ronald dworkin - o que É uma vida boa? - what is a good life?

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  • 7/31/2019 Ronald Dworkin - O QUE UMA VIDA BOA? - What is a good life?

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    REVISTA DIREITO GV, SO PAULO7 (2 ) | P. 607-616 | JUL-DEZ 2011

    607:TRADUO | TRANSLATION14

    TRADUO AUTORIZADA. PUBLICADO ORIGINALMENTE EM THE NEW YORK REVIEW OF BOOKS, 10 FEV. 2011. DISPONVEL EM: WWW.NYBOOKS.COM/ARTICLES/ARCHIVES/2011/FEB/10/WHAT-GOOD-LIFE/).

    RESUMOA PARTIR DE SEU NOVO LIVRO, JUSTICE FOR HEDGEHOGS1,RONALD DWORKIN ESTABELECE UMA DIFERENTE RELAO ENTRE

    MORAL E TICA, B EM C OM O F UN DA ME NTA A N EC ES SI DA DE D ECUMPRIR TAIS NORMAS POR MEIO DA DIFERENA ENTRE VIDA BOA

    E VI VE R B EM.

    PALAVRAS-CHAVEFILOSOFIA POLTICA; MORAL; TICA2.

    Ronald Dworkin

    O QUE UMA VIDA BOA?

    ABSTRACT

    ACCORDING TO HIS NEW BOOK, JUSTICE FOR HEDGEHOGS,RONALD DWORKIN ESTABLISHES A DIFFERENT RELATION

    BETWEEN MORALITY AND ETHICS FOUNDING THE NEED TO

    OBEY THESE NORMS THROUGH THE DISTINCTION BETWEEN

    GOOD LIFE AND LIVING WELL .

    KEYWORDS

    POLITICAL PHILOSOPHY; MORALITY; ETHICS.

    WHAT IS A GOOD LIFE?

    MORALIDADE E FELICIDADEPlato e Aristteles tratavam da moralidade como um gnero da interpretao. Elestentaram mostrar o verdadeiro carter de cada uma das principais virtudes morais e

    polticas (tais como honra, responsabilidade cvica e justia), primeiro relacionandoumas s outras e, em seguida, aos amplos ideais ticos que seus tradutores resumemcomo felicidade pessoal. Aqui, uso os termos tico e moral de um modo quepode parecer especial. Padres morais prescrevem como ns devemos considerar osoutros; padres ticos, como ns mesmos devemos viver. A felicidade que Plato eAristteles invocaram deveria ser alcanada vivendo-se eticamente, e isto significavaviver de acordo com princpios morais independentes.

    Podemos usar muitos usam tanto tico como moral ou ambos em umsentido mais amplo que apaga essa distino, de um modo que a moralidade inclui

    o que chamo de tica e vice-versa. Mas teramos ento de reconhecer a distinoque estabeleo, a fim de perguntar se nosso desejo tico de viver vidas boas por ns

    TRADUO Emilio Peluso Neder Meyer e Alonso Reis Freire

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    mesmos prov uma razo moral justificvel para nossa preocupao com o quedevemos aos outros. Qualquer uma dessas diferentes formas de expresso nos per-

    mitiria perseguir a interessante ideia de que os princpios morais deveriam serinterpretados de modo que sermos morais nos tornasse felizes no sentido mencio-nado por Plato e Aristteles.

    Em meu livro Justice for Hedgehogs a partir do qual este ensaio adaptado tento seguir aquele projeto interpretativo. Visamos encontrar algum padro tico alguma concepo sobre o que seja viver bem que ir nos guiar em nossa interpre-tao de conceitos morais. Mas h um aparente obstculo. Essa estratgia parecesupor que deveramos compreender nossas responsabilidades morais de um modoque seja o melhor para ns, mas aquele objetivo parece contrrio ao esprito da

    moralidade, porque a moralidade no deveria depender de qualquer benefcio queser moral possa trazer. Podemos tentar refutar essa objeo por meio de uma distin-o filosfica familiar: podemos distinguir entre o contedo de princpios morais,que devem ser categricos, e a justificao desses princpios, que pode recorrer aosinteresses em longo prazo de pessoas compelidas por esses princpios.

