirculamaseurespeito...Paracomeçar,aárvoredo BodhibrotoudaterraemUruvelanomesmo

dia do nascimento do bodisatva em Lumbini. Portanto, tinha 35 anosquando assistiu à iluminação do mestre. Depois da morte do sábio, aárvore se transformou em objeto de devoção para os budistas e umacomunidade de monges se desenvolveu no local. Infelizmente, essaveneraçãotambémviriaacausaraborrecimentos...No século III a.C., a igueira-dos-pagodes sagrada teria sofrido seus

primeiros ataques mortais. A lenda relata que Ashoka, que ainda erahinduísta no início de seu reinado, um dia ordenou que a árvore fossederrubadaequeimada.Mas,aoverqueumbrotonovosurgiaatravésdaschamas,ojovemimperadorderepente icouprofundamentetocado.Cheiode arrependimento, decidiu então salvar a igueira e banhou suas raízesmeioestorricadascomáguaperfumadaeleite.Depoisdesuaconversãoaobudismo, segue a lenda, Ashoka retornou a Bodh-Gaya para umaperegrinação de 256 noites, o tempo para que a planta se recuperassebem. Infelizmente,pouco tempodepoisdisso, a igueira-dos-pagodesmaisumavezchegoupertodamorte...Dessavez,aindasegundoatradição,foiamulherdeAshoka, furiosaportersidodeixadadeladoporcausadeumaárvore,que tentoueliminá-la.Ao receberanotícia, Shanghamitta, ilhadeAshoka,tirouumamuda,quefoiplantadaemAnuradhapura,noSriLanka.Assim,ociúmenãofoicapazdedestruircompletamenteaárvoredeBodh-Gaya. Graças aos cuidados dispensados pela segunda vez por Ashoka àspoucasraízesquesobreviveram,aárvorevoltouarenascerdascinzas.Oimperadorentãomandouconstruirumabalaustradaaoredorda igueirasagrada – como o soberano de Kosala da época de Buda já tinha feito

antes, se acreditarmos na lenda. Perto da igueira-dos-pagodes, nasproximidades do rio Nairanjana, Ashoka também mandou erguer umpequenotemploeumacolunatadepedraparahomenagearamemóriadeseumestre.Depois da queda do império Maurya, no século II a.C., o rei hindu

Pusyamitra,dadinastiaSunga,ordenou,porsuavez,amortedaárvoredeBo.Conta-seque,dessavez,aplantanãosobreviveu.Noentanto,graçasaumamudavindadoSriLankaeplantadaexatamentenomesmolocal...elareapareceu! Quatro séculos depois, por volta de II d.C., a igueira-dos-pagodessagradacontinuava lá:a tradiçãoassinalaqueNagarjuna,omaisfamoso entre os ilósofos budistas, mandou cercá-la com um muro alto,paraprotegê-ladoselefantes.O peregrino chinês Huan Tsang, que visitou Bodh-Gaya no século VII,

observou que a árvore continuava vigorosa atrás de seu cercado emruínas. Fora esse testemunho direto, seu relato de viagem apresenta umnovo episódio da história lendária da igueira-dos-pagodes sagrada.Segundoele,umaoutratentativadedestruiçãodaárvoreocorreuno inaldoséculoVI:adescendentedaárvoredoBodhitrazidadoCeilãoteriasidocortada por iniciativa do rei hindu de Bengala, Shasanka. Apesar de osoberano também ter mandado desenterrar profundamente suas raízes,elenão foi capazdeaniquilá-la totalmente:umbroto frágil logosurgiunaterra...Alendachegaatéaa irmarqueaárvoreteriacrescidotrêsmetrosemumaúnicanoite,depoisqueoreideMagadha,Puravarma,fezcomquedeitassem sobre ela, à guisa de oferenda, o leite demil vacas.Mas existeuma outra versão dessa história, mais pé no chão, em que Puravarmasimplesmente teriamandado replantar umamuda trazida,mais uma vez,do Sri Lanka. En im, conta-se que, no século XII, Bodh-Gaya foiinteiramente saqueada pelos conquistadores muçulmanos, mas que aárvorevoltouabrotarespontaneamentedepoisqueelespassaram.Seja lá como for, o testemunho por escrito do peregrino tibetano

Darmasvamin prova que, em 1234, os mosteiros de Bodh-Gaya, quetinhamflorescidoduranteséculos,estavampraticamenteabandonados:elesóencontrouquatromonges.Apesardeatestarqueobudismotinhaquasedesaparecido da Índia no início do século XIII, a triste constatação deDarmasvaminnãoerasurpreendente.Apartirdaí,asequênciadahistóriaé fácil de imaginar: Bodh-Gaya caiu em ruínas pouco a pouco, até seafundarcompletamentenoesquecimento.NoséculoXVIII,ocupadaporumrenunciantehindu,Bodh-Gayaretomou

a vida. Mas seria necessário esperar até o início do século XIX para

encontrar ali vestígios budistas. Em 1811, o viajante inglês Buchananidenti icou a árvore deBo, ou melhor, uma de suas descendentes, quedescreveu como uma planta cheia de vigor. Infelizmente, meio séculodepois,oarqueólogoAlexanderCunninghamconstatouquea igueira-dos-pagodesapresentavasinaisdefraqueza...Oanode1876marcouo imdavelha igueira:emumanoitedetempestade,elafoilançadaporterrapelovento.Maslogosurgiramnovosbrotosdavelhaárvoreabatida,eumdelesseergueuatéformarabelaárvorequehojeéveneradaemBodh-Gaya...Amenosqueesta, comoa irmamalgunsguias, tenhasurgidodeumamudatrazidadoSriLanka.Qualéograudeparentescoda igueira-dos-pagodesatual com a árvore original? Seria ela sua neta, sua bisneta ou umadescendenteaindamaisobscura?QuantasvezesfoinecessáriotrazerumamudadoSriLanka?QualfoioverdadeirodestinodaárvoredeBo?Apesar de os recursos tradicionais não permitirem reconstituir a

história verdadeira da “rainha das árvores 1”, a localização do lugar daIluminaçãoparece,poroutro lado, indiscutível.Comoacontececomoutroslocais ligados ao budismo, a identi icação de Bodh-Gaya com a antigaUruvelasebaseiaprincipalmentenosvestígiosdosmonumentoserguidosporAshokaenasdescriçõesqueosperegrinoschinesesnostransmitiram.Desdeo imdoséculoXIX,olocalfoiminuciosamenterestaurado,graçasàação conjunta do Archaeological Survey of India e daMahabodhi Society.Umaplacade arenito vermelho trabalhado, cobertaporum toldode tela,está ixadanosolo,embaixoda igueira-dos-pagodes.DatadadaépocadeAshoka, ela costuma ser designada pelo nome deVajrasan, “trono dediamante”,porquesupostamentemarcao localexatoemqueBudaestavasentado quando atingiu a Iluminação. A árvore doBodhi é rodeada debalaustradas de pedras esculpidas. As mais antigas, feitas de arenito,datamdoséculoIIa.C.;jáasmaisrecentesdatamdeporvoltadoséculoV.E apesar de não ter sobrado nada, o pequeno templo que Ashoka teriamandadoerguer,otemplodeMahabodhi,recuperouoesplendordescritoporHuanTsangnoséculoVII.Noentanto,todosessesvestígiosnãopassamdetestemunhospóstumos,

deprovas indiretas.Assim,a identi icaçãodeBodh-Gayacomo localexatodaIluminaçãopodeserquestionada.DeacordocomAndréBareau,apesardea localizaçãodoacontecimentoali comtodaacertezasermuitoantiga,podeserresultadodeumerrode interpretação.Ograndeespecialistadobudismo ressalta que o termo utilizado na época antiga na região deUruvela para designar uma árvore venerável demuita idade era apenas

bodha.Assim,épossívelimaginarqueosprimeirosperegrinosqueforamàregiãoàprocurada“árvoredo Bodhi”possammuitobemtê-laconfundidocomumaoutraárvoreconsideradasagradapelosmoradoreslocais...Como no caso de Lumbini, como no caso de Kapilavastu, é necessário

deixar de lado as certezas noquediz respeito aBodh-Gaya... Levando asdúvidas ainda mais longe, é possível também questionar a realidade docenárioda Iluminaçãocomodescritonas lendasmais famosas:de fato, seformos nos referir exclusivamente às palavras atribuídas a Buda pelostextos canônicosmais antigos, ica claro que omestre nuncamenciona apresençada igueira-dos-pagodesquando falasobreatingira Iluminação!Além da incerteza que já pesa sobre a história da árvore sagrada, suaprópriaexistênciaestá sujeitaaquestionamento.É forçoso constatarque,porfaltadetestemunhosdiretos,nãohánadaparacomprovararealidadedaárvoredoBodhi.Nofundo,ébempossívelqueaslendassimplesmentetenham integrado ao budismo um culto popular que lhe era anterior.Talvez a cena que descreve a Iluminação embaixo de uma árvore sejaapenasuma tentativade recuperarumculto local...Oamorpelasárvoresna Índia é uma história antiga que talvez tenha começado bem antes dosurgimento da religião védica: duas grandes árvores sagradas dacivilizaçãoindiana,aneemea igueira-dos-pagodes,já iguravamnosselosda civilização do Indo. Posteriormente, árvores e pequenos bosquesestiveram entre os primeiros templos a acolher os múltiplos deuses dopanteão hindu; essa antiga tradição dos santuários ao ar livre hoje seperdeu.Nessaperspectiva, adesignaçãoda igueira-dos-pagodesdeBodh-Gaya

pelosbudistaspode ter sido tanto frutodeuma confusãoquantodeumarecuperação de memórias. A hipótese também vale para a árvore deLumbini, embaixo da qual Sidarta nasceu, de acordo com a lenda: selevarmos em conta o fato de que a veneração das árvores na Índia comfrequência está associada ao culto da fertilidade, é bem provável que aplanta já fosse considerada sagrada na região antes que os adeptos deBuda a designassem como testemunha do nascimento de seu mestrehistórico. No mínimo, é possível imaginar que esses dois acontecimentospossamdefatotersedadoembaixodeumaárvore,namedidaemqueosdoissãodescritosnoperíododo inaldaprimavera.Atéhoje,nessaépocaespecialmentequenteeensolarada,asombradasgrandesárvoresémuitoprocurada pelos indianos. “A partir de agora, eu só vou poder usar asárvoresda lorestacomoguarda-solreal 2”,teriadeclaradoojovemSidarta

depoisdeterrenunciadoatodososseusbens.IndependentementedeaárvoredoConhecimentoterounãoexistidona

verdade, a questão é que a igueira-dos-pagodes oferece ao olhar umaforma evocativa que constitui uma alegoria perfeita da Iluminação. Osprimeiros budistas indianos, os “Auditores”, compreenderam com muitarapidez a força dessa imagem. Eles não tardaram em colocar emfuncionamento seu proselitismo, tanto que a ficus religiosa nunca maisdeixoudeaparecernaartebudista.Recorreraossímbolosfoiumatoquese impôs ainda mais nos séculos que se seguiram à morte do mestre,porqueasprimeiras escolasbudistas recusavamqualquer representaçãoantropomór ica do Iluminado. É necessário lembrar aqui que o termo“Buda”, que tem origem em buddhi, a “consciência superior”, a“inteligência”, não é um nome próprio: designa, em primeiro lugar, umestado. Aos olhos deles, o Buda histórico, aquele denominado comoSakyamuni, “o Sábio silencioso da tribo dos sakyas”, não era umadivindade, mas um ser excepcional. Ele é, portanto, um modelo a serseguido;comemorarasgrandesetapassigni icativasdavidadoIluminadofaziapartedadifusãodesuadoutrina.Em razãoda impossibilidadede representar oBuda Sakyamuni, a arte

budista que surgia foi forçada a usar metáforas para narrar a vida dosábio. Foi assim que a escultura budista, que surgiu no século II a.C.,passouarepresentaraetapadaIluminaçãocomaimagemdafigueira-dos-pagodes.ParadescreveremdetalhesavidadoBudahistórico,osartistasmultiplicaramossímbolos:o lótusmarcaseunascimento,oguarda-soleoabanador para espantar as moscas indicam sua linhagem real; já acarruagem lembra sua primeira experiência demeditação na infância. Arepresentaçãoda árvore se sobrepõe às outrasporque ilustra o episódiofundamental da vida do mestre: sem Iluminação, Buda não existe. Porextensão, a igueira-dos-pagodes representa também o Iluminado empessoa, ao lado de outros símbolos que têm o intuito de signi icar suapresença – como por exemplo asmarcas de seus pés. Por não poderemprestarcultodiretoaseumestrefalecido,aveneraçãopóstumados iéissetransfereaostestemunhossimbólicosdesuavida.Serianecessárioesperaratéoiníciodaeracristãparaqueaparecessem

na Índia as primeiras imagens antropomór icas de Buda. Era a época deKushana,cujovastoimpérioserviucomotraçodeuniãoentreaÍndiaeasculturas nômades da Ásia central, do Oriente helenístico e da Pérsia. Noâmbito religioso, a época foimarcada pelo nascimento, no seio domundo

indiano, da corrente Mahayana. Os pensadores budistas do GrandeVeículo,segundosuaprópriaexpressão,criticamacorrenteTheravadaou“Via dos Antigos”, que às vezes apelidam com o nome pejorativo deHinayana, o “Pequeno Veículo”. A visão Mahayana se distingue daTheravada principalmente por sua concepção da natureza do estadobúdico. A doutrina dos Três Corpos assume importância considerável noâmbitodanovacorrente.Segundoela,docorpoabsoluto,darmakaya,queéa base de todos os fenômenos, emana o corpo de alegria,sambhogakaya,que é um estado de felicidade do qual surge, por sua vez, o corpofenomenal,nirmanakaya, ou manifestação ilusória de Buda sob formahumana.Emconsequênciadessatrindade,oGrandeVeículoconsideraquea natureza de Buda existe, oculta, em todos os seres, e que cada devotodeve então se esforçar para descobri-la.Menos austera emais suave doqueaViadosAntigos,anovacorrente transformaoBudaSakyamuniemsermúltiploetranscendente:omestrenãoémaisconsideradoapenasumsábioexcepcionalqueatingiuaIluminaçãocompleta,mastambémumentesobrenatural.Porconcedergraçaeméritos,oBudahistóricosetransformaem objeto de culto e de devoção para os iéis, assim como os Budascósmicoseosnumerososbodisatvas.A revoluçãoqueseoperanoâmbitodobudismono iníciodaera cristã

setraduzporumareviravoltanodomínioartístico.Derepente,equasedeformasimultânea,noGandharadosherdeirosdeAlexandreenaregiãodeMathura,artistasoriundosdacorrenteMahayanaderamcorpoerostoaoBuda histórico. Apesar de ser uma igura endeusada, ele não erarepresentado como criatura extraordinária. Diferentemente de algumasdivindades do panteão hinduísta, Buda é representado em formaperfeitamente antropomór ica. As primeiras imagens do Afortunadorevelavamumhomemdegrandeestaturaedeboaconstituição,eleganteesereno. Com muita frequência, ele só usa vestes monásticas e tem oslóbulos das orelhas estendidos pelo peso das joias que usava antes derenunciaràvidadepríncipe.Ocasionalmente,aartedoGandharachegavaaté a igurar o jovem Sidarta Gautama, de antes da Iluminação, sob ostraçosdeumascetaterrivelmentemagro.EmquepontosessesretratosdeGandharaedeMathura,alémdesuas

diferenças de estilo, são capazes de se assemelhar ao personagemhistórico? Provavelmente em nenhum. Em primeiro lugar porque, comoa irmaocânonemaisantigo,Buda“nãopodesercomparadoanada3”, demodoqueosbudistasquepermaneceram iéisàViadosAntigosno iníciofariam críticas às representações do mestre. E, depois, porque todas as

testemunhas oculares de sua vida já tinhammorrido havia muito tempoquandoaÍndiacomeçoualhedarumrosto.OGrandeVeículoentãoiriaseesforçarparajusti icar,nasequência,averacidadedasrepresentaçõesdosábio, invocando as lendas que descreviam um retrato de referênciaexecutadodurante sua vida...Na verdade, não existe nenhuma imagemenenhuma descrição autêntica do fundador do budismo. Por im esobretudo,apreocupaçãocomorealismonuncafoioprincipalobjetivodosadeptos do Mahayana: para eles, o que importa é acentuar o caráterextraordináriodeBuda.Épor issoquea iconogra iabudistaclássica,quese ixouporvoltadoséculoIV,logopassariaarepresentaroIluminadosobforma totalmente idealizada: a perfeição doMahapurusha, o “GrandeHomem”, parcialmente descrito pela tradição, tornou-se a fonte deinspiração dos artistas. A partir de então, Sakyamuni passou a aparecerdotado das “32 características4”: cabelos encaracolados, tufos de pelosentre as sobrancelhas, rodeado por um círculo luminoso, protuberânciacraniana,corpocom“acircunferênciadeumafigueira-de-bengala5”...EssarepresentaçãoestereotipadadoBudahistóriconãofazcomqueos

símbolos antigos desapareçam: eles permanecem como suporte aoensinamento da doutrina. A árvore do Conhecimento e o lótus agoraaparecemjuntocomumSakyamuniperfeitamente idealizado,cujos traçose poses também exprimemos acontecimentos de sua vida. Inspirada portradições antigas da ioga e da dança, uma codi icação muito precisadetermina suasatitudes,asanas, e seus gestos,mudras.Assim, a cenaqueprecede a aquisição da Iluminação passa a ser ilustrada por um homemsentado na posição de lótus – com as pernas cruzadas de modo que aplanta dos pés ica viradapara o céu –, comamãono solo para tomar aterra como testemunha. O acesso à Iluminação também é representadopelaposiçãode lótus,mascomasmãos repousadasumasobreaoutra,osímbolodameditaçãoedaconcentraçãomental,odhyanamudra.Apesar de o Buda Sakyamuni ser representado como ente de carne e

osso,seu ísicoestáforadasnormas.O“GrandeHomem”está longedeseassemelharaosmortaiscomuns.Eletambémnãoseparececomseuspais,Sudodana e Maya. Antecipando as observações eventuais daqueles comespíritomaiscético,oMilinda-Panhatomouocuidadoderesponderaessaquestãobastantelegítima:

PorqueoBudanãotinhasemelhançasfísicascomospais:– Nagasena, será que o Buda era dotado dos 32 sinais característicos do Grande Homem,ornamentadodos 24 sinais secundários, será que tinha tez dourada, pele da cor de ouro eumaauréolatãolargacomoumabraçada?–Sim.

–Seupaiesuamãetambémtinhamosmesmossinais?–Não.–Noentanto,o ilhoparececomamãeoucomospaisdamãe,comopaioucomospaisdopai!–Vocêconhece,marajá,olótuscomcempétalas?–Conheço.–Ondeelenasce?–Elenascenalamaecrescenaágua.–Poracasoeleseparececomalamaoucomaáguaemcor,cheiroousabor?–Não.–OmesmovaleparaoBuda.6

Para se con igurar o aspecto domestre, portanto, não existe nenhumaindicaçãoalémdasdeixadaspelatradição:Budaeraumhomemdotadodoísico notável do “Grande Homem”. O aspecto do sábio histórico comcerteza deve ter sido bem diferente do desse personagem de icção,inteiramente inspirado pelos sinais de distinção social e pelos códigos debeleza em vigor na sociedade indiana antiga. Sakyamuni certamentetambémnãosepareciacomohomemrechonchudoebarrigudo–tambémdotadode tezpálida– comoosartistas chineses iriamrepresentá-lomaistarde. Ao observarmos os renunciantes da Índia de hoje, daria paraimaginarumhomemdecorpodelgadoevigoroso,comrostobemmagroea tez bronzeadapela vidade errante.No fundo, apenas o famoso sorrisoqueaartebudistacolocounoslábiosdeBudatalvezsejarealista...Calmoesereno,eleseconformaaopensamentodoAfortunado.Para que a cena da Iluminação seja representada concretamente,

também faltam indícios: nenhuma descrição direta do acontecimentochegou até nós. Hoje, a árvore de Bodh-Gaya constitui para os devotos etambém para os visitantes profanos apenas umametáfora vigorosa. Comseuscinquentametrosdealturaesuaamplafronde,amajestosa igueira-dos-pagodes emanauma força euma radiância à imagemdadoutrinadeBuda,queseestendeutãolongenoespaçoenotempo.Tranquila,comoseestivessedesligadadaspreocupaçõesdomundoemmovimento,elaparececonvidar os homens a se refugiarem sob o abrigo de sua folhagemgenerosa.Dasraízesqueseafundamnosoloaosramosquese lançamàsalturas,aárvoredeBoestabeleceumaligaçãoentredoismundos,aterraeocéu,oaquieoalém,oinstantepresenteeaeternidade.Comsuasfolhasem forma de coração que tremem ao menor sopro, ela pareceestranhamente habitada... No entanto, sua linguagem é di ícil de decifrar,assimcomoofenômenodaIluminaçãosempreiráconstituir,nofundo,ummistério: como dizem as antigas escrituras canônicas, a verdademáximadescobertaporBudaé“profunda,di ícildecompreender,oculta,tranquila,

excelente7”.Osegredomáximoda igueira-dos-pagodessagradanãoresidetantoemsuaautenticidade,massimemsuasrevelaçõesqueestãoalémdoalcanceda linguagem.E,dessepontodevista, indiscutivelmente,aárvoredeBodh-GayaencarnaàperfeiçãoaIluminaçãodosábiohistórico.“Paraosbudistas, não existe lugar mais importante e mais sagrado8”, declarouHuan Tsang... Hoje, no estado indiano de Bihar – cujo nome, que temorigem na palavravihara, perpetua a memória dos primeiros mosteirosbudistas–,oespetáculodamultidãoqueseapertaaospésda“rainhadasárvores”con irmaasentençadoperegrinochinês:aosolhosdosbudistasdo mundo todo, a igueira-dos-pagodes de Bodh-Gaya continua sendo aúnica testemunha da Iluminação do Buda Sakyamuni, há quase 2,5 milanos.

SermãoDeixando para trás a árvore da Iluminação, o Buda “perfeito e

realizado1”tomouocaminhodeKashicomointuitodedivulgararevelaçãosuprema a seus antigos companheiros de ascetismo. A cidade seencontravaa longosdiasdeviagemdeUruvela,nadireçãodosolpoente.Depoisdeváriosanosdesedentarismo,oTathagata,o“Perfeito”,voltavaaexperimentaraalegriadesedeslocardiaapósdia.Um dia, quando estava caminhando tranquilamente, cruzou com um

jovemshramanapelocaminho.Upakaseapresentoucomoadeptodaseitados fatalistas ajivikas, ou então, de acordo com outros relatos, como umdiscípulo deMahavira, o grandemestre dos jainistas. Intrigadopela auraexcepcionalqueemanavadeBuda,o jovemrenunciante logoperguntouaelequemeraseumestreequedoutrinatinhaadotado.Eraaprimeiravezque lhe faziam perguntas deste tipo desde que ele tinha atingido ailuminação... Talvez aquele fosse o momento certo para tentar fazer suaprimeira pregação. Sakyamuni aproveitou a ocasião imprevista erespondeucomalgunsversos:

Vencedordetudosabedordetudoeusou,emrelaçãoatodasascoisas,semaderir.

Tudoabandonei,liberadopelacessaçãodavontadeinsaciável:depoisdeterentendidotudosozinho,aquempossodesignarcomomeuprofessor?

Eunãotenhoprofessor,enãoépossívelencontrarninguémcomoeu.

Nomundocomseusdeuses,eunãotenhonenhumequivalente.

Porquesouumlibertadonomundo;eu,oprofessorsemigual,apenaseumeilumineisozinhocorretamente.

Eumeesfriei,libertei.ParafazergirararodadoDarma

vouatéacidadedeKashi.Emummundoqueficoucego,

eubatootambordoSem-Morte.2

Ao escutar esse discurso, Upaka, perplexo, contentou-se em sacudir acabeça. Ele nem procurou sabermais detalhes... O shramana saiu para olado da estrada e deixou passar o Iluminado, que seguiu seu caminho.“Conhecedor de tudo, que vê tudo3”, o Tathagata não se abateu nem umpoucocomessaprimeiratentativainfrutífera...

Poucotempodepois,elechegouàmargemdo“granderioGanga4”. Nãohavia ponte, e o rio parecia desproporcionalmente largo.Umabarcaça, jácheiadepassageiros,esperavaaspessoasquedesejavamatravessaratéooutro lado. Quando Buda se apressou para embarcar, o condutor pediuque ele pagasse a passagem, apesar de ter notado que ele era umrenunciante. Depois de responder que não tinha dinheiro algum, oAfortunadochegouàoutramargem“atravésdocéu 5”.Obarqueironuncatinha visto um asceta dotado de um poder assim! Ele se arrependeuamargamentedenãoo ter transportadodegraçae lamentou longamentesua atitude, que com toda a certeza teria consequências nefastas sobreseusrenascimentosfuturos...AnotíciadesseacontecimentoforadocomumseespalhouatéRajagrha,acapitaldoreinodeMagada.Bimbisaramandoutrazer a sua presença o barqueiro, para que lhe contasse exatamente oque tinha acontecido. Muito impressionado, o soberano decidiu abolir ospedágiosparatodososreligiososerrantes.Seguindosuacaminhada,oTathagata inalmentechegouaosportõesde

Kashi.LocalizadanamargemoestedoGanges,estaeraumaantigacidadeforti icada rica que também recebia o nome de Varanasi (Benares).Famosa pela qualidade de seus tecidos, a cidade era, acima de tudo,considerada havia muito tempo como local sagrado: “Kashi acende eiluminaouniverso.Kashitrazatodosalibertaçãopormeiodasabedoria6”,proclama um hino antigo dos textos védicos. Local elevado deconhecimento,acidadeeradominadaporumsindicatodebrâmanesmuitoortodoxos.Aolongododia,ossacerdotesestudavameentoavamosantigoshinos védicos. Os o iciantes especializados obtinham muito lucro com aexecução de rituais de sacri ício complicados em nome das outras castassuperiores. O comércio de cremações funerárias também era muitopróspero ali, porque vários devotos iam morrer na cidade sagrada, naesperançadeassimescapardociclodasreencarnações.Depoisdeterdadoumavoltaparapediresmola,Budanãosedemorou.

O sshramanas não eram muito bem vistos pelos conservadores quegovernavam a cidade. Ele então foi para uma loresta bem próxima queabrigava vários bandos de gazelas, Mrigadava, “o Bosque das gazelas”,conhecido também pelo nome de Richipatana, a “Viagem dos Sábios”:dizem que os grandesrishis tinhamo costumede ir até lá, deslocando-sepelos ares a partir de seus retiros no Himalaia. Nesse lugar famoso porabrigar numerosos ascetas, Buda tinha certeza de que encontraria os“Cincodogrupoalegre7”.

ClaroqueoTathagata tinha razão.Mas seusantigos companheirosnãoestavam nem um pouco dispostos a lhe dar as boas-vindas: ao vê-lo seaproximar deles pelo bosque, Kondana, Bhaddiya, Vappa, Mahanama eAssaji logo reconheceramo “amigoGautama 8”,mas decidiram em comumacordo ingir que o ignoravam. Aos olhos deles, o asceta não tinha lágrande valor: não passava de um fraco por ter abandonadopreguiçosamente,danoiteparaodia,ocaminhodaausteridade.Sentadosno solo em roda, eles davama impressãodenão semexerem, apesar deobservá-lo discretamente como cantodos olhos “aquele relaxado, aquelecomilão, estragado pela abundância9”. Mas, à medida que ele foi seaproximando, a dúvida tomou conta deles: Buda exalava uma talmajestade,umatalpureza...Os“Cincodeboacasta10”nãoconseguiramresistirdurantemuitotempo...Logoseencarregaram,comonopassado,derecebê-locomomaiorrespeito.ElesseergueramdeumpuloeinclinaramocorpoperanteBuda.Oprimeiropegousuatogaesuagamela,osegundolheofereceuumaesteiratrançadaparaqueseacomodasse.Ostrêsúltimostrouxeramágua,umatábuaeumpedaçodebarrocozidoparaque“oamigoGautama”pudesselavarospés.

Depoisdedescansaredeserefrescar,Buda inalmente faloucomseuscompanheiros:

Ascetas,nãosedirijamaoPerfeitopelonomeecomoumamigo.OPerfeito,ascetas,éoSanto,oIluminadoperfeito.Agucemosouvidos,amigos:aSalvaçãodamortefoiencontrada.Euvouinstruí-los. Eu vou ensinar-lhes a Doutrina, o Darma. Se seguirem omeu ensinamento, empoucotempovocêsatingirãooobjetivosupremodavidasanta,peloqualoshomensnobresdeixam seu domicílio para levar vida de errantes, e lá permanecerão: aqui e agora, vocêsconhecerãoaverdadeeirãorealizá-laporsisós.11

Os Cinco se mostraram bastante céticos. Eles não se deixariam

convencerassimtãorápido!ElesinterpelaramoascetaGautamaarespeitodo fato de ter abandonado as morti icações, sobre sua interrupção dojejum...Comoelepodiadizerquealcançoua libertaçãosupremaseestavase regozijando na abundância? Com muita paciência, Buda corrigiu asacusaçõesdeles,umaauma,reiterandoacadavezsuapropostadeinstruí-los. Para conseguir convencê-los, inalmente disse: “Desde que nós nosconhecemosedurantetodososanosquevivemosjuntos,estãolembradosdequeeununca lhes izumapropostaassim12?”.Acometidospela justezada observação, Kondana, Bhaddiya, Vappa, Mahanama e Assaji caíram aseus pés reconhecendo seu erro. Eles aceitam, inalmente, ser ensinadospeloPerfeito.Pelaprimeiravez,omestreiriaexporempúblico,ecomprofundidade,a

doutrinaquetinhaadquiridoduranteaIluminação...OSermãodeBenaresseriaparasempreguardadonamemóriacomoapregaçãomaisilustredeBuda.

O“iníciodomovimentodarodadaLei13”sedeuiluminadopelaluacheiado mês deasalha. Sentado com as pernas cruzadas, Buda permaneceusilencioso durante um longo momento. Alinhados lado a lado, os cincoascetas estavam profundamente absortos; eles se preparavaminteriormenteparaescutaroensinamento.Ocalorúmidodanoitedeverãoabafavaosruídosda loresta.Eosdeuses,ládo“céudostrêsmilmundos”,estavamtodoscomorostovoltadoparaoTathagata,“nãoseescutavanemumsomdetosse”,garanteoLalitavistara.OAfortunado inalmenterompeuosilêncioefezgirararodadaLei,que

é “umaessênciaporqueéobtidapormeiodeumaciênciaassemelhadaaum raio14”. Ele revelou logo de início a seus antigos companheiros que oúnico meio de alcançar o Conhecimento supremo é seguir o caminho domeioentreoprazerdossentidoseoascetismoextremo,porqueambossão“sem saída15”. Ele expôs em seguida como, ao praticar esse caminho domeio,eleconseguiudescobrirasQuatroNobresVerdades,cujaexplicaçãorepresentaocentrodeseusermão:

Vejam,ómonges,aNobreVerdadesobreosofrimento:onascimentoésofrimento,avelhiceésofrimento,adoençaésofrimento,amorteésofrimento,auniãocomaquiloquedetestamosésofrimento,aseparaçãodaquiloqueamamosésofrimento,a incapacidadedeobteroquedesejamosésofrimento.Emresumo,oscincoagregadosdoapegosãosofrimento.Vejam,ómonges,aNobreVerdadesobreacausadosofrimento:éessasedequeconduzderenascimento em renascimento e que, ligada aoprazer e à paixão, busca sempre satisfaçãoaquieali;sededossentidos,sededaexistênciaedofuturoesededanãoexistência.Vejam, ómonges, a Nobre Verdade sobre a cessação do sofrimento: é a extinção completadessasede,seuabandono,suarenúncia,sualibertação,seudesapego.Vejam,ómonges,aNobreVerdadesobreocaminhoqueconduzàcessaçãodador:éoNobreCaminhoOcultodeoitomembros,asaber–avisãojusta,opensamentojusto,apalavrajusta,a ação justa, o meio de existência justo, o esforço justo, a vigilância justa, a concentraçãojusta.16

Kondana,omaisvelhodogrupo,foioprimeiroaabsorverplenamenteoensinamentodomestresobreaLei.AcompreensãodarodadaLeinãoseapresenta instantaneamente a todo mundo: “É di ícil conhecer bem estaroda porque ela está compreendida na igualdade da ciência e dasabedoria17”.Apartirdaí, o asceta idoso se transformaem “Kondanaquesabe”,AnnaKondana. “Venha, bhikkhu, aDoutrina foibemexplicada, leveuma vida de pureza a im de atingir o im do sofrimento18!” Com essafórmula simples, Buda o aceitou como discípulo. Kondana passou a serentão umbhikkhu, um monge mendicante. Pouco tempo depois, aocompreenderem por sua vez o sermão de Tathagata, os outros quatroascetastambémreceberamsuaordenação.Algunsdiasdepoisde ter feito a “rodadaLei” girarpelaprimeira vez,

Buda aprofundou ainda mais seu ensinamento. Ele reuniu Kondana,Bhaddiya, Vappa, Mahanama e Assaji no Bosque das gazelas para exporparaeles,emumsegundosermãomemorável,aimpermanênciadocorpo,dasensação,dapercepção,da“tendênciahabitual19”edaconsciência.Suademonstraçãosobreaimpermanênciaterminoucomadoutrinadaanatta,quenegaaexistênciadoeuprofundo: “Istonãomepertence, eunão souisto,istonãoéomeuEu20”.Paraconcluir,oAfortunadodeclarou:

Considerandoascoisasdestamaneira,ómonges,odiscípuloinstruídorejeitaocorpo,rejeitaasensação,rejeitaapercepção,rejeitaatendênciahabitual,rejeitaaconsciência.Quandoelerejeitatudoisso,nãotemdesejo.Quandonãotemdesejo,estálibertadododesejo.Quandoseliberta, o conhecimento chega: “Aqui está a libertação!”, e ele diz: “Todo renascimento foianulado,aCondutapurafoivivida,oquedeveserconquistadofoiconquistado,nãohámaisnadaarealizar,paramimnãoexistemaisfuturo21”.

Apesardeseoporàs teoriasdesenvolvidaspelosbrâmanes,adoutrina

d aanatta pregada naquele dia por Buda não ofuscou osbhikkhu. Aocontrário, os Cinco apreenderam tão bem o conteúdo desse segundosermão que se tornaram instantaneamentearahants: como Buda, eles derepenteseviram libertadosdequalquermácula,dequalquerentrave,dequalquer desejo. “Naquele momento, passaram a existir seisarahant nomundo22”,dizorelatocanônico.EmUruvela,oascetaGautamajátinhadadolugaraBuda.EmBenares,a

IluminaçãoentãosetransformounaDoutrina,quetambéméchamadadeLei ou de Darma. A ordenação dos cinco ascetas no Bosque das gazelasmarcouafundaçãodaSangha,acomunidade.Comaconclusãodessestrêsacontecimentos, o budismo nasceu.Mas, por ora, a “propagação da Lei 23”permanecia como tarefa imensa a ser realizada... Será que a doutrina domestreiriaencontrarecofavorável?DepoisdeKondana,Bhaddiya,Vappa,MahanamaeAssaji,quantoshomensseriamcapazesdecompreenderseuensinamento?

Europa,séculoXIXParis,7dejulhode1834.

A.M.B.H.Hodgson,Residenteinglês,emKatmandu,Nepal.

Monsieur,Permita-me associar-me, em meu nome pessoal, aos testemunhos de reconhecimento quetodososamigosda literatura indiana lhedevem,pelaoferta tão liberalqueosenhor fezdebom grado à Société Asiatique de Paris de providenciar aqueles entre os livros sânscritosrelativosaobudismocujaexistênciafoireveladaparaomundointelectualpormeiodesuasfelizesdescobertas.[...]Depoisdepassarmuitotempoeminiciativaspoucofrutíferasparapenetrarnoconhecimentodo budismo, depois de fazer sacri ícios enormes para a minha posição com o intuito deadquirir os livros sagrados dos cingaleses, dos quais possuo alguns, experimentei grandesatisfaçãoaosaberqueoslivrosdeBuda(Sakya)existememsânscrito.Desdeentãotenhoaesperança de poder, com a ajuda do conhecimento desta língua, com a qual comecei ametornarfamiliardepoisdeváriosanosdeestudo,abordardiretamenteasobrasbudistas;maseuprovavelmentedeixariaestemundosemterconseguidorealizarestaesperança,devidoàimpossibilidadedealgumdiairàÍndia,seaproposiçãotãoliberalqueosenhorestádispostoadispensaràSociétéAsiatiquenãomeencorajassearecorreraosseusamáveisfavores.Será que eu não estaria cometendo uma indiscrição condenável, e tomando seu preciosotempo, ao pedir-lhe que faça a aquisição para mim de alguns desses livros que o senhorjulgarmaispreciososemaisadequadosaoferecerapenetraçãonobudismopuro?[...]

