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ICS Rodrigo Rosa Casamento e Desigualdade

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Rodrigo R

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Preocupada em demonstrar as implicações da vida conjugal nacristalização das desigualdades sociais, a investigação sociológicatem privilegiado o momento da escolha do cônjuge. Este estudoprocura trazer à luz do dia o papel da própria intersubjectividadeconjugal, que a perspectiva da escolha do cônjuge deixa,forçosamente, na penumbra. Os intrincados mecanismos dogénero, que perpassam a vida conjugal, reforçam frequentementeas condições desigualitárias entre homens e mulheres na suaprojecção enquanto sujeitos sociais para além do universo dafamília. Através da análise de entrevistas em profundidade amulheres que vivem em casal com filhos e cujas elevadasqualificações ampliam, à partida, as possibilidades de carreira ecorrespondente elevação social, o autor observa as condiçõesrelacionais que contribuem para definir o campo de possibilidadesno que às soluções encontradas para articular a vida profissionale a vida familiar diz respeito, analisando particularmente os seusefeitos na desigualdade entre os cônjuges.

Capa: Paula Rego, The Family, 1988

Rodrigo Rosa, sociólogo einvestigador do ICS-UL, temrealizado e publicado trabalho deinvestigação no âmbito da sociologiada família e do género. Desenvolveactualmente investigação no domínioda articulação trabalho-família numaperspectiva comparativainternacional, procurando averiguaras implicações das políticas públicasde família e igualdade de género – implementadas em diferentespaíses europeus – nas modalidadesde articulação entre a vidaprofissional e a vida familiar.

Outros títulos de interesse:

Famílias em PortugalPercursos, Interacções,

Redes Sociais

Karin Wall(organizadora)

Família e Género em Portugal e na EuropaPedro LainsKarin WallLígia Amâncio(organizadora)

Conjugalidades em MudançaPercursos e Dinâmicas

da Vida a Dois

Sofia Aboim

Apoio:

ICSwww.ics.ul.pt/imprensa

ICS

Rodrigo Rosa

Casamentoe Desigualdade

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Rodrigo Rosa

Casamentoe Desigualdade

Uma Análise da Diferenciação Social

no Casal

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Capa e concepção gráfica: João SeguradoRevisão: Levi Condinho

Impressão e acabamento: Gráfica Manuel Barbosa & Filhos, Lda. Depósito legal: 368395/13

1.ª edição: Dezembro de 2013

Instituto de Ciências Sociais — Catalogação na PublicaçãoROSA, Rodrigo

Casamento e desigualdade : uma análise da diferenciação social do casal / Rodrigo Rosa. - Lisboa : ICS. Imprensa de Ciências Sociais, 2013.

ISBN 978-972-671-324-1CDU 316.3

Imprensa de Ciências Sociais

Instituto de Ciências Sociaisda Universidade de Lisboa

Av. Prof. Aníbal de Bettencourt, 91600-189 Lisboa – Portugal

Telef. 21 780 47 00 – Fax 21 794 02 74

www.ics.ul.pt/imprensaE-mail: [email protected]

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À memória do meu pai, Viriato Francisco Duarte Rosa

À memória da minha avó,Maria de Lourdes Pinto do Souto

À Catarina

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Índice

Nota prévia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15

Capítulo 1Escolha do cônjuge e vida conjugal: reformulando o conceito

de homogamia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25 A esperança de uma escolha livre. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26 A redescoberta do padrão homogâmico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34 Pistas na interpretação estrutural da homogamia. . . . . . . . . . . . . 51 Efeitos da diferença sexual . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63 A homogamia como processo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73 Breve caracterização das mulheres entrevistadas . . . . . . . . . . . . . 87 Para uma análise tipológica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 92

Capítulo 2O primado da família e a prioridade da carreira do homem . . . . 103

Da proximidade inicial ao distanciamento do homem. . . . . . . . 104 Uma articulação trabalho-família orientada pela vida familiar . . 111 Desigualdade e diferenciação na divisão do trabalho doméstico. . 136 Do predomínio masculino à diluição do casal na família . . . . . . 152

Capítulo 3A dupla aposta da mulher e a intangível proximidade social

no casal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169 Explicar o distanciamento social do homem: os limites

da escolha do cônjuge . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 170 Polivalência e concessão na articulação trabalho-família . . . . . . . 178

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A divisão diferenciada das tarefas e o sentimento de ausência do pai . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 215

A diversificação das dinâmicas conjugais e a expectativa face à vida em casal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 221

Capítulo 4Da perpetuação da proximidade social à dupla ascensão . . . . . . . 239

Homogamia, herança e ascensão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 240 Carreira ou polivalência? Os dilemas da articulação

trabalho-família . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 247 A partilha e a desvinculação do homem no trabalho

doméstico. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 281 Companheirismo, redistribuição dos recursos e abertura

ao exterior . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 284

Capítulo 5A aposta na carreira como exclusividade da mulher . . . . . . . . . . 287

Da proximidade à distância a favor da mulher . . . . . . . . . . . . . . 288 A prioridade da carreira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 299 Da participação do homem à delegação das tarefas

em terceiros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 320 O apoio do homem, o poder da mulher e a fusão conjugal . . . . 328

Conclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 341 Vida conjugal e declínio da proximidade socioprofissional . . . . 343 Prioridades e constrangimentos na articulação trabalho-família . . 345 Explicando a diferenciação social no casal . . . . . . . . . . . . . . . . . 348

Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 355

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Nota prévia

Este livro expõe os resultados de um trabalho de investigação de na-tureza qualitativa realizado no âmbito da minha dissertação de doutora-mento Escolha do Cônjuge e Modos de Construção da Distância Social noCasal. O primeiro agradecimento é, portanto, devido às instituições queapoiaram Escolha do Cônjuge e Modos de Construção da Distância Social noCasal. À Fundação para a Ciência e a Tecnologia, pelo financiamentoque tornou possível a concretização deste trabalho. Ao Departamentode Sociologia do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Em-presa, bem como ao Centro de Investigação e Estudos de Sociologia,por terem proporcionado o devido enquadramento deste doutoramento,com um agradecimento especial a Ilda Ferreira, a Anabela Ramos e aCélia Ramalho, pela sua incansável disponibilidade. Agradeço ainda aoInstituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, instituição ondeiniciei a minha actividade como investigador e que me acolheu na reali-zação da presente tese.

Gostaria particularmente de agradecer a Karin Wall, minha orienta-dora, pelos conhecimentos e competências que desde sempre me trans-mitiu com rigor, incansável disponibilidade, incentivo e amizade. Às suasobservações críticas e à sua capacidade para me derrubar os horizontesdevo grande parte da minha formação na investigação. Devo ainda re-conhecimento a Michel Bozon, pelo debate e pelos comentários que fezaos primeiros resultados deste trabalho. A Maria das Dores Guerreiro,pela minúcia das suas críticas e sugestões para aperfeiçoar, na forma e noconteúdo, o trabalho numa fase inicial. A Maria Johanna Schouten, pelosimportantes comentários críticos a partes do manuscrito. A José ManuelPaquete de Oliveira, pela amizade e pelas oportunidades que sempre meproporcionou na investigação. A Rui Pena Pires, pelo estímulo que re-presentou desde a licenciatura e, particularmente, pelos debates que melevam sempre a revisitar a teoria sociológica. Gostaria também de agra-

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decer a todos os meus colegas no ICS e, sobretudo, da equipa do pro-jecto Famílias no Portugal Contemporâneo, que contribuíram para man-ter sempre vivo o entusiasmo pela investigação científica. Um agradeci-mento, em particular, à Vanessa Cunha, por todo o seu apoio. À AliceRamos e ao Marcus Lima, pela sua prontidão em esclarecer os enredosmais insondáveis da estatística.

Qualquer tese requer um vigor que se alimenta da energia humanaem seu redor, energia essa que fui encontrar na Catarina, companheirasempre atenta a cada um dos meus passos nesta travessia. Um agradeci-mento muito especial é, por outro lado, devido à Noémia, por ter «segu-rado as pontas», sobretudo nos últimos meses, até ao limite do sustentá-vel. Não me restam dúvidas de que, sem ela, este projecto oceânico nãochegaria a bom porto. Agradeço também à minha mãe o apoio na reali-zação deste trabalho. Conjuntamente, quis a sorte que não me faltassetodo um grupo de pessoas muito especiais, que se mobilizaram em apoioao doutorando. Começo por agradecer à Graça e ao António Manuel,pela sua constante dedicação. À Ana e ao Francisco pela amizade e apoio.Ao Luís e à Hortense, ao Eduardo, à Ivone e ao Joaquim, à Marta, aoAfonso e ao Santiago pela paciência para com a nossa ausência. À avó,sempre preocupada com o presente e o futuro dos netos. À Maria doCarmo, pelas longas tertúlias e o caloroso acolhimento no Porto. Querotambém agradecer à Margarida, pelo apoio em momentos decisivos. E,enfim, nesta rede «familiar» de apoio fez de igual modo questão de seincluir a Marlene, a quem portanto deixo uma palavra.

Por outro lado, a rede de apoio alarga-se aos amigos que me têm acom-panhado, sempre tolerantes, como gosto de acreditar, para com os meussilêncios. Ao Pedro Hespanha, por ter lido e devolvido com interpela-ções, frequentemente carregadas de uma ironia corrosiva, as reflexões es-critas nos intervalos da tese. À Cristina Joanaz de Melo, cúmplice nasagruras desta caminhada, por, tal como eu, ter preferido os seus desabafosaos meus silêncios. Ao Guilherme Carrilho da Graça, amigo desde a in-fância despreocupada na Bartolomeu Dias, por nunca se ter cansado deme desafiar. À Luísa Luzio, por rechear a minha caixa de correio electró-nico com mensagens escritas numa prosa gourmet, em gesto de prolon-gamento da amizade e das afinidades. Ao Luís Lomelino, pelo interessee expectativa que sempre demonstrou para com o resultado do meu tra-balho. À Angelina Castro, por se lembrar de estar presente nos bons enos maus momentos. Ao Filipe Passeira e ao Miguel, por quase conse-guirem fazer-me acreditar ser melhor do que sou. Ao Bernardo Couto,por ainda hoje aguardar, em vão no seu gabinete, a primeira sessão de

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Nota prévia

psicoterapia. À Paula Goulão, ao Tiago e à Sara, por não se cansarem delamentar a minha ausência. À Sandra Pereira, ao Robi Silva e à AnaHorta, pelos bons momentos nos intervalos do percurso. Last but notleast, ao Braulio Gómez Fortes, que deu comigo descobrindo Lisboa.

Uma palavra de gratidão é ainda devida a todas as entrevistadas, queme deram grande parte da matéria substantiva para realizar este trabalho.Pretendo, enfim, deixar um último agradecimento à pintora Paula Rego,por ter gentilmente cedido os direitos de utilização da imagem da suapintura «A Família/The Family, 1988» na capa do presente livro.

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Introdução

O entrecruzamento dos efeitos da classe social e do género constituium dos principais desafios aos sociólogos que procuram auscultar as im-plicações das assimetrias entre os sexos nas diversas dimensões da vidasocial. Com efeito, a assimetria sexual imiscui-se nos processos da desi-gualdade social, estruturando a divisão do trabalho entre os homens e asmulheres nos diferentes domínios da vida em sociedade. Sob a forma deuma repartição de papéis na família, a divisão sexual do trabalho é in-culcada através das diferentes instâncias da socialização e subordinadaàs desiguais oportunidades de emprego e carreira, constituindo, portanto,um aspecto crucial da negociação conjugal que se evidencia particular-mente quando ambos os elementos do casal exercem profissões qualifi-cadas com acrescidas possibilidades de carreira. Levando em linha deconta o movimento no sentido da escolarização crescente que a socie-dade portuguesa testemunhou nas últimas décadas, bem como os fenó-menos da mobilidade social e da consolidação da presença das mulheresno mercado de trabalho, a relação entre vida conjugal e desigualdadesurge hoje como objecto de interesse redobrado para a sociologia. O tra-balho de investigação, cujos resultados este livro expõe, inseriu-se noquadro desta problemática, tendo precisamente elegido por objectivoprincipal averiguar o papel da vida conjugal e familiar na diferenciação socialentre os homens e as mulheres.

No plano normativo dos valores e das atitudes, diversos padrões ob-servados na sociedade portuguesa contemporânea suscitam igualmenteuma reflexão sobre a relação entre família e trabalho na análise dos pro-cessos de diferenciação social entre os homens e as mulheres. O duploemprego instalou-se como a configuração conjugal predominante,ecoando, aliás, as atitudes da maioria dos portugueses, muito receptiva àpresença das mulheres no mercado de trabalho. Todavia, essas atitudes

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contrastam com o conservadorismo implícito na ideia, fortemente dis-seminada na sociedade, de que o trabalho das mulheres perturba o idealdesempenho da maternidade e, enfim, o papel activo das mulheres navida familiar (Wall 2007a). Por outro lado, se é crescentemente valorizadaa participação dos homens no trabalho doméstico, já a objectiva mu-dança no sentido de uma maior partilha dos encargos familiares estáainda bastante aquém da atitude igualitarista orientada para a partilha,atitude essa que é mais frequentemente observada junto dos meios maisescolarizados (Wall e Guerreiro 2005). Ora, esta discrepância entre valo-res, atitudes e práticas no que respeita à divisão sexual do trabalho pro-fissional e do trabalho doméstico reporta à problemática da articulaçãoentre os efeitos do género e os da classe social, problemática essa em que,precisamente, se inscreve o objecto deste trabalho de investigação.

Os múltiplos estudos desenvolvidos ao longo das últimas décadasdemonstram que a família constitui, desde logo no momento da suaformação, uma peça fundamental na reprodução das clivagens sociais(Girard 1981 [1964]; Segalen e Jacquard 1971; Kellerhals et al. 1982;Bozon e Héran 1987a e b; Kalmijn 1994; Birkelund e Heldal 2003; Blos-sfeld e Timm 2003; Widmer et al. 2003; Esteve e Cortina 2006; Rosa2005; Vanderschelden 2006). A persistência dos padrões matrimoniaishomogâmicos recorda-nos o peso dos factores estruturais, que interfe-rem na escolha do cônjuge sob a forma de condicionalismos exteriores– como a influência mais ou menos directa dos pais, do colectivo deperten ça, dos quadros normativos, etc. –, ou de disposições incorpora-das – afinidades de gosto, afinidades ideológicas, atributos pessoais emfunção da diferença sexual, etc. Os estudos sobre a escolha do cônjugerevelam uma diversidade de padrões homogâmicos, entre os quais sedestaca a homogamia socioprofissional, ou seja, o padrão de proximi-dade entre os posicionamentos dos cônjuges na estrutura socioprofis-sional. No entanto, estes trabalhos de investigação não permitem umaantevisão da própria (des)igualdade construída no decurso da vida con-jugal. A abordagem da proximidade socioprofissional entre os cônjugescircunscrita ao momento da formação do casal oferece, assim, uma visãodemasiado parcimoniosa do contributo da união conjugal para a crista-lização, amplificação ou, enfim, atenuação das desigualdades sociais re-sultantes da assimetria sexual. Com efeito, se as desigualdades de génerosão omnipresentes na negociação da divisão familiar do trabalho pro-fissional e do trabalho doméstico, o papel do casamento e da vida conjugalcom filhos na diferenciação social inscreve-se então num processo cuja complexi-dade não pode ser reduzida à conjugação dos factores intervenientes na escolha

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Introdução

do cônjuge, decorrendo, na verdade, das lógicas que actuam na articulação entrea vida familiar e a vida profissional.

Tendo presente as desigualdades de género que atravessam as esferasprofissional e familiar – pese embora as mudanças observadas no planodos comportamentos e, sobretudo, no das atitudes – era nosso pressu-posto que os efeitos da entrada no casamento se consubstanciam gra-dualmente em apostas diferenciadas na carreira profissional. Este pres-suposto corrobora a tese de F. de Singly, para quem «a negociação[conjugal], ela própria função do tipo de casamento realizado, modificaas proximidades e as distâncias entre os cônjuges» (1987, 182). Neste sen-tido, o presente trabalho de investigação procurou auscultar em que me-dida e de que modo o valor social do homem beneficia quer da sobre-carga feminina com o trabalho doméstico – sobrecarga essa que nãopode ser dissociada do «respeito pela prioridade masculina, evidentemesmo nos grupos inclinados para a crítica da mulher no lar» (Singly1997 [1987], 36) –, quer das qualidades relacionais da mulher que, enal-tecidas no momento da escolha do cônjuge (Bozon 1990; 1990a), setraduzem, com frequência, em apoio de bastidores e exaltação da ima-gem do parceiro.

Como ponto de partida na definição do objecto de estudo, interpe -lámos assim as limitações de diversas propostas conceptuais da homoga-mia, bem como da usual circunscrição do processo homogâmico ao mo-mento da formação do casal. Com efeito, em virtude da sua naturezadescritiva, o conceito de homogamia apresenta limitações óbvias à ob-servação do papel do casamento nos processos de diferenciação social.O seu carácter estático permite apenas uma caracterização social sumáriado casal no momento da sua formação, caracterização essa que não es-clarece sobre o processo de escolha do cônjuge, nem tão-pouco, obvia-mente, se adequa à auscultação das implicações da negociação conjugal– e, em particular, dos compromissos envolvidos na articulação entre avida familiar e a vida profissional – na diferenciação social entre os ho-mens e as mulheres. Pese embora fundamental à demonstração do papeldo casamento na cristalização das clivagens sociais, a conceptualizaçãoda homogamia com enfoque no momento da escolha do cônjuge nãooferece a possibilidade de dar conta dos processos subjacentes às eventuaisalterações das posições sociais dos cônjuges no decurso da vida conjugal.Neste trabalho, o conceito de homogamia é, portanto, sujeito a uma re-formulação tendo em vista a análise das implicações da negociação con-jugal e da vida familiar na construção da desigualdade social entre ossexos. Dessa reformulação teórica nasceu o conceito de trajectória conjugal.

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Este conceito tem na sua raiz uma abordagem dinâmica da homogamia,possibilitando não apenas descrever a configuração que a proximidadesocioprofissional entre os cônjuges assume ao longo da vida conjugal,mas igualmente identificar os processos e os factores co-determinantesdessa configuração. A definição de uma trajectória conjugal implica, assim,a observação de um conjunto articulado de dimensões. Desde a confi-guração do percurso do casal – resultante da confrontação entre o seuactual perfil social e aquele que apresentava no momento da sua forma-ção – à divisão sexual do trabalho na família e à dinâmica conjugal, des-tacam-se ainda entre essas dimensões as soluções que as mulheres en-contram tendo em vista a articulação entre os seus projectos profissionaise as solicitações da vida familiar.

A formulação do conjunto de hipóteses prefiguradas nos eixos de de-senvolvimento desta abordagem alternativa e dinâmica da homogamiaenquanto trajectória conjugal resultou de um circuito de reflexão que pro-porcionou aos elementos obtidos no decurso do trabalho empírico ree-quacionarem o quadro teórico e analítico (Merton 1987[ 1949]). A pri-meira hipótese prende-se com o esvaecimento, no decurso da vidaconjugal, da proximidade socioprofissional entre os cônjuges que carac-terizava o casal no momento da sua formação. A segunda hipótese as-sume que esse declínio da proximidade socioprofissional se consubstan-cia sobretudo numa amplificação das assimetrias de género no casal. A terceira hipótese assenta no pressuposto de que as estratégias elaboradaspela mulher no sentido da articulação entre a vida profissional e a vidafamiliar contribuem de forma decisiva na explicação da configuração datrajectória conjugal. A quarta hipótese reporta às implicações dos constran-gimentos e vicissitudes que enredam os/as principais protagonistas da ar-ticulação trabalho-família. Por último, partimos da hipótese de que a ne-gociação conjugal e a divisão familiar do trabalho profissional e dotrabalho doméstico constituem factores co-determinantes da configura-ção assumida pela trajectória conjugal.

1Tendo em vista a produção de uma tipologia de trajectórias conjugais,

a «estratégia comparativa-tipológica»1 subjacente às questões com que

1 Reconfiguração terminológica sugerida por A. F. da Costa (1999) a propósito deuma das principais estratégias de investigação – a investigação comparativa ou estudo com-preensivo – apontada por C. Ragin (1994); a «estratégia comparativa-tipológica» tem como

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Introdução

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confrontámos a realidade empírica foi definida com o intuito de captaros processos de cristalização, amplificação ou atenuação da desigualdadeno casal ocorridos no decurso da vida conjugal, por um lado, e os factoresintervenientes nesses processos, por outro. As modalidades típicas de tra-jectória conjugal identificadas neste trabalho de investigação não pretendemassim – nem poderiam, tal como se depreende – dar conta da real diver-sidade dos percursos conjugais, nem tão-pouco retratar definitivamente asua configuração. Constituem, na verdade, propostas de aproximação auma realidade – a relação entre conjugalidade e desigualdade – incessan-temente sujeita a transformações no decurso da vida conjugal.

Importa, na verdade, sublinhar a possibilidade de a evolução dos per-cursos conjugais das mulheres entrevistadas contribuir para, entretanto,desfazer os contornos que estes apresentavam no momento da entrevista.Assumindo a natureza dinâmica, insidiosa e, portanto, imprevisível darelação entre vida conjugal e desigualdade, a identificação das modali-dades típicas de trajectória conjugal inspira-se claramente na fórmula ideal-típica (Weber 1993 [1922]), mas procura distanciar-se das insuficiênciase contradições que alguns apontaram na aplicação analítica da propostaweberiana (Parkin 1996 [1982]; Collins 1986). Segundo F. Parkin, emparticular, a proposta do ideal-tipo revela-se, por um lado, insuficiente, por-que incita «a pensar as instituições e os comportamentos» através dosseus elementos generalizantes, e não tanto através das suas particularida-des, e, por outro, contraditória, portanto, com o método Verstehen pro-posto pelo próprio M. Weber, método esse «que consiste em tentar iden-tificar-se com o actor e os seus motivos, para observar a sua condutaatravés dos olhos do próprio actor» (1996 [1982], 3-18). Pelo contrário,as modalidades típicas de trajectória conjugal identificadas neste estudo ex-ploratório assentam, em larga medida, nos universos representacionais enos significados atribuídos pelos indivíduos. Por outro lado, são consi-derados problemas mais específicos, como sejam a dificuldade em en-frentar a adversidade, a negociação de papéis de género na divisão familiardo trabalho, a resposta ao conflito entre a autonomia individual exigidano mundo do trabalho e a disponibilidade solicitada pela família ou,

objectivo auscultar um fenómeno social na sua potencial diversidade. A «lógica analítica»subjacente nesta estratégia de investigação é, de acordo com Costa, a da «comparaçãoentre as unidades estudadas, procurando-se organizá-las por tipos, de acordo com a ma-neira como se situam numa série de atributos dimensionais, ao mesmo tempo que seafina o conjunto das dimensões pertinentes, tomando em conta as configurações tipo-lógicas a que se vai chegando» (1999, 10).

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enfim, a gestão da eventual contradição resultante dos diferentes tiposde capital detidos pelos elementos do casal.

Indagar sobre a consubstanciação da homogamia numa trajectória con-jugal envolve efectivamente a captação do sentido que os agentes dão àssuas práticas nos contextos do trabalho e da família, bem como a recons-tituição das lógicas e condições da sua acção e das suas escolhas. A com-preensão sociológica da acção e, em particular, das escolhas implica aapreensão do sentido explícito ou implícito, consciente ou não, que osagentes lhes atribuem (Weber 1993 [1922], apreensão essa necessaria-mente alargada à própria dimensão subjectiva do sentido da acção (Ber-ger e Luckmann 1999[1966]). Nesta perspectiva, a compreensão socio-lógica do sentido subjectivo inscrito nas escolhas dos agentes significa,no entanto, enquadrá-las nos contextos sociais, ideológicos e históricosde que também são o produto.

A situação de entrevista (Ruquoy 1997 [1995]; Blanchet e Gotman1992; Ghiglione e Matalon 1992 [1978]) revelou-se, assim, o proce -dimento metodológico mais apropriado para a reconstituição dos uni-versos de sentido de que os contextos da família e do trabalho se revestemjunto de mulheres 2 confrontadas com o desafio da articulação entre asexigências da actividade profissional e da carreira, por um lado, e os en-cargos de uma vida familiar com filhos em idade escolar, por outro. Im-portava sobretudo auscultar os processos de interiorização, activação, re-jeição e reformulação das normas de género que pautam a divisão dotrabalho. As entrevistas realizadas representaram assim um esforço paralevar um conjunto de mulheres a falar sobre as suas «escolhas» a respeito

2 A auscultação do papel do casamento e da vida conjugal com filhos na diferenciaçãosocial através do olhar feminino resultou, exclusivamente, das exigências na articulaçãoda dupla lógica quantitativa e qualitativa de recolha dos dados que constituíram os ele-mentos empíricos da dissertação de doutoramento, cujos resultados se encontram, emgrande parte, sintetizados neste livro. Tendo integrado a equipa do projecto «Famílias noPortugal Contemporâneo: Momentos de Transição, Interacções Familiares e Redes Sociais»(ICS/UL e CIES/ISCTE), sob a coordenação de Karin Wall, o autor procurou então reu-nir um conjunto de entrevistadas com base no mesmo critério – mulheres-mães – utilizadono inquérito «Famílias no Portugal Contemporâneo (FPC)» de 1999 (Wall 2005). Osdados obtidos através deste primeiro retrato extensivo da vida familiar em Portugal pos-sibilitaram efectivamente uma visão de conjunto sobre – entre tantos outros aspectos davida familiar – a escolha do cônjuge e a homogamia (Rosa 2005). No entanto, esta abor-dagem quantitativa não dispensou a profundidade fundamental ao estudo dos processosda homogamia, profundidade essa unicamente assegurada pelo recurso a metodologiasqualitativas (Rosa 2008). À semelhança do que havia sucedido no inquérito FPC de 1999,os resultados do trabalho de investigação de cariz qualitativo ficaram assim circunscritosà face feminina da vida conjugal e familiar.

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Introdução

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da vida familiar, da sua actividade profissional e aspirações de carreira e,sobretudo, sobre as soluções encontradas tendo em vista a compatibili-zação desses dois universos de realização em que se projectam.

A entrevista define-se pelo grau de cumplicidade entre entrevistadore entrevistado quanto ao pressuposto de que a reconstituição do passadoe do percurso coincide, de facto, com esse passado, com esse percurso.A natureza paradoxal desta técnica de inquirição prende-se com a duplanecessidade de distanciamento e compromisso com uma «ilusão biográ-fica»,3 ou seja, distanciamento relativamente ao discurso comum a queo esforço de objectivação obriga, e conivência necessária, no momentoda entrevista, a uma sintonia formal entre o discurso do entrevistado eas perguntas do entrevistador. A possibilidade de construção da narrativabiográfica sem as incessantes interrupções resultantes de uma excessivadirectividade na inquirição esteve na origem da opção pela variante me-todológica da entrevista semiestruturada e semidirectiva. Reformulado oguião da entrevista após o confronto com os primeiros relatos obtidosnuma etapa de pré-teste, o trabalho de captação da realidade empíricaprosseguiu numa lógica de exploração e reformulação das hipóteses, en-volvendo uma «ruptura progressiva em oposição não absoluta, mas rela-tiva, com o senso comum, numa lógica pendular entre compreensão, es-cuta atenta, distanciamento e análise crítica» (Kaufmann 1996, 22).Atribuindo à pesquisa empírica o papel de activação, reformulação, des-vio e clarificação da teoria, muito para além, portanto, da exclusiva con-firmação ou refutação das hipóteses formuladas (Merton 1987 [1949]),entregámo-nos ao incessante exercício de confrontação entre a teoria eos elementos obtidos no decurso desse trabalho empírico, exercício esteque, finalmente, tornou possível a constituição das modalidades típicasde trajectória conjugal.

2A análise dos processos determinantes da persistência ou da transfor-

mação da proximidade socioprofissional entre os cônjuges partiu entãode um conjunto de relatos de mulheres que, sendo licenciadas ou pós-

3 Tal como sublinhava Bourdieu, «esta tendência para agir como ideólogo da sua pró-pria vida, seleccionando, em função de uma intenção global, certos acontecimentos sig-nificativos e estabelecendo entre eles conexões próprias para lhes dar coerência [...], en-contra a cumplicidade natural do biógrafo, a quem tudo – a começar pelas suasdisposições como profissional da interpretação – leva a aceitar esta criação artificial desentido» (1986, 69).

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-graduadas, exercem profissões qualificadas, residem na Área Metropoli-tana de Lisboa e vivem em união conjugal com filhos em idade escolar.À selecção das entrevistadas presidiram, com efeito, os critérios da esco-laridade, da profissão, do perfil conjugal e parental, da idade e da resi-dência. O critério da escolaridade (formação superior) das entrevistadasprendeu-se com a necessidade de controlar a variável de caracterização«grupo socioprofissional». Pretendíamos circunscrever-nos a situaçõessocioprofissionais mais permeáveis ao fenómeno da mobilidade, sejapela aposta sistemática em recursos de natureza escolar, seja pela capita-lização ou reconversão desses recursos em capital económico, etc. Porsua vez, o critério da profissão (qualificada) resultou do objectivo de reunirsituações profissionais com maiores probabilidades de carreira. O critériodo perfil conjugal e parental reportou-se ao propósito de observar os com-promissos entre a dinâmica conjugal e as exigências da maternidade e darelação pais-filhos, sendo no entanto aleatório o tipo de vínculo(casamen to/união de facto) entre as entrevistadas e os cônjuges. O critérioetário também presidiu na selecção das entrevistadas, no que respeitatanto à sua própria idade – entre os trinta e os cinquenta e quatro anos– quanto à idade do(s) filho(s) – entre os seis e os dezasseis anos. Preten-dia-se, deste modo, captar as situações de mulheres numa etapa particu-larmente exigente da vida familiar e profissional. Já o critério da residênciaficou a dever--se tão-somente ao facto de a Área Metropolitana de Lisboase caracterizar por uma particular concentração de profissões qualificadas.

Foram assim efectuadas, entre 2002 e 2003, vinte e sete entrevistas in-dividuais em profundidade, com uma duração média de quatro horas.O número de entrevistas ficou definido quando, alcançada a diversidadede perfis e a profundidade analítica necessárias à captação da realidadeempírica numa lógica heurística, se verificou uma «saturação» da infor-mação entretanto recolhida (Bertaux 1980). As mulheres entrevistadastêm idades compreendidas entre os trinta e os cinquenta e quatro anos,sendo a faixa etária mais representada a dos quarenta aos quarenta e noveanos. Todas elas vivem a primeira conjugalidade, e a grande maioria ini-ciou a vida conjugal na casa dos vinte anos de idade, e sobretudo na faixados vinte e cinco aos vinte e nove anos. Mais de metade das entrevistadastem dois filhos, repartindo-se quase equitativamente as demais entre asdescendências ora de um filho, ora de três filhos. Apenas uma entrevis-tada tem uma descendência mais numerosa de quatro filhos. Quase todaselas tinham concluída a licenciatura no início da vida conjugal, redu-zindo-se a três aquelas que casaram com um homem sem um diplomado ensino superior. Posicionadas maioritariamente no grupo das profis-

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Introdução

sões intelectuais e científicas, nem todas casaram com homens perten-centes ao mesmo grupo socioprofissional. Com uma única excepção, oconjunto de casos reunidos reparte-se entre os casamentos de indivíduosinseridos no mesmo grupo socioprofissional, por um lado, e os casamen-tos entre indivíduos com posições socioprofissionais vizinhas, inseridosno grupo das profissões técnicas e de enquadramento intermédio ou nogrupo dos empresários e dirigentes, por outro.