    Podemos argumentar, por exemplo, que os interesses em longo prazo de todosinclui aceitar um princpio que probe mentir mesmo em circunstncias nas quaismentir seria o interesse imediato de um mentiroso. Todos tiram proveito quandopessoas aceitam um sacrifcio desse tipo ao invs de cada pessoa mentir quando isso

    est em seu imediato interesse. Contudo, essa manobra parece insatisfatria, porqueno acreditamos que nossas razes para ser morais dependem mesmo de nossos inte-resses em longo prazo. Somos, boa parte de ns, atrados para a perspectiva maisaustera de que a justificao e a definio do princpio moral deveriam ser ambasindependentes de nossos interesses, mesmo em longo prazo. A virtude deveria sersua prpria recompensa; no precisamos aceitar nenhum outro benefcio ao cumprirnosso dever.

    Mas essa perspectiva austera estabeleceria um limite severo a quo longe podera-mos forar uma considerao interpretativa da moralidade: permitiria o primeiro

    estgio que distingui nos argumentos de Plato e Aristteles, mas no o segundo.Poderamos procurar integrao da tica e da moral no interior de nossas convicesmanifestamente morais. Poderamos catalogar os deveres morais concretos, responsa-bilidades e virtudes que reconhecemos, e ento tentar trazer essas convices paradentro de uma ordem interpretativa dentro de uma rede de ideias que se reforamutuamente definindo nossas responsabilidades morais. Talvez pudssemos encontrarprincpios morais muito gerais, como o princpio utilitrio, que justificam e, por suavez, so justificados por requisitos concretos e ideais. Ou pudssemos ir em outra dire-o: delimitando princpios morais muito gerais que achamos atraentes e, ento, vendo

    se podemos combinar estes com as convices concretas e aes que achamospoder aprovar. Mas no poderamos estabelecer a construo interpretativa inteira

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    dentro de nenhuma rede de valores mais ampla; no poderamos justificar ou testarnossas convices morais perguntando como estas servem a diferentes propsitos ou

    ambies que pessoas, incluindo ns mesmos, podem ou deveriam ter.Isso seria desapontador, porque precisamos encontrar autenticidade assim comointegridade em nossa moralidade, e autenticidade requer que rompamos como nos-sas consideraes manifestamente morais, para perguntar qual forma de integridademoral melhor se adqua deciso tica sobre como queremos conceber nossa perso-nalidade e nossa vida. A perspectiva austera bloqueia essa questo. claro que improvvel que alcancemos a total integrao de nossos valores morais, polticos eticos, que parea autntica e correta. por isso que viver responsavelmente umprojeto contnuo e nunca uma tarefa completa. Mas quanto maior for a rede de ideias

    que podemos explorar, mais adiante poderemos impulsionar esse projeto.A perspectiva austera de que a virtude deveria ser sua prpria recompensa

    desapontadora em outro sentido. Filsofos perguntam por que as pessoas deveriamser morais. Se aceitamos a perspectiva austera, ento s poderemos responder por-que a moralidade requer isso. Essa no uma resposta obviamente ilegtima. A redede justificao sempre final em seus limites, circular, e no viciosamente circulardizer apenas que a moralidade prov sua prpria justificao, que devemos sermorais simplesmente porque isso que a moralidade requer. Todavia, triste ser for-ado a dizer isso. Filsofos tm insistido na pergunta Por que ser moral. Porque

    parece estranho pensar que a moralidade, que sempre onerosa, tem a fora que temem nossas vidas apenas porque est l, como uma rdua e desagradvel montanha quedevemos constantemente escalar, mas a qual desejaramos que no estivesse l ou quese esfarelasse. Queremos pensar que a moralidade se liga aos propsitos humanos eambies de um modo menos negativo, que no seja totalmente constrangedora, semnenhum valor positivo.