Seuservidorcommuitadedicação,EUGÈNEBURNOUF1

OdiplomatainglêscompostonacortedoNepal,elepróprioapaixonadopeloestudodostextosbudistas,não iriadecepcionaro jovemsucessordeChézy na cadeira de sânscrito do Collège de France: depois de fazeralgumascópiasdemanuscritos,eledespachouparaParisváriascaixasquecontinham quase uma centena de manuscritos originais. Graças a essasdoaçõesgenerosas,umadécadadepoisde terredigidosuacartacheiadeesperança Eugène Burnouf publicaria um estudo magistral quetransformariao intelectual francêsemumdos “grandes iniciadores”–deacordocomostermosdeHenrideLubac–do“encontroentreobudismoeoOcidente2”...Atéhoje, apesarde ser impossível reconstituir com realismo a cenada

Iluminação de Buda, as numerosas traduções dos textos canônicos,acompanhadas ou enriquecidas de explicações e comentários, oferecemaos ocidentais a possibilidade de acessar com facilidade a doutrina domestrehistórico.Nemsemprefoiassim.Para“penetrarnobudismopuro”,os europeus do século XIX precisavam superar uma série de obstáculos.Materiais, em primeiro lugar, porque a coleta demanuscritos por toda aÁsia era di ícil. Às vezes, tomava o aspecto de uma verdadeira caça aotesouroeduravaanos–aliás,atéhojenãoterminou.Emseguida,técnicas,

porque os intelectuais demoravam a dominar línguas orientais antigascomoo sânscrito e o páli. Finalmente, culturais, porque, pouco a pouco, àmedidaqueiamdesvendandoostextosdereferência,os ilósofosseviamfrente a um “alheio” mental que os desconcertava. A descoberta dobudismo iria causar um verdadeiro mal-estar entre os ocidentais,provocandopolêmicas intensas, jáquenãopodiaacabaremumarejeiçãopura e simples... Por que tanta incompreensão? Como o ensinamento deBudafoiapreendidopeloseuropeus?SeráqueobudismoseriaintragávelparaoOcidente?Finalmente,oqueépossíveldeterhojedofamososermãodeBenares,queconstituiocernedadoutrinadeBuda?Tudo começou no im do século XVIII. Na época, a Índia suscitava na

Europauminteressemuitovigorosodapartedosintelectuais,dos ilósofos,dosartistas–e,emespecial,dosalemãesromânticos.Fontedeinspiraçãoede fantasia, a Índia se tornouobjeto de conhecimento ao qual se atribuíaimportância talquechegavama falaratédeum“Renascimentooriental3”.Obudismoaindanãoentravaemquestão,permanecendoterra incognita.A descoberta do sânscrito e a tradução dos grandes textos védicos ebramânicos passou a constituir a prioridade dos chamados indólogos;entreelessedestacaa iguradeWilliamJones,paida ilologiasânscritaefundador, em1784, emCalcutá, daAsiatic Society.Mas os europeus, quebuscavama “mãede todasas línguas4”no sânscrito, ou até, paraosmaisentusiasmados, o “berço” de todas as civilizações na antiguidade indiana,logoiriamsedecepcionar.Resolveramentãosevoltarparaobudismo.NoiníciodoséculoXIX,seuestudofoiprogressivamenteultrapassandoo

examedostextosdoVeda:eraoadventodafamosa“viradabudista 5”,bemdescrita por Roger-Pol Droit. Mas, assim como a identidade de seufundador permanecia obscura, a doutrina budista não se entregou comfacilidadeaosintelectuaiseuropeus.Decifrar–edestrinchar–ummundonovonãoéalgoquesefaçaemumdia,ocanteirodeobraségigantesco.OspioneirosdaprimeirametadedoséculoXIXprecisaramdemuitaintuição,sorte, trabalho, perseverança e, sobretudo, muita paixão. Pedra apóspedra, o estudo cientí ico do budismo se construiu a partir dadecodi icação do páli por Eugène Burnouf, em colaboração com odinamarquêsChristianLassen,doestudodefontesbudistaschinesaspelofrancês Abel Rémusat, do estudo da língua e da tradição tibetana pelohúngaro Alexandre Csoma de Körös, da decifração de manuscritosmongóis por Isaac Jacob Schmidt e Julius von Klaproth, sem esquecer adescoberta dos tratados budistas redigidos em sânscrito, feita no Nepal

por Brian Hodgson... A gênese do conhecimento do budismo tomou ascaracterísticasdeumaaventuracoletivacujoritmo foiseacelerandoedaqualos“heróis”,cadavezmaisnumerosos,adquiriamseusconhecimentostanto atrás de uma escrivaninha em uma capital europeia quanto noscon ins do Tibete. Àmedida que descobertas foram sendo feitas, o saberfoiseinstitucionalizando:aSociétéAsiatiquedeParisfoifundadaem1822;aAsiaticSocietydeLondres,noanoseguinte.Todasessasiniciativasconjugadas inalmentederamorigemàsobrasde

base que são responsáveis pela entrada de uma das religiões maisimportantes da humanidade, que até então permanecera ignorada, nocampo do conhecimento ocidental. Com base no exame metódico dosmanuscritos enviados por Hodgson à Société Asiatique de Paris, EugèneBurnouf publicou, em 1844, aIntroduction à l’histoire du bouddhismeindien.PrimeiraexposiçãorigorosadosensinamentosdeBuda,esseestudomagistralfoiummarcoqueserviriacomoreferênciadurantemuitotempo.Mas, infelizmente, Eugène Burnouf morreu aos 51 anos, depois de terpublicado uma tradução comentada doLótus da Lei benevolente, sem tertidotempo,comoerasuaintenção,dedarprosseguimentoaseustrabalhoscom o estudo do budismo antigo. Uma chuva de homenagensacompanharia o falecimento precoce do “gênio que soube abrir avenidasnomeiodo labirintodesesperadorda literaturabudista 6”, de acordo comaspalavrasdograndeindianistaSylvainLevi.Na segunda metade do século, intelectuais e ilósofos tomaram

conhecimentodessasdescobertaseruditas.A“ iloso iadoshindus”játinhasubjugado Friedrich Schlegel, Arthur Schopenhauer e Victor Cousin; adoutrina de Buda também interessava a Friedrich Nietzsche, ErnestRenan,HippolyteTaine,ArthurdeGobineauouaindaJulesMichelet.Todaaelitedepensadoresderepenteseapaixonoupelobudismo,acreditandoter encontrado aqui e ali um eco a suas próprias preocupações e atémesmopontosdeconvergênciacomaculturaocidentaleareligiãocristã.Ao contrário do bramanismo, ligado demaneira intrínseca ao sistema decastas próprio da Índia, o budismo assumiu traços de uma religiãouniversalistaeproselitista, fatocon irmadoporsuapresençadoCeilãoaoJapão.Elaa irmaterumfundadorúnico,umpersonagemhistóricodadoàcompaixãocujopensamento,conservadopelatradição,tomaformadeumademonstração lógica e racional, mais do que estritamente religiosa edogmática... Visto de longe, o budismo apresenta uma familiaridade defachadaperturbadoraquesófazatiçaraomáximoacuriosidadetantodos

pensadorescristãosquantodosherdeirosdoiluminismo.No entanto, depois de um breve período de entusiasmo, a leitura do

SermãodeBenareslogocomeçouaprovocarpolêmicasecontrovérsias.Adescoberta das Quatro Nobres Verdades, do Nobre Caminho Óctuplo e,mais ainda, da doutrina do “não eu” suscitou um mal-estar profundo. Obudismo,vistodoOcidente,apresentavaproblemas.Comoseriapossíveldefato compreender um fenômeno religioso que não se preocupa com acriação nem com deus – ou pelo menos com os deuses? Como umadoutrina que nega a existência da alma pode ter a pretensão de serchamada de religião? Seu fundador nem se apresenta como um profeta.Buda,comoobservou,consternado,JulesBarthélemy-Saint-Hilaire,“ignoraDeusdemaneiratãocompletaquenemprocuranegá-lo7”.O Sermão de Benares, ou “início do movimento da roda da Lei”, é, no

entanto,umtextodecaráterreligioso.Nele,omestreexpõe,antesdemaisnada, um caminho para a salvação, oumelhor, de acordo com o contextoindiano, o meio para escapar do ciclo das reencarnações. A doutrinaensinadaporBudaconsisteemQuatroNobresVerdadescujopostuladodepartida, conforme o pensamento indiano, baseia-se no princípio de que avida não passa de sofrimento. A raiz desse sofrimento reside no desejoque,pornatureza,nuncaésatisfeitoousempreédecepcionado.Éodesejoquelevaaoatoequegera,deacordocomaleidocarma,orenascimento.A libertação dosamsara reside, portanto, na extinção do desejo, graças àdisciplina rígida apresentada no Nobre Caminho Óctuplo. Aquele que secomprometedeve segui-loatéo imsequiseratingir a libertação.Apesardeestecaminhonãoserodaausteridademaisextrema,aindaassimexigearenúnciaaosprazeresdomundo,porqueelesestãonaorigemdodesejoe do sofrimento; por consequência, é conveniente afastar-se da vidaordinária,abandonarqualquerposseeevitar todososobjetosdesejáveis.Assim, a ausência de desejo vai levando progressivamente à ausência deatosnegativos,ocarmacontinuaaseperpetuar,maspassaaser,decertamaneira, cada vez menos “alimentado”. A sequência dos renascimentosassimpassa a depender apenas dos atos cometidos nas vidas anteriores.Quandoumdiaocarmachegaaoesgotamento,ohomemseencontralivredosamsara: ele se transforma emarahant, umapessoa livredequalquerimpureza. Ainda assim, precisa esperar a morte para entrar totalmentenaquiloqueobudismochamadenirvana,emquetodoosofrimentodeixade existir. O nirvana tem dois níveis. O primeiro, o nirvana incompleto, éaquelequepodemosatingirnestemundo,enquantoaindaestamosvivos.É

o estado doarahant, livre das paixões e do apego à existência. O “libertovivo”temagarantiadenuncamaisrenascer,aelesórestaterminaravidapresente; mas ela “gira” no vazio, e mais nada pode aparecer paraprolongaromovimento.Quandoelemorrer,arodavaiparartotalmenteeoarahantentraráentãononirvanacompleto.Os relatos canônicos a irmam que, depois de escutar o Sermão de

Benares,osCincose transformaramem arahant,comooBudaSakyamunijá era: “Naquele momento, passaram a existir seisarahant no mundo8”.MasosCinco,noentanto,nãosetornarambudas,porquenãoadquiriramalibertação por conta própria: eles a obtiveram por meio de umensinamento. Para chegar ao estado de buda, faltou a eles atingir aIluminação “completa e perfeita”. Ainda assim, como Buda ensinou aosCincoemseusegundosermão,tudonãopassadeimpermanência.Defato,seonirvanaequivaleàsalvação,eletambéméliteralmentea“extinção”dailusão doatmã, o “eu” profundo. Contrariamente ao bramanismo, queprega a existência doatmã, o budismo a irma que não há existênciaindividual do eu, da “alma”. Segundo a doutrina do anatta, o sofrimentoexiste,masnãoaquelequesofre.O indivíduonãopassadeumafacetadecinco “agregados” impermanentes: o corpo, a sensação, a percepção, oselementosresultantesdocarmaeaconsciência.Depoisdamorte,quandoexisterenascimento,naverdade,nadarenasce.Eaquelequeconseguesairdo ciclo infernal dosamsara se dissolve no nirvana sem forma. Osofrimentoeadordomundo,portanto,sãoinseparáveisdainconsistência.Inevitável,aimpermanênciareinasobretudo,elaéabsolutaeuniversal.Esse paradoxo, que está no cerne da doutrina budista, é de di ícil

apreensão pelos ocidentais. De fato, para os intelectuais europeus que odescobriramemmeadosdoséculoXIX,obudismologosetornao“cultodonada9”,segundoaexpressãodeVictorCousin.Muitosbaseiamsuascríticasno postulado de Hegel que, apesar das parcas fontes especializadasdisponíveis em sua época, escreveu, em 1827: “O nada, que os budistastratam como o princípio de tudo, o máximo objetivo inal e a máximafinalidadedetudo10...”.Mas,pormeiodisso,eles izeramumacaricaturadopensamentodo ilósofo,quenãoconsideravaobudismocomoumareligiãodestruidora,mas,demaneiramaisjusta,comoa“religiãodoseremsi 11”,onadacomooequivalentedoSerpuro,doSerinde inido,livredequalquerdeterminação. Seja como for, tirados de seu contexto, os postulados deHegel foramretomadospordiversospensadoresqueosusarampara termais base de rejeição a umadoutrina vinda de fora que aparece como a

expressão de um desejo de nuli icação, um convite quase doentio àautodestruição. Normalmente tachada de pessimista e atémesmo niilistapelos ilósofos,adoutrinadeBudafoiacolhidadamesmamaneiranegativapeloscristãos,quecondenaramo“sistemahediondo12”cujoobjetivoseriaalibertaçãodetudo,algoforadaspossibilidades.Nessa orquestra de críticas, algumas vozes divergentes se izeram

escutar. Foram as dos cientistas, naturalmente, que apelaram a maiorprudência na hora de interpretar os textos, e, entre os ilósofos, a deArthur Schopenhauer, que defendeu o budismo sozinho contra todos, ouquase.Maselenãonegouocaráterniilistada religião...bemaocontrário.Aoperceber na doutrina do “Buda ilósofo” uma concordância com a suaprópria concepçãodemundo,ArthurSchopenhauerde fatooelogiouporconsiderar a vontade de viver um absurdo e a origem do sofrimento.Assim, o ilósofo se equivocou ao ver no budismo uma espécie depre iguração extraordinária de seu próprio pensamento. De todo modo,Arthur Schopenhauer inaugurou uma espécie de “ iloso ia comparada”.A inal, se sua concepção da natureza da experiência fundamental dosofrimento pode efetivamente ser aproximada da concepção da doutrinadeBuda,sua iloso iaéde initivamentepessimistae,por issomesmo,nãopodeserqualificadade“budista”.Nietzsche também tinha em boa estima o “grande isiologista” e sua

“Religião – que seria melhor chamar de higiene para não lhe atribuircoisas tão desprezíveis como o cristianismo13”. No entanto, ele tambémconsideravaobudismocomoumniilismo,umsintomadocansaçodeviver,ao qual opôs o conceito de desejo de poder. Ao reconhecer que “tudo ésofrimento”, como a irma Buda, libertar-se do sofrimento para elesigni icavarejeitaravida:Nietzschepregava,aocontrário,umasabedoriatrágicaqueimplicaavontadedosofrer.Nãoquesofrersejapositivoemsi,mas porque, sem o sofrimento, nada de grandioso é possível: “O homemtrágicoafirmaatéosofrimentomaisamargo14”.Os dois pensadores negligenciaram o fato de que o budismo, antes de

ser uma iloso ia, é uma religião, ou melhor, uma doutrina que levaesperança aos homens. E é precisamente essa dimensão, essencial, quepermitiuaobudismoatravessar25 séculose seexpandirparaquaseumterçodoplaneta.Em defesa dos pensadores ocidentais, poderíamos levantar a hipótese

dequeadoutrinabudistaqueelesdescobriramnoséculoXIXtalvezfossediferente, oupelomenosmais complexa,doqueapregadaoriginalmente

pelo Buda Sakyamuni. Será que o texto do Sermão de Benares queconhecemoshojeé ielàrealidadehistórica?Quetipodecréditopodemosdaraele?Apesar de não existir nada para permitir que tenhamos certeza a

respeito de sua autenticidade absoluta, os especialistas concordam emreconhecer que o texto tradicional do primeiro sermão de Buda expõeefetivamente o cerne da doutrina do budismo original. Como foiconservadopordiversasversõesconcordantesporquasetodasasescolasbudistas, o discurso das Quatro Nobres Verdades é considerado bempróximodaquilo queBuda teria ensinado pessoalmente em vida ou, pelomenos,daquiloquefoirelatadoporseusprimeirosdiscípulos.EmseulivroRecherches sur la biographie du Bouddha, André Bareau mostrou,particularmente, a idade avançada da apresentação do Nobre CaminhoÓctuplo,queapareceemduasretomadasnotextodoSermãodeBenares:aprimeira vez comoaquartaNobreVerdade e a segundana introduçãoque ele fez do Caminho doMeio. Segundo este especialista, ele teria sidoconcebido antes do discurso das Quatro Nobres Verdades como oconhecemos hoje, assim como também teria precedido a formulação dainexistênciaemsi–que talvezsó tenhasido ixadadepoisdo falecimentode Buda. O Nobre Caminho Óctuplo aparece, portanto, como um dosensinamentos mais antigos de Buda, se não tiver sido o primeiro. Emoutras palavras, é surpreendente notar como esse ensinamento originalconstitui até hoje o cerne da prática budista. Apesar de sua enormediversidade, o budismo contemporâneo continua a se valer desseensinamento original, e os budistas de hoje, assim como os de ontem,continuamseesforçandoparaseguiromodelodoNobreCaminhoÓctuplo.De acordo com as palavras atribuídas a Buda, “ele oferece a visão, eleoferece o conhecimento, ele conduz à tranquilidade, ao conhecimentosupremo, à Iluminação, aonirvana15”.Emoutraspalavras, seguiroNobreCaminhoÓctuploconduzàsalvação.Apesar de os ocidentais do século XIX terem encontrado di iculdade

para absorver a doutrina de Buda, não foi assim – como já vimos – comseus primeiros discípulos. Por mais inovador que seja, o budismo seconstrói sobre uma base de conceitos derivados da tradição bramânica,pura e exclusivamente indiana, que eram totalmente estranhos aopensamentodamaiorpartedospensadoreseuropeusdaépoca.Queavidaaquinãopassadesofrimentoeque todomundoéprisioneirodosamsarasão dois postulados da doutrina budista que não eram evidentes para os

ocidentais. Ao contrário, esses conceitos só poderiam ter sido assimiladosdecarapelosantigoscompanheirosdeascetismodeBudaseeles fossemoriundosdacastadosbrâmanes–eomesmovaleparaasoutraspessoasalémdosCinco,seacreditarmosnasescrituras.A distância geográ ica, temporal e cultural explica em grande parte a

incompreensão dos pensadores europeus. O fato de a descoberta daalteridadeterlevadoàrejeiçãonãoédesurpreender.Masháaindaoutracoisa:aoconsiderarobudismocomosistemaniilistaquepregaocaoseadissolução, será que os intelectuais europeus não estavam exprimindo aangústiaquenaépocaagitavao inconscienteocidentalconfrontadocomonascimento damodernidade?Uma espécie de “mal-estar da civilização16”,ummedolatentedacatástrofe–queviriaasetornarrealidadeem1914...Seja lá como tenha sido, oOcidente deixou passar seu primeiro encontrocomobudismo.

ConversõesNo Bosque das gazelas, o Afortunado passou a viver rodeado de seus

cinco primeiros discípulos. Dia após dia, a pequena comunidade foi seorganizando. À noite, eles dormiam sob o abrigo de cabanas sumáriasfeitasdegalhose,acadamanhã, iamatéacidadedeKashipararecolhersuasesmolas.Enquanto isso, a comunidademonástica, aSangha, ou “Assembleia”, de

acordocomo termousadoporBuda,naqueleestágioaindaeracompostaunicamentedehomensquetinhamoptadopelocaminhodarenúnciahaviamuito tempo. Como tinham “pouca poeira nos olhos1”, os cincorenunciantestinhamdisposiçãoespecialparacompreenderaDoutrina.A conversão de um rapaz chamado Yasa de repente fez com que o

círculo de recrutados aumentasse. Filho único de um banqueiro rico deBenares, ele tinha sido criado como ilho de nobre. Assim como Sidartadurantesua juventude,Yasasempre foramimadopelospais.Alternando-seentreos trêspaláciosda famíliadeacordocomasestaçõesdoano,elesempreviveraafastadodasdi iculdades, “regozijando-secomosprazeresdos cinco sentidos2”. Mas, certa madrugada, depois de uma noitada deexcessos na companhia de cortesãs, ele acordou sobressaltado e sedeparou com o espetáculo mórbido do amontoado de corpos desnudos,abandonados ao sono no meio da bagunça da festa. Assim como obodisatva na noite em que partiu de Kapilavastu, Yasa de repente foitomado por um desgosto irreversível: “Como isto é desagradável! Comoserá possível suportar o desejo3?”. Depois de atravessar os portões deKashi sem acordar os moradores, ele logo chegou ao rio Varana. Yasaabandonousuassandáliasdeouro,atravessouocursod’águaesedirigiuao Bosque das gazelas, com a esperança de encontrar um sábio queaceitasseguiá-lonocaminhodarenúncia...Aproveitando o frescor do amanhecer, Buda estava passeando pelo

bosquecomserenidadequandoviuorapazseaproximar.Eleaindatraziano rosto a expressão incoerente e chocada de alguém que acabava defazer uma descoberta terrível. Ao perceber imediatamente suainquietação, o Tathagata o cumprimentou com um tom reconfortante.Depois de iniciar a conversa, ofereceu a Yasa uma exposição de suadoutrina. Alguns instantes depois, o mestre e o aluno estavam sentadoslado a lado em uma toalha estendida no solo. A exposição de Buda sedesenvolveu etapa por etapa, da mais acessível à mais complicada, da

renúncia aos prazeres às vantagens da vida de bhikkhu. Esse métodoprogressivoencontrousucessoimediatojuntoaYasa:

Enquanto Yaçaskara escutava, sentado, suas poeiras e suas manchas desapareciam, e eleobteveoolhodaLei,perfeitamentepuro.QuandoviuaDoutrina,obteveaDoutrina,possuiucompletamenteaDoutrina,emseuprópriocorpoeleobteveavisãoporseusprópriosolhosdofrutodavidareligiosaedisseaoBuda:–EudesejocultivarcompurezaacondutapuradeacordocomoTathagata.– Venha, ómonge! Regozije-se emminhaDoutrina, cultive a conduta pura para suprimir aorigemdasdores.EntãoYaçaskararecebeuaordenaçãomaior.4

Osoutrosmonges icaramfelizescomanotíciaeacolheramYasaentresidemaneiracalorosa.ASanghapassouacontarcomseisbhikkhus.Nesse ínterim, emKashi, a agitação tomava contada famíliadeYasa.A

mãe do rapaz tinha sido avisada, bem cedo da manhã, pelas cortesãs epelascriadas,dodesaparecimentobrutaldeseu ilho.Elalogosuplicouaomaridoqueencontrasse seu ilho eo trouxessedevoltapara casa comamaiorrapidezpossível.Depoisdemandarfechare iscalizartodasasruaseos incontáveisbecosdacidade,obanqueirorico inalmentesedeslocoupessoalmenteatéasmargensdorioVarana,ondeencontrouassandáliasluxuosas abandonadas por seu ilho algumas horas antes. Seguindo suaintuição,opaideYasaentãocruzouorioatéaoutramargem...Ele mal entrara no Bosque das gazelas e logo avistou um grupo de

renunciantes. Ao se aproximar, encontrou entre eles um asceta“absolutamenteextraordinário5”,cujavisãoacalmouespontaneamenteseudesespero.Mas seu ilho lhe era invisível... porqueBuda fez comque eledesaparecesse graças a seus poderes sobrenaturais. Cheio de esperança,ele perguntou ao asceta se tinha visto Yasa. À guisa de resposta, Budaconvidou o homem a se sentar a seu lado. Em seguida, depois de trocaralgumaspalavrasamáveiscomele,deuinícioàexposiçãodoensinamentoavançado daDoutrina... Escutando-o com atenção, o banqueiro rico entãopediuaBudaqueoaceitassecomodiscípuloleigo.Depoisdetomarrefúgioem Buda, no Darma e naSangha, ele se tornou o primeiroupasaka,discípuloleigo,dacomunidade.OpaideYasaentãoviuseu ilhoapareceraoladodoscincomongesque

rodeavam Buda. Ele lhe pediu que retornasse a Benares para junto dosseus,dandoênfaseàinquietaçãodesuamãe,queperdiaogostopelavidasemsuapresença.Yasanãoproferiupalavra.Aopassoque seupai tinharecebidoaDoutrina,eleesperavaaúltimaetapadocaminhodaSalvação:até aquelemomento, obhikkhu só tinha“entradonacorrente 6”, agoraerau marahant livre de qualquer paixão e de qualquer erro. Ainda em

silêncio, Yasa se contentou em implorar ao mestre com o olhar. Budaexplicou ao pai dele que era impossível para umarahant como Yasaretomar a vidamundana. Oupasaka foi obrigado a se dobrar perante asevidências. Ele convidou então Buda e seu ilho transformado emmongeparajantarnacasadelenacidade.Logo no dia seguinte, o Afortunado e Yasa foram até Benares. Foram

recebidos com muita deferência por toda a família do rapaz. Quando arefeiçãoterminou,BudadeuumensinamentodoDarmadedicadoàmãeeàquelaque até então tinha sido a esposadeYasa. Por sua vez, no imdosermão,elaslogopediramparatomaroTriploRefúgio.Assim,tornaram-seas primeirasupasika, as discípulas mulheres leigas de Buda. Nosarredores,anotíciadaconversãosúbitadeYasaàvidamonástica logoseespalhou. Quatro amigos próximos do rapaz, por curiosidade, foram aoencontrodeBuda.DepoisdeescutarSakyamunilongamente,elestambémoptaram por se juntar àSangha. Depois deles, as conversões semultiplicaram: cinquenta amigos antigos deYasa se converterampor suavez e se tornarambhikkhus. A visitadeBudanaqueledia à antiga cidadesantadeBenaresfoiumverdadeirosucesso...Acomunidadeagoracontavacommaisdecinquentamonges.NoBosque

dasgazelas,foinecessárioconstruirnovascabanase,empreparaçãoparaas monções, reforçar as antigas construções. Depois da volta para pediresmolaspelamanhãemKashi,osbhikkhussepunhamatrabalhar,apesardo calor insuportável, para que tudo estivesse pronto antes da chegadadaschuvas.Algunscortavambambunomatoedepoisjuntavamashastes,outros trançavam juncos para fazer os telhados... As cabanas tinhamacabado de icar prontas no dia em que a monção começou. Todos sealegraram coma chegadada chuvaque restabelece a vida.Dali a algunsdias, em Mrigadava, nas árvores desnudas brotariam grandes folhasfrescas em explosão. Os animais que estavam escondidos nas sombrasreapareceriam.Osriosressecadosvoltariamaseinchar,eosolovermelhoerachadosecobririadecapimverdeetenro.Bené icas, essas chuvas intensas também tinham suas inconveniências.

Os caminhos, enlameados, icavam di íceis de seguir, isso quando asinundações não interrompiam totalmente os deslocamentos. Durantevárias semanas, Buda e seus seguidores mal conseguiam se afastar doBosquedasgazelas.Diaapósdia,elesentãoseentregavamàmeditaçãoeomestre aproveitava para desenvolver seus ensinamentos com maisprofundidadejuntoaseusdiscípulos.

Perto do imda temporadadas chuvas, Sakyamuni tomouumadecisãofundamental para o desenvolvimento da ordem monástica. Depois demuitore letir,elechegouàconclusãodequeestavanahoradeassociarosbhikkhus à difusão do Darma. Buda reuniu seus discípulos e lhes deuinstruções.Osmongesdeviamabandoná-loe ircadaumparaumlado,aoencontrodoshomens.Solitários, semnenhumapossealémdeuma togaeuma tigela, eles deviam mendigar seu alimento todos os dias e nãopermanecernascidades.Deviamdormirondefossepossívelpelocaminho,“na loresta,aopédasárvores,embaixodeabasrochosas,emravinas,emgrutas,emcemitérios,nomato,acéuaberto,emcimadapalha7”.AmissãodelesseriapregaraBoaLeijuntoà“multidão”, bahujana,oumelhor,juntoa todos, sem distinção alguma: era necessário que todos aqueles quefossem capazes de compreender a Doutrina também tivessem aoportunidadedecolocar imaseusofrimento.OAfortunadoconduziuseudiscursodeacordocomasseguintespalavras:

Tomem então seu caminho e sigam pelo bem de muitos, pela felicidade de muitos, porcompaixãopelomundo,pelavantagem,pelobem,pelafelicidadedosdeusesedoshomens8.

Depois que os sessentabhikkhus se dispersaram para preencher seu

novo papel de missionários itinerantes, Buda retornou ao local de suaIluminação, em Uruvela. Ele não esquecera de todos aqueles que tinhamsidogenerososaolhedaresmolasduranteos longosanosquepassouembusca da Verdade; ele desejava ensinar-lhes o Darma que conduz àSalvação. Depois de longos dias de caminhada em silêncio, inalmentechegou aos arredores do vilarejo. Cansado, Buda estava descansandoembaixo de uma árvore, no parque de Karpasika, quando apareceu umgrupoderapazes ruidososeagitados.Apelidadosde “PândegosAlegres 9”pelosmoradoresdeUruvela,perguntaramaoascetaseelenãotinhavisto,poracaso,nosarredores,umaladrafugindocomofrutodeseuroubo:elesestiveram largados às delícias do banho em companhia distinta quandoumacortesãroubouumobjetodegrandevalorquepertenciaaumdeles–osolteirodogrupo,quetinhacontratadoosserviçosdamoçaparaaqueledia.Os “PândegosAlegres”nãoviramquandoela cometeuo roubo, claro,mastinhamcertezadequeacortesãeraculpada.Buda,queosouviraemsilêncio,perguntou:“Ouentão,oquevocêsacham,meusrapazes,quevalemais a pena? Sair em busca dessa mulher ou sair em busca de vocêsmesmos10?”. Muito perturbados pela profundidade da pergunta dorenunciante, os rapazes se aprontaram para escutar o ensinamento de

Buda...Que logo rendeu frutos, e aSangha se enriqueceu commais trintanovosrecrutas–outalvezcinquenta,deacordocomoutraslendas.Espalhadospor todaaamplaplaníciedoGanges,osmonges itinerantes

também obtinham bons resultados. Diversas pessoas, depois de tomarconhecimento da Doutrina, desejavam tornar-sebhikkhus. Mas como só omestre estava habilitado a conferir a ordenação, a longa viagem atéUruvela desestimulava as vocações: os recém-convertidos às vezesmudavamde ideianomeiodocaminho...Parasanaresteproblema,Budaentãoresolveuautorizarosmongesaconferirpessoalmenteaordenação.A cerimônia ritualística instituída de acordo com suas instruções erasimples: depois de raspar a barba e os cabelos, o noviço, com os pésdescalços e o corpo envolto em um pedaço de tecido, apoiava o joelhodireito no chão. Com as mãos unidas, ele pronunciava uma fórmula quetemvalordeprofissãodefé:“EutomorefúgioemBuda,eutomorefúgionoDarma,eutomorefúgionaSangha11”;depois,elesededicavaaabandonara vida mundana para se unir ao Tathagata. O noviço então recebiasolenementeotítulode“terrecebidoaordenaçãomaior12”.Assim, desde os primórdios daSangha, a propagação da Doutrina

representava a missão essencial dosbhikkhus. Durante o período demonções,osmongesviviamemretiroemeremitérios,masduranteorestodo ano, por cerca de oito meses, eles deviam se deslocar sem descansoparapregar.ApartirdomomentoemqueosadeptosdeBudareceberama autorização de conferir pessoalmente a ordenação, já não havia maisnada para frear a difusão do Darma. Desde a conversão dos Cinco, opequeno grupo tinha inchado com tanta rapidez que em apenas poucosmeses tomou a forma de uma verdadeira corporação de mongesmendicantes. Todos aqueles que “entravam na corrente 13” observavam amesmaregrarígidaevestiamamesmaroupa,quesedistinguepelacordados outros renunciantes. No lugar do açafrão emblemático dos ascetasbramânicos, os discípulos de Buda se enrolavam em uma peça de tecidocordeocre,cujatinturaéchamadadekasay,comoaterraargilosadeondeela provém. As vestes amarelas e a cabeça raspada eram os sinaisexternos que permitiam identi icar imediatamente osSamanaSakyaputtiya,“osascetassectáriosdo ilhodossakyas”–comocomeçaramaserdesignadosentãoosintegrantesdanovacomunidadereligiosa.Mas, apesarde omestre cuidardodesenvolvimento rápido e e icazda

ordemmonástica,elenãonegligenciavaosconvertidosquenãodesejavamentrar para a comunidade demonges. Aliás, a Sangha precisava também

deintegrantesleigos.Essaspessoastinhampapelduploacumprir:porumlado, favorecer a propagação da Doutrina; por outro, fornecer suportematerialàcomunidadedemonges.

DeSarnathaVaranasiSe acreditarmos nos relatos canônicos, a história do budismo então se

iniciou no ano 531 a.C. ou 523 a.C., no Bosque das gazelas, onde o BudaSakyamuniteriapregadopelaprimeiravezaDoutrina.Algunsdiasdepois,eleteriadadocontinuidadeaseuministérionacidadedeKashi,ondeseusensinamentosteriamfeitomuitosucesso.Hoje, o Bosque das gazelas é identi icado com a atual Sarnath, e Kashi

continuacorrespondendoàcidadedeVaranasi.SituadasnoestadoindianodeUttarPradesh,estasduaslocalidadesestãoseparadasporapenasumadezenadequilômetros,masoferecemumcontraste talque surpreendeatodos os visitantes: Sarnath é um sítio arqueológico bem organizado,silenciosoe verdejante emqueo tempopareceparado; aomesmo tempoque em Varanasi, uma cidade populosa e poluída, o luxo da vida éimpetuoso.Hojeemdia,aovisitarSarnatheVaranasiemsucessão, icanoarumparalelosurpreendentecomodestinodobudismonaÍndia.Rodeadodemuros, o sítio de Sarnath é gerenciado commuito cuidado

peloArchaeologicalSurveyofIndia.OBosquedasgazelascontinuaali,massetrata,semdúvida,deuma“reconstituição”:asgazelas,ágeisegraciosas,circulam tranquilamente em um cercado com gramado impecável –herdeirodignodatradiçãobritânica–ondesãoalimentadastodososdiaspelos guardas. De acordo com a literatura budista, a existência dessareserva de animais émuito antiga; remonta a uma época bem anterior àvidado fundadordobudismo.AorigemdonomedeSarnath lembraessalenda: é a contração do termo em sânscritoSarang Nath, “Senhor dasGazelas”,efazreferênciaaumadasváriasencarnaçõesdeBudaantesdeseu último renascimento. Nessa loresta, o bodisatva um dia teria seoferecido deliberadamente como caça ao rei de Benares, grande amantedo esporte, para salvar a vida de uma gazela grávida de um ilhote. Osoberano, tocadoperanteoespíritode sacri íciodo “SenhordasGazelas”,teriaentãodecididocriarumareservaparaprotegeraquelesanimais...Pormaistocantequeestalendaseja,elainfelizmentenãotraznenhuma

informação de ordem histórica a respeito de Sarnath. Aqui, como emoutros lugares, interrogar a arqueologia parecemais indicado.Apesar deos vestígios de Sarnath não fornecerem provas diretas, capazes deautenticarolugardoiníciodomovimentodaRodadaLei,elesatestam,poroutro lado, que o Bosque das gazelas foi sim identi icado como tal pelosprimeirosbudistas.Osítioarqueológico,quecobreumaáreaconsiderável,

mostratambémqueo lugarpresenciou intensaatividadebudistaduranteséculos: em resumo, os diversos vestígios oferecem sobretudo aoportunidadedeacompanharodesenvolvimentodobudismoindiano...atésuaqueda.Chamado no passado de “célula perfumada das origens1”, o templo

principal de Sarnath teria sido construído pelos primeiros discípulos deBuda, os “Auditores”, ao redor da cabana ocupada pelomestre quando atemporada de chuvas se seguiu a sua primeira pregação. Reformado ereconstruído várias vezes, o templo atual infelizmente só exibe paredesgrossas relativamente tardias, datadas aproximadamente do século VI.Entre os vestígios mais antigos, os edi ícios erguidos pelo imperadorAshoka no século III a.C. são testemunho da disseminação fulgurante dobudismo na época do império Maurya. Aqui, assim como em todos oslugaresassociadosàsetapasdecisivasdavidadeBuda,comoLumbiniouBodh-Gaya, Ashoka, o convertido fervoroso,mandou erguermonumentospara honrar a memória do Afortunado e disseminar sua doutrina. EmSarnath, essa épocagloriosadobudismo rendeuprincipalmenteumpilarnotávelquechegouasetornarduplamenteemblemático:ofamosocapiteldeAshokaétambém,desdea independênciadopaís,oemblemanacionalda União indiana. Ele traz no alto quatro leões, símbolo da força e dacoragem,querepousamsobreumábacocircular.Este,dispostosobreumalordelótus,édecoradocomquatroanimaisemtamanhoreduzido:oleãoao norte, o elefante a leste, o cavalo ao sul e o touro a oeste. Essesguardiões dos quatro pontos cardeais estão separados um do outro porrodasquesimbolizamaLeibudista.O capitel lembra, mais do que qualquer outro vestígio, a ambição de

Ashokadedifundirobudismoem todasasdireções,no seiode seuvastoimpério e até alémdele.De fato, o caráterprosélitodo imperadornão seinscreveunicamentenapedraenointeriordomundoindiano:no18 oanode seu reinado, depois de ter convocado o terceiro concílio budista, osoberano decidiu enviar missionários por toda a península indiana, etambémalémdas “fronteiras, até seiscentas léguas 2” dos reinos vizinhos:aoCeilão, àBirmânia,nadireçãodaMalásia, àCaxemira, aoAfeganistão...No interior de seu império, a Doutrina se disseminou como nunca,principalmente no âmbito das cidades. Ela atingiu principalmente asclasses dominantes e osmercadores, cuja participação na propagação dobudismoao longodoseixos comerciais, terrestresemarítimos, está longedeserdesprezível.PromovidodestamaneirapeloimperadordosMauryas,pela primeira vez depois de seu surgimento, o budismo então entrou de

verdadeparaahistória.NaÍndia,elefinalmenteassumiucaracterísticasdeuma religião à parte, ao passo que sua propagação além das fronteirasencarnousuavocaçãouniversal.Depoisdodeclíniodo impérioMaurya,obudismoTheravadacontinuou

aseexpandir,principalmentenosreinosindo-gregosdoNoroestedaÍndia,fundados depois das conquistas de Alexandre, para onde algunsYavanaforampara se converter, a exemplodo famosoMenandro. Sobo governoKushana, o budismo continuou a lorescer no território da Índia. Nesseínterim,ele sedividiuemduascorrentes: foiprecisamenteno reinadodeKanishka,noséculoI,queoMahayanaapareceu.Comojáfoicitado,issosefez acompanhar de um desenvolvimento artístico excepcional, ilustradopelasestátuasdoGandhaia,fusãodasartesgrega,indianaepersa.Mas retornemos à visita a Sarnath para continuar a desenrolar o

carretel da história do budismo indiano.Omonumentomais imponente écertamente a estupa Dhamekha, que foi erguida sobre a base da deAshoka. Situados ao suldo sítio arqueológico, os vestígiosda estupaatualformariamumedi íciodequasequarentametrosdealturaetrintametrosdediâmetro.A estupa é compostade trêspartes: umabase circularbembaixa, um tambor cilíndrico com uma dúzia de metros, decorado comogivas que exibem um nicho central, e um domo de tijolos em que acobertura de reboco desapareceu. A descoberta de um tablete de argilacom uma inscrição fornece a explicação do nome dessa estupa.Apresentando a estrutura comoDhamaka, ela parece indicar que foinaquele lugar exato que Buda teria colocado em movimento a Roda doDarma. Seja lá como tenha sido, a estupa Dhamekha hoje é altamentevenerada pelos budistas que, para lhe prestar homenagem, circulam aoredordelanadireçãooeste.Aofazerissoosdevotosperpetuamsemsaberuma antiga tradição indianaderivadados cultos solares – e hoje dáparanotar que muito poucos entre eles são de nacionalidade indiana. ComoaconteceemLumbiniouemBodh-Gaya,agrandemaioriadosperegrinosquevisitamSarnathviajarammuito,vindosdoVietnã,daCoreiaouaindadoJapão,paraserecolhersobreospassosdeBuda...A estupa imponente que se vê hoje é fruto de reconstrução e de

ampliação que remonta à época da dinastia Gupta, ou melhor, entre osséculos IV e VI. Como comprovam outros vestígios de Sarnath, o localtambém exibia naquele período grandes edi ícios monásticos capazes dereceberumnúmeroconsideráveldemonges.Maséinteressanteressaltarqueos soberanosguptas,mestresdeum império imensoqueseestendia

por todo o Norte da Índia, não professavam a fé budista. Os guptas, queeram hinduístas, mostravam-se muito tolerantes, e até generosos, tantopara com os discípulos de Buda quanto para com os de Mahavira – osjainistas. O período Gupta, particularmente fecundo, encarnou de fato oapogeu da cultura clássica indiana. Essa época representa o auge paratodas as artes, fossem quais fossem suas a iliações religiosas: assim, emSarnath,umaescolanotáveldeesculturabudistaveioà luz.Noentanto,eaí está o paradoxo, esse período marca também o início do declínioinexoráveldobudismona Índia.Apartirdessemomento,daépocaGuptaque encarna a idade de ouro da civilização indiana, a disseminação daDoutrina de Buda, lentamente abafada pelo hinduísmo dominante, foi seapagandoprogressivamente.ComomostramosvestígiosdeSarnath, apáde terrade initivasobreobudismo indiano foi jogadacomachegadadosconquistadores muçulmanos, com o ataque de Mahmoud de Ghazni, em1017,edeQutbud-DinAibak,em1194.De lá, a visita continua em Varanasi, que encarna, por outro lado, a

vitóriairreversíveldohinduísmosobreobudismo–eissoantesmesmodachegada dos muçulmanos. A antiga Kashi também se cansou de seratacada mortalmente pelo islã – principalmente pelo imperador mongolAurangzeb, no séculoXVII –,maspareceque a cidade santa foi capazderenascer das cinzas. Hoje, Varanasi (Benares) abriga quase dois miltemplos espalhados pelas curvas de suas numerosas ruelas. Ao longo doano, a cidade dedicada ao deus Shiva atrai uma multidão de peregrinosvindosdosquatrocantosdaÍndia.Emqualquermomento,asrecitaçõesdemantras,asmelodiasdosbhajans–oscânticosdedevoção–eotilintardossinos depuja – rituais de homenagem às divindades – misturam-se nasruelas tortuosas. Com o nome derivado dos rios Varuna e Asi, doisa luentesdoGanges,Varanasisempresedesenvolveuemumasómargemdorio,demaneiraa icardefrenteparaosolnascente.Todasasmanhãs,umamultidãodedevotosseacotovelanosghats–caisemformadeescadaquemargeiaacidadeemtodaasuaextensão–parasepuri icarnaságuasescuras do Ganges sagrado e para prestar homenagem a Surya, o deusvédico do sol. O espetáculo da multidão de devotos não deixa nenhumvisitanteindiferente,detãoimutávelqueparece.Assim,apesardenenhumtexto mencionar o fato, é bem possível que Buda também tenhapresenciadoessesbanhosritualísticosquandovisitouKashi...Masoqueaconteceunaterraqueviuobudismonasceresedisseminar

durantequasequinzeséculosparaqueoslocaisotenhamesquecidodesta

maneira?Porqueohinduísmorepresentahojemaisdeoitentaporcentoda população da Índia, ao passo que o budismo só é praticado por umaminoria ín ima – de origem tibetana essencialmente? Como explicar talprevalênciadohinduísmosobreobudismo?Essavitóriaéfrutodeumalongahistória.Lembremosemprimeirolugar

que o bramanismo nunca desapareceu quando o budismo teve seumomento de glória, durante o reinado de Ashoka. Não existe nada queprove que, naquela época, a fé do soberano fosse compartilhada pelamaiorpartedeseussúditos.Apesardeobudismoterconhecidoexpansãofulgurante, inegavelmente, ele coexistia com o bramanismo no meio deoutrascorrentesreligiosasmaisvigorosas,comoojainismo.Alémdisso,asduasgrandescorrentesreligiosasnuncaforamradicalmenteopostasnemcompartimentadas. As duas sempre se constituíram demúltiplas seitas esubseitas, demodo que os próprios conceitos de religião e de conversãocomo nós os conhecemos permanecem relativamente vagos no contextoindiano. Os dois movimentos certamente travavam uma espécie deconcorrência,masaindaassimelessein luenciavamdemaneirarecíproca.O relato de viagem do peregrino chinês Fa Hian, que visitou a Índia noiníciodo séculoV, oferece testemunhoeloquentedisso: apesarde relatarqueo antigo sacri ício de sangrar um cavalo, que tinha sidoproibidoporAshoka,derepentefoiretomadocomohonrariapelossoberanoshindusdadinastia Gupta, ele também observa que as castas mais elevadas seabstinhamdoconsumodacarne.Ovegetarianismo,herdadoda in luênciaconjuntadobudismoedojainismo,passouaserconsideradotambémpelohinduísmo como prática especialmente pura e elevada. É por isso que ohábitosetransformouemumdossinaisdedistinçãodosbrâmanes,quesecolocamnoaltodahierarquiasocial,aoladodossoberanoshindus.De fato, para conter o desenvolvimento de correntes de contestação,

como o budismo, que ameaçavam a supremacia dos brâmanes, a religiãoderivadadosVedasprecisouseadaptar.EntreosséculosIVa.C.eVd.C.,obramanismo evoluiu consideravelmente e deu origem ao que chamamosde hinduísmo. Progressivamente, novos costumes e práticas religiosasforam se sobrepondo aos rituais derivados do vedismo e do caminho darenúncia dosUpanixades,comoobjetivodefazersurgirumareligiãomaisacessível e, por consequência, mais popular. O hinduísmo se apoia emnovostextos–tambémredigidospelosbrâmanes–queconstituemaquiloque chamamos desmriti, a “Tradição”. Apesar de sua origem serconsideradahumanapelosdevotos,oconjuntoformadoporessestextosse

baseia nashruti, a “Revelação” do Veda, que dá fundamento a sualegitimidade. Eles compreendem, em primeiro lugar, os Dharma Shastras,primeiros “tratados sobre o Darma”, dos quais fazem parte asLeis deManu.Escritasnaviradadaeracristã,elasformamumcódigodecondutasocial,moral e ritual que acomoda – e justi ica – o sistema de castas – e,portanto,aposiçãodosbrâmanes–pormeiodoDarma.O conceito deDarma não é novo. Ele já era bem conhecido do

bramanismo, mas foi rea irmado com irmeza. De certo modo, oDarmaprolonga orta védico: ele designa a ordem do mundo em cada uma desuas manifestações; seja o cosmos, as leis naturais, a organização dassociedades humanas ou os rituais religiosos. Sua raizdhri, “carregar,segurar”, indica que o Darma organiza e segura tudo, ele é a garantia deharmonia nomundo. Este conceito está ancorado no pensamento indianode maneira tão profunda que não permaneceu como privilégio dobramanismonemdeseusucessor,ohinduísmo.Comoo Darmaequivaleàordem,àregra,àlei,osbudistasnãohesitaramemutilizarestetermo,porsuavez,paradesignaradoutrinadeBuda:aBoaLeiassimtomouonomedeDarmanos textosbudistas redigidosemsânscrito,oudeDhamma, seuequivalentenalínguapáli,nostextosdatradiçãoTheravada.A metamorfose do bramanismo em hinduísmo também passou pela

composição das imensas epopeias doRamayana, “O gesto de Rama”, doMahabharata, “A grande luta de Bharata”, e dos Puranas, “Antiguidades”,que apresentam as genealogias e as vidas lendárias de uma enormequantidade de divindades. Essecorpus literário gigantesco, que tambémpertence à “Tradição”, abre novas perspectivas às práticas religiosas. Aoladodosrituaisvédicosedarenúnciadosascetas,nãomuitoelitistasnemexigentes, ele propõe outros caminhos, acessíveis a todas as castas dasociedade, para se libertar dosamsara. Assim, é lançada a ofensiva paraanularosatrativosdobudismojuntoaomaiornúmerodepessoas...Apesardeoataquenãoserfrontal,édetodomodofatal:o“concorrente”azaradonuncamaisiriaserecuperar.Um dos novos caminhos possíveis é o da ação pregada pelo famoso

Bhagavad-Gita,textoquefazpartedofamosopoemaépicodoMahabharata.“A Canção do Senhor” ensina que, para alcançar a Salvação, convémrenunciar ao desejo e ao fruto de seus atos,mas não aos atos em si. Emresumo, não é necessário abandonar a vida mundana para encontrar asalvação,aquelequeagetambémpodeterestaaspiração...sobacondiçãodequesempreajadeacordocomseudarmapessoal.PorquedefatoexisteoDarma,aordemsocioeconômica,eodarmaindividual–semmaiúscula–,

que remete à ideia de “dever”. E como isso depende da casta em que senasce,eleobviamentenãoéigualparatodomundo...Entreosoutroscaminhosabertospelostextosda“Tradição”,o bhakti,a

devoção à divindade, encontra imenso sucesso popular. Assim, osentimentoreligiosopessoal,oemocional,éincentivado;a inal,diz-sequeafusão com a divindade abre as portas da salvação. Obhakti favorece oaparecimentodocultodasimagensesetraduztambémpelamultiplicaçãodasdivindades– e, portanto,dos templosedos locaisdeperegrinação.A“Tradição” a irma que o panteão hinduísta conta com 33.333 deuses –número simbólico de uma quantidade extraordinária. Portanto, cada umdeles não passa de uma manifestação de um dos aspectos do princípiodivino,únicoesemforma,chamadoNirguna,queé inacessívelaohomem.De acordo com essa perspectiva, as representações divinas assumem aomesmo tempo formas múltiplas e in initas, a ponto de o hinduísmo sercapaz de recuperar e assimilar uma enorme quantidade de divindades –tantas quanto os inumeráveisgrama devatas dos vilarejos – que eramestranhas ao panteão védico e bramânico. Assim, argumentaçõesrebuscadas que vão ao encontro das correntes religiosas rivais nem sefazemmaisnecessárias.Maisnadaécapazderesistiraohinduísmo...Foi assim que, um belo dia, apareceu entre as divindades do panteão

hinduísta... o Buda Sakyamuni! O fundador do budismo simplesmente setransformouemumdosavataresdograndedeusVishnu,o“conservador”.Essa integraçãodosábio se cristalizouporvoltado séculoVIII,deacordocomoexamedevários textos, comoporexemploosPuranas, que contêmdiversos relatosmíticosem tornoda iguradeBuda.Umdeles contaque,um dia, o renunciante Gautama, maltratado por ascetas especialmentemaldosos,cometeuafalhadematarumavaca.Aodescobrirquemotinhalevado a cometer esse sacrilégio, Gautama por sua vez lançou umamaldição sobre os ascetas. Daquele momento em diante, as práticasimpuras semultiplicariampelos arredores.Para restabelecer aharmoniado mundo, Vishnu então resolveu encarnar como sábio, sob o nome deBuda,parapregaroDarmaentreoshomens...Arespostadohinduísmoaobudismofoi,assim,tãohábilcomopací ica...