3O presente livro está organizado em cinco capítulos. No capítulo 1,

expomos e sustentamos a nossa posição teórica. Assumindo uma pers-pectiva crítica face à usual circunscrição analítica da proximidade socialno casal ao momento da escolha do cônjuge, definimos o objecto de es-tudo no quadro de uma abordagem dinâmica que propomos para a aus-cultação do papel do casamento e da vida conjugal nos processos de di-ferenciação social. Concluímos o capítulo com uma breve caracterizaçãosocial e biográfica das mulheres entrevistadas e respectivos cônjuges, es-boçando finalmente as modalidades típicas de trajectória conjugal. Nos ca-pítulos 2, 3, 4 e 5, analisamos, por um lado, as configurações assumidaspelas dinâmicas que intervêm na articulação entre as solicitações da pro-fissão e os encargos com a família no decurso da vida em casal com fi-lhos. Por outro lado, procuramos demonstrar que a identificação dessasconfigurações – ou seja, as diversas trajectórias conjugais – requer a captaçãoda diversidade de soluções esboçadas pelas mulheres no sentido de umacompatibilização das exigências destes dois universos, soluções essas que,uma vez inscritas num quadro mais ou menos negociado de divisão fa-miliar do trabalho, não podem ser dissociadas da ordem da interacçãoconjugal. Cada capítulo está, portanto, estruturado de acordo com as di-mensões privilegiadas no estudo da homogamia como processo em cursoao longo da vida conjugal. Um primeiro momento é destinado à análiseem profundidade dos enredos da escolha do cônjuge, elegendo no qua-dro de cada uma das modalidades típicas de trajectória conjugal identifica-das os casos particularmente enriquecedores na auscultação dos factoresco-determinantes da formação do casal. Num segundo momento, damosconta, por um lado, da diversidade de transformações a que a proximi-dade socioprofissional entre os cônjuges, frequentemente observada nomomento da formação do casal, está sujeita no decurso da vida conjugal.Por outro lado, procuramos captar as implicações das diferentes soluçõesque as mulheres encontram para articular a vida profissional e a vida fa-

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miliar. Num terceiro momento, caracterizamos as modalidades de divisãofamiliar do trabalho doméstico mais frequentemente observadas em cadatrajectória conjugal. Por fim, terminamos cada um destes capítulos com umaanálise da dinâmica da interacção e da negociação conjugal, procurandorevelar as lógicas – de natureza mais individualista ou fusional, mais ins-titucional ou companheirista, mais fechada ou aberta ao exterior – quetendem a caracterizar o funcionamento familiar, bem como as suas im-plicações enquanto factores co-determinantes da cristalização, amplifi-cação ou atenuação da desigualdade no casal. Tendo presentes os resul-tados deste trabalho de investigação, fica reservada para a conclusão umareflexão sobre o conjunto de hipóteses formuladas, reflexão essa desti-nada a contribuir para o debate em torno da problemática da relaçãoentre a vida conjugal e as assimetrias entre os sexos.

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Capítulo 1

Escolha do cônjuge e vida conjugal:reformulando o conceito de homogamia

Os trabalhos que investigam o papel da família e do casamento nacristalização da estrutura social circunscrevem-se invariavelmente à aná-lise da escolha do cônjuge. Estes estudos, que têm como objecto a relaçãoentre família, desigualdade de género e reprodução social, deixam con-tudo na penumbra a vida conjugal, designadamente, a vida conjugal comfilhos, os destinos sociais dos cônjuges e, portanto, as implicações da ar-ticulação trabalho-família na diferenciação socioprofissional entre osmembros do casal. Os destinos sociais dos cônjuges não são, na realidade,alheios às desigualdades que a activação ou a subversão das normas degénero na divisão familiar do trabalho podem, respectivamente, reforçarou esbater. Sendo inegável que a vida em casal constitui um cenário pro-pício à reprodução das normas de género, designadamente por via deuma divisão sexual do trabalho muitas vezes penalizadora para as mu-lheres (Delphy e Leonard 1992), persiste assim o desafio empírico de ave-riguar as implicações da negociação conjugal subjacente à articulação tra-balho-família na diferenciação socioprofissional entre os cônjuges e,portanto, a real amplitude dos efeitos do casamento e da vida familiarno que às desigualdades de género diz respeito.

Neste capítulo, começamos por expor e interpelar um conjunto deperspectivas teóricas que alicerçam diversos trabalhos dedicados ao estudodo papel do casamento, por via da escolha do cônjuge, na diferenciaçãosocial. Entre as perspectivas que acalentavam a esperança de uma escolhaliberta de condicionalismos sociais e os trabalhos de investigação que,pelo contrário, vieram demonstrar a persistente preponderância da ho-mogamia social, interpõe-se um hiato com origem no distanciamento des-tes últimos trabalhos face a qualquer abordagem incapaz de articular as

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escolhas dos agentes e os contextos sociais e culturais que as enquadrame, necessariamente, co-determinam. Com efeito, circunscrita ao momentoda escolha do cônjuge, a investigação sobre o papel do casamento na di-ferenciação social preocupa-se fundamentalmente em averiguar a rigidezestrutural das sociedades através da auscultação dos efeitos da posição so-cial dos indivíduos na eleição do cônjuge. Dedicando-se à avaliação dasimplicações dos diversos condicionalismos sociais, culturais e geográficosnos padrões matrimoniais, os estudos pioneiros demonstraram as diversasconfigurações que a homogamia assume. Mais recentemente, porém, al-guns investigadores teceram críticas a uma utilização neutra – numa pers-pectiva do género – do conceito de homogamia, alertando para os efeitosda diferença sexual, que efectivamente se consubstanciam ora numa de-sigual distribuição na estrutura socioprofissional, ora em assimetrias anível dos recursos para categorias equivalentes, ora, enfim, na diferencia-ção entre os interesses dos homens e os das mulheres. Se a sociologia daescolha do cônjuge testemunhou desenvolvimentos significativos nas úl-timas décadas com a introdução de perspectivas teorico-analíticas alterna-tivas, é chegado o momento de nos questionarmos acerca do real alcancedas implicações da própria vida conjugal e familiar na diferenciação socialdos indivíduos, suspeitando das limitações heurísticas que, a montante,resultam da circunscrição da pesquisa ao momento da forma ção do casal.É este questionamento, fundamental na formulação do objecto de estudodo presente trabalho de investigação, que se encontra na génese de um debate – desenvolvido no penúltimo ponto do capítulo – que pro-cura esclarecer o modelo analítico da pesquisa. Antes, porém, de avan-çarmos para a análise tipológica, terminamos o capítulo com uma brevecaracterização das mulheres cujas experiências relatadas em situação deentrevista constituíram o material empírico deste trabalho.

A esperança de uma escolha livre

A esperança de uma escolha do cônjuge liberta de condicionalismossociais é patente em diversos estudos e perspectivas teóricas. Neste pri-meiro ponto, elaboramos uma breve súmula dos aspectos mais relevantesdessa diversidade de correntes e trabalhos. Formada segundo critérios daexclusiva ordem dos afectos, a família de «companheirismo» seria, deacordo com Burgess et al. (1963 [1945]), a configuração predominante nassociedades modernas. Esta incorrecta antevisão resulta de uma aborda -gem que dissocia a formação e o funcionamento da família do conjunto

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de tensões culturais co-determinantes da evolução dos comportamentosfamiliares no sentido de uma «sentimentalização» das relações familiares.As transformações no plano das orientações normativas e das práticastêm, na sua génese, processos insidiosos que, em lugar da preponderânciade uma modalidade típica de família, desembocam numa pluralidade deconfigurações familiares onde as lógicas afectiva e instrumental se entre-cruzam. De modo diferenciado, mas com resultados semelhantes, T. Par-sons (1971 [1949]) deduziu do esvaecimento da intervenção directa dospais na formação do casal uma escolha do cônjuge «puramente» pessoal,subestimando assim os efeitos emergentes da internalização das proprie-dades da «estrutura cultural» na própria decisão de casar. Da perspectivade uma escolha «puramente» subjectiva à procura dos factores psicológi-cos determinantes foi um passo. Durante vários anos, proliferaram pes-quisas que, sem suspeitarem da necessidade de uma perspectiva socioló-gica sobre a formação do casal, menosprezaram a reformulaçãoidentitária envolvida já no processo de escolha enquanto etapa anteci-patória de uma vida conjugal. À subestima parsoniana da capacidade deintervenção das normas internalizadas nas escolhas dos agentes, bemcomo à desarticulação entre níveis micro e macro já presente na perspec-tiva de Burgess, acrescem as inúmeras contradições evidentes nos resul-tados de um conjunto de trabalhos, precisamente controversos por dis-sociarem a escolha do cônjuge das condições sociais e culturais quecaracterizam os contextos da formação da família.

Companheirismo e liberdade de escolha

Na década de 1920, no âmbito da escola de Chicago, Burgess propôsem parceria com H. Locke e M. Thomes (1963 [1945]) aquela que, por-ventura, foi a primeira abordagem interaccionista da vida familiar. Nestaproposta, a história da família e do casamento teria testemunhado a pro-gressiva emergência de uma lógica «companheirista» em substituição dalógica «institucional» preponderante na pré-modernidade. Se de acordocom esta lógica cabia à família e, designadamente, aos pais a escolha docônjuge no sentido de um casamento-instituição, já a lógica «compa-nheirista» sugeria a importância cimeira de factores relacionados com a«personalidade» na eleição do parceiro conjugal. De acordo com Burgess,a privatização do núcleo familiar é responsável pelo decréscimo da in-fluência dos pais na escolha do cônjuge, desempenhando, portanto, umpapel central no processo de libertação de uma lógica instrumental queprivilegiava os interesses da família em detrimento dos interesses pessoais.

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Noutro trabalho, levado a cabo em parceria com P. Wallin (1943), Burgessprocurou demonstrar que à intervenção da família na escolha do cônjugese sobrepõem progressivamente factores como a religiosidade, o passadofamiliar, o tipo de namoro na adolescência, a concepção de casamentoou a participação dos indivíduos na vida social.1

A emergência da família de «companheirismo» e a previsão de umaescolha do cônjuge liberta da influência da família de origem assenta nacontroversa tese que concebe a nuclearização da família e a privatizaçãodas relações – resultado da separação entre as esferas produtiva e repro-dutiva, entre local de trabalho e local de residência – enquanto processosalheios ao conjunto de tensões culturais co-determinantes da transfor-mação no sentido de uma «sentimentalização» dos laços familiares nassociedades ocidentais. Essas tensões são designadamente assinaláveis orano confronto entre a igualdade apregoada pelo ideal do companheirismo– a interdependência dos parceiros nas tomadas de decisão – e a desi-gualdade entre os sexos que é manifesta nas práticas familiares, ora nascontradições normativas entre a adesão ao modelo de fusão conjugal e aexaltação do individualismo (Kellerhals 1989 [1984]). Tal como demons-traram J. Kellerhals et al. numa investigação sobre famílias na Suíça, «é,com efeito, nesta conjuntura que se exacerba a tensão de negociação como outro: aquele que pretende que o indivíduo submeta os seus ‘bens’ aocasal, e aquele que afirma o primado da autonomia do ‘eu’» (1982, 29).De igual modo, no contexto da sociedade portuguesa, os movimentosno sentido da privatização e do individualismo – ainda que mais recen -tes – evidenciam uma diversidade de transformações no plano das orien-tações normativas e das práticas familiares (Wall 2005; Aboim 2006) queé sintomática da complexidade subestimada na tese de Burgess.

Uma função desadequada

À semelhança de Burgess, Parsons (1971 [1949]) privilegiava os efeitosda «nuclearização» do grupo familiar, considerando que a progressiva in-dependência do casal (família de procriação) face aos pais (família de orientação)não pode ser dissociada do fenómeno global de mobilidade social e geo-gráfica decorrente da industrialização. Na sua perspectiva de teor funcio-nalista, a intervenção dos pais na escolha do cônjuge entre as classes médiasnão tem a função que desempenha nas «elites» ou nos meios ligados ao

1 Burgess, Ernest, e Paul Wallin. 1943. «Homogamy in social characteristics». AmericanJournal of Sociology, XLXIX (2): 109-124. Citado por Girard (1981 [1964]).

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campo e à propriedade fundiária, onde a aliança com base nos «sentimentosafectivos pessoais» questiona obviamente os interesses de reprodução deum património familiar (1971 [1949], 273-278). Segundo Parsons, o esvae-cimento desta intervenção dos pais na escolha do cônjuge prende-se direc-tamente com o progressivo declínio da função da família na esfera produ-tiva, função essa absorvida pelo moderno «sistema ocupacional».2 Estaconstatação não deixa, contudo, de ser acompanhada de uma subestimados processos de internalização das propriedades da «estrutura cultural» naexplicação dos efeitos de padronização social. No quadro do funcionalismoparsoniano, a estrutura cultural regula normativamente a acção sobretudopor via dos constrangimentos resultantes da codificação das normas. Ouseja, tal como observa R. P. Pires, «se é a internalização que explica a eficáciacausal da norma, o efeito de ordenação, de padronização, resulta da con-sistência lógica da sua codificação externa» (2007, 34). Residiria então aquia razão para a homogamia já não constituir o padrão matrimonial prevale-cente entre as classes médias e permanecer como norma nos outros estratossociais, onde o casamento questiona a reprodução do património familiar.

Assim, ao contrário da proposta interaccionista de Burgess, para quemo papel da família nas sociedades modernas consistia em assegurar a afec-tividade aos indivíduos, a perspectiva parsoniana – variante funcionalistada tradição institucionalista herdada de E. Durkheim – sublinhava que,se a interacção familiar nunca se dissocia do contexto alargado da estru-tura social e dos sistemas sociais, a família deve ser sempre consideradauma instituição.3 O próprio Durkheim considerava que, se às instituiçõescabe «o princípio integrador das partes constitutivas dos sistemas sociais»(Pires 2007, 34), o casamento, enquanto momento que, simultaneamente,permite fundar e perpetuar a família, implica deveres e expectativas soba forma de regras que, legal ou informalmente, se impõem aos indivíduosem qualquer circunstância (Durkheim 1975 [1921], 35-49).

No entanto, Parsons não apenas entendia que «não falta geralmentecampo para seguir as inclinações pessoais no quadro das condições da

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2 Tal como sublinha Parsons, num texto em co-autoria com R. Balles, «Over muchof the world and of history a very large proportion of the world’s ordinary work is andhas been performed in the context of kinship units. Occupational organization in themodern sense is the sociological antithesis of this» (1968 [1956], 12).

3 No que toca à acção, em virtude da insistência de Parsons na «eficácia dos meca-nismos de indução da conformidade com as definições partilhadas dos papéis» (Pires2007, 27), a função reguladora atribuída à estrutura cultural – através da definição das po-sições sociais dos actores e das expectativas sobre os seus comportamentos em situaçãode interacção – resultou numa subestima das dinâmicas que são próprias da ordem dainteracção.

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instituição», como aliás previa a disseminação de «um tipo de escolhapuramente pessoal» 4 (1971 [1949], 279). Na sua perspectiva, o progressivoisolamento estrutural da família conjugal permitiria que as relações familiares ancorassem numa lógica afectiva, processo esse não propria-mente alheio à função que a família, nunca questionando a sua naturezainstitucional, é suposta exercer na «estabilidade» psicológica dos indiví-duos adultos nas «modernas organizações profissionais». Quanto a essa«esperança» de que a família constituísse um «refúgio» dos indivíduos e,deste modo, o «local dotado de sentido» por excelência (Kellerhals 1989[1984], 18), a tese de Parsons não deixa afinal de encontrar afinidadescom a de Burgess, para quem a família de «companheirismo» é um es-paço que, dominado pelos afectos, protege, deste modo, os indivíduosda lógica competitiva reinante no exterior.

Ambas as perspectivas também não previram que as representaçõessociais da família, hoje precisamente radicadas no «facto de o indivíduoser conduzido a esperar da família tudo o que a sociedade exterior lherecusa», pudessem subscrever uma ideia de «crise da família» (Kellerhals1989 [1984], 17). Por outro lado, se a família pode representar um refúgioe funcionar enquanto factor de estabilização psicoafectiva, também sesujeita a ser «desqualificada pela impressão de fechamento, de rotina,pelo sentimento de perda de oportunidades» em sociedades onde imperaa norma cultural da mudança, que incentiva à capacidade de «ruptura ereaprendizagens contínuas» (Kellerhals 1989 [1984], 22).

Por sua vez, deve referir-se que a previsão referente à libertação da es-colha do cônjuge face aos condicionalismos sociais só não entra em con-tradição com a eficácia atribuída – no quadro do funcionalismo parsonia -no – à estrutura cultural na regulação das acções no sentido da ordemsocial, porque Parsons privilegia os constrangimentos exercidos pelos pro-cessos de institucionalização no plano normativo, em detrimento do planorelacional ou distributivo, ou seja, do plano dos desiguais posicionamentosdos agentes. Perante a difusão dos ideais românticos no imaginário colec-tivo – não como uma utopia, mas como «sendo deste mundo» e, assim,adquirindo o estatuto de «programa de vida» (Kellerhals 1989 [1984]) – ea progressiva ausência de uma codificação externa de regras homogâmicasou endogâmicas na maioria dos estratos sociais, onde a ausência de umpatrimónio familiar ameaçado pela heterogamia coexiste com a perda dafunção produtiva e económica da família, compreende-se que uma pers-pectiva como a de Parsons, que menospreza os efeitos da desigualdade na

4 Itálico nosso.

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padronização das relações sociais, não encontre uma justificação funcionalpara os condicionalismos de natureza social na escolha do cônjuge. Deresto, sem contemplar a efectiva alteração dos critérios de proximidade naescolha do cônjuge (Segalen e Jaquard 1971), a previsão funcionalista nãodeixa de ser corroborada em teses como a de E. Shorter (1995 [1975]), paraquem o «progresso do amor romântico» e da «felicidade pessoal», em de-trimento da imposição da necessidade de «aprovação da comunidade», iriade par com o declínio do padrão homogâmico.

Perspectivas psicologizantes e a (des)articulação entre níveis micro e macro

A crença numa escolha do cônjuge liberta de constrangimentos sociaisé particularmente evidente em diversas pesquisas norte-americanas levadasa cabo entre as décadas de 1950 e de 1970. Nesses trabalhos, foram privi-legiadas variáveis supostamente alheias ora a qualquer tipo de propriedadesemergentes da estrutura social, ora à possibilidade de a escolha do cônjuge– entendida como acção social, no sentido weberiano do termo – estar sujeita à interferência de normas, valores, representações, interesses ou«preferências». «Espontaneidade afectiva», «sentimento afectivo pessoal»,«desejo de casar» ou «semelhança com o parceiro ideal» surgem assim,entre outras, como as variáveis decisivas na explicação da escolha do côn-juge, pressupondo-se que tais factores, presentes no âmbito de relaçõespessoais entre familiares, actuam sem qualquer articulação com os con-textos sociais e normativos onde, necessariamente, essas relações se ins-crevem. Estes estudos analisaram a escolha do cônjuge, de certa forma,inspirados na proposta de G. Homans (1961), que protagonizou a vertentepsicológica da teoria da troca. Segundo Homans, os indivíduos apenasreproduzem os comportamentos que lhes proporcionam uma gratifica-ção. O custo e o benefício de uma relação eram assim abordados «em ter-mos de reforço e aprendizagem». Concebendo a troca social, sobretudo,como o resultado de processos psicológicos, Homans considerava que ainteracção é fundamentalmente estruturada de acordo com princípios dereciprocidade entre indivíduos, tendo portanto sido justamente criticadopor «personalizar» a interacção (Bawin-Legros 1996, 97-98).

A escolha do cônjuge foi assim objecto de trabalhos que abordavamexclusivamente a intervenção de factores de natureza psicológica, não seestranhando, por essa razão, que muitas dessas pesquisas tivessem pro-duzido resultados contraditórios e polémicos. A título de exemplo, nadécada de 1950, R. Winch (1958) procurou demonstrar que «as necessi-

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dades são recompensadas no decurso do processo de escolha do cônjugeatravés da procura de um parceiro cujas características de personalidade– e assim as necessidades – são opostas, mas complementares, às do pró-prio». Ora, alguns trabalhos realizados na década de 1960 vieram refutara influência positiva dessas características opostas e, supostamente, com-pensatórias, sublinhando, pelo contrário, a importância da semelhançados perfis de personalidade (Adams 1979, 261). Já na década de 1970 as-sistimos aos esforços polémicos empreendidos por autores como A. Na-pier 5 ou A. Aron6 no sentido da confirmação da hipótese de os indiví-duos elegerem um parceiro conjugal que possibilitasse a reprodução dasrelações desde sempre estabelecidas com os seus pais: o primeiro pro -curando demonstrar a inclinação das mulheres e dos homens para re-produzirem, na relação conjugal, os contornos da relação com o pai e amãe, respectivamente; e o segundo sustentando a prevalência das carac-terísticas de personalidade da mãe no potencial parceiro ou parceira.

Foi precisamente com o propósito de libertar a análise da vida familiardeste tipo de perspectivas psicologizantes que P. Berger e H. Kellner (1975[1964]) vieram alertar para a natureza nómica da relação conjugal e das re-lações em família. Para estes investigadores, o papel decisivo da família naintegração social dos indivíduos prende-se, essencialmente, com o carácterde produção de sentido das relações que se desenrolam no interior do nú-cleo familiar. Na sua perspectiva, o casamento representa uma ruptura nó-mica para dois indivíduos «normalmente provenientes de diferentes con-textos de conversação», ou seja, que «não partilham de um passado, apesarda estrutura semelhante dos seus passados» (Berger e Kellner 1975 [1964],306). Adivinha-se aqui, contudo, a limitação de uma concepção teórico-analítica que herdou menos do interaccionismo do que da fenomenologiao seu pendor construcionista, privilegiando a descrição em lugar da expli-cação, limitação essa desde logo bastante evidente no plano empírico. Talcomo observa B. Bawin-Legros, «o facto de se questionar mais sobre o‘como’ do que sobre o ‘porquê’ incita a esta crítica, na medida em que, atra-vés da narração das suas experiências, os indivíduos podem, com ou semintenção, omitir os contextos e os seus constrangimentos» (1996, 159).

Essa limitação é ainda acrescida de uma controversa desarticulação entreas relações «construídas» no âmbito da conjugalidade e da família, por um

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5 A. Y. Napier. 1971. «The marriage of families: cross-generational complementarity».Family Process, 9: 373-395. Citado por Adams (1979).

6 A. Aron. 1974. «Relationships with opposite-sex parents and mate choice». HumanRelations, 27: 17-24. Citado por Adams (1979).

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lado, e as dimensões históricas e estruturais da sociedade, por outro. Essadesarticulação está, designadamente, presente numa separação rígida entreas relações íntimas ou pessoais com os «outros significativos» e as relaçõesimpessoais com o mundo exterior ou com o «outro generalizado»,7 comose a vida quotidiana familiar e conjugal pudesse encontrar os seus alicercespara além dos modelos normativos, que estruturam valores e representa-ções, e do conjunto das condições inerentes à própria estruturação da so-ciedade. Todavia, apesar destes aspectos mais polémicos da sua proposta,ao alertarem para o carácter de produção de sentido, Berger e Kellner (1975[1964]) introduziram no debate a reformulação identitária que a vida con-jugal acarreta e, neste sentido, a própria necessidade de analisar sociologica-mente a escolha do cônjuge. Tal como sublinha M. Bozon, «é manifestoque as características sociais do cônjuge constituem, em qualquer caso, umindicador sociológico de primeira importância, pois o ser social de um in-divíduo, seja homem ou mulher, encontra-se redefinido de forma decisivapelo casamento»8 (Bozon 1991, 189).

Em suma, se Parsons subestimava os efeitos dos processos de inter-nalização das normas na padronização social e dos diferenciais de poderradicados na desigualdade social, quer a abordagem interaccionista deBurgess, quer as vertentes mais psicologizantes da teoria da troca, querainda a sociologia de influência fenomenológica revelam lacunas na ar-ticulação entre níveis micro e macro, lacunas essas que apontam parauma limitação semelhante à de todas as perspectivas que, dissociando asdimensões da vida social, definem a priori a própria amplitude das suasconsequências, ou seja, associam as dinâmicas da interacção social e osprocessos de institucionalização aos níveis micro e marco, respectiva-mente.9 Ora, de acordo com N. Mouzelis, deve sublinhar-se que também

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7 No que respeita a esta divisão dicotómica do mundo social, Berger e Kellner (1975[1964]) inspiraram-se claramente na fenomenologia de A. Schutz (1979). Elegendo comoobjecto de estudo a relação dialéctica entre, por um lado, a forma como os indivíduosconstroem a realidade social e, por outro, a herança social e cultural, Schutz entendiaque uma sociologia da vida quotidiana obriga, de igual modo, a distinguir as relações ín-timas de face a face, designadas de we-relations, das relações distantes e impessoais, desig-nadas como they-relations (Ritzer 2003 [1983]).

8 Itálico nosso.9 A frequente correspondência apriorística entre as dimensões da vida social e as am-

plitudes dos seus efeitos, tem sido alvo da crítica de N. Mouzelis: «It is wrong to viewwhat Goffman calls the ‘interaction order’ as micro and the ‘institutional order’ as macro.Both orders can be micro and macro. When face-to-face interactions have consequenceswhich stretch widely in time/space, they are macro. On the other hand, when institutionsare embodied into role-positions which entail low levels of power (or games whose out-comes do not stretch widely), then they are micro» (1995, 158).

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«são de nível macro as interacções de face a face com consequências que seestendem amplamente no espaço e no tempo» (1995, 158). Tal confusão, jáse vê, é subjacente à esperança de uma escolha livre mais ou menos explícitaem todas essas teses e, ainda hoje, sustentada por alguns, ou seja, à esperançade uma escolha do cônjuge cujos efeitos se circunscrevem ao nível micro,quando, pelo contrário, diversos estudos realizados desde o pós-SegundaGuerra Mundial nos Estados Unidos da América e na Europa têm, justa-mente, demonstrado a persistência dos padrões e, deste modo, as implicaçõesde nível macro da eleição de um parceiro conjugal. Afinal, se a escolha docônjuge permanece enredada de condicionalismos sociais seja qual for o es-trato social, como é possível sustentar que as interacções de face a face en-volvidas nesse processo só possam produzir efeitos de nível micro?

A redescoberta do padrão homogâmico

Diversos estudos realizados nos Estados Unidos e na Europa do pós--Segunda Guerra Mundial têm vindo a contrariar as previsões que apon-tam para uma escolha do cônjuge liberta de condicionalismos sociais.Com efeito, demonstrando a persistência dos condicionalismos sociaise recenseando a diversidade de formas que estes assumem na escolha docônjuge, esses trabalhos apontam incessantemente no sentido oposto aode uma escolha livre. Entre o conjunto de factores de proximidade in-tervenientes na escolha do cônjuge, têm sido sobretudo privilegiadas va-riáveis de natureza social (origem social, posição socioprofissional, graude escolaridade, etc.), revelando a prevalência de padrões homogâmicose, assim, o papel da união conjugal na cristalização das diferenças so-ciais.10 Em particular no que toca à homogamia socioprofissional, recen-tes trabalhos levados a cabo em França consideram «ténue» a evoluçãodeste padrão matrimonial «levando em linha de conta as transformaçõesda estrutura socioprofissional» (Vanderschelden 2006. 38).

De acordo com Kellerhals, a persistente constatação da homogamiasocial nas sociedades ocidentais contemporâneas contraria a ideia de evo-lução de um casamento arranjado – em que «os noivos quase são ‘vio-lentados’ pelos seus pais ou pela tradição» (1989 [1984], 24)11 – para um

10 A este respeito, os Estados Unidos da América distinguem-se dos países da EuropaOcidental, uma vez que a diversidade étnica e racial tem levado os investigadores dooutro lado do Atlântico a concentrarem-se mais nos casamentos inter-raciais do que nahomogamia social (Kalmijn 1998).

11 Outros processos terão, com efeito, caracterizado a escolha do cônjuge no passado,ficando esta subordinada, de um modo porventura muito mais flagrante, aos interesses

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casamento que, com base nas afinidades, resultaria de uma escolha docônjuge liberta de constrangimentos sociais. De resto, os próprios traba-lhos no âmbito da história questionam «que, na maior parte dos casa-mentos arranjados (ou de conveniência) da Europa pré-industrial, os fi-lhos sofressem contra a sua vontade a lei inflexível dos pais» (1989 [1984],24). Em lugar da ideia de evolução – ideia essa alicerçada na dicotomiaentre uma escolha sob a influência colectiva do «sentido das conveniên-cias» e uma escolha individual livre de condicionalismos exteriores, ape-nas sujeita às «afinidades interpessoais» –, a homogamia social é, afinal,sintomática do «mútuo condicionamento» dos diversos factores colecti-vos e individuais intervenientes. Deste mútuo consentimento é esclare-cedora a conclusão de Kellerhals: «os sentimentos e as motivações inter-pessoais assimilam, alimentam-se dos códigos sociais do momento, maisdo que a eles se opõem» (1989 [1984], 25).

Na verdade, sendo a homogamia social um conceito descritivo, ouseja, «designando apenas um resultado global» que, de acordo com M. Bozon, «corresponde a situações, trajectórias, processos muito diver-sos, variáveis de um meio social para o outro» (1991, 189), nem por issodeixa de ser elucidativa – enquanto indicador da proximidade social nocasal – do modo como a vida familiar, no momento da sua formação,contribui para a diferenciação social. Ainda que não seja suficientementeesclarecedora dos processos envolvidos na escolha do cônjuge ou dos fac-tores que, de forma mais ou menos directa, aqui intervêm, a constataçãoda proximidade social enquanto padrão matrimonial é fundamental, poisautoriza a avançar com «pistas de interpretação» (Kellerhals 1989 [1984]),sendo, aliás, de certo modo consensual apontar um conjunto de factorescujas implicações neste processo se inclinam mais para uma lógica decomplementaridade do que para uma lógica de contradição ou conflito.

Entre estas pistas de interpretação encontramos: em primeiro lugar,o que podemos designar como interpretação comunitária, por sublinhar aimportância de «factores colectivos» intervenientes na escolha do cônjuge(Kalmijn 1998); em segundo lugar, uma interpretação económica dá ênfaseaos «factores individuais» ou «preferências» (Kalmijn 1998); e, finalmente,uma interpretação estrutural privilegia os factores de natureza «psicocultu-ral» e «probabilística» (Kellerhals 1989 [1984]). Se não se estranha que ainterpretação comunitária seja apanágio dos estudos direccionados para os

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de aliança das famílias em função da transmissão do património, já que cabia sobretudoàs lógicas familiares e de parentesco assegurar directamente o funcionamento económico(Flandrin 1994; Pillorget 1979).

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meios sociais onde os interesses do colectivo de pertença tendem a pre-valecer nas escolhas dos indivíduos, pouco plausível é, por sua vez, a cir-cunscrição das abordagens funcionalistas a este tipo de interpretação, es-sencialmente porque comprometem uma explicação mais alargada dahomogamia social quando reduzem este padrão aos constrangimentosexternos da estrutura cultural manifestos numa intervenção directa dafamília. Já os estudos que procuraram demonstrar o papel do casamentona consolidação das clivagens sociais avançaram com outras pistas de in-terpretação, alguns privilegiando o carácter «racional instrumental» daescolha do cônjuge enquanto acção social (interpretação económica), outros,pelo contrário, insistindo nos efeitos da estrutura social (interpretação es-trutural). Nesta última interpretação, as estruturas actuam de forma maisou menos decisiva no sentido de uma escolha homogâmica, ora sob aforma de disposições condicionantes de sentimentos de afinidade, seme-lhança ou complementaridade, ora sob a forma de constrangimentosexercidos pela natureza «relacional» ou «distributiva» desta enquanto «es-trutura externa», designadamente através do privilégio de determinadoscircuitos de interacção que proporcionam, ou não, o encontro.

A interferência do colectivo de pertença

A escolha do cônjuge pode estar sujeita a uma diversidade de inter-venientes de natureza colectiva – os pais, a família ou a comunidade –cuja influência é muitas vezes pouco evidente através da simples consta-tação da prevalência do padrão homogâmico numa sociedade. São ge-ralmente avançadas pistas de explicação com base numa interpretação co-munitária. A análise deste tipo de intervenientes de natureza colectiva –ou seja, factores que remetem para a intervenção de um grupo de per-tença – é sobretudo apanágio dos estudos sobre casamentos inter-raciais,que têm demonstrado a importância da «identificação com o grupo» edas «sanções do grupo» para evitar a exogamia (Kalmijn 1998).

A este respeito, foram precisamente dois dos investigadores – R. K.Merton (1941) e W. J. Goode (1959) – que, no quadro do funcionalismo,mais se demarcaram da controversa abordagem da mudança e do conflito(Ritzer 2003 [1983]), a estudar a eficácia das normas colectivas ou comu-nitárias no sentido da endogamia, por um lado, e o carácter indirecto daintervenção dos pais na escolha do cônjuge no sentido da homogamiasocial, por outro. Com efeito, Merton (1941) constatou a forte inculcaçãodas «normas de endogamia» entre os indivíduos de determinados gruposétnicos e raciais, enquanto Goode (1959) se destacou no quadro da so-

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ciologia funcionalista por demonstrar que, se a libertação dos cônjugesface a uma intervenção directa dos pais na decisão de casar é consequên-cia directa da industrialização do Ocidente e da crescente mobilidade social e geográfica, também deu lugar a formas mais indirectas de inter-venção na formação do casal.

No que toca à abordagem de factores colectivos que intervêm no sen-tido da homogamia social em Portugal, a escolha do cônjuge começoupor ser analisada ora em trabalhos que, excepcionalmente, fazem da ho-mogamia o seu objecto de estudo (Almeida et al. 1997), ora em estudoscircunscritos a contextos sociais e culturais específicos. Estas pesquisasrevelaram que a proximidade social é sobretudo decisiva quer junto dosmeios sociais mais favorecidos, quer entre as camadas menos privilegiadasligadas aos sectores primário e secundário, constatação essa desde logoreveladora da complexidade e da diversidade dos processos que condu-zem à homogamia social. O facto de a homogamia social se acentuartanto nos meios assalariados ligados à indústria ou ao campo como nosmeios mais favorecidos encontra porventura explicação na natureza en-dogâmica que caracteriza o processo de escolha do cônjuge nestes con-textos, tal como demonstram diversas pesquisas que incidem especifica-mente sobre meios operários (Almeida 1998 [1993]), meios rurais(Lourenço 1991; Silva 1998; Sobral 1999; Wall 1998) ou, ainda, sobrefamílias da elite empresarial (Lima 2003).