    Portanto, proponho uma compreenso diferente do pensamento irresistvel de quea moralidade categrica. No podemos justificar um princpio moral apenas mostran-do que seguir aquele princpio promoveria os desejos de algum ou de todos tanto em

    curto como em longo prazo. Ofato de o desejo mesmo o desejo esclarecido, mesmoum desejo universal supostamente incorporado natureza humana , no poder justi-ficar um dever moral. Assim compreendido, nosso sentido de que a moralidade noprecisa servir nossos interesses apenas outra aplicao do princpio de Hume de quenenhum significado da descoberta emprica sobre a condio do mundo pode estabe-lecer concluses acerca da obrigao moral. Minha compreenso de proposta paracombinar tica e moral no descarta amarr-las juntas do modo como fizeram Platoe Aristteles, e do modo como nossos prprios projetos propem, porque aquele pro-

    jeto leva a tica a ser no uma questo sobre o fato psicolgico acerca do qu pessoas

    gostam ou mesmo sobre o que inevitavelmente desejam ou tornam de seu prpriointeresse, mas ele prprio uma questo de ideal.

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    Precisamos, ento, de uma confirmao do que deveramos considerar ser nossosobjetivos pessoais, a qual se adque e justifique nosso sentido de quais obrigaes,

    deveres e responsabilidades temos para com outros. Procuramos uma conceposobre viver bem que possa guiar nossa interpretao dos conceitos morais. Mas que-remos como parte do mesmo projeto uma concepo da moralidade que possa guiarnossa interpretao sobre viver bem.

    verdade que pessoas confrontadas com o sofrimento de outras pessoas normal-mente no perguntam se ajud-las criar uma vida mais ideal para essas ltimas.Aquelas podem ser movidas pelo sofrimento em si ou por uma noo de dever.Filsofos debatem se isso faz uma diferena. Deveriam as pessoas ajudar uma crian-a porque a criana precisa de ajuda ou porque seu dever ajudar? Na verdade,

    ambos os motivos poderiam estar em jogo junto a uma srie de outros, os quais umasofisticada anlise psicolgica poderia revelar, e talvez fosse difcil ou impossveldizer qual prevalece em determinada ocasio.

    A resposta, creio, no depende de nada importante: fazer o que voc consideraser seu dever porque seu dever dificilmente vergonhoso. Tambm no um auto-desvelo condenvel se preocupar com o impacto de comportar-se mal no carter davida de algum; no narcisstico pensar, como sempre dizem, Eu no viveria comi-go mesmo se fizesse aquilo. Essas questes de psicologia e carter no so relevantespara a questo que estou colocando aqui. Nossa questo aquela, diferente, que

    indaga se, quando tentamos estabelecer, criticar e fundamentar nossas prprias res-ponsabilidades morais, podemos assumir sensivelmente que nossas ideias sobre o quea moralidade requer e sobre as melhores ambies humanas para ns mesmos deve-riam reforar umas s outras.

    Hobbes e Hume podem ser lidos como reivindicando, no apenas de uma basepsicolgica, mas tambm tica, para princpios morais familiares. A tica putativa deHobbes que o interesse prprio e, assim, a sobrevivncia so os melhores bens , insatisfatria. Pelo menos para boa parte de ns, alcanar a sobrevivncia por meiode uma moralidade de interesse prprio no condio suficiente para viver bem.

    As sensibilidades de Hume, traduzidas em tica, so muito mais agradveis, mas aexperincia nos ensina que mesmo as pessoas que so sensveis s necessidades deoutros no podem resolver questes morais ou ticas como a teoria de Hume podesugerir , simplesmente perguntando a si mesmas o que esto naturalmente inclina-das a sentir ou fazer. Tambm no ajuda muito expandir a tica de Hume em umprincpio geral utilitrio. Para muitos filsofos, a ideia de que cada um de ns deve-ria tratar de seus prprios interesses como se no fossem mais importantes do queos dos outros tem se revelado uma base atraente da moralidade. Mas, como devo embreve defender, isso dificilmente servir como estratgia para algum viver bem.