Agênesedessahistóriacombinaperfeitamentecomaseguintere lexãodeLanza del Vasto: “O pensamento indiano, que se propõe a andar entreconceitos contrários e dos quais as ideias brotam, bifurcam, assumemaspectosmaisrami icadosdoquecristalinos,acostumou-sesemproblemasaessesmodosentrecruzados3”.Dáparanotar,napassagem,queoescritosnãosefurtaramdeassociaraimagemdaárvoreàÍndia...

Masapesardeobudismonãoterconseguidosobrevivernaterraqueoviunascer,eleseexpandiuemoutraspartes,alémdasfronteirasdaÍndia.Estapropagaçãosedeve,emprimeirolugar,àdimensãomissionáriaqueoprópriomestreincutiunaDoutrinadesdeaorigem.Demaneirainversa,areligião hinduísta, de múltiplas formas, com a vantagem de ter acapacidade de absorver tudo – e, portanto, de almejar a uma forma deuniversalismo,comoressaltouSudhirKakar–,nunca foiexportada.E issoacontecepelarazãoclaraesimplesdequesuaexportaçãoéimpossível:apessoanascehindu,éimpossíveltransformar-seemhindu.Poroutrolado,todomundo,semrestriçãoalguma,podese tornarbudista.Comose fosseuma espécie de negativo da irmã gêmea hinduísta, a doutrina de Buda écapaz de se integrar a tudo, por meio de adaptação. Reduzido a suaessência,ouàsQuatroNobresVerdades,obudismonão impõenemdeus,nemritual,nemexclusividade;nãoexigefécegadapartedeseusadeptos.Ao nos referirmos às palavras atribuídas ao Buda Sakyamuni pelos

textoscanônicos,eleéapresentadocomoummestre,umguia,umsábio.Onúcleodesuadoutrinaimpressionaporseucaráter ilosó ico:écontumazdizerque aprimeiraVerdade, que explica anaturezauniversal do ser, éuma ontologia; as duas seguintes, uma fenomenologia; a quarta, umamoral. Mas, no fundo, a atitude de Buda não é nem de ilósofo nem deprofeta:eleseassemelhamaisaum“médico”quefazumdiagnósticoeemseguidapropõeumaterapia.AdoutrinadeBudaestálongedeapresentarresposta a tudo. Ao esboçar o quadro de uma ética, ela simplesmenteexpõe um via prática e acessível a todos para escapar do sofrimento daexistência.Distinguindo-sedasoutrasreligiõesporcontadisto,obudismocolocaaênfasenohomemdemodoprofundo,emdetrimentododivino.Épor issoque,depoisdaconfusãodoprimeiroencontro,adoutrinade

BudaconseguiuabrircaminhonospaísesocidentaisnodecursodoséculoXX,principalmentenosEstadosUnidosapartirdadécadade1950.Nesseponto, o budismo é maleável e tem múltiplas formas: no Ocidente, podetantoserreduzidoaumasimplesdoutrinadesabedoriaindividualquantoaumaexperiênciadetransformaçãoemocionalecognitiva.Desdeoinício,ele permite a seus adeptos reivindicar dupla religiosidade – budista ecristão, ou até budista e ateu. Como atestam os trabalhos de Carl GustavJung, a antiga doutrina indiana, tomada como “ciência do espírito”, étambém capaz de se conjugar harmoniosamente com as disciplinasmodernasocidentais,comoapsicanáliseouapsicologiaanalítica.

MilagresAlguns meses depois de ter atingido a iluminação, Buda retornou ao

reino próspero de Magada. Depois da conversão rápida do grupo dos“PândegosAlegres1”,oAfortunadotinhaacabadodechegaraUruvelaparaexpor sua doutrina quando os aldeões o informaram de que três gurustinham se instalado nos arredores. Os três mestres espirituais, que seapresentavam como “homens salvos vivos”, erammuito venerados. Cadaumdelestinhadiversascentenasdediscípulose,deacordocomosboatos,suapopularidadejáseestendiabemalémdaregião.Ostrêsrenuncianteseramirmãos,tinhamonomedeKasyapa,mastambémeramchamadosdeos“trêsascetasdetrança 2”,porque,comonuncatinhamcortadoocabelo,traziamosfiostrançadosemumenormecoquenoaltodacabeça.Omais velho dos irmãos Kasyapa, que era omais renomado de todos,

reunia a seu redor quinhentos ascetas. Ele tinha estabelecido seueremitérioemuma lorestalogoaoladodeUruvelae,parasealimentar,acomunidadepossuíaumamanadadeanimaisdecriação.Osegundoirmãotinhaseinstaladonosarredores,pertodeumrio,comtrezentosascetas.Eoterceiro,queeraomaisnovo,tinhapreferidofazerseuretiroaalgumashoras de caminhada dali, perto da cidade de Gaya. Duzentos ascetastinhamse juntadoaele.Aindadeacordocomoquediziamaspessoasdovilarejo, esses anacoretas “de trança” eram brâmanes. Seguindo asprescrições dosVedas edosUpanixades, elespraticavamaomesmo temposacri ícios e rituais, além das austeridades do ascetismo: jejum extremo,meditaçãoeestudodostextosemsânscrito.Depoisdeescutartodasas informaçõestrazidaspelosaldeões,Budase

encheudecompaixãopelosrenunciantes.“Coitados”,elepensou,“porestecaminho, jamais vão atingir a Salvação!” Apesar do que diziam, os trêsirmãosnãopodiamserarahants,jáquenãoseguiamocaminhoadequado.Tathagatanãohesitounemporum instante: ele absolutamenteprecisavafazer com que eles conhecessem a Lei. O meio mais e icaz seria darprioridade à conversão do mais velho e mais in luente dos três irmãos,exatamente aquele que residia em Uruvela... Ainda assim, Buda tinha asensaçãodequeomaisvelhodosKasyapa,pororgulho,nãoiriasedeixarconvencer com facilidade. Para fazer comque ele escutasse oDarma, elesabia que, daquela vez, precisaria de astúcia e de persuasão, quer dizer,teriaqueusarseuspoderesmágicos...Jánodiaseguinte,BudaseapresentouaovelhoKasyapacomose fosse

umnoviçodesejosodeseguirseuensinamento.Depoisdeummomentodere lexão, o guru aceitou em seu eremitério a presença do estranhorenunciantedecabeçaraspada.Comoasnoiteserambemfriasduranteoinverno, Buda lhe pediu permissão para dormir na construção queabrigava o fogo ritualístico. Venerado como símbolo do deus Agni, o fogoera usado todos os dias para sacri ícios. O senhor do lugar concedeu ofavorao“ascetaGautama3”,maslogoavisou:eleiria,porsuaprópriacontae risco, compartilhar o refúgio com uma espécie de dragão, um Nagaapavorantequeassombravaolugarquandoanoitecaía.Budalhegarantiuquenãotinhamedodenada.Então“oAfortunadoentrounacasadepedra,estendeusuatoalhaesentou-seemcimadelacomocorpobemeretoeaspernas cruzadas, comoespírito concentradodamaneira correta.Quandoviu Tathagata sentado em silêncio, Naga peçonhento soltou fumaça.Tathagataentãotambémsoltoufumaça.AoverTathagatasoltarfumaça,oNagaentãocuspiufogo.Tathagataentãotambémcuspiufogo4”.Ocombatefoiterrível.OIluminadopassouquaseanoitetodalutandocontraoanimalmonstruoso.Quandochegaramasprimeirashorasdamanhã,Kasyapafoiatéacasa

assombrada cheio de ansiedade... Ao chegar, o velho brâmane nãoacreditouemseusolhos:orenunciantetinhaconseguido“domar 5”oNagatão feroz!Omonstro tinha se transformado, comoquepormagia, emumpequenoréptilqueseaninhavaconfortavelmentedentrodesua tigeladepedir esmolas! Altamente impressionado, Kasyapa convidou o “ascetaGautama” a prolongar sua estadia entre eles. Mas tomou muito cuidadoparanãoexprimirsuaadmiração.Ovelhogurunãocessariaaindadeseespantarcomorecém-chegado...

Nasnoitesseguintes,eváriasvezes,a lorestaseiluminoumilagrosamenteao redorda cabanaondeonoviçodormia. Intrigado, o guru aproveitouomomentodarefeiçãofeitaemconjuntocomseusdiscípulosparainterrogá-lo discretamente. Buda explicou que tinha recebido diversas visitasdivinas: primeiro a dos quatro deuses importantes, encarregados decuidardouniversoapartirdeumpontocardeal;depoisadodeusSakka,também chamado de Indra, e, inalmente, a do grande deus Brahma empessoa, “o Rei dos Deuses6”. Cada um por sua vez, eles tinham vindo seprostrar diante dele para receber seu ensinamento... Como o corpo dosdeusesirradiavaumaluzsublimecintilante,suasidasevindasobviamentenão podiam passar despercebidas! Kasyapa constatou então, comamargura, que o asceta eramais poderoso do que ele,mas se recusou aadmitir em voz alta. Buda, que lia seus pensamentos, permaneceu em

silêncio.Para acabar completamente com o orgulho do eremita, Buda resolveu

fazer demonstrações cada vezmais grandiosas de seus poderes. Um dia,desviou o curso do belo rio Nairanjana para poder se banhar em suaságuassemterquesedeslocaratéele.Emoutraocasião,quandodesejavalavarumlençoparticularmentenojento–tiradodeumcadáver,deacordocomumalenda–,elefezcomqueosdeuseslhedessemumbeloriachodeáguas claras e uma pedra grande e chata, ideal para esfregá-lo e depoisestendê-lo para secar. En im, Buda efetuou diversas viagens a vários“continentes7” míticos em um lapso de tempo recorde... ou melhor, notempoque levavaparaovelhoKasyapa irdesuacabanaàdonoviço!Decada uma dessas viagens prodigiosas, Tathagata trouxe uma prova aoguru,emformadefloroudefruta.Como nenhuma dessas demonstrações tinha conseguido alterar o

orgulhodoeremita,apesardeseremumamais fantásticadoqueaoutra,Budacontinuouusandoseuspoderesmágicos.Elesedivertiuváriasvezespregandopeçasnogrupodeeremitas:utensíliosdocotidiano,comovasosdeablução,derepentesetornavaminvisíveis;ofogosagradoserecusavaa acender ou apagava e acendia espontaneamente. De vez em quando, amadeiranecessáriaparaqueelepermanecesseaceso icavaimpossívelderachar...Emoutrosmomentos,Budaabandonavaohumorpelacompaixão.Ele iaporexemploemauxíliodosrenunciantesque,aosairdeseubanhodepuri icaçãonorio, icavamenregeladospelofriodasprimeirashorasdamanhã. Quando a madeira estava verde demais para pegar fogo, Budaacendeuquinhentasfogueiras,umanafrentedecadaeremita,comaajudadeumasimplespalavra.Chegou en im o dia em que uma tempestade, totalmente inesperada

paraaquelaépocadoano,caiuderepente.OrioNairanjanatransbordou,achuva se in iltrou por todos os recantos, até acabar inundando todo oeremitério.OeremitaKasyapa,quesesentiaresponsávelpelasortedeseunoviço, parte embusca dele emumbarco sobre as águas desenfreadas...Achando que iria encontrá-lo afogado, ele descobre que o “ascetaGautama” caminhava tranquilamente sobre as águas. Além de seus pésnão estarem molhados, eles ainda formavam uma pequena nuvem depoeira, exatamente como se ele estivesse avançando sobre um terrenocompletamenteseco!Agora o velho brâmane não podia mais negar a superioridade desse

aluno “único em seu gênero8”. Ao retornar à terra irme, Buda disse aKasyapa:

Depoisdetudoqueviu,vocêaindaousapensarqueéumarahant,queémaissábiodoqueosoutros.Vocêéexatamentecomoumvidroreluzentequeseacreditamaisbrilhantedoqueosol!9

O grande guru engoliu seu orgulho e não teve escolha a não ser

reconhecerpublicamenteoqueeraevidente:Budaeramais fortedoqueele. Prostrando-se a seuspés,Kasyapaohomenageou, e seusquinhentosdiscípuloso imitaram.Depoisdecortara longacabeleira, eles jogaramoscabelos no rio, junto com seus instrumentos ritualísticos. Todos entãoreceberamoensinamentoavançadodaLei;emseguida,deacordocomseuprópriopedido,foramordenadosmongespeloAfortunado.Algum tempo depois, os outros irmãos Kasyapa, que residiam nas

margens do rio Nairanjana, no sentido da correnteza, viram passar asmechas de cabelo e os objetos abandonados de seus codiscípulos emUruvela, carregados pelas águas. Temendo que os colegas tivessem sidovitimadosporumdrama imprevisível, elessedirigiramparaoeremitériodo irmão mais velho o mais rápido possível, seguidos por todos os seusdiscípulos.Quandochegaram lá, semfôlego, icaramaliviadosesurpresosde ver todo mundo em boa saúde: o velho Kasyapa e os seus estavamsentadosaoredordeBuda,escutandocomcuidadoeamaioratenção,comas mãos unidas em sinal de respeito. Será necessário dizer que,naturalmente,osrecém-chegadostambémseconverteramàLei?No meio do inverno, toda a trupe seguiu os passos do Afortunado

quando ele decidiu ir para Rajagrha. A capital de Magada só icava aalguns dias de caminhada. No caminho, osbhikkhus e seu mestremarcaram uma etapa no lugar apelidado de “Cabeça de Elefante”, umacolina situada perto da cidade de Gaya. Buda aproveitou a parada parafazer vários sermões a seus novos recrutas. O primeiro tratava dospoderesmágicos:

Oensinamentorelativoàbasedopodernaturalimplica:amultiplicaçãodeseuprópriocorpoemumnúmeroincalculáveldeoutroscorpos;oretornodessesinumeráveiscorposaumcorpoúnico;atravessarumaparede,paraoexteriorouparaointerior[...];a faculdade de sentar-se no espaço, de pernas cruzadas, ou de circular nele indo e vindocomoumpássaroquevoa;apossibilidadedeentrarnaterracomamesmafacilidadecomqueseentranaágua[...];caminharsobreaáguacomosefosseterrafirme,semdesaparecerembaixodela;aemissãodefumaçaedefogo,comoumagrandemassadechamas,paraforadeseuprópriocorpo;apossibilidadedetocarcomamãoosoloualua[...];a faculdade de subir com o corpo até o céu de Brahma; de ir até lá e voltar sem nenhum

obstáculo.10

Depoisdecontinuarcomumaexposiçãomaissucintasobreameditação,oAfortunadoterminoucomumensinamentorelativoaoprenúnciodaLei,noqual ele desprezouumdosmaiores símbolosda religiãoderivadadosVedas:o fogo.“Bhikkhus, tudoqueima11”,eleenuncioucomumcertoardeprovocação no começo do famoso Sermão do Fogo. Sakyamuni explicouentãoa seusnovosdiscípulosque todosos sentidos, e tudoaquiloqueosestimula, estão envolvidos pelo fogo do desejo, do ódio e da ignorância:enquanto os homens continuarem a ser presa das chamas, estarãoprivados da Salvação. Osmonges, que no dia anterior ainda adoravam ofogo sagrado, icaram tão tomados pelo último ensinamento deBuda quesetransformaram,todos,instantaneamente,emarahants.Tathagataeseuscompanheirosentãoseinstalaramemumbosquebem

ao lado de Rajagrha, a capital poderosa das cinco colinas. A chegadarepentina da multidão de renunciantes durante a noite de lua cheia depausa, entredezembro e janeiro, nãopassoudespercebida.Namanhãdodiaseguinte,oacampamentoimprovisadoqueacolhiamaisdemilascetasdecabeçaraspadaaosportõesdacidadedespertoutodaacuriosidadedosmoradores... Quem eram aqueles shramanas?Que doutrina eles seguiam?O boca a boca circulou com rapidez. Logo começou a ser espalhada anotícia de que Gautama, o jovem asceta que tinha visitado Rajagrha seteanos antes, fazia parte do grupo!Osmoradores da cidade se lembravammuito bem que o renunciante tinha prometido ao rei Bimbisara quevoltaria para visitá-lo quando tivesse encontrado o caminho da salvação.Mas não era só isso: diziam também que o famoso brâmane Kasyapa deUruvelafaziapartedogrupo.Estranho...entreosdois,quemeraomestreequemeraodiscípulo?Intrigado por sua vez com o boato, Bimbisara resolveu ir sem demora

atéacomunidadedeascetaspara,comoditaocostume,dar-lhesasboas-vindas. Segundo o cânone sânscrito, o soberano se fez acompanhar detodos osmoradores da cidade. Na versão páli, ele só é seguido por umadelegação de chefes de família, todos brâmanes, um grupo de tamanhobastanteconsiderável, jáqueeram120mil!Quandochegaram,omistérioque pairava sobre o chefe espiritual da comunidade de repente foidesvendado:todomundoviuqueovelhoKasyapaseprostravaaospésdeSakyamuni. Ele repetiu o gesto de submissão a seu novo mestre duasvezes.Asdúvidasentãosedissiparam.Depoisdecumprimentoscalorososde reencontro, Buda apresentou a Bimbisara, como havia prometido, o

caminhodasalvaçãoqueeletinhaatingido.Osoberanoesuacomitivaoescutaramcomamaioratenção.Finalmente,

prostrando-se a seus pés, Bimbisara e todos aqueles que o seguiampediramqueeleosaceitassecomodiscípulosleigos.DepoisoreiconvidouBudaeseusmongesparairematéopaláciofazerapróximarefeiçãoantesdeseretirarem.No meio de uma procissão impressionante, Buda, “cheio de uma

majestade sobrenatural 12”, e todos osbhikkhus entraram no cercado dacidade naquela noite mesmo. Na frente do cortejo, um discípulo entoavasem parar os louvores ao Afortunado. A Sangha foi recebida com grandepompa no palácio. A ceia real, variada e copiosa, estava uma delícia.Privilégio excepcional, omestre foi servido pelo soberano em pessoa, emsinalderespeito.No inal da refeição, enquanto Buda limpava sua tigela, o rei se

aproximouesesentouaseulado.EnquantocolocavaáguaemumataçadeouroparaqueTathagatalavasseasmãos,Bimbisaralheexpôsseudesejode oferecer “à Comunidade de monges da qual Buda é o mestre 13” umpresente de grande apreço: o Bosque dos bambus de Velurana. Calmo epropício à meditação, ao mesmo tempo em que ica perto da cidade, oparqueagradável seria idealparaservirderesidênciadeascetismoparaBuda e seus numerosos discípulos. Depois de louvar sua bondade, oIluminado aceitou a doação e lhe concedeuumnovo ensinamento da Lei.Bimbisaraentãofoitomadopor“pensamentosdealegria14”.OretornodeBudaaoreinodeMagada foiumtriunfo.Éverdadequeo

mestreprecisouseesforçarparatanto.Deacordocomo Mahavastu,nadamenos do que quinhentos milagres tinham sido necessários paraconvencer o velho Kasyapa da superioridade de seu caminho. O cânonepáli fala atéde3,5milprodígios!Maso frutode seusesforços realmentetinhavalidoapena:emUruvela,acomunidadebudistaderepentecresceuem mais mil novos monges. No que diz respeito à hierarquia social, omovimento tambémcarregava consigo enormepeso... Sakyamuni, nascidokshatriya, encontrava-se agora à frente de um grupo de tamanhoconsiderávelderenunciantesnascidosnacastadosbrâmanes.Finalmente,a conversão de Bimbisara é um outro acontecimento importante para ofuturo.AlémdeincitarossúditosdoreinopoderosodeMagadaaseguiroexemplodeseusoberano,elatrouxeaos bhikkhusaalegriadeumterreno“cômodo para as idas e vindas15”, que seria muito útil para odesenvolvimentodaSangha.

AutópsialiteráriaAleituradosdiversosrelatoslendáriosquedescrevemaconversãodos

irmãos Kasyapa e de seus mil discípulos inspira espontaneamente fortedescon iançaemrelaçãoàautenticidadedoacontecimento:nacomparaçãocom outros episódios ocorridos antes ou depois deste, o ciclo deconversões de Uruvela pende para o milagroso em proporçõesparticularmenteexcessivas.DesdeoséculoXIX,todososbiógrafosdeBudaseconfrontamcomocarátermaravilhosoquepermeiademaneirainfalívelosrelatostradicionaisdavidadomestrehistórico.Forçosamente,elessãoobrigados a trabalhar com esses elementos tão contrários a sua função.Apesar de alguns textos parecerem ter sido inspirados por umacontecimento autêntico, comoodo SermãodeBenares, por outro lado édi ícildarcréditoaosrelatosqueestãoprofundamenteinfundidosdefatosextraordinários.Obiógrafo,nocontrapédahagiogra ia, teriaatémesmoatendência,emtaiscircunstâncias,dequestionarorelatocomoumtodo:daconversão emmassa emUruvela até a do soberano Bimbisara – um dosmais poderosos de sua época –, as pessoas se envolviam com tantafacilidade que o sucesso do início da pregação de Buda se torna, demaneira geral,motivodeprecaução... A arqueologiapoderia serummeiodetentarterumpoucomaisdeclarezaemrelaçãoaesteassunto,maselapermanece desesperadamente muda. O único recurso que sobra éinterrogarrepetidasvezesasdiversas lendas.Seráquea ilologiaécapazdeoferecer respostas em relação aos feitos e gestos autênticosdeBuda?Será que realmente é possível distinguir a verdade e a falsidade? Alémdisso, que papel deve ser atribuído aosmilagres e a outros prodígios dapropagaçãodadoutrinadeBuda?Emprimeirolugar,éprecisolembrarqueBudanãodeixounadaescrito

de próprio punho. Seu ensinamento foi exclusivamente oral. Aliás, nemsabemos se ele era alfabetizado: apesar do que dizem as lendas, nadaprovaqueelesabialereescrever.Alémdomais,aescritaerapouquíssimodifundida–pode-sedizerqueerapraticamente inexistente–na Índiadoséculo VI a.C. O aprendizado da escrita certamente não seria, também,considerado indispensável para um kshatriya de uma pequena repúblicaaristocrática do Terai: os letrados, na Índia antiga, constituíam minoriaín ima, formada essencialmente de brâmanes dedicados ao estudo e àpreservaçãodosaber.Omestrenãoescreveunadaeseusdiscípulosmaispróximos também não tomaram anotações. Na realidade, nenhum dos

textos que constituem o imenso corpus da literatura canônica data daépocadeBuda.Ostextosquechegaramaténóssãoapenaslevantamentosmaisoumenostardios,redigidospelosmongesempáli,emprácritoouemsânscrito. Alémdomais, certos relatos, especialmente os pertencentes aocânone sânscrito, são acessíveis apenas por meio de traduções,principalmente chinesas e tibetanas. Nessas condições, nem é necessáriodizer que émuito di ícil estabelecer com precisão a gênese da literaturabudista. Entre os textos considerados como osmais antigos, os redigidosem páli – conservados pelos monges do Sri Lanka – aparecem em boaposição,massuaredaçãosósedeuváriosséculosdepoisdaexistênciadomestre.Atransmissãopuramenteoral,portanto,prolongou-seduranteumperíodomuitoextenso.OpróprioBuda,preocupadocomoaprendizadodeseus ensinamentos, teria incentivado os discípulos próximos amemorizaremsuasinstruçõesorais.Aquisurgeumaquestão:emquelíngua(s)Budaseexprimia?Esteponto

é tão complexo que, hoje, nenhum estudioso é capaz de a irmar comcerteza qual ou quais idiomas da Índia da região do Ganges o sábioutilizavaparaseexprimir.Apriori,ahipótesemaisevidentea irmaqueopáli das escriturastheravadin, que é uma língua literária composta, seriaderivadodo dialetomais utilizadopor Sakyamuni.Mas não há nada paraembasarestainterpretação.LevandoemcontaqueomestrepassoumuitotemponoreinodeMagada,podemosdeduzirqueelesemdúvidafalavaalíngua local, omagadhi: mas esse idioma, que tem parentesco longínquocom o sânscrito, não apresenta nenhuma das características fonéticas oumorfológicas do páli. Devido a sua educação de casta elevada, também épossívelimaginarqueBudapossuíssealgunsrudimentosdesânscrito.Poroutro lado, como foi criado nos con ins do mundo arianizado, talvez eletambém estivesse familiarizado com uma língua local da região do Terai.Por im,comoossakyastinhamrelaçãobempróximacomKosala,ograndereinorivaldeMagada,éplausívelpensarqueBudadominasseumpoucodekosali.Talvez,portanto,elefossecapazdepassardeumdialetoaoutroemfunçãodeseusinterlocutores.Se,aocontrário,omestresófossecapazde se exprimir em um idioma, ele também não teria nenhum grandeproblemaem se comunicar, porque amaioriadessas línguaspertence aogrupo chamado de “médio indiano”, utilizadas pela maior parte doshabitantes do vale do Ganges,muito similares umas às outras para criaralgumaincompreensão.Seja lá como for, é certo que a escolha do páli como língua de redação

dosprimeirosescritoscanônicosbudistasnãofoifrutodeacaso:aquestão

erasedistinguircomclarezadaliteraturavédicaebramânica,quesemprefoicompostaem“línguaperfeita”,ouseja,emsânscrito.Portanto,podemosdeduzir dessa escolha que Buda sem dúvida preferia falar a língua dopovo, e não o idioma da elite culta dos brâmanes. Se ele conhecia osânscrito – tendo em vista sua educação de “nascido duas vezes” –, teriapreferidonãoutilizá-loparaseafastardobramanismoetambémparaquesuadoutrinapudesseseracessívelaomaiornúmerodepessoaspossível–e essas duas questões têm importância similar. Se acreditarmos natradição,omestreteriaatéincentivadoseusadeptosaestudaredifundiraLeiemsuapróprialíngua.Essaescolhalinguísticafoidecisiva.Emtodososlugares em que o budismo se difundiu, os novos discípulos rapidamentetomaramaprovidênciadetraduzirasescriturascanônicasemsualíngua.Foi assim que vieram à tona, com o passar dos séculos, as versões docânonebudista em chinês,mongol e tibetano; a estas convémhoje juntarastraduçõeseminglês,alemãooufrancês,efetuadaspelosocidentaisqueoptaramporseconverteremdiscípulosdeBuda.Háalgumasdécadas,defato,adescobertadaimensaliteraturabudistajánãoestámaisreservada,noOcidente,apenasaosestudiosos.Tentar detectar os elementos verídicos sobre a existência de Buda no

âmbito do enorme corpus da literatura canônica apresenta numerosasdi iculdades. Essa constatação vale tantopara seus feitos e gestosquantopara os inumeráveis sermões que a tradição atribui a ele. Ao problemarelativo a determinar qual língua era falada por Buda, junta-se o dasinevitáveisalterações,modi icaçõeseadendosasuaspalavras–etambémàs de seus primeiros adeptos. É impossível negligenciá-los, levando emconta a duração da transmissão oral e a expansão geográ ica da Sangha,quedeuorigemadiversastradições.Qual é a constituição do cânone budista? As escrituras budistas nos

ensinamqueeleteriacomeçadoaser ixadodemaneiraoral,seguindoumconcílio organizado depois da morte de Sakyamuni, no século V a.C. Osmonges teriamentãorecitado todosos sermõesdeBudae tambémtodasasregrasmonásticasqueeletinhaenunciado.Umséculodepois,umoutroconcílio se deu. O terceiro concílio, que aconteceu no século III a.C., é umpouco mais conhecido: os especialistas concordam pelo menos emreconhecer sua existência histórica – o que não é o caso dos doisprimeiros.ConvocadoporAshokano18o anode seu reinado, ele ocorreuna capital do império Maurya. Reunida em Pataliputra, aSangha teriaentão ixadooralmenteocânonedemaneirade initiva.Depoisdetersido

transmitidodememóriaemmemóriadurantegerações,ele foi inalmenteredigidoempálinoséculo Ia.C.,deacordocomumaclassi icaçãoemtrêspartes bemdistintas. Essa organizaçãodo cânone – que foi encerradanaocasião do terceiro concílio – perpetua-se até nossos dias sob o nome deTipitaka, os “Três Cestos de Flores”. Uma vez anotados em folhas depalmeira, os ensinamentos do mestre foram de fato dispostos em trêscestosgrandes:umparaosdiscursosdeBuda, SuttaPitaka;outroparaadisciplina estabelecida pelo mestre,Vinaya Pitaka; e o último, oAbhidammma, tem um nome di ícil de traduzir que alude a “discussão” –este cesto reunia principalmente comentários feitos pelos primeirosdiscípulosdosábio,seguidosdedesenvolvimentosnaformadeperguntaeresposta.O sSutta, os discursos atribuídos a Buda, foram então transmitidos

oralmente durante quase quatro séculos depois de sua morte. Para queessa transmissão tivesse sido possível, osbhikkhus precisaram recorrer atécnicas de memorização desenvolvidas antes deles pelos brâmanes,encarregados de garantir a perenidade dos primeiros hinos védicos. Nosmosteiros, os monges se especializavam, em pequenos grupos, em umapartedo cânonequeaprendiamdiretamentedabocadeummongemaisvelhoequerecitavamcomfrequênciaemuníssono.Amemorizaçãoincluíavários métodos muito elaborados, com destaque para a técnica cruzada,que consiste em aprender um discurso na ordem e depois de trás parafrente. En im, o estilo dos discursos também tinha que favorecer oaprendizado, e para isso eram utilizadas particularmente formasrepetitivas. Para provar a autenticidade da transmissão da palavra dosábio, osSuttascomfrequênciacomeçamcomaseguintefórmula:“Assim,por mim foi entendido...”. No entanto, vários séculos de transmissãopuramenteoral fazemcomque sejaquase inevitávelumacerta alteraçãodo texto, o advento de modi icações, adendos e esquecimentos, além dealgumasomissõesvoluntárias. Issosetornaaindamaisplausívelpelo fatodeque,depoisdamortedeBuda,aSanghanuncamaispôdeseunificaremtornodeumúnicomestre.Apartirdomomentoemque icouentregueasiprópria,acomunidademonásticafoisedividindocadavezmais,apontodedarorigemacercadevinteseitasdiferentesnodecursodoscincoséculosque se seguiram ao falecimento de seu fundador. É necessário notartambém que as diversas seitas quase sempre se agrupam ao redor deduasescolasfacilmenteidenti icáveis.Assim,noséculoIVa.C.,osprimeirosdiscípulos de Buda, que chamamos de “Auditores” – ou Sravaka –, sedividiramemduasgrandescorrentes:adosantigos–SthaviraouThera–e

adosadeptosdaGrandeAssembleia–Mahasamghita.Foramestesúltimosqueprepararamosurgimento,noiníciodaeracristã,doMahayana.Comopassardosséculos,osbihkhusnuncamaisvoltaramaseuniremtornodeumaordemúnicaquetivesseopoderdeimporumaortodoxiae,portanto,deidentificaraspalavras,osfeitoseosgestosdoBudaSakyamuni.Pode-seaté suporque essas divisões certamenteparticiparamdas alterações dostextos originais, sendo que cada uma das seitas desejava reivindicarlegitimidadesuperioremrelaçãoasuaposiçãodoutrináriaeasuasregrasmonásticas.Tudo isso explica por que existem variações marcantes – até mesmo

contradições – entre os cânones das duas grandes escolas do budismo,Theravada e Mahayana; e também por que cada um deles apresenta àsvezesdiversas versõesdomesmo texto. Se tivermos a intençãode tentarnos aproximar da verdade histórica, então é essencial poder consultar omáximo de textos possível no âmbito deste imenso corpus. Para osprimeiros ilólogos ocidentais do século XIX, oLalitavistara, relato tardioquepertenceàtradiçãoMahayana, foidurantemuitotempoaúnica fonteque fornecia informações sobre a vida de Buda. Hoje, vários textoscanônicosqueconservaramavidadomestreestãodisponíveis:apesardenem todos os manuscritos budistas terem sido publicados, as escriturasbudistas levantadas hoje preenchem com facilidade várias prateleiras debiblioteca.Partindodoprincípiodequeo atode traçar relações entre as fontes é

capazdeeliminarosadendostardiosparaencontrarumfundodeverdadehistórica, é necessário comparar com atenção as diversas versões,efetuando recortes entre os textos que aparecem como os mais antigos,sem descartar completamente os “clássicos” – entre os quais está oLalitavistara. Numerosos grandes especialistas em budismo izeram suacontribuição a essa tarefa, tão minuciosa como gigantesca. Um dosprecursores desse tipo de estudo foi Hermann Oldenberg, no inal doséculo XIX. Em 1949, o francês Alfred Foucher fez uma relação entre asfontesliterárias,epigráficaseiconográficaspararelatarLaVieduBouddha,uma obra que permanece importante . Mais próxima de nós, a igura deAndréBareau se impõe: ele ocupou a cadeira de estudos de budismonoCollège de France e é considerado autoridade no assunto por seustrabalhos com fontes indianas antigas e suas traduções chinesas. En im,entre os especialistas que trabalhamhoje compesquisas sobre a vidadeSakyamuni, é necessário citar Hans Wolfgang Schumann e Richard

Gombrich.O estudo dos textos canônicos que relatam a biogra ia de Buda em

primeiro lugar permitiu chegar à seguinte conclusão essencial: aocompararcomatençãoasfontes,pareceque,originalmente,nãoexistiaumrelato completo da vida do mestre; ele surgiu da junção tardia de trêsrelatos totalmente independentes. Segundo André Bareau, esses trêsnúcleos foram se inchando pouco a pouco e inalmente foram unidos, noinício da era cristã, para formar um relato único. Depois disso, outrasvariaçõesecomplementoscontinuaramaenriquecê-lo,séculoapósséculo.O primeiro núcleo do relato diz respeito à infância e à juventude do

futuroBudaaté suapartidadeKapilavastu.Em linhasgerais, asdiversaslendas narramesse períodode sua vida demaneira bastante similar.Noentanto,apenasdoisacontecimentossãorelatadosemdetalhesnosSuttasmais antigos: a primeira meditação por ocasião do ritual do trabalho nocampoeaGrandePartida.Osprimeirostextosdiscorrempouco,sãoquasesilenciosos, na verdade, em relação aos outros fatos marcantes dajuventude do bodisatva. Assim, estes se tornam sujeitos a cautela: paraAndréBareau,alémdoexagerohagiográ icorelativoao luxoquerodeavao jovemkshatriya,nãohádúvidadequeorelatoda juventudedeBudaé,acima de tudo, lendário. Como tinham sobrado poucas lembranças dessaépoca, os discípulos do mestre teriam elaborado uma outra fábula paraapresentar o essencial da juventude do bodisatva... Nesse processo, foi avida mítica do Buda Vipassa – um dos predecessores lendários deSakyamuni–queserviudemodelo.Issovale,especialmente,paraofamosoepisódio dos encontros decisivos ocorridos com Sidarta quando ele saiudoslimitesdopalácio.A segunda parte do relato cobre os anos que ele passou como asceta

errante,aIluminação,oprimeirosermãoeapregaçãodosábio.OperíodoquecobreoslongosanosdemissãodeBudapodeserconsideradomaisdoque qualquer outro como passível de credibilidade do ponto de vistahistórico: se considerarmos, de fato, que as biogra ias tradicionais foramcompostas por seus discípulos, parece lógico que esta parte da vida domestredevetersidorelatadacommaisprecisãodoquesuainfânciaesuajuventude ou sua iluminação, durante as quais esses redatores estavamausentes. Apesar do teor fantástico que os envolve constantemente, ostextosrelativosaoperíodomissionáriooferecem,emdiversasocasiões,umfundo inegável de autenticidade. Assim, apesar de os acontecimentosrelatados serem quase sempre edi icantes, certas passagens ou certosdetalhessurpreendemporserem“gratuitos”.

Ainda assim, o relato sobre os anos de pregação apresenta problemasem relação a pontos determinantes. Considera-se que este período seestendadoSermãodeBenaresatéavéspera,ouquase,damortedeBuda.Comoatradiçãoa irmaqueeletinha35anosnomomentodaIluminaçãoeque ele morreu com a idade de oitenta anos, a época de pregação teriaentãoduradomaisdequarentaanos.Comoamaiorpartedos textosquemencionamesteperíodopermanecempraticamentemudosemrelaçãoàsúltimasduasdécadasdavidapúblicadomestre, elas se transformamemumaverdadeira zonade sombras.Poroutro lado,osdiversosepisódiosepassagens que compreendem os vinte primeiros anos de missão seintercalam sem ordem nos textos, a ponto de ser quase impossívelestabelecer uma cronologia dos acontecimentos. En im, certas biogra iaslendáriasdeBuda,comooLalitavistara,preferemterminarcomoSermãodeBenares,assimpassandomaisdametadedesuaexistênciaemabsolutosilêncio... Será quedevemos concluir apressadamente que todoo períododachamadavida“pública”deBudanãopassadefabulação?Quetodasascenas de conversões,mais oumenosmaravilhosas, entre as quais o ciclodeUruvela faz as vezesdeapoteose,nãopassamde invenção?Claroquenão, mas os hagiógrafos inegavelmente deram asas à imaginação paracobrirseumestredeglórias–tantonosentidopróprioquantonosentidoigurado.Assim,aprimeira suspeitaquepesa sobreesta longa sequênciadá conta da duração da vida de Buda. Tirando as lacunas existentes naliteraturacanônica,outroselementospermitempensarqueosnarradoresaestenderambastante.Estáestabelecido,defato,queaexpectativamédiade vida na Índia na época mal ultrapassava os trinta anos e que, aoscinquentaanos,umhomemeraconsideradoidoso.Destemodo,suporqueSakyamuni teria vivido até a idade de oitenta anos parece um meio dereforçar simbolicamente a dimensão excepcional do personagem. ÉnecessáriolevaremcontaqueonúmerooitentaeramuitousadonaÍndiaantiga de maneira metafórica – signi icava “muito” – e por isso podiasigni icar apenas que Buda atingiu uma idade muito avançada para suaépoca. Os oitenta anos anunciados pelos textos não seriam uma mentiravoluntária, mas sim uma espécie de recurso utilizado pelos primeirosnarradores,queterminariasendolevadoaopédaletra.Apesar de as conversões mencionadas pelas lendas, fulgurantes e

numerosas, certamente também serem fruto de exagero, o sucesso dapregaçãodo sábionãopode ser negado. Primeiroporqueo fenômenodeconversão,comojáressaltamos,nãopodeservistodamaneiracomotemoso costume de fazer no Ocidente: lembremos que “budismo”, assim como

“hinduísmo”, são termos inventados no século XIX pelos europeus paraidenti icardoisconjuntosamplosderituaisecrenças.NaépocadeBudaenosséculosseguintes,ochamadobudismo“primitivo”nãoseapresentavacomo instituição bem distinta do bramanismo. Os dois grupos religiososreuniamsobsuasasasumaamplavariedadedeseitasedesubseitasquecompartilhavam diversos conceitos de base, tais como osamsara ou ocarma.Destemodo,aconversãodeBimbisara,reivindicadapelaliteraturabudista, tem bastante possibilidade de ter sido autêntica, mas isso nãoquer dizer também que o poderoso soberano de Magada tenha entãorenunciado aos costumes e às crenças bramânicas. De fato, nunca érelatado nos textos queBuda tenha exigido idelidade exclusiva da partede seus discípulos leigos. Alguns séculos depois, um dos mais famososentreeles,oimperadorAshoka,viriaaseapresentarpessoalmentecomooarautodoespíritodeaberturadobudismoemrelaçãoàsoutrascorrentesreligiosas.ComoestáescritonoSétimoÉdito:

O rei amigo dos deuses com olhar simpático deseja que todas as seitas possam residir emtodososlugares.Porquetodasalmejamaocontroledossentidoseàpurezadaalma.Masaspessoastêmdesejosvariados,paixõesvariadas.Oupraticamtudo,ousomenteumdetalhe.1

En im,aterceiraeúltimagrandeseçãodabiogra iatradicionaldoBuda

Sakyamunidizrespeitoasuaúltimaviagematéolocalemqueencontrariaa morte. Certos detalhes, como por exemplo sua doença, oferecem umtoquedeautenticidadeevidente,masoutros,comoasolenidadedofuneral,foramforçosamenteinventadosposteriormente–nósretornaremosaestaquestãonomomentoadequado.Para melhor glori icar seu mestre, os hagiógrafos não hesitaram em

lançarmãodaimaginaçãoparasublimararealidade.Noentanto,umcertonúmeroentreosgrandesacontecimentosquepermeiamseusrelatosestálongedeser inédito:porexemplo,arenúnciarepentinaàvida luxuosadopríncipe até então resguardado de qualquer contato com a realidade, ouainda a aquisição da revelação espiritual sentado sob uma árvore. Essasimagens fazem parte dostopois da tradição indiana,que sãoencontradoscomo passagens de outras correntes religiosas. Estes episódios dabiogra ia tradicional de Buda – que, aliás, não são obrigatoriamente osmais milagrosos, mas estão sempre incluídos entre osmais edi icantes –não passam de empréstimos operados pelos narradores. Por exemplo, acenadoarcoemqueojovemSidartaéoúnicocapazdepuxaracordanaocasião do torneio que precede seu casamento lembra, de maneira

irresistível, a história de Rama... e também a de Ulisses – ponto que atéhojealimentaespeculaçõessobreasrelaçõesentreaÍndiaeoOcidente.No que diz respeito aos milagres em si, o lugar dedicado a eles pelos

narradores da vida de Buda não diminui nem um pouco no decorrer deseus relatos. De seu nascimento a sua morte, as cenas prodigiosas sesucedemsem falha.Tirandoo fatodeque éumclímaxdo gênero, o ciclodasconversõesdeUruvelacausaperplexidadedevidoaométodoescolhidopor Sakyamuni para converter o velho Kasyapa. De fato, recorrer amilagrescomopreâmbulodo“ensinamentograduadodaDoutrina2”pareceestar em contradição com osmétodos habitualmente pregados por Budapara a propagação da Lei. Segundo os princípios atribuídos ao sábio empessoa nos textosmais antigos, omestre teria proibido seusbhikkhus defazerem uso de milagres na conversão. Melhor ainda, a pretensão depossuirpoderessobrenaturais iguravaentreasfaltasgravesquepodiamlevaràexclusãodaSangha.Budanãonegava,dejeitonenhum,aexistênciadetaispoderes,masconsideravaseuusocontraproducenteporquepodiafazercomqueosmongessedesviassemdoverdadeiroobjetivodoesforçoespiritual. Claro que, assim como os supostos oitenta anos que o mestreteriavivido,nãoéimpossívelqueosacontecimentosmilagrososdeUruvelatenhamsidoincluídosnostextospeloshagiógrafosapartirdeumfatoreal.Assim,HansWolfgangSchumannconjecturaque,noepisódiodavisitadeBudaaoeremitériodeKasyapa,ailuminaçãoda lorestaqueacompanhaavisita dos deuses pode ter origem no simples fato de que Buda tinhaacendidograndesfogueirasparaespantarosanimaisselvagens...Sejacomofor,destrincharameadadascenassobrenaturaissópermite

chegarahipótesesmaisoumenosconvincentes.Aúnicacertezaéqueosmilagres em que Buda se mostra pródigo no decorrer de sua existênciasão adendos mais ou menos tardios aos relatos primitivos. Para issoexistem diversas razões. Mesmo que, como o ciclo de Uruvela, suaapresentação às vezes contrarie os preceitos do mestre histórico, osmilagresrapidamentepareceramnecessáriosaosdiscípulosdeSakyamuniparaedi icarafédeseuscontemporâneos,queachavamdi ícilumgrandesábio ser privado de poderes sobrenaturais. Por outro lado, na Índia dopassado – assim como na de hoje –, o uso do fantástico era umprocedimento narrativo indispensável para alegrar a audiência: convém,literalmente, que o narrador seja capaz de “encantar” seu público. Dessepontodevista,o lugarreservadoaosprodígiosnasbiogra iastradicionaisdeBudaé,nofundo,totalmentenormal–paranãodizeresperado.