Apesar da natureza circunscrita dos universos que foram objecto deestudo nesses trabalhos, os padrões revelados acabariam, grosso modo, porser verificados no inquérito «Famílias no Portugal Contemporâneo»(FPC) levado a cabo no final da década de 1990 (Rosa 2005). Através deuma amostra estatisticamente representativa de famílias portuguesas comfilhos, foi possível demonstrar que, numa sociedade marcada pela re-composição socioprofissional e pela mobilidade, a homogamia de ori-gem constitui o padrão preponderante, uma vez que em quase um terço(30,6%) do total de uniões conjugais os parceiros possuíam a mesma ori-gem social, e em mais de um terço (35,6%) os pais dos cônjuges ocupa-vam lugares próximos na estrutura socioprofissional (Rosa 2008). Na ver-dade, com a excepção das mulheres e dos homens provenientes dosmeios menos qualificados do sector terciário, o peso da origem social naescolha do cônjuge revela ser transversal, sendo a homogamia de origemparticularmente acentuada ora entre filhos de camponeses ou de operá-rios agrícolas, ora entre aqueles com origens mais favorecidas.

No caso dos meios rurais, onde o sentimento de pertença e de iden-tificação de grupo tende a acentuar-se, o relativo isolamento geográfico

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e a necessidade familiar de preservação da propriedade fundiária explicamque a homogamia social e a própria homogamia geográfica – tambémparticularmente acentuada nestes contextos (Rosa 2008) – sejam, de certaforma, subprodutos da endogamia. Quanto ao meio operário, a atitudede identificação com o grupo de pertença é transposta para o contextourbano de destino por aqueles que trocam o trabalho agrícola pela fábricae, deste modo, explica uma escolha do cônjuge que recai, sobretudo,dentro dos limites da vizinhança (Almeida 1998 [1993]). Por outro lado,é também a própria concentração e circunscrição habitacional do ope-rariado nas imediações das zonas industriais a promover a endogamia.12

Mas a homogamia e a endogamia são com frequência fenómenos que,necessariamente, se entrelaçam junto dos estratos sociais mais favoreci-dos, não se estranhando, na verdade, as dinâmicas comunitárias e de elite– propícias à homogamia social – caracterizantes de grandes empresasalicerçadas em modelos organizacionais e profissionais de excelência e«construídas sobre uma densa rede de relações familiares que unem ac-cionistas» (Lima 2003, 152).13

É de referir que, se a intervenção de um colectivo de pertença e, emparticular, dos pais na escolha do cônjuge pode atenuar-se ou diluir-se,actuando de forma mais discreta ou indirecta nos meios sociais onde ocasamento não questiona, à partida, a reprodução de um património fa-miliar, este é sem dúvida um comportamento difícil de captar, exigindo– como de resto sucede em qualquer estudo que pretenda abordar a es-colha do cônjuge enquanto processo – uma análise à microescala, porexemplo, das práticas de socialização e características da interacção comos pais no sentido de testar as hipóteses acerca da sua intervenção (Kal-mijn 1998). De resto, deve sublinhar-se que, ao contrário do que sugerea hipótese de Goode (1959), o carácter mais indirecto da intervenção dos pais não foi necessariamente ganhando terreno. Com efeito, não édifícil conceber que, nos estratos sociais sem o condicionalismo da re-produção do património familiar, a intenção e a própria capacidade de

12 À semelhança, aliás, dos processos de escolha do cônjuge analisados nos estudossobre casamentos inter-raciais. O trabalho de S. Lieberson e M. C. Waters (1988), porexemplo, revelou que a endogamia é precisamente mais pronunciada junto dos gruposétnicos/raciais geograficamente menos dispersos.

13 Com efeito, questionando-se se esses grupos familiares constituem uma comuni-dade – ou seja, «um grupo social com consciência de si próprio, cujos membros partilhamvalores, representações e práticas» –, A. P. Lima constatou que «os membros destes váriosgrupos empresariais mantêm entre si relações de amizade e sociabilidade que são fre-quentemente consolidadas através de casamentos entre os seus membros» (2003, 157).

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intervenção dos pais se tenha esbatido ao ponto de dar espaço a uma es-colha do cônjuge mais individualizada, ainda que nem por isso alheia àinterferência de «outros significativos» (Berger e Luckmann 1999 [1966])– como é caso dos amigos – fora do quadro familiar.

Presumir que a escolha do cônjuge seja hoje, em grande medida, maisindividualizada não equivale, por outro lado, a proclamar uma escolhaliberta de condicionalismos sociais. Goode (1959) procurou identificaros meios, doravante mais indirectos, que possibilitaram aos pais intervirna escolha do cônjuge. Fiel à tradição funcionalista, Goode consideravaque a eficácia da estrutura cultural na padronização da acção social – neste caso, da escolha do cônjuge no sentido da homogamia – se deviamenos à interiorização da norma – neste caso, homogâmica – dos própriosprotagonistas da escolha do que à sua exteriorização, manifesta na própriaatitude dos pais. Todavia, se a estrutura social emerge nas acções dos in-divíduos sob a forma de uma estrutura internalizada, consubstanciadaem disposições incorporadas (Lahire 2003 [1998]) – ou nalguns casosmesmo num «sistema de disposições» ou habitus (Bourdieu 1972) – queoperam enquanto mecanismos generativos das percepções, das interpre-tações e das acções, como pode então afirmar-se que a individualizaçãoda escolha do cônjuge, em detrimento da própria intervenção parentalou familiar, seja sinónimo de uma escolha liberta de condicionalismossociais?

A escolha lógica como lógica da escolha

A transformação das sociedades ocidentais no sentido da privatizaçãodos processos de formação da família – ou seja, no sentido de uma «au-torização dada aos cônjuges para fazerem valer as suas preferências naconstituição e na organização da sua união» – não se traduz numa dis-sociação entre essas preferências e os códigos sociais, as representaçõescolectivas ou «os prestígios de pertença» que, na verdade, as alimentam.No entanto, são diversos os trabalhos que, privilegiando uma interpretaçãoeconómica de natureza racionalista, concebem a homogamia social como«resultado de uma estratégia racional» de conservação ou amplificaçãodos capitais materiais ou simbólicos dos seus protagonistas (Kellerhals1989 [1984], 27-28).

Convém então esclarecer que a interpretação económica da homogamianão é decerto alheia aos princípios racionalistas subjacentes às teorias datroca. P. Blau (1964) e G. Homans (1961) figuram entre os principais pro-tagonistas destas perspectivas teóricas sobejamente influenciadas pelas

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«teorias da escolha racional», cujos princípios básicos radicam na «eco-nomia neoclássica» (Ritzer 2003 [1983]). Se Homans identificava nosprocessos psicológicos a explicação para a troca subjacente às relaçõesinterpessoais, já Blau privilegiava os princípios económicos (Bawin-Le-gros 1996). O conceito de troca social circunscreve-se, na sua perspectiva,às acções dependentes das reacções compensatórias do outro, acçõesessas que, deste modo, tendem a esvair-se perante a iminente ausênciade tais reacções. Pelo contrário, se estas se manifestam de forma com-pensatória, as relações saem reforçadas.14 Segundo Blau, as recompensasinerentes à troca social podem ser de natureza «intrínseca» – como é ocaso do amor, do afecto ou do respeito – ou de natureza «extrínseca» –como, por exemplo, o dinheiro, o estatuto socioprofissional ou a origemsocial. A desigualdade no plano das recompensas é, enfim, susceptívelde produzir diferenciais de poder na relação.

De índole utilitarista,15 esta vertente da teoria da troca está fortementepresente em diversos trabalhos – desenvolvidos, sobretudo, nos EstadosUnidos da América – que procuram demonstrar o peso dos condiciona-lismos sociais, na escolha do cônjuge, manifestos nas «preferências» indi-viduais. Grosso modo, à semelhança da teoria que os inspira, estes estudospartem de um pressuposto racionalista alicerçado numa perspectiva ins-trumental que privilegia os «interesses» dos indivíduos na interpretaçãoda homogamia social. Deste modo, tal como refere M. Kalmijn, «os po-tenciais cônjuges são avaliados com base nos recursos que têm para ofe-recer e [...] uma vez casados, reúnem esses recursos no sentido de produzirbens familiares, tal como o bem-estar económico, o status, a confirmaçãosocial e os afectos» (1998, 398). Esta perspectiva – à qual são caros termoseconómicos como «oferta» e «procura» – faz, obviamente, tábua rasa daspropriedades estruturais emergentes sob a forma de orientações normati-vas que, enquadrando valores – os critérios que devem presidir na escolhado cônjuge –, co-determinam a escolha. A teoria da troca não só esquece,portanto, que «nem todas as interacções sociais são motivadas pelo inte-resse ou pela recompensa», mas também que a própria ordem da interac-

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14 «As pessoas são mutuamente atraídas por um conjunto de razões que as induzema estabelecer associações sociais. Forjados os primeiros laços, as recompensas recíprocasvêm conservá-los e reforçá-los» (Ritzer 2003 [1983], 411).

15 De acordo com A. Hirschman, a doutrina utilitarista tem por «elemento funda-mental» o cálculo racional que, impregnando «toda a acção motivada pelo interesse», sedefine pelo «esforço sistemático para avaliar de antemão os custos, benefícios, satisfações,etc.». Ver Albert Hirschman. 1986. Vers une économie politique élargie (Paris: Minuit). Citadopor Singly (1992, 160).

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ção é constituída por «forças irracionais e sistemas de valores» (Bawin-Le-gros 1996, 97). Aplicada à análise da escolha do cônjuge, tal teoria traduz--se então numa concepção apriorística16 que ora menospreza os «processosdo amor» – que «têm a sua própria referência, pese embora a ênfase nasnossas sociedades seja colocada na escolha esclarecida» (Bawin-Legros1996, 97) –, ora subestima os quadros normativos, que tanto definem,por exemplo, o «respeito» devido ao cônjuge como se imiscuem na pró-pria experiência desses «processos», reduzindo enfim o sentimento amo-roso e as próprias normas a recursos sob a forma – para utilizar o eufe-mismo de Blau – de «recompensas intrínsecas».

Por outro lado, o problema em reduzir o amor e os afectos a capitaisnão consiste simplesmente na criação de regras de equivalência no pres-suposto de que estaríamos perante bens e serviços de natureza diversa,pois, na realidade, sem «resgatar» à troca «o amor e as vantagens afecti-vas», só é possível que «as contas» na própria escolha do cônjuge sejam«equilibradas pela magia amorosa» (Singly 1992). Esta visão redutora obs-curece assim mais do que esclarece a efectiva troca de valores sociais queo momento da escolha do cônjuge representa. A reflexão de Singly sobreos efeitos da vida conjugal no valor social dos parceiros elucida-nos sobrea necessidade de «separar o que na realidade está intimamente ligado»,referindo-se à suspensão temporária do amor e do «fluxo dos afectos»para efeitos analíticos da troca conjugal.

Os benefícios assegurados pela visibilidade dos efeitos da vida conjugalsobre o valor social dos cônjuges acarretam um certo custo, o da ignorân -cia sobre o modo como os indivíduos fazem, ou não, os seus cálculos. O amor e as vantagens afectivas foram a priori resgatados às trocas, com oobjectivo de tornar as outras trocas mais perceptíveis. Conservando-os, cor-rer-se-ia o risco de atingir contas equilibradas pela magia amorosa, que au-toriza todo o investimento afectivo – os beijos, os presentes – em troca deum dispêndio de capital. Ao separar na teoria o que, na realidade, está inti-mamente ligado, ou seja, o fluxo dos capitais e o fluxos dos afectos (o quenão significa que haja qualquer regra de equivalência entre estes dois níveis),o sociólogo pode, enfim, captar a circulação dos primeiros. É certo que porinstantes levanta a máscara do amor, mas não é menos verdade que também

16 A propósito desta concepção apriorística, recordem-se as insistentes críticas deDurkheim à importância atribuída por muitos dos seus contemporâneos às estratégiasracionais dos agentes. Durkheim não se opunha literalmente à noção de «interesse pes-soal», mas rejeitava o pressuposto de que esse interesse fosse inerente à natureza humana:«‘Nós não começamos por postular uma certa concepção da natureza humana para daídeduzir uma sociologia’» (Lahire 2003 [1998], 201).

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suprime as razões de fé dos cônjuges no próprio casal – a família contempo-rânea «funcionando» ideologicamente a partir do amor [Singly 1992, 161].

Feita esta ressalva, crítica das perspectivas racionalistas, deve recordar--se que, ao privilegiarem o escrutínio do peso dos recursos socioeconó-micos e dos recursos culturais, os estudos apologistas de uma perspectivasobre a homogamia como resultado de estratégias racionais dos agentestêm incessantemente demonstrado a interferência dos condicionalismossociais na escolha do cônjuge. Assim, de acordo com esta interpretaçãoeconómica da homogamia, os dois tipos de recursos não interferem deigual modo na escolha do cônjuge. No que toca aos recursos socioeco-nómicos, as «preferências» assentam numa lógica de maximização, pro-curando-se um cônjuge tão dotado quanto possível. Já no que respeitaaos recursos culturais, prevalece a lógica de proximidade e, portanto, aprocura é dirigida a um parceiro conjugal com recursos educacionais se-melhantes.17

Neste sentido, as «preferências» no plano dos recursos socioeconómi-cos e a própria natureza da «competição» pelo cônjuge mais bem dotadovariam em função do papel que a mulher desempenha na sociedade, ouseja, alteram-se de acordo com as diferenças entre os sexos no que respeitaà inserção no mercado de trabalho (Kalmijn 1998). Nesta perspectiva, osrecursos socioeconómicos dizem respeito aos meios que proporcionamdesafogo material e status. Em cenários onde predomina um modelo dedivisão sexual do trabalho em que o estatuto de provedor é atribuído aohomem, deste se espera que «troque» os recursos que resultam do exercí-cio de uma actividade remunerada, bem como os recursos simbólicosprovenientes do seu estatuto socioprofissional, pelos recursos oriundosdo trabalho não pago exercido pela mulher – recursos esses consubstan-ciados em competências domésticas e familiares –, e vice-versa. No quetoca à explicação do peso da proximidade social na escolha do cônjuge,quando prevalece este modelo do «ganha-pão masculino» (Crompton1999), presume-se ainda uma «troca» do prestígio social do homem – emboa parte associado à sua posição socioprofissional – pelas qualidades re-lacionais da mulher, as suas origens sociais, características físicas e, ainda,a sua «participação cultural» (Jacobs e Furstenberg 1986; Stevens et al.1990). Ora, este tipo de «competição» tende a alterar-se não apenas com

17 «Enquanto a importância dos recursos socioeconómicos se baseia numa preferênciapara casar com um parceiro tão dotado quanto possível, independentemente dos seuspróprios recursos, o papel dos recursos culturais baseia-se numa preferência para casarcom alguém que é semelhante» (Kalmijn 1998, 399).

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a crescente presença de mulheres no mercado de trabalho, mas também,e talvez sobretudo, com a transformação das suas aspirações no que tocaà realização pessoal através da profissão. Não se limitando à satisfaçãodas necessidades económicas, a profissão da mulher contribui, destemodo, para o próprio estatuto social da família, razão para que diversosinvestigadores acreditem numa crescente cobiça dos homens – no mo-mento da escolha do cônjuge – pelos recursos socioeconómicos das mu-lheres inseridas no mercado de trabalho, levando, neste sentido, à emer-gência de mais um padrão homogâmico, doravante assente nascaracterísticas socioprofissionais dos cônjuges (Oppenheimer 1994; Davis1984).18

Quanto aos recursos «culturais», usualmente captados através do in-dicador de escolaridade, a importância progressiva dos títulos escolaresno próprio mercado de trabalho transforma a natureza do seu valor so-cial. Capitalizável de uma forma mais indirecta pelas mulheres que, semconstrangimentos materiais, podem permanecer fora do mercado de tra-balho, os títulos escolares funcionam, nestes casos, simplesmente comoum requisito sintomático da detenção de capital cultural ou como rea-firmação de um status. Contudo, a escolaridade é capitalizável de formadirecta entre aquelas que nela apostam para poderem desempenhar acti-vidades profissionais mais qualificadas e com maiores possibilidades decarreira. De acordo com Oppenheimer (1994), a crescente entrada demulheres no mercado de trabalho em diversas sociedades ocidentais e,sobretudo, a atitude apostada em alcançar títulos escolares tendo em vistao exercício de uma actividade profissional muito qualificada, constituemfactores com implicações sobre a escolha do cônjuge e os padrões matri-moniais, contribuindo efectivamente para acentuar a homogamia escolarou educacional. De facto, alguns estudos corroboram esta hipótese aodemonstrar que a homogamia escolar tende a elevar-se entre as camadasmais escolarizadas da população (Mare 1991; Esteve e Cortina 2006).Outros investigadores procuraram mesmo demonstrar que, enquanto in-dicador de um «estatuto adquirido», a escolaridade tende a impor-secomo critério principal na escolha do cônjuge (Kalmijn 1991).

Entretanto, nos contextos onde se observa um crescimento do pesoda proximidade dos títulos escolares, alguns investigadores são por vezes

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18 Deve referir-se que, realizados em contextos onde prevalecia um modelo forte-mente diferenciado de divisão familiar do trabalho profissional – o modelo de ganha-pão masculino –, os trabalhos clássicos sobre a escolha do cônjuge avaliavam a homo-gamia a partir da comparação entre a situação socioprofissional do homem e a situaçãosocio-profissional do pai da mulher (Girard 1981 [1964]).

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tentados a transformar, abusivamente, pistas de interpretação em conclu-sões explicativas. No que respeita à homogamia escolar, a proximidaderesulta supostamente do recurso aos títulos escolares enquanto indicadoresdo grau de «semelhança cultural», considerando-se mesmo, sem uma jus-tificação objectiva, que tal «semelhança» possa, de facto, encontrar-se entreas próprias «preferências» dos protagonistas da escolha do cônjuge tendoem vista o bom funcionamento da vida conjugal. Este exercício espe -culativo é perfeitamente evidente na seguinte observação: «A semelhançade valores e de opiniões conduz à mútua confirmação dos comportamentose opiniões de cada um dos cônjuges, a semelhança de gostos contribuipara a atracção porque alarga as oportunidades de participação conjuntaem actividades, e a semelhança de conhecimentos cria uma base comumde conversação, reforçando o mútuo entendimento»19 (Kalmijn 1998, 399).Com efeito, não deixa de ser comum a tentação de substituir aquilo quesó pode ser uma pista de interpretação das crenças e das subjectividadesdos protagonistas da escolha do cônjuge – crenças e subjectividades essasconsubstanciadas nas representações que os agentes fazem acerca dos crité-rios intervenientes na escolha do cônjuge e que podem, ou não, entrar emcontradição com os seus próprios valores, entre os quais porventura se en-contra a escolha com base no amor – pela formulação de explicações deteor funcionalista sob a forma de leis. Só assim pode um investigador re-conhecer que «os padrões matrimoniais nos revelam simplesmente quaisos grupos com interacções recíprocas [...], sem nos dizerem porquê», e si-multaneamente concluir que, «de uma forma mais geral, as pessoas prefe-rem casar com alguém detentor de recursos culturais semelhantes, poisisso permite-lhes desenvolver um estilo de vida comum no casamento eproporciona confirmação social e afectos» (Kalmijn 1998, 400).20

Por outro lado, não é certamente rigoroso afirmar que o acréscimo dahomogamia escolar representa uma tendência global, porquanto a evo-lução deste padrão matrimonial varia em função de cada país. Com efeito,

19 Itálicos nossos.20 É pouco rigoroso concluir que a «semelhança cultural» se encontra entre as próprias

«preferências» dos protagonistas da escolha do cônjuge quando não se demonstra, ob-jectivamente, qualquer relação entre afinidades e partilha de gostos comuns, por umlado, e o efectivo funcionamento da vida conjugal, por outro. Alguns estudos revelam,pelo contrário, a ausência de uma associação entre a distância «cultural» entre os cônjugese a probabilidade de divórcio. A. Boigeol e J. Commaille (1974) observaram que, entreas mulheres pertencentes aos «quadros médios», as casadas com operários não se divor-ciavam com maior frequência do que as viviam numa união conjugal homogâmica. Nomesmo sentido, também Kellerhals et al. (1985) demonstraram não existir uma relaçãolinear entre heterogamia e divórcio.

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pesquisas de âmbito internacional, como o trabalho desenvolvido por W. Ultee e R. Luijkx (1990), observaram esse acréscimo apenas em cincodos dezoito países abrangidos pelo seu estudo. J. Smits et al. (1998), porsua vez, procuraram explicar as variações entre sessenta e cinco paísesde acordo com factores de desenvolvimento económico e factores cul-turais, como é o caso da religião predominante. Estes investigadores ob-servaram que, nos países mais industrializados, a homogamia escolartende a atenuar-se entre aqueles onde o Protestantismo é a religião pre-dominante. Esta observação contribui para sustentar a hipótese – «a hi-pótese do amor romântico» – de a industrialização ter reduzido o pesoda educação na escolha do cônjuge em virtude do declínio dos critérioseconómicos e do crescente contacto entre pessoas de diferentes grupos.Os investigadores consideram que, ao invés dos países onde o Catoli-cismo predomina, a avançada industrialização dos países protestantesestá associada a uma atenuação quer da «ênfase nos valores tradicionaisda família», quer da «importância atribuída ao status na escolha do côn-juge».

Deste modo, convocando a esperança, partilhada por outros, numaescolha liberta de condicionalismos sociais, J. Smits et al. (1998) con-cluem que a evolução da homogamia escolar é representada por umacurva em «U»: a proximidade dos recursos educacionais acentua-se noarranque e nas primeiras etapas da industrialização de um país para, pos-teriormente, vir a atenuar-se, dando lugar a uma escolha livre desse tipode critérios. Esta escolha exclusivamente entregue ao indivíduo resultaquer da crescente perda da capacidade dos pais para intervir na formaçãodo casal, quer do maior contacto entre pessoas de diferentes grupos destatus. A esperança de uma escolha livre assenta, afinal, na recuperaçãode um pressuposto sobre a privatização da vida familiar tão caro ao fun-cionalismo de Parsons quanto à tese da «família de companheirismo»defendida por Burgess et al. (1963 [1945]), pressuposto esse que se de-preende claramente da hipótese avançada pelos investigadores.

O desenvolvimento de uma economia agrária no sentido de uma eco-nomia industrial tem sido acompanhado por uma mudança: os casamentosarranjados de acordo com os interesses das famílias dão lugar aos casamentospor amor. A separação da casa e do trabalho reduz as funções económicasdos lares e reforça as suas funções emocionais. A legislação no que respeitaà segurança social tem efeito semelhante. No contexto laboral, prevalece oideal de produção eficiente, enquanto no contexto conjugal emergiu o idealdo amor romântico. A elevação do nível de vida e a racionalização da pro-dução possibilitaram o «luxo» do casamento por amor. Além disso, a fria efi-

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ciência da racionalização da produção tornou também mais necessário estetipo de casamento. Neste sentido, se se assume que, em certa medida, «oamor é cego», então o crescimento de casamentos por amor nas sociedadesindustrializadas pode ter enfraquecido a associação entre os níveis educacio-nais dos cônjuges [Smits et al. 1998, 266-267].

De resto, realizados a uma escala nacional, outros trabalhos apresen-tam resultados, no que toca à evolução da homogamia escolar, nem sem-pre consonantes com as conclusões do estudo de Smits et al. (1998). Essestrabalhos demonstram que os países onde predomina tanto a religiãoprotestante como a religião católica – como é o caso dos Estados Unidosda América (Mare 1991; Kalmijn 1991), da Alemanha (Blossfeld e Timm2003) ou da Holanda (Hendrickx 1994) – registam um crescimento dahomogamia escolar, enquanto em países predominantemente católicoscomo a França (Vanderschelden 2006) ou a Espanha (Esteve e Cortina2006), o peso da proximidade dos graus de escolaridade diminui. Estedeclínio observado em países católicos entra particularmente em contra-dição com as conclusões de Smits et al. (1998), que, afinal, apenas se apli-cam à Noruega, onde a homogamia escolar regista, de facto, um decrés-cimo (Birkelund e Heldal 2003).

Por último, os estudos que colocam a ênfase nas preferências e nosinteresses individuais na explicação da homogamia partem de uma pers-pectiva alargada ao conjunto dos «candidatos», aqui entendido como um«mercado matrimonial». Trata-se de um conceito «metaforicamente» uti-lizado pelo economista G. Becker (1973) para demonstrar que a escolhado cônjuge é um fenómeno «altamente sistemático e estruturado», seme-lhante a qualquer outro envolvido numa dinâmica de mercado. Nesta definição «mercantil», a dinâmica do processo de escolha do cônjuge deve – para recorrer à terminologia marxiana – mais às «coisas da lógica»do que à «lógica das coisas». Não se estranha, assim, o recurso a conceitostais como «eficiência», «preços-sombra» ou «maximização», conceitos esses efectivamente demonstrativos de uma tentativa de redução dos pro-cessos da escolha do cônjuge ao funcionamento económico que é própriode um mercado. «Um mercado matrimonial eficiente», afirma Becker, «desenvolve preços-sombra no sentido de orientar os seus participantes para casamentos que maximizam o seu expectável bem-estar» (1973, 81).Todavia, conquanto a dinâmica dos processos de escolha do cônjuge nãose reduza ao funcionamento económico que é próprio dos mercados,nem tão-pouco a decisões racionais com base em interesses e preferências

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individuais, a utilização do conceito de «mercado matrimonial» não deixade ser pertinente, pois, no limite, existem sempre reais constrangimentosno que se refere aos candidatos disponíveis. Como vieram demonstraros estudos que, privilegiando uma interpretação estrutural da homogamia,sublinham a importância da natureza distributiva e morfológica da es-trutura social, a escolha homogâmica circunscreve-se necessariamente aovolume da oferta de candidatos que ocupam posições próximas no es-paço social.

Homogamia, estruturas e a ordem da interacção

Os estudos que privilegiam uma interpretação estrutural da homogamiacolocam a ênfase nos efeitos – internos e externos – da desigual distri-buição dos agentes no espaço social. Nas últimas décadas, as sociedadestestemunharam transformações profundas, tal como ilustram a mobili-dade geográfica e social, as migrações internas, a recomposição da estru-tura socioprofissional, a crescente presença de mulheres no mercado detrabalho e concomitante alteração do modelo predominante da divisãofamiliar do trabalho, o prolongamento dos estudos ou o crescimento dacoabitação pré-nupcial, da união de facto e do divórcio. No entanto, ahomogamia persiste como padrão matrimonial, demonstrando clara-mente que a estrutura social sai reforçada da actuação dos seus própriosmecanismos na escolha do cônjuge. Os trabalhos de investigação queprivilegiam uma interpretação estrutural da homogamia procuram, assim,revelar a estreita relação entre casamento e desigualdade social por viada escolha do cônjuge.

Entre esses trabalhos, encontramos os inquéritos realizados emFrança, designadamente o estudo pioneiro de A. Girard (1981 [1964]),realizado no final da década de 1950. Quando Girard investigou os efei-tos das transformações da estrutura social na escolha do cônjuge, as suasconclusões – «as estruturas e os modos de vida social colocam em pre-sença indivíduos oriundos do mesmo meio social» (1981 [1964], 198) –contribuíram para deitar por terra o mito do amor romântico, indiferenteaos condicionalismos da sociedade. Quase metade dos casais (45%) doseu inquérito era constituída por parceiros com origens sociais idênticas,e em dois terços (66%) o homem pertencia à mesma categoria sociopro-fissional do pai da mulher. Estes dados eram suficientemente elucidativosda persistência da distância social enquanto obstáculo à escolha do côn-juge. Girard concluiu que, enquanto fundação da própria família, o ca-samento está «na origem de efeitos selectivos que se opõem à igual re-

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partição das oportunidades» (Girard 1981 [1964], XXX). Posteriormente,os resultados de outros estudos levados a cabo em França (Roussel 1975;Desrosières 1978; Thélot 1982; Deville 1981; Audirac 1982; Bozon eHéran 1987) vieram confirmar que a escolha do cônjuge é exercida den-tro de apertadas fronteiras sociais. Um inquérito mais recente, realizadoem 1999, revelava que os casamentos dentro da mesma categoria socio-profissional (homogamia restrita) representam quase um terço das uniõesconjugais, elevando-se essa proporção a duas em cada três uniões quandoincluídos os casamentos entre indivíduos com posições socioprofissio-nais vizinhas (homogamia alargada) (Vanderschelden 2006; 2006a).

A preponderância do padrão homogâmico tem, de igual modo, sidoobservada noutros países. De acordo com os dados de um inquérito rea-lizado no início da década de 1980 a famílias suíças, quatro em cinco ca-samentos eram constituídos por indivíduos pertencentes à mesma cate-goria socioprofissional ou a categorias vizinhas (Kellerhals et al. 1982, 61).Mais recentemente, outro inquérito a famílias suíças permitiu observarque mais de metade (52%) das uniões conjugais são constituídas por par-ceiros com posições socioprofissionais idênticas ou vizinhas (Widmer etal. 2003, 56). Portugal, por sua vez, não representa uma excepção no quese refere à preponderância deste padrão matrimonial. Com efeito, asuniões conjugais com um perfil homogâmico na sociedade portuguesaperfazem mais de um terço (36,1%) da totalidade das uniões. Esta pro-porção mais do que duplica o valor esperado, indicador de uma ausência derelação entre as posições socioprofissionais dos parceiros, que representamenos de um sexto do total das uniões (Rosa 2005; 2008).21 A tendência

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21 Importa, todavia, fazer duas ressalvas quanto à leitura da própria proporção da ho-mogamia social, que invariavelmente difere nos diversos estudos. Em primeiro lugar, osignificado das proporções observadas prende-se sobretudo com a forte distância, siste-maticamente demonstrada, entre estas e as proporções esperadas. Ou seja, a real proporçãode uniões conjugais homogâmicas constitui um padrão matrimonial se o valor assumidofor significativamente elevado face à proporção de casamentos homogâmicos expectáveisnum cenário hipotético em que as posições sociais do homem e da mulher não interfe-rem na escolha do cônjuge. Em segundo lugar, se a proporção da homogamia restrita(uniões conjugais dentro da mesma categoria socioprofissional) representa um padrãomatrimonial, ainda assim, este dado não permite dar conta da real importância da pro-ximidade social na escolha cônjuge. Com efeito, numa perspectiva mais alargada, tem-se observado que a grande maioria dos casamentos se concretiza entre indivíduos composições idênticas ou muito próximas na estrutura socioprofissional. Deste modo, paraalém de um padrão matrimonial, a homogamia socioprofissional constitui sistematica-mente uma tendência observada nos estudos que privilegiam uma interpretação estruturalda escolha do cônjuge.

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homogâmica sofre, contudo, variações em função dos grupos sociopro-fissionais. Com efeito, a homogamia na sociedade portuguesa acentua--se quando a mulher desempenha profissões muito qualificadas, suge-rindo uma «afinidade espontânea» (Bourdieu 1987) porventura assegu-rada pela proximidade educacional que se depreende da preponderânciada homogamia escolar (Rosa 2008). É certo que a maior parte destes ca-samentos homogâmicos envolve cônjuges com reduzidos recursos esco-lares, pois estamos perante uma população que ainda é, grosso modo,pouco escolarizada. De resto, a homogamia socioprofissional restrita tam-bém se acentua particularmente junto das camponesas e das operáriasagrícolas. Para além do isolamento da vida no campo e de uma afinidadealimentada pela semelhança das actividades, das competências e dos sa-beres relacionados com o trabalho agrícola, a forte homogamia resultaaqui ora da importância atribuída à transmissão do património e, por-tanto, aos meios de subsistência – no caso das camponesas –, ora do mo-desto valor social atribuído à condição de assalariadas rurais das operáriasagrícolas.

Nos diversos estudos, a actualização dos dados sobre a homogamiavem, por sua vez, confrontar-nos com a prudência necessária na compa-ração dos resultados de pesquisas que, recorrendo a critérios semelhantesna construção do indicador socioprofissional, utilizam ainda assim umaclassificação com diferentes agregações das categorias. Com efeito, noque respeita à Suíça, a diferença de valores correspondentes à homogamiarestrita de um inquérito para o outro poderia sugerir um decréscimo dahomogamia neste país apenas num espaço de vinte anos.22 No entanto,esta diferença não autoriza tal conclusão, já que no primeiro inquérito ahomogamia é avaliada a partir de um indicador socioprofissional desa-gregado em cinco categorias,23 enquanto a pesquisa mais recente alargao nível de desagregação a sete categorias.24 Aliás, é justamente por estarazão que estes últimos investigadores não comparam os resultados deambos os estudos e, de igual modo, «renunciam» a uma comparaçãocom os resultados observados na década anterior por R. Levy et al. (1997).

22 As uniões conjugais entre indivíduos pertencentes à mesma categoria socioprofis-sional (homogamie stricte) correspondiam, no inquérito suíço mais recente, a 24% dos ca-samentos (Widmer et al. 2003).