    A religio pode prover uma tica justificada para pessoas que so religiosas nosentido correto; temos vrios exemplos nas familiares interpretaes moralizantes

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    dos textos sagrados. Tais pessoas compreendem que viver bem significa respeitar eagradar um deus, e elas podem interpretar suas responsabilidades morais perguntan-

    do qual dessas responsabilidades mais respeitaria ou mais agradaria aquele deus. Masessa estrutura de pensamento pode ser til, como um guia para integrar tica emoralidade, apenas para pessoas que consideram o texto sagrado como um livro deregras morais explcitas e detalhadas. Pessoas que pensam que apenas seu deus deter-minou amor e caridade pelos outros, como acredito que muitas pessoas religiosasfazem, no podem encontrar, apenas naquela determinao, quaisquer respostasespecficas para o que a moralidade requer. Em qualquer caso, no devo depender daideia de qualquer livro divino como instrues morais detalhadas aqui.

    VIDA BOA E VIVER BEMSe rejeitarmos as perspectivas hobbesiana e humeana da tica e no formos tentadospelas religiosas, e ainda assim nos propusermos a unir moralidade e tica, devemosencontrar outra explicao sobre o que significa viver bem. Como disse, no podesignificar simplesmente tudo o que algum de fato quer: ter uma vida boa umaquesto de nossos interesses vistos criticamente os interesses que deveramos ter. uma questo de julgamento e conflito determinar o que seja uma vida boa. Mas plausvel supor que ser moral o melhor modo de fazer a vida de algum uma vida

    boa? Isso amplamente implausvel se mantivermos as concepes populares do quea moralidade requer e do que torna uma vida boa. A moralidade pode requerer quealgum deixe passar um emprego em publicidade de cigarros que o salvaria dapobreza. Na viso da maioria das pessoas ele levaria uma vida melhor se ficasse como emprego e prosperasse.

    claro que uma explicao interpretativa no seria limitada por tais compreen-ses convencionais. Podemos ser aptos para construir uma concepo de vida boa tal,que um ato imoral ou fundamental sempre ou quase sempre tornasse a vida de umagente finalmente uma vida pior a levar. Mas receio que uma tentativa desse tipo fra-

    cassaria. Qualquer concepo atraente de nossas responsabilidades moraisdemandaria grandes sacrifcios pode requerer que arrisquemos ou sacrifiquemosnossa vida. difcil acreditar que algum que tenha sofrido infortnios terrveistenha tido uma vida melhor do que teria se tivesse agido imoralmente e prosperado,criativa, emocional e materialmente, em uma vida longa e pacfica.

    Podemos, no entanto, buscar outra ideia e, eu diria, mais promissora. Isto requeruma distino dentro da tica que familiar para a moral: a distino entre dever econsequncia, entre o correto e o bom. Deveramos distinguir entre viver bem e teruma vida boa. Esses dois diferentes empreendimentos esto conectados e distintos:

    viver bem significa lutar para criar uma vida boa, mas apenas sujeito a certos limitesessenciais dignidade humana. Esses dois conceitos, viver bem e ter uma vida boa,

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    so interpretativos. Nossa responsabilidade tica inclui tentar encontrar concepesapropriadas para ambos.

    Esses ideais ticos fundamentais precisam um do outro. No podemos explicar aimportncia de uma vida boa a no ser percebendo como criar uma vida boa contri-bui para viver bem. Somos animais autoconscientes que tm motivos, instintos,gostos e preferncias. No h nenhum mistrio sobre por que deveramos querersatisfazer tais motivos e servir tais gostos. Mas pode parecer misterioso porque deve-ramos querer uma vida que seja boa em um sentido mais crtico: uma vida da qualpodemos ter orgulho de ter vivido, quando motivos so satisfeitos ou no. Podemosexplicar essa ambio apenas quando reconhecemos que temos uma responsabilida-de de viver bem e acreditamos que viver bem significa criar uma vida que no seja