No entanto, o encantamento não é tudo aos olhos do público indiano...“Ter uma parte plausível e uma partemaravilhosa está fora de questão:paraumindiano,tudoéaomesmotempomaravilhosoeplausível.Dequeserve buscar e isolar namassa um núcleo de fatos autênticos, garantidopor recortes em outras seções da literatura? Supondo que esses fatosbrutosexistamesejamacessíveis,elessósuscitaminteresseportudoquelheséatribuídoemlições,emsabedoria,embeleza3.”Aquilo que Georges Dumézil observou em relação aoMahabharata

também vale para os relatos lendários sobre a vida de Buda, em querealidadee icçãoseentremeiammuitopróximasparamelhorapresentaro ensinamento espiritual do sábio. Este é, no fundo, o único objetivo quenunca deixou de estimular, desde a origem, a imaginação tão fértil doshagiógrafosdomestrehistórico.

RecrutamentoGraças à benevolência do soberano Bimbisara, o Afortunado e seus

companheiros então se instalaram em suas novas terras, no Bosque dosbambus de Velurana, nas proximidades da capital de Magada. É lá queSariputta e Moggallana, que logo seriam incluídos entre os grandesdiscípulosdomestre,entramparaaSangha.Os dois eram ilhos de brâmanes. Amigos de infância, já fazia algum

tempo que eles tinham escolhido o caminho da renúncia. Um belo dia,abandonaram a família e todos os bens para seguir juntos, perto deRajagrha, os ensinamentos do grande mestre dos céticos, SanjayaBellatthiputta. Apesar de suas aptidões evidentes para se dedicar aocaminho espiritual, os dois noviços logo avaliaram que a doutrina de seugurunãoeranemumpouco fácildeseguir.Considerandoquenãoexistenenhumacertezaarespeitodenada,Sanjayaserecusavaaresponderasperguntas deles e pregava exclusivamente a concentração na realizaçãointerior. Sariputta e Moggallana, sentindo-se praticamente entregues àprópriasorte,então izeramapromessadequeoprimeiroentreosdoisaatingiraVerdadeavisariaooutroeiriaguiá-lo.Certa manhã, quando estava na cidade, Sariputta avistou um dos

adeptosdeBuda: eraoarahantAssaji, umdosCinco,que tinha idoaté lámendigarseualimentododiajuntoaoshabitantesdolugar.Sariputta icoumuito impressionado com a serenidade que emanava do asceta. Ele oobservou com atenção,mas não conseguiu reconhecer os sinais distintosda seita dele. As ordens deshramanas tinham se multiplicado tantonaquelesúltimostemposnaregiãoqueeradi ícilconhecertodas.QuandoAssaji terminouseupercursodepediresmola,o jovemadeptodoscéticosoabordoupara interrogá-lo: comoele se chamava,quemera seumestre,qualerasuadoutrina?Interrogarumrenunciantedestamaneiranãotinhanadadeexcepcionalnemdeimportuno;muitoaocontrário.Assaji,tomadode humildade, explicou a ele, resumidamente, o caminho percorrido porBuda. No entanto, aquelas poucas frases bastaram para convencerSariputta. Ele imediatamente abandonou as muralhas da cidade paracompartilharsuadescobertacomMoggallana.SeuamigologosedeixouconvencerpeladoutrinadeBuda...E,juntocom

ele,outrostambémse interessaramporela.Seguidospor250adeptosdeSanjaya Bellatthiputta, eles tomaram o rumo do Bosque dos bambus. Aover chegar sobreo caminhodeVeluranaosdois rapazes à frentede seu

pequeno grupo, Sakyamuni logo pressentiu que Sariputta e Moggallanatinhamtudoparaconseguir fazergrandesconquistasparaacomunidade.DepoisdeteremsidoordenadoscomobhikkhuspeloIluminadoempessoa,Sariputta eMoggallana rapidamente se tornaramarahants. Omestre doscéticos, por sua vez, não parava de maldizer os dois jovens noviços quetinhamabandonadoseueremitérioelevadoconsigooutrosdiscípulos.Umasemanaantesdoequinóciodeprimavera,Budarecebeuumavisita

inesperada:Udayin,apedidodeSudodana,fezaviagemdesdeseuvilarejonatalparairaseuencontro.Informadoporrumoresdequeseu ilhotinhase transformado emum grandemestre espiritual e agora residia emumeremitérionosarredoresdacapitaldeMagada,oreio tinhaencarregadodeconvencerSidartaavoltaraKapilavastuparatercomele.OTathagatalogo reconheceu aquele que muitos apelidam de Kaludayin, o “sombrioUdayin”,devidoa suapeleescura.Ele recebeucalorosamenteoamigodeinfância, “com quem brincava na areia1”, e o convidou a se hospedar emVelurana. Udayin integrou-se rapidamente à Sangha. Transformado emmonge,eleconversavacomBudatodososdiaseaproveitavacadaocasiãopara descrever a ele a tristeza in inita de seu pai. Que alegria o mestredaria a Sudodana se resolvesse apenas lhe fazer uma visita! Obhikkhutambém dava um jeito demencionar com frequência a terra dos sakyas.Eledescreviasuabelezaecharmetãobemque icoudi ícilparaBudanãoexperimentar nenhuma nostalgia pela região em que foi criado. Levadopor seu lirismo, Kaludayin convidou Buda a tomar o rumo de sua terranatalsemdemora:

Lá,asárvoresbrilhamdeardor.Naesperançadefrutos,jáabandonaramseuverde.Sósobraramasflores,vermelhascomosangue:Estánahora,Senhor,departirparalá.PorqueasárvoresemfloralegramoespíritoQuandoseusperfumessopramemroda,Aquedadasfrondesverdesprometeofruto:Estaéahoracertaparaapartida,Senhor.2

A insistência poética inalmente fez Buda tomar uma decisão. Aindaassim, segundo oMahavastu, ele não partiu imediatamente. Prometeu aUdayinqueiriaatéKapilavastuparaumavisita,massódepoisdamonção,que ele já tinha planejado passar em Rajagrha. Encantado, o amigo deinfância retornou imediatamente – pela via dos ares, conta-se – aosoberanodossakyasparadaraboanotícia.Uma outra lenda,mais tardia, conta que o velho rei teve que deslocar

umadezenadedelegaçõesantesqueseu ilhoaceitasseiratéKapilavastu:

cadavezque seusemissáriosencontravamBuda, icavam tão subjugadospor sua Doutrina que se juntavam àSangha e, assim, esqueciamcompletamentesuamissão!Os dias se sucederam, aVarsa, a estação da monção, inalmente

começou,celebradaportodaaextensaplanícieindianacomalegria.Aindanavéspera,apoeiraerguidapeloventovoavaportodososladosatéocéu,mensageirada terrasedenta implorandopelachegadadeumanuvemdechuva. E eis que agora a água caía comuma força tal que seria capazdequebraraomeioumgrãodearroz!ComoditavaaregraestabelecidaporBuda, todos osbhikkhus deviam permanecer reunidos em torno de seumestre durante a monção. Para se abrigar, os monges tinham erguidocabanasnoBosquedosbambus.Masapesardeas construçõesmodestasse assemelharem às do Bosque das gazelas, o eremitério de Veluranarealmenteimpressionavaporseutamanho.Ora, em Rajagrha, a presença de tal exército de renunciantes nos

portões da cidade não agradava a todo mundo. A simpatia inicial doscidadãosemrelaçãoaBudaeseuscompanheirospoucoapoucofoidandolugar à descon iança e depois a uma verdadeira onda de críticas eprotestos.Emprimeirolugar,eraprecisoadmitirqueosmongesdevestesamarelas eram invasores: todas as manhãs, diversas centenas delesvagavampelasruasembuscadealimento.Apesardeamaiorpartedelesagircomdiscrição,algunssemostravaminsistentes,atémesmoagressivos,quando mendigavam. Outros tinham expressão tão negligente queassustavam o povo corajoso. Finalmente, as famílias “eminentes edistintas3”dacidade,especialmenteasdosbrâmanes,começaramaacharque Sakyamuni tinha doutrinado um número excessivo de rapazesoriundos de sua casta... Ao se tornarembhikkhus, eles abandonavam asesposas e os ilhos; pior ainda, se aindanão eram casados, privavam sualinhagemdeterdescendência.Buda, acauteladopor seus discípulos sobre a hostilidade crescente dos

cidadãos,disseaeles:Quando, ao entrar na cidade de Rajagrha para mendigar sua comida, vocês escutarem osnotáveispronunciaremasseguintespalavras:–Ograndeasceta chegouaesta região,depoisde ter convertidoascetasbrâmanesqueeleconduz e que o seguem por conta própria. Agora, ele vai continuar a converter homens elevá-losembora,respondamcomaseguinteafirmação:–OTathagata,oGrandeHerói,conduzelevaoshomenspormeiodaLei.Emrelaçãoàquelesque ele conduz e leva ao seio da Lei, quem entre vocês experimenta então a tristeza e omedo?4

Omestre também instaurou novas regras de disciplina para a Sangha.Comportar-se com humildade durante a mendicância, cuidar de suasvestes, lavar sua tigela e limpar sua cabana faziamparte das regras quedeveriam ser seguidas a partir de então pelosbhikkhus. Graças àsinstruções de Buda, depois de uma semana, a insatisfação já não sedisseminavamaispelacidade.A monção chegou ao im e assinalou o momento da partida:

acompanhado por um grupo de discípulos que incluía o recém-chegadoSariputta,BudatomouorumodeKapilavastu.Otrajetoeralongo.Primeiroeranecessárioatravessaraplanície fértildoGanges.Duranteváriosdias,eles caminharam entre plantações de arroz verde-esmeralda onde grousbrancoscomoanevepousavam.Depoisdecruzaremoriosagradoabordode uma balsa, eles subiram passo a passo na direção do noroeste,embrenhando-sepouco apouco em regiõesmais selvagensque tinhamareputaçãodeestaremcheiasdebandoleirosedeanimais ferozes.Masaslorestas virgens que ladeavam asmontanhas também eram o reino dospavões,cujospiosestridentesserviamcomodesejosdeboas-vindas.Depois de uma caminhada de dois meses, o grupo de renunciantes

inalmente entrou no reino dos sakyas. A notícia chegou a Kapilavastu,onde todos se alegraram com o retorno iminente do príncipe adorado.Quando o rei Sudodana icou sabendo que seu ilho tinha chegadoacompanhado de numerosos discípulos, um certo orgulho o invadiu.Apesar da imensa decepção que Sidarta lhe causou ao renunciar suasucessão, ele terminara por honrar seu nome. O soberano dos sakyastomou a decisão de acolhê-lo como hóspede real e logo partiu a seuencontro a bordo de sua carruagem. Uma outra lenda conta, por outrolado,queelesecontentouemenviarumcriadoacavaloatéadelegaçãodemonges. Independentemente de ter visto ou não com os próprios olhos,Sudodanaficouchocadoaodescobrir,naqueledia,queosdiscípulosdeseuilhomendigavamaolongodocaminho.Ele icouindignadocomaideiadeque seupróprio ilho,umkshatriyanobreeorgulhoso,pudesseobter seualimento daquela maneira. Que desonra para o clã dos sakyas, quevergonha para a linhagem dos Gautama! E pensar que os astrólogostinhamprevisto, na ocasiãode seunascimento, que Sidarta iria se tornarumsoberanoexcepcional...Buda,nesseínterim,chegaraatéos limitesdeKapilavastuesedetivera

com seus discípulos no parque das igueiras-de-bengala, onde osrenunciantes de passagem tinham o costume de se instalar. Com a

resolução irme de argumentar com o ilho, o soberano deixou o paláciopara fazer-lhe uma visita. Quando chegou, Buda o convidou a sentar-sepertodele,à sombradeuma igueira-de-bengala.Compaciência, explicouao pai que já não pertencia mais ao clã dos sakyas; em seguida, lheexplicou a Doutrina, ponto a ponto, até que Sudodana se convertesse.Antesdeseretirar, tirandoa tigeladepediresmolasdasmãosdo ilho,osoberanooconvidouparaircomernopalácio.Oreencontroentreopaieoilho não poderia ter sidomais alegre! Pouco depois, Sudodana chegou aordenar que todas as famílias nobres de seu reino enviassem um ilhoparasejuntaràSangha.Segundo outras lendas, o retorno a Kapilavastu foi ocasião de cenas

fantásticas e de prodígios múltiplos: ou Buda chegou com vinte mildiscípulos e seu pai logo o acolheu com as honrarias reservadas aoshomensmais importantes; ou omestre visitou o pai deslocando-se pelosaresatéseupalácio;ou,aoassumir“aalturadeumapalmeira5”naentradada cidade, o Afortunado fez jorrar de seu corpo jatos de água e de fogoperante os sakyas pasmados – e todos, com Sudodana à frente, então seinclinaramperanteele.Sejacomofor,avisitadeBudaàcidadedesuainfânciafoimarcadapor

outrosreencontros importantesenumerosasconversões.Emvisitaàcasadeseupai,eleencontrouo ilhoRahula,queagoraestavacommaisdeseteanos. Sua ex-esposa, Yasodara, não estava presente na ocasião doencontro: ela tinha preferido permanecer afastada. Abandonada da noiteparaodiasemexplicação,nãoestavaprontaparaperdoaratraiçãodoex-marido.AopermitirqueopequenoRahulafosselevadoàpresençadopai,ela tinha a intenção de despertar nele um sentimento de culpa... Masquandoa criança, soborientaçãodamãe,pediuaopaique lhedesse suaherança, a reação de Buda não foi, de jeito nenhum, a esperada porYasodara:tomandoopedidodo ilhoaopédaletra,osábiosevoltouparaobhikkhu Sariputta e lhe pediu que cuidasse da formação de Rahula, demodoqueojovemnoviçoestivesseprontoparaserordenadocomomongeaoatingirosvinte anosde idade. Sudodana, o avô, icoudesamparadoaoreceber a notícia. Ele pediu ao ilho que pelo menos permitisse que seuneto crescesse antes de escolher seu caminho. Mas a decisão estavatomada, e o homem de idade tinha de aceitá-la. Buda, no entanto,comprometeu-seanuncamaisrecrutarno futuroumjovemnoviçosemoconsentimentoda família.Outras fontescontamaindaqueYasodara teria,por sua parte, inalmente perdoado o ex-marido. Ao reconhecer que eletinha se tornado Buda, ela teria até suplicado aomestre que a aceitasse

comomonja,maselenãoacatouseupedido.Na ocasião de sua viagem até Kapilavastu, Buda também reencontrou

seu meio-irmão Nanda, o companheiro inseparável de brincadeiras dainfância.O ilhoda segundaesposadeSudodana,Mahaprajapati, tinha setornadoumperfeitohomemdomundo–alémdomais,eraenormementesedutoremuitosensual.DesdeadesistênciadeSidarta,eraNandaquemiguravacomoherdeirodotronodopai.Muitoembevecidoporumamoçaque tinhaonome justi icadode Janapadakalyani, “CharmedaRegião”,eletinhasesentidotãodeleitadoquechegouasecomprometerasecasarcomela. Apesar de não ter absolutamente nenhum interesse pelas questõesreligiosas, “obeloNanda6” semostroumuito respeitosopara comomeio-irmão quando os dois se reencontraram na cidade. Assim que Buda seafastoudele,depoisdeuma longaconversaamável,Nandapercebeuqueele tinha esquecido sua tigela de pedir esmolas. Resolveu ir atrás doAfortunado para devolvê-la o mais rápido possível. O mestre, ao seaproximar do bosque das igueiras-de-bengala, observou que Nanda oseguiacompassosdecididos.Tocadoportaldedicação,eleordenouomeio-irmão como monge assim que ele se aproximou. Nanda, que icou semcoragem de reclamar, teve então a cabeça raspada e foi vestido comroupas de monge em um piscar de olhos. Transformado em monge acontragosto,o rapazsea ligiu:elenãopodiaesquecer suapromessa.Seupesareratalquechegouaconsiderar,emdiversasocasiões,abandonarosmonges.Pelaviadosares,Budaoenviouparaadmirarasninfascelestesdo paraíso de Indra, as irresistíveis apsaras, com as quais “Charme daRegião” não podia rivalizar. No caminho, cruzaram com uma macacazarolha e pelada, que acabava de escapar de um incêndio na loresta. Àvista das maravilhosasapsaras, Nanda foi obrigado a reconhecer que abeleza delas relegava Janapadakalyani ao nível do pobre animal que elestinham acabado de avistar. No entanto, a viagem fantástica, efetuada aolado do Tathagata, não foi capaz de reduzir os sonhos de felicidade dorapaz. Nanda agora alimentava uma outra esperança: ah, se pelomenosele pudesse voltar a renascer ao lado daquela belamulher por conta desua vida de monge cheia de méritos... Aliás, renascer no céu de Indratambémnãoeraumaideiaqueodesagradasse.Osmongesfaziamgracejosconstantes comaquelequeapelidaramde “amantedasninfas7”, até o diaemque,en im,“obeloNanda”conseguiuselibertarcompletamentedeseuapego.Entre os outros integrantes da família que se juntaram a Buda, é

necessárioaindamencionarAnandaeDevadatta.Oprimeiroeraprimodomestre.DiferentementedeNanda,orapazseconverteuespontaneamentee commuito entusiasmo. De caráter generoso, dócil e estudioso, Anandaviriaase tornaroupasthakadeBuda;emoutraspalavras,seu“discípulo-atendente”.Essaproximidadefariacomqueele,depoisdamortedosábio,fosseomaiorconhecedordesuadoutrina, capazderestituir,palavraporpalavra,seussermõesesuasfrases.O segundo, Devadatta, é apresentado às vezes como irmão de Ananda,

outrasvezescomoprimodeumalinhagemdiferente,ocasionalmentecomoirmãoda ex-esposadeBuda, Yasodara. Seja como for,Devadattanão eradesconhecido de Sakyamuni: tinha sido ele a matar um elefante enorme“com a palma da mão direita, de um só golpe8”, na ocasião do torneioorganizado antes do casamento de Sidarta. Apesar demuitos anos teremsepassadodesde aquele acontecimento,Devadatta continuava possuindoforça ísica impressionante e, se os boatos erammesmo verdadeiros, seuhumor sombrio e orgulhoso não o abandonara. Apesar disso, obhikkhuDevadatta fez muito bonito no seio daSangha. Sério e perseverante, orecém-chegado conseguiu obter com rapidez o domínio sobre algunspoderes sobrenaturais, especialmente os que permitiam se desdobrar,transformar-se, fazeraparecerobjetosenunca ser ferido comgravidade.Os outros monges icaram impressionados e, seguindo o exemplo deSariputta, não paravam de elogiar o rapaz que parecia um excelenterecruta para Buda. Nada levava a imaginar que chegaria o dia em queDevadattatrairiaomestre...O último recruta marcante a entrar para as ileiras de Buda em

Kapilavastufoiumsimplesbarbeiro.Budaeseugrupojátinhamtomadoaestrada de volta quandoUpali veio a seu encontro.O homem corajoso secontentou em oferecer, timidamente, seus serviços para raspar a cabeçade quinhentos jovens da nobreza sakya que iriam se juntar àSangha, deacordo com as ordens de Sudodana. No fundo, Upali desejavaardentemente se tornar umbhikkhu, mas, por causa de sua condiçãohumilde, não ousava exprimir sua vontade com franqueza. Buda, quepercebeu seu desconforto, ordenou-o comomonge imediatamente. Poucodepois,osquinhentosjovenssakyaschegarameforamordenadosporsuavez. Como a idade era na época o único fundamento da hierarquia noâmbitodacomunidadedosbhikkhus,Upalipassouentãoasersuperioraosrapazes oriundos da aristocracia. Estes se sentiam contrariados por terque se prostrar aos pés de um barbeiro, homem de condição inferior.

Comoalgunsdelesnãoescondiamseudesconforto,Budadeuaseusjovensdiscípulosumensinamentoa respeitodanatureza ilusóriadasdiferençassociaisentreoshomens.Maisdoquequalqueroutra,aordenaçãodeUpalideixoumarcasprofundas.Ofatodeomestreacolhernoâmbitoda Sanghaum homem oriundo de casta baixa colocava profundamente em xeque ahierarquiadasociedadetradicional.Uma outra decisão de Buda teria grande ressonância. Di ícil de situar

comprecisão no tempo, a abertura da comunidade àsmulheres deve terocorridoduranteaprimeiradécadademissãodosábio.Uma lenda tardia conta que, um dia, pouco depois da visita a

Kapilavastu, Sakyamuni tinha sido informado de que seu pai, o reiSudodana,estavaapontodemorrer.NaocasiãoestabelecidoemVaisali,acapital dos licchavis, o Tathagata se dirigiu imediatamente para junto deseu pai – pela via dos ares – para lhe dar um último ensinamento. Noentanto, de acordo com outras lendas, a segunda visita do Iluminado aKapilavastu só teria ocorrido um ou dois anos depois da morte deSudodana. Seja como for, algum tempodepois desse episódio tão triste, aviúva do rei, Mahaprajapati, saiu em busca do Afortunado, que estavainstalado no bosque das igueiras-de-bengala perto de Kapilavastu. Budarecebeu commuita deferência amulher que tinha cuidado dele durantetodaasuainfância.Suatiacomeçoulheexplicandoquedesejava,comoditaocostume,retirar-sedavidamundanaparasevoltarparaareligião.ComoNandaeRahula tinhamdecididose juntaràSangha,ela jánão tinhamaisninguém a quem cuidar, à exceção de sua ilha. Em discurso bemarticulado, Mahaprajapati terminou por expor ao Tathagata seu projetocom mais clareza: “Como seria bom se as mulheres também pudessementrar para a vida sem morada de acordo com o Darma que vocêproclama9!”. Buda recusou o pedido dela sem rodeios. Sua mãe adotivainsistiu três vezes, mas o mestre não cedeu: estava fora de questão asmulheresintegraremaordemmonástica.Alguns dias mais tarde, Sakyamuni e seu grupo estavam de volta a

Vaisali. Ananda, o “discípulo-atendente” do mestre, viu Mahaprajapatichegar certa manhã, acompanhada de várias mulheres oriundas danobreza sakya. Todas tinham a cabeça raspada e usavam as vestesmonásticas. Exausta por causa da viagem de Kapilavastu, “com os pésinchados, o corpo coberto de poeira, em lágrimas e gemendo10”,Mahaprajapati suplicou em nome da causa da ordenação das mulheresperanteAnanda.Tocado,eledecidiuintercederemseufavorjuntoaBuda.

Nãoadiantounada.Budanão semostroudisposto a rever suaposição.OcorajosoAnanda insistiu,argumentou.Nãoeraverdadequeadoutrinasedirigiaatodososseres?Seosdeuseseosanimais,oshomensdetodasascastas ou de vida ruim podiam acessá-la, por que as mulheres estariamexcluídas? Estariam elas condenadas a precisar renascer na forma dehomem para conhecer a Lei? Buda permaneceu intratável. Anandaperguntouaeleentãoseasmulheresestavamounãoaptasasetornaremarahants. Sim,elaseramcapazesdisso,Buda terminouporadmitir.Nestecaso, prosseguiu Ananda, por que ele se recusava a ordenarMahaprajapati, que tinha sido, nopassado, comoele lembra comemoção,umamãeadotivatãoamávelededicadaaele?O mestre superou suas resistências e en im cedeu. No entanto, logo

impôs diversas condições para a ordenação da viúva de Sudodana. Asregras que ela e todas as futuras monjas deveriam aceitar e acatarsomavam oito: umabhikkhuni devia sempre cumprimentar primeiro umbhikkhu com omaior respeito,mesmo que ele tivesse acabado de entrarpara a ordem ou que fosse mais novo do que ela. As monjas passariamobrigatoriamente a estação das chuvas em um retiro onde houvessetambém monges. As monjas deviam receber os ensinamentos de ummongeregularmente,acadaquinzedias,e, se fossenecessário,poderiamsofrer reprimendas de seus confrades masculinos. O contrário, nos doiscasos,nãoeraautorizado.Asoutras regras tambémcolocavamasmonjasem situação de inferioridade em relação aosbhikkhus: eles tinham aresponsabilidade de vigiá-las, de guiá-las e de administrá-las.Mahaprajapati não se abateu. A viúva aceitou essas condições comentusiasmo, como quem recebe “uma guirlanda de lores de lótus ou dejasmim11”.Efoiordenada.Buda estava longe de compartilhar da alegria de sua mãe adotiva.

Preocupado com o futuro da Sangha, ele con iou seus temores a seu ielatendente:

Damesmamaneira,óAnanda,queadoençachamadadealforrasurgeemumaplantaçãodearrozemplenaprosperidade–eentãoaprosperidadedaplantaçãonãoduramuitotempo–,damesmamaneira,óAnanda,quandoemumadoutrinaeemumaordemasmulheressãoautorizadas a renunciar ao mundo e a levar a vida de errante, então a vida santa nãoprospera pormuito tempo. Se, óAnanda, na doutrina e na ordemque oTathagata fundounãotivessesidoconcedidaapossibilidadedeasmulheresabandonaremolarparalevarvidade errante, a vida santa, ó Ananda, permaneceria em observância durantemuito tempo: adoutrinapuraseriamantidadurantemilanos.Mascomo,óAnanda,nadoutrinaenaordemqueoPerfeitofundou,asmulheresrenunciamaomundoeadotamavidadeerrante,apartirde agora, óAnanda, a vida santa não vaimais permanecermuito tempo emobservância: a

doutrinadaverdadeagoranãovaidurarmaisdoquequinhentosanos.12

Apesardesuaprofundadescon iançaemrelaçãoaopapeldasmulheres

nacomunidade,omestreteriasempregrandeinteressepelamãeadotiva,a patrocinadora dasmonjas, que aliás logo se tornaria umaarahant. Sobsua orientação, a ordem dasbhikkhunis logo se ampliou e permitiu quecentenasdemulheressejuntassemàSangha.

Nagpur,1956Protegidos por guarda-costas, o homeme sua esposa abrempassagem

até a imensa barraca branca que foimontada nomeio de um campo, naperiferia de Nagpur. Às nove e quinze da manhã, Bhimrao RamjiAmbedkar aparece em cena. Com uma guirlanda de lores frescas nopescoço, o famoso homem de Estado se apoia em um bastão de bambu,comoumperegrinoquechegouao imdeseutrajeto.Ambedkarsabequeestaviagem,em14deoutubrode1956,seráhistórica.Quandoeleavançapara icar de frente para a maré humana, uma avalanche de aplausosexplode.Homens e mulheres vieram de todos os lugares para o evento.

Camponeses em sua maior parte, eles tinham saído de seus vilarejosmiseráveis na véspera, a pé, de ônibus ou de trem, para não perder oencontro oferecido pelo “Babasaheb” Ambedkar, como o apelidaram comafeição e um imenso respeito. Todos eles, assim como seu herói, sãooriundos da categoria social mais baixa da Índia, a dos sem-casta, a dosintocáveis,dosdalit,dos“oprimidos”,ouainda,deacordocomaexpressãoinventada por Gandhi, dosharijan, os “ ilhos de deus”. A maior partepertence ao grupo dos Mahar, que representa quase dez por cento dapopulação de Maharashtra, estado da região Oeste da Índia da qual seunome deriva. Hoje, esses humildes entre os humildes formam umamaréhumana que conta com várias centenas de milhares de indivíduos. Aexemplo do líder e de sua esposa, todos estão vestidos de branco –dhotipara os homens esáriparaasmulheres–, comosentidodeque,no inaldessa viagem excepcional, eles vão renascer na claridade. O azul do céu,puroeclaro,estádeacordo.PresididapelobhikkhuBhenteChandramani,acerimôniapodecomeçar.

O monge de origem birmanesa se prepara para receber o compromissosolenedolíderpolíticodosintocáveisedesuaesposa.Omomentoégrave,carregado de emoção. A plateia prende a respiração quando Ambedkartoma os Três Refúgios e os Cinco Preceitos perante o bhikkhu. Depois demarcaruma curtapausa, “Babasaheb” inova: ele completa sua conversãopública à doutrina de Buda pronunciando 22 votos de sua própriacomposição.Umgrandenúmerodelesserveparacon irmarsuaresoluçãode romper todas as ligações com as práticas e as crenças do hinduísmo:“EunãodevonemdeveriaacreditarqueoSenhorBudaéumaencarnaçãode Vishnu1”, ele pronuncia, com destaque, e logo estabelece os dois

compromissos seguintes: “Eu vou acreditar na igualdade humana 2” e “vou me

esforçarparaestabeleceraigualdade3”.Terminadasualongadeclaraçãosolene,Ambedkarentão dá, por sua vez, adiksha, a iniciação budista, a toda a assembleiareunidaasuafrente.EmNagpur,naqueledia,meiomilhãodeindivíduossetornaram,juntos,

discípulosleigosdeBuda.Umaconversãosimultâneadetalenvergaduraéúnica, algoassim jamaisocorreuemqualqueroutra religião.DopontodevistadahistóriadobudismonaÍndia,elarepresentouumtruquedecenaparaomaisdesavisado:depoisdetercaídonoesquecimentoemseupaísde origem durante quase oito séculos, omovimento religioso inauguradoporBudaderepentepareciarenascerdascinzas.Na sequência da cerimônia de Nagpur, Ambedkar anunciou que iria

dedicarorestodesuavidaàpropagaçãodobudismojuntoàsclassesmaisbaixas e oprimidas da sociedade indiana. Mas o homem que iniciou arenovaçãodobudismoindianonãotevetempodedarcontinuidadeasuasações: no dia 6 de dezembro, menos de dois meses após sua conversãopública, ele morreu de maneira brutal. O país todo então prestouhomenagensvibrantesaohomempúblicoqueatéhojetemdestaquecomoexceçãonacastadosintocáveis.Nascido em 1891, a primeira oportunidade inesperada para um rapaz

de sua classe que Ambedkar teve foi a possibilidade de seguir estudossuperiores. Graças à ajuda de doadores ricos, ele estudou economia epolíticanaÍndia,obtevedoutoradonauniversidadedeColumbia,emNovaYork, e depois se tornou advogado em Londres. Ao retornar à Índia nadécadade20,elesejuntouàlutapelaindependênciadeseupaís.Mas,nacondição dedalit,descobriuadiscriminaçãoeahumilhaçãoaoretornaraseu país. Como discordava de Gandhi em relação à questão darepresentação política dos intocáveis, ele lançou movimentos dedesobediênciacivilparafazervalerseusdireitos.Em1947,olíderpolíticodosintocáveisfoieleitoministrodaJustiçanoâmbitodoprimeirogovernodaÍndiaindependente.AmbedkartambémrecebeudeNehruoencargoderedigir a Constituição da União Indiana. Além da liberdade de culto,“Babasaheb” inclui também a proibição de qualquer forma dediscriminação,tantoemrelaçãoàscastasmaisbaixasquantoàsmulheres.Em 1951, quando o pai da Constituição se afastou do governo, a notíciacausousensaçãoemtodoopaís.Convencidodequeodireitosozinhonãoseria capaz de solucionar a questão da desigualdade social, Ambedkardecidiu seguir sua luta em terreno religioso. Ao contrário de Gandhi, ele

acreditava que o sistema de castas era inseparável do hinduísmo. Já em1935,orepresentantedosdalittinhadeclaradoque,apesardeternascidohindu, não morreria assim. Em 1954, “Babasaheb” anunciou que tinhadecididoromperde initivamentecomohinduísmo:depoisdeterestudadolongamente as grandes religiões universais, chegara à conclusão de que,para os intocáveis, a adoção do budismo representava a melhor saídapossível para sair dohinduísmoe, portanto, para se libertar da opressãoexercidapelascastasmaisaltas.A conversão ao budismo da igura emblemática dos intocáveis soou

comoumdesa io aomodelohierárquicoda sociedade indiana tradicional.Simbolicamente, em Nagpur, todos aqueles que seguiram Ambedkar nocaminho de Buda foram liberados, de um só golpe, de sua condição deinferioridade.Asmulheresganharamtambémemigualdade,emrelaçãoaolugar que o hinduísmo lhes concedia tradicionalmente. Mas será que aconcepção do budismo pregada por Ambedkar estava correta? Para ele,Sakyamuni não era apenas um líder espiritual: ele também era, esobretudo, um reformador social e político. Com base nos relatos daordenaçãodobarbeiroUpaliedesuatiaMahaprajapati,opolíticocalculouqueomestredesejavaagitaraordemsocial,queseopunhaàautoridadeexercidatradicionalmentepeloshomenssobreasmulheresepelasoutrascastassobreoshumildes,quepregavaaigualdadeentretodososseres.Mas será que a visão do grande líder dos intocáveis da vidamoderna

era ielàdomestrehistórico?Emquemedidaépossívela irmarqueBudaeraumsábioquetambémfaziaasvezesderevolucionário?No que diz respeito à igualdade entre os sexos, é evidente que

Ambedkar idealizou um pouco a posição do fundador daSangha. Ocomportamento negativo de Buda para com as mulheres aparece commuita clareza no relato da ordenação da primeira monja. Outros textoscon irmamessadescon iança,taiscomoodiálogoquesedariaváriosanosmais tarde entre o sábio, quando já estava em idade muito avançada emuitodoente,eseufielAnanda:

–Senhor,comodevomecomportarperanteasmulheres?–Nãotenhacontatocomelas.–Mas,Tathagata,comopodereievitá-las?–Ananda,sevocêencontrarumamulher,evitequalquerconversa.–Eseelamedirigirapalavra?–Nestecaso,vocêdevesempretomarocuidadodeserextremamentevigilanteenãobaixaraguarda.4

OAnguttaraNikaya do cânone páli informa ainda que Buda distinguia

sete categorias de mulheres: três categorias de mulheres de vida ruim,três categorias demulheres gentis e honestas e – a que ele preferia – acategoriadasmulheres felizesemcuidardo lar.Aindaassim,dopontodevistadasLeisdeManu,quesóconferemàmulherhinduopapeldeesposaemãe,dáparaperceberqueadecisãodeBuda–aindaqueacontragosto–deabriracomunidadeàsmonjasrepresentouparasuaépocaumfortesinal em favor da liberdademais ampla para asmulheres. Ao ceder aospedidos insistentes da tia, o sábio se desvencilhou do pensamentodominante de seu tempo. É necessário lembrar, de todo modo, como édi ícil estabelecer em que medida esses vários relatos re letem fatosautênticos. Talvez eles apenas revelem adendos tardios elaborados pelosdiscípulosdeBuda.Masoqueahistóriadobudismonosensinaéque,apesardeomestre

ter se enganado em relação a suas previsões sombrias, asmonjas nuncativerampapeldedestaque–tirandoalgumasexceções.QuandoseobservaolugarocupadopelasmulheresnoâmbitodaSanghano inaldoséculoXX,o quadro também não é nem um poucomais positivo: há cerca de duasdécadas, só existiam monjas no budismo Mahayana – e, ainda assim,apenas na China, na Coreia e no Vietnã. De lá para cá, tentativas deaberturavieramà tonanoâmbitodobudismoZen japonês,doVajrayanatibetanoenoquadrodoatualTheravada:foiassimque,depoisdemilanosde interrupção,bhikkhunis reapareceramnoSriLanka,ondehojeexistemcerca de quatrocentas monjas. Apesar desses progressos recentes, asbhikkhunisaindasãominoriaemrelaçãoaosbhikkhus.Defato,aordenaçãocompleta das mulheres, apesar de ter sido aprovada por Budapessoalmente,nãoéverdadeiramente reconhecidaouaceitapor todasasescolasdobudismo.Atítulodeexemplo,nacorrenteTheravada,etambémnobudismoZenjaponês,asmonjassãoconsideradasmulheresleigasquese entregam à vida de ascetismo e seguem as regras dos noviços. Nacorrente Vajrayana do budismo tibetano, tirando algumas exceções – emsua maioria ocidentais –, a maior parte das mulheres não recebe aordenaçãocompletaepermanececomonoviçadurantetodaavida.Comodesejo de fazer com que a situação evoluísse, em todos os lugares, asmonjas criaram seu próprio movimento, seguindo o exemplo da famosaassociaçãoSakyadhitaInternational,fundadaem1987,emBodh-Gaya,cujoobjetivo principal é promover a ordenação de mulheres budistas nomundotodo.SeráqueAmbedkar foimaiscoerenteemrelaçãoàs intençõesdeBuda

quanto ao sistema de castas? Certos relatos da literatura canônica dãocréditoàvisãodo líderdos intocáveis, comoporexemploaordenaçãodobarbeiroUpali.Atéentão,todososbhikkhus,semexceção,eramrecrutadosno âmbito das classes mais altas da sociedade indiana. Todos eram“nascidos duas vezes”, ou melhor, eram brâmanes ou guerreiros(kshatriyas)comoBudaouaindamercadores(vaishyas)comoojovemYasade Benares. A integração à Sangha de um homem oriundo de uma castainferiorfoi,portanto,umadecisãodepesosimbólicoconsiderávelnoplanosocial, que dá uma dimensão mais política à igura do mestre histórico.Outros textos famosos atestam sua vontade de abalar, na ocasião, ahierarquiadasociedadetradicionalindiana.Assim,oVesalasuttateriasidopregadoporBudaaumbrâmanequeo tinha tratadocomopáriaquandoelepedia sua esmola cotidiana: “Nãoépornascimentoquenos tornamospárias.Nãoépornascimentoquenostornamosbrâmanes.Pornossosatosnostornamospárias,pornossosatosnostornamosbrâmanes5”.Umoutrotextomuitofamoso,querelataaconversãodeumpobrevarredor,revelaaimportância fundamental que Buda dava àmoral pessoal: segundo ele, ésobre elaque sebaseia ahierarquia entreoshomens. São asqualidadesmoraiseaconduta“correta”queatestamovalordeumindivíduo,nãoseunascimento,suacasta,seupoderousuariqueza.Comofoiconservadopelatradição,orelatodeSunitaésimplesecomovente:

Emumafamíliahumildeeunasci,nóséramosmiseráveis,semprepassávamosfome.Meutrabalhotambémerabemhumilde:eucolhiaevarriaasfloresmurchasdosaltares.Eueranegligenciado,maltratado,humilhado,eperantetodoseumerecurvava.Eentão,umdia,euovi,aquelequesoubeseiluminarperfeitamente,rodeadodeváriosdeseusdiscípulos,umheróiincomparávelentrandonacidadedeMagada.Entãoeudeixeiaminhavaracaire,aomeaproximar,eumerecurveiperanteele.Eele,osuper-homem,cheiodecompaixão,eleparouparamim.EumeprostreiaospésdoProfessor,depoisfiqueideladoparanãoincomodá-lo,epergunteiaestehomem,omaisdignodetodos,seaceitariaqueeuoseguisse.EntãooProfessormisericordioso,emsuaenormebondade,dirigindo-seamim,disse:

“Venha,ómonge”.Estafoiminhaordenação.[...]Sorrindo,oProfessormedisse:“Pelavontade,apureza,amoderaçãoeocontroledesimesmo,épossívelsetornarumhomemrealmentesuperior,esteéocaminhoparaasantidade.6

Em princípio, portanto, Sakyamuni convidava todos a escutar suaDoutrina e a se tornarbhikkhus – ou, pelo menos, discípulos leigos. Naprática, essa vontade de abertura talvez fossemais teórica do que real...Em primeiro lugar, o próprio regulamentomonástico – como se acreditaque tenha sido estabelecido pelo mestre – impunha restrições bastanteconcretas aos candidatos: os que eram dependentes ou subordinados auma autoridade externa – quer dizer, os devedores, os escravos e osmilitares –, os que tinham cometido crimes e os acometidos por doençasgravesoucontagiosasnãopodiamserordenadosmonges.Emseguida,demaneiramaisgeral,oexamedos textosbudistasdáaentenderqueabrirosportõesdaSanghaà“multidão”nãoeradejeitonenhumaprioridadedosábio.ÉimportantenotarespecialmentequeBudanãoescolheufalarparaasmassas em sua primeira pregação: em Sarnath, o Iluminado desvelousua doutrina a apenas cinco homens, todos eles ascetas, ainda por cima.Por essa característica, o Sermão de Benares ixou, desde sua primeiramanifestação, o caráter relativamente exclusivo e elitista do budismoantigo. Em seguida, não está relatado em parte alguma dos textos que omestre tenha se valido de uma única ocasião para interpelar a multidãodiretamente. NosSuttas que a tradição atribui a ele, é muito raroSakyamunidirigir-seaosleigos.O fundadordobudismo tambémnunca fez,peranteumaamplaplateia,

discursos “revolucionários” para denunciar publicamente a hierarquiasocial. Ele preferia instruir cada homem – e, de maneira mais ocasional,cada mulher – pessoalmente, dando ênfase para o fato de que todas aspessoassão,pormeiodeseusatosedesuaconsciênciamoral,plenamenteresponsáveis por sua realização. E apesar de criticar, caso a caso, apretensãodaquelesquepertencemàscamadasmaisnobresdasociedade,o sábio jamaispregoua igualdadeentreas castas–emenosaindaa lutade classes... “Os seres são proprietários de seus atos, herdeiros de seusatos,osatossãoamatrizdaqualelessurgem,elessãoospaisdeseusatosetêmseularemseusatos.Ocarmadivideosseresemníveismaisaltosemaisbaixos7”,Budaensina.