23 «Manœuvre du primaire et du secondaire + Ouvrier spécialisé + Manœuvre dutertiaire»; «Ouvrier qualifié + Employé qualifié»; «Petit indépendant du commerce, d’agri-culture, de l’industrie»; «Cadre moyen non-universitaire»; «Cadre moyen universitaire +Cadre supérieur + Profession libérale» (Kellerhals et al. 1982).

24 «Non qualifié»; «Ouvrier qualifié»; «Employé qualifié»; «Petit indépendant»; «In-termédiaire»; «Cadre»; «Profession dirigeant» (Widmer et al. 2003).

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Esta precaução aplica-se ainda com maior pertinência à comparaçãodos resultados obtidos através dos estudos realizados em diferentes países.Com efeito, não é seguramente válido proceder a comparações entre paí-ses sem que, entretanto, se desenvolvam pesquisas de carácter internacio-nal 25 assentes num consenso respeitante quer ao indicador socioprofis-sional construído e utilizado com base em critérios teóricos unívocos,quer à aplicação de metodologias adequadas e às necessárias afinações naadaptação a cada país da técnica de inquirição utilizada, tendo em vistaassegurar a objectividade no exercício de comparação. De resto, estes aler-tas e ressalvas não invalidam, obviamente, os resultados obtidos pelos tra-balhos que privilegiam uma interpretação estrutural da homogamia, a saber,o peso muito significativo dos casamentos homogâmicos e, portanto, aprevalência da proximidade socioprofissional na escolha do cônjuge.

A interpretação da homogamia como causa e, simultaneamente,efeito da desigual distribuição dos indivíduos na estrutura social contem-pla ainda a análise da proximidade das origens sociais e dos obstáculosgeográficos na escolha do cônjuge. Em países como a França, há váriasdécadas que o desenvolvimento da sociedade urbana e concomitantecrescimento da mobilidade residencial contribuem de forma decisivapara um declínio da proximidade geográfica na escolha do cônjuge –ainda que este declínio não seja transversal a todos os estratos sociais (Gi-rard 1981 [1964]; Bozon e Héran 1987a). Em Portugal, a recomposiçãoda estrutura socioprofissional nas últimas décadas decorreu a par do fe-nómeno das migrações, até meados da década de 1970 com destino àsáreas metropolitanas do Porto e de Lisboa, mas, progressivamente, a par-tir da década de 1980, a outras cidades de grande e média dimensão.26

Não obstante esses processos de mobilidade espacial, metade das mu-lheres entrevistadas no inquérito FPC de 1999 vivia em conjugalidadecom um conterrâneo, sendo de resto assinalável que só uma pequenaproporção tenha casado com um homem nascido a seis ou mais conce-lhos de distância do seu (Rosa 2005).

25 À semelhança, por exemplo, de alguns estudos realizados no âmbito da sociologiadas classes e da estratificação social (Wright 1997; Almeida et al. 2006).

26 Tal como observou J. Ferrão, «a lógica de rede, de multipolaridade, vai-se gradual-mente articulando (substituindo?) às lógicas anteriores, de forte pendor dicotómico(campo vs. cidade, Norte vs. Sul, litoral vs. interior), traduzindo-se por configurações ter-ritoriais em arquipélago» (1996, 187).

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Pistas na interpretação estrutural da homogamia

Rejeitando a hipótese de os comportamentos matrimoniais poderemalterar-se no sentido de uma escolha do cônjuge liberta de condiciona-lismos sociais, os estudos que colocam a ênfase numa interpretação estru-tural da homogamia avançam, grosso modo, com duas pistas na explicaçãoda persistência da proximidade social enquanto critério de escolha. Porum lado, sugerem que a consolidação das clivagens sociais asseguradapela homogamia assenta nos mecanismos generativos da estrutura social.Com efeito, esta actua à escala individual enquanto estrutura internali-zada, estando portanto esses mecanismos presentes no processo de es-colha do cônjuge sob a forma de disposições incorporadas. Por outrolado, a interpretação estrutural da homogamia estende-se à própria estru-turação dos contextos da interacção, o que implica um alargamento doespectro da análise à auscultação da morfologia social dos locais e dascircunstâncias do encontro.

Das propriedades estruturais incorporadas ao peso do presente

No âmbito da interpretação estrutural da homogamia, a pista que seprende com o carácter decisivo dos mecanismos generativos da estruturasocial na formação do casal encontra uma argumento plausível no relevoque o capital cultural 27 assume entre os critérios de proximidade na es-colha do cônjuge. Recorrendo a um indicador de cinco categorias, Girardobservou que, na França ainda muito rural da década de 1950, dois terços(66%) dos casamentos envolviam cônjuges com o mesmo grau de esco-laridade, tendência esta transversal a todos os níveis de educação escolar.Utilizando o mesmo indicador de recursos educacionais, um recente es-tudo veio revelar que a proporção da homogamia escolar tem vindo adiminuir desde a década de 1950 neste país, caracterizando ainda assimmais de metade (54%) dos casamentos no final da década de 1990 (Van-derschelden 2006). Já na Suíça, E. Widmer et al. (2003) observaram quea proporção da homogamia escolar (50%) tinha aumentado face à pro-porção (44%) observada no início da década de 1990 por Levy et al.(1997). Quanto à sociedade portuguesa, a elevada proporção de casamen-tos homogâmicos observada – mais de metade das uniões conjugais(57,5%) caracteriza-se pela semelhança no que respeita ao grau de escola-

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27 Ainda que unicamente aferido pelos recursos escolares.

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ridade dos parceiros no início da vida a dois – representa um valor muitosuperior ao esperado, confirmando-se a homogamia escolar enquantopadrão matrimonial prevalecente (Rosa 2005; 2008).

Todos estes trabalhos, aliás, confirmam incessantemente que os casa-mentos homogâmicos observados representam cerca do dobro dasuniões conjugais que seriam expectáveis se o critério da proximidadeeducacional não actuasse na escolha do cônjuge. A proximidade educa-cional é, portanto, determinante da escolha do cônjuge, ainda que a sis-temática observação da homogamia escolar como padrão matrimonialproporcione unicamente pistas de interpretação, sugerindo, no limite, aimportância das afinidades, ou seja, das categorias de percepção, de ava-liação e de gosto que, sob a forma de disposições, resultam da internali-zação da estrutura social nas escolhas, nas decisões e nas acções indivi-duais. Que a proximidade cultural por via dos diplomas escolares naescolha do cônjuge se acentua, em particular, nos níveis de escolaridademais elevados têm-no frequentemente demonstrado trabalhos realizadosem diversos países, um dado ao qual acresce o reforço da homogamiajunto das categorias socioprofissionais onde se incluem as profissões maisexigentes em recursos qualificacionais (Bozon e Héran 1987; Mare 1991;Esteve e Cortina 2006; Widmer et al. 2003; Rosa 2005; 2008).

No plano socio-histórico, a hipótese de uma crescente inclinação paraa semelhança cultural na escolha do cônjuge alicerça-se na tese da incor-poração gradual de mecanismos de selecção do parceiro no quadro deum processo civilizacional que, segundo N. Elias (1990 [1939]), ocorre nospaíses do Ocidente com a desintegração da sociedade feudal, processoesse caracterizado, entre outros aspectos, pela transformação simultâneadas estruturas sociais e das estruturas psíquicas dos indivíduos.

São precisamente os medos que se referem à perda de prestígio distintivo[...] que mais se prestam à interiorização [...] através da maneira como cadaum dos membros desses estratos [sociais] é educado, nele se enraízam e con-vertem em medos interiores, os quais o mantêm automaticamente coagidosob a pressão de um forte superego, independentemente de qualquer con-trolo por parte de outras pessoas [Elias 1990 (1939), 262].

Este desenvolvimento socio-histórico no sentido de uma internaliza-ção da estrutura social sob a forma de interiorização do «controlo dosmedos e das pulsões» explica, porventura, que «a aversão pelos estilos devida diferentes seja, sem dúvida, uma das mais fortes barreiras entre asclasses» (Bourdieu 1979, 60). Para P. Bourdieu, um tal repúdio da dife-

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rença social é produto do habitus, ou seja, do «sistema de disposições du-ráveis e transferíveis que, integrando todas as experiências passadas, fun-ciona em cada momento como uma matriz de percepções, de apreciações ede acções» (Bourdieu 1972, 178). Ora, se resulta em distanciamento socialsob a forma de «aversão pelos estilos de vida diferentes», o habitus tam-bém explica a «afinidade espontânea» que assegura a reprodução socialpor via do casamento homogâmico.

Como explicar a homogamia que, apesar de tudo, se observa? Existemcertamente todas as técnicas sociais tendo em vista limitar o campo dos can-didatos possíveis, através de uma espécie de proteccionismo: excursões, bailesselectos, reuniões mundanas, etc. Mas a maior garantia da homogamia e,assim, da reprodução social, é a afinidade espontânea (vivida como simpatia),que aproxima os agentes dotados de habitus ou de gostos semelhantes e, nestesentido, produtos de condições e de condicionamentos sociais semelhantes.E, com efeito, também o fechamento ligado à existência de grupos social eculturalmente homogéneos, como os grupos de condiscípulos (classes do[ensino] secundário, disciplinas das faculdades, etc.), que são hoje responsá-veis por uma grande parte dos casamentos ou das uniões, e que devemmuito, eles próprios, ao efeito da afinidade dos habitus (sobretudo nas ope-rações de mútua escolha e de selecção). Em La distinction, demonstrei am-plamente que o amor pode também ser descrito como uma forma de amorfati: amar é sempre um pouco amar no outro uma outra realização do seupróprio destino social [Bourdieu 1987, 88].

O conceito de habitus pressupõe, deste modo, a ampliação das po-tencialidades heurísticas da teoria da prática. Na perspectiva bourdiana,os diversos grupos sociais elaboram «estratégias» no sentido da conser-vação ou do incremento dos seus «capitais». Entre a diversidade de con-figurações que essas estratégias podem assumir, as estratégias matrimoniaissão, para Bourdieu (1972a), elucidativas do papel central que a famíliaocupa na reprodução das classes sociais. Ambos os conceitos – de estra-tégias matrimoniais e de habitus – têm, contudo, sido alvo de críticas di-versas. Por um lado, a verdade é que, pese embora a sua pertinência emdeterminados contextos – como acontece nos meios agrícolas, onde ocasamento vem colocar directamente em questão a reprodução do pa-trimónio familiar –, o conceito de estratégias matrimoniais demonstralimitações quando aplicado à maioria dos estratos em sociedades ondeos sistemas e as estruturas sociais tendem a transformar-se no sentido dacomplexificação. Deste modo, em virtude de tal complexificação e, emparticular, do esvaecimento da sociedade rural, o recurso ao conceito de

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estratégias matrimoniais vai perdendo pertinência, num país como Por-tugal, onde, tal como observa A. Torres, «a história dos últimos quarentaanos e das profundas transformações ocorridas no quadro da família edo casamento é exactamente a demonstração do crescimento dos secto-res sociais em que essas lógicas [de reprodução do património] menosse aplicam.» (2001, 76).

Por outro lado, também o conceito de habitus tem estado envolto emcontrovérsias, às quais não é alheia a sua aplicação na interpretação estru-tural da homogamia social. Na perspectiva da reprodução social, as apos-tas na escolaridade «desempenham o papel do capital escolar, resultantedas estratégias educativas, posto que permitem um melhor posiciona-mento no mercado matrimonial» (Singly 1992, 154). E, com efeito, nãodeixa de ser verdade que o meio social de origem condiciona fortementea aposta na escolaridade, condicionamento este que, sem dúvida, indiciaestratégias de reprodução social consubstanciadas numa reconversão dosrecursos económicos em títulos escolares (Benavente et al. 1994). Por ou-tras palavras, a transformação das próprias estratégias de reprodução sãoum sintoma dos modos de reacção e adaptação das famílias à complexi-ficação dos sistemas sociais.28 Contudo, Bourdieu (1972) insiste numaideia de consistência no que toca à internalização da estrutura social,ideia essa bastante evidente na própria concepção do habitus enquanto«sistema de disposições» refractárias face às vicissitudes, precisamente de-vido à sua natureza «sistémica», resistindo ao tempo – «duráveis» – e àmobilidade entre contextos – «transponíveis».

Da sua proposta teórica resulta assim, essencialmente, uma concepçãoapriorística da estrutura internalizada, que não contempla a possibilidadede, em lugar da consistência das disposições que é própria de um «sis-tema», os agentes incorporarem disposições «plurais», quando não «dis-sonantes» ou mesmo «contraditórias», (Lahire 2003 [1998]). O que motivaalguns dos seus críticos a defender que «o grau e o tipo de sistematicidadedas relações entre disposições deveriam constituir um problema analítico,não um a priori conceptual» (Pires 2007, 38), questionando se, «mais doque supor a existência de um processo sociocognitivo como o da ‘trans-

28 A título de exemplo, numa pesquisa realizada em meio rural, J. M. Pinto observouque a posse de recursos educacionais veio, de facto, alterar os padrões de escolha do côn-juge, confrontando «o peso que os determinismos sociais ligados à propriedade fundiáriaassumem na definição das estratégias matrimoniais da burguesia agrária local com os fac-tores que, relevando já sobretudo de um jogo de ‘afinidades culturais’ que a detenção detítulos escolares normalmente traduz e garante, influenciam as inclinações conjugais danova pequena burguesia» (1985, 357).

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feribilidade’ (ou ‘transponibilidade’) das disposições, não seria melhor tra-balhar esta questão em pesquisas empíricas que visassem comparar siste-maticamente as disposições sociais postas em prática segundo o contextode acção (domínios de práticas, esferas de actividade, microcontextos,tipos de interacção...) considerado?» (Lahire 2005, 13).29 Por outro lado,esta concepção apriorística da estrutura internalizada consubstancia-senum «peso» atribuído ao passado que subestima e, deste modo, obscureceo peso do presente e da ordem da interacção nas escolhas dos agentes,quando estes factores são, na realidade, tanto mais decisivos quanto maiora «pluralidade» e a «dissonância» das disposições incorporadas.

O «presente» tem, portanto, tanto mais peso na explicação dos compor-tamentos, das práticas ou das condutas, quanto os actores são plurais.Quando estes foram socializados em condições particularmente homogénease coerentes, a sua reacção às novas situações pode ser previsível. Em compa-ração, quanto mais os actores forem o produto de formas de vida sociais he-terogéneas, e até contraditórias, mais a lógica da situação presente desempe-nha um papel central na reacção de uma parte das experiências passadasincorporadas. O passado está, por isso, «aberto» diferentemente, conformea natureza e a configuração da situação presente [Lahire 2003 (1998), 66-67].

Afinal, a probabilidade de o passado se impor sem «abertura» aos de-safios do presente e da interacção social circunscreve-se aos casos em queos indivíduos não estiveram expostos a socializações plurais, inconsistentese/ou contraditórias, sendo por isso «necessário», de acordo com Pires, «con-siderar o habitus como um caso particular, extremo, no continuum das pos-sibilidades de sistematicidade das relações entre disposições» (2007, 38).

As características relacionais e morfológicas dos locais de encontro

Alguns trabalhos que privilegiam uma interpretação estrutural da ho-mogamia reconhecem o peso do presente e da ordem da interacção naescolha do cônjuge, verificando que a consolidação das clivagens sociaisatravés do casamento homogâmico não é alheia ao «facto de os indiví-duos serem colocados em contextos (escolas, fábricas, bairros, certos lu-

29 Do questionamento deste aspecto da teoria bourdiana nasce então uma questãoelementar que, para B. Lahire, só pode ser esclarecida com a pesquisa à escala individual:«Como é que as múltiplas disposições incorporadas, que não formam necessariamenteum ‘sistema’ coerente e harmonioso, se organizam ou se articulam?» (2005, 17).

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gares de lazer, etc.) onde é forte a probabilidade de encontrar uma pessoacuja identidade social é próxima da sua» 30 (Kellerhals 1989 [1984], 26).Esta componente «probabilística» da interpretação estrutural da homoga-mia tem sido bastante privilegiada desde o trabalho pioneiro de Girard(1981 [1964]), que atribuiu especial importância aos locais de encontro,cujas morfologia social e características relacionais definem as suas im-plicações enquanto mediação entre as posições dos agentes e a inclinaçãopara uma escolha homogâmica. Apesar de o encontro se inscrever nopróprio contexto da interacção social, poderíamos ser levados a suspeitarda insistência na importância da ordem da interacção, invocando que associedades envolvem cada vez mais «articulações estruturais e domíniossistémicos de ordem diferente da interaccional – estruturas e sistemasque apresentam complexidade crescente e âmbito cada vez mais vasto»(Costa 2003, 122). Porém, tal como se questiona A. F. Costa, não podeessa crescente complexificação – consubstanciada em «intensificação dareflexividade», «diversificação dos contextos e situações» e «multiplicaçãode interlo cutores» – contribuir para que a ordem da interacção, pelo con-trário, assuma hoje renovado protagonismo enquanto «co-determinanteda acção»?

Compreende-se, portanto, que a análise das circunstâncias em que oscônjuges se conheceram seja privilegiada no estudo da escolha do côn-juge, sendo plausível assistirmos a uma individualização da escolha – tra-duzida numa proeminência da proximidade das posições ocupadas naestrutura socioprofissional face à proximidade das origens sociais (Keller -hals et al. 1982; Kalmijn 1991) – em parte explicada pela crescente diver-sificação dos contextos de interacção social e concomitante proliferaçãodos locais de encontro. Com efeito, na França ainda fortemente agrícolaque Girard (1981 [1964]) estudou, em três quartos dos casais – formadosentre 1914 e 1929 – os cônjuges tinham travado conhecimento no con-texto da vizinhança, do local de trabalho, num baile ou em casa de ami-gos. Este conjunto de locais e circunstâncias, que então representavamos contextos de interacção onde a maior parte dos indivíduos tinha co-nhecido o seu parceiro conjugal, sofreu um acentuado declínio nas últi-mas décadas, contribuindo para uma relativa queda da endogamia e dahomogamia de origens sociais e geográficas enquanto padrões matrimo-niais. Quando M. Bozon e F. Héran (1987; 1988; 1990) actualizaram otrabalho de Girard (1981 [1964]), constataram que essas circunstânciassó estavam na origem de, aproximadamente, um terço dos casamentos,

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30 Itálico nosso.

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diversificando-se os encontros entre locais públicos, associações despor-tivas ou recreativas, locais de férias, locais de ensino como a escola ou afaculdade, e enfim a frequência de espectáculos ou outro tipo de eventos«culturais» (1987, 948-949).31 Confrontados com a persistência dos pa-drões homogâmicos, Bozon e Héran (1987; 1988) procuraram então ana-lisar a evolução dos locais de encontro e a sua relação com a distribuiçãodos indivíduos na estrutura social, assumindo, no entanto, uma perspec-tiva na concetpualização da escolha do cônjuge que articula os efeitosda estrutura social – simultaneamente entendida como conjunto de cons-trangimentos externos, sob a forma de propriedades morfológicas e rela-cionais emergentes na interacção social, e de mecanismos generativos in-ternalizados nos agentes sob a forma de «disposições inconscientes» –com as «perspectivas estratégicas» dos parceiros, levando sobretudo emlinha de conta a diferença sexual no que toca às preferências individuais.

O declínio dos encontros no baile ou na vizinhança prende-se, grossomodo, com o enfraquecimento das lógicas comunitárias associadas a ummundo rural que se esvanece, embora não seja rigoroso afirmar que tantoas relações de vizinhança como os contextos de bairro tenham deixadode contribuir de forma decisiva nos próprios «estilos de vida urbanos».32

31 Deve referir-se que, ao adoptar uma perspectiva teórica bastante mais abrangentee complexa, designadamente contemplando os efeitos da estrutura internalizada sob aforma de propriedades objectivadas e incorporadas na escolha do cônjuge, Bozon eHéran (1987; 1988; 1990) evitam a conclusão de Girard, que relativiza o próprio termode «escolha» para, pelo contrário, privilegiar uma explicação estruturalista de pendor mor-fológico da homogamia: «A liberdade do indivíduo permanece encerrada por todo olado, hoje como no passado, numa rede estreita de probabilidades e determinismos que condu-zem menos a escolher do que a encontrar um cônjuge que lhe seja tão próximo quanto possível»(Girard 1981 [1964]). Itálicos nossos.

32 O estudo de G. Crow et al. (2002) realizado numa pequena vila no Sul do ReinoUnido, à qual os investigadores atribuíram o pseudónimo de «Steeptown», veio precisa-mente contribuir para a desconstrução de eventuais preconceitos acerca das relações devizinhança em contexto urbano. Assumindo que «a vizinhança contemporânea não equi-vale a solidariedade obrigatória», os investigadores observaram que «o respeito pela priva-cidade da vida doméstica dos vizinhos não impediu o estabelecimento de laços significa-tivos entre a vizinhança, podendo, na verdade, este respeito ser interpretado como umadimensão necessária da ‘distância amigável’ que caracteriza estas relações» (2002, 141). Poroutro lado, se consideram que «é possível interpretar os ‘intrometidos’ como um produtode comunidades fechadas onde as pessoas são forçadas a viver em conjunto, e os ‘desco-nhecidos’ privatizados como emergentes de comunidades fragmentadas onde nada obrigaas pessoas a viver umas com as outras», também alertam para «o produto de situações» – tal como a que observaram em Steeptown – «onde nem o fechamento, nem a fragmen-tação prevalecem». Nestas situações, esclarecem, «as pessoas não são constrangidas peladependência dos vizinhos, nem tão-pouco se comportam como o «indivíduo isolado» deBeck, que evita compromissos duradouros com os outros» (Crow et al. 2002, 142).

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Assim, por um lado, o baile é cada vez mais um local de encontro privi-legiado pelo operariado industrial, apesar de alguns trabalhos terem co-locado a hipótese de o crescimento do êxodo rural e da dissipação dointerconhecimento aldeão ser contrabalançado pelo «recurso a um mer-cado [matrimonial] mais alargado, recrutando-se [o cônjuge] à escala dosarredores ou da região» (Bozon e Héran 1987, 953). Por outro lado, as re-lações de vizinhança, associadas aos meios rurais ou aos estratos urbanosmenos favorecidos, perdem expressão à medida que ganham terreno oslocais públicos. Estes locais referem-se a todos os contextos de interacçãoem que não é «mencionado», na situação do encontro, o olhar vigilanteda vizinhança, da comunidade ou, mais ainda, da família, como sejam«os encontros na rua, na cidade, no bairro, no café, no centro comercial,no hospital», etc. (Bozon e Héran 1987, 956). Na verdade, foram sobre-tudo o baile e a vizinhança as principais circunstâncias de encontro a de-cair de forma acentuada com o declínio da sociedade rural e o cresci-mento da mobilidade geográfica e social. Neste sentido, vão proliferandonão apenas os encontros mais característicos do contexto urbano, comosejam os encontros em locais públicos, sobretudo associados aos estratosmenos favorecidos, mas também os encontros em discotecas ou em con-textos de sociabilidade mais «privados», como as reuniões, as festas emcasa de amigos ou, simplesmente, em lugares mais «reservados», comoos locais de férias, os locais de lazer, todo o tipo de eventos ligados à«cultura» ou as associações desportivas, recreativas ou culturais.

Estes trabalhos demonstram que os locais de encontro, enquanto con-textos da interacção quotidiana, constituem mecanismos na mediaçãoentre a estrutura social e as escolhas individuais, sugerindo, por um lado,que a afinidade na origem da homogamia social é produto da proximidadede «juízos» – incutidos pelas instituições socializadoras, tal como servemde exemplo a escola e a família, mas não só, se atendermos à pluralidadee à contradição das disposições de que pode compor-se a «cultura dos in-divíduos» (Lahire 2004) – que se «manifestam continuamente nos encon-tros e nas interacções da existência quotidiana» e que devem a sua eficáciaao facto de serem «espontâneos» (Bourdieu 1979, 549). Por sua vez, se aprópria estrutura dos quadros de interacção é socialmente diferenciada,compreende-se que os locais de encontro sejam, de certa forma, um sub-produto da segregação social no espaço, colocando muitas vezes em si-tuação de co-presença indivíduos com perfis sociais semelhantes e, destemodo, contribuindo para que a atracção seja acompanhada de um senti-mento de espontaneidade, fundamental para gerar a percepção de auten-ticidade que, de acordo com o imaginário romântico, legitima o amor.

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Ora, as implicações das diferentes morfologias dos locais de encontrona escolha do cônjuge foram igualmente contempladas no inquérito FPCde 1999, observando-se que, na sociedade portuguesa, se acentua com aelevação da escolaridade dos indivíduos a probabilidade de conhecer oparceiro conjugal num local de ensino – a escola, o liceu ou a faculdade –e em contextos de lazer ou de amizade (Rosa 2005; 2008). Em particular,no que respeita aos locais de ensino, onde os indivíduos tendem a sersegregados de acordo com o seu nível de escolaridade, parece evidenteque, sobretudo aqui, se propiciem encontros caracterizados por afinida-des educacionais. A aproximação quotidiana com base em critérios edu-cacionais (níveis de escolaridade) que os estabelecimentos de ensino pro-porcionam não é, enfim, alheia à homogamia particularmente acentuadajunto das profissões mais qualificadas. Importa recordar que também A. N. Almeida et al. (1997) constataram o peso dos locais de ensino naescolha do cônjuge, sobretudo porque se trata de cenários que actuaramcomo factores «estruturantes» do próprio campo de recrutamento docônjuge entre os segmentos mais qualificados do universo – sócios deempresas – que constituiu o objecto de estudo destes investigadores. Poroutro lado, os designados contextos de lazer (férias, bares, discotecas, ci-nema, teatro, concertos) ou as redes de amizades são locais e circunstânciasde encontro privilegiados pelas mulheres dos grupos mais qualificados,um comportamento igualmente observado entre as mulheres com pro-fissões técnicas e de enquadramento.

Entretanto, cumpre-nos destacar o papel do local de trabalho nas di-versas tendências homogâmicas e hipergâmicas observadas no inquéritoFPC de 1999. Pela sua natureza, o local de trabalho constitui um con-texto de interacção quotidiana entre indivíduos que muitas vezes exercemprofissões próximas, quando não idênticas, no que respeita às qualifica-ções exigidas. Simultaneamente associados às profissões técnicas e às em-pregadas executantes, os encontros no local de trabalho parecem contri-buir para explicar a inclinação das últimas para casar com os primeiros.Por outro lado, a tendência das empregadas executantes para conhecer ocônjuge no local de trabalho é um dado importante na constatação dasfrequentes uniões conjugais entre as mulheres com essa posição socio -profissional e os patrões de pequenas e médias empresas, ainda que osdados não permitam afirmar que estamos aqui perante um padrão matri-monial. Com efeito, num estudo sobre empresas familiares de pequena emédia dimensão, M. D. Guerreiro observava que «as relações de interco-nhecimento em contexto profissional parecem desempenhar um papelrelevante não só para o estabelecimento de laços conjugais, mas também

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para a assunção, por grande parte das mulheres inquiridas, de funçõesde direcção nas empresas dos maridos, de que já antes eram empregadas,normalmente conhecedoras e competentes» 33 (1996, 177). Enfim, privi-legiado também pelas empregadas não qualificadas, o local de trabalhoproporciona sobretudo o encontro com operários industriais não quali-ficados, envolvendo frequentemente estas situações socioprofissionaisactividades que interagem partilhando o mesmo espaço.

Eventualmente por semelhantes razões se observa a inclinação dasoperárias industriais não qualificadas para casar com operários qualifica-dos, apesar de o local público e as sociabilidades locais – o bairro, a aldeia,o baile ou a associação – serem os contextos que mais propiciam os en-contros entre estes operários e operárias da indústria. As sociabilidades lo-cais são também circunstâncias que promovem o encontro quer juntodas mulheres domésticas, quer junto daquelas que exercem actividadesagrícolas, quer ainda das que pertencem ao grupo dos independentes epequenos patrões, onde prevalecem as situações pouco qualificadas. Poroutras palavras, o encontro no âmbito das sociabilidades locais é uma es-pecificidade dos meios menos favorecidos ligados ao campo e à indústria,onde a fugaz incursão pelo universo da escola e a precoce entrada nomundo do trabalho se traduzem numa circunscrição das circunstânciasdo encontro às fronteiras da comunidade de origem, que por sua vez «as-segura uma escolha acertada, isto é, realizada dentro das suas teias e – portanto – recaindo sobre um semelhante» (Almeida et al. 1997, 892).

Para os jovens dos meios rurais, não são raras as vezes em que a en-trada no mundo do trabalho implica a migração pendular para os centrosurbanos tendo em vista a inserção no sector industrial, podendo assim opróprio local de trabalho, distante do local de residência, funcionar comocenário alternativo – porque simbolicamente distante do controlo e davigilância locais do colectivo de pertença (Almeida 1999[1986], 262) –do encontro amoroso. No entanto, também é verdade que as migraçõesnem sempre assumem esse carácter pendular, partindo-se muitas vezesdefinitivamente para zonas urbanas de acolhimento onde se encontra jáestabelecida uma rede de conterrâneos. Neste sentido, podemos suporque as sociabilidades locais são sobretudo propícias à endogamia, embora,tal como observou Costa no seu estudo sobre o bairro de Alfama, as es-truturas e os processos sociais atravessem quer os «perfis e trajectórias so-ciais que caracterizam os protagonistas locais», quer o «contexto relacio-nal em que se geram as práticas sociais, as formas culturais e as dinâmicas

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identitárias» (1999, 297). De resto, é também nos meios sociais desfavo-recidos (no segmento menos qualificado da indústria e entre as operáriasagrícolas) que encontramos valores percentuais acima da média referentesaos namoros de infância (relações de proximidade) ou aos encontros emcircunstâncias envolvendo explicitamente a presença da rede de paren-tesco (Rosa 2005).

Tal como se depreende do entrecruzamento de lógicas estruturais einteraccionais que caracterizam a diversidade morfológica dos locais ecircunstâncias do encontro, a homogamia socioprofissional não se reduz,simplesmente, a um efeito mecânico da proximidade na estrutura socio-profissional ou da afinidade disposicional na escolha do cônjuge. Trata--se de uma perspectiva que, rejeitando a priori a existência de um meca-nismo no sentido da proximidade social na escolha do cônjuge,constituiu precisamente um dos pilares teóricos fundamentais na abor-dagem de Bozon e Héran (1988), quando estes propuseram a distinçãoentre locais «abertos» – como os locais públicos ou os espaços cuja aber-tura vai de par com o olhar vigilante do colectivo de pertença – associa-dos aos estratos menos favorecidos, e as circunstâncias mais «reservadas»,privilegiadas pelo meios mais favorecidos.34 A constatação da importânciados locais de encontro levou os investigadores a distanciarem-se do con-ceito bourdiano de estratégias matrimoniais, propondo, por sua vez, ode «estratégias de sociabilidade», ou seja, estratégias não «necessariamenteorientadas por considerações matrimoniais», tendo sobretudo como pro-pósito «reservar o acesso de um local aos seus semelhantes (ainda queeste resultado se obtenha pela fuga dos locais frequentados pelos outrosatravés de uma escolha positiva)» (Bozon e Héran 1988, 144).35 Ao con-tribuir para explicar a prevalecente inclinação para a proximidade socialno casal, a própria diferenciação social dos contextos de interacção indi-cia a diversidade de estratégias de sociabilidade ao mesmo tempo quepermite corroborar a tese de B. Lahire (2003 [1998]), que alerta para o«peso do presente» na explicação das escolhas e da acção. Com efeito, seo peso do passado fosse tão decisivo nos comportamentos individuaisquanto supõe a teoria da prática de Bourdieu, e se, portanto, o presentee a ordem da interacção fossem alheios às acções e às escolhas – ou tives-sem, quando muito, consequências de nível micro (Mouzelis 1995) –,

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34 Embora os grupos mais dotados de capital económico privilegiem sobretudo ascircunstâncias mais «privadas», enquanto os grupos mais dotados em capital cultural seinclinam para os encontros em locais simplesmente mais «reservados».

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como poderia explicar-se a própria diferenciação social dos contextos deinteracção e, assim, a «preocupação» dos grupos sociais em elaborar,como sugerem Bozon e Héran (1988), «estratégias de sociabilidade»?