    simplesmente prazerosa, mas boa no sentido crtico.Voc pode perguntar: Responsabilidade em relao a quem?. ilusrio respon-

    der: responsabilidade para com ns mesmos. Pessoas para quem as responsabilidadesso devidas podem normalmente desobrigar aqueles que so responsveis, mas nopodemos nos desobrigar de nossa responsabilidade de viver bem. Devemos, ao con-trrio, reconhecer uma ideia que acredito quase todos ns aceitamos no modo comovivemos, mas a qual raramente explicitamente formulada ou reconhecida. Somosresponsabilizados a viver bem pela realidade nua de nossa existncia como criaturasautoconscientes com uma vida a levar. Somos responsabilizados no modo como

    somos responsabilizados pelo valor de qualquer coisa confiada ao nosso cuidado. importante que vivamos bem; no importante apenas para ns ou para qualquer pes-soa, apenas importante.

    Temos a responsabilidade de viver bem e a importncia de viver bem explica ovalor de ter uma vida criticamente boa. Estes so, sem dvida, julgamentos ticoscontroversos. Tambm fao julgamentos ticos controversos em qualquer perspecti-va que assuma sobre quais vidas so boas ou bem vividas. Na minha prpriaperspectiva, algum que leva uma vida chata, convencional, sem amizades prximas,desafios ou realizaes, marcando o tempo para a sepultura, no tem uma vida boa,

    mesmo que pense que tem e ache que tem aproveitado completamente a vida queleva. Se voc concorda, no podemos explicar por que ele deveria lamentar-se cha-mando a ateno para os prazeres perdidos: podem no ter havido prazeres perdidose, de qualquer forma, no h nada a perder agora. Devemos supor que elefalhou emalgo: falhou em suas responsabilidades para viver.

    Que valor pode ter viver bem? A analogia entre arte e vida tem sido traada e,como sempre, ridicularizada. Deveramos viver nossas vidas, os romnticos dizem,como uma obra de arte3. Desconfiamos da analogia agora porque ela soa por demaiswildeana, como se as qualidades que valorizamos em uma pintura sensibilidade

    acurada, organizao formal, complexa, ou uma interpretao sutil da prpria hist-ria da arte fossem os valores que deveramos procurar na vida: os valores da

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    esttica. Estes podem ser valores pobres para procurar no modo como vivemos. Mascondenar a analogia por esta razo erra a questo que se encontra na relao entre o

    valor do que criado e o valor dos atos de criar algo.Valorizamos a boa arte no porque a arte como produto melhora nossas vidas,mas porque ela incorpora uma performance, uma ascenso para o desafio artstico.Valorizamos vidas humanas bem vividas no pela narrativa completada, como a fic-o faria, mas porque elas tambm incorporam uma performance: uma ascenso parao desafio de ter uma vida a levar. O valor final de nossas vidas de um advrbio node um adjetivo uma questo de como ns realmente vivemos e no de uma etique-ta colada ao resultado final. o valor da performance, no de qualquer outra coisadeixada quando a performance subtrada. o valor de uma dana ou mergulho bri-

    lhante, quando as memrias se desvaneceram e as ondulaes desapareceram.Precisamos de outra distino. O valor de produto de alguma coisa o valor

    que ela tem apenas como um objeto, independentemente do processo pelo qual foicriada ou outra caracterstica de sua histria. Uma pintura pode ter um valor de pro-duto e este pode ser subjetivo ou objetivo. Suas combinaes formais podem serbonitas, o que confere seu valor objetivo, e pode dar prazer aos espectadores e serpremiado por colecionadores, propriedades que conferemo seu valor subjetivo.Uma rplica perfeita de uma pintura tem a mesma beleza. Se ela tem o mesmo valorsubjetivo depende de se saber que uma rplica: tem o mesmo alto valor subjetivo

    que o original para aqueles que pensam que o original. O original tem um valorobjetivo que a rplica no pode ter, contudo, tem o valor de ter sido elaborado pormeio de um ato criativo que tem valor de performance. Foi criado por um artista quepretendia criar arte. O objeto a obra de arte maravilhoso porque o resulta-do final de uma performance maravilhosa; e no seria to maravilhoso se fosse umarplica fabricada ou se fosse criada por algum acidente bizarro.