De fato, se nos debruçarmosmais profundamente sobre a doutrina dosábio,acontradiçãoaparenteentreoprincípioteóricodamãoestendidaatodos e uma prática que se revela bem mais restritiva na realidadedesaparece.Orecrutamentoseletivodomestreencontrasuacoerência.Apartirdomomentoemqueaceitaaleidosrenascimentosedocarma,Budade fato já não pode questionar totalmente a hierarquia das castas. Suadoutrina não busca tanto contestar o sistema de castas, mas simultrapassá-lo: ela ensina aoshomens como fugirdele,mostrando-lhesumcaminhoquepermiteatingiraIluminação.Ou,paraseguircorretamenteocaminhoquelevaaoBodhi,énecessárioadotaravidamonástica.ONobreCaminho Óctuplo é uma via fácil a conceber, mas, levando em conta afraquezahumana,suaaplicaçãoimplicaarenúnciaàvidamundana.Époresta razão que Buda preferiu fazer seu primeiro sermão a cincorenunciantes. O caminho que ele ensina só pode ser seguido por ascetasque se conformema regras rígidas, tais comoo celibatoeo abandonodetodos os bens pessoais. Os discípulos leigos não podem almejar aIluminação em sua vida presente; eles podem apenas conquistarméritosao dar esmola aosbhikkhus e ao respeitar um certo número de regrasmorais, na esperança de ter um renascimento futuro mais favorável.Apesardepregarumcaminhocaracterizadocomo“domeio”,adoutrinadeBuda implica, portanto, o desapego e a renúncia individual, o oposto docomprometimentocomavidanacidade,comareivindicaçãosocialoucomoconfrontopolítico.Um último elemento atesta que o fundador daSangha nunca procurou

conquistar a adesão da massa popular, e ainda menos lutar contra ahierarquiasocial:umnúmeromuitograndedebrâmanes,ouacastamaisalta da sociedade, converteu-se a sua doutrina. Segundo um estudosociológico efetuado por Hans Wolfgang Schumann, com base no cânonpáli, eles formavamamaioriados recrutasmonásticosnosprimórdiosdaSangha. Em um grupo de 199bhikkhus dos quais a casta pode seridenti icada com certeza, 48,2 por cento eram brâmanes, 28,6 por centokshatriyas e 13 por centovaishyas – quer dizer, 89 por cento deles eram“nascidos duas vezes”. Apenas 6,6 por cento pertenciam ao grupo dosintocáveis, e 3,1 por cento ao dosshudras, os serventes. As estatísticassociaisrelativasaosdiscípulosleigosre letemasmesmastendências–coma diferença de que os mercadores passam na frente dos kshatriyas emquantidade. Esses dados são eloquentes: se Buda realmente fosse umreformista social, a adesão das classes sociais mais altas teria sido bemmais rara e vice-versa. O fundador do budismo era antes de tudo um

mestre espiritual que se preocupava em orientar um grupo de homensforçosamente restrito, já que apenas alguns seriam capazes de seguir ocaminhocheiodeexigênciasquelevaàIluminação.OtruquedecenareligiosoqueocorreuemNagpurnodia14deoutubro

de1956,por iniciativadeumlíderdos intocáveis, foi,portanto,aomesmotempo,umacontecimentodefortecunhopolítico.E,deacordocomtodasasevidências, Ambedkar tinha plena consciência de estar inaugurandonaquele dia uma faceta inédita do budismo, muito mais envolvida nacidade do que pregava o próprio Buda, que o político aliás tratou dechamardeNavayana–o“NovoVeículo”.Omovimentoderenascimentodobudismo na Índia não encontrou seu im com a morte prematura deAmbedkar. Ele prossegue até hoje. Desde a cerimônia de Nagpur, os 22votos pronunciados por “Babasaheb” chegaram até a se transformar nasa irmações feitas por todos os hindus que se convertem à Doutrina e,apesardeaindapermanecermarginal,obudismoatingehoje,naÍndia,umnúmero signi icativo de pessoas, essencialmente entre os intocáveis e ascastasbaixas.No fundo,Ambedkar,quesebene iciariadeeducaçãodupla,aomesmo

tempo indiana e ocidental, foi sobretudo umdos grandes precursores dochamado“budismoengajado”, termosurgidoduranteaGuerradoVietnã,cunhado por ThichNhatHanh.Nascido do encontro entre as culturas daÍndia e do Ocidente – uma exibindo a tradição da libertação interior, aoutra,umidealpolíticodeliberdadeeigualdade–,eleé,decertamaneira,o último desenvolvimento da doutrina de Buda. O “budismo engajado” éatualmenteumfenômenoemexpansãonoOcidente–enãosólá.PortodaaÁsia, ele também está conquistando terreno, da Birmânia ao Sri Lanka,passando pela causa tibetana. Ao contrário da renúncia ressaltada pelomestrehistórico,oneobudismopregaocombatenoâmbitodasociedade.

MissãoAnoapósano,decênioapósdecênio,Budaprosseguiacomsuapregação,

de maneira incansável. À exceção da estação das chuvas, Sakyamuni sedeslocavasemdescansoparaensinarsuadoutrina.Erranteinfatigável,eledeixava marcas em reinos e repúblicas de todos os cantos do vale doGanges, onde se bene iciava do apoio crescente de personagens ricos ein luentes. Àmedida que as conversões se sucediam, os ensinamentos seaprofundavam, assim como a organização daSangha ia se de inindo. E,apesar do turbilhão dos deslocamentos, uma certa rotina se instalou, eassim foi possível estabelecer a vida cotidiana de Buda e de seusdiscípulos.Desde o dia em que o Afortunado começou a pregar sua doutrina no

Bosque das gazelas, os momentos de solidão se tornaram raros. Quandoelepercorriaestradasecaminhos,umgrupodediscípulosoacompanhavasempre. Comopassar do tempo, a pequena trupe inchou até contar comváriascentenasdemonges,deacordocomosrelatos.Otagarelardelesàsvezes incomodava tanto que o sábio era obrigado a ordenar que secalassem. Mas não faltava velocidade à procissão dosbhikkhus, todos decabeçaraspadaevestidosdeamareloatrásdeseumestre.Quandoatravessavamosvilarejospararecolherseualimentocotidiano,

geralmenteerambemrecebidos.Osmongesseapresentavamdeportaemporta, sem deixar de visitar nenhuma casa, para não privar ninguém daoportunidade de obterméritos. Seguindo o exemplo de Sakyamuni, todosse mostravam dignos e concentrados. Imóveis, com os olhos baixos, elesdeviamaguardara esmola semproferirpalavra.Aliás, eraproibido tantopedir quanto agradecer. Quando os vilarejos que ladeavam as estradasentreduasetapasnãoerammuitograndes,discípulos leigos seuniamaocortejo. Empoleirados em cima de carroças pesadas, cheias de provisões,eles se encarregavam de atender as necessidades da comunidade emmarcha.O pregador itinerante passava muito tempo no reino próspero de

Magada. Ele aproveitava todas as ocasiões possíveis para difundir seuensinamento juntoàquelesque jáestavamenvolvidosnabuscaespiritual.O mestre visitava a casa de brâmanes da mesma maneira que ia até oseremitériosdas incontáveis seitasquenaépocapululavampelo reino;nocaminho, conversava com vários renunciantes errantes. Durante aprimeira década de sua missão, o Bosque dos bambus de Rajagrha se

transformou na residência principal da Sangha, entre duas turnês depregação. Também era lá que Buda e seu grupo residiam durante osmesesdemonção.Graçasàgenerosidadedeummercadorrico,oparqueoferecido pelo rei agora contava com sessenta casas espaçosas. O maisimportante era que elas eram bem mais sólidas do que as cabanasconstruídas no passado pelosbhikkhus: agora já não eramais necessáriovoltarareconstruí-lasacadaano.QuandoestavaemRajagrha,BudagostavadepassarseutemponoPico

dosabutres.Eletinhadescobertoolocalquedavavistaparatodaacapitalnaépocaemquenãopassavadeumjovemascetaentreoutrosembuscadaverdade.O arnas alturas erabemmais agradáveldoquenaplanície,ondereinavaumcalorsufocante.Equandoastrombasd’águadamonçãocaíam, as grutas naturais que salpicam a montanha constituíam abrigospreciosos.OTathagataconsideravaaquelelocalparticularmentepropícioàmeditação; também era bom para conversas prolongadas com seusdiscípulos mais jovens. Sentado em uma toalha, o sábio dava seusensinamentos com toda a paciência; durante horas a io, ele iadesenvolvendoprogressivamentesuadoutrina,comocuidadodeadaptaraapresentaçãodeacordocomosinterlocutores.AamizadedeBudacomo soberanoBimbisara se revelou contínua, ele

permaneceu como um de seusupasakas, ou discípulos leigos, maisfervorosos.Nacapital,Sakyamunitambémestabeleceulaçosestreitoscomumoutropersonagemimportante.ChamadoJivaka,omédicopessoaldoreise bene iciava de excelente reputação: a ele eram atribuídas diversascuras milagrosas... Depois de sua conversão, ele também se tornou umupasaka exemplar. Deu de presente à Sangha um parque situado nasproximidadesdacidade,oBosquedasMangueiras,quepermitiaalojarosnovosrecrutasmonásticosdeBuda.Mas,principalmente, Jivaka tratoudecuidardosbhikkhusdoentesouferidos.AnoroestedeMagada,ovaledoGangeseraocupadoporumoutroreino

poderoso, o de Kosala. A região não passaria muito tempo ao largo dadifusão da doutrina que se tornou tão valorizada por seu grande rival. Aconvite de Anathapindika, cunhado do mercador rico de Rajagrha quemandara construir as casas para a Sangha, Buda resolveu um dia ir atéSravasti,abelacapitaldoreinodeKosala.DepoisdeatravessaroGanges,o sábio, acompanhado de um grupo de discípulos, fez uma parada emVaisali,acapitaldarepúblicadoslicchavis.Depoisocortejovoltouatomara rota das caravanas e terminou por atingir Sravasti após uma longa

viagem.Anathapindika, banqueiro e comerciante de ouro, recebeu Buda com

todas as honrarias. O homem de negócios adquiriu uma propriedademagní ica para poder dar como oferenda ao Iluminado assim que elechegasseaSravasti.ParaadquiriroparquequepertenciaaopríncipeJeta,oherdeirodotrono,Anathapindikanãomediugastos:opríncipesóaceitouceder seu jardim em troca de uma quantidade de moedas que fossesu iciente para cobrir toda a sua super ície... em outras palavras, váriascarroçascheiasdeouro!ÉverdadequeoJetavana,o“parquedopríncipeJeta”,éumencanto:suasmangueirasmagní icassãofamosastantoporsuasombra agradável quanto por seus frutos suculentos. Levado por suagenerosidade sem limites,Anathapindikaaté tomouo cuidadodemandarcolocar ali “terraços, uma clausura, salões de assembleia, aposentos comlareira,armazéns,caminhospavimentados,poços,casasdebanho,riachose borboletas1”. Outras lendas se contentam em mencionar a “barracaperfumada2”queomestreocupavaemJetavana...Masoqueimportaéquea residência monástica respondia perfeitamente às necessidades daSangha:sualocalizaçãoera,aomesmotempo,aumadistânciasu icientedacidade para escapar de seu tumulto, mas curta o bastante para que osmonges tivessem facilidade de ir até lá todamanhã pedir esmolas. E, nosentido inverso, os discípulos leigos também não iriam desanimar com adistânciaparairvisitarosmongesquandotivessemvontade.Os curiosos da capital de Kosala então logo se apressaram a ir até

Jetavanaparasabermaissobreo shramanadequemtantosefalava.Entreeles, o rei de Kosala, Prasenajit, chegou um dia pessoalmente paraquestionar Buda. Depois de ter escutado seu questionamento, PrasenajittomouoTriploRefúgioesetornou,porsuavez,discípuloleigo.Deacordocom outras lendas, o soberano de Kosala iria se contentar em apenashonrar respeitosamenteoAfortunado.O fatoéquea consideraçãodo reiem relação a Buda favoreceria a difusão da Lei junto aos súditos de seuextensoreino.Depois de ter efetuado apenas visitas breves a Jetavana durante uma

dezena de anos, Buda um dia chegou para se instalar ali durante váriosmeses,naocasiãodaestaçãodaschuvas.Apartirdeentão,adquiriuseushábitos no mosteiro nos arredores de Sravasti: conta-se que ele teriapassado dezoito monções sucessivas ali. Outras fontes mencionam nadamenosdoque25estaçõesdechuvas...Sejacomofor,oslongosperíodosderetiro no reino de Kosala eram ocasiões para o mestre recrutar novosbhikkhus. E enquanto aSangha recebia do generosoupasaka outros

parques monásticos nas proximidades de Sravasti, Buda estreitava seuslaços com o soberano Prasenajit, cuja irmã, Sumana, logo foi ordenadabhikkhuni. O rival de Bimbisara com frequência ia consultar o sábio emJetavana, tanto em relação a questões religiosas quanto particulares epolíticas.Conhecido por seus “7.777 palácios com terraços, 7.777 casas de

madeira, 7.777 parques e 7.777 riachos de lótus 3”, Vaisali, a capital darepúblicadoslicchavis,tornou-secomopassardotempomaisumlocalderesidência muito apreciado por Buda. Apesar de o sábio já conhecer acidade, sua primeira visita “o icial” a Vaisali ocorreu três anos depois daIluminação,quandoospríncipeslicchavispediramseusocorroparaajudaraerradicarapestequeseabatiasobresuacidademagní ica.OTathagatadeu conta do desa io com sucesso, expulsando os demônios queoriginalmentenãopertenciamaolocal.Paraagradeceraele,umnotáveldacidade ofereceu àSangha um amplo parque plantado com árvores sal.Muito tempo depois, o Afortunado também iria se hospedar em um beloeremitério colocado a sua disposiçãoporAmbapali, uma cortesã rica quesetornouumadesuasprincipaisdiscípulasleigas.EmVaisali,assimcomoem outros lugares, Buda sempre era convidado com os bhikkhus paraalmoçar na casa de um ou de outro dosupasakas de sorte, que às vezeschegavamabrigarcomvirulênciapelahonra.Na direção oeste, a alguma distância dos grandes centros de pregação

habituais de Buda, encontrava-se Kausambi, a capital dos vatsas. Alitambém a comunidade logo lhe ofereceu vários mosteiros, apesar de arelação como reiUdayanapermanecer bem fria.MasKausambi icou namemória daSangha principalmente comoo local da disputa vigorosa queopôs dois grupos debhikkhus, quase nove anos depois da Iluminação domestre.O con lito teve origem em uma história no mínimo... vulgar. Um dia,

durante o retiro habitual no períododemonção, ummongedesrespeitouumaregrarelativaaousodaslatrinasdoeremitério:eledeixoudevoltaraencherojarrodeáguaqueserviaparaselimpardepoisdouso.Umoutrodiscípulo que utilizou a instalação depois dele lhe fez uma forterepreensão. Ele se defendeu explicandoque seu esquecimentonãodeviaser considerado ofensa. Os dois foram buscar apoio na comunidade, demodoquelogoosdoisgruposseenfrentaramcomvirulênciaporcausadoassunto. Osbhikkhus zelosos em relação às regras recriminaram comirmezaomongenegligente,aopassoqueosdooutrogrupoodefenderam

porconsiderarem,referindo-seaosensinamentosdeBuda,quenãovaliaapena mencionar uma falha desse tipo. Cada uma das partes estavaconvencida de que tinha razão e se recusava a ceder. A discórdia foi tãoacentuada que perturbou perigosamente a harmonia, para não dizer aunidade, do mosteiro de Kausambi. O momento era grave: os mongesestavam tão empenhados em defender sua posição que partiram para aagressão ísica.Seusconfrontos,queàsvezessedavamnafrentedos iéisleigos,causaramopiorefeitopossível.AdisputaqueexplodiuemKausambifoitalqueSakyamunifoiobrigado

a ir até lá pessoalmente para acalmar os espíritos... Não era o costume,mas, daquela vez, ninguém o escutou! Um monge teve até a ousadia dedizer a ele: “Que omestre do Darma tenha paciência, que se sente aqui,distante e tranquilo. Esta luta, discussão, discórdia é de nossa conta 4!”.A lito pelo comportamento de seusbhikkhus, o Tathagata abandonou omosteiro e foi se retirar sozinho na loresta de Parileyyaka, próxima àcidadedosvatsas.Ocorridonoperíododesuavidainteiramentededicadoao desenvolvimento daSangha, esse retiro solitário realmente foi umaexceção. Longe das disputas humanas, o sábio então experimentou aserenidadedanatureza.Duranteessacurtapausa,conta-sequeseuúnicocompanheiroeservofielfoiumelefante...afastadodeseuscongêneresquetinham se tornado insuportáveis. Dezoito meses depois, Buda seencontrava em Jetavana quando osmonges de Kausambi solicitaram suaajuda. A disputa não tinha acalmado, muito pelo contrário, passou a serurgente colocar um im nela: cada vez mais, leigos perturbados pelocon litoquedividiaosmongesrecusavam-sealhesdaresmola.Dessavez,omestreconseguiurestabelecerapazentreos bhikkhus fazendocomquecadaumadaspartesreconhecesseseuerroeseperdoasse.Aordementãofoi inalmenterestabelecidaemKausambi.Mas,umbelo

dia, omonge Sagata, depois de aceitar uma bela quantidade de vinho depalmeiracomoesmola, caiudesfalecidodebêbadonarua!E issoquando,em todas as outras cidades, os monges eram admirados pelos cidadãodevido a sua conduta, “sorridentes e corteses, verdadeiramente felizes,calmos e plácidos, que vivem de maneira frugal e cujo espírito é tãoinofensivocomoodeumacorça5”.Decididamente,acomunidademonásticadeKausambinãoparavadedes igurar a crônica. Felizmente, esseúltimoescândalo logo encontrou uma solução: Buda não tardou em decretar aproibiçãoabsolutadoálcoolparaosbhikkhus.Existem ainda alguns outros lugares que podem se orgulhar de ter

acolhido Buda, mesmo que apenas para uma curta visita. Conta-se queCampa, a capital da região de Anga, na direção do leste, teria sebene iciadodavisitadosábio.EapesardeSakyamunitertidoohábitodenãoseaventurarparamuitoalémdabaciamédiadoGanges,certaslendasdão conta de que o Tathagata teria efetuado, no 12o ano depois daIluminação, uma longa viagem até a Taxasila, também chamada deGandara.Naturalmente,asperegrinaçõesdeBudanãodeveriamselimitarapenas

ao mundo dos homens... De acordo com uma lenda famosa, no 16o anodepoisdaIluminação,oAfortunadoteriasubidoaocéudos“TrintaeTrês6”para ensinar a Lei aos deuses. Ele teria permanecido lá durante os trêsmeses que dura a estação das chuvas. Omestre então teria aproveitadopara instruir suamãe,Maya, que, depois damorte prematura, renascerasob a forma de uma divindade. Para retornar à terra, o Tathagata usouentão uma escada tripla de cristal e de pedras preciosas especialmentecriada pelos deuses. Sob uma chuva de lores, ele foi acompanhado porlndra e Brahma, um segurando um guarda-sol e o outro, um leque paraespantarmoscas. Nem é necessário dizer que o retorno do sábio para omeio dos homens, nas proximidades da cidade de Samkasya, a oeste dovaledoGanges,nãopassoudespercebido!Para converter as regiõesmais afastadas, Budanem sempreprecisava

sedeslocar:àsvezes,bastavaesperarqueaspessoasfossematéele.Comopassardotempo,orenomedomestrede fatose tornoutãograndequese estendeu paramuito além das áreas que elemesmo percorrera. Essapopularidadelongínquaempartesedeveuaosmercadoresdecaravanas,queseconverteramemgrandesnúmeros.Tambémé frutodas iniciativasde algunsbhikkhus especialmente motivados, que não tinham medo depregaradoutrinanasregiõesmaisselvagens.Entre eles, Punna com frequência é citado como exemplo. Depois de

certo dia ter ouvido falar da Lei, este próspero comerciante, estabelecidoem um porto do golfo de Bengala situado nos limites da região dosSunaparantas, não hesitou em tomar o rumo de Sravasti para receber ainstrução de Buda. Depois de ter sido ordenadomonge, Punna declarouquedesejavapartirparaensinaraleiaossunaparantas.Duvidoso,Budaoacautelou contra a rudeza e a violência desse povo selvagem, quecertamente estaria pouco disposto a receber a Doutrina. Punna retrucouqueeraexatamenteporelesaindaserembárbarosquedesejavamostrar-lhes o caminho do Conhecimento. Quando o Afortunado tentoumais uma

vez dissuadi-lo, dizendo-lhe quepoderia arriscar a vida na empreitada, omonge então a irmou que estava pronto para morrer pela Lei.Impressionado por sua abnegação, o mestre deu todas as felicitações aPunnaperantea assembleiadebhikkhus.Depoisde terconvertidoalgunshabitantes da região remota de Sunaparanta e de construir ummosteiroemmadeiradesândalo,Punnaenviariauma loraBudaparaconvidá-loavisitar a pequena comunidade. Conta-se que o Iluminado, viajando pelosares,foiatéolocalparaumacurtavisita.Eentãosepassouumdiaemaisum,eBudarecebeuummensageirodo

reideUjjeni:eleoconvidavaa lhedarseuensinamento.Masoemissáriodosoberanoconverteu-seimediatamenteaoencontraroTathagata.Onovorecruta se revelou um pregador particularmente talentoso. Buda entãorecusouoconvitedorei sobopretextodequeeste tinha lheenviadoumdiscípulo absolutamente apto a divulgar sua doutrina. Depois de anos eanosdepregaçãoentreosváriosmosteirosquea SanghaocupavanovaledoGanges,seráqueomestreestavacomeçandoaficarrelapso?

Ajanta,1819Nooestedapenínsulaindiana,nodia28deabril,umpequenogrupode

soldados britânicos avançava a cavalo pela cadeia dosmontes lndhyadri,nos con ins da província de Berar. Depois de passar pela gargantaselvagemdeWaghora, os cavaleiros então começarama ladear o rio queserpenteia entre os rochedos. Ao erguer os olhos ao acaso na direção dafalésiaqueseavultavasobreeles,ocapitãoJohnSmith,da28acavalariadeMadras, reparou que, nametade da altura do paredão, a rocha era todasalpicadadegrutas.Curioso,eledecidiu iraté ládarumaolhadaemumadessasestranhasescavaçõescujaabertura,vistadebaixo,pareciatersidotalhada pela mão do homem. O capitão apeou e logo encontrou umaescadinha estreita, esculpida na rocha, que permitia subir até lá. Quandochegouaopatamar,eledeualgunspassosparadentrodagruta,masnãoprosseguiucomsuasinvestigações.JohnSmithsecontentouemgravarseunomeeadataemumdospilaresdaentradaelogodesceuparasejuntaraseuscompanheiros.Olocalmisteriosoretomouseusilêncio...AdescobertadeSmithsóserviu

paraalimentarashistóriascuriosasqueoso iciaisdocírculomilitardoRajtrocavamentresi.Fevereiro de 1824. O tenente James Alexander, da 16 a companhia de

lanceiros,tinhatiradoalgunsdiasdefolga.Orapazeraum shikari,grandeamante da caça. Com apelido de “vale do tigre1”, a garganta deWaghoralhe parecia um local promissor. Antes de sua partida, seus camaradas oacautelaram contra a principal ameaçanas lorestas perdidas do coraçãoda Índia:osbhils.Excelentescaçadores,essesnativos tinhamareputaçãodeagircomabsolutahostilidadeemrelaçãoatodosaquelesqueousavampenetraremseuterritório.Maso jovemtenentenãoseabalavaquandoaquestão era alimentar sua paixão pela caça ao javali, aosambhar, aoleopardoe,principalmente,aotigre.Acompanhadodeumguiaededoissepoys,oo icialtomouocaminhode

Waghoraemumabelamanhã.Muitobemarmadoscomsabres,pistolaselanças,osquatrohomensavançavamcomprudênciapelaselva.Quandoopequeno grupo vigilante chegou à embocadura da garganta, um assobiobaixoveiodaesquerdaedepoisserepetiunafalésiaoposta.Eracertoqueos bhils estavam preparando uma emboscada... Apesar do medo, o guiacontinuou avançando com bravura. Alguns minutos depois, Alexanderavistou com discrição vários homens que os observavam através dos

rochedos. O jovem britânico constatou que os bhils, de baixa estatura epeleescuraequasenus,armadosdearcose lechasenvenenadas, faziamjusasuaterrívelreputação...Como coraçãobatendo forte, osquatrohomenspararamde avançar e

retraçaram seuspassospelo leito do rio. Contra todas as expectativas, osbhils se contentaram em apenas observá-los. Abrindo caminho entre asmoitas e os pedregulhos, Alexander e seus companheiros inalmentechegaram sem maiores percalços ao interior da garganta, que tinha aforma de uma ferradura de várias centenas demetros de comprimento.Sempreatentoàpresençadosbhils,Alexanderexaminoucomatençãoosparedõesdagarganta.Foiaíquereparounasdezenasdeaberturasqueseespalhavamemlequeportodaaextensãodafalésia...A curiosidade levou o pequeno grupo a escalar até as cavernas

estranhas cujas entradas, às vezes enquadradas por arcos ou pilastras,claramente tinham sido entalhadas na pedra. Algumas estavambloqueadas por desabamentos, mas outras pareciam acessíveis. Logodescobriramquecadaportaeradiferenteemtamanho,formaedecoraçãoesculpida: os motivos vegetais às vezes davam lugar a representaçõeshumanas e animais. A arqueologia não era exatamente a atividadepreferidadocaçador,mas, fascinadopelo lugar,ele tomouaresoluçãodesaber mais... Munidos de tochas improvisadas, os integrantes do grupopenetraramcomprecauçãonassalassubterrâneas.Centenasdemorcegosestavam pendurados no teto: cegados pela luz, de repente alçaram voocom a chegada dos visitantes e os envolveram em um turbilhãointimidador.Nopiso,marcasdepegadas edejetos indicavamqueo lugarera assiduamente frequentadopormacacos e chacais, tigres e ursos...Noandar superiordeumadas grutas, opequenogrupoencontrouas cinzasde uma fogueira abandonada havia pouco e, em um canto escuro doaposento...umesqueletohumano.Valia a pena vencer omedo: os exploradores constataram que, apesar

de algumas grutas serem pequenas e insigni icantes, outras se pareciamcomamplascapelasemquebudasimponentesestavamentronados.A luztrêmula das tochas revelou também, em algumas paredes, afrescoscoloridosmagní icos.Quandoatardechegouao im,obritânicoesqueceracompletamenteque tinha ido até lápara caçar.Quando tomouo caminhode volta, oshikari Alexander estava de mãos vazias, mas com a irmeconvicção de ter descoberto um local extraordinário, uma espécie demosteiro enorme que tinha permanecido no esquecimento dos homensduranteséculos–quedizer,aforaos“assustadores”bhils,ofcourse.

ApesardeignorarqueocapitãoSmithoprecedera,ojovemtenentenãoestava enganado em sua avaliação. Algum tempo depois, especialistascon irmaram que o sítio de Ajanta – rebatizado destamaneira devido aonomedovilarejovizinho–formadefatoummosteirobudistaexcepcionalpor seu tamanho e sua datação antiga. Melhor ainda, depois dasescavações de Ajanta, foi constatado que o lugar abriga o mais beloconjunto de arte pictórica da Índia antiga já descoberto. Incluída desde1983 na lista do Patrimônio Mundial da Humanidade da Unesco, Ajantatemnototal29grutasdeorigembudista,sendoquetrêsestãoinacabadas.Entre elas, é possível distinguir com clareza dois tipos de escavação: oschaityas, santuários que contêm uma estupa no fundo, e osviharas, os“mosteiros” propriamente ditos, que comportam celas. As cavernas sãoigualmente representativas de dois períodos arquitetônicos quecorrespondem às duas grandes escolas do budismo: asmais antigas, emqueadecoraçãoéausteraeondea iguradeBudanãoestárepresentada,correspondem ao Theravada; asmais recentes, de decoração abundante,estãoassociadasaoMahayana.Apesardeoconjuntodegrutasformarumaimagem de capela visto do lado de fora, ele não foi um monumentorupestreconcebidoemsuatotalidadedesdeoinício.Apesar de o local ter sido desenvolvido até o século VIII, icou

estabelecidoqueosprimeiroschaityaseviharasdeAjantaforamfundadospor uma pequena comunidade de mongestheravadin no século II a.C.Portanto, Ajanta faz parte do grupo limitado dosmosteiros budistasmaisantigos descobertos na Índia até hoje: de fato, apesar de a arqueologiaindiana ter revelado a existência de vários sítios budistas desde o séculoXIX,nenhumdessesvestígiosé contemporâneodavidadoBudahistóriconemdosprimeirosséculosdaSangha.Deacordocomostextosmaisantigos,existiamdoistiposdeinstalações

monásticas na época do mestre. Aavasa se resumia a um pequenoacampamento improvisado,compostodealgumascabanasqueosmongesconstruíamcomasprópriasmãosparaseabrigarduranteumatemporadade monção; depois disso, era abandonado. Oarama era, por outro lado,uma residência grande, feita para perdurar, a exemplo do Bosque dosbambusemRajagrhaoudoparquedeJetavanaemSravasti.Presenteadascomo oferendas por devotos leigos ricos, osaramas eram mantidos egeralmentesustentadosaaltopreçopelosdoadores.Mas não existe indício material que permita, até hoje, con irmar a

existência de amplos estabelecimentos monásticos na época do Buda

histórico.Apesardeoshagiógrafosafirmaremqueosaramasestabelecidospelo sábio compreendiam “salões de assembleia, aposentos com lareira,armazéns,caminhospavimentados,poços,salasdebanho2”,osarqueólogosnão encontraram nenhum vestígio disso. As residências budistas maisantigasdescobertasatéhojesãosítiosrupestresquedatam,namelhordashipóteses, do século II a.C. Mas é verdade que existem alguns vestígiosbudistas um pouco mais antigos: além dos famosos éditos de Ashokagravados na pedra, encontraram-se também restos de estupas erguidaspelo imperadornoséculo IIIa.C.Masestessãomonumentosdeculto,nãoresidênciasmonásticas.Tudoissolevaapensar,portanto,que,noâmbitodosaramas,omestree

seusbhikkhus só dispunham de moradias bastante sumárias, talvezconstruídasapenascomousodebambuscobertosdefolhagenseargila–a exemplo do que se vê até hoje nas áreas rurais remotas da Índia. Emrelação aos salões de assembleia e outros edi ícios monásticos de bomtamanho, deviam ser construídos de madeira. E, forçosamente, tudodesapareceuaolongodosséculoscomaaçãodoclima...Noentanto,apesardeosítiodeAjantanãosercontemporâneodeBuda,

ele oferece uma evocação preciosa ao olhar, por mais longínqua efragmentadaque seja, daorganizaçãomonástica fundadaporSakyamuni.Este testemunho insubstituível sobre o budismo antigo se deve àconservação excepcional dos sítios rupestres monolíticos. Assim comooutrosestabelecimentos trogloditas– tais comoBedsa,BhajaouKarli –,ocomplexo arquitetônico de Ajanta permite apreender melhor a vidacotidiana dos monges no início daSangha. Ele também oferece aoportunidade de reconstituir as formas arquitetônicas dos primeirosedi íciosmonásticos: segundo especialistas, a organização das instalaçõesrupestressebaseianasdosmosteirosconstruídosacéuabertonamesmaépoca,mas certamente também de acordo com uma tradição já bastanteantiga.AsgrutasdosítiodeAjanta reproduzemde fatoaarquiteturadosmosteiros de madeira de um modo particularmente impressionante: apedrachegaaseresculpidademodoaexibirdetalhescomoporexemploasponteirasdasvigaseospregos.Nasparedes internas,assimcomonasfachadas, janelas e sacadas às vezes são incluídas em imagens realistasparaenganarosolhos.Adisposiçãoeosadornos internosdasviharas tambémsãotestemunho

deumaantigatradiçãoquetalvezremonteaosprimórdiosda Sangha:nasdoperíodoTheravada, encontra-seumaampla sala coletiva,quadradaou

retangular,dedicadaareuniõesouassembleiasdosbhikkhus.Precedidadeuma varanda sustentada por colunas, ela é rodeada em três lados porpequenas celas de tamanho igual, destinadas ao alojamento dosmonges.Fazendoasvezesdecamas,doisnichoscomfrequênciasãoesculpidosnaparede rochosa. Já no que diz respeito às viharas do período Mahayana,mais tardias, elas reproduzem com amesma idelidade outros elementosdedecoração,comocolunasnosencostosdecabeça.O schaityas de Ajanta foram concebidos de acordo com um princípio

idêntico.O grande santuáriodoperíodoTheravada – ou a escavaçãoqueexibe o número 10 – tem inspiraçãomuito próxima à da arquitetura demadeira:deformatoabobadado,possuinavearredondadacomoumberço,que imita o vigamento, com suporte de pilares. A adição de umchaitya àresidência monástica, fenômeno ainda desconhecido no tempo de Buda,apareceumuitocedonahistóriadobudismo.Depoisdamortedomestre,afunção dos mosteiros de fato evoluiu com muita rapidez: antes simpleslocais de retiro, osaramas se transformaram também em local de culto,comestupaserelíquiasdestinadasàadoraçãodosfiéis.OmododevidadosmongestrogloditasdeAjantadeviaseguirasregras

davidaprescritaporBuda:nemascéticademais,nemconfortáveldemais.Masnãoésóisso.SeguircomempenhooNobreCaminhoÓctuplosupunhao compromisso pessoal total que exigia constantemente o domínio semfalhasdocorpoedocoração,dapalavraedoespírito:“Passoapasso,peçaa peça, hora a hora, aquele que é sábio deve saber lavar sua pessoa dequalquer impureza,damesmamaneiraqueumourivespuri icaaprata 3”,ensinouomestre.Éporissoqueavidacotidianadosbhikkhuserarestritapor regras muito numerosas. Agrupadas no Vinaya Pitaka, o cesto dadisciplina, elas teriam sido elaboradas pelo próprio Sakyamuni emresposta a circunstâncias determinadas. Ainda assim, algumas delas comcertezaforamadicionadasposteriormente,naocasiãodosconcílios.Sejacomofor,desdeoséculoIIa.C.,ohoráriodosmongesdeAjantaera

certamente bem cheio e muito regrado... Todos os dias, os bhikkhus selevantavamcomaaurora, acordadospelo cantodospássarosampli icadopelafalésia.Aodeixarsuascelas,elesdesciamatéorioquecorrenofundoda garganta para fazer suas abluções. Da mesma maneira como osprimeirosdiscípulosdeBudadeviamcuidarde simesmos, osmongesdeAjantaselavavamdemaneiraconscientetodasasmanhãseescovavamosdentes com regularidade, com a ajuda de um galhinho deneem. Entreoutros raros objetos que a regramonástica os autorizava a possuir, eles

tinham uma navalha para manter a cabeça raspada. Uma vez limpos esecos, osbhikkhus colocavam as vestesmonásticas triplas. Amarrado porcima da veste e da roupa de baixo, o manto consistia em uma faixa detecido que era enrolada ao redor do corpo: passando embaixo do braçodireito, uma ponta era colocada por cima do ombro esquerdo. Depois, aosubirdevoltaaomosteiro,cadaumdeleslevavaumaânforacheiadeáguafresca que tinha tomado o cuidado de iltrar com um lenço. Reunidos nosalãodomosteirorupestre,osbhikkhusentãoseentregavamàmeditação,tal como tinha sido praticada e ensinada por Buda. Os exercíciosmeditativos permitiam puri icar o espírito por etapas, para atingir osjhanas,osníveisdeconcentraçãoprofunda.Ameditaçãodefatorepresentao núcleo das práticas monásticas por ser o caminho real que conduz àcontemplaçãodaimpermanência,ourealizaçãodoestadodearahant.A manhã ainda não tinha avançado muito quando o pequeno grupo

partia em direção à cidade vizinha para recolher o alimento do dia. Opedidodeesmolacotidianotomavatempo.Caminhandoem ilaindiana,osbhikkhus precisavam prestar atenção para não “destruir sementes ouplantas4” pelo caminho. Ao chegar a seu destino, eles se deslocavam empassos lentose iguaisatéaportadecadacasaparaapresentarsuatigeladeesmolas,semproferirnenhumapalavraecomosolhosvoltadosparaochão.Devoltaaomosteiro,cadaumcolocavasuacoletadodianosalãocentral

davihara.Frutaselegumesdaestaçãoemabundância,peixesecarnesdevezemquando–sobacondiçãoexpressadequeosanimaisnãotivessemsido abatidos especialmente para eles – eram então divididos em partesiguais.Aúnicarefeiçãododia,semprefeitademaneiracomunitária,deviaocorrer antes domeio-dia. Apenas o ruído das quedas-d’água que caíamdoaltodafalésiaperturbavaosilêncioquereinavaduranteoalmoço.Cadaum dava conta de seguir com rigidez a regra monástica, que proibiaescolher ou separar os alimentos, levar a tigela diretamente à boca eutilizar qualquer outro instrumento que não fosse a mão direita parapegaracomida.Apesardeosmongestiraremtempoparaumasestacurta,orestododia

não deixava lugar para o ócio. Além da meditação, que era obrigatóriopraticar sempre, não faltavam atividades – mesmo que seu ritmoprecisasse seguir de acordo com uma lentidão prudente. Para começar,havia necessariamente algumas ocupações domésticas, como varrer ascelas ou costurar: os monges eram autorizados a ter uma agulha parafazer a manutenção de suas vestes. Mas o mais importante eram as

pregações nos arredores e a recepção dos iéis leigos que vinham serecolher no santuário, sem esquecer a recitação das palavras domestrefalecido...Lembremosque,noséculoIIa.C.,acópiaouoestudodostextoscanônicosanotadosemfolhasdepalmeiraaindanãoexistia.Atomadaporescritodossuttassóiriaseefetivarumséculomaistarde.Por im,aampliaçãodocomplexoreligioso,quenaépocasócontavacom

cinco ou seis grutas, também representava tarefa importante. Durantehoras, opequenogrupodemonges escavavana falésianovas estruturas,começando do teto e descendo até o piso, de acordo com a técnica emvigor. Ou talvez eles apenas precisassem dar orientações aostrabalhadores especializados e remunerados pelos discípulos leigos. Oresultado é que, em seu apogeu, ovihara deAjanta era capazde receberdiversascentenasdemonges.Com regularidade, uma cerimônia sóbria acontecia para animar o

cotidiano dosbhikkhus de Ajanta. Auposatha se dava no 15o dia domêslunar.Nessaocasião,osmongesdeviam jejuare se juntarpara rea irmardemaneira solene suadeterminação em seguir a Lei deBuda.A reuniãopodia terminar com uma con issão pública: depois que o mestre decerimônia recitava todas as regras de disciplina, os monges eramconvidados a declarar se haviam desrespeitado alguma delas, porque“aquelequecometeuumaofensaqueaindanãofoireveladaequedesejaser puri icado deve confessar. Ter confessado será um alívio para ele 5”.Considera-se que Buda tenha sido o iniciador dessas sessões quereforçavamperiodicamenteaharmoniaeafunçãodaSangha.A chegada de um novo recruta era sempre um acontecimento. Mas a

integração no seio da comunidade monástica era um longo processo. Deacordocomaregraestabelecidapelomestre,aentradanomosteirocomonoviço não podia acontecer antes dos oito anos. Depois de ter a cabeçaraspada e vestir o hábito recebido de sua família, o jovem postulante setornavanoviçoaodeclarar refúgiona JoiaTríplice–oBuda,oDarmaeaSangha – perante um monge que tivesse aceitado ser seu preceptor.Inscrevendo-se na tradição indiana doguruchela, “mestre-discípulo”, esteteria a incumbência de ensinar a ele, em profundidade, a doutrina deBuda. Um segundobhikkhu era designado para inculcar nele o conjuntodas regras da vida monástica – primeiro a castidade e o abandono dequalquerposse,assimcomoaesmolacomooúnicomeiodeobteralimento.Seguem-se as proibições dematar, de roubar, dementir (principalmenteingir teratingidooestadodearahant),debeberálcool,decomerentreo

meio-dia e o amanhecer do dia seguinte... e tambémde se sentar emumassento confortável ou de se deitar em leito luxuoso, de assistir aespetáculos de dança, canto ou música, de aceitar doações em ouro ouprata, de usar adornos ou joias, de usar maquiagem, perfume ouunguentosetc.Quandosuainstruçãochegavaaofim,comaidadedevinteanos,ojovem

noviçoseapresentavamunidodeumatigeladepediresmolaperanteumaassembleia de dez monges que pronunciavam sua ordenação.Abandonandoosobrenome,ojovemsetornavaentãoum“ ilhodeBuda6”.A data de seu novo “nascimento” era registrada porque, pelomenos nosprimórdiosdaSangha,oqueestabeleciaahierarquiaentreosmongeseraadatadaordenação.Durantedezanos,o jovemmongepermaneciasobatuteladeseusdoispadrinhos,antesdeassumiroencargo,porsuavez,daformaçãodeumnoviço.Decretadapelomestrelogonoinícioda Sangha,aobrigaçãodosmonges

delevarumavidacompletamenteitinerantejásedesfezlogodeinício.Emprimeiro lugar, porque a suspensão dos deslocamentos durante os trêsmeses damonção se impunha do ponto de vista prático: todos os outrosmovimentos de ascetas faziam a mesma coisa. Em seguida, porque oestabelecimento progressivo dosaramas sedentarizou um pouco mais acomunidade.De acordo com as diretrizes de Buda, a ixação dessas residências

monásticasdeveriaresponderacritériosextremamenteprecisos:pertodeumafontedeágua,massituadasemelevaçãoparaquenãoseinundassem,afastadas do barulho dos homens para favorecer a meditação, maspróximas a uma cidade para ser possível pedir esmolas, e, inalmente,visíveisdelongeparapoderematrairdevotos.ÉmanifestoqueosmongesquefundaramAjantalevaramperfeitamenteemcontaoscritériosditadospelo sábio; omesmo vale para os outrosmosteiros rupestres criados namesmaépocanessaregiãodoDeccanocidental.Poroutro lado,épossível sesurpreendercomaquantidadedecentros

monásticos nessa pequena parte do subcontinente indiano: se nosdebruçarmos sobre um mapa de locais budistas da Índia antiga,constatamos que a região de Ajanta – hoje o estado de Maharastra –encontra-sedefatoaquasemilquilômetrosdedistânciadovaledomédioGanges, onde aSangha apareceu pela primeira vez. Este fenômeno naverdade está diretamente ligado à existência, na Índia antiga, de umgrandeeixodecomunicaçãoque ligavaas terrasdoGangesà costaoeste

do país. Essa rota transversal, na ocasião percorrida pelos bhikkhusmissionários, eramuito frequentada pormercadores que, como já vimos,estavamentreosprimeirospromotoresdobudismo.Portanto,a fundaçãodemosteirosesantuáriossemultiplicouaolongodessarotadecaravanaetambém em suas principais paradas, como atestam os grandes centrosbudistas de Bharut e de Sanchi. Sem o apoio dosmercadores, discípulosleigos exemplares e doadores ricos, a Sangha sem dúvida não teria tidoexpansãogeográficaedesenvolvimentoassimtãorápido.Assim comoaconteceu comosmonges, a função e adisciplinados iéis

leigos foram ixadas muito cedo pelo mestre. Osupasakas deviam secomprometer em seguir as cinco regrasmorais fundamentais: nãomatarseres vivos, não roubar, não se enfeitar demaneira luxuosa, nãomentir,nãoabsorverbebidasembriagantes.Alutacontraaspaixõeseosvíciossóera a primeira etapa no caminho da Iluminação, é verdade, mas eraindispensável. Não esqueçamos que, segundo o budismo primitivo, asQuatro Nobres Verdades não se aplicavam diretamente aos leigos, e abuscadoestadodearahanteraprivilégioapenasdosmonges.Osupasakassópodiamesperarrenascer,aolongodesuasvidasfuturas,emumestadomaispropício à Iluminação.Ao se conformar comessas regrasmorais, osdiscípulos leigos puri icavam seu carma para se tornarembhikkhus emuma existência ulterior. Posteriormente, o Mahayana viria a criticar oelitismo, até mesmo o egoísmo, do Caminho dos Antigos, e, para sediferenciar, o Grande Veículo daria ênfase ao ideal do bodisatva – serdesapegado de tudo e, por compaixão, renunciar a seu próprio nirvanaparaguiarseussemelhantesnocaminhodaIluminação.No início do budismo, os leigos se contentavam, portanto, em seguir os