A oposição principal entre locais públicos e locais reservados, acrescida daoposição secundária entre locais reservados e locais privados, tende a seg-mentar o mercado matrimonial sem que se observem necessariamente es-tratégias matrimoniais: uma parte considerável da selecção realiza-se logo àpartida através das estratégias de sociabilidade mais abrangentes, em particularas estratégias pelas quais as classes superiores evitam a abertura, os locais aber-tos ou todas as circunstâncias em que o indivíduo, devido ao grande númerode intervenientes, pode muitas vezes deixar ao acaso a gestão dos encontros.[...] Seria sem dúvida falacioso sustentar que os meios populares, pelo con-trário, ignoram qualquer forma de sociabilidade selectiva. [...] Se os meiospopulares são os únicos a fazer um uso matrimonial de espaços formalmenteabertos a todos, tal é devido à deserção das classes mais elevadas, que afinallhes deixam o campo livre. Neste sentido, os meios populares não têm qual-quer necessidade de colocar entraves à entrada no círculo em que se processaa escolha [Bozon e Héran 1988, 127-128].36

Por outro lado, as implicações do presente e, em particular, da ordemda interacção não podem, de igual modo, ser menosprezadas por qual-quer perspectiva que reduza a diversidade própria da ordem da interacçãoa propriedades morfológicas emergentes da estrutura social, como numaleitura mais desatenta poderia sugerir a constatação de regularidades entregrupos sociais e locais de encontro. Se, na realidade, existem associaçõesentre grupos sociais e contextos da interacção, não é menos verdade queelas só apontam tendências, restando enfim à ordem da interacção a ac-tivação de lógicas que reconfiguram os efeitos da estrutura social aí emer-gentes, precisamente ao contrário do que levaria a supor «uma análiseapenas situacional e sincrónica dos fenómenos sociais» (Costa 1999, 297).Se assim não fosse, não ficariam os locais e as circunstâncias do encontroapenas reduzidos à explicação dos casamentos homogâmicos, ou seja,dos casamentos que reproduzem a diferenciação observada na estruturasocial?

Deste modo, se os quadros urbanos da interacção contribuem paraque a proximidade das origens sociais e geográficas dê, cada vez mais,lugar à proximidade das posições socioprofissionais dos cônjuges (Kel-lerhals et al. 1982; Kalmijn 1991), o local de trabalho, em particular, pro-

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porciona crescentemente o encontro entre indivíduos cuja proximidadesocioprofissional contrasta com a distância entre as suas origens, à seme-lhança, aliás, do que sucede com os estabelecimentos de ensino (escolas,liceus, faculdades). Com efeito, a especificidade morfológica destes locaisde encontro proporciona a constituição, em classes escolares, de gruposde condiscípulos, explicando-se assim parte considerável das uniões con-jugais entre indivíduos detentores do mesmo grau de escolaridade(Bozon e Héran 1987; 1988; Kalmijn 2001; Rosa 2008). De resto, paraalém de fornecerem pistas na explicação da inclinação para a proximi-dade socioprofissional e escolar, os contextos e as circunstâncias do en-contro indiciam ainda outro tipo de critérios na escolha do cônjuge, cri-térios esses apenas observáveis à luz de uma perspectiva capaz decontemplar o impacto das diferenças entre os homens e as mulheres.

Efeitos da diferença sexual

O aumento do número de encontros no local de trabalho e em locaisde ensino é, em certa medida, consequência de algumas transformaçõesque caracterizam as últimas décadas: por um lado, a entrada maciça dasmulheres no mercado de trabalho e concomitante feminização de deter-minados segmentos profissionais (Carapinheiro e Rodrigues 1998), bemcomo o crescimento do divórcio (Torres 1996) e do recasamento (Lobo2009); por outro, o movimento de escolarização e o prolongamento dosestudos (Machado et al. 1998; 2003). A análise mais detalhada dos locaisde encontro veio efectivamente evidenciar a necessidade de introduzir adiferenciação social entre homens e mulheres na análise da formação docasal, necessidade essa sublinhada por Singly (1987) ao propor uma «teo-ria crítica da homogamia», onde denunciava a omissão das assimetriasentre os sexos na maioria dos estudos sobre a escolha do cônjuge. Estaúltima perspectiva sublinha, assim, a necessidade de contemplar as dife-renças de género na interpretação estrutural da escolha do cônjuge.

Com efeito, seja através das «estratégias de sociabilidade», seja atravésdas propriedades estruturais emergentes sob a forma de categorias de per-cepção ou disposições, a proximidade social não intervém na escolha docônjuge sem ser refractada pelas diferenças entre homens e mulheres. Talcomo sublinham os trabalhos que privilegiam uma interpretação económicada homogamia social, a escolha do cônjuge envolve, com efeito, umatroca de interesses, mas esses interesses são necessariamente sexuados.«No encontro de um cônjuge», precisam Bozon e Héran, «os indivíduos

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levam a cabo procedimentos de classificação e de avaliação análogosàqueles que utilizam noutras escolhas nas suas vidas, como a escolha deum bairro para habitar ou a escolha dos lazeres, ainda que a formaçãodos casais não seja, contudo, uma escolha como as outras, pois envolvehomens e mulheres que, em virtude das suas ‘diferenças de capitais’, nãoutilizam as mesmas categorias para avaliar o outro sexo» (2006, 18). Naanálise da escolha do cônjuge, importa então ter em conta, em primeirolugar, que os homens e as mulheres não se distribuem de igual modo naestrutura socioprofissional. Não encobrirá, frequentemente, a constataçãodo padrão homogâmico essas consequências sociais da desigualdade degénero? Por outro lado, e levando em linha de conta as persistentes assi-metrias salariais entre os sexos para a mesma categoria profissional, nãoenvolverá parte substancial dos casamentos homogâmicos marcadas de-sigualdades de género?

Em segundo lugar, da mesma forma que os casos de «heterogamia es-trutural» advêm das desigualdades entre homens e mulheres nos diferen-tes segmentos do mercado de trabalho (Bozon e Héran 2006), a hiperga-mia – ou seja, «o facto de uma mulher se casar com alguém cujo estatutoé um pouco superior ao seu» (Kellerhals 1989 [1984], 26) – frequentementeobservada nalguns segmentos intermédios (Rosa 2005) é, sem dúvida,um sintoma de que os interesses envolvidos na escolha do cônjuge nãosão alheios à diferença sexual. Por último, em lugar do pressuposto dahomogamia como resultado de uma intenção e, portanto, constanteentre os interesses envolvidos na escolha do cônjuge – tal como, de facto,sucede quando se observa uma intervenção directa dos pais, da famíliaou do colectivo de pertença –, reconheça-se a «norma social» que a cons-tatação deste padrão matrimonial permite desvelar. De acordo comBozon e Héran, a norma que a homogamia indicia reparte-se «em múl-tiplas normas intermediárias apoiadas num conjunto de atributos físicose sociais, como a altura, a aparência corporal, o ‘carácter’ construído poruma série de provas significativas, as promessas de excelência social ates-tadas pelo diploma, as garantias de acessibilidade social, a necessidadede ser tomado em conta e em consideração pelo outro, e assim pordiante» (2006, 12-13). Trata-se, portanto, de assumir que a escolha docônjuge e, designadamente, a inclinação homogâmica são reféns da di-ferença sexual, tal como, desde logo, demonstra a regularidade estatísticada inclinação para a diferença de idades a favor do homem, regularidadeessa que se destaca no conjunto de preferências que, referindo-se ora aosatributos do homem, ora às qualidades da mulher, denunciam a activa-ção das normas de género.

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Diferença sexual e distribuição na estrutura socioprofissional

Uma primeira dimensão da perspectiva do género a tomar em consi-deração na interpretação estrutural da escolha do cônjuge atém-se na desi-gual distribuição dos homens e das mulheres na estrutura socioprofissio-nal. O impacto dos efeitos da desigual distribuição dos sexos na estruturasocial tem sido, frequentemente, um dos objectos dos estudos sobreuniões conjugais entre homens e mulheres de diferentes raças ou etnias.Estes trabalhos demonstram que os homens de raça negra casam fre-quentemente com mulheres de raça branca, e não tanto o inverso (Kal-mijn 1993). Os argumentos que propõem resultam usualmente da com-binação de uma interpretação económica da escolha do cônjuge com umaperspectiva do género, sendo comum explicar-se esse padrão matrimonialde acordo com os diferentes interesses entre as mulheres brancas e os ho-mens negros, ou seja, a minoria de homens «capaz de compensar o seureduzido prestígio étnico oferecendo às mulheres brancas um estatutoocupacional ou um ordenado elevados» (Kalmijn 1998, 412).

Já as pesquisas que privilegiam uma perspectiva estrutural da escolhado cônjuge revelam, incessantemente, a hipergamia no plano educacio-nal. O trabalho de Girard começou por observar que, apesar de dois ter-ços dos casamentos se realizarem entre homens e mulheres com omesmo grau de escolaridade, mais de dois casais em dez definiam-sepelo maior grau de escolaridade do homem, uma proporção que quaseduplica a dos casamentos hipogâmicos, ou seja, a das uniões em que amulher era mais escolarizada que o homem. À data do inquérito francês(1959), eram, no entanto, óbvias e, aliás, sistemáticas as assimetrias entreos sexos no plano dos recursos escolares. «O nível de instrução dos ho-mens», sublinhava o investigador, «é sempre mais elevado do que o dasmulheres» (1981 [1964], 80). A hipergamia escolar foi, de igual modo,constatada nos Estados Unidos da América (Mare 1991; Kalmijn 1994).Neste país, contudo, onde as perspectivas de senso comum «interpretama [reduzida] hipogamia enquanto relutância dos homens em casar commulheres de elevado estatuto» (Kalmijn 1998), o padrão hipergâmico re-sulta menos de uma inclinação das mulheres para casarem com umhomem mais escolarizado, do que de um efeito estrutural da desigual-dade a nível do capital cultural sob a forma de títulos escolares (Mare1991). Esta constatação não é, de resto, contraditória com as conclusõesretiradas da observação da hipergamia socioprofissional enquanto padrãomatrimonial. Na verdade, Bozon (1991) sublinhou que o padrão hiper-gâmico especificamente observado nalgumas categorias socioprofissio-

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nais – os homens «quadros» inclinavam-se mais para as mulheres com«profissões intermediárias», e os homens com «profissões intermediárias»para as «empregadas», ainda que a maioria destas casasse com «operários»– não é necessariamente o produto de uma estratégia feminina de mobi-lidade ascendente, antes resultando da forte proporção de mulheres nacategoria dos «empregados» e da sua fraca representação entre os «qua-dros». De facto, os efeitos estruturais da diferença sexual têm perdurado.Assim o demonstram os resultados de um inquérito realizado em 1999neste país, onde uma em cinco uniões conjugais envolve uma «empre-gada» e um «operário» (Vanderschelden 2006).

Os padrões hipergâmicos observados em Portugal não deixam de en-contrar fortes semelhanças com os dados relativos a França. O inquéritoFPC de 1999 revela, de igual modo, os efeitos do género na escolha docônjuge, particularmente: nas uniões entre mulheres com profissões téc-nicas e de enquadramento e empresários e dirigentes ou profissionais in-telectuais e científicos; nas uniões entre empregadas executantes e ho-mens com profissões técnicas e de enquadramento intermédio; e nasuniões entre operárias industriais não qualificadas e operários industriaisqualificados. O primeiro tipo de uniões conjugais sugere a inclinação dasmulheres com profissões qualificadas e carreira para «escolher» umhomem com uma posição mais favorecida ou uma profissão relativa-mente mais qualificada, não estando, porém, excluída a hipótese de estadiferença de perfis socioprofissionais encontrar explicação na diferençaetária entre parceiros, diferença essa mais atenuada junto das mulheresmais escolarizadas, mas permanecendo a favor do homem (Rosa 2005;Bozon 1990). Importa sublinhar que estamos perante uniões em queambos, mulher e homem, exercem actividades com lógicas de carreira,constituindo muitas vezes a idade um elemento determinante, portanto,do desfasamento entre as posições socioprofissionais. Já no que respeitaaos casamentos de empregadas executantes com profissionais técnicos,a posição socioprofissional da mulher, ao contrário da do homem,aponta para o exercício de uma actividade sem lógica de carreira, sendoaqui pouco provável que a idade esteja associada à discrepância inicialentre as posições. Quanto às uniões entre mulheres que ocupam as po-sições menos qualificadas da indústria e operários qualificados, a hipóteseexplicativa mais plausível prende-se com as assimetrias de género que seobservam no mercado de trabalho. Um efeito da desigualdade sexual anível das inserções profissionais nos contextos menos favorecidos do sec-tor secundário traduz-se, efectivamente, na superior presença das mulhe-res nos postos de trabalho menos qualificados. A inclinação das operárias

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industriais não qualificadas para casar com operários industriais qualifi-cados não deixa, assim, de sugerir que a proximidade socioprofissionalrelativa, as afinidades profissionais e culturais vão frequentemente de parcom uma superioridade masculina – porventura esperada e, mesmo, va-lorizada – a nível do posicionamento na estrutura socioprofissional.

Enfim, a maior parte dos casamentos hipergâmicos combina a proxi-midade social relativa com uma superioridade masculina. Mas, se estespadrões hipergâmicos, que, na verdade, representam formas de homo-gamia socioprofissional alargada, apontam claramente para as diferençassociais entre os sexos, já a homogamia restrita – ou seja, os casamentosdentro mesma categoria socioprofissional – constitui um padrão matri-monial particularmente insidioso, uma vez que a mesma posição socio-profissional pode equivaler a condições sociais diferenciadas em funçãodo sexo. Qualquer situação de desigualdade de género a nível dos posi-cionamentos na estrutura socioprofissional que esta homogamia restritaomite é per se reveladora do papel do casamento, por via da escolha docônjuge, na «dupla» reprodução das relações de classe e das relações degénero (Singly 1997 [1987]). De resto, ainda que as regularidades estatís-ticas da hipergamia e da homogamia socioprofissional possam traduzir,de forma mais ou menos evidente, os efeitos estruturais da diferença se-xual, autores como Singly (1987) têm insistido na insuficiência das aná-lises incapazes de abordar a escolha do cônjuge enquanto troca de «in-teresses» forçosamente sexuados.

Os interesses dos homens e os interesses das mulheres

No que respeita às assimetrias entre os sexos, para além da relação es-trutural entre mercado de trabalho e mercado matrimonial que se de-preende da própria ambiguidade entre a proximidade socioprofissionalrelativa à escolha do cônjuge e a hipergamia, os investigadores que su-blinham o imperativo de uma perspectiva do género privilegiam aindaos factores que, subjacentes às relações sociais de sexo, emergem sob aforma de «interesses» na escolha do cônjuge. Deste modo, os pequenosanúncios matrimoniais constituem para Singly (1987; 1997 [1987]) fontesesclarecedoras da diferença sexual no que toca aos «interesses» envolvidosna escolha do cônjuge. De igual modo, um inquérito representativo dasociedade francesa da década de 1980, bem como uma pesquisa qualita-tiva envolvendo mais de uma centena de entrevistas (Bozon 1990; 1990a)permitiram observar as divergências entre homens e mulheres na escolhado cônjuge, divergências essas traduzidas nalgumas regularidades estatís-

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ticas, como sejam a diferença de idades (Bozon 1990; 1990a; Vander -schelden 2006b) ou a discrepância a nível da estatura física (Herpin 2003)a favor do homem.

A escolha do cônjuge entendida como um «processo de avaliação re-cíproca» no decurso do qual «cada parceiro procura, consciente ou incons-cientemente, actualizar tanto quanto possível o seu valor, jogando comtodos os seus capitais»37 permite que Singly questione se, afinal, «umaaliança desequilibrada entre um homem e uma mulher» constitui «umbom casamento para um dos parceiros ou se, pelo contrário, não ficouesquecido um capital» (1987, 192). Recordando a elevada proporção decasamentos heterogâmicos, Singly alerta para a ausência de um distan-ciamento crítico face à perspectiva bourdiana das «estratégias de repro-dução» que identifica na maioria dos trabalhos apologistas de uma inter-pretação estrutural da homogamia. Singly acusa estes trabalhos desubestimarem «a gestão desigual dos actores face ao seu destino e, nestesentido, a improvável existência de bons casamentos» (1987, 192). Presu-mindo que «os instrumentos estratégicos à disposição dos actores sociaissão perfeitamente fiáveis» e, sobretudo, que «todos os indivíduos inte-riorizaram os objectivos da luta para a defesa do seu estatuto social», con-sidera a análise dos «mecanismos através dos quais uma pessoa é julgadacomo digna de se tornar o cônjuge de outra» o verdadeiro desafio socio-lógico (1987, 192). Uma pesquisa dos anúncios publicados em jornaispermitiu-lhe observar que «o desejo de encontrar um equivalente matri-monial não é alheio à diferenciação entre os sexos» (1997 [1987], 27) e,deste modo, encontrar a explicação da elevada heterogamia «para umdeterminado nível de capital» nas diferenças sociais entre a identidademasculina e a identidade feminina.

Por um lado, a leitura da homogamia social segundo esta perspectivado género realça o impacto da diferença entre homens e mulheres sobreas «estratégias» envolvidas na escolha do cônjuge, se bem que Singly sedemarque implicitamente de qualquer interpretação económica, recusando--se a reduzir essas estratégias a interesses racionais e assexuados, pois «nomercado matrimonial – tal como nos outros mercados – os capitais têmum sexo» (1987, 204). As estratégias envolvidas na formação do casal sãoassim, em seu entender, fruto de uma complexa articulação entre efeitosestruturais e interesses moldados pelo género, ou seja, entre as implica-ções do posicionamento dos indivíduos na estrutura social – desde logocondicionado pela divisão sexual do trabalho – e as diferentes «preferên-

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cias» – entre homens e mulheres – actuantes na escolha do cônjuge. Sin-toma do mercado matrimonial enquanto «espaço onde os indivíduosvêm reconhecer o seu valor social», a homogamia vai de par com outrospadrões matrimoniais que resultam da diferença entre os interesses doshomens – valorizando os atributos «estéticos» e «relacionais» da mulher –e os interesses das mulheres – valorizando a «excelência social» dohomem (Singly 1987, 198). Não sendo propriamente heterogâmicos, essespadrões sugerem então que os interesses sexuados não comprometem atroca de capitais sociais e culturais «comparáveis» que caracteriza a esco-lha do cônjuge.

Por outro lado, se é do «interesse» da mulher a «excelência social» dohomem, a heterogamia fica, segundo Singly, elucidada através de umadefinição mais precisa do «valor social da mulher antes do seu casa-mento». Sujeito a ser reconhecido na escolha do cônjuge, o «valor ma-trimonial» da mulher está afecto ao acréscimo/decréscimo que a escola-ridade alcançada representa face à origem social, ou seja, ao seu «valorinicial». Elemento por excelência caracterizante do seu «valor ajustado»,a escolaridade – consubstanciada num «dote escolar» – pode não asse-gurar o «valor matrimonial» perante a ausência de outros recursos fun-damentais, como sejam uma origem social privilegiada, a beleza físicaou determinadas qualidades relacionais.

Para compreender a causa de tantos casais heterogâmicos, é preciso de-finir melhor o valor social da mulher antes do seu casamento. A posição socialdo seu pai constitui o seu valor inicial, a posição social do seu marido, o seuvalor matrimonial. O contraste entre estes dois valores remete para um ele-mento intermediário: o valor ajustado da mulher. A sua socialização e a suaeducação permitiram aumentar ou diminuir o valor da sua pertença a deter-minado meio. [...] O valor ajustado da mulher deriva especialmente do seudote escolar. [...] O dote escolar da mulher só aumenta o seu valor matrimonialquando associado a outra riqueza, seja esta um bom valor inicial (as mulheresoriundas dos meios privilegiados), seja um capital estético (para as mulheresprovenientes de meio popular ou da classe média). O capital cultural de umamulher sustenta fortemente os projectos matrimoniais das mulheres belascom uma origem popular e das mulheres – belas ou não – com uma origemsuperior. Para as mulheres oriundas dos meios populares, é necessária algumabeleza para provar a sua cultura, enquanto para as demais a beleza é faculta-tiva [Singly 1997 (1987), 27-33].38

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Dois apontamentos críticos devem ser, contudo, dirigidos à propostade Singly (1997 [1987]).

Em primeiro lugar, concordar com a irredutibilidade das estratégiasenvolvidas na escolha do cônjuge a interesses racionais e assexuados –irredutibilidade essa vulgarmente observada junto das perspectivas queprivilegiam uma interpretação económica da homogamia social – não con-duz necessariamente a subscrever o princípio da diferença das qualidadesque os capitais assumem entre os sexos: «no mercado matrimonial, talcomo nos outros mercados, os capitais têm um sexo» (Singly 1987, 204).Captado através do grau de escolaridade, em que difere o capital culturalda mulher do capital escolar do homem na escolha do cônjuge? Singlydefende que, junto das mulheres, «para um valor herdado constante, osdesvios de dote escolar traduzem-se em valor matrimonial» (1987, 189).Questionamo-nos efectivamente em que sentido não resulta também a«excelência social» tão valorizada nos homens – e, portanto, o seu «valormatrimonial» – de uma forte aposta na escolaridade. O princípio de que«os capitais têm um sexo» reduz aquilo que, na verdade, é um desafioempírico a um pressuposto apriorístico. O postulado de Singly asseme-lha-se aqui, de certa forma, ao dos investigadores que, numa tentativa deargumentação do crescimento da homogamia entre as camadas mais es-colarizadas da população, deduzem da crescente entrada de mulheres nomercado de trabalho – e, sobretudo, da sua atitude apostada em alcançartítulos escolares tendo em vista o exercício de uma actividade profissionalmuito qualificada – uma transformação no plano das preferências dohomem, na escolha do cônjuge, no sentido da valorização da escolari-dade da mulher (Oppenheimer 1994; Mare 1991; Esteve e Cortina 2006).

Em segundo lugar, a introdução de uma perspectiva da diferença se-xual no plano dos interesses e preferências envolvidos na formação docasal não sai enriquecida da apressada extrapolação das conclusões deum estudo sobre «anúncios matrimoniais» para o universo bastante maisvasto e complexo que os estudos sobre a escolha do cônjuge geralmenteabrangem. Entre outros aspectos, essa extrapolação abusiva não contem-pla as possibilidades plurais de (re)construção das identidades sexuais,quer no plano das orientações normativas e dos comportamentos em fa-mília – a título de exemplo, a articulação entre o desempenho do papelpaternal, a vida familiar e o trabalho envolve hoje uma «negociação entrenovas e velhas masculinidades» (Wall et al. 2007) – quer no plano das re-presentações da masculinidade e da feminilidade que circulam na socie-dade – tal como, por exemplo, nos revela um estudo sobre representaçõesdo género nos meios de comunicação social (Rosa et al. 2007) –, quer

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enfim no âmbito dos critérios actuantes na escolha do cônjuge, uma vezque os designados «interesses» femininos e masculinos se diversificamde acordo com os contextos sociais, constituindo os atributos estéticosdo próprio homem um capital particularmente valorizado ora quandoeste é originário de um meio social desfavorecido, ora quando as mulhe-res são «economicamente mais independentes» (Herpin 2003).

De resto, uma perspectiva do género impõe-se perante regularidadesestatísticas como a hipergamia etária – diferença de idades a favor dohomem –, um padrão matrimonial que não resulta simplesmente das es-truturas demográficas. Por exemplo, Bozon constatou não apenas umadiferença média de cerca de dois anos e meio a favor do homem nos ca-sais franceses, mas igualmente significativas variações dessa diferença emfunção da origem social: entre as mulheres provenientes de grupos poucofavorecidos – tais como as profissões ligadas ao campo ou à fábrica – aidade do cônjuge era, em média, superior à sua em mais de três anos, en-quanto entre as mulheres oriundas dos meios mais escolarizados o valorhomólogo era apenas de um ano e meio (Bozon 1990a, 580). O investi-gador associou essas variações ao prolongamento dos estudos, pois se a«saída precoce do sistema de ensino está associada a uma probabilidademuito mais forte de casar com um homem claramente mais velho», apropensão generalizada para prolongar os estudos e frequentar mais oslocais de ensino, onde os estudantes tendem a ser segregados por níveisetários, resulta numa redução da hiperamia etária (Bozon 1990a, 567).Esta associação entre proximidade etária e prolongamento dos estudosnão deve, contudo, ser unicamente interpretada como o resultado doencontro entre condiscípulos de idades aproximadas que os locais de en-sino proporcionam, tratando-se também, na verdade, de um efeito dadiferença sexual no plano dos interesses na escolha do cônjuge. Numaperspectiva do género, a maior propensão para a hipergamia etária entreas mulheres menos escolarizadas sugere, efectivamente, uma inclinaçãopara um homem dotado de autonomia.

[A conclusão dos estudos] anuncia a possibilidade de autonomia e de in-dependência, mesmo quando não estão reunidas as condições para as mu-lheres saírem de casa dos pais. O namoro com um homem (potencial côn-juge) autónomo pode ser ponderado como o meio de reduzir esta diferençaentre a situação presente e as aspirações de independência. O caso das jovenspouco escolarizadas pode ser analisado nesta perspectiva [Bozon 1990a, 569].

Tal como a homogamia e os demais padrões matrimoniais observadosem diversos estudos, a diferença de idades no casal sugere uma articula-

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ção entre os interesses sexuados e os «usos sociais da idade», ou seja, os«usos que são próprios de cada grupo social» (Bozon 1990, 344). Comefeito, os resultados de um estudo mais recente levado a cabo em França(Vanderschelden 2006b) demonstram que a homogamia etária tem vindoa acentuar-se – a média da diferença de idades dos cônjuges decaiu de2,8 anos entre os casais formados na década de 1950 para 2,3 anos entreos casais formados na década de 1980 –, confirmando as previsões deum declínio da hipergamia etária com o prolongamento dos estudos.No entanto, apesar desta evolução – três em cada dez casais caracteri-zam-se por uma diferença de idades não superior a um ano –, o homemcontinua a ser mais velho que a mulher na maioria dos casais.

Na sua pesquisa, Bozon constatou que a hipergamia etária era mais oresultado de um desejo feminino do que o contrário, identificando naorigem dessa forma de «superioridade» do homem no casal uma exaltaçãosexualmente diferenciada da discrepância etária entre cônjuges: «a supe-rioridade masculina através da idade é, geralmente, mais desejada pelamulher do que pelo homem, e vai de par com a tradicional valorizaçãodo casal cujo estatuto é conferido pelo homem» (Bozon 1990a, 599). O casamento com um homem mais novo implicava, de acordo com asmulheres entrevistadas pelo investigador, «dar a entender que é a mulhero elemento dominante, uma projecção que (paradoxalmente) a diminuido ponto de vista social» (Bozon 1990a).39 Esta forma de «elogio [femi-nino] da maturidade masculina» está arraigada numa «ideia segundo aqual o homem deve ser mais velho» (1990, 347), demonstrando a preva-lência de uma norma subjacente a um modelo de divisão sexual do tra-balho que preconiza a dependência do «estatuto do casal» da posição so-cial do homem. Ora, a interpretação da hipergamia etária enquanto frutoda diferença entre interesses dos homens e interesses das mulheres pode,grosso modo, aplicar-se aos dados obtidos no inquérito FPC de 1999. Tam-bém quando auscultámos a realidade portuguesa constatámos que a hi-pergamia etária constava entre os padrões matrimoniais prevalecentes, si-tuando-se a diferença média de idades no casal nos 2,8 anos a favor dohomem. Este valor indica, portanto, uma inclinação hipergâmica umpouco mais acentuada que em França (2,6) (Vanderschelden 2006b).

Por último, há ainda interesses e preferências envolvidos na escolhado cônjuge respeitantes a determinadas características físicas e atributospsicológicos que são supostos distinguirem os homens e as mulheres.

39 Enquanto a maioria dos homens entrevistados «aceitava viver com uma mulher li-geiramente mais velha que eles» (Bozon 1990, 347).

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Com efeito, Bozon e Héram observaram que se «os homens valorizammais nas mulheres a aparência física e as qualidades de apresentação, bemcomo traços psicológicos que qualificam um estilo de relações com ooutro em associação com os papéis de representação e de mediação so-ciais que a elas estão tradicionalmente destinados», já as mulheres ora as-sociam a aparência física dos homens ao seu estatuto social e profissional,ora valorizam traços afectivos – «transmite segurança», «é afectuoso»(2006, 18). No conjunto das mútuas apreciações na escolha do cônjuge,a diferença de estatura física a favor do homem revela-se a inclinação,sem dúvida, preponderante. A elevada estatura de um homem tem sig-nificados diversos junto das mulheres. N. Herpin (2003), por exemplo,constatou que, se entre as mulheres economicamente mais autónomas,a altura do parceiro se reduz, sobretudo, a um atributo estético, este cri-tério constitui para a maioria um indicador de uma carreira profissionalpromissora. Os resultados destes trabalhos demonstram que grande partedas mulheres considera, efectivamente, que os homens «sofrem umaperda de estatuto» quando casam com uma mulher mais alta, um dado,enfim, sintomático de uma forma de «dominação consentida» (Bozon1990a).

A homogamia como processo

Ao invés das antevisões de autores como Burgess ou Parsons, os estu-dos sobre a escolha do cônjuge que acabamos de expor demonstram aprevalência dos padrões homogâmicos avançando com diversas inter-pretações da homogamia. Todas essas interpretações reconhecem que,em virtude da actuação de diversos critérios de proximidade, o casamentoconstitui uma peça fundamental na cristalização das diferenças sociais.Após termos demonstrado este papel decisivo da escolha do cônjuge nadiferenciação social dos agregados no Portugal contemporâneo (Rosa2005; 2008), pretendíamos ampliar o espectro da análise à relação entrevida conjugal e desigualdade. Com efeito, limitando-se à caracterizaçãosocial do casal no momento da sua formação – ou seja, à observação doscritérios de proximidade actuantes na escolha do cônjuge –, a homoga-mia é um conceito puramente descritivo e, sobretudo, estático, não per-mitindo auscultar as alterações a que essa proximidade está sujeita no de-curso da vida conjugal. Trata-se, portanto, de um conceito que não secoaduna ao estudo da relação entre vida conjugal e diferenciação social,sobretudo quando ambos os cônjuges exercem profissões com carreira,

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ou seja, nos casais mais susceptíveis à alteração da configuração homo-gâmica que porventura assumiam no momento da sua formação.

As oportunidades de construção de uma carreira não estão ao alcanceda maioria, mas há ainda algumas décadas, as mulheres com uma profis-são de carreira constituíam uma excepção entre a minoria que exerciauma actividade profissional. O aumento exponencial de mulheres nomercado de trabalho foi ao ponto de inverter as próprias estruturas fa-miliares. Na década de 1960, na grande maioria dos casamentos só ohomem exercia uma actividade profissional, sendo que em cada cemportuguesas apenas dezoito tinham uma profissão. Já o recenseamentoda população de 2001 revelava uma realidade contrastante: «entre os 25e os 34 anos, precisamente nos momentos de maior entrada na conjuga-lidade e na maternidade, 83% das mulheres são activas; entre os 35 e os44 anos, 80% estão inseridas no mercado de trabalho» (Wall e Guerreiro2005, 303). Ora, esta forte presença das mulheres no mercado de traba-lho, bem como a conservação da actividade profissional nas fases maiscríticas do ciclo da vida familiar, são factores que reforçam a interpelaçãode uma análise da relação entre casamento e desigualdade circunscritaao momento da escolha do cônjuge e, portanto, de uma utilização clás-sica do conceito de homogamia. No plano conceptual, se, tal comoaponta Singly, ao «ocultar as relações sociais entre os sexos, [a homoga-mia] envolve frequentemente a subestima dos interesses divergentes doscônjuges» (1987, 182),40 um conceito que, deste modo, esquece que osdiferentes interesses dos homens e das mulheres extravasam o momentoda formação do casal não se adequa a um cenário de crescente presençafeminina no mercado de trabalho, ou seja, um cenário onde tende pre-cisamente a elevar-se o número de mulheres que, entre outros «interes-ses», têm interesses profissionais – ou seja, interesses de realização pessoalpor via da actividade profissional – e, porventura, aspirações de carreira.É, neste sentido, pertinente colocar a hipótese de esta transformaçãoquestionar as próprias preferências convencionalmente atribuídas às mu-lheres na escolha do cônjuge, sobretudo, as preferências associadas à po-sição social do parceiro (Oppenheimer 1994).

De facto, a inclinação para a escolha homogâmica – que, aliás, se re-vela particularmente acentuada entre as mulheres com profissões muitoqualificadas (Bozon e Héran 1987; Vanderschelden 2006) – não permiteexplicar, nem tão-pouco entrever, as razões para que «um casal social-

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mente homogâmico no início de vida conjugal não o seja necessaria-mente no final» (Singly 1987, 182). Por outro lado, enquanto predominouo modelo do «ganha-pão masculino», a carreira profissional do homemnão colidiu com os «interesses» profissionais da mulher, na verdade ine-xistentes para a grande maioria (Crompton 1999). Já hoje, nas sociedadescaracterizadas pela forte inserção das mulheres no mercado de trabalho– e, designadamente, na sociedade portuguesa, onde predomina um mo-delo de «repartição das tarefas domésticas em que a mulher faz sobretudosozinha as tarefas rotineiras» (Wall e Guerreiro 2005, 357) –, o estudo dahomogamia circunscrito à escolha do cônjuge deixa na penumbra as im-plicações da negociação conjugal – seja a negociação dos interesses pro-fissionais de ambos os cônjuges, seja a negociação da repartição do traba-lho doméstico – sobre o perfil do casal no sentido de uma amplificação,cristalização ou atenuação das desigualdades de género subjacentes à pro-ximidade social relativa que, com frequência, caracteriza o início da vidaconjugal.