    J se riu da ar te abstrata achando que ela poderia ter sido pintada por um chim-panz, e houve quem especulasse se um dentre bilhes de macacos digitandoaleatoriamente poderia produzir Rei Lear. Se um chimpanz por acidente pintou

    Blue Poles ou digitou as palavras de Rei Lear na sequncia correta, esses produtos,sem dvida, no teriam nenhum valor subjetivo grande. Muitas pessoas ficariamdesesperadas para ter ou ansiosas para v-los, mas eles no teriam qualquer valorcomoperformance. O valor de performance pode existir independentemente de qual-quer objeto com o qual o valor de performance fundiu-se. No h nenhum valor deproduto deixado quando uma grande pintura foi destruda, mas o fato de sua cria-o permanecer preserva todo seu valor de performance. As realizaes de Uccellono so menos valiosas porque suas pinturas foram gravemente avariadas em umaenchente em Florena; a ltima Ceia de Leonardo pode ter perecido, mas a maravi-

    lha de sua criao no seria diminuda. Umaperformance musical ou um bal pode terum enorme valor objetivo, mas se no foi gravada ou filmada, seu valor de produto

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    imediatamente diminui. Algumas performances teatro de improvisao e concertosdejazz no gravados encontram valor em suas singularidades efmeras: eles nunca

    vo ser repetidos.Podemos considerar o impacto positivo de uma vida o modo como o mundoem si melhor porque aquela vida foi vivida como seu valor de produto.Aristteles pensou que uma vida boa uma despendida na contemplao, exercendoa razo e adquirindo conhecimento; Plato, que a vida boa uma vida harmoniosaalcanada por meio da ordem e do equilbrio. Nenhuma destas ideias remotas requerque uma vida maravilhosa tenha impacto. A maioria das pessoas, na medida em queestas so autoconscientes e articuladas, tambm ignoram o impacto. Muitas delaspensam que uma vida devotada a amar um deus ou deuses a melhor vida a levar, e

    para outras tantas, uma vida vivida dentro de tradies herdadas e impregnadas nassatisfaes de sociabilidade, amizade e famlia. Todas essas vidas tm, para a maioriadas pessoas que as querem, valor subjetivo: elas trazem satisfao. Mas na medida emque as consideramos objetivamente boas na medida em que faria sentido quererencontrar satisfao em tais vidas , o que conta a performance ao invs do valor deproduto de viver daquele modo.

    Os filsofos costumavam especular a respeito do que chamavam de significado davida. (Agora esse trabalho de msticos e comediantes.) difcil encontrar valor deproduto suficiente na maioria das vidas das pessoas para supor que elas tenham sig-

    nificado por meio de seu impacto. Sim, mas no fosse por algumas vidas, a penicilinano teria sido descoberta to cedo e Rei Learnunca teria sido escrito. Ainda assim, semedirmos o valor de uma vida por sua consequncia, quase todas as vidas no teriamnenhum valor e o grande valor de algumas outras de um carpinteiro que fixou pre-gos em um teatro sobre o Tmisa seria apenas acidental. Em qualquer perspectivaplausvel do que seja verdadeiramente maravilhoso em quase toda vida humana, oimpacto dificilmente entra em qualquer histria.

    Se quisermos dar sentido a uma vida com significado, devemos assumir a analo-gia dos romnticos. Achamos natural dizer que um artista d significado aos seus

    materiais brutos e que um pianista d um novo significado ao que ele toca. Podemospensar que viver bem d significado a uma vida significado tico, se quisermos umnome. Esse nico tipo de significado na vida que pode se manter diante do fato edo temor da morte. Tudo isso o atinge como a um tolo? Apenas um sentimental?Quando voc faz algo menor bem interpretar uma cano ou pea, jogar baralho,pregar uma pea, cumprimentar algum, fazer uma cadeira, um soneto ou amor ,sua satisfao completa em si mesma. Estas so realizao dentro da vida. Por queuma vida no pode ser tambm uma realizao completa nela mesma, com seu pr-prio valor na arte de viver que ostenta?