Cinco Preceitos que lhes permitiam se comprometer com sua libertaçãofutura dosamsara. Paralelamente a essas regrasmorais, que salientam aabstenção, a prática das virtudes ativas – generosidade, compaixão,desapego, controle de si mesmo e equanimidade – é vigorosamenterecomendada, de modo que o iel leigo é capaz de enfraquecer suaspaixõeseseusvíciosaocultivarprecisamenteasvirtudescontrárias.A ética budista não se baseia em obediência cega. Longe de ser

dogmática, ela se apoia nos atos voluntários de cada um, cujos frutospodem se transformar em recompensa, para osmelhores, ou em castigo,para os piores. Entre as práticas virtuosas ao alcance dos upasakas, daresmolaaosmongesvemàmente.Atoprimordialparaquemdesejaobterméritos, isso também produz resultados imediatos: em troca das

oferendas, osbhikkhus de fato dão aos iéis leigos um ensinamento,personalizado se necessário, que os ajuda a seguir e forti icar suasiniciativas.Arelaçãoentreleigosereligiosos,assim,baseia-senaoferendarecíproca,materialparaosprimeiros,espiritualparaossegundos.Nessas condições, compreendemos por que osvaishyas, aqueles que

pertencemà classe ricadosmercadores, seduziram-sepelobudismocomrapidez. Ao mesmo tempo em que o sistema bramânico só lhes conferiapapelsecundário,obudismooscolocavaempédeigualdadecomascastasmaisaltase,aomesmotempo,permitiaqueeles investissemseudinheirona perspectiva de uma espécie de “retorno do investimento” no domínioespiritual.Seacreditarmosnaliteraturacanônica,Budaempessoateriaseesforçadoparaganharaadesãodosmercadoresricosaoterocuidadode,por exemplo, dar-lhes conselhos especí icos e bem precisos, como porexemplo conservar uma reserva de dinheiro para as urgênciasimprevistas, evitar o endividamento e ter prudência em seusinvestimentos. De maneira geral, o mestre não se incomodava nem umpoucoemabordarasquestõesrelativasaodinheiro:assim,emumfamososermão sobre a moral dos leigos, Buda explica que não se devedesperdiçarasriquezascomálcool,saídasnoturnasoujogosdeazar.Estabeleceromaisrápidopossívelrelaçõesclaraseharmoniosasentrea

SanghaeopodertemporaltambémfoiumadasgrandespreocupaçõesdeBuda. Formado em política e direito por conta de sua educação comokshatriya,denobreguerreiro,Sakyamunicertamentetinhaconsciênciadeque, sem o apoio do poder em exercício, sua ordemmonástica não teriaoutro futuro além de permanecer como pequena seita obscura entretantasoutras.Os laçosprivilegiadosqueestabeleceucomosdoismaioressoberanosde seu tempo foramdeterminantes: eles forneciam, aomesmotempo, promoção e proteção à Sangha, na mesma medida em que eramfonte de oferendas materiais que não deviam ser negligenciadas. Aindaassim,nessarelaçãoestreita,cadaumadaspartessempreconservousuaindependência. Apesar de o sábio às vezes ter exercido o papel deconselheirojuntoaosreisBimbisaraePrasenajit,elespermaneceramcomo controle total no exercício de seu poder. Demaneira inversa, a Sanghasempreconservousualiberdade.Na Índia, aliás, o budismo nunca realmente teve a pretensão de se

tornarreligiãodeEstado.Mesmonaépocadeseuapogeu,soboreinadodeAshoka,nãoeraquestãoimporatodosadoutrinadeBuda.Umainscriçãodescoberta no estado de Bihar é a melhor prova disso: por ela somos

informados de que osmosteiros rupestres de Sudama e de Lomas Rishiforam escavados a pedido do imperador, com o objetivo de seremoferecidosaumaseitaconcorrente,adosajivikas.DotempodosKushana,outros protetores do budismo, as moedas cunhadas pelos reis mostramBudaemcoabitaçãocomZeus,Shivaedivindadespersas.Posteriormente,sob o reino dos Gupta, que eram hindus, o budismo também não adotoupostura de oponente oprimido ou vingativo. Em vez disso, a religiãoexperimentou um formidável esplendor cultural: foi nessa época, porexemplo, que o mosteiro de Nalanda se tornou a maior universidade domundobudista.Emvárioslocaisreligiosos,aexemplodasgrutasdeEllora,o sbhikkhus viviam junto com ascetas hindus e jainistas. Na história darelaçãoentreobudismoeopodertemporalnaÍndia,apenasadinastiadosPala, que reinoudo séculoVIII aoXII emBengala, aparece como exceçãopelocarátermaisexclusivodesuaadesão.Apesardeomestrenãoterprocuradoimporsuadoutrinacomoreligião

o icial – por intermédio dos soberanos com quem ele tinha travadorelaçõesexcelentes–,elesempreteveocuidado,demaneirarecíproca,depreservar a liberdade da Sangha perante o poder temporal. A ordemmonástica primitiva se conformava a seu próprio regulamento e nadamais:osbhikkhus,aliás,nãoeramobrigadosaseguiraleisecularemvigornoseiodosreinosemqueviviam.Entreoselementosdocânonepáliqueatestam essa autonomia jurídica, podemos citar por exemplo a instruçãodada por Bimbisara a seus o iciais para que não interviessem contra osmongesbudistasque tivessemcomportamento foradas regras.Umoutrocasomencionaahistóriadeumamulheradúltera:condenadaàmorteporumconselhodatribodoslicchavis,elafugiuparaSravasti,ondesetormoubhikkhuni. A partir de então, o rei de Kosala iria protegê-la dasperseguiçõesexigidasporseumarido.En im,apesardeBudaterestabelecidorelaçõesmuitoprivilegiadascom

as duas grandes potências monárquicas do vale do Ganges – Magada eKosala –, nada indica que ele apreciasse particularmente esse tipo deregimepolítico.Nãoéverdadequeomestreorganizoua Sanghadeacordocomomodelodaspequenas “repúblicas”aristocráticas–asgana sanghasou “Assembleias dos Iguais” – que ele pôde estudar de muito pertodurantesuajuventudeemKapilavastu?No âmbito do budismo antigo, não existia chefe único, a direção é

colegial. Ela reúne monges idosos – que estavam na comunidade haviamuito tempo – emonges que atingiram o estado dearahant. As decisõesimportantes, tomadasoriginalmentepelapequenacomunidademonástica,

mais tarde seriam con iadas a um conselho eleito em que cada membrotinhaodireitodeseexprimir.Nãohaviavoto,masadiscussãoduravaatéque se chegasse a um consenso, sendo que o silêncio geral valia aaquiescência.Talvez por ter nascidokshatriya e ter sido educado como tal, Buda, em

todocaso, revelou-seum“líder” semcomparaçãoquesouberapidamenteinstitucionalizaraorganizaçãoeodesenvolvimentodacomunidadebudistacomo um todo. Apesar de a maior parte dos discursos dizerem respeitoparticularaosmonges,omestrenãofoinegligenteemrelaçãoaopapeldosleigosnoâmbitodaSangha.Suavontadeecapacidadedeassociar,desdeaorigem,os religiososeos leigosno seiodomesmomovimentodistinguemclaramenteacomunidadefundadaporSakyamunidasoutrascorrentesdeshramanasdesuaépoca.Apesardeosbhikkhus compartilharemseu idealde renúncia com vários outros ascetas, eles estabeleceram laços muitoestreitos com os discípulos leigos. Esses laços não eram inconsequentes:mesmoquandoo sábio ainda era vivo, osparquesoferecidos à ordemsetornavam centros monásticos rudimentares, porém estáveis, regidos porregras cada vez mais precisas. De nômade, a Sangha vai se tornandoprogressivamente sedentária. E, de desprovida, vai se tornando cada vezmais rica... A partir do século I d.C., a ordem budista passou a serproprietária de verdadeiros domínios que incluíam prédios, terras eescravos. Os mosteiros mais importantes recebiam oferendas tãosubstanciosas em natureza, mas também em ouro, que as centenas debhikkhus que neles residiam já não precisavammais sair para pedir seualimentoacadamanhã.Os afrescos de Ajanta, executados entre os séculos I e VI, são

testemunho desse “relaxamento” progressivo do budismo monacal. Aausteridadedoquadrodevidadosbhikkhus,consideradacomonecessáriapelo mestre e imposta no seio dasviharas durante vários séculos,visivelmente tinha perdido terreno: ao lado dos retratos de bodisatvas edascenasdavidadeBuda,épossíveligualmenteadmirarnasparedesdomosteiro imagens sensuais e re inadas de mulheres que maquiam oslábios,dançarinasquebalançamasancasemúsicosgraciosos,assimcomouma sucessão de cenas espalhafatosas que expõem com força total osdetalhes da ostentação da vida principesca... Ao realizar essas obras-primasinestimáveisparaaarteindiana,osbhikkhusdeAjantanempodiamimaginarqueestavampreparandoarmasparaseusdetratores:chegariaodia em que os brâmanes não pensariam duas vezes antes de apontar o

dedo para o luxo, se não a luxúria, que terminava por reinar ali e nosgrandesmosteiros budistas da Índia. Essa crítica também faria parte dosmotivosparaaquedadobudismoemseupaísdeorigem.

RivalidadesAdifusãodaLeientãoseestendeuportodaa“RegiãodoMeio1”,maso

sucessodapregaçãodeBudasetornoutãodeslumbrantequeelepassouadespertarcadavezmais inveja.Asrivalidadesnasceramprimeiro foradaSangha, entre os outros responsáveis religiosos. Naquele momento, alémdos brâmanes, outros shramanas, principalmente, começaram a seressentirdorenomedoTathagata.Um certo dia, quando estava em Jetavana, perto de Sravasti, Buda foi

informado de que tinha sido convidado a debater publicamente com seismestresdedoutrinas rivais, todos “idosos e veneráveis 2”. O rei deKosalaem pessoa, Prasenajit, tinha aceitado arbitrar o debate entre os líderesespirituais. Uma ampla sala de audiência chegou até a ser erguidaespecialmente para o confronto, em terreno neutro, em algum lugar aoestedarotaqueligavaoaramaàcapitaldoreino.O público se apertou para assistir ao evento. Pela eloquência de seu

discurso, Buda se sobressaiu com facilidade perante seus concorrentes;masaslendasinformamtambémque,paramaravilharopúblicoumpoucomais, ele fez aparecer de repente umamangueiramagní ica. Em apenasalgunssegundos,aárvoreseergueuatéocéu...Depois,enquantooventoeachuvacastigavamseusrivaissemsorte,oAfortunadoemitiuraiosdeluzejatosd’água.Apartirdeentão,oshabitantesdeSravasti icarammaisconvencidosdo

quenuncadasuperioridadedeBuda.Seusconcorrenteslogosereduziramadirigir-seaospassantesquandoiamàcidadepedircomida:“Entãoagoraé assim, apenas oshramana Gautama é Clarividente?Nós também somosClarividentes. Apenas as oferendas apresentadas a ele gerammérito? Asque nos são ofertadas também geram grandes méritos. Vamos, deemesmolaparanós3!”.Para afastar aquele que os privara a partir de então de qualquer

“bene ício e honra4”, alguns dos adversários do Tathagata resolveramrecorreraestratagemasmenosrecomendáveisdoqueosimplesconfronto“com as armas da língua5”. Foi assim que os líderes de uma seita deerrantes colocaramemprática umestratagema sombrio como intuito decomprometer para sempre a reputação de Sakyamuni. Para alcançar seuobjetivo, eles convenceram uma de suas jovens adeptas, Cinca, arepresentarumpapel...QuandoBudaestava ixadoemJetavana,discípulosleigosiamatélácom

frequência para louvá-lo. No im da tarde, de acordo com o hábito, todostomavam o rumo de Sravasti para poder voltar para casa antes deescurecer. Um dia, o pequeno grupo de iéis estava voltando quando sedeparouno caminhocomumamulher tão linda comoumaninfa celestial.“Especialista nos arti ícios dasmulheres6”, Cinca passaramuito tempo searrumando e se perfumando. Além disso, escolheu usar um vestidovermelho chamativo para ter certeza de que não passaria despercebida.Osupasakas icaramsurpresoseatémesmomuitocuriososdeveraquelabelezaestonteantedirigindo-separaoaramadeseumestre.No dia seguinte, ao amanhecer, outros adeptos vindos da cidade para

visitarBudacruzaramcomamoçadeslumbrante...Demanhãedenoite,amisteriosaCincacontinuoucruzandocomos iéisleigosnacontramão,nasproximidades doarama... Depois de algumas semanas, um homeminalmente teve a ousadia de interpelar Cinca a respeito de suas idas evindasestranhas,eelarespondeu,maisoumenosdandorisada:“EudormiemJetavanacomoshramanaGautamaemsuacelaparticular7”.Depois de oito ou nove meses, a moça se apresentou noarama de

JetavananomomentoemqueBudaestavadandoumsermãoperanteumaextensa assembleia de iéis. Cinca não hesitou em interromper o mestrepara interpelá-lo.Na frente dos discípulos estupefatos, ela declarou estargrávidae repreendeuoAfortunadopor tê-laabandonadoàprópriasortequandoestavaprestesadaràluz.“Vocêsabemuitobemfazeramor,masnão sabe lidar com as consequências”, ela a irmou demaneira grosseira,“igual a uma pessoa que tenta sujar o disco da lua com um punhado delixo8.”OTathagatapermaneceu impassível.Umsilênciopesadose instalouentreosmembrosdaassembleiaquandoderepenteumruídoenormesefezouvir:Cinca tinhaescondidoembaixodovestidouma travessagrandedemadeiraqueacabavadecairnochão.Paraqueaverdadetriunfasse,osdeuses vieram em auxílio de Buda: transformados em ratinhos, elessoltaram comdiscrição as amarras que seguravama travessa na barrigada intrigante. Desmascarada, fugindo imediatamente doarama deJetavana,sobgritosecusparadasdamultidão,a jovemshramanase jogounoburacomaisfundonaterraqueseabriusobseuspés...Com a falha do truque, as seitas rivais logo elaboraram um novo

estratagemaparaeliminarBuda.Destavez foiSundari, “abela”, apessoautilizadaparacomprometê-lo.Ocenárioinicialeraexatamenteomesmodaocasiãoanterior;oato inal,aindamaisterrível:ocadáverdajovemnoviçafoi encontrado certa manhã, escondido embaixo de um monte de

guirlandas de lores espalhadas nas proximidades da cabana doAfortunado. Os mestresshramanas, que haviam pagado bandoleiros paraassassinar a moça, denunciaram então a cegueira dos discípulos deGautamaque,paraesconderadevassidãodomestre, semdúvida tinhamachadodebom-tomeliminarsuajovemamante.AmenosquetivessesidoopróprioSakyamuniacometeroato...Asacusações foramporáguaabaixoquandooscriminososforamgastarseupagamentoemumatavernamuitomovimentada da cidade: totalmente bêbados, eles começaram a relatartodososdetalhesdoassassinato.Informadarapidamenteportestemunhas,a polícia prendeu os homens que cometeram o crime e os que oencomendaram.AreputaçãodeBudapermaneceuimaculada.Masa invejaeoódionãopararamdesemanifestar.Trintaeseteanos

depois da Iluminação, de acordo com algumas lendas, eis que essessentimentos contaminaram o interior daSangha. Tomando os traços deumaverdadeiralutadepoder,elaserevelouaomesmotempovirulentaenefasta. Jácommaisdesetentaanos,Budaagoraeraumsenhordeidadeenfraquecido. Devadatta, que sempre tinha tido inveja dele, desde ajuventude em Kapilavastu, estava muito determinado a se aproveitar dasituação... Carcomido por décadas de ambição recalcada, ávido porhonrariasetambémganhosmateriais,DevadattaprimeirodeuumjeitodeseaproximardoherdeirodotronodeMagada.Tão idosocomoseuamigoBuda, Bimbisara dedicava toda a sua atenção ao ilhoAjatasatru, “aquelecujo inimigo não nasceu”. Mas, por força das demonstrações de seuspoderes mágicos, obhikkhu conseguiu conquistar enorme domínio sobreAjatasatru.Sorrateiramente,conseguiuatéconvenceropríncipeatomaropoder semmais espera. Depois de jogar Bimbisara na prisão, Ajatasatrusubiu ao trono. Enquanto o pai morria de fome em sua cela, o jovemsoberano semostravamuito generosopara comomongeDevadatta, quetantoadmirava.SeuentourageeemseguidatodososmoradoresdacapitaldeMagada logopassarama imitaraatitudede seunovorei, eDevadattaviuseuorgulhoinflar...Depois de neutralizar Bimbisara, o grande protetor de Sakyamuni, o

monge vaidoso tentou se impor à frente daSangha. Na ocasião de umagrande reuniãomonástica, obhikkhu,mencionando a idade avançada e ocansaço de Buda, declarou-se pronto a tomar o lugar do mestre. OTathagata recusou sua proposta com irmeza, e Devadatta abandonou aassembleia com a cabeça baixa. “Colérico e humilhado9”, ele não desistiu,mesmoassim,deseuprojeto.Aocontrário, icoumaisdeterminadodoque

nunca. O pér ido Devadatta decidiu simplesmente eliminar aquele queincomodavasuaascensão:tramouumplanoparaassassinarBuda.OjovemreideMagadaforneceuaelearqueirosexcelentesparamontar

uma emboscada. No entanto, no dia em que os atiradores deviam entrarem ação, seus braços se recusaram a obedecer... Subjugados peloAfortunado,todosseconverteramàLei.Decepcionado,omongepercebeuqueprecisavaagirsozinhoparalevar

a cabo seu projeto infame. Umdia, quandoBuda estavameditando comodecostumenoPicodosabutres,Devadattafezumarochaenormerolardoalto,emsuadireção.Descendoaossaltospelaencosta,apedraporpouconão acertou Buda, que terminou com um ferimento no pé. De volta aoarama, enquanto o iel Ananda permanecia a sua cabeceira para cuidardele, Sakyamuni escutava a ladainha incessante dos monges que davamvoltas sem parar ao redor de sua cela, orando para que sua vida fosseprotegida. O mestre lhes disse: “É impossível,bhikkhus, é impossível quealguémconsigatiraravidadoTathagatapormeiodaviolência.QuandoosBudasatingemonirvana inal,nãopodeserporcausadaviolênciadeumapessoa.Retornemàs celasde vocês,bhikkhus, oTathagatanãoprecisadeproteção10”.Devadatta teve então outra ideia. Certa manhã, mandou soltar um

elefante bêbado nas ruelas da capital de Magada, no momento em queBuda estava fazendo seu circuito de mendicância. O animal estavaincontrolávele todomundo fugiaberrandoparanãoserpisoteado.Masopaquidermeirascívelderepenteseacalmouquando icoudefrenteparaosábio.Oelefantecolocouumjoelhonosoloeocumprimentoucomrespeito:ele “tirouapoeiradospésdoAfortunadocomsua trombaea colocounaprópria testa,depoisseretiroudemarchaaréenquantoomestreestavaemseucampodevisão11”.Emseguida,oanimalretornoudocilmenteaseuestábulo.Ao testemunhar o acontecimento extraordinário, os habitantes de

Rajagrha logo icaram sabendo que aquela tinha sido uma tentativa deassassinatoencomendadaporDevadatta.Con iandonaatitudedoelefante,animal venerado por todos, os cidadãos resolveram não fazer maisoferendasparaomongepérfido.Apesardasderrotas sucessivas,Devadattanão sedeuporvencido.Ele

já tinha conquistado um grupo de monges simpáticos a sua causa noâmbito daSangha. Con iante nessa in luência, resolveu provocar umverdadeirocismanoseiodaSangha.

Comesseobjetivo,eleelaboroucincoregrasdedisciplinacujorigoriadeencontro direto com a suavidade daquela habitualmente pregada porBuda: osbhikkhus jamais deviam aceitar convites de leigos; eles nãodeviampassaratemporadadechuvasemumarama,massimnomeiodaloresta, a céu aberto; deviam usar apenas vestes velhas; e precisavamseguirregimealimentarexclusivamentevegetariano.QuandoDevadattafoisubmetersuasnovasregrasàaprovaçãodeBuda,

argumentou que era urgente para osbhikkhus renovarem o ideal doascetismoaoseentregaremaummododevidabemmaisrigoroso.Comoorival de Buda tinha previsto, e para sua grande satisfação, Buda rejeitousua iniciativa, alegando que a imposição dessas regras seria contrária aoespíritodaSangha.Devadattacomeçouentão,porsuavez,adenunciar,emtodos os lugares, o relaxamento e a corrupção moral do “ascetaGautama12”... que ele já não podia mais considerar como seu mestre.Levandoconsigoquinhentosjovensmongesrecrutadoshaviapoucotempoem VaisaIi, assim como algumas monjas (de acordo com certas lendas),DevadattapartiuparaseinstalaremumeremitériochamadoGayasisa,nasproximidadesdeRajagrha:ocismadaSanghaestavaconsumado.Como consentimentodeSakyamuni,osmongesSariputtaeMoggallana

logo sedirigiramaGayasisa.Devadatta icoumuito feliz aovê-los chegar:cegado por seu orgulho, ele se convenceu de que os dois grandesdiscípulos de Buda o tinham abandonado para se juntar a sua própriacomunidade.Quevitória!Osdoisbhikkhus tomaramocuidadodeenganá-lo. Quando a noite caiu, Devadatta deixou Sariputta e Moggallanaconversando na companhia de seus quinhentos recrutas e foi se deitartranquilo.No dia seguinte, ao amanhecer, uma surpresa o aguardava: todos os

seus iéis tinham desaparecido! Aproveitando o sono dele, os doisemissários de Buda tinham conseguido fazer com que os quinhentosjovens ascetas se voltassem para a Lei e todos partiram para se unir aoAfortunado. Devadatta icou embriagado de cólera: sua ira era tamanhaqueumjorrodesanguequenteespirroudesuabocaedesuasnarinas.Depois de confessar sua falta, assim que chegaram, os jovens monges

desviados logo reencontraram seu lugar no seio da Sangha. Buda, queinsistiu apenas na gravidade do erro que haviam cometido, nãopronunciou nenhuma sanção ao se encontrar com eles. Em seguida, oIluminado deu aosbhikkhus um ensinamento a respeito do caráterparticularmentenefastodeDevadatta,queestavadestinadoa“morrerde

maneiramiserável13”.Umpoucomaistarde,ovelhobarbeiroUpali,queaolongodosanos tinhase tornadoodiscípulomaisversadoemmatériadosregulamentosmonásticos, questionaria Sakyamuni longamente a respeitodoperigodocisma.As tramoias sombrias dos líderes das seitas rivais não foram, no im,

nadaemcomparaçãocomosplanosmaquiavélicosdeDevadatta,obhikkhu“cheiodevíciosedecrimes14”:masnãoéverdadequeoadversáriomaisperigososempreseescondeemsuasprópriasfileiras?

SemelhançasperturbadorasPara favorecer as conversões, impor-se perante a concorrência ou

simplesmente fortalecer a fé dos iéis, as religiões (e não só na Índia) àsvezes trazem à tona fenômenos milagrosos. Mas, para alcançar seusobjetivos, acontece que elas também se apropriam de relatos edi icantestiradosdeoutros lugares... É por issoque, desdeo séculoXVI,BarlaameJoasaphseencontraminscritosnalistaromanademártirescomadatade27 de novembro. Homenageados pelas igrejas ortodoxas no dia 26 deagosto, esses dois personagens misteriosos são também conhecidos dosmuçulmanoscomonomedeBodhasapheBilawahr.DuranteaIdadeMédia,ahistóriadossantosBarlaameJoasapheraum

relato extremamente popular por toda a Europa. Todos os cristãos daépoca admiravam o destino exemplar de Joasaph, o jovem príncipe embuscadaverdade...De acordo com a lenda, no dia de seu nascimento, um astrólogo teria

feitoaprevisãoaseupai,oreiAbener,dequeoherdeirodotronoumdiairia abraçar a fé cristã e abandonaria o poder temporal para se dedicarinteiramente a Deus. Para afastar a previsão, Abener, que era idólatra,resolveu criar o príncipe em um palácio luxuoso, protegido de qualquercontatocomomundoexterior.Osanossepassaram. Joasaph jáerarapazquando conseguiu convencer o pai a permitir que desse umpasseio foradocercodopalácio.Opríncipeentãotevetrêsencontrosdecisivos:comumleproso, com um cego e com um velho. Ele percebeu, demaneira brutal,que o homemestá sujeito à doença e ao sofrimento e queninguémpodeescapar da morte... Pouco tempo depois, o asceta Barlaam, que icousabendododestinoexcepcionaldopríncipepormeioderevelaçãodivina,foi visitá-lo no palácio, disfarçado de mercador. Ele revelou a Joasaph aexistênciadeCristo.Instantaneamentetocadopelagraça,opríncipepediuparaserbatizado.ComoBarlaamjátinharetornadoparaasolidãodeseueremitério,orei tentoudesviaro ilhodocristianismoportodososmeios.Mastudofoiemvão.Inabalávelemsuafé,opríncipeconseguiuconverteraté Abener à nova doutrina religiosa. Pouco depois, seu pai morreu eJoasaph renunciou de initivamente à vida mundana para viver comoasceta,aoladodeBarlaam,nodeserto,emcontemplação.A origem desta lenda durante muito tempo foi atribuída a são João

Damasceno, que viveu no século VIII. De acordo com as evidências, noentanto,estahistórianãopassadeumatransmutaçãosurpreendente–um

avatar,comodiriamnaÍndia–dajuventudelendáriadoBudaSakyamuni,adaptada à fé cristã.·De fato, ica atestado que a biogra ia tradicional dosábio indiano foi retomada pelos cristãos do Oriente: não é verdade queesterelatoparticularmenteedificanteserviaparafavorecerconversões?Mas como foi que essa história de origem indiana se difundiu no

Ocidente? Da mesma maneira como as especiarias e as sedas foramtransportadaspelascaravanas,oscontoseaslendasquecirculavameramtransmitidos nos bazares situados ao longo das rotas comerciais queligavam a Ásia e a Europa. Se acreditarmos nos ilólogos, a história deBarlaameJoasaphteriasidotransmitidapelosismaelitasapartirdalínguapersa, emumapartederivadadeuma traduçãoemárabee emoutradeuma tradução georgiana do século VII, depois em grego no século X e, apartirdaí,emdiversasoutraslínguas:versõeslatinas,etambémetíopesearmênias,ouaindaislandesasseriamencontradasdamesmamaneira.NoséculoXIII,umaadaptaçãoemhebraicoteriavindoàtona.Destemodo,desdeaIdadeMédia–váriosséculosantesda“descoberta”

do budismo pelos pesquisadores – o público europeu já tinhaconhecimento do relato tradicional da vida de seu fundador pormeio dahistória de Barlaam e Joasaph... mas sem ter consciência disto e nemmesmodescon iardofato.ApartirdoséculoXIII,osocidentais,noentanto,passaram a dispor de um testemunho que poderia servir para fazer arelação,jáqueMarcoPolotinha,defato,trazidodoCeilãoumrelatosobrea juventude de Buda: os habitantes da ilha “lhe dão o nome deSargamonymBorcam.Dizemqueelefoiomelhorhomemdomundoequefoiumsantoaseumodo.Deacordocomoquediziam,eleera ilhodeumde seus reis, era rico, mas levava uma vida tão pura que não queria seapegar a nada de mundano, nem queria ser rei. [...] O pai icou muitoconsternado. [...] Resolveu então mandar construir um lindo palácio ecolocar seu ilho lá dentro, onde era servido por várias moças, as maislindas que se pode ver. [...]. Mas não adiantou nada, porque o ilho diziaque queria sair à procura daquele que nãomorreria jamais e que sabiamuito bem que todos os seres destemundo precisammorrer, velhos oujovens,equeistonuncairiamudar.Certanoite,elesaiudiscretamentedeseupalácio,foiatémontanhasaltasemuitoafastadasecomeçouaviverlá,praticandoavirtude;elelevavaumavidamuitorude,eramuitoabstinente,comosefossecristão[...]1”.Mas o paralelo entre as duas histórias nunca foi descoberto; ninguém

nunca suspeitou. Foi necessário chegar àmetade do século XIX para queJoasaph fosse en im “desmascarado” pelos intelectuais: a leitura

comparada da lenda cristã e doLalitavistara, traduzido havia pouco, nãopodia deixar nenhuma dúvida a respeito da origem do personagem... Noentanto, até hoje, uma relíquia do santo é conservada na igreja de santoAndrédeAnvers.Apesardeos indianistasocidentaisdoséculoXIX teremsidobrilhantes

ao identi icarSidartaGautamaporbaixodos traçosde Joasaph,poroutroladoenganaram-seemrelaçãoaumaoutraabordagemda identidade:defato,osintelectuaispassarammuitotempoachandoqueBudaeMahavira,fundadordo jainismo, eramummesmoeúnicopersonagem.Naverdade,ospontos comunseos traçosde semelhançaentre asbiogra iasdosdoismestres espirituais indianos, tais como narrados por suas respectivastradições – cada um dos dois conta com literatura muito extensa –, sãomaisdoqueperturbadores...ApresentadocomocontemporâneodeBuda,Mahavira,o“GrandeHerói”,

teria nascido também como nome de Vardhamana, no seio de umaganasanghadoNordestedaÍndia.ChamadadeKundagramaesituadapertodeVaisali, a pequena “república” tribal onde ele foi criado era dirigida porseu pai, que tinha o nome de... Sidarta. Assim como Sakyamuni, o futurochefe espiritual dos jainistas pertencia, portanto, à classe dos guerreiroskshatriya. Criado em meio ao luxo e em uma atmosfera principesca, elerecebeu educação especí ica, com o intuito de fazer dele um soberanoperfeito. A tradição jainista também adora mencionar como o jovempríncipe Vardhamana impressionava aqueles que o rodeavam com seusincontáveistalentos,suainteligênciaesuavalentia.Mas,comtrintaanosdeidade, quando já estava casado e era pai de família, o rapaz renunciou asuavidamundana:abandonoutodososbensea famíliapara levaravidade asceta errante e descobrir a verdade máxima. Ele logo se livrou detodasassuasvestesepassouaseguirnupelasestradas,apenas“vestidode espaço”. Ao término de doze anos de busca espiritual di icultosa,durante os quais ele praticoudiversas austeridades, inalmente alcançou,um dia, o conhecimento supremo, ao meditar embaixo de uma árvore:de initivamentelibertadodascorrentesdeseucarmaedosamsara,elesetransformou em Jina, um “Vitorioso”. Durante os trinta anos seguintes,Mahavira se dedicou à propagação de sua doutrina, essencialmente noâmbito dos grandes reinos do vale do Ganges. Sem deixar de lado suaspenitências e suas meditações, ele organizou a comunidade jainista emquatro grandes ordens: a dos monges, a das monjas e a dos homens emulheresquesãodiscípulosleigos.O“GrandeHerói”teriamorridoaos72

anos, ou seja, uma idademuito avançada para sua época, em Pava – noatualestadodoBihar.As semelhanças surpreendentes entre os dois mestres espirituais

indianos não terminam no relato sobre suas vidas. As doutrinas deMahavira e de Sakyamuni também comportam numerosos pontos deconvergência...Assimcomoobudismo,o jainismonãopregaaglori icaçãode um deus absoluto, criador do universo. Ele se apresenta como umcaminhopara a salvaçãoquenãoé teísta. Constituindo-se contraopoderdosbrâmaneseahierarquiadascastas,ojainismotambémnãoreconheceo Veda como sendo autoridade em matéria religiosa. De acordo comMahavira, todos os homens têm o chamado para se libertar do ciclo dasreencarnaçõese se tornarum Jina.Comesseobjetivo,eledeverenunciarao mundo para seguir um caminho que se baseia nas Três Joias – a fécorreta, o conhecimento correto e a conduta correta. A conclusão é aseguinte: assim como no budismo, a ética ocupa um lugar essencial nojainismo. Ao rejeitar com amesma irmeza os rituais sanguinolentos queainda eram operados pelos brâmanes conservadores, o “Grande Herói”davaênfaseàcompaixão.Umoutrotraçodesemelhançaentreosjainismoeobudismoresidenos

nomesqueosdiscípulosdeMahaviraatribuíramaseumestre:Tathagata,arahant e Buda fazem parte dos epítetos de Vardhamana. Da mesmamaneira, a ordem monástica jainista também recebe a denominação deSangha.Épocas, lugares, castas, etapas importantes da existência, doutrinas,

títulos, números simbólicos... Que conclusão podemos tirar deste conjuntode semelhanças que une os dois sábios indianos? Identi icação, plágio,in luência ou simples coincidência? Que ligação realmente existiu entre ofundadordobudismoeodojainismo?Assemelhançassão,comefeito,tãonumerosaseimpressionantesqueos

intelectuais europeus do século XIX no início acreditaram que os dois naverdade seriam a manifestação de um único personagem – mítico ouhistórico – que teria sido interpretado de maneiras diferentes por duastradições religiosas distintas. Em um segundo momento, grandesindianistas, como Horace Hayman Wilson ou Christian Lassen,consideraram o jainismo como uma simples rami icação do budismo: adoutrinadeMahavirasóteriaaparecidobemdepois,váriosséculosapósaexistência de Sakyamuni. Mas esta tese estava longe de ganharunanimidadeentreosespecialistas.Finalmente,em1884,os trabalhosde

Hermann Jacobi estabeleceram de modo indiscutível a existênciaindependente dos dois movimentos religiosos e contestaram osargumentoscontráriosqueaindapesavamsobreojainismo.Deláparacá,outrostrabalhossurgiramparaconfrontaraexistênciahistóricadaordemjainista,etambémadeseufundador.Hoje já não existe mais nenhuma dúvida de que Mahavira é um

personagem histórico totalmente à parte. Apesar de os especialistas nãoentrarem em acordo em relação às datas exatas de sua existência – seunascimentoestá ixadoem599a.C.pela tradição jainista–, estima-sequeele tenha sido contemporâneodeBuda.Está igualmenteestabelecidoqueelenasceuemumapequena“república”tribaldoNordestedaÍndiaequepertenciaàcastadosnobresguerreiros.Os traçosdesemelhançaentreoper ildosdoisgrandessábiosindianosrevelamumacoincidênciahistóricaegeográ icaquenãotem,nogeral,nadadesurpreendente:elaseinscrevenoquadroda“revoluçãoreligiosa”queagitouovaledoGangesnaépoca.Noquedizrespeitoàsanalogiasquepermeiamosrelatosdavidadosdois,não podemos excluir, sem dúvida, a possibilidade de os narradores dasduastradiçõesteremtomadoemprestadosgrandesmodelos“arquetípicos”daculturaindiana–comojádiscutimosanteriormente.Entreosexemplosestão a renúncia à vida luxuosa de príncipe e a revelação adquiridaembaixodeumaárvore.Emrelaçãoaostítuloshonorí icosqueofundadordo jainismoàsvezescompartilhacomBuda,eleseramigualmenteusadosnoâmbitodeoutrasseitasdaÍndiaantigaenãoserviriamparaconstituirumaprovaquenegasse a existênciadeMahavira. Finalmente, o budismonuncateveexclusividadesobreotermo sangha,quesigni ica,literalmente,emsânscrito,“conjunto”.Alémdisso, também já foiatestadoqueareligião jainistanãoderivade

umarami icaçãodobudismo.Oestudodaliteraturajainistarevelouqueadoutrina deMahavira encontra, ao contrário, sua origememumpassadobem mais antigo que o de Sakyamuni: apesar de Vardhamana serconsiderado o fundador histórico da ordem de ascetas dos jainistas,tambémseatestaqueelefoioreformadordeumalongatradiçãoreligiosapré-existente. O jainismo, que reivindica 23 guias espirituais antes do“Grande Herói”, faz com que sua fundação remonte a um período bemanterior à chegada dos arianos à Índia. Entre esta longa linhagem demestres espirituais, os historiadores concordam em reconhecer aexistênciadeParshvanatha, o23o Tirthankara ou “Atravessador de Vau”,queviveunoiníciodoséculoVIIIa.C.Outroselementoshistóricostendemaprovar também a existência do 22o guia, Neminatha. Por outro lado, o

número total de tirthankaras permanece sujeito a cautela: seconsiderarmos que um antigo texto budista redigido em páli chamadoBudavamsa reivindica a existência de 24 budas, o número talvez tenhaapenassignificadosimbólico.Sejacomofor,Mahavira,quefoideclaradoo24 oeúltimo“Atravessador

deVau”quandoaindaestavavivo,semdúvidareformouadoutrinalegadaporseupredecessor(ouseuspredecessores).Oexamedostextosjainistasmostra que os ensinamentos permanecem muito próximos dos deParshvanatha, mas que trazem um sopro novo ao fazer, principalmente,com que a disciplina e a ética jainistas sejam ainda mais rigorosas.Mahaviracolocouacompaixãoeoprincípiodanãoviolência,ouahimsa,nonúcleodeseuensinamento.Seusdiscípulosdeviamsecomprometeranãoser violentos – fosse pelo pensamento, pela palavra ou pelo corpo. E, emcada um dos casos, essa violência não devia ser cometida pessoalmentenem encomendada a outros; não se podia nem mesmo ser um simplescúmplice. Comonão se aplicaunicamente em relação aos sereshumanos,massima todososseresvivos,anãoviolênciaéabsoluta.Deacordocomessaperspectiva,ovegetarianismomaisrestrito,que incluiaproibiçãodecomer raízes, é tomado comomodelo. É por isso também que osmongesjainistasagitamumavassouraasuafrente,paranãopisaremuminsetoaoandar,eusamumamáscaradetulebranco,paranãoengolirumamosca.Oascetismo e o jejum (que pode até levar à morte), considerados comomeios de “neutralizar” o carma ruimquemantémoatmã prisioneiro dasreencarnações,constituemaspráticasessenciaisnoâmbitodojainismo.Contrariamente a seus predecessores de meados do século XIX, os

especialistasemreligiõesindianashojeconsideramque,emvirtudedesuadataçãoantigaedeseuradicalismo, foio jainismoqueexerceu in luênciasobre o budismo, e não o inverso. Tirando suas diferenças irredutíveis –especialmente a respeito da existência da “alma” –, que permitem darcrédito a sua existência independente, as diversas coincidências entre asduas doutrinas poderiam ser explicadas por meio da adoção de algunspreceitosmoraisjainistaspelobudismo.OpontoprincipaléqueosadeptosdeBuda adotarama exigência da não violência e da compaixão absoluta,que é fundamento da ética do jainismo. Em relação a este ponto, ospreceitos de Mahavira de fato ultrapassam, de maneira inegável, asprescrições iniciaisdeSakyamuni: apesardeesteúltimo tambémseoporaos sacri ícios ritualísticos de animais herdados do vedismo, os textosindicamqueeledemonstravaprovade tolerânciaemrelaçãoaoconsumo

dacarne.Noentanto,épreciso lembrartambémqueobramanismonãoignorava

este novo valor: assim, encontram-se nosUpanixades especulações arespeito da não violência e até apelos para que se rejeitem todos ossacri íciossangrentos,destinadosaosrenunciantes.Então,aquedevemosrealmente o surgimento da ideia de não violência universal na Índiaantiga? Entre o bramanismo e o jainismo, é di ícil decidir. Se Budaprovavelmente não foi quem inaugurou a ideia original, parece evidente,por outro lado, que esse conceito ético importante, que aparece como“revolução”nahistóriadahumanidade,surgiupelaprimeiraveznoâmbitoda civilização indiana – em detrimento de pensadores ocidentais comoRenéGirard,queatribuiapenasaocristianismoarejeiçãoaosacri íciodo“bodeexpiatório2”eainstauraçãodanãoviolência.A imitaçãorelativado jainismopelobudismoencontra, talvez,emparte

sua explicação no fato de que a ordemmonástica dirigida por Mahavirarepresentava o rivalmais sério da Sangha fundada por Sakyamuni. Alémdosmovimentosdosshramanas,comojásabemos,obramanismoacabariapor se revelar, sob os traços do hinduísmo, como o adversário maisperigosodobudismo.Mas,naépocadacomunidadebudistaprimitiva,elesconviveram com serenidade: apesar de as escrituras antigas informaremqueSakyamunidevezemquandocriticavaosbrâmanes,issonãoimpediaqueelesfossemengrossarasfileirasdaSanghaemgrandenúmero.Entre todos os movimentos dosshramanas que existiam por volta do

século VI a.C., o jainismo constituía a ameaçamais séria ao budismo, quesurgirahaviapouco tempo.De fato, épossível concluirapartirdoexamede textos de diversas tradições religiosas indianas que a ordem dosjainistascontavacomimensorespeitonoseiodapopulação.Aausteridadee o rigor moral dos monges jainistas recebiam a admiração do povo etambém das classes dominantes da sociedade, dos brâmanes e dossoberanoskshatriya.Tantoque,seacreditarmosnasescrituras jainistas,osoberanodeMagada,o famosoBimbisara, teria chegadoa se converteràdoutrina de Mahavira. Apesar de ser impossível compartilhar asreivindicações das duas tradições religiosas, essa a irmação pode, narealidade, ser uma ilustração suplementardo fatodequeo fenômenodeconversãonãotinhacaráterverdadeiramenteexclusivonaÍndiaantiga.A tradição jainista dá conta igualmente de que, quando Mahavira

morreu,aordemqueelefundaraemvidacontavacomváriasdezenasdemilharesdereligiososemsuas ileiras–ecomumnúmeroaindamaiorde

discípulos leigos. Com 36mil monjas e trezentasmil discípulas leigas, asmulheres formavam a ampla maioria do grupo. Esses números, que nãopodem ser veri icados, são sem dúvida exagerados. Mas os especialistasconcordamemestimarqueacomunidade jainistaconstituía,no tempodeBuda, uma das seitas mais importantes e mais bem organizadas emexistência. Será que Sakyamuni teria imitado o exemplo de seu “falsoirmão” quando decidiu fundar a ordem dasbhikkhunis? Não há comosaber.AsescriturasbudistasmencionamMahaviraváriasvezes,sobonomede