Está demonstrado que a escolaridade e as qualificações estão positi-vamente relacionadas com aspirações profissionais (Lyonette et al. 2007;Wall 2007; Wall e Guerreiro 2005; Torres et al. 2004; Guerreiro e Romão1995). Ora, se o compromisso com a vida profissional e a carreira im-plica transformações na relação da mulher com a família – na medidaem que as solicitações da actividade profissional colocam sistematica-mente à prova a sua disponibilidade para a vida familiar, pese emborase multipliquem, com os recursos económicos do agregado, as possibi-lidades de atenuar os efeitos dos encargos domésticos 41 –, devemos ques-tionar-nos em que medida as soluções encontradas na articulação tra-balho-família contribuem, com efeito, para esbater as desigualdades degénero – elas próprias condicionantes da negociação conjugal – que aprópria homogamia social encerra? Se em lugar de se traduzir num de-sinvestimento na vida familiar, a aposta feminina na esfera profissional,tal como observa J. Commaille, «questiona as relações internas no seioda família e as funções sociais tradicionalmente assumidas, sobretudoatravés da mulher, pela família» (1993, 9), será, na realidade, esse ques-tionamento levado à prática, refreando assim as desigualdades que asnormas de género perpetuam? Ou, pelo contrário, não se circunscreveráesse questionamento ao plano axiológico dos valores, sem reais impli-cações na acção?

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41 O recurso a empregadas domésticas é, obviamente, apanágio dos grupos sociopro-fissionais mais favorecidos (Wall e Guerreiro 2005).

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O esclarecimento destas interrogações constitui o principal desafioempírico do trabalho de investigação exposto neste livro, propondo-seum novo conceito destinado à análise da diversidade dos percursos decasamentos homogâmicos. Com a introdução do conceito de trajectóriaconjugal, pretende-se auscultar a construção da (des)igualdade no casal apartir de uma análise dinâmica dos processos que condicionam a arti -culação entre a vida profissional e a vida familiar. Não se reduzindo àobser vação das transformações a que a proximidade socioprofissionalentre os cônjuges está sujeita ao longo da vida familiar, as potencialidadesheurísticas do conceito de trajectória conjugal prendem-se, afinal, com apossibilidade de descortinar os factores que contribuem para moldar aconfiguração assumida por essa trajectória. A definição da trajectória con-jugal implica, efectivamente, a observação de um conjunto de dimensões,entre as quais se destacam as soluções encontradas para articular a vidaprofissional e a vida familiar. A perspectiva teórica subjacente à designa-ção de estratégias de articulação trabalho-família justifica, assim, um últimodebate.

A necessidade de uma abordagem dinâmica

Perante os referidos limites heurísticos do conceito de homogamia – sobretudo quando se trata de averiguar o contributo do casamento nadiferenciação sexual por via da própria dinâmica de funcionamento davida familiar –, é então necessário um outro conceito, capaz de explicar ahomogamia como processo. Propomos então um conceito dinâmico, quedesignamos trajectória conjugal, permitindo não apenas identificar as trans-formações da homogamia no decurso da vida conjugal e familiar, mas tam-bém dar conta dos factores que estão na origem dessas transformações.Por trajectória conjugal entendemos a configuração assumida pelo conjunto deprocessos que, actuando na articulação trabalho-família, contribuem para ampliarou atenuar as desigualdades entre os parceiros. Com o conceito de trajectóriaconjugal pretendemos, efectivamente, captar um conjunto de aspectos queconfiguram a vida em casal nas suas articulações e compromissos com asexigências do mundo do trabalho quando ambos os cônjuges exercemuma actividade profissional e, porventura, têm aspirações de carreira. Taisaspectos agrupam-se em quatro dimensões distintas que se intersectam naexplicação da configuração de cada trajectória conjugal.

A confrontação entre o actual perfil do casal – de acordo com a pro-gressão do homem e da mulher na carreira, a eventual discrepância anível do rendimento e do prestígio social associados à profissão exercida

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e, enfim, o grau de proximidade socioprofissional entre cônjuges – e aconfiguração homogâmica que este apresentava no momento da sua for-mação constitui uma primeira dimensão, permitindo uma caracterizaçãofundamental para dar conta das implicações das desigualdades de géneronas decisões dos protagonistas de uma vida conjugal com filhos. Seráfrequente os cônjuges trilharem percursos profissionais paralelos ou con-vergentes, conservando-se ou acentuado-se, respectivamente, a proximi-dade socioprofissional que caracterizava o casal no início da vida conju-gal? Ou, pelo contrário, não tenderá a anular-se essa proximidade nodecurso da vida conjugal, dando lugar a uma significativa discrepânciasocial entre os parceiros?

É inquestionável que, tomada isoladamente, esta dimensão nos con-duziria, porém, a uma observação puramente descritiva das eventuaistransformações dos posicionamentos socioprofissionais no decurso daconjugalidade. Deste modo, elegemos uma segunda dimensão, respeitantea um dos elementos fundamentais na constituição das diferenças entrehomens e mulheres: a divisão sexual do trabalho na família. Repartindo--se entre a divisão familiar do trabalho profissional e a divisão familiardo trabalho doméstico, esta dimensão da trajectória conjugal permite ca-racterizar uma aspecto estrutural da vida familiar e, designadamente,identificar os obstáculos que se erguem à disponibilidade de cada umdos cônjuges para o pleno exercício da actividade profissional e a con-cretização de eventuais aspirações de carreira. Uma questão impõe-se,assim, ao recordarmos que, ainda hoje, a maioria dos encargos domésti-cos – mesmo nos meios mais qualificados – recai mais vulgarmente sobreas mulheres. Apesar das acrescidas possibilidades de acesso aos serviçosexteriores – empregadas, amas, etc. – e do eventual apoio da rede familiar,não serão as mulheres nos casais de duplo emprego qualificado quem,perante as solicitações da actividade profissional, mais cedências faz, po-dendo mesmo conter as aspirações de carreira?

A dinâmica conjugal constitui uma terceira dimensão. Os estudos sobreo funcionamento da vida familiar (Kellerhals et al. 1982; Widmer et al.2003; Aboim 2005) têm demonstrado amplamente a associação entre adinâmica conjugal e os modos de divisão sexual do trabalho na família.Na definição das trajectórias conjugais, observar alguns aspectos da dinâ-mica familiar revela-se, portanto, fundamental, tanto mais que seria fa-lacioso dissociar da interdependência conjugal as diversas modalidadesde empenho e disponibilidade para a actividade profissional. Tal comoobser va C. Nicole-Drancourt, a «partir do momento em que se constróie, posteriormente, se alarga, a família envolve lógicas interactivas que

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tendem a anular a autonomia de evolução do percurso profissional e so-cial de cada um dos cônjuges e a torná-los dependentes um do outro»(1989, 62). Neste trabalho, assumir essa interdependência entre os côn-juges traduz-se, por um lado, numa particular ênfase atribuída aos planosda comunicação e apoio emocional/instrumental, do poder, da negocia-ção, dos modos de (re)distribuição dos recursos, da integração no exteriore do tempo destinado ao casal. Por outro lado, a interdependência con-jugal vai de par com tensões entre os interesses colectivos da família e aautonomia individual, tensões essas particularmente desafiantes nos ca-sais de duplo emprego qualificado. Consideramos, deste modo, que aanálise da dinâmica conjugal deve também contemplar uma abordagemdos focos de tensão conjugal mais recorrentes, procurando designadamenteaveriguar as implicações das normas de género prescritivas de um «podernormativo» (McNay 1999; Björnberg 2004) que favorece os homens, emparticular, no que respeita à disponibilidade para dar resposta às solicita-ções da vida profissional e aspirações de carreira.

O reconhecimento da interdependência conjugal não se traduz, ob-viamente, na subestima das pressões que também o mundo exterior à fa-mília – designadamente, o mundo do trabalho – exerce sobre as mulhe-res. Com efeito, uma carga horária de trabalho pouco compatível com adisponibilidade para a família e a expectativa de um elevado compro-misso com a profissão e a carreira são factores que, efectivamente, coli-dem com as solicitações e os encargos da vida familiar. A este propósito,Commaille recorda que «isolar os comportamentos das mulheres le-vando em linha de conta os seus crescentes compromissos no exteriorda família – e especialmente no trabalho – é admitir que os membros dafamília podem ter estratégias individuais, ser portadores de interesses con-traditórios, desenvolver relações de força», pretendendo, deste modo, su-blinhar que a «ideia de interesses divergentes introduz, de facto, a de es-tratégias entre actores sociais» (1993, 9-10). Obrigando a um «trabalho deconstrução pessoal de uma relação com a família e a actividade profis-sional» (Commaille 1993, 12), a aspiração em «realizar-se de outra forma»observável junto das mulheres que exercem uma profissão constitui umdos aspectos subjacentes à divergência de interesses nos casais de duploemprego. Com efeito, o vigor dessa aspiração – eventualmente conver-tida em aspirações de carreira – conduz as mulheres a elaborarem estra-tégias tendo em vista a articulação entre as exigências da actividade pro-fissional e os encargos da vida familiar.

As soluções que as mulheres encontram para articular a vida profis-sional e a vida familiar constituem, portanto, uma quarta dimensão do

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conceito de trajectória conjugal. Qual o significado do exercício de umaactividade profissional? Em que medida os obstáculos ao empenho naprofissão e à construção de uma carreira profissional condicionam a rea-lização pessoal? Face às suas expectativas de realização profissional, quelugar atribuem à vida familiar as mulheres com profissões exigentes emqualificações? Que limites impõem ao seu próprio empenho na profissãoem função de uma disponibilidade que consideram adequada às neces-sidades da família? Por outras palavras, que lugar simbólico ocupam estasmulheres na família? Em que medida estão, na prática, disponíveis paraa vida familiar? Reconhecem principalmente como sua a responsabili-dade pela execução do trabalho doméstico, ou procuram negociá-la como cônjuge no sentido de uma partilha igualitária? Podem, de resto, contar,com uma rede familiar de apoio ou delegar as tarefas domésticas e aguarda dos filhos em substitutos funcionais (ama, empregada, etc.)?

São interrogações cujas respostas contribuem para identificar as estra-tégias de articulação trabalho-família, diferenciadas de acordo com as atitu-des das mulheres face à vida familiar – designadamente, o lugar que con-ferem à maternidade e à vida familiar enquanto domínios prioritários derealização pessoal – e à vida profissional – desde o espaço que reservampara a profissão e a carreira à primazia atribuída, ou à concessão feita,aos projectos profissionais do homem na pessoa do cônjuge. No sentidode identificar as diferentes atitudes das mulheres face às solicitações davida familiar e da vida profissional, o conceito de estratégia de articulaçãotrabalho-família formulado inspira-se no de «gestão emprego/família» («em-ployment/family management») proposto por R. Crompton e F. Harris(1999). Sem se circunscrever à atitude da mulher face às exigências davida familiar e da sua profissão – ou seja, ao modo como ela procuracombinar em «complexos usos do tempo» os compromissos, as aspira-ções e as solicitações familiares e profissionais (Le Bihan-Youinou e Mar-tin 2008) –, o conceito de estratégia de articulação trabalho-família assume,porém, um carácter mais compósito, incorporando igualmente os lugaresatribuídos à sua actividade profissional – bem como à do homem – nafamília. De resto, na formulação deste conceito recorremos à noção dearticulação, em lugar de conciliação, pelas razões que passamos a expor.

Formulada originalmente enquanto objectivo a nível das políticas pú-blicas de família, a expressão «conciliação trabalho-família» tem vulgar-mente transitado para o universo da investigação sem a devida reflexãosobre os seus significados ideológicos. Este procedimento é, porém, alvoda crítica de diversos autores (Silvera et al. 2004), fundamentalmente por-que a expressão tende a esquecer os conflitos entre contextos, bem como

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entre indivíduos com interesses opostos. Alheado dos constrangimentosestruturais que, sobretudo, se alicerçam na assimetria sexual, o recurso ànoção de conciliação ancora, efectivamente, no pressuposto normativode que estão reservados às mulheres os desafios da compatibilização dosdois universos. Deste modo, a conciliação entre a vida profissional e a vidafamiliar refere-se implicitamente à «conciliação dos papéis femininos»(Junter-Loiseau 1999). Por outro lado, a noção de conciliação apraz a umaperspectiva de pendor subjectivista que, ao privilegiar a observação dasmotivações individuais, faz apelo a uma sociologia do actor, precisa-mente ao invés da noção de articulação, adequada a uma perspectiva es-trutural que privilegia as implicações das relações sociais de género nasescolhas dos agentes (Buffier-Morel 2007). De igual modo, também o re-curso às noções de reconciliação ou equilíbrio – nos estudos anglo-saxóni-cos, a expres são mais comum é work-life balance – não se adequa a umaabordagem analítica e objectiva. K. Wall, por exemplo, elege o «conceitomais neutro de articulação entre a vida profissional e a vida familiar», emlugar de recorrer a expressões fundamentadas no pressuposto de que «al-guma forma de conciliação ou equilíbrio entre as duas esferas é semprealcançada» (2007b, 26). Renunciando à controversa circulação de expres-sões do discurso político para o discurso científico – expressões essas queconstituem, de resto, «enunciados normativos» dissociados do seu usona vida quotidiana (Le Bihan-Youinou e Martin 2008) –, adoptamosassim a expressão «articulação trabalho-família» ou «articulação entre avida familiar e a vida profissional» sempre que nos referimos aos proces-sos envolvidos na elaboração das respostas, individuais ou colectivas, aosdesafios resultantes da conjugação de solicitações profissionais e familia-res. Presumindo que essas soluções têm como horizonte a compatibili-zação dos diversos encargos, o conceito de estratégias de articulação traba-lho-família foi, portanto, formulado enquanto ferramenta heurísticaadequada à auscultação da articulação a nível das negociações e dos com-promissos concretos estabelecidos entre os agentes na microescala da in-teracção conjugal e familiar.

Identificar as soluções que as mulheres encontram no sentido de umacompatibilização das exigências do exercício da actividade profissionalcom os encargos da vida familiar exige, necessariamente, a identificaçãodos factores que condicionam ou possibilitam a elaboração dessas solu-ções. Impõe-se, deste modo, levantar um conjunto de questões cujas res-postas obrigam ao devido enquadramento normativo das estratégias. Comefeito, a elaboração das estratégias não só se inscreve em modalidades in-tersubjectivas e, portanto, mais ou menos negociadas de divisão do tra-

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balho, como também está sujeita aos constrangimentos de carácter iminen-temente estrutural – uma origem social menos privilegiada ou as exigênciasde uma entidade empregadora menos sensível às solicitações familiares eaos encargos com a família... – ou, simplesmente, à adversidade – a doença,os encargos com familiares dependentes para além dos filhos ou mesmouma gravidez não planeada.

Renunciando ao subjectivismo

As estratégias elaboradas pelas mulheres na articulação entre a vida pro-fissional e a vida familiar não são sinónimo de projecções lógicas ou ra-cionais que se reflectiriam num conjunto de escolhas individuais tomadasisoladamente e, portanto, estranhas às heranças identitárias e às orienta-ções normativas. Com efeito, se a escolha do cônjuge não é alheia aoscondicionalismos estruturais que, sob a forma de interesses sexuados, con-dicionam preferências e afinidades, também as opções das mulheres notoca à articulação entre a vida profissional e a vida familiar não são indi-ferentes às normas de género emergentes sob a forma de expectativas so-ciais. E, do mesmo modo que a escolha do cônjuge não é indiferente àmorfologia social dos locais de encontro, também as soluções encontradaspelas mulheres na articulação entre vida profissional e vida familiar sãocondicionadas pela assimetria sexual que estrutura o mercado de trabalho.Portanto, rejeitemos de antemão qualquer perspectiva apologista de umadissociação entre a subjectividade das escolhas individuais e os factoressociais e culturais que as co-determinam.42 Tal como sublinha Crompton,essas escolhas são «afectadas (ou limitadas) pelo contexto em que são exer-cidas» (2006, 12).

Se o exercício da escolha não pode ser dissociado das condições deexistência, dos quadros normativos ou da própria negociação conjugal,tão-pouco as «identidades» se reduzem a uma escolha, ao contrário doque defende C. Hakim, para quem a «autoclassificação [da mulher] comoprovedor principal ou secundário [da família] é determinada por identi-dades escolhidas, e não por circunstâncias externas ou certos empregos»

42 Uma tal perspectiva subjectivista, encontramo-la, por exemplo, na tese de C. Hakim(2000). A investigadora reúne as mulheres em «agrupamentos de preferência» (preferencegroupings) de acordo com o tipo de «escolhas» que concretizam no sentido de solucionaros dilemas inerentes às exigências dessa articulação, que mais frequentemente recaem – como é sabido – sobre o elemento feminino do casal. Acusando o assumido pendorbiologicista de Hakim, Crompton (2006) não estranha que a «teoria da preferência» tenhasido bem acolhida entre os «círculos conservadores/neoliberais».

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(2000, 275).43 Considerar que a «identidade» resulta de uma escolha so-cialmente não condicionada é, com efeito, aderir à ilusão de que «oactor», como sublinha F. Dubet, «já nada tem a ver com o sistema»,quando, na verdade, essa ilusão é o produto da «heterogeneidade das ló-gicas da acção que hoje se cruzam na experiência social» (1994, 17). To-davia, embora a «distância subjectiva que os indivíduos mantêm em re-lação ao sistema» seja vivida como se «cada um fosse o autor da suaexperiência», Dubet recorda que as experiências sociais consistem em«combinações subjectivas de elementos objectivos», e, portanto, «os ele-mentos simples» que as compõem «não pertencem ao actor, são-lhedados, antecedem-no na existência ou são-lhe impostos através de umacultura» (1994, 135-136). As escolhas não podem assim ser avaliadas ape-nas na sua dimensão racional e instrumental, porquanto comportamtanto crenças axiológicas consubstanciadas em valores quanto crençascognitivas que se manifestam nas representações da realidade social e condicionam objectivamente a acção.

Por outro lado, as estratégias das mulheres tendo em vista a articulaçãoentre a vida profissional e a vida familiar estão longe de resultar de umanegociação conjugal baseada nos diferentes recursos dos indivíduos, pois,tal como observa Nicole-Drancourt, «o futuro dos homens e das mulhe-res que vivem em conjugalidade é tributário de racionalidades nem sem-pre definidas de acordo com os recursos» (1989, 60). A investigadora cri-tica a designada «teoria dos recursos», formulada por R. Blood e D. Wolfe(1960), por esta reduzir a interacção conjugal a um «sistema de trocas».De acordo com Nicole-Drancourt, as aspirações profissionais da mulhersão «um elemento potente da dinâmica familiar e parte constituinte damudança social nas famílias», porque a interacção conjugal é, sobretudo,um «sistema de influências» (1989, 75). Tal como demonstra um estudosobre famílias monoparentais, no que toca à criação de um equilíbrioentre a vida profissional e os cuidados prestados aos filhos, as mulheresnão actuam efectivamente enquanto indivíduos, ou seja, de acordo comuma lógica racional de «maximização individual» (Duncan et al. 2003).Na realidade, contrariando as teorias que subestimam o impacto dos con-textos sociais e normativos – desde a perspectiva interaccionista de Burgesset al. (1963) [1945]) à visão racionalista da teoria dos recursos de Blood eWolfe (1960), sem evidentemente deixar de passar pelo subjectivismo sub-jacente à teo ria da preferência formulada por Hakim (2000) –, as escolhasno que respeita à articulação entre a vida profissional e a vida familiar são

43 Itálico nosso.

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exercidas «em negociação com os outros no contexto de um quadromoral relativamente flexível» (Crompton 2006, 12).

Afastado de qualquer teoria que reduza as escolhas a opções racionaisou instrumentais, o conceito de estratégias de articulação trabalho-famíliaaproxima-se então da perspectiva bourdiana. «Ainda que pareçam estarobjectivamente ajustadas à situação», as estratégias dos actores, segundoBourdieu, não devem ser analisadas como o «produto de um objectivoconsciente, de finalidades explicitadas com base num conhecimento ade-quado das condições objectivas ou mecanicamente determinadas porcausas» (1987, 21). Sinónimo de «sentido prático», as estratégias repre-sentam simultaneamente um esforço de ruptura, no plano conceptual,com o objectivismo das perspectivas mais estruturalistas, e uma precau-ção contra o subjectivismo que, precisamente, encontramos numa teoriada preferência (Hakim 2000), alheia a uma abordagem das escolhas dasmulheres como «domínio prático da lógica ou da necessidade imanentede um jogo que se adquire pela experiência e que funciona aquém daconsciência e do discurso» (Bourdieu 1987, 77).

Afirmar que as escolhas das mulheres com profissão, vida conjugal efilhos em idade escolar são tomadas em função de razões que vão alémde uma legitimação racional segundo a comparação dos «recursos» nocasal, mas que ficam aquém das suas «preferências», significa assumir asubjectividade sem, contudo, subestimar os processos que as condicio-nam, ou seja, as condições objectivas da subjectividade. Escapa aos argumen-tos mais racionalistas da diferença de recursos como lógica exclusiva ouprimordial subjacente às desigualdades entre os sexos que os recursosapenas adquiram real importância «através das possibilidades e das opor-tunidades de os mobilizar em estratégias individuais» (Nicole-Drancourt1989, 78). Não obstante a transformação do estatuto das mulheres, du-rante muito tempo exclusivamente definido pelo seu lugar na família, averdade é que, em virtude de uma diferença sexual elementar prevale-cente a nível das expectativas sociais prescritas pelas normas de género – a saber, que as mulheres constituem o centro da economia familiar –,cabe-lhes a elas resolver os dilemas da articulação entre a actividade pro-fissional e a vida familiar.

Com efeito, a divisão familiar do trabalho penaliza ainda hoje forte-mente mesmo as mulheres mais escolarizadas (Wall e Guerreiro 2005),não surpreendendo que entre aquelas que nos concederam uma entre-vista – quase todas, sublinhe-se, com possibilidades de atenuar os encar-gos domésticos através do recurso a substitutos funcionais (empregada,ama ou outros prestadores de serviços domésticos) –, prevaleça o princí-

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pio normativo da mulher como elemento-chave da organização familiar.De igual modo, nas famílias onde a carreira profissional do homem nãoimplica uma disponibilidade exclusiva da mulher para a vida familiar – a designada «hipoconjugalidade», por oposição à «hiperconjugalidade» –é também sobre ela que invariavelmente recai a responsabilidade pelo«apoio logístico do sistema de regulação que assegura o equilíbrio [fami-liar]» (Nicole-Drancourt 1989, 76).44 Por sua vez, a conservação da mu-lher como elemento-chave da organização familiar nos casais de duploemprego reflecte o «desfasamento entre normas ideais e práticas» que osestudos observam (Torres et al. 2004), desfasamento esse justamentemenos pronunciado na divisão do trabalho profissional do que na divi-são do trabalho doméstico (Wall e Guerreiro 2005). Para um tal hiato con-tribuirá, no plano cultural, uma «ideologia dominante» que corrobora elegitima desempenhos diferenciados, associados aos estereótipos femininoe masculino (Amâncio 1994), ideologia essa consubstanciada na expecta-tiva de que, «mesmo trabalhando no exterior, [as mulheres] se ocupemfundamentalmente da casa e dos cuidados com os filhos, enquanto seconsidera que eles [os homens] obtenham melhores salários, para osmesmo níveis de instrução» (Torres et al. 2004, 184-185).

O desfasamento entre um discurso predominantemente favorável àparticipação feminina no mercado de trabalho e a persistência, na prática,de uma divisão familiar do trabalho que penaliza as mulheres é, contudo,revelador de dois aspectos fundamentais. Por um lado, esse desfasamentoserve de demonstração da anterioridade do «sentido prático» ou das «es-tratégias» dos actores face à consciência, ao discurso e aos valores, queassim podem ser atraiçoados – tal como, muitas vezes, são – pelos com-portamentos (Bourdieu 1987). Por outro lado, revela que a «experiênciasocial», enquanto «combinação subjectiva, realizada pelos indivíduos, dediversos tipos de acção» está longe de ser o produto da exclusiva autoriado actor, ou seja, o resultado de uma escolha subjectiva livre de cons-trangimentos objectivos (Dubet 1994).

44 Itálico nosso. Ao contrário da «hiperconjugalidade», que Nicole-Drancourt definecomo «hegemonia das estratégias masculinas às quais é consagrada toda a organizaçãoda família [...], a hipoconjugalidade caracteriza-se pela «lógica que envolve o desenvol-vimento das estratégias femininas: lógica de compromisso com a carreira dos homens; ló-gica de difusão da função maternal que mantém as mulheres no centro de um sistemapelo qual continuam, ainda que já não totalmente, responsáveis» (1989, 75).

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As mulheres como agentes e a coerência necessária

Ora, as soluções que uma mulher casada, com filhos em idade escolare que exerce uma profissão qualificada com possibilidades de carreira en-contra para articular a actividade profissional e a vida familiar são carac-terísticas de uma situação claramente ilustrativa da «heterogeneidade dosprincípios da acção», na medida em que essas soluções revelam não ape-nas a própria «heterogeneidade do sistema», mas também a «pluralidadedos mecanismos de ‘determinação’ das lógicas da acção» (Dubet 1994).Com este postulado pretendemos sublinhar que a análise das respostasdas mulheres aos dilemas da articulação trabalho-família deve levar emlinha de conta o contexto de transformação identitária no sentido de«um estatuto da mulher constituído pela sua existência enquanto indiví-duo, ou sujeito social susceptível de compromissos – como o compro-misso profissional – fora da família» (Commaille 1993, 18). Por outraspalavras, a experiência de autonomia das mulheres – bem como a con-cepção singular e distintiva de si própria como indivíduo, e não só como«membro alienado de uma instituição familiar» (Commaille 1993) – pro-porcionada pelo exercício de uma profissão e eventuais possibilidadesde carreira projecta-as como agentes, e não apenas como actores,45 na plu-ralidade de experiências sociais que, dela, exigirão «coerência» e «capaci-dade de acção própria» (Dubet 1994).

As estratégias de articulação trabalho-família são, neste sentido, definidascomo o resultado da procura da coerência identitária num contexto emque, para a generalidade das mulheres, a instituição familiar deixou deser a única fonte de definição de papéis, valores, normas e regras. Con-vém, todavia, sublinhar duas lógicas subjacentes a essa procura de umacoerência identitária. Por um lado, as identidades assentam em processosde «identificação» e «identização» – ou fusão e diferenciação, respectiva-mente – face a um colectivo de pertença, aos comportamentos de outrossignificativos presentes na formação do indivíduo, às normas ou aos mo-delos que eles representam, bem como às representações sociais domi-nantes (Tap 1986; Pinto 1991). Por outro lado, as estratégias de articulaçãotrabalho-família não deixam de ser o resultado de dinâmicas intersubjec-

45 Assumimos, de acordo com Pires, a «distinção entre as categorias de agente e deactor, frequentemente fluida na maioria dos textos sociológicos, incluindo nas obras dereferência», considerando «a unidade de análise ‘agente’ como o indivíduo socialmenteconstituído, na totalidade das suas determinações, enquanto a unidade ‘actor’ designaria[...] o agente actuante no desempenho de um papel específico» (2007, 38).

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tivas que, sobretudo processadas no quadro da vida familiar e conjugal,têm implicações, de acordo com N. Heinich (1998 [1996]), sobre o «tra-balho de enquadramento dos momentos de si», ou seja, sobre a ideia demulher que o sujeito faz de si (autopercepção), o seu esforço na projecçãodessa ideia para os outros (representação) e, finalmente, a imagem e olugar que estes lhe atribuem (designação).46 A título de exemplo, um déficeda parte do cônjuge no reconhecimento do sentido atribuído pela mu-lher ao seu próprio trabalho – designadamente expresso no sentimentode uma ausência de apoio e incentivo – poderá constituir um entravedeterminante do enquadramento identitário.

Resta sublinhar as prescrições das normas de género no que respeitaà exigência de uma coerência identitária na articulação dos diferentes pa-péis profissionais e familiares, coerência essa exigida às mulheres atravésde uma expectativa social que, muitas vezes presente nas políticas e prá-ticas das entidades empregadoras dirigidas às mulheres e aos homens(Guerreiro e Pereira 2007; Dionízio e Schouten 2007),47 condiciona assima aplicabilidade dos ideais de partilha familiar do trabalho e da concepçãosubjectiva da mulher como indivíduo. A pressão no sentido dessa coe-

46 Heinich sustenta que, na rede de interacções que colocam o sujeito «em relaçãocom outros sujeitos, com grupos, com instituições, com corpos, com objectos, com pa-lavras», é possível distinguir três ‘momentos’ fundamentais: a imagem que cada um desi tem (autopercepção), a que atribui aos outros (representação) e a que é reflectida pelosoutros (designação)». E esclarece que «no estado normal, ou seja, não problemático oumesmo não perceptível, a identidade é vivida na coincidência destes três momentos, in-sinuando-se a crise logo que há desvio, divergência, se não mesmo contradição entreeles: e isto tanto mais quanto investido for o parâmetro relevante para a imagem de si(sexo, idade, profissão, nacionalidade, etc.), podendo então o sujeito viver essa incoerên-cia como uma crise de identidade» (1998, 368).

47 Baseando-se nos resultados de um estudo realizado em diversas organizações em-presariais, M. D. Guerreiro e I. Pereira observaram que «in general, the principles of gen-der equality and a work/private life balance were not found in enterprise statements andemployers did not have explicit arrangements for such principles» (2007, 197). Já numtrabalho de investigação sobre o impacto das políticas sociais na articulação entre a vidafamiliar e a actividade profissional, S. Dionízio e M. J. Schouten constataram que «as en-tidades empregadoras (públicas e privadas) têm ficado significativamente aquém de umpotencial papel-chave como catalisadores de estratégias e práticas que facilitem o equilí-brio entre a vida profissional e familiar», pese embora «a margem de progressão nestamatéria [seja] elevada, sobretudo no desenvolvimento de estratégias coerentes, que com-binem intervenções de natureza diversa [...] e que respondam de forma agregada e arti-culada às especificidades de cada realidade» (2007, 97). Por outro lado, revelaram «umasupremacia quase generalizada da utilização feminina de medidas, o que sustenta a ideiade que o papel social tradicionalmente associado às mulheres e as responsabilidades quo-tidianas que lhes são atribuídas poderá conduzi-las a usufruir de medidas que melhorlhes permitam conciliar a vida familiar e a actividade profissional» (2007, 96).

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rência é tanto mais palpável quanto maior for a possibilidade de a assun-ção do fracasso a nível de um dos parâmetros identitários – desempenhoprofissional não reconhecido, desamor, deterioração da relação conjugal,sentimento de um acompanhamento deficitário na educação dos filhos,etc. – implicar uma crise de identidade.

Breve caracterização das mulheres entrevistadas

Nos próximos capítulos, procuramos dar conta dos processos que,inerentes ao próprio funcionamento da vida conjugal e familiar, contri-buem ora para reforçar ou reconstruir a dupla reprodução de classe e degénero que uma escolha do cônjuge homogâmica desde logo assegura,ora para esbater as assimetrias que advêm dessa dupla reprodução. Essaanálise em profundidade não prescinde, contudo, de uma breve caracte-rização das mulheres cujas experiências, relatadas em situação de entre-vista, constituíram o material empírico deste trabalho de investigação. É dessa breve caracterização que se ocupa o ponto final deste capítulo.

Escolha do cônjuge e proximidade social

A opção de entrevistar mulheres que exercem profissões muito qua-lificadas prende-se com a maior probabilidade de estas se encontraremem situações mais permeáveis – por vias diversas – ao fenómeno da mo-bilidade. As mulheres com este perfil educacional são, por outro lado,mais susceptíveis a pressões relacionadas com expectativas de carreira – suas e/ou da sua entidade empregadora –, mas é também verdade que,em Portugal, são justamente as mulheres mais escolarizadas, casadas ecom filhos em idade escolar as que menos interrompem o exercício deuma actividade profissional ao longo das diversas etapas do ciclo da vidafamiliar (Wall e Guerreiro 2005).

No seu conjunto, o perfil social das mulheres entrevistadas não deixade reflectir as transformações da sociedade portuguesa nas últimas déca-das. Quase metade das entrevistadas – nascidas, na sua grande maioria,nas décadas de 1950 e de 1960 – é filha de mulheres que não exerciamuma actividade remunerada, reduzido-se a cinco as que são filhas de mu-lheres que tiveram acesso a uma formação superior. Seja qual for o seupercurso – de mobilidade ou reprodução – em relação à família de ori-gem, a maioria das entrevistadas casou com um homem oriundo domesmo meio ou de um meio social próximo do dos seus pais. É curioso

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observar a prevalência dos casamentos hipogâmicos – uniões em que a mu-lher tem uma origem social claramente mais favorecida que o homem –sobre as uniões conjugais hipergâmicas. Se ambos os tipos de uniões nãorepresentam propriamente uma minoria residual, só quatro situações re-gistam, na verdade, uma forte discrepância entre as origens sociais dasentrevistadas e as dos cônjuges. Por sua vez, a proximidade social no casalé particularmente pronunciada no que respeita às características socio-profissionais dos cônjuges. Posicionadas maioritariamente no grupo dasprofissões intelectuais e científicas, nem todas as entrevistadas casaramcom homens pertencentes ao este grupo socioprofissional. Com a excep -ção de um único caso de hipergamia, a amostra reparte-se entre os casa-mentos dentro do mesmo grupo socioprofissional (homogamia socio-profissional restrita), por um lado, e os casamentos entre indivíduos queocupavam posições vizinhas (homogamia socioprofissional alargada),por outro. Ora, esta prevalência da proximidade socioprofissional não é,afinal, surpreendente, se recordarmos que, grosso modo, as mulheres en-trevistadas já ocupavam uma posição muito qualificada na estrutura so-cioprofissional, posição essa onde, precisamente, se observa a tendênciahomogâmica mais acentuada (Rosa 2005).