    Uma modificao. Eu disse que viver bem inclui lutar por uma vida boa, mas estano necessariamente uma questo de minimizar as chances de uma vida ruim. De

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    fato, muitos traos de carter que valorizamos no so mais bem calculados para pro-duzir o que independentemente julgamos ser a melhor vida disponvel. Valorizamos

    espontaneidade, estilo, autenticidade e ousadia: escolher uma s dificulta ou mesmoimpossibilita projetos. Podemos ser tentados a ruir as duas ideias dizendo que desen-volver e exercer esses traos e virtudes so parte daquilo que torna uma vida boa.

    Mas isso parece muito reducionista. Se sabemos que algum que vive na pobre-za cortejou essa pobreza escolhendo uma carreira ambiciosa, porm arriscada,poderemos muito bem pensar que ele estava certo de correr o risco. Ele pode terfeito um trabalho melhor de viver lutando por um sucesso improvvel, mas magnfi-co. Um artista que poderia ser admirado e prspero Seurat, se um nome ajuda ataca em uma direo inteiramente nova que ir isol-lo e empobrec-lo e pode no

    ter muito xito mesmo artisticamente. Se isto tem xito, alm disto, o sucesso improvvel de ser reconhecido, como no caso de Seurat, at depois de sua morte.Poderamos dizer: se ele tivesse xito, teria tido uma vida melhor - mesmo levandoem conta os custos terrveis - do que se ele no tivesse tentado, porque mesmo umagrande realizao no reconhecida faz de uma vida uma vida boa.

    Mas imaginemos que isso no tenha ocorrido: o que ele produz, embora origi-nal, tem menos mrito do que o trabalho mais convencional que ele teria se pintasse.Podemos pensar, se valorizamos muito a ousadia como uma virtude, que mesmo emretrospecto ele fez a escolha correta. Ela no se realizou e sua vida foi pior do que se

    ele nunca tivesse tentado. Mas ele estava certo, consideradas todas as coisas etica-mente, em tentar. Este outro exemplo: gnios esfomeados fazem boas cpiasfilosficas, mas eles no so abundantes. Podemos, contudo, replicar exemplos commilhares de outros banais empresrios em busca de invenes arriscadas, mas gran-diosas, ou esquiadores que encaram o perigo extremo. Mas se ns mesmos somosforados a pensar que viver bem algumas vezes significa escolher o que pode ser umavida pior, devemos reconhecer a possibilidade que ela pode ser. Viver bem no omesmo que aumentar a chance de produzir a melhor vida possvel. A complexidadeda tica corresponde complexidade da moralidade.

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    NOTAS

    1 DWORKIN, Ronald.Justice for hedgehogs. Nova York: Belknap Press of Harvard University Press, 2011.

    2 Resumo e palavras-chave elaborados pelos tradutores. (N.T.).

    3 Oscar Wilde, por exemplo: por meio da Arte, e apenas por meio da Arte, que podemos alcanar nossaperfeio; por meio da Arte, e apenas por meio da Arte, que podemos nos defender dos srdidos perigos da realexistncia. E: Tudo que desejo assinalar o princpio geral de que a Vida imita a Arte muito mais do a Arte imitaa Vida. John Keats: A vida de um homem de qualquer valor uma contnua alegoria. Friedrich Nietzsche: AArte representa a mais elevada tarefa e a atividade verdadeiramente metafsica desta vida.

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    REVISTA DIREITO GV, SO PAULO7 (2 ) | P. 607-616 | JUL-DEZ 2011

    40 Washington Square South, 411 INew York, NY 10012

    [email protected]

    Ronald Dworkin

    PROFESSOR DE FILOSOFIA E DIREITO DA CTEDRA HENRY SOMMERDA NEW YORK UNIVERSITY