Nigantha Nataputta, ou “o ilho da família Nata, adepta das ‘correntessoltas’”. A tradição jainista, por sua vez, também identi ica Buda e oapresenta como adversário nada deplorável, sob o nome de “ shramanaGautama”.Mas nenhum textomenciona qualquer conversa entre os doismestres espirituais, menos ainda um confronto em debate público. Poroutro lado, o cânonepáli relatadiversasvisitasdediscípulos importantesde Mahavira a Buda. Obviamente, o texto relata que Buda sempreconsegue convencê-los da superioridade de sua doutrina: por meio dedemonstrações lógicas, o sábio consegue provar aos adeptos do “GrandeHerói”queocaminhodomeioémaisrazoáveldoqueoascetismoextremo,porqueoarrependimentopode“reaver”umaaçãoruim.Emesmoquandonãoseconvencem,osmonges jainistassemostrammuito impressionadoscom o ensinamento de Sakyamuni: “Oshramana Gautama é astucioso, eleconhece a maneira de seduzir os adeptos das outras escolas 3”, teriainformadoomongeDighatapassinaMahavira,seumestre.Independentemente de esses encontros realmente terem ocorrido ou

não, a própria relação desses longos diálogos nas escrituras budistaspermite pensar que os discípulos de Buda devem ter sentido anecessidadedeconservarparaofuturo,demaneirapreciosa,argumentosdialéticos que permitissem a eles contra-atacar os jainistas de maneiraeficaz.Setivessevividoantes,Kautilya,ofamosobrâmaneque,deacordocoma

tradição,foioconselheirodoimperadorAshoka,certamenteteriachamadoaatençãodeBudaparaavigilânciaestreitaqueumdirigentedeveexercersem cessar sobre seus rivais em potencial, e isso vale tanto para aspessoaspertencentesa seuprópriogrupoquantoparaasde fora.Talvezassim o pér idoDevadatta pudesse ter sido desmascaradomais cedo e oprimeirocismadaSanghapudessetersidoevitado...Mas,dopontodevistada história, parece que, entre todos os rivais contemporâneos que Buda

teve,omaisplausívelnãofoiobhikkhusombrio,massimosábioMahavira.A prova máxima de que ele representava o adversário mais sério deSakyamuni reside na simples constatação de que o jainismo seria, juntocom o budismo, o único movimento sectário da Índia antiga que dariaorigemposteriormenteaumareligiãototalmenteàparte,verdadeiramentedistinta do hinduísmo, capaz de semanter até nossos dias. Claro que, deacordocomotestemunhodeHuanTsang,aseitafundadapeloseparatistaDevadatta se perpetuou até pelomenos o século VII: o peregrino chinêsmenciona, de fato, a existência de discípulos de Devadatta instalados emtrês mosteiros de Bengala. Ainda assim, a ordem fundada pelo bhikkhurenegado terminou por desaparecer. O mesmo vale para a seita dosfatalistas Ajivikas. Esta, de acordo com várias fontes, era relativamenteimportante na época de Sakyamuni e suscitava muitas críticas da partetanto dos jainistas quanto dos budistas. Mas, apesar de ter conseguidoperdurar até o século XIV, ela terminou por recair no esquecimentocompleto.Noentanto,anãoviolênciaabsolutaeoascetismoradicalpregadospor

Mahavirafizeramdojainismoumareligiãoinfinitamentemenospopulardoque o budismo: seu caráter extremamente exigente constituiu um dosprincipais freios a seu desenvolvimento. Com o passar dos séculos, ojainismo permaneceuminoritário na Índia e, hoje, conta com apenas dezmilhõesdeadeptosemumapopulaçãodemaisdeumbilhãodehabitantes.Ainda assim, se levarmos em consideração o fato de que o jainismorepresenta a religião de ascetismo mais severo do mundo, suasobrevivência na Índia contemporânea não deixa de ser uma espécie demilagre.Nofundo,asduasgrandescorrentesde shramanasrivaisdaÍndiaantigativeramseudestinocruzado:apesardesempretertidoapenasumpequeno círculo de iéis, o jainismo não experimentou o declínio terrívelqueacometeuobudismoemseupaísdeorigem;damesmamaneiraquenunca deixou de exercer grande in luência na Índia. Basta dizer queMahatma Gandhi utilizoumuito o legado deMahavira para elaborar suapolítica de não violência durante a luta pela independência. E acomunidade jainista teve, e ainda tem, papel incontestável na decolagemeconômicafulgurantedopaísnoiníciodoséculoXXI.Masapesardeojainismoterconseguidoatravessarosséculosdevidoa

seucaráterelitista,elenuncasedifundiualémda Índia–aocontráriodadoutrina de Sakyamuni. Isso porque o caminho de Buda carregava umadimensão excepcional que lhe permitiu assegurar o seu futuro e a sua

notoriedadealémdas fronteirasdomundo indiano:acessívela todoseaomesmo tempo prosélito, o budismo representa a primeira religião comvocação universal da história. E, assim, ele iria se transformar emmensageirodanãoviolênciaindiananorestodomundo.

ExtinçãoQuase 45 anos tinham se passado desde a Iluminação. Buda, que

chegara ao crepúsculo de seus oitenta anos, sabia que não lhe restavamuitotempoaviverentreoshomensequesuamissãoestavachegandoaofim.Apesarde apregaçãodaLei ter tido enorme sucesso comopassardo

tempo, ainda assim o velho mestre teve momentos especialmentedolorosos durante seus últimos anos. Claro que Ajatasatru inalmente sedesvencilhoudeDevadatta.O jovemsoberanodoreinodeMagada foiatéele para confessar seu remorso por ter maltratado seu pai e os dois sereconciliaram.Mas, no reinodeKosala, seu amigo, o soberanoPrasenadi,tambémtinhasidodestronadopelo ilho,Virudhaka,queassumiuopodercom a cumplicidade de um general. Prasenadi fugiu para o reino deMagada para se colocar sob a proteção de Ajatasatru, mas o velho reidepostomorreudecansaçoquandoestavaquasechegandoaRajagrha.Pouco depois desse acontecimento dramático, o jovem rei de Kosala

tomouadecisãodeatacarossakyas.FaziabastantetempoqueVirudhakaqueriasevingardatribodeSakyamuni...Quandoeraadolescente,ojovempríncipedeKosala,emvisitaaKapilavastu, foramuitomalrecebidopelossakyas: eles tinham chegado até a insultá-lo, chamando-o de ilho deescravo. Posteriormente, Virudhaka icou sabendo, por intermédio de umhomem de seuentourage, que sua mãe de fato era uma sakya de castabaixa.Epensarqueopaiestavaconvencidodequeaesposaeradeorigemnobre!Comoéqueossakyas,quelheofereceramamulheremcasamento,tiveramaousadiadeenganaroreideKosaladaquelamaneira?Aos olhos de Virudhaka, um ultraje desses é uma falta imperdoável.

Assimquetomouopoder,ojovemreiformouumexércitomuitofortequeentrou marchando na pequena “república” dos sakyas. Informado porrumores, Buda icou muito triste, porque sabia que a derrota de suapequenacidadedainfânciaerainevitável...QuandooexércitodeVirudhakachegouàsproximidadesdeKapilavastu,

ossakyastentaramdetê-lo,sempreevitandomatarouferirossoldadosdeKosala. Eles esperavam que suas rajadas de lechas fossem su icientespara assustar o adversário, para fazer com que o exército fugisse: emsendo discípulos leigos de Buda, eles tinhamque evitar qualquer tipo deviolência,mesmoemcasodeagressãomortal.AreaçãodeVirudhakanãotardou:elemandouqueseuscombatentesselançassemaoataquearmado

dos sakyas, que se protegiam atrás da muralha de Kapilavastu. Mas opoderoso exército de Kosala armou o cerco na frente da cidade e nãodemorouapenetrarnela com força total.Deacordocomalgumas lendas,ospróprios sakyas teriam terminadopor abrir osportõesdeKapilavastuaoinimigo,comapromessadequeasvidasseriampoupadas...Seja como for, a tomadada cidade se fezacompanhardeumbanhode

sangue.Ossakyasforamliteralmenteexterminados.Asededevingançadosoberano era tão grande que chegou a assustar seus própriosconselheiros: conta-se que eles tentaram deter seu furor sanguinárioderramandomil jarrosdeáguacoloridadevermelhopelacidade.Masdenadaadiantou.UmaoutralendainformaqueVirudhaka,depoisdemandarcavar enormes fossos nas ruas de Kapilavastu, teria mandado ossobreviventes domassacre se deitarem lá dentro... antes de ordenar queos elefantes de seu exército os pisoteassem. As mulheres também nãoforam poupadas, se acreditarmos nos relatos: dizem que o rei de Kosalaselecionou as quinhentas sakyas mais bonitas de Kapilavastu para seuharém.Comoelasserecusaramaele,Virudhakamandoucortarasmãoseospésdelas.Depoisdisso,foramabandonadasàprópriasorte.Quando Virudhaka e seu exército retomaram o caminho de Kosala, a

“república” dos sakyas estava totalmente aniquilada... Até o parque dasigueiras-de-bengala,ondeBudagostavade icar,foitotalmentedestruído.Àsvezesémencionadaaexistênciadealgunssobreviventes,chamadosde“sakyasdos canaviais1”, que teriam se feito passar por estrangeiros paraqueVirudhakaospoupasse.Emtodocaso,écertezaqueopequenoestadoonde Sidarta tinha sido criado nuncamais iria se recuperar daquele diafatídico.Dizemque,nomomentodomassacredeseupovo,Sakyamuni,queestava longedeKapilavastu, teria sentidoumadordecabeça repentinaeviolenta,sintomadesuaprofundatristeza.MasoTathagatanão interveio,porqueossakyas,deacordocoma leidocarma,nãopodiamescapardasconsequênciasdesuasvidaspassadas.Apesar dessa tragédia e do peso dos anos, Buda passou a se dedicar

mais do que nunca a sua missão. Ele sabia que logo iria entrar nomahaparinirvana,a“GrandeExtinçãoTotal”,quecolocaria imasuaúltimaexistência terrestre.Masomestrequisguiara Sanghaedarcontinuidadeao ensinamento da Doutrina até seu último momento, sem aliviar seusesforços...A estação da primavera já tinha começado. O Afortunado deixou

Rajagrha, onde estava alojado no Parque das Mangueiras, acompanhado

porumpequenogrupodebhikkhus,esedirigiuparaonorte.OcortejofezumaparadaemPataligrama.LocalizadonafronteiradoreinodeMagada,àmargem meridional do Ganges, o pequeno burgo era privilegiado composição estratégica, e a construção de estruturas de forti icaçãoimponentes estava em cursona época, supervisionadapor doisministrosdeAjatasatru.O jovem soberano informara aBuda, antesde suapartida,que tinha a intenção de subjugar em breve a confederação vizinha dosvrjis. O velhomestre não icou contente com a notícia,mas compreendeuque as “repúblicas” já pertenciam ao passado e que o futuro estava nasmãos das grandes monarquias. O mundo muda, e aquele que ele tinhaconhecido na infância estava inexoravelmente fadado a desaparecer.Durante a refeição para a qual os dois altos funcionários o convidaram,Buda, resignado e lúcido, previu um futuro brilhante para a cidadehumildedePataligrama.Posteriormente,elaviriadefatoasetransformarnacapitaldoimpérioMaurya,Pataliputra.Depois de atravessar o rio a bordo de umabalsa, o Afortunado e seus

companheiros prosseguiram na direção do norte e alcançaram Vaisali, acapital rica dos licchavis. Ali o sábio foi muito bem recebido por seusnumerososdiscípulos,entreosquaisseincluíamospríncipesdacidadeealinda cortesã Ambapali. Para uns e para outros, ele deu ensinamentosprofundos e os incentivou a dar prosseguimento a suas iniciativasespirituais.Como a monção tinha começado, o Iluminado se instalou durante

algumas semanas logo ao lado da cidade, no Vilarejo dos Bambus.Acometido de uma disenteria violenta, omestre caiu gravemente doente.Masserecusouamorrer,levandoemcontaqueaindanãotinhaterminadosua missão: “Não convém que eu entre no Nirvana sem ter conversadocomaquelesquedescon iamdemim,semterfaladocomaComunidadedediscípulos.Eudesejo,pelaminha forçadevontade,superarestadoençaereteravidaemmim2”.Buda, enfraquecido, ainda não tinha se recuperado completamente

quando Ananda veio questioná-lo a respeito da questão da direção daSanghadepoisdeseufalecimento.Suarespostafoicomoumtestamento:

Por que, ó Ananda, o Tathagata iria tornar públicas suas intenções relativas à comunidadedosbhikkhus?Euagoraestoucaduco,óAnanda,estouvelho,souumidosodecabelosbrancosquechegouao inaldeseucaminhoeatingiuavelhice:estoucomoitentaanos...Entreguem-seasimesmos,óAnanda,aseupróprioarchoteeaseuprópriorefúgio,nãobusquemoutrorefúgio.QueaDoutrinasejaseuarchoteeseurefúgio,nãoprocuremoutrorefúgio...Aquelesque, a partir de hoje, ó Ananda, ou depois do meu nirvana completo forem seu próprio

archoteeseuprópriorefúgioenãobuscaremoutrorefúgio,aquelesque izeremdaDoutrinaseu próprio archote e seu próprio refúgio e não buscarem outro refúgio, estes serão, óAnanda,osmeusmaioresdiscípulos,queseguirãoaboamaneiradeseconduzir.3

Alguns dias depois, o velhomestre e seu ielbhikkhu foram visitar umaramapertodeVaisali.Nomeiodeumaconversa,oAfortunadosugeriuaseu discípulo que, se este lhe pedisse, seria fácil para ele prolongar suaexistênciaduranteanoseanos...MasocorajosoAnandanãoaproveitouaocasião que lhe foi oferecida de suplicar a Buda que permanecessemaistempo na terra para ensinar aos homens o caminho da salvação. Maistarde, sua falta de iniciativa seria vigorosamente reprovada por algunsbhikkhus.Poroutrolado,osombrioMara,sempreàespreita,estavaprontoparareagir.OdeusseapresentouperanteoTathagataerecomendouqueele entrasse semmais delongas noparinirvana. O sábio, que consideravanãoterterminadoaindasuamissão,rejeitouapropostalogodecara.Com o inal da temporada de chuvas, tinha chegado a hora de Buda

voltar para a estrada. Depois de ter feito o percurso matinal de pediresmola na cidade, como era seu costume, o Iluminado anunciousolenemente a seus iéis: “Eu olho agora para Vaisali, porque eu nuncamais a verei e nunca mais retornarei aqui. A partir de agora, vouabandoná-laeirembora4”.Suaspalavrasprovocaramdesesperoprofundoentre os discípulos leigos, porque eles perceberam que o falecimento deseu mestre era iminente. Mas Buda, ao recordar as Cinco NobresVerdades, proibiu que lamentassem sua sorte. Depois, sem se demorarmais,oAfortunadosaiudacidadedos licchavisencabeçandoumpequenogrupodebhikkhus.Seguindo as instruções de Sakyamuni, o cortejo tomou a estrada do

nordeste,quelevavaaKushinagar.Modestaepoucofrequentada,acapitaldos mallas icava afastada das grandes monarquias do Ganges. Talvez ovelho mestre desejasse se deitar em um local mais tranquilo, longe dosolhares... Ou talvez ele tivesse desejado ir pela última vez a Sravasti, acapital de Kosala, ou então a Kapilavastu, a cidade de sua infância.Ninguémsabeaocerto.MasapequenacidadedeKushinagarselocalizavanocaminhoquelevavatantoaumaquantoaoutradessaslocalidades.Bhandagama, Hatthigama, Ambagama, Jambugama, Bhoganagama... A

caminhodeKushinagar,Budaeseuscompanheirosatravessaramdiversosvilarejos adormecidos, emqueaspequenas casasbaixas comparedesdeargamassapareciamtersurgidodaterradequesãofeitas.Echegouodiaem que o grupo se aproximou de um vilarejo chamado Pava. O bosque

onde osbhikkhus se instalaram pertencia a um ferreiro chamado Cunda,que foi até lá para prestar homenagem ao Tathagata. Depois de terescutado o ensinamento do sábio, o aldeão convidou toda a pequenacomunidadeparaalmoçaremsuacasa.Emsuamoradamodesta,ohomemofereceuaosmongesumpratochamado sukaramaddavaempáli.Seráqueo “banquete de porco” designava um pedaço delicado de carne ou umalimento que os porcos adoram especialmente? Apesar de a receita terdesaparecido,ofatoéqueBudainsistiuparaseroúnicoacomer.Seráqueeledescon iavaqueoferreiroeraumpéssimocozinheiro?Ouseráqueeletemia que o prato estivesse estragado? Em todo caso, depois da refeição,SakyamunipediuaCundaqueenterrasseosrestosdopratosobopretextode que ninguém, nem homem nem deus, pudesse digeri-los! O mestretinha razão: naquela noite, ele foi acometido por dores intestinaisabomináveisecomeçouacuspirsangue.Ainda assim, Buda retomou o caminho de Kushinagar no dia seguinte.

Aquele trajeto se revelou estafante para o velho sábio, que estava maisfraco do que nunca. Ele sem dúvida também sentia um quê de solidãoporque, à exceção de seu iel Ananda emais uns poucos, seus discípulosmais próximos estavam ausentes. De fato, muitos deles tinham morrido,comoSariputtaeMoggallana,falecidoshaviapouco.Ananda,queaindanãotinhaconseguidoalcançaroestadodearahantapesardetantosanos, icoumuitoabaladoao saberdo falecimentodeles.Buda, ao contrário,pareceuse alegrar com o fato de que os dois grandes monges, que já eramarahants,tinhamseliberadode initivamentedociclodasreencarnações.Omestre,aoperceberquesuaprópriavidaentravaemdeclínio,procuravacertamente preparar o corajoso Ananda para enfrentar seu falecimento,queestavapróximo.Sob o calor que parecia fazer aumentar as distâncias, o ritmo da

caminhada se tornava cada vez mais lento com o passar das horas.Sakyamuni,àbeiradaexaustão,foiobrigadoapararnabeiradocaminho.Ele pediu a Ananda que lhe trouxesse água. Infelizmente, o rio maispróximo tinha icado turvo com a recente travessia a vau de diversascarroças. Serianecessário esperar umbom tempo até a água icar limpa.Quando Buda inalmente estava saciando sua sede, um nobre mallachamadoPukkusa apresentou-seperante ele.Nodecorrerda conversa, osábio descobriu que, assim como ele, o homem tinha sido, no passado,discípulodeAlaraKalama.Quecoincidência!LogoconvertidoàdoutrinadeBuda,Pukkusalheofertoudoispanoscosturadoscomfiosdeouroantesde

se afastar. Ananda então ajudou o mestre a se enrolar nos pedaços detecido. Osbhikkhus icaram muito impressionados ao perceber que, derepente, o corpo do Tathagata produzia uma radiação tal que eclipsavatotalmenteobrilhodouradodospanos.Buda retomou com muita di iculdade a estrada para Kushinagar. A

paisagem lhe trazia memórias irresistíveis de sua infância: uma vastaplanícieverdejanteeúmidaemqueaolongesedesenhavamasprimeirassilhuetas das montanhas eternas. Mas aquele que se comparava a uma“carroçavelha5”tinhacadavezmaisdi iculdadeparacaminhar.Apoiando-se recurvadopor cimadeumbastão, àsvezesele seescoravanas costasde um monge. As paradas se multiplicaram: alguns textos contam 25.Apesardeumalongapausaparaserefrescaremumcursod’água,elenãodesistiu.Omestrenunca sequeixava e chegava a insistir junto aAnandaparaqueo ferreiro, cujas intenções tinhamsidopuras,não fosseculpadono futuro pelosbhikkhus de ter servido a ele um prato que podia muitobem ter sido fatal. Ele foi mais longe e ordenou a seu iel discípulo queconsiderasse que o homem que ofereceu a última refeição a Budaadquiririaumgrandemérito!Finalmente, a pequena cidade de Kushinagar apareceu à vista. Mas

Sakyamuni, que não conseguia dar mais nem um passo, parou nasproximidadesdeumbosquedeárvores sal.Exausto,eledesejoudeitar-seà sombra das árvores gêmeas. Curiosamente, elas estavam totalmenteloridas, apesardenão serépoca.Anandapreparoucomamaior rapidezpossívelum lugarpara ele sedeitar entre asduas árvores edepois, comdelicadeza, ajeitou omestre deitado sobre o lado direito do corpo, com acabeça para o norte e de frente para o este, “como um leão 6”. Ao redordele, as vestes amarelas dosbhikkhus formavam um círculo grave esilencioso.Buda não voltaria a se levantar. Pétalas de lor de perfume delicado

caíam sobre seu corpo imóvel. Algumas horas o separavam domahaparinirvana,a“GrandeExtinçãoTotal”.O corajoso Ananda não conseguia controlar suas emoções. Apavorado

com a perspectiva de se separar para sempre de seu mestre, o bhikkhupraguejou primeiro contra Kushinagar: aquele burgo obscuro não eradigno de ser o palco dos últimos momentos de um ser tão excepcionalcomooTathagata.Depois,escondidodosolhares,omongesedesmanchouem lágrimas. Não aceitava a ideia de perder aquele que tinha tido tantacompaixão para com ele, um discípulo humilde que ainda precisavaprogredirtantoparaatingiroestadodearahant.

Mas, do fundo de seu leito entre as árvores gêmeas, o velho mestrechamouAnandaasuacabeceira.Reunindosuasúltimasforças,acalmouobhikkhu ao lhe dizer, em primeiro lugar, que em uma de suas vidaspassadas,eletinhaencarnadoummonarcatodo-poderosocujacapitaleraKushinagar. Depois consolou Ananda longamente, lembrando a ele ocaráterinelutáveldamorte.Apóselogiarsuadevoçãoexemplarperanteaassembleia de monges, Buda con iou uma última missão a seu ieldiscípulo:pediuaAnandaquefosseaoencontrodosmallasdeKushinagarpara informar-lhes sobre suapresençaedaaproximaçãode suaentradanoparinirvana. Se desejassem receber suas últimas instruções, estavamconvidados a consultá-lo. Em lágrimas, obhikkhu avançouparaavisar aosmoradores de Kushinagar, que por sua vez se apressaram em grandesnúmerosatéacabeceiradofamosomestredaSangha.Quando a noite caiu, Ananda organizou as entrevistas comoTathagata

em pequenos grupos. Entre os visitantes estava Subhada, um homemreligiosodeidadeextremamenteavançadaemuitoerudito,quealimentavaváriasdúvidas a respeitodedoutrinadeBuda.Depois de ter conseguidoconvencer Ananda, com certa di iculdade, a permitir que falasse comSakyamuni,Subhadainterrogouosábiolongamente.Compaciênciainfinita,o Afortunado lhe deu seus ensinamentos até que o velho asceta seconvertesse. Subhada foi o últimobhikkhu que teve ahonrade receber aordenaçãodeBudaempessoa.Em seguida, pela última vez, o Tathagata mandou Ananda reunir os

mongesqueotinhamacompanhadoemsuaúltimaviagem.Omestrepediuaos discípulos que lhe izessem todas as perguntas possíveis,independentemente de dizerem respeito a um ou outro aspecto daDoutrinaoudaSanghaqueaindacontinuassemobscurosaseusolhos.Masos monges permaneceram em silêncio. Buda então pronunciou suasúltimaspalavras: “Verdadeiramente, bhikkhus,eu lhesdigo:édanaturezadetodasascoisasserperecível;trabalhemparaatingirasuasalvaçãocomdiligência7”.No decurso da última parte da noite, Buda foi se afastando

progressivamente do mundo dos homens. O Afortunado entrousucessivamente em diversos estados meditativos, ao im dos quais elepenetrou, com a primeira claridade da aurora, no estado supremo doNirvana completo. A multidão de mallas imediatamente se dissolveu emlágrimas e lamentos. Apesar de alguns monges também terem imensadi iculdade de conter sua tristeza, todos os que atingiram o estado dearahant guardaramatitude serena e reclusa. Aomesmo tempo emque a

terra tremeu, uma chuva de lores caiu dos céus. Ao longe, os deuses,testemunhas do acontecimento, izeram seus tambores ressoaremdemoradamente.Durante sete dias, o corpo do mestre falecido foi honrado com muita

devoçãopelos iéis.DepoisAnanda cuidoupara que os rituais funerárioscorressem bem. A obrigação pesou sobre os mallas, porque o costumeditava que as exéquias dos religiosos fossem organizadas pelos leigos. Omongeentãodeuaosnotáveisdosmallas todasas instruçõesnecessáriasparaqueofuneraldomestrefossedignodaquelesqueatradiçãoindianareserva aos monarcas todo-poderosos e universais, a um Cakravartin,“Aquele que Faz Girar a Roda”. De acordo com os textos canônicos, seisregras devem ser respeitadas de maneira escrupulosa: depois que ocadáver forenroladoempanos–onúmerovariadedezamil,deacordocomorelato–,devesercolocadodentrodeumgranderecipientemetálicocheio de óleo, depois estendido por cima de uma pira de madeirafragrante.Apósacremação,osrestosdocorpodevemserfechadosemumtúmulo, na frente do qual devem ser postas oferendas de lores eperfumesantesdeprestaraúltimahomenagem.As exéquias deBuda foram conduzidas emperfeita conformidade com

asregras.Apenasoacendimentodapira–quefoierguidadeacordocomodesejo dos deuses a leste de Kushinagar – perturbou um pouco o bomandamento da cerimônia funerária: quatro príncipes mallas estenderamtochas na direção dela, desesperados, mas a madeira se recusava aqueimar... Foi necessário esperar que chegasse ao local o velho bhikkhuKasyapa, que estava entre os melhores discípulos de Buda. Quando omongevenerávelprestousuahomenagemaosdespojosdomestre,apirafunerária pegou fogo espontaneamente. Com este último milagre, aencarnaçãoderradeiradoAfortunadodesapareceu, lentamentedevoradapelaschamas.Emalgumashoras,sórestariamrelíquiaspreciosas.Destavez,nãohaveriarenascimento.

Kushinagar,637Depois de ter visitado Lumbini e o antigo reino de Kapilavastu, Huan

Tsang deu sequência a sua viagem pela Índia, seguindo as pegadas deSakyamuni. O peregrino chinês incansável foi então até Kushinagar: seuspassos o levaram diretamente do lugar do último renascimento dobodisatvaatéonde,oitentaanosdepois,Budaatingiuonirvanacompleto.No entanto, quando chegou à antiga cidade dosmallas, depois de uma

viagemestafante,omongechinêsficouumpoucodecepcionado:

Noreinode JuShiNa JiaLuo,asmuralhasdacapitalestãoemruínas,osvilarejosoferecemapenasumatristesolidão.Osfundamentosdetijolodaantigacapitalocupamumcircuitodeumadezenade li.Asmoradiassãorarasedispersas,osburgoseosvilarejosestãodesertos.Nocantonordestedosportõesdacapital,háumaestupaquefoiconstruídapeloreiAçoka.LáicaaantigacasadeCunda.Nomeiodessacasa,háumpoçoquefoicavadoquandoalguémquis fazer oferendas à estupa. Independentemente do que tenha acontecido ao longo demeses e de anos, a água continua pura e límpida. A três ou quatro li para o nordeste dacapital, passa-se pelo rio A Shi Duo Fa Di. A uma pequena distância damargem ocidental,chega-seauma lorestadeárvoressal.Estaárvoreseparececomohu,masotroncoédeumbrancoesverdeadoeasfolhassãolisasebrilhantes.1

Nessasmemórias,HuanTsangrelataemdetalhesosúltimosmomentos

edi icantes do mestre que tinha icado deitado “entre duas árvores sal 2”atéseuúltimosuspiro.Depois,omongechinêsprosseguiuseurelatocomofamoso episódio das disputas que tinham se dado em Kushinagar, logodepoisdacremação,emrelaçãoàpartilhadasrelíquiasdoAfortunado:

Depois que o Buda entrou no Nirvana e seu corpo foi queimado, os reis de oito reinoschegaram com quatro tropas de soldados. Eles enviaram um brâmane chamado Rijûbhavaparadizeraosmallasoseguinte:–Neste reino, o guia dos homens se apagou para oNirvana; é por isso que nós viemos delonge,parapediravocêsumapartedesuasrelíquias.–OTathagata–responderamosmallas–houveporbemrebaixarsuagrandezaedesceraestepaísín imo.EleseapagouparaoNirvana,oguiailuminadodomundo!Elemorreu,opaiternodoshomens!AsrelíquiasdeRulaidevemnaturalmentereceberhomenagens;masfoiemvãoquefizeramestaviagemtãodifícil;jamaisirãoobtê-las.Então os grandes reis pediram a eles em tom humilde. Ao se verem recebidos por umarecusa,elesreiteraramsuasalegaçõesedisseram:– Como nossos pedidos respeitosos não são atendidos, nosso exército poderoso não estálonge.MasobrâmaneRijûbhavaergueuavozelhesdisse:– Pensem bem [...]. Se hoje vocês recorrerem à violência, será uma coisa absolutamenteinjusta.Agora,eisaquiasrelíquias;seránecessáriodividi-lasemoitopartesiguais,paraquecadaumdevocêspossahonrá-las.Porquerecorreraousodaforçadasarmas?3

Huan Tsang informa que os oito grandes soberanos inalmenteaceitaram compartilhar entre si as relíquias do sábio morto. Mas, ainda

assim, precisaram ceder uma parte a Indra, o “senhor dos deuses 4”, etambém aos “reis dos dragões 5”, que se apresentaram igualmente parareclamarsuaparte.Mal a cremação tinha terminado, a partilha das cinzas e dos restos de

ossos do Buda histórico logo se degenerou em uma verdadeira disputa...HuanTsangnãofoioúnicoquerelatouesta“guerradasrelíquias”:elafoinarradapordiversasfontesbudistas,damesmamaneiracomotambémfoimuitoilustradaemestátuas.Seránecessárioconcluirqueesteepisódioumtantoaflitivodefatoocorreu?Demaneirageral,osespecialistasconsideramcomoconfiáveloconteúdo

doMahaparinirvana-sutra,orelatocanônicodosúltimosmomentosdavidade Sakyamuni e de seu funeral, que chegou até nós em seis versõesdiferentes. Em particular, as causas da morte – intoxicação alimentar eidadeavançadadomestre–,assimcomoo lugardamorte, sãounânimes.Por outro lado, muita gente duvida do famoso episódio da partilha dasrelíquias...Segundoasfontescanônicas,osoitosbene iciáriosfelizardosdadivisãoforamAjatasatru,osoberanodeMagada,oslicchavisdeVaisali,ossakyasdeKapilavastu,osbulisdeAllakappa,oskoliyasdeRamagama,umbrâmane de Vethadipa, os mallas de Pava e, por im, os mallas deKushinagar.Mas, de acordo comos trabalhosdeAndréBareau, esta listaapresentaumaanomaliade tamanho:nenhumrepresentantedeSravasti,de Kausambi ou de Campa aparece nela, apesar de estas três cidadessupostamenteteremsidocentrosimportantesdaSanghanaépocadoBudahistórico.Devidoaessasomissões,oespecialistachegaàconclusãodeque,provavelmente, ninguém se deslocou até Kushinagar – com a exceçãoeventualdossakyas,quetinhamlaçosestreitosdeparentescoequeeram,alémdomais,vizinhospróximosdosmallas.Se nos referirmos aos relatos tradicionais, depois desta partilha, oito

grandes estupas teriam sido erguidas pelos bene iciários para abrigar asrelíquias preciosas do sábio. Duas outras estupas também teriam sidoconstruídas, uma para receber os restos da “canoa” em que o corpo deBudarepousavaquandofoicremadoeaoutrapararecolherascinzasdapira. Assim como a maior parte dos locais ligados ao budismo na Índia,Kushinagar, que caiu no esquecimento a partir do século XII, foiredescobertanodecorrerdoséculoXIX:depoisdesua identi icaçãocomoa cidade da Kasia – no atual estado de Uttar Pradesh – por AlexanderCunninghan, em 1862, as primeiras escavações foram efetuadas por seuassistente Archibald Campbell Carlleyle em 1875. No entanto, nenhum

vestígio de barro contemporâneo à época do mestre chegou a serdescoberto no sítio arqueológico de Kushinagar: a base original daestruturaquehojechamamosde“EstupaNirvana”dataapenasdoséculoIIIa.C.É possível que as oito ou dez estupas originais não tenham jamais

existido. Namelhor das hipóteses, teriam sido construídas, em todo caso,deargilacrua,deacordocomatécnicamaisusualnaquelaépoca,fatoqueserviria para explicar por que elas não resistiram ao tempo. Ligadas àantiga tradição de túmulos erguidos sobre os restos mortais depersonalidadesimportantes,asestupasnãoestavamreservadasapenasaouso dos budistas na época antiga. Foi Ashoka o primeiro a oferecer aobudismoestupasimponentesesu icientementesólidasparaatravessarosséculos. Segundo a tradição, o imperador teria mandado juntar todos osrestos mortais sagrados de Sakyamuni: guardados em relicários, elesteriam sido distribuídos em 84mil estupas espalhadas por toda a Índia.Apesar de este número ser certamente simbólico, o fato é que, a partirdaquelaépoca,aestupasetransformounomonumentoporexcelênciadaarquitetura budista. Geralmente erguendo-se no meio de um amploconjuntomonástico,aestupaéaguardiãeternadasrelíquiassagradas.Elapodeguardartantoumamechadecabelo,umdenteouumdedodeBudaquanto um restomortal proveniente de um de seusmelhores discípulos,ouaindaumobjetoqueesteveemcontatocomeles–comoumatigeladepedir esmola, por exemplo. Nem todas as estupas contêm relíquias domestre,mas,paraos iéis,essasestruturascontinuamsendo,aindaassim,fortementeassociadasàpessoadoBudahistóricoeaseuparinirvana.A veneração de relíquias fechadas dentro das estupas adquiriu

importância fundamental a partir da época de Ashoka na propagação edepois namanutenção da doutrina budista. Aliás, já há mais de dois milanos,asrelíquiasnãoparamdesemultiplicar,naesteiradaexpansãodobudismo, e sempre em conexão com a fundação de novos centrosmonásticos.ÉporissoquehojepodemosadmirarestupasportodaaÁsiaeencontramos relíquias supostamente do Buda histórico bem além dasfronteirasdaregiãoemqueeleviveu.MesmonaÍndia,diversoslocaissagrados–comoKushinagar,Sanchiou

Sarnath – orgulham-se de possuir restos mortais sagrados do sábiohistórico.MaséincontestavelmenteoSriLankaquepossuiarelíquiamaisfamosa de toda a península indiana: um dente de Buda. Todos os anos,devotossedeslocamatéoDaladaMaligawadeKandypara louvá-lo.Fora

do subcontinente indiano, não faltam lugares: o “pagode de ouro” deShwedagon,naBirmânia,oPhaThatLuang,noLaos,eaindaoSennyū-jideKioto,no Japão, são também lugares famososporabrigaremumarelíquiapreciosa de Sakyamuni. A China também conta com diversos locaissemelhantes, como por exemplo o templo de Famensi, na província deShanxi,emqueumafalangedomestrefoiencontradanadécadade1980.A inal, amultiplicação das relíquias nunca cessa! Em2001, uma caixinhade pedra com um cabelo de Buda foi retirada das ruínas do pagodeLeifeng, na província de Zhejiang, na China. Por im, no momento daglobalização,ninguémseimpressionacomofatodequerelíquiasbudistas,separadas de suas volumosas estupas, viajam de avião com frequênciapara a veneração dos iéis, que hoje se espalhampelos quatro cantos domundo...Mas será que todos esses restos sagrados preciosos são da época de

Buda?Mesmo se nos limitarmos aos que parecem sermais antigos, tudoleva a crer que não. Das 84 mil estupas que supostamente foramconstruídas por Ashoka para abrigar o mesmo número de relíquias domestre, apenas alguns vestígios foram identi icados de fato. No entanto,apenasdoisrelicáriospuderamserestudadospeloscientistas.Oprimeirofoidesenterradoem1958nasruínasdaantigacidadedeVaisali,acapitaldoslicchavis.Elecontinhaalgumascinzas,umpedaçodecouro,umpedaçominúsculo de ouro e uma concha quebrada. Desde que foi descoberto, oconjunto é conservado nomuseu de Patna, no estado do Bihar – apesardas objeções dos budistas que exigem que os objetos sagrados sejamtransferidosparaBodh-Gaya.Osegundorelicáriojáfoimencionadonocomeçodonossocaminhoque

acompanhaosvestígiosdeBuda:eledefatoprovémdePiprahwa,umdosdoislugaresquesea irmamcomosendoaantigaKapilavastu,nafronteiraentrea ÍndiaeoNepal: trata-sedeumaurnaqueestava fechadaemumestojo de pedra colocado na base de uma estupa. Sua descoberta porWilliam Peppè, um administrador britânico, remonta a 1898. A urnacontinha apenas cinzas, mas a tampa trazia uma inscrição misteriosa,gravada em escrita bramânica. O texto seria traduzido pelo famososecretário da Royal Asiatic Society, Thomas Rhys David, nos seguintestermos: “Estedepósitocomas relíquiasdeBuda,oAfortunado,éodoclãdossakyas,irmãosdoVenerado,emassociaçãocomsuasirmãs,seus ilhosesuasesposas6”.Ofertadaspelovice-reidasÍndias,lordeCurzon,aoreidaTailândia, Rama V, as cinzas foram depositadas no templo deWat Saket,

em Bangcoc, enquanto a urna continua guardada no museu nacionalindiano em Calcutá. No estojo de pedra que abrigava a urna também seencontravam joiaspequenaseumgrãodearrozpetri icado,queatéhojesãomantidos, respectivamente, por um descendente deWilliam Peppè epelavenerávelBuddhistSocietydaGrã-Bretanha.Depoisdeexamesminuciosos, infelizmentenão foipossível estabelecer

que o relicário de Piprahwa fosse contemporâneo da morte de Buda. OmesmoacontececomodeVaisali.ÉmuitopossívelqueadataçãodosdoissejaapenasdaépocadeAshoka–comoéocasodasestupasmaisantigasdescobertas até hoje. Além do mais, como Peppè não passava de umamadoresclarecido,o frutodesuaspesquisasévistohojecomumacertadescon iança pelos cientistas: alguns chegam até mesmo a duvidar daautenticidade da inscrição encontrada por cima da urna de Piprahwa...Essas suspeitas de falsidade, que maculam tantas descobertas efetuadaspelos pioneiros da arqueologia budista, infelizmente têm fundamentação:atémesmoohomemquedescobriuLumbini,pessoalmente,“en iouamãonosacoderelíquias”.AloisFührer,aproveitando-sedesuaposição,vendeuamonges birmaneses relíquias “certi icadas” de Buda... que, na verdade,não passavam de dentes de cavalo. O escândalo fez com que ele fosseexpulsodolndianCivilService.Assim como em todas as religiões, a questão da autenticidade das

relíquias budistas se rende, sobretudo, à fé dos iéis. E, desse ponto devista, é forçoso constatar que estupas e relicários que abrigariam restosmortais do sábio histórico são, em todos os lugares e sempre, objeto defervorreligiosoimpressionante.O espetáculo dos rituais de devoção ao redor das estupas budistas

lembra, demaneira bastante impressionante, os dos pujas que os hindusexecutam para homenagear suas in indáveis deidades. O objeto deveneração recebe diversas homenagens ritualísticas que consistem emprostrações, saudações com as mãos unidas, caminhadas em círculo daesquerda para a direita e oferendas de todos os tipos: lores –especialmente de lótus –, perfumes e incenso, lamparinas, guarda-sóis ebandeirinhasdepano,danças,cânticosemúsica;àsvezestambémroupas,alimentos vegetarianos e bebidas. Um culto assim às vezes espanta: seráqueestámesmodeacordocomavontadedomestre?Nãoéverdadequeelesemostravacontrárioaosrituais?OMahaparinirvana-sutrainformaqueAnandateriacolocadoexatamente

estaquestãoaBuda,algumashorasantesdesuamorte:

–Como,óvenerado,nósdevemostratarosrestoscorporaisdoTathagata?– Ó Ananda, não se preocupe em venerar os restos corporais do Tathagata. Cuide de suaprópria saúde, dedique-se a sua própria saúde, trabalhe com diligência, ardor e resoluçãoparaoseuprópriobem.Existem,óAnanda,entreosguerreiroskshatriya, osbrâmaneseoschefes de família, sábios que con iam no Tathagata; eles farão um culto com os restoscorporaisdoTathagata.–Mascomo,óvenerado,elesdevemtratarosrestosdocorpodoTathagata?[...]–ÓAnanda,damesmamaneiracomoéacondutaemrelaçãoaocorpodeummonarcatodo-poderoso e universal, da mesma maneira deve ser a conduta em relação ao corpo doTathagata.AestupadoTathagatadevesererguidaemumgrandecruzamento;eparatodosaquelesquealicolocarem loresouperfumes,paratodosaquelesquelhefaçamhomenagem,para todos aqueles que se sentirem bem de olhá-la, a estupa trará felicidade e alegriadurante muito tempo. [...] Existem muitas pessoas que irão puri icar seu pensamento aodizer:“EisaquiumaestupaerguidaemnomedetalAfortunadoqueéumBudaperfeito”.[...]Destamaneira,depoisdepuri icaropensamento,depoisdodesaparecimentodeseucorpo,depoisdamorte,elesreaparecerãoemumdestino feliz,nomundoceleste.Porestarazão,óAnanda,oTathagataqueéumArahant,oBudaperfeito,édignodeumaestupa.7

Uma outra passagem doMahaparinirvana-sutra indica que também foiSakyamuni quem instituiu a prática das peregrinações, principalmente alugares associados aos acontecimentos principais de sua derradeiraexistência:

Existem,óAnanda,quatrolugaresqueum ilhodefamíliaprovidodacon iançaserenadeveir ver.Quais são estesquatro lugares?O lugar emquedizem:AquinasceuoTathagata [...].AquioTathagataatingiuaIluminaçãoperfeita[...].AquioTathagatacolocouemmovimentoaRodadaLei[...].AquioTathagataatingiuonirvanacompleto[...].Osbhikkhus,asbhikkhunis,osdiscípulosleigos,homensemulheres,visitarãoesseslocais.8

Aconvitedomestre,religiososeupasakascertamenteforamemgrande

númeroatéLumbini,Bodh-Gaya,SarnatheKushinagar.Ashoka,noséculoIIIa.C,assimcomoomongeHuanTsang,quasedezséculosdepoisdele,sóestava dando continuidade à prática da peregrinação aos locais sagradosdos budistas. Inevitavelmente, esse trajeto logo se confundiu com o cultodasestupasqueabrigavamasrelíquiasdoAfortunado–e issoapesardofato de ele ter reservado esse tipo de devoção apenas aos leigos. Com opassar dos séculos, enquanto as relíquias nãoparavamde semultiplicar,os iéis de Buda adicionaram quatro outros destinos aos locais deperegrinaçãoemqueSakyamuniparou.Sãooslugaresondesederam,deacordocoma tradiçãobudista,osQuatroMilagresSecundários:Rajagrha,onde o sábio acalmou o elefante furioso; Sravasti, onde ele fez aparecerumamangueiranaocasiãododebatepúblico;Samkasya,ondeeledesceudocéuemumaescadadecristaldepoisdefazerumavisitaaosdeuses;e,por im,Vaisali, ondeumdiaummacaco rouboua tigeladepedir esmoladoAfortunadoparalhefazerumaoferendademel.