A formação do casal e da família

De igual modo, os perfis biográficos e familiares das mulheres entre-vistadas – designadamente, a duração do namoro, as formas de entradana vida conjugal e o nascimento do primeiro filho – reflectem alguns dospadrões observados nos meios mais escolarizados (Aboim 2005; Cunha2005). Com efeito, a maior parte prolongou o namoro por três ou maisanos, constituindo a reduzida adesão à união de facto ou à coabitaçãoanterior ao casamento um traço transversal. Podemos, ainda assim, dife -renciar duas atitudes face à formalização do vínculo conjugal. Por umlado, encontramos as mulheres que associam a formalização do vínculosobretudo às conveniências do contexto social e familiar, e não tanto aum desejo pessoal: Manuela recorda que «eram outros tempos», mas quese «surgisse alguém para eu ter uma grande paixão, se calhar também iade cabeça!»; para Elsa «ir viver juntos era complicado», não apenas «porcausa da sociedade», mas também pelo controlo exercido pela família, de-signadamente pelo irmão mais velho, «muito conservador» e «penaliza-dor»; já Raquel confessa que «a família não permitia isso»; para Filipa, porsua vez, «a questão não se colocava», ainda que nem pais nem sogros «te-nham imposto o casamento»; oriunda de uma «família muito tradicional»,

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Júlia sublinha que a coabitação antes do casamento era «impensável»;Anabela recorda que teria sido expulsa de casa se «fizesse isso» [coabitarsem casar]; e, enfim, Vanda «não proporia jamais casar», tendo o casa-mento sido vontade do cônjuge, dos pais e dos sogros.

Por outro lado, deparamos com as entrevistadas que reclamam parasi a intenção de iniciar a vida a dois exclusivamente pela via da formali-zação do vínculo: para Genoveva «foi muito claro» que «queria casar,não queria juntar trapinhos»; Irene não viveu junto com Horácio, porquenão tinha «vontade», para além de o casamento sem precedente coabi-tação ser aquilo que «fazia sentido»; Felícia não tem «nenhum precon-ceito», mas «viver juntos», para ela, significava casar com Fernando; jáIvone «era um pouco nessa linha», que era a «linha» dos seus pais, paraquem o início da vida conjugal da filha sem a formalização do vínculoseria «o maior desgosto», apesar de a experiência de coabitação prévia aocasamento fazer «mais sentido» para Henrique; e finalmente Leonor, que«era muito convencional», ao ponto de se orgulhar ter preservado a vir-gindade até ao casamento – «queria dar esse presente a mim».

A maior parte das entrevistadas que prolongaram o namoro por trêsou mais anos tinha, no máximo, vinte anos de idade quando começoua namorar o cônjuge. Os namoros mais prolongados tiveram inícioquando as entrevistadas ainda frequentavam o ensino secundário. Filipa,por exemplo, começou a namorar Filipe na adolescência, tinha então de-zassete anos de idade. Casou com vinte e quatro anos de idade, mas onamoro ficou efectivamente reduzido a cinco anos, pois a relação foi in-terrompida por dois anos no final do primeiro. A entrevistada invoca asdiversas actividades em que estava envolvida – para além dos estudos,da sua personalidade «independente» e da idade («éramos muito miú-dos») – para justificar o interregno do namoro.

Ao contrário dos namoros mais prolongados, os namoros com, nomáximo, dois anos de duração correspondem a inícios mais tardios. Dasseis entrevistadas cujo namoro durou entre um e dois anos, apenas Olíviatinha uma idade inferior a vinte anos, e nenhuma das cinco entrevistadasque namoraram menos de um ano tinha uma idade inferior a vinte e trêsanos. Estes namoros, por outro lado, precedem formas de entrada na vidaconjugal alternativas ao casamento, se bem que apenas no caso de Sara acoabitação tenha substituído deliberada e definitivamente a formalizaçãodo laço conjugal. Esta é, aliás, a única entrevistada a confessar ter receadoque a partilha da vida quotidiana com outra pessoa pudesse condicionar--lhe a autonomia. Se ao fim de um ano de namoro cedeu na sua relutânciaem iniciar uma vida a dois – «eu prezo muito a minha liberdade» –, nem

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por isso deixou de temer que esta viesse introduzir «limitações e mudançasde ritmo de trabalho». A situação conjugal de Sara – coabitação sem ca-samento – é, sem dúvida, excepcional no conjunto das entrevistadas. Sarae Sérgio encontram na lógica da coabitação uma forma alternativa à uniãoconjugal enquanto contrato jurídico. Filha de «pais supercatólicos», Saraoscila assim entre o receio pelo condicionamento da disponibilidade paraa vida profissional e a rejeição da laicização da figura do casamento. O casamento, tal como refere, não lhe «diz coisa nenhuma», mas a con-sumar-se «tem de ser um casamento religioso».

Por outro lado, as escassas situações de coabitação são apanágio dasentrevistadas que prolongaram menos o namoro. Apenas quatro coabi-taram com o cônjuge antes de este ser formalmente seu marido. Nestasquatro situações, a coabitação mais prolongada de Olívia com Tiago dis-tingue-se das situações, mais fugazes, de Joana, Adelaide e Helena, cor-respondendo a primeira a uma forma confessada de «experimentação»,e as demais à lógica de «pré-casamento» (Aboim 2005). Ainda assim,quase todas estas entrevistadas sublinham que a coabitação resultou danecessidade de experimentar uma vida a dois sem o compromisso ine-rente à formalização do vínculo, sendo a coabitação de Helena, que secasou dois meses após o nascimento da primeira filha, tão fugaz quantoo período «entre a notícia da gravidez e o casamento». Grosso modo, es-tamos perante situações transitórias e, neste sentido, em nada semelhan-tes à opção definitiva de Sara e Sérgio. Contudo, quer Adelaide, querJoana viveram a experiência da coabitação conjugal. Com vinte e novee vinte e oito anos de idade, respectivamente, ambas tinham já autono-mia financeira e logística quando decidiram partilhar o mesmo tecto comos seus parceiros a título de uma curta experiência prévia ao casamento.Joana, inclusivamente, contou com o apoio do pai, que «achou positivo»,embora a mãe se tenha limitado a «aceitar» a decisão da filha.

Já Olívia viveu com Tiago quatro anos antes de o casal ter formalizadoo laço. Namorava havia dois anos quando, com vinte anos de idade, apli-cou parte de uma herança na aquisição de um apartamento que lhe per-mitiu, pela primeira vez, partilhar uma vida a dois com o cônjuge. O inícioda coabitação revelou-se, todavia, difícil, envolvendo «uma grande crisede adaptação» que, de acordo com a entrevistada, «tinha a ver com hábitosquotidianos, mas muito a ver com o dinheiro». Olívia era estudante e nãoexercia profissão, mas podia contar com a «mesada» da mãe. Embora su-ficiente para pagar a faculdade, esse montante era «baixo», razão invocadapara a entrevistada reclamar a contribuição financeira de Tiago. Apesar do desacordo no que respeita ao contributo financeiro de cada um, deci-

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diram casar-se ao fim de quatro anos juntos, ainda Olívia não tinha «umemprego fixo». Perante a procura frustrada de uma fonte de rendimentoestável pela via da profissão, procurou então realizar-se através da mater-nidade, tendo sido essa a razão que a levou ao casamento com Tiago.

O início da vida conjugal e o primeiro filho

Entre as mulheres portuguesas casadas e com filhos em idade escolar,estão em clara minoria aquelas que iniciaram a vida conjugal com umaidade superior a vinte e quatro anos. É conhecida a razão para o cresci-mento da modesta proporção – menos de um quinto no conjunto dasmães portuguesas – entre as mais escolarizadas: o prolongamento dos es-tudos conduz muitas vezes ao adiamento de uma vida a dois (Aboim2005). De igual modo, a maioria das mulheres – muito escolarizadas –que entrevistámos iniciou a vida conjugal com vinte e cinco anos de idadeou mais, reduzindo-se a quatro as entrevistadas que o fizeram com idadesinferiores a vinte e três anos. Destas quatro entrevistadas, duas tinham jáconcluída a licenciatura. Quanto às restantes, uma delas detinha, atravésdos pais, as condições materiais e logísticas para coabitar com o actualcônjuge durante a licenciatura, enquanto a outra deve à rede familiar deapoio a prossecução dos estudos após o nascimento do primeiro filho,fruto de uma gravidez que a surpreendeu aos dezassete anos de idade.

Quinze das vinte e sete mulheres entrevistadas tinham dois filhos como actual cônjuge no momento em que concederam a entrevista. Apenasuma entrevistada tinha quatro filhos à data da realização da entrevista. Asdemais repartem-se entre as descendências de filho único e de três filhos.Esta distribuição das diferentes descendências não é surpreendente, se ti-vermos novamente em linha de conta os resultados do inquérito FPC de1999 a mulheres casadas e com filhos em idade escolar: se a maioria dasinquiridas (54,2%) tinha uma descendência de dois filhos à data da apli-cação do inquérito, essa proporção era significativamente superior (63,4%)entre as que possuíam uma licenciatura ou uma pós-gradução, situando--se nos dois filhos a descendência média entre as mais escolarizadas(Cunha 2005). Pela mesma razão, também não é surpreendente que me-tade das mulheres que entrevistámos tenha tido o primeiro filho entre osvinte e cinco e os vinte e nove anos de idade. Já no que toca às mulheresque tiveram o primeiro filho mais cedo, o conjunto de entrevistadas des-toa da amostra representativa para o país: mais de um quinto das mulheresmuito escolarizadas que responderam ao inquérito FPC de 1999 teve oprimeiro filho com, no máximo, vinte e quatro anos de idade, enquanto

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essa situação é apenas identificada em três entrevistadas: Elsa e Teresaforam mães pela primeira vez aos vinte e quatro de idade, e o primeirofilho de Amália foi fruto de uma gravidez adolescente não planeada.

Em suma, no que toca ao início da vida conjugal e à chegada do pri-meiro filho, as mulheres entrevistadas revelam genericamente comporta-mentos aproximados aos que se observam junto das mulheres portuguesasmuito escolarizadas, casadas e com filhos em idade escolar, designada-mente no que respeita ao adiamento da formação do casal e da famíliaem virtude de uma forte aposta em diplomas escolares tendo em vista odesempe nho de uma profissão muito exigente em recursos educacionais.

Para uma análise tipológica

A propensão para a união conjugal entre indivíduos provenientes domesmo meio social e com posições socioprofissionais próximas ou idên-ticas demonstra, grosso modo, o papel do casamento na diferenciação so-cial. No momento da escolha do cônjuge, os efeitos de atracção alimen-tados pela proximidade socioprofissional relativa, as afinidades resultantesda partilha de disposições incorporadas, bem como a correspondênciaculturalmente construída entre os diferentes interesses dos homens e dasmulheres contribuem, no entanto, para ofuscar a diferença sexual obser-vada na distribuição dos sexos no mercado de trabalho. Ora, essa desi-gualdade estrutural entre homens e mulheres no que à inserção no mer-cado de trabalho diz respeito emerge, mais ou menos explicitamente, nasdecisões respeitantes à divisão familiar do trabalho, podendo, de acordocom os contornos da própria negociação conjugal, persistir, amplificar-seou, pelo contrário, esbater-se ao longo da vida em casal com filhos. O principal desafio deste trabalho de investigação consistia, especifica-mente, em averiguar o impacto da vida conjugal e familiar na actividadee nos projectos profissionais de mulheres que protelaram a formação docasal e da família, apostando em diplomas escolares com vista ao desem-penho de uma profissão exigente em recursos educacionais. Antes, porém,de analisarmos detalhadamente os processos que co-determinam a dis-crepância socioprofissional ou, pelo contrário, a atenuação da desigual-dade no casal, damos a conhecer sumariamente as modalidades típicasde trajectória conjugal que este estudo permitiu identificar.48

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48 As modalidades típicas de trajectória conjugal encontram-se expostas no quadro sín-tese apresentado no final do capítulo.

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A avaliação das situações socioprofissionais dos cônjuges no inícioda vida conjugal e no momento de realização das entrevistas aplicadasao elemento feminino do casal, por um lado, e a análise de conteúdo,por outro, proporcionaram a identificação de quatro modalidades típicasde trajectória conjugal com lógicas específicas no que respeita à relaçãoentre vida conjugal e desigualdade. Uma primeira modalidade típica re-fere-se à trajectória de hipergamia prioritária, que se distingue seja pela ele-vação socioprofissional mais pronunciada junto do homem numa uniãoconjugal inicialmente homogâmica, seja pela prioridade que a mulheratribui à família e à carreira do cônjuge. A uma segunda modalidade tí-pica designamos trajectória de hipergamia progressiva. Os casais com estatrajectória conjugal caracterizam-se pela crescente elevação do capital sim-bólico (estatuto profissional) e/ou económico (rendimento auferido) dohomem e pela concessão que a mulher faz à carreira profissional do côn-juge. Não se trata aqui do reconhecimento da prioridade à família e àcarreira masculina. São a procura de um equilíbrio entre as aspirações decarreira e a disponibilidade para a vida família que, entre estas mulheres,estão na origem de uma concessão à precedência da profissão do homem.Uma terceira modalidade típica diz respeito à trajectória homogâmica, queenvolve ora uma lógica de dupla ascensão social no casal, ora uma lógicade perpetuação da proximidade inicial entre as situações socioprofissio-nais dos cônjuges. Nalguns casais com este tipo de trajectória, as mulheresconferem a mesma, quando não maior, importância à vida profissionalface à vida familiar. Em qualquer dos casos, procura-se na negociaçãoconjugal que as aspirações de carreira de ambos os cônjuges não se atro-pelem. Uma última modalidade típica refere-se à trajectória hipogâmica.Aqui, a discrepância socioprofissional instala-se gradualmente no casalem virtude de uma maior aposta profissional da mulher, que ora atribuiprioridade à sua carreira, ora detém simplesmente mais recursos educa-cionais que o homem e, portanto, maior possibilidade de acesso a umacarreira qualificada.

Trajectórias hipergâmicas: a hipergamia prioritária e a hipergamia progressiva

O crescimento mais pronunciado do capital simbólico – através daelevação do estatuto – e do capital económico associado ao percurso pro-fissional do homem constitui, sem dúvida alguma, a dinâmica de cons-trução da desigualdade no casal mais observada na análise das entrevistasem profundidade, caracterizando as situações de dezasseis entrevistadas,

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incluindo-se aqui as trajectórias conjugais definidas pela hipergamia priori-tária e pela hipergamia progressiva. Nenhuma entrevistada com uma tra-jectória de hipergamia prioritária demonstra uma progressão acentuada nacarreira profissional equivalente – nem tão-pouco superior – à do côn-juge. Esta constatação é tanto mais significativa quanto, em grande partedestes casais, os cônjuges ocupavam a mesma posição socioprofissionalquando iniciaram a vida a dois. Por outras palavras, a discrepância deapostas na carreira entre os membros do casal, bem como o crescentedesequilíbrio a nível dos rendimentos económicos a favor do homememergiram no decurso da vida conjugal com filhos. Assim, Leonor, en-genheira civil, já detinha o estatuto de técnica superior da função públicano início da vida conjugal, enquanto Eduardo, com as mesmas qualifi-cações e estatuto profissional que ela no início da vida conjugal, trabalhahoje por conta própria como consultor. Quanto a Amália e António,eram ainda estudantes de Medicina quando iniciaram a vida conjugal.Hoje ela é médica num hospital público e ele cirurgião com consultóriopróprio. Por sua vez, Ivone, geóloga, era professora do ensino secundárioquando casou com Henrique. Actualmente, é técnica superior da funçãopública, enquanto ele acumula a profissão de advogado com a de do-cente do ensino superior, que já exercia no início da vida conjugal. Nocaso dos médicos Anabela e Álvaro, ambos faziam a especialização noinício da vida conjugal. Hoje ele trabalha no seu próprio consultório,enquanto ela mantém a sua actividade num hospital público. Enfim,Manuela, licenciada em Geologia, foi sempre docente do ensino secun-dário, enquanto Manuel, que fazia a especialização quando se casaram,é hoje médico de clínica geral com consultório próprio.

Quanto às restantes situações que se enquadram na hipergamia priori-tária, a proximidade socioprofissional entre os cônjuges no momento daformação do casal não era tão acentuada. Entre as mulheres entrevistadasque representam estas situações, apenas Joana, médica num hospital pú-blico, casou com um homem – técnico de vendas – que ocupava umaposição socioprofissional menos qualificada no momento da formaçãodo casal. Entretanto licenciado em Direito, João preparava-se à data daentrevista para o exame na Ordem dos Advogados. Com consultóriopróprio, exercia então advocacia, enquanto Joana permanecia com amesma posição profissional que ocupava no início da vida conjugal. JáFilipa, Irene e Felícia casaram com homens com uma posição financei-ramente mais confortável que a sua: Filipa terminava o internato no hos-pital público onde actualmente é médica, enquanto Filipe fazia já con-sultoria por conta própria em gestão; Irene, psicóloga, fazia o estágio no

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hospital público onde viria a enquadrar-se profissionalmente, enquantoHorácio, engenheiro civil, já ocupava um cargo de direcção numa em-presa de construção; e Felícia, gestora de projecto, conserva a mesma po-sição – técnica superior – na função pública, enquanto Fernando, comum cargo de directoria na empresa do pai quando se casaram, dirige hojea sua própria empresa.

Por sua vez, as trajectórias conjugais que se enquadram na designadahipergamia progressiva definem-se por uma maior aposta da mulher nasua carreira profissional, embora o casamento também aqui se caracte-rize pela maior elevação do estatuto socioprofissional e/ou dos rendi-mentos auferidos pelo homem. A homogamia socioprofissional restrita é,por outro lado, a situação excepcional, apenas representada por Elsa,que, tal como o marido, fazia a especialização no mesmo ramo da Me-dicina no momento da formação do casal. A maior parte das entrevis-tadas enquadrada neste tipo de trajectória conjugal casou com um homemque ocupava já uma posição socioprofissional mais confortável que asua: Vanda, consultora jurídica, então técnica superior na função públicano início da vida conjugal, é actualmente chefe de divisão, enquantoVitor, economista, era já director de empresa; de igual modo, Júlia, eco-nomista, então técnica superior na função pública, é hoje chefe de divi-são, enquanto José, engenheiro civil, director de serviços numa empresado Estado, tinha no início da vida conjugal o actual estatuto da entre-vistada; Teresa, docente do ensino superior, concluía ainda a licenciaturaquando casou com Tomás, engenheiro e já então director de serviçosda Administração Pública; e, de igual modo, Laura, docente do ensinosuperior, não tinha terminado a licenciatura quando casou com Luís,engenheiro civil assalariado na empresa onde actualmente ocupa umcargo de directoria. De resto, a posição e o percurso profissional dohomem em relação à mulher podem traduzir-se, exclusivamente, emrendimentos mais avultados e prosperidade económica, dando origema contradições no tipo de recursos em que os dois elementos do casalestão apostados. Aqui se enquadram as situações de Raquel e Olívia,docentes do ensino superior, respectivamente casadas com Rogério, di-rector e sócio de uma pequena empresa, e Tiago, técnico de vendas. Éóbvia a ambivalência da elevação social de ambos os parceiros, elevaçãoessa que, no plano dos rendimentos, favorece o homem. Contrastandocom uma progressão feminina na carreira que é devida ao incessante in-vestimento em diplomas escolares, o percurso profissional do homem– menos escolarizado que a mulher – é, com efeito, essencialmente mar-cado pela prosperidade económica.

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Trajectórias homogâmicas

Algumas entrevistadas são, porém, representantes de casais onde aproximidade socioprofissional entre os cônjuges foi preservada, quandonão reforçada, desde o início da vida a dois até ao momento da entre-vista. Estamos, nestes casos, sobretudo perante uniões conjugais que re-sultaram de uma escolha homogâmica. Apenas nalguns casais a mulherocupa uma posição ligeiramente superior à do homem. No decurso davida conjugal, a homogamia ora se perpetua, ora se acentua, se bem quepredomine nestes casais uma lógica de aproximação ou convergência.Com efeito, na maioria dos casos analisados, a inicial proximidade so-cioprofissional entre os cônjuges acentua-se ao longo da vida conjugal,observando-se aqui quer uma aproximação feminina, quer uma aproxi-mação masculina.

No primeiro tipo de aproximação encontramos a seguintes situações:a de Sara, cujo percurso profissional ascendente de assistente social li-cenciada a técnica de relações públicas com um mestrado a coloca ladoa lado com o estatuto profissional de Sérgio, jornalista editor; e a de Ade-laide, que trocou a profissão de enfermeira pela de arquitecta, enquantoAlexandre ainda hoje exerce docência no ensino secundário. No segundotipo de aproximação deparamos com as seguintes situações: Susana, hojeengenheira civil e directora comercial numa empresa, era docente do en-sino secundário quando casou com Paulo, então caixa de banco e ac-tualmente gerente de balcão; Filomena, caixa de banco tal como o ma-rido – hoje gerente de balcão – quando se casaram, é docente do ensinosuperior; e, enfim, Mafalda já advogada com escritório próprio quandocasou com Miguel, cuja ascensão na carreira docente do ensino superioré sobretudo fruto de um incessante investimento em qualificações.

Apenas dois casais consituem excepções. Com profissões bastante exi-gentes em qualificações – investigadores e docentes do ensino superior –Maria e Mário têm percursos de ascensão paralelos, representando assima perpetuação da proximidade socioprofissional no decurso da vida con-jugal pela via da dupla ascensão na carreira. Já o caso de Marta e Bernardo,contabilista assalariado, revela a conservação da proximidade socioprofis-sional, apesar de à progressão desta mulher na carreira de docente do en-sino secundário acrescer um forte empenhamento em projectos pedagó-gicos extracurriculares.

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Trajectórias hipogâmicas

No que toca ao último tipo de trajectória conjugal identificado, ohomem não só aposta menos na carreira profissional, como o seu per-curso não se pauta por aspirações de carreira ou expectativas de prospe-ridade económica. Já a mulher se destaca por uma progressão na carreira,fruto do esforço, mais ou menos incessante, a que a obtenção de diplo-mas escolares obriga. Assim, o marido de Ana foi sempre docente do en-sino secundário, enquanto ela, também docente do ensino secundárioquando se conheceram, é hoje docente do ensino superior. Herculano – marido de Helena, investigadora e docente do ensino superior – é ad-vogado, mas o facto de hoje exercer a sua actividade profissional livre dasituação de assalariamento não alterou a sua aposta «contida» na carreira.Já Genoveva foi progredindo na carreira de docente do ensino secundá-rio, enquanto Nuno, com apenas o ensino secundário, permanece como mesmo cargo técnico da função pública. Finalmente, Lurdes, psicólogae empresária em nome individual, concluía a licenciatura quando co-nheceu Sebastião, ainda ele frequentava o ensino secundário. Licenciadoem Geografia, Sebastião trabalha hoje como técnico superior da funçãopública.

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Distânciasocial no casal

Atitude damulher faceà vidafamiliar e à vidaprofissional

Divisãofamiliardo trabalho

Dinâmica conjugal

No início da vidaconjugal

No momentoactual

No decurso davida conjugal

Estratégia dearticulação trabalho-família

Orientaçãoperante a vidafamiliar

Orientaçãoperante profissãoe carreira

Orientaçãoperante profissãoe carreira dohomem

Divisão dotrabalhoprofissional

Cuidados àcriança

Tarefasdomésticas

Comunicaçãoconjugal e vidaprofissional

Apoio do homemà actividadeprofissional da mulher

Organização dodinheiro

Integração externa e tempo do casal

Trajectória de hipergamia prioritária

• Predomina proximidade socioprofissional• Predomina proximidade etária• Predominam iguais condições perante a

actividade económica

• Predomina distância socioprofissional afavor do homem

• Desigualdade de rendimentos a favor dohomem

• Mulher com atenuada progressão na carreira

• Homem com forte progressão na carreira

FamiliaristaPrioridade atribuída à família e à carreira profissional do homem

• Maternidade é o principal domínio degratificação

• Exigências da vida familiar têm prioridadesobre a vida profissional

• Escolha de uma posição adequada à articulação

• Forte valorização da actividade profissional• Atenuada aspiração de carreira

• Primazia da carreira profissional dohomem sobre a carreira profissional damulher

• Duplo emprego a tempo inteiro• Carga horária da mulher muito inferior à

do homem

• Sobretudo mulher e familiares• Alguma participação masculina

• Sobretudo mulher, com delegação em empregada e/ou familiares

• Comunicação dominada pela vida profissional do homem

• Latente e pontual

• Bolo comum, com ou sem contas individuais

• Homem tutela maior fatia• Organização do dinheiro reflecte ou acen-

tua desigualdade económica no casal

• Fechamento ou fraca abertura • Fusão do tempo do casal com o tempo

em família

Trajectória de hipergamia progressiva

• Predomina distância socioprofissional a favor dohomem

• Predomina proximidade etária• Predominam diferentes condições perante activi-

dade económica: homem trabalha/mulher estuda

• Predomina distância socioprofissional a favor dohomem

• Desigualdade de rendimentos a favor do homem

• Mulher com atenuada progressão na carreira• Homem com forte progressão na carreira

Maximalista concessoraForte aposta na vida profissional e familiar, concedendoprioridade à carreira do homem

• Maternidade é um dos principais domínios de gratificação

• Exigências da vida familiar têm prioridade equivalente às da vida profissional

• Profissão é um dos principais domínios de gratificação

• Aspiração de carreira

• Procedência da carreira profissional do homemsobre a carreira da mulher

• Duplo emprego a tempo inteiro• Carga horária da mulher inferior à do homem

• Sobretudo mulher e familiares• Alguma participação masculina

• Sobretudo mulher, com delegação em empregadae/ou familiares

• Comunicação não dominada pela vida profissionaldo homem

• Mulher exige comunicação emocional

• Latente e pontual, ou inexistente

• Separação total ou bolo comum com ou sem contas individuais

• Predomina organização do dinheiro que reflecteou acentua desigualdade económica no casal

• Abertura• Procura de tempo exclusivamente dedicado ao

casal

Quadro 1.1 – Tipologia das trajectórias conjugais

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Trajectória homogâmica

• Predomina proximidade socioprofissional• Diferença etária variável• Predominam iguais condições perante a actividade económica

• Predomina proximidade socioprofissional • Desigualdade de rendimentos atenuada

(diferença inferior a 50%)

• Ambos os cônjuges com (forte) progressão na carreira

Trajectória hipogâmica

• Predomina proximidade ou distância socioprofissional a favorda mulher

• Diferença etária variável• Predominam iguais condições perante a actividade económica

• Predomina distância socioprofissional a favor do homem• Desigualdade de rendimentos a favor da mulher

• Mulher com (forte) progressão na carreira• Homem com atenuada progressão na carreira

• Duplo emprego a tempo inteiro• Carga horária da mulher semelhante à do homem

• Predomina partilha igualitária • Apoio de familiares/ama

• Diversidade com delegação em empregada e/ou familiares: sobretudo mulher com participação do homem; partilha

• Comunicação centrada na vida profissional de ambos oscônjuges

• Manifesto e intenso

• Bolo comum com ou sem contas individuais• Tutela partilhada

• Abertura • Procura de tempo exclusivamente dedicado ao casal

CarreiristaPrimazia da carreira profissional

sobre vida familiar

• Maternidade é um domíniode gratificação entre outros

• Exigências da vidaprofissional têm prioridadesobre a vida familiar

• Profissão é o principaldomínio de gratificação

• Forte aspiração de carreira

• Profissão do homem nãoassume primazia sobre a damulher

MaximalistaForte aposta na vida profissional e

familiar sem conceder prioridadeà carreira do homem

• Maternidade é um dos princi-pais domínios de gratificação

• Exigências da vida familiartêm prioridade equivalente àsda vida profissional

• Profissão é um dos principaisdomínios de gratificação

• Aspiração de carreira

• Profissão do homem não assume primazia sobre a damulher

• Duplo emprego a tempo inteiro• Carga horária da mulher igual ou superior à do homem

• Predomina partilha igualitária

• Sobretudo mulher, com delegação em empregada e/ou familiares

• Comunicação mais centrada na vida profissional da mulher • Mulher exige comunicação emocional

• Manifesto e intenso

• Bolo comum ou contas individuais• Tutela partilhada

• Fraca abertura • Fusão do tempo do casal com o tempo em família

MaximalistaForte aposta na vida profissional e

familiar sem conceder prioridadeà carreira do homem

• Maternidade é um dos princi-pais domínios de gratificação

• Exigências da vida familiartêm prioridade equivalente àsda vida profissional

• Profissão é um dos principaisdomínios de gratificação

• Aspiração de carreira

• Profissão do homem não assume primazia sobre a damulher

Carreirista Primazia da carreira profissional

sobre vida familiar

• Maternidade é um domíniode gratificação entre outros

• Exigências da vida profissionaltêm prioridade sobre a vidafamiliar

• Profissão é o principaldomínio de gratificação

• Forte aspiração de carreira

• Profissão do homem nãoassume primazia sobre a damulher

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Casamento e Desigualdade

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Focos detensão/conflito

Trajectória de hipergamia prioritária

• Autonomia da mulher: homem consideraprofissão da mulher um entrave àdisponibilidade para a família

• Individualismo do homem: consumoindividualizado; alheamento face aosassuntos familiares

• Tarefas domésticas: desvinculação dohomem

• Ausência de afinidades: no plano dosgostos, lazeres e/ou consumo

Trajectória de hipergamia progressiva

• Autonomia da mulher: homem considera profissão damulher um entrave à disponibilidade para a família

• Apoio do homem: falta de apoio geral • Individualismo do homem: atitude «egoísta»; consumo

individualizado; falta de disponibilidade para a família• Falta de tempo para o casal• Falta de comunicação• Personalidades incompatíveis• Tarefas domésticas: desvinculação do homem• Cuidados à criança: desvinculação do homem• Ausência de afinidades: no plano dos gostos, lazeres e/ou

consumo• Dinheiro: exigência recíproca da contribuição nas

despesas correntes• Competição: competição entre cônjuges no plano

profissional e pela liderança na família• Dimensão da descendência• Grandes decisões

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Escolha do cônjuge e vida conjugal: reformulando o conceito de homogamia

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Trajectória homogâmica

• Trabalho doméstico: desvinculação do homem relativamenteàs tarefas domésticas e aos cuidados à criança

• Trabalho profissional: críticas ao trabalho do outro cônjuge;excesso ou falta de diálogo em torno de actividade profissional

• Relação pais-filhos: desacordo no plano da relação com osfilhos

Trajectória hipogâmica

• Realização do homem com profissão: défice de realização dohomem através da profissão; mulher discorda da atitude dohomem face à sua própria profissão/carreira

• Relação pais-filhos: desacordo no plano da relação com os filhos• Trabalho doméstico: desvinculação do homem relativamente às

tarefas domésticas

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Capítulo 2

O primado da família e a prioridadeda carreira do homem

A um primeiro tipo de trajectória conjugal designamos hipergamia prio-ritária. Em traços largos, trata-se do percurso de uma vida conjugal que,tendo como ponto de partida um casamento homogâmico, se caracterizaessencialmente por um distanciamento socioprofissional a favor dohomem. Resultante de uma ascensão social desigual entre os membrosdo casal, esse distanciamento emana de uma lógica conjugal assentenuma orientação normativa que prescreve a primazia da carreira dohomem. A proximidade socioprofissional que pesou na escolha do côn-juge vai-se, portanto, desfazendo à medida que a articulação trabalho-fa-mília conduz a mulher a refrear as suas ambições de carreira, dando pro-gressivamente lugar a uma união conjugal de contornos hipergâmicos.

A hipergamia emergente não é, com efeito, alheia à dinâmica da vidaconjugal e, sobretudo, ao modo como a mulher procura conciliar a vidaprofissional e os encargos familiares. A mulher confere prioridade à fa-mília e, simultaneamente, reconhece primazia à carreira profissional dohomem, ainda que não questione o significado e o valor do seu própriotrabalho, jamais interrompendo o exercício da sua actividade profissional.Reduz, porém, a carga horária de trabalho e opta por um lugar ou umcargo que, precisamente, permita conciliar o exercício da actividade pro-fissional 1 e uma disponibilidade tanto mais próxima quanto possível datotal entrega à família e, sobretudo, aos cuidados e acompanhamento

1 No caso das entrevistadas que, sendo médicas, dão precedência aos encargos coma família, as decisões no que toca ao exercício da actividade profissional assemelham-seaos comportamentos observados por Crompton e Harris junto de médicas no contextobritânico: «The period of training required of doctors means that the domestic careeralso has to be planned, and many women doctors choose medical specialities that enablethem to continue in professional practice» (1999, 134).