No fundo, apenas uma questão se coloca: a do signi icado damorte deBuda para seus iéis. Quando fazem suas peregrinações aos locaissagrados,qualéaligaçãoqueosbudistas,religiososouleigos,têmcomseumestre falecido? De acordo com o cânone budista, o termoparinirvanadesignaa“extinçãocompleta”daquelequejáselivroudo samsaradurantesua existência: quando morre, chega ao im de initivo de seu últimorenascimento.Poroutrolado,comoadoutrinabudistanegaaexistênciadoatmã, a morte de Buda então corresponde, teoricamente, à anulaçãoabsoluta: tudoquecompunhasuapessoadeixade initivamentedeexistir.Depois de seuparinirvana, o Afortunado nuncamais voltaria a renascer,nemaquinemnoalém;ele teria rompido todasas ligações comomundodoshomens.Destamaneira,ashomenagensqueseus iéisfazemaelenasestupas, as oferendas que nelas depositam, não podem chegar até ele. Oculto das relíquias, portanto, não consiste em manter “viva” qualquerrelaçãocomBudadepoisdeseufalecimento:emprincípio,aofazerisso,odevoto apenas busca alcançar um ato altamente meritório, do qual eleesperaumdiacolherosfrutos,deacordocomaleidocarma.Mas as coisas nem sempre são assim tão simples... Os textos canônicos

relatam que um dia obhikkhuMalunkyaputta falou comBuda sobreumacoisa que o incomodava: por que ele deixava várias perguntasparticularmente importantes e profundas sem resposta, entre elas a quese referia à existência doAfortunado alémdamorte? Comumapontinhade ironia, Buda respondeu a seu discípulo que nunca tinha prometidoensinar-lheseomundoéounãoeterno,seélimitadoouin inito,seaforçavital é idêntica ao corpo ou ao contrário e, inalmente, se ele próprio, oTathagata,sobreviveounãodepoisdamorte–ouasduascoisasaomesmotempo...Dandocontinuidadeaseusermão,omestreentãoexplicouqueoconhecimentodetodasessascoisasnãoajudaemnadaparaprogredirnocaminho da salvação e lembra a ele o cerne de seu ensinamento, ou asQuatroNobresVerdades: a verdade sobreo sofrimento, a verdade sobresua origem, sobre sua supressão e, por im, o caminho que leva a essasupressão: “Por consequência, ó Malunkyaputta, conserve em sua menteaquilo que eu nunca expliquei como não explicado, e aquilo que euexpliqueicomoexplicado9”.O sábio, então,pediaespeci icamentea seusdiscípulosquedesistissem

de saber qualquer coisa a respeito de sua existência, ou de sua nãoexistência,depoisdoparinirvana.Paraele,essasespeculaçõeseramvãsnamedidaemquenãoserviamparaajudarnoprogressointerior.Sejacomofor,asrespostasdomestreemformade“nemsim,nemnão”àsperguntas

que ele classi icava como “inúteis10” não deixaram, para seus iéis, nemuma fresta na porta da esperança de transcendência de Buda depois desuamorte–e,deláparacá,essasrespostasnuncadeixaramdedarlugarainterpretaçõesmúltiplasedivergentescomopassardosséculoseentreasdiversasescolasdobudismo.Finalmente, com a morte de Sakyamuni, é claro que ressurgiram as

especulaçõeseternasarespeitodadataçãodesuaexistência:desdequeahistoricidadedo fundador do budismo foi estabelecida, no inal do séculoXIX, essa questão – entre tantas outras – nunca deixou de colocar osespecialistasemoposição.Em que momento deve ser ixada a morte do mestre? A escola

TheravadasituaoparinirvanadoBudahistóriconaocasiãodaluacheiadomês devaisakha – oumelhor, no exatomomento de seu nascimento e desua Iluminação. Portanto, os budistas comemoram este acontecimentotriplonafamosafestadoVesak,queocorrenaluacheiadomêsdemaiodocalendário ocidental. Nota-se, no entanto, que, para outras tradiçõesbudistas, o acontecimento se deu na lua cheia dekarttika, ou no outono.Mas, no fundo, não fazmuita diferençapara os especialistas; o debate seconcentraem ixaroanodoacontecimento.Ea tarefaédasmaisárduas:de fato, émuito di ícil desgrenhar o emaranhado de informações que asdiversasescolasbudistasdaÍndiaantigadeixaramparanós,mastambémas legadaspelastradiçõesmaisrecentes,comoporexemploachinesaeatibetana.NoséculoXIX,eraa tradiçãocingalesadoTheravadaqueofereciamais

credibilidadeaosolhosdosintelectuaiseuropeus,apesardeamaiorpartedeles na época utilizar as datas o iciais da vida de Buda fornecidas peloCaminho dos Antigos: 623 a.C. para seu nascimento e 543 a.C. para suamorte.Mas essaprimeira estimativaprecisou ser corrigidanaocasiãodadescoberta de um ponto de ancoragem histórica importante: a data daascensão ao trono de Ashoka. Ela não foi fácil de estabelecer: ostestemunhos do embaixador Megasteno, transmitidos pelos historiadoresgregos,primeiropermitiram ixaradatadachegadaaopoderdofundadordo império Maurya, Chandragupta, por volta de 321 a.C. Depois, com aajudadascrônicascingalesas,quefornecemaduraçãoprecisadoreinadodeChandraguptaedeseusucessoratéaascensãoao tronodeAshoka,adata foi estabelecida por volta do ano 265 a.C. Além disso, as fontescingalesas oferecem uma outra informação essencial: elas situam ofalecimentodeBuda218anosantesdeAshokachegaraopoder.Portanto,

os historiadores acabaram por ixar a data damorte domestre históricoporvoltade483a.C.Apesar do consenso necessário da comunidade cientí ica, que desde

entãoconcordaemdataronascimentodoBudahistóricoporvoltade563a.C. e sua morte por volta de 483 a.C., as polêmicas na verdade nuncadeixaramdeexistir.Amaiorpartetendea“rejuvenescer”Buda.A ideiaéalimentada pelo problema da longevidade do sábio que, sem dúvida, éexageradapelosdiscípulosemseusescritos;peloquestionamentodadataexata do sacramento de Ashoka; pelo fato de a tradição cingalesaapresentarumadataçãoestranhamentesessentaanosanterioràcalculadapelospesquisadores;e, inalmente,peloestudodastradiçõesdaCaxemira,do Tibete e da China. Apesar de essas duas últimas serem consideradasmenos con iáveis, por seremmais tardias, é necessário dizer que as trêsconcordam em ixar a morte de Sakyamuni apenas um século antes doreinado de Ashoka. Mais recentemente, com a escolha de situar onascimentodomestrepor voltade480 a.C., RichardGombrich, estudiosoespecializado em Buda da Universidade de Oxford, relançou a “contendacortês11”, como André Bareau a chamava. Talvez essa questão algum diatermine por ser classi icada como sem resposta por “falta de provas”... Amenosqueumanovadescoberta cientí ica permita que se chegue a umaconclusãoirrefutável–bemdojeitoqueoOcidentegosta.ParaencerraraquestãodamortedeBuda,abandonemosascontendas

dos especialistas e voltemos ao relato. A literatura budista conta que,depoisdapartilhadasrelíquias,chegouaépocadosconcílios...Oprimeiro,reunidopelo velhomongeKasyapa, teria acontecido emuma caverna emRajagrha,jánaprimeiraestaçãodechuvasqueseseguiuàmortedeBuda.Ele teria durado setemeses. Ao inalmente atingir o estadodearahant, oielAnandateriaentãoapresentadoospontosprincipaisdaDoutrinaeasbasesdaregrada Sangha.OexcelentemongeUpali,oantigobarbeiro,porsua vez, teria sido longamente interrogado em relação às questões dedisciplina.Reunindosetecentosmonges,osegundoconselhoteriaocorridoem Vaisali, a capital dos licchavis, um século depois doparinirvana deSakyamuni.Apesardeosespecialistasduvidaremdarealidadedoprimeiroe até do segundo concílio, eles reconhecem, por outro lado, a existênciahistórica do terceiro concílio convocado em Pataliputra por Ashoka, nodecurso do qual o cânone budista foi ixado oralmente, de maneirade initiva.Foientãoquecomeçouolongoecomplexocaminhodobudismo,edesualiteratura,emdireçãoaterraslongínquas...

ÉaliquevoltamosacruzarcomospassosdeHuanTsang.Depoisdetervisitado Kushinagar, o peregrino chinês mais famoso de todos terminousuaperegrinaçãonaterrasagradadeBuda.Masomongeaindanãoestavaprontoparavoltaraseupaís.Defato,eletinha ixadoumsegundoobjetivoa sua viagemà Índia: encontrar, estudar e levar consigoomaiornúmeropossível de textos budistas, ou melhor, de acordo com sua coloridaexpressão, “aprofundar os textos do elefante perfumado e esgotar a listado palácio dos dragões12”. Para isso, resolveu ir a um lugar próximo àantigaRajagrha,atéacidademonásticadeNalanda.Olugarreuniadezmilmonges e sua reputação como centro de saber budista ultrapassava, emuito,as fronteirasda Índia.HuanTsangpassouanosali, estudandocomaplicação o sânscrito e os textos canônicos do Grande Veículo, além dasoutras grandes doutrinas religiosas indianas. Tanto que, em 643, naocasião de um grande debate público, o monge chinês se destacou combrilhantismo perante quinhentos mestres religiosos concorrentes, entreeles brâmanes e jainistas, budistas e de outras escolas, além de diversoschefesespirituaisheterodoxos.Em645,elefinalmentetomouocaminhodevolta. Depois de ter superado incontáveis obstáculos, do Himalaia àbarreiradalíngua,HuanTsangconseguiulevaracaboamissãoquetinhaixadoparasi:quandochegouàChina,depoisdedezesseislongosanosdeausência,oPeregrinotinhatrazidoconsigo657manuscritosbudistas.Apesar de os budistas não terem deixado de louvar a glória das

conquistasdo“príncipedosperegrinos”,atítulojusto,elenãofoiohomemqueinaugurouobudismonaChina:comojámencionamos,aexpansãodadoutrinadeBuda foradesuaregiãodeorigemjáeraumahistóriaantiganoséculoVIId.C.NoséculoIIIa.C.,comoimpulsodeAshoka,obudismoseespalhouparaosuldaÍndiaeparaoCeilãoantesdeconquistar,porrotamarítima, todo o Sudeste Asiático. Ao mesmo tempo, ele também sedifundiu até a Ásia Central, por meio dos reinos helenistas do atualAfeganistão.NoséculoI,aexpansãodoMahayanacoincidiucomoapogeudo império Kushana: no noroeste, o Grande Veículo chegou primeiro àcivilização sogdiana e depois à bactriana; em seguida, tomando aRotadaSedaaonortedacadeiademontanhasdoHimalaia,elesepropagouatéaChina. Por volta do primeiro milênio, no norte da Índia, uma versão dobudismomuito impregnadapela iogahindueamagiatântricaseseparoudo Mahayana para formar o Vajrayana, ou Veículo de Diamante...Difundido até oTibete pormissionários indianos a partir do séculoVII, oVajrayana se tornou rapidamente a religião dominante. Ao contrário do

que é possível pensar, o Tibete foi a última região asiática a ser afetadapelo budismo. Mais surpreendente ainda é saber que, por intermédiodestebudismotardioetãoespecí ico,que icoutantosséculoscon inadoao“País das Neves”,muitos ocidentais descobriram, por sua vez, a doutrinadeBudanodecursodoséculoXX,depoisdafamosaAlexandraDavid-Neel.Oencontrofoi frutífero:hoje,naFrança,amaioriadosmosteirosbudistassegue rituais tibetanos. Diferentemente da elite intelectual do século XIX,queorejeitou,ograndepúblicosoubeacolhercomentusiasmoadoutrinadeBuda.Decididamente, os caminhos que levam ao encontro de Sakyamuni são

tãomúltiploscomoimpenetráveis.

EpílogoEscutadodestamaneira.Umavez,BudaestavafixadoemSravasti,nobosquedeJeta,nojardimdeAnathapindada.Então,omaishonradodomundodisseaosmonges:– Há uma coisa que vocês precisam praticar, há uma coisa que vocês precisam difundir.Graças a isso, percebemos os poderes divinos, eliminamos uma boa quantidade depensamentosdesordenados,colhemososfrutosdavidareligiosaechegamosaoNirvana.Dequesetrata?DalembrançadoBuda.Énecessáriopraticá-la,énecessáriodifundi-la.Graçasaela, percebemos os poderes divinos, eliminamos uma boa quantidade de pensamentosdesordenados, colhemos os frutos da vida religiosa e chegamos ao Nirvana. É por isso,monges,queénecessáriopraticar,queénecessáriodifundir.Aquiestá,monges,oquevocêsprecisamsaber.Então osmonges, depois de escutarem o que Buda tinha ensinado, receberam aquilo comalegriaeocolocaramemprática.1

Abiógrafasópodelouvaraobraexemplardetransmissãodalembrançadosábio,quesegaranteháquase2,5milanospormeiodeseusdiscípulos–apesardesuasdivergênciasedemúltiplasevoluçõesqueelesincutiramnoâmbitodaSangha.Sim,oscontemporâneosdeBudaoescutarammuitobem, sem dúvida, além de suas próprias esperanças. A inal, como é quealgum dosbhikkhus que estavam ali reunidos poderia imaginar que seumestre,pormaisexcepcionalquetenhasido,iriaconhecertalposteridade?Se é que existe um verdadeiro milagre do budismo, ele é o seguinte: aigurade seu fundador,o relatode suavida, assimcomoos fundamentosdesuadoutrina,foramcapazesdeatravessarotempoatéosnossosdiaseoespaçoatépaíses tãodistantesdesua terradeorigemcomoosEstadosUnidos.Mas, a inal, o que pensar sobre a vida do Buda histórico como foi

relatada por seus iéis em versões múltiplas? Além dos exageros e dosprodígios apresentados com frequência pelos hagiógrafos, qualquerocidental que aborda a literatura budista se defronta com um certonúmerodeconceitosepostuladosderivadosdacivilizaçãoindianaquelhesão absolutamente estranhos. É necessário, portanto, primeiro superaressechoquecultural–semisso,nenhumencontrocomosábioépossível.Desdequeasprimeirasbases foramestabelecidasnoséculoXIXatéos

trabalhos universitários atuais, disciplinas cientí icas – como história ouilologia – fornecem ao leitor não iniciado as chaves indispensáveis paracapacitá-los a apreender o máximo possível dessa alteridade. Como umverdadeirodesa io, a elaboraçãodeste conhecimento ocidental foi o frutodeumprocessolongoelento–que,dequalquermaneira,nãoescapoudoetnocentrismo, quer dizer, de seu condicionamento e evolução próprios.

Como resultado do acaso mais completo ou de um trabalho emérito,descobertas sucessivas terminaram por jogar para longe a ignorância etambémospreconceitosdoOcidenteemrelaçãoaobudismoe,demaneiramaisgeral,àcivilizaçãoqueoviunascer.Masesses trabalhosnãosãocapazesderespondera todasasquestões

colocadas pela existência de Sakyamuni tal como a tradição budista atransmite: o estudo comparativo dos textos canônicos, sua relação com aepigra ia, a iconogra ia e os vestígios arqueológicos comemorativos estãolonge de ter trazido todas as respostas esperadas. Desde os primeirosestudosque foramdedicadosaeleatéhoje,adimensãoverdadeiramentehistórica da vida de Buda resiste às investigações cientí icas. Assim, énecessáriocontentar-secomo fatodequeascontingênciasmateriaiseosacontecimentos precisos de sua existência não passam de hipóteses quenão podem ser veri icadas – em sua maior parte e, talvez, para todo osempre. Mas será que isto realmente é um fato surpreendente? Não éverdadequeomestrepregava exatamente a impermanênciade todas ascoisas e a ilusão da existência individual? Como uma ironia, essaimpossibilidadedeprovarqualquercoisaserve,dealgummodo,paradarcrédito à doutrinade Sakyamuni, que convidava cadaumadescobrir, deacordocomaspalavrasdeClaudeLévi-Strauss,“averdadesobaformadeumaexclusãomútuadoseredoconhecer2”.No fundo, entre a tentação de ceder ao maravilhoso e a ambição de

distinguirahistóriadomitoparaseapoiarapenasnoqueestácon irmado–emoutraspalavras,quasenada–,descobrimossobretudoqueavidadeBuda simplesmente não pode ser desassociada de sua mensagem. Opersonagem se despe sem cessar... em bene ício de seu pensamento.Nenhumbiógrafopodefugirdofatodeque–comooprópriomestreteriachamadoporvontadeprópria–oestudodavidadeBudaequivaleafazeruma viagem no im da qual se chega, quase que exclusivamente, a suadoutrina. Quase todo o resto não passa de interpretação factual, e asquestões permanecem. Assim, é necessário reconhecer que, no caso deSakyamuni, o exercício biográ ico – moderno e ocidental, de maneiraeminente– logosedeparacomseus limites:apartirdomomentoemquecompreende que a chave do enigmado fundador do budismonão residetanto no relato de sua vida quanto em seu ensinamento, o biógrafo nãodemora a constatar que, apesar de tudo, sua ambição e suas visões sãomuitoestreitas.Piorainda, ahistoricidadedopersonagemde repente lhepareceumaquestãosecundária.Aa irmaçãodeVictorHugoassumeentão

seu sentido completo: “A história tem sua verdade, a lenda tem a dela. Averdade lendária temnaturezadiferentedaverdadehistórica.Averdadelendária é a invenção que tem a verdade como resultado. De resto, ahistória e a lenda têm omesmo objetivo: de pintar o homem eterno porbaixodohomemmomentâneo3.”No inaldascontas,acompanharavidadeBudaseresumeadescobrir

um pensamento nascido de uma experiência humana autêntica, cujaprofundidade é tão grande que chega a incomodar da mesma maneiraprofunda o leitor contemporâneo – e o convida a ultrapassar o grandenúmero de lendas e também a falta de conhecimentos cientí icos parachegaraumabuscapelaverdadequetranscendeasculturaseasépocas.Reduzida a sua essência, amensagem de Buda já não parece tanto umadoutrina estritamente religiosa,mas sim uma promessa feliz, uma utopianosentidoprimáriodaetimologiagregau-topos,querdizer,umaverdadequenãoresideem“lugarnenhum”...Da mesma maneira que o alcance da descoberta decisiva do sábio se

comprova universal, a impermanência absoluta que ele ensinou parece,mais do que nunca, con irmada pelos avanços causados por aquilo quechamamos, por um desvio, de “progresso”. Perante o turbilhãodesenfreado do consumismo e da globalização, as palavras de Buda nosvêmàmente:

Sejavocêmesmosuaprópriachamaeseuprópriorefúgio,nãobusqueoutrorefúgio.4

E, de repente, nós nos pegamos sonhando que somos capazes de

saborear, apesardenósmesmos,umpoucoda tranquilidadequeSidartaGautamaconheceu, jáhá25séculos...Meditandoembaixodeumaárvore,digamos.

Aqueleque,noalto,embaixoeatodoredor,élivreNãopodemaissevercomo“eusou”.Daquiloqueanteslhefaltava,eleselibertou:Atravessarorio,jamaisretornar.5

ANEXOS

CRONOLOGIADATASAPROXIMADASDAVIDADEBUDA

(segundoasestimativasmaisusadaspelosespecialistas)563a.C.Nascimentode SidartaGautamano seio da pequena “república” aristocrática dos sakyas,

situada no Terai, na região noroeste da Índia. A tradição também o chama de bodisatva, ou o“ser prometido à Iluminação”. Como seu pai, Sudodana, que dirige o clã dos sakyas, Sidartapertenceàclassedenobresguerreiros.Elerecebeueducaçãoadequadaasuaposiçãosocial;foicriadoemKapilavastu,acapitaldossakyas,emcondiçõesprivilegiadas.

534a.C.Quando jáera casadoe tinhaum ilho, SidartaGautamarenunciouàvidamundana.Eledeixou Kapilavastu, abandonando a família, o palácio e todos os seus bens, e se dedicou aocaminho da busca espiritual. Vestido comoum asceta,mendigando alimento pelo caminho, elechegou até o vale do médio Ganges. Depois de ter seguido os ensinamentos de dois mestresespirituaisfamosos,Sidartadecidiuencontrarporcontaprópriaocaminhodasalvação.Seguidopor cinco jovens renunciantes, instalou-se emuma loresta próxima ao vilarejo deUruvela, noreino de Magada. O asceta Gautama entregou-se então a intensos exercícios de retenção darespiraçãoedepoisàpráticado jejumextremo;acabourenunciandoa tudo issopara seguirochamado caminho “do meio”. Por não compreender sua decisão, seus cinco companheiros oabandonaram.

528 a.C. Ao meditar embaixo de uma árvore perto de Uruvela, Sidarta inalmente alcançou aIluminação, depois de longos anos de busca. Também chamado de “Sakyamuni”, Buda – o“Iluminado” – fez seu primeiro sermão, nas proximidades de Benares, a seus cinco antigoscompanheiros de ascetismo que se tornaram seus primeiros discípulos: a comunidade dosmonges budistas nascia. Logo se bene iciando do apoio dos grandes soberanos de sua época,BudadeucontinuidadeàpregaçãodesuadoutrinanoseiodovaledoGangesdurantedécadas.Àmedidaqueasconversõessesucediam,estabelecimentosmonásticosganhavamvidagraçasaoapoiomaterial fornecido pelos discípulos leigos. Devido ao pedido de sua tia, omestre aceitoufundarumaordemdemonjas.

483a.C.Depoisdeumaintoxicaçãoalimentar,Budachegouao imdavidacomaidadedeoitentaanos, na cidadezinha de Kushinagar. Pouco depois, de acordo com a tradição, os monges sereuniram em um conselho nas proximidades de Rajagrha, a capital do reino deMagada, paradefiniroralmenteocânonebudista.

CRONOLOGIAGERALDAÍNDIAANTIGA

Apesar de a maior parte das datações apresentadas aqui permaneceraproximada,umpanoramadosgrandesacontecimentospolíticos,sociaiseculturais dahistória da Índia antigapermite apreendermelhor a vidadeBuda e, de maneira mais ampla, o surgimento e o desenvolvimento dobudismonoseiodacivilizaçãoindiana.2600a.C.a1700a.C.CivilizaçãourbanadoIndo.1800a.C.a1000a.C.ChegadadosarianosnoNortedaÍndia.Composição,emsânscritoarcaico,do

Rig-Veda,osprimeiroshinossagradosdareligiãovédica.1000a.C.a600a.C.FixaçãosedentáriadosarianosqueinvadiramovaledoGanges.Usodoferro.A partir de 800 a.C. Surgimento de reinos e de “repúblicas” aristocráticas no vale do médio

Ganges.ComposiçãodosprimeirosUpanixades,surgimentodoconceitodesamsara.Séc.VIaVa.C.Períododeefervescência intelectuale religiosa:obramanismosubstituia religião

védica;váriosmovimentossectáriosvêmàtona.VidadeSidartaGautama,oBudahistórico,edeMahavira,ofundadordojainismo.

530a.C.ConquistadoPunjabpelospersas.De400a.C. a400d.C.Composiçãodas epopeias gigantescas doRamayanaedoMahabharata; o

bramanismodáorigemaohinduísmo.327a.C.ExpediçãodeAlexandreoGrande.321a.C.FundaçãodoimpérioMauryaporChandraguptanoNortedaÍndia.Séc.IIIa.C.ReinadodeAshoka,queampliaoimpérioMauryaatéoDeccan.Convertidoàdoutrina

de Buda, o imperador envia missionários para promover o budismo através de seu vastoimpério,eatéalémdele:Mahinda,seufilho(ouirmão?),opropaganoCeilão.

Porvoltade250a.C.Ashoka reúne em Pataliputra o terceiro concílio budista, durante o qual ocânoneéfixadooralmente.

Séc.IIa.C.Surgimentodereinosindo-gregosnaregiãoNordestedaÍndia.Séc.Ia.C.RegistroporescritodocânonpálinoCeilão.Séc. I d.C. Os kushanas, protetores do budismo, reinam sobre o Norte da Índia. Surgimento do

Mahayana,o“GrandeVeículo”,quesepropagaatéaChina,passandopelaÁsiaCentral.Séc.II.ComposiçãodasLeisdeManu.Séc.III.VidadograndefilósofobudistaNagarjuna,queredigeoTratadodoMeio.319-480.OimpérioGupta,cujossoberanossãohindus,encarnaoperíododeapogeudacivilização

indianaclássica.Iníciodoséc.V.ViagemdoperegrinochinêsFaHian.Fundaçãodagrande“universidade”budista

deNalanda.495-520.Ataquesdoshunos.Séc.VII.IníciododeclíniodobudismonaÍndia.ViagemdoperegrinoHuanTsang.

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NotasPRÓLOGO

1.OLDENBERG,Hermann. LeBouddha: sa vie, sa doctrine, sa communauté.Bibliothèque de philosophie contemporaine, LibrairieFélixAlcan,2aediçãofrancesa,1903.

NASCIMENTO

1.LalitavistaraouDéveloppementdesJeux.L’histoiretraditionnelledeIa vieduBouddhaçakyamuni.TraduzidoporFOUCAUX,P.E.de.EmAnnalesdumuséeGuimet.Ed.Leroux,1884.2.Ibid.3.Ibid.4.Ibid.5.Ibid.6.Ibid.7.Ibid.8.Ibid.9.Ibid.

10.Majjhima-nikaya,123.Quandoasfontesnãoestãodeterminadas,asreferênciasdascitaçõesdetextoscanônicoscorrespondemàediçãooficialdaPaliTextSociety(P.S.T.)deLondres,publicadadesde1822atéhoje.

11.Lalitavistara,op.cit.12.Ibid.13.Ibid.14.Ibid.

LUMBINI,18961.ALEXANDRIE,Clémentd’.Stromates.CitadoemLUBAC,Henride.LaRencontredubouddhismeetdel’Occident.Aubier,1952.2.POLO,Marco.LaDescriptiondumonde.Librairiegénéralefrançaise,1998.3.DIDEROTed’ALEMBERT.Encyclopédie,artigo“Asiatiques”,t.I,1751.4.LUBAC,op.cit.

5. OZEREY, Michel-Jean-François. Recherches sur Buddon ou Bouddon, instituteur de l’Asie orientale, précédées.de considérationsgénérales.CitadoemLUBAC,op.cit.6.OLDENBERG,op.cit.

7.ArcheologicalSurveyReports.CitadoemSINGH,Upinder.TheDiscoveryofAncientIndia.EarlyArchaeologistsandtheBeginningsofArchaeology.PermanentBlackEditions,2004.Traduçãodoinglêsparaofrancêsfeitapelaautora.

8.ARecordofBuddhisticKingdoms:BeinganAccountbytheChineseMonkFa-HienofhisTravelsinIndiaandCeylon(A.D.399-414)inSearchoftheBuddhistBooksofDiscipline.Traduçãodoinglêsparaofrancêsfeitapelaautora.9.BASHAM,ArthurL.LaCivilisationdel’Indeancienne.Arthaud,1988.10.MEUWESE,C.(edição.).L’lndeduBouddhavuepardespèlerinschinoissousladynastieTang.Calmann-Lévy,1968.11.WADDELL,LawrenceAustine.CitadoemALLEN,CHARLES, TheBuddhaand theSahibs.TheMenWhoDiscovered India’sLostReligion.PaperbackEdition,2003.Traduçãodoinglêsparaofrancêsfeitapelaautora.12.Ibid.13.RICKETTS,Duncan.CitadoemALLEN,op.cit.

14.Leslnscriptionsd’Ashoka.TraduzidoporBLOCH,Jules.LesBellesLettres,1950.15.WADDELL,LawrenceAustine.CitadoemALLEN,op.cit.

16.Milinda-Pañha.LesquestionsdeMilinda.TraduzidoporFINOT,Louis.Gallimard,coleção“Connaissancedel’Orient”,1992.17.Ibid.

CRIAÇÃO1.Lalitavistara,op.cit.2.Ibid.

3.Ibid.

4.Ibid.5.Ibid.6.Ibid.7.Ibid.8.Ibid.9.Ibid.10.Ibid.

11.Sutta-nipata,3.12.Lalitavistara,op.cit.13.Anguttara-nikaya,3.14.Lalitavistara,op.cit.15.Ibid.16.Ibid.17.Ibid.18.Ibid.

19.Sutta-nipata,3.20.Anguttara-nikaya,3.21.Ibid.22.Ibid.

NAFRONTEIRA

1.ARecordofBuddhisticKingdoms:BeinganAccountbytheChineseMonkFa-HienofhisTravelsinIndiaandCeylon(A.D.399-414)inSearchoftheBuddhistBooksofDiscipline,op.cit.2.Ibid.3.MEUWESE,C.op.cit.4.Ibid.

PARTIDA1.MahasaccakaSutta.2.Ibid.

3.Mahavastu.4.Ibid.

5.VinayapitakadesMahiçâsaka.CitadoemBAREAU,André.EnsuivantBouddha.Éd.duFélin,2000.6.Ibid.7.Ibid.8.Ibid.9.Ibid.10.Ibid.11.Ibid.12.Ibid.

13.Anguttara-nikaya,3.14.Majjhima-nikaya,36,100.15.VinayapitakadesMahiçâsaka,op.cit.16.Nidanakatha.17.Lalitavistara,op.cit.18.Ibid.19.Ibid.

20.Buddhacharita.ÍNDIA,PORVOLTADE1800A.C.

1.TheHymnsof theRigveda, translatedwithaPopularCommentary.TraduzidoporGRIFFITH,RalphT.H.,LAZARUS,E.J. andCo.,1889.Traduçãodoinglêsparaofrancêsfeitapelaautora.

2.Ibid.3.Ibid.4.Ibid.

5.HymnesspéculatifsduVeda.TraduzidoporRENOU,Louis.Gallimard,coleção“Connaissancedel’Orient”,1956.6.Ibid.7.Ibid.

8.Lalitavistara,op.cit.9.Ibid.

10.Mahavastu.BUSCA

1.Majjhima-nikaya,36.2.Ibid.3.Ibid.4.Ibid.

5.Sutta-nipata,3.6.Ibid.7.Ibid.8.Ibid.9.Ibid.

10.Lalitavistara,op.cit.11.Ibid.12.Ibid.13.Ibid.

14.Majjhima-nikaya,36.15.Ibid.

16.Majjhima-nikaya,4.17.Ibid,36.18.Ibid.19.Ibid.

20.VinayapitakadesDharmaguptaka.CitadoemBAREAU,André,op.cit.21.VinayapitakadesMahiçâsaka,op.cit.

VALEDOGANGES,PORVOLTADE500A.C.1. BAREAU, André. “Les origines de la pensée bouddhique”, conferência do Institut Bouddhique Truc Iâm, 24 de maio de 1987.Publicadonaseguintepáginadeinternet:http://cusi.free.fr/fra/fra0070.htm

2.Lalitavistara,op.cit.3.ChandogyaUpanishad.4.Digha-nikaya,2.5.Ibid.

6.Anguttara-nikaya,3.7.Digha-nikaya,2.8.KathaUpanishad.9.PraçnaUpanishad.

ILUMINAÇÃO1.Lalitavistara,op.cit.2.Ibid.3.Ibid.4.Ibid.5.Ibid.6.Ibid.

7.Jataka,1.8.Lalitavistara,op.cit.9.Ibid.10.Ibid.11.Ibid.12.Ibid.13.Ibid.

14.Jataka,1.15.Ibid.

16.Mahavagga,1.17.Majjhima-nikaya,36.18.Ibid.

19.Lalitavistara,op.cit.20.Ibid.

21.Majjhima-nikaya,26.22.DhammapadaSutta.23.Mahavagga,1.24.Lalitavistara,op.cit.25.Ibid.26.Ibid.27.Ibid.28.Ibid.

29.Mahavagga,1.30.Majjhima-nikaya,26.31.Ibid.32.Ibid.33.Ibid.34.Ibid.35.Ibid.36.Ibid.37.Ibid.38.Ibid.

ALENDAILUSTRADA1.Lalitavistara,op.cit.2.SuttaPitaka.3.Ibid.

4.Lalitavistara,op.cit.5.Ibid.

6.Milinda-Pañha.op.cit.7.MajjhimaNikaya,26.8.MEUWESE,C.op.cit.

SERMÃO1.Lalitavistara,op.cit.2.Majjhima-nikaya,26.3.Lalitavistara,op.cit.4.Ibid.5.Ibid.

6.AtharvaVeda.

7.Lalitavistara,op.cit.8.Majjhima-nikaya,26.9.Lalitavistara,op.cit.10.Ibid.

11.Majjhima-nikaya,26.12.Mahavagga,1.13.Lalitavistara,op.cit.14.Ibid.

15.Mahavagga,1.16.Dhamma-cakkappavattanaSutta.17.Lalitavistara,op.cit.18.Mahavagga,1.19.AnattalakkhanaSutta.20.Ibid.21.Ibid.22.Ibid.

23.Lalitavistara,op.cit.EUROPA,SÉCULOXIX

1. QUILICI, Leana e RAGGHIANTI, Renzo. Lettres curieuses sur la Renaissance orientale des frères Humboldt, d’August Schlegel etd’autres, avec en appendice quelques lettres de Constant, Renan, Thierry et Tocqueville. Cromohs (Cyber Review of ModernHistoriography),http://www.eliohs.unifi.it,2008.2.LUBAC,Henride.op.cit.

3.SCHWAB,Raymond.LaRenaissanceorientale,Payot,1953.4.Ibid.

5.DROIT,Roger-Pol.L’Oublidel’Inde.Uneamnésiephilosophique.PressesuniversitairesdeFrance,1989.6.LEVI,Sylvain.CitadoemLUBAC,Henride.op.cit.

7.BARTHÉLEMY-SAINT-HILAIRE,Jules.LeBouddhaetsareligion.DidieretCie,1866.8.AnattalakkhanaSutta.9.DROIT,Roger-Pol.LeCultedunéant.LesphilosophesetleBouddha.Éd.duSeuil,1997.10.HEGEL,G.W.F.CitadoemDROIT,op.cit.11.Ibid.12.BARTHÉLEMY-SAINT-HILAIRE,Jules.op.cit.

13.NIETZSCHE,Friedrich.Eccehomo,“Commentondevientcequel’onest”.Gallimard,1978.14.NIETZSCHE,Friedrich.Fragmentposthumeduprintemps(1888),emOeuvresphilosophiquescomplètes.Gallimard,1976.15.Mahavagga,1.16.FREUD,Sigmund.Malaisedanslacivilisation,1930.

CONVERSÕES1.Majjhima-nikaya,26.2.Mahavagga,1.3.VinayapitakadesDharmagupta,opcit.4.Ibid.5.Ibid.

6.SuttaPitaka.7.Cullavagga,6.

8.Mahavagga,1.9.VinayapitakadesDharmagupta,op.cit.10.Mahavagga,1.11.Ibid.

12.VinayapitakadesDharmagupta,op.cit.13.SuttaPitaka.

DESARNATHAVARANASI

1.CitadoemDictionnairedubouddhisme,artigo“Sarnath”.REGNIER,Rita.EncyclopaediaUniversalis/AlbinMichel,1999.2.LesInscriptionsd’Ashoka,op.cit.3.VASTO,Lanzadel.LePèlerinageauxsources.Denoël,1943.

MILAGRES

1.VinayapitakadesDharmagupta,op.cit.2.Mahavagga,1.3.VinayapitakadesDharmagupta,op.cit.4.Ibid.5.Ibid.6.Ibid.7.Ibid.8.Ibid.

9.Mahavagga,1.10.VinayapitakadesMahîçâsaka,op.cit.11.AdittapariyayaSutta.12.VinayapitakadesMahîçâsaka,op.cit.13.Mahavagga,1.14.VinayapitakadesMahîçâsaka,op.cit.15.Mahavagga,1.

AUTÓPSIALITERÁRIA

1.LesInscriptionsd’Ashoka,op.cit.2.VinayapitakadesMahîçâsaka,op.cit.3.DUMÉZIL,Georges.MytheetÉpopée.Gallimard,1995.

RECRUTAMENTO

1.Nidana-Katha.2.Theragatha.3.VinayapitakadesDharmagupta,op.cit.4.Ibid.

5.CitadoemFOUCHER,Alfred.LaVieduBouddhad’aprèslestextesetlesmonumentsdel’Inde.JeanMaisonneuve,Libraired’Amériqueetd’Orient,1987.6.Ibid.7.Ibid.

8.Lalitavistara,op.cit.9.Cullavagga,10.10.Ibid.

11.Ibid.12.Ibid.

NAGPUR,1956

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4.Digha-nikaya,16.5.Sutta-nipata,1.6.Theragatha.7.Majjhima-nikaya,135.

MISSÃO

1.Cullavagga,6.2.SuttaPitaka.3.Mahavagga,8.4.Ibid.10.

5.Majjhima-nikaya,89.6.Lalitavistara,op.cit.

AJANTA,1819

1.ALLEN,Charles.TheBuddhaandtheSahibs.PaperbackEdition,2003.Traduçãodoinglêsparaofrancêsfeitapelaautora.2.Samyutta-nikaya,10.3.Dhammapada,239.4.MahatanhasankhayaSutta.5.Mahavagga,2.6.VinayaPitaka.

RIVALIDADES1.CitadoemFOUCHER,Alfred.op.cit.2.Ibid.3.Ibid.4.Ibid.5.Ibid.6.Ibid.7.Ibid.8.Ibid.

9.Cullavaga,7.10.Ibid.11.Ibid.12.Ibid.13.Ibid.14.Ibid.

SEMELHANÇASPERTURBADORAS1.POLO,op.cit.

2.GIRARD,René.LesOriginesdelaculture.DescléedeBrouwer,2004.3.Majjhima-nikaya,56.

EXTINÇÃO

1.VinayaPitaka.2.Digha-nikaya,16.3.Ibid.

4.Ekottara-agama, citado em BAREAU, André. Recherches sur la biographie du Buddha dans les Sutrapitaka et les Vinayapitakaanciens,vol.III.Pressesdel’Écolefrançaised’Extrême-Orient,1995.

5.Digha-nikaya,16.6.Ibid.

7.Anguttara-nikaya,4.KUSHINAGAR,637

1.MEUWESE,C.op.cit.2.Ibid.3.Ibid.4.Ibid.5.Ibid.6.Citadoem“BuriedwiththeBuddha”,TheSundayTimes,21demarçode2004.Traduçãodoinglêsparaofrancêsfeitapelaautora.

7.Digha-nikaya,16.8.Ibid.

9.Culamalunkya-sutta.10.Ibid.11.BAREAU,André.op.cit.

12.CitadoemLEVY,André.LesPèlerinsbouddhistes.Jean-ClaudeLattès,1995.EPÍLOGO

1.ERACLE,Jean.ParolesduBouddhatiréesdelatraditionprimitive.Ed.duSeuil,1991.2.LÉVI-STRAUSS,Claude,TristesTropiques,Plon,1955.3.HUGO,Victor.Quatrevingt-treize.LeLivredePoche,2001.4.Digha-nikaya,16.5.Udana,7.

SobreaautoraFormada em línguas orientais, Sophie Royer é especialista em estudos

da Índia, país para o qual viaja com regularidade. Durante dois anos, elaproduziu e apresentou o programa de televisão India, transmitido pelainternet (Canalweb). Ela é autora do guiaLes Indes à Paris (A Índia emParis, Parigramme, 2002) e coautora de diversas obras – entre elasLaroussedascivilizaçõesantigas(Larousse,2006)eLeGoûtde l’Afghanistan(O gosto do Afeganistão, Mercure de France, 2007). Também participourecentementedacriaçãodoroteirodediversosdocumentários,entreelesGangamataeLeMonastèredeLamayuru.