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dos filhos. Acresce a este esforço a contenção do desejo de um númerode filhos que, quase sempre, ultrapassa a disponibilidade de quem nãoabdica da realização pessoal através de uma actividade profissional exi-gente em qualificações. Não obstante, a prioridade atribuída à família eà carreira masculina é, enfim, manifesta numa tutela dos encargos fami-liares que liberta o homem para a concretização dos seus projectos e am-bições profissionais.

Enfim, nestes casais, cuja dinâmica da interacção se caracteriza sobre-tudo pelo fechamento face ao exterior e pela ausência de uma procurade momentos exclusivamente partilhados pelos cônjuges, os focos de ten-são conjugal não são abundantes, concentrando-se muitas vezes em tornoda dicotomia individual/colectivo, ora podendo a mulher ser acusadade não estar tão presente na vida familiar quanto ao homem seria dese-jável, ora criticando ela própria as atitudes individualistas do parceiro ou,apenas, ressentindo-se com a desvinculação deste face ao trabalho do-méstico. Ainda assim, a resignação da mulher parece, nos casos analisa-dos, ser decisiva para que a tensão não dê lugar ao conflito conjugal.

Da proximidade inicial ao distanciamento do homem

Nos casais com trajectórias de hipergamia prioritária, as desiguais apostasdos cônjuges na carreira profissional são decisivas para desfazer a proxi-midade social que caracterizou o casal no momento da sua formação. Emdois dos casos observados com este tipo de trajectória, os parceiros têmidades próximas, posicionando-se na mesma categoria socioprofissionalno início da vida a dois: com dezoito e dezanove anos de idade, Amáliae António ingressavam em Medicina quando uma gravidez involuntáriaos empurrou para o casamento; os médicos Anabela e Álvaro faziam amesma especialidade quando decidiram casar, tinham ambos vinte e trêsanos de idade. Seria mais difícil prever o declínio da proximidade socio-profissional ao longo da vida conjugal nestes dois casos do que no casode Manuela – que leccionava no ensino secundário quando, com vintesete anos, casou com Manuel, um ano mais velho, médico estagiário numhospital público – ou de Ivone – também ela professora do ensino secun-dário quando, com vinte e seis anos de idade, casou com Henrique, qua-tro anos mais velho e já assistente estagiário na universidade.

Por outro lado, na maior parte dos casais com trajectórias de hipergamiaprioritária, a escolha do cônjuge traduziu-se numa homogamia socio-

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O primado da família e a prioridade da carreira do homem

profissional alargada a favor do homem, senão vejamos: Felícia era gesto -ra de projecto num organismo do Estado quando, com vinte e cincoanos de idade, casou com Fernando, apenas um ano mais velho e já in-tegrado na direcção da empresa do pai; Filipa fazia o estágio num hos-pital público quando, aos vinte e quatro anos, casou com Filipe, que,com a mesma idade, exercia já consultoria por conta própria; Irene esta-giava num hospital público quando, com vinte e seis anos de idade,casou com Horácio, apenas dois anos mais velho e já com um cargo dedirecção numa empresa privada; e Leonor estava já enquadrada na fun-ção pública quando, com então trinta e um anos de idade, casou comEduardo, dez anos mais velho e, também ele, engenheiro, conquantopor conta própria. A excepção vai para a situação de Joana. Tinha vintee oito anos de idade, e exercia actividade num hospital público, quandocasou com um técnico de vendas. Oito anos mais velho, João estava emprocesso de divórcio quando conheceu Joana. A ascensão que define oseu percurso fazia, porém, adivinhar que a hipogamia socioprofissionalque caracterizou este casamento pudesse dar lugar à emergência de umahipergamia. Finalmente, os casais com trajectórias de hipergamia prioritáriadiferenciam--se no que toca à importância da proximidade das origenssociais no momento da escolha do cônjuge, repartindo-se entre aquelescom origens sociais próximas (Irene e Horário; Leonor e Eduardo) ouidênticas (Amália e António; Manuela e Manuel), por um lado, e aquelesem que a origem social ora favorece mais a mulher (Joana e João; Anabelae Álvaro), ora favorece mais o homem (Felícia e Fernando; Ivone e Hen-rique), por outro.

De seguida, começamos por expor e analisar em profundidade o pro-cesso de escolha do cônjuge, elegendo, em primeiro lugar, a situação dehomogamia social que caracterizou o casamento de Amália com Antó-nio, ambos médicos com origens sociais semelhantes, e, em segundolugar, a situação de homogamia socioprofissional que definiu o casa-mento de Ivone com Henrique, provenientes de diferentes meios sociais.Se no primeiro caso o próprio projecto de conjugalidade, acelerado poruma gravidez adolescente, não é questionado em virtude da forte proxi-midade social, na segunda situação são destacadas as qualidades indivi-duais do parceiro como forma de compensar as diferentes origens sociais.

«Esperava casar-me mais tarde com este marido»

Tal como a irmã, dois anos mais nova, Amália nasceu em Coimbra«por acidente». «O meu pai é médico», explica, «e na altura estava a tirar

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o curso em Coimbra [...] e eu nasci nesse período.» O «conflito» entre opai e a mãe, doméstica com a quarta classe, afectou desde cedo a relaçãodestes com a filha. A partir dos cinco anos de idade, Amália passou aviver com a avó na aldeia onde os pais nasceram, até ao início da quartaclasse, quando então regressou a casa dos pais. O conflito conjugal, con-tudo, depressa reavivou a difícil relação com os pais, ficando desta vez aentrevistada a cargo de uma tia que vivia no Porto, onde então terminouo ensino primário. Os restantes anos até à faculdade passou-os já em Lis-boa num colégio interno exclusivamente para raparigas. Mais uma vez,foi um familiar do lado materno – «uma tia minha solteira, irmã daminha mãe» – quem lhe assegurou o apoio logístico em Lisboa sempreque podia ausentar -se do colégio. Amália encontra na degradação da re-lação conjugal dos pais a razão para se ter progressivamente afastado doseu núcleo familiar de origem.

Do colégio para raparigas só saiu para ingressar na universidade. Atéaos dezassete anos, desabafa, tinha «pouca liberdade»: «era um colégiocom normas muito rígidas. Só saíamos aos fins-de-semana e nas férias».Amália passava essas temporadas extra-escolares na casa da sua tia, e foiprecisamente num desses períodos de liberdade que conheceu António,também ele filho de médico e doméstica.

Eu tinha quinze anos quando o conheci. Conheci-o durante umas fériasda Páscoa... aqui em Lisboa. Através de amigos, naquelas festinhas que sefaziam. Uma amiga minha do colégio fez anos e convidou-nos para irmoslá a casa, e conheci-o nessa altura.

Com efeito, ao quadro de conflito entre os pais e com os pais acresciauma educação de apertado controlo: «não me deixavam sair, punham--me horas de entrada...». Não se estranha, pois, a «péssima» reacção dospais logo que tiveram conhecimento do namoro da filha: «Não queriamque eu namorasse!» Todavia, a paixão súbita por António – «gostei logomuito dele» – e a admiração pelas suas qualidades intelectuais – «eramuito inteligente» – proporcionaram o enamoramento. O namoro entreos dois, porém, não tinha completado os dois anos quando Amália, comdezassete anos de idade, vivendo novamente com os pais e iniciandoentão os seus estudos na universidade, engravidou «acidentalmente». A gravidez foi uma contrariedade vivida como «vergonha», numa famíliaonde o casamento institui os papéis e, portanto, legitima a gravidez. Poroutro lado, a experiência familiar deste contratempo revela complexida-des, sobretudo a aceitação da ideia de aborto por parte da mãe – que tão

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O primado da família e a prioridade da carreira do homem

ilegítima considerou a gravidez fora do casamento como importante aprossecução dos estudos da filha – e a renúncia de Amália à interrupçãode uma gravidez que, precisamente, só anunciou aos pais quando esta jáera irreversível.

Quer dizer, como eu estava grávida foi uma grande vergonha para a fa-mília... Está a ver, isto foi há vinte e nove anos. Para mim não se punha aquestão do aborto. Para a minha mãe, sim. Se ela tivesse sabido mais cedo,e foi um dos motivos pelos quais eu não lhe disse mais cedo, ter-se-ia posto,sem dúvida.

A gravidez acidental deu assim origem a um casamento que, de igualmodo, «não foi planeado». «Esperava casar-me mais tarde com este ma-rido», reconhece Amália, «e viver com ele a vida inteira, é o que pensauma miúda dessa idade». Mas se o primeiro filho e, consequentemente,o casamento vieram antes de tempo, também possibilitaram o afasta-mento definitivo em relação à casa dos pais, que mais tarde acabariampor se separar. Este afastamento implicou, obviamente, uma necessidadede autonomia financeira, forçando Amália e António a procurarem em-pregos compatíveis com os estudos: «na altura arranjei trabalho no To-tobola, era escrutinadora e só trabalhava às segundas de manhã, e ele tra-balhou na Câmara como desenhador».

Em suma, para a escolha do cônjuge contribuíram, por um lado, fac-tores de natureza sociocultural, como sejam a identificação de Amáliacom as origens sociais de António – ambos filhos de médico com do-méstica – ou a afinidade implícita na expressão subliminar «gostei logomuito dele», referindo-se a alguém que conhece entre amigos, ou seja,num contexto particularmente propício ao adolescente desejo de desco-berta. Por outro lado, o processo de escolha é acelerado por razões denatureza normativa em relação à vida familiar – ou seja, o casamentoimpõe-se perante uma gravidez –, razões essas articuladas com factoresconjunturais, como o desejo de afastamento do contexto de interacçãofamiliar de origem.

«Olhando para ele, não dizia que era mais novo»

Ao contrário de Amália, Ivone sempre teve «uma relação normal»com os seus pais, «sem grandes conflitos em casa». Até aos dezoito anosde idade, Ivone viveu com os pais e quatro irmãos – «duas meninas maisvelhas e dois rapazes mais novos» – numa aldeia. Filha de camponeses,

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recorda a divisão diferenciada do trabalho entre um pai que «andava comos homens no campo e, portanto, em casa vinha para comer e não aju-dava muito», e uma mãe, a quem cabia a organização da casa e o auxílioao marido na vindima ou na apanha da fruta. Em casa, esta mulher podiacontar com a ajuda das filhas, mas Ivone faz questão de sublinhar queera ela quem mais ajudava.

O meu pai era sair de manhã e chegar à noite. As terras eram próximas dacasa, mas era desse género. Ele estava pouco tempo em casa. Nós íamos aju-dando, de facto, a minha mãe. Eu talvez até ajudasse mais, porque eu própriaera mais interessada em estar ali na cozinha com ela e ajudar as minhas irmãs,eu sempre estive com ela, até porque depois as minhas irmãs saíram e por-tanto eu sempre fui ajudando muito a minha mãe, quer nas lidas de casa...

O gosto pela cozinha e pelo apoio prestado à mãe nas tarefas domés-ticas não constitui, no entanto, impedimento para deixar o núcleo deorigem, tal como haviam feito as irmãs, rumo a Lisboa com o pretextode ingressar no ensino superior. Ivone recorda o enorme esforço que ospais fizeram para que nenhum dos filhos deixasse de frequentar a uni-versidade na capital, pelo que todos trabalharam enquanto estudaram.Ela, que não tinha alcançado a classificação necessária à admissão emGeologia, não deixou de vir para Lisboa, pois, entretanto, a irmã maisvelha conseguiu-lhe trabalho numa empresa de estudos de mercado. Noano seguinte, Ivone ingressou finalmente no ensino superior, permane-cendo na mesma empresa até concluir a licenciatura, porque os seus su-periores hierárquicos possibilitaram a adaptação do trabalho e do respec-tivo horário às exigências dos estudos.

Permaneci sempre na mesma empresa sem fazer o mesmo trabalho. Noprimeiro ano, eu andava a fazer entrevistas pelo país inteiro, e depois,quando entrei na faculdade, comecei só a fazer na área de Lisboa por poucotempo. Depois, já era um trabalho mais de gabinete, em que as chefias meautorizaram a ficar ali mais no gabinete e fazer um trabalho mais pós-laboral.Eu ia para ali trabalhar até um pouco mais tarde, fazer umas horas de traba-lho, porque ganhava a recibos verdes... Eu ia fazer o máximo de horas queeu precisava, ganhava à hora. Eu começava a escola logo às oito da manhãe, à hora de almoço, às vezes ainda lá ia até as [aulas] práticas começarem, eassim que acabavam as [aulas] práticas saía logo de lá para o trabalho. Nissotudo, ia tentando estudar. Eu, nesse primeiro ano, nem acompanhei muitoos meus colegas da faculdade porque nem tinha tempo, eu ia lá às aulas esaía rapidamente para ir trabalhar. No segundo ano já comecei a gerir melhoras coisas. Depois, no segundo ano, também consegui gerir melhor as coisas

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O primado da família e a prioridade da carreira do homem

porque depois soube que podia candidatar-me à bolsa, e então concorri econsegui uma bolsa que me ajudou ali a fazer um pouco menos de horas lá.

Foi neste contexto profissional que Ivone, ainda estudante, conheceuHenrique, tinha então a entrevistada dezanove anos de idade. Ele aca-bava de entrar na faculdade, enquanto ela, quatro anos mais velha, fre-quentava já o terceiro ano. Um «trabalho de férias» na empresa ondeIvone trabalhava proporcionou o encontro.

Nessa empresa, eu conheci-o porque ele foi lá fazer um trabalho de férias,e conhecemo-nos. Havia uma pessoa que trabalhava lá, uma amiga nossaque trabalhava lá e que o conhecia, foi ela que o tinha chamado para virfazer esse trabalho de férias. Conheci-o lá e depois mais tarde voltámos anos encontrar e passado aí um ano começámos a namorar, foi qualquer coisaassim. Às vezes até comento que nessa altura não lhe liguei nenhuma. Vi-olá, cumprimentei-o e tal...

Não foi súbita a atracção por Henrique – «eu chamei-lhe mais a aten-ção a ele do que ele propriamente a mim» –, mas também a percepção deestar perante um homem mais novo não foi imediata. «Eu soube que eleera mais novo uns dois anos depois», recorda Ivone, «porque não me in-teressou muito a idade, mesmo olhando para ele, não dizia que era maisnovo...» O confesso e sublinhado «desinteresse» pela idade do homem,já se vê, tem subjacente o facto de Henrique não aparentar ser mais novoque a entrevistada. Mas ao reconhecimento desta aparente proximidadeetária acresce a valorização da «dedicação ao estudo» que Ivone identificouem Henrique, a quem apelidava «marrão», qualidade que a contagiou:«Eu até digo que comecei a estudar mais depois que o conheci.»

Eu nem me meti muito com ele, nem nada. E até pensava que ele tinhaengraçado com uma outra moça... O primeiro impacto foi normal. Depois,há uma série de pormenores em que a pessoa vai conversando e vai vendoque têm coisas em comum, pronto, há uma certa empatia logo de imediato,uma certa afinidade, porque eu acho que de facto as pessoas não têm queter todas os mesmos interesses, mas têm que ter umas certas afinidades, senãoeu acho que não há ali uma ligação. Nós sentimos essa tal empatia logo...Achava-o simpático, atencioso e dedicado ao estudo, que era uma coisa deque ele gostava, muito até, eu até o chamava de marrão, porque ele passavaos dias a estudar. Porque eu apesar de gostar do estudo e estudava e tudo,mas tentava também divertir-me um pouco e ele às vezes preferia não sairpara estar ali a estudar. Eu até digo que comecei a estudar mais depois queo conheci. Juntávamo-nos na minha casa ou em casa dele e passávamos astardes a estudar. Isso sem dúvida era uma das qualidades.

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Apesar da «afinidade» no que à valorização dos recursos educacio-nais diz respeito, o casal não partilha as mesmas origens sociais. Aliás,a origem relativamente escolarizada, urbana e terceriarizada de Henri-que – filho de um chefe de secção num organismo da administração pú-blica com o antigo quinto ano do liceu – não deixa de contrastar social-mente com a origem camponesa de Ivone. No entanto, esta não identificaquer no pai, quer na mãe dele – doméstica, com a quarta classe – a apostanos estudos do filho que reconhece aos seus próprios pais: «Eu da minhaparte senti muito o apoio da parte dos meus pais, ele foi naquela conse-quência ‘Vais entrar, está bem e tal’. Não foi uma coisa ‘Agora tens queir estudar’.» Sem o isolamento de quem sempre viveu no campo e comuma origem mais escolarizada, Henrique confrontou-se com uma atituderesistente dos pais que ainda hoje surpreende Ivone: «não entendiam odinheiro que ele gastava a nível de livros, não estavam sensibilizados paraisso». Assim, a actividade remunerada que Henrique exercia enquantoestudava constituía um complemento que, segundo a entrevistada, nãoera fruto da necessidade – «Não era para poder frequentar a faculdade»– mas de um défice de «sensibilidade» parental para o investimento ne-cessário à aposta nos estudos.

Durante o curso, ele ia sempre tentando trabalhar, sempre que haviaoportunidade... Trabalhava até com um amigo jornalista no Diário de Notí-cias, fazia algumas traduções e trabalhos que lhe dessem algum dinheiro paraele ter. Estava numa idade que queria algum dinheiro e os pais não lhedavam dinheiro. Até para roupas dele, pronto, estava numa idade que pre-cisa, já tem outros interesses, as coisas de que os pais gostavam já não era oque ele gostava, e então foi mais ou menos nesse sentido. Ele tentava semprearranjar uns trabalhos para ter para ele. Não era para poder frequentar a fa-culdade. Era para poder ter mais. Auxiliou-o em muito para poder comprarlivros.

Importa sobretudo sublinhar, afinal, que este relativo alheamento dospais de Henrique se traduziu, junto de Ivone, em pretexto de sobrestimada própria atitude de alguém sempre muito empenhado nos estudos,como se a ausência de proximidade das origens sociais fosse compensadacom a valorização de um esforço individual – «Ele próprio é que tambémquis e que disse aos pais que ia estudar» – que, tal como verificámos,contagia e, precisamente, aproxima.

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O primado da família e a prioridade da carreira do homem

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Uma articulação trabalho-família orientada pela vida familiar

Se os processos que acabamos de analisar ilustram o modo como aescolha do cônjuge recai sobre um parceiro socialmente próximo, a ho-mogamia social que caracteriza o início da vida conjugal não permiteantever um percurso de crescente desigualdade, particularmente no querespeita à progressão profissional do homem e da mulher. A emergênciada hipergamia numa união inicialmente homogâmica, com o subse-quente desfasamento de rendimentos a favor do homem, está, no en-tanto, longe de poder ser explicada por uma lógica que remeta exclusi-vamente as razões das conquistas profissionais dos membros do casalpara a sua capacidade e o seu empenho individuais. Na verdade, as im-plicações das normas de género sobre a divisão do trabalho na famíliasão desde logo evidentes nos núcleos familiares em que cabe frequente-mente à mulher a elaboração de uma estratégia para articular a vida pro-fissional e a vida familiar. Nos casais com trajectórias de hipergamia priori-tária, deparamos com o mesmo tipo de estratégia que, grosso modo, seequipara à solução identificada por Crompton e Harris (1999) junto dealgumas mulheres com profissões muito qualificadas para quem a vidafamiliar tem precedência – domestic life first. 2 A estratégia familiarista de-fine-se então fundamentalmente pela prioridade que, face à sua vida pro-fissional, a mulher confere à maternidade e a todos os encargos com afamília. Em virtude de uma ordem de prioridades bem definida, a pro-cura da compatibilização entre os dois universos não implica a tensãoque iremos encontrar noutros tipos de estratégia de articulação trabalho-fa-mília. A primazia da família não deixa de se observar sistematicamentenas opções tomadas no decurso da relação a dois, por vezes logo no iní-cio da relação amorosa. Esta estratégia manifesta-se directamente, de talforma assumida, no próprio discurso de algumas familiaristas.

É assim: tem que se fazer opções na vida! Simplesmente a partir do mo-mento em que uma pessoa casa e tem filhos, tem de começar a pensar o queé que há-de começar a fazer. Quer dizer, ou vai fazer uma grande carreira anível profissional, o que é quase incomportável quando se quer filhos, ou

2 De notar que, entre as mulheres médicas e bancárias no estudo das investigadoras,a prioridade atribuída à vida familiar é mais frequente junto das primeiras, que «were farmore likely to have altered their work-life biographies as a response to changes over thefamily cycle – for example, taking up part-time work or a less demanding job» (Cromptone Harris 1999, 140).

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então não lhes liga nenhuma! Eu conheço muita gente assim, têm uma vidaprofissional muito bonita, mas depois a nível familiar é zero! Eu optei quenão queria isso. Se os tenho, é para os criar [Leonor].

Tinha a ideia de ter filhos e de ter a minha vida dedicada a eles [Felícia].

Se tivesse que optar entre profissão e família, quer dizer, se a família, dealguma forma, me impedisse de trabalhar, eu deixava imediatamente de tra-balhar. Portanto, para mim a família está à frente de tudo, de tal maneira queme mete impressão quando perguntam às outras pessoas e elas dizem que asduas coisas são importantes, ou que a profissão está à frente. Isso mete-meuma confusão doida! Para mim a família é o mais importante, sem dúvida!Espero não ter uma grande desilusão no final da vida [Amália].

Ensombrado pela prioridade à família, o significado do exercício daactividade profissional está longe, porém, de se esvair, embora o empe-nho numa carreira seja atenuado tendo precisamente em linha de contaque desta atenuação depende uma articulação trabalho-família sobretudocaracterizada pela forte disponibilidade feminina para a vida familiar.Com efeito, a estratégia familiarista implica que a mulher atenue o inves-timento na sua actividade profissional, renunciando ou adiando os pro-jectos relacionados com a carreira e, particularmente, reduzindo a cargahorária de trabalho. Reveladora do modesto lugar – ainda que funda-mental – do exercício da profissão na realização pessoal, esta contençãoda ambição profissional traduz-se particularmente na eleição de cargosque não perturbem o equilíbrio entre as exigências de um trabalho re-munerado e a disponibilidade exigida pela vida familiar. Por outro lado,associada a uma prioridade conferida à carreira masculina, a estratégia fa-miliarista pressupõe que o homem tenha uma carga horária de trabalhoinvariavelmente muito superior à da mulher, que por sua vez opta poruma via profissional ou um lugar na hierarquia organizacional sem asimplicações inerentes às responsabilidades – consideradas excessivas –de uma posição de liderança.

Estão assim entre as entrevistadas com estratégias familiaristas: as mé-dicas que optaram por trabalhar num hospital público em regime de ex-clusividade para poderem dar resposta aos encargos familiares (Anabela,Amália e Joana); aquelas para quem os filhos e a prioridade que eles re-presentam obrigam a pôr de lado, no mínimo temporariamente, a apostanuma formação académica suplementar (Ivone e Irene); as entrevistadasque, acima de tudo, valorizam a segurança material de um emprego en-quadrado na função pública (Felícia e Manuela); e, finalmente, Leonor,

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O primado da família e a prioridade da carreira do homem

para quem a primazia que atribui à família sai reforçada do exercício deuma profissão para a qual não se sente vocacionada. Antes, porém, deanalisarmos o modo como a estratégia familiarista se repercute nos per-cursos profissionais destas mulheres e dos seus respectivos cônjuges, im-porta sublinhar que a prioridade à família e à maternidade vai de parcom o valor primordial que, ainda assim, estas mulheres atribuem aoexercício da sua actividade profissional.

Maternidade, desejos e constrangimentos

Apesar de as entrevistadas em uniões conjugais com trajectórias de hi-pergamia prioritária não se diferenciarem das restantes pela dimensão dadescendência – apenas Anabela e Amália, com três e quatro filhos, res-pectivamente, têm uma descendência acima da média –, quase todas co-mungam do sentimento de terem ficado aquém do seu desejo maternal.Por um lado, a adversidade e outros constrangimentos difíceis ou impos-síveis de contornar contribuíram, nalguns casos, para limitar o númerode filhos. Por outro lado, ainda que atenuem a aposta na carreira, o fortesignificado que estas mulheres atribuem ao exercício da actividade pro-fissional traduz-se numa descendência limitada às possibilidades da com-patibilização dos encargos familiares com a vida profissional.

No entanto, as condições materiais e logísticas, os impedimentos re-lacionados com a saúde, a idade da mulher ou os próprios planos de pa-ternidade do homem, bem como os constrangimentos impostos pelotempo de quem, afinal, não abdica da realização pessoal que obtém dopróprio exercício da sua actividade profissional, são factores de naturezadistinta dos entraves que resultam de um forte investimento na carreiraprofissional. Neste sentido, não é surpreendente a incompreensão de al-gumas familiaristas para com as mulheres que adiam os projectos de ma-ternidade em virtude da sua ambição profissional. É o caso de Anabela.Mãe de três rapazes e de uma rapariga, esta entrevistada invoca a idadeda primeira gravidez – «não queríamos ser pais velhos» – e uma ausênciade ambição para se distanciar dos exemplos das colegas de trabalho que,precisamente, protelam a maternidade para poderem concretizar as suasaspirações profissionais.

Profissionalmente acabei por ter sorte... porque há pessoas que nãotêm filhos, que esperam por ter... Não têm filhos no internato geral parapo der estudar para o exame, não têm filhos no internato complementarpara poder estudar para o exame, depois não têm não-sei-quê e eu, tam-

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bém como não sou muito ambiciosa, acho que estar aqui no quadro dumhospital central a fazer uma coisa de que gosto muito, onde tenho umbom ambiente dentro do laboratório e dentro do hospital, acho que tenhomuita sorte. Faço o que gosto.

Já se vê que, pese embora empenhada numa profissão que tem«gosto» em exercer, esta mulher elabora uma estratégia de articulação tra-balho-família convocando um quadro normativo que a fixa numa confi-guração identitária definida, despoja-a, no plano simbólico, da sua sin-gularidade ao associar-lhe unicamente representações preexistentes, econdiciona assim a autonomia, a disponibilidade e o tempo que umaprofissão com carreira exige. É essa a interpretação a retirar ora da mater-nidade como alicerce identitário de Anabela – «acho que era incapaz denão ter filhos» –, ora da ausência de ambição profissional, até certo pontoreveladora da relativa relutância da entrevistada em se assumir como «su-jeito social susceptível de compromissos fora da família» (Commaille1993, 78), abraçando um estatuto predefinido, atribuído de acordo como lugar da mulher na configuração familiar. Ainda que desejado por Ana-bela, o quarto filho – uma rapariga – já não estava nos planos do casal.Nasceu quando a entrevistada tinha quarenta e um anos, com uma dife-rença de doze anos em relação ao seu terceiro filho, ou seja, muito tempodepois de, com pena sua, ela e o marido terem decidido que «era impen-sável continuar» por razões de espaço: «quando chegou ao terceiro, aca-bou, teve mesmo que parar, porque a casa era uma sala, um quarto e oquarto dos miúdos, que era mínimo, e não havia espaço para mais ne-nhum».

Se Anabela, ainda assim, pôde ver concretizado o seu desejo de termais filhos para além do que, em casal, tinha planeado, outras mulheresfamiliaristas viram o seu desejo de descendência limitado por constran-gimentos de ordem diversa, desde a pesada logística que a assistênciaprestada a outros familiares acarreta, às razões relacionadas com a saúdeou o próprio sofrimento associado à gravidez e ao parto, passando aindapelas limitações impostas pela idade. Assim, se Joana, mãe de uma rapa-riga, alega estar longe de poder realizar o seu desejo de ter mais filhos de-vido aos cuidados que tem de prestar à sua mãe numa «família onde nãoexiste praticamente ninguém», já Irene explica a contenção do seu desejode aumentar a descendência – «nunca pensei ter só um filho» – pelo «tor-mento enorme» que representou a experiência da gravidez e do parto:«não queria passar por essa situação outra vez». Por sua vez, Leonor sentiuque, após o nascimento da sua segunda filha, tinha então trinta e oito

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O primado da família e a prioridade da carreira do homem

anos de idade, não podia continuar – por razões de calendário – e avançarpara uma terceira gravidez, como era seu desejo: «achei que já era tardepara outro». A entrevistada explica o desejo gorado com a adversidade:após ter engravidado pela segunda vez, um aborto espontâneo fez dilatardemasiado o intervalo entre as gravidezes.

Por outro lado, não obstante a diversidade dos constrangimentos àconcretização do desejo da mulher no que toca ao número de filhos, im-porta sobretudo sublinhar que a dimensão da descendência fica, à par-tida, circunscrita à capacidade de articulação entre vida profissional evida familiar, pois, ainda que prioritária, a família e, em particular, a ma-ternidade não pode exigir da mulher uma disponibilidade total, ou seja,a abdicação do exercício da sua actividade profissional. Se a prioridadeà família não interfere com o forte significado que o exercício da profis-são assume junto de todas estas mulheres, algumas justificam, precisa-mente, que o número de filhos ficou apenas circunscrito à sua capacidadepara articular o trabalho profissional e a família. A título ilustrativo, Amá-lia foi surpreendida quer pela primeira gravidez, quando tinha apenasdezoito anos de idade, quer pela terceira, dezassete anos mais tarde. Mãede dois rapazes e de uma rapariga, confessa que não planeavam ir alémdos dois filhos, pois, tal como explica, «não tenho vida para dar atenção»,acrescentando, porém, que «se tivesse outras condições de vida, teria tidomais filhos». De referir que essas «condições» se prendem, sobretudo,com a logística doméstica – embora a entrevistada e o marido possamcontar com duas empregadas –, e não tanto com o tempo exigido pelasua actividade profissional. Já Ivone, mãe de um rapaz e de uma rapariga,acrescenta que o desejo não concretizado de um terceiro filho foi – paraalém de uma «opção» tomada com o marido, que «não tem tempo paraos filhos» – o resultado da assunção da sua própria recusa em abdicar daactividade profissional – «sinto falta do trabalho» –, pois avançar parauma terceira criança significaria «ficar com os três filhos em casa».

Em suma, a descendência fica, no limite, circunscrita às possibilidadesde articulação entre a vida familiar e a vida profissional, já que a priori-dade que estas mulheres conferem à vida familiar não se traduz num dé-fice do significado que atribuem à sua profissão, pese embora valorizemum emprego que permita «organizar a vida» e uma posição sem as res-ponsabilidades de um posto de chefia ou direcção, adiem os projectosrelacionados com a formação profissional, subestimem a noção de «car-reira profissional», procurem sobretudo um emprego pela «estabilidade»que proporciona ou, simplesmente, exerçam uma profissão para a qualnão se sentem vocacionadas.

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A recusa da liderança e o receio da responsabilidade

Nos casais com trajectórias de hipergamia prioritária, a primazia que amulher atribui à vida familiar traduz-se invariavelmente numa atenuaçãodas suas exigências com a carreira. Nalguns casos, essa atenuação mani-festa-se numa rejeição dos lugares de chefia ou direcção que impliquemresponsabilidades indesejadas. É o caso de Anabela, mãe de três rapazese de uma rapariga. Médica filha de médicos, Anabela iniciou a sua vidaprofissional no laboratório de análises da mãe, mas desde cedo abdicoudessa situação, em seu entender, incompatível com a actividade que viriaa exercer num hospital público. Na realidade, à luz do exemplo do pai,Anabela deixou de exercer medicina para se dedicar ao ensino universitá-rio, considerando a gestão de um laboratório privado de pequena dimen-são uma actividade pouco estimulante ou «rica» no que respeita aos casospatológicos, aos contactos profissionais e à aprendizagem que o contextohospitalar, por sua vez, proporciona. No entanto, outros factores contri-buíram para, em lugar da herança profissional e do «sonho» da mãe, teroptado por trabalhar num laboratório de um hospital público, alegandoser destituída do «feitio de líder», gestora e dirigente que identifica na mãe.

A minha mãe tinha o sonho eventualmente, ou achava naturalmenteque eu iria ficar com o laboratório dela, só que entretanto as coisas evoluírame os laboratórios são como tudo. [...] Antes os laboratórios eram de um mé-dico, o médico é que era o dono do laboratório... Quer dizer, a gestão erarelativa no sentido que não havia propriamente concorrência, não havia pro-blemas: abria-se a porta, faziam-se análises, faziam-se as contas, tinha-se umcontabilista. [...] As coisas hoje em dia são muito pela concorrência. Os la-boratórios começaram a ser geridos, regra geral, até por pessoas não médicas,ou pelo menos por médicos que tinham que ter coisas de gestão. E então eunão tinha minimamente jeito para gerir, nem me apetecia nada ter a mesmavida que ela eventualmente teve. Eu detesto tudo o que seja gerir, não tenhofeitio nenhum de líder, de gerir empregadas, gerir pessoal ou conflitos depessoal.

Contudo, esse «feitio» ausente tem implicações nos seus próprios ob-jectivos profissionais, bem como na relação que mantém com os seussuperiores hierárquicos. A ascensão a directora de serviço esteve, efecti-vamente, ao seu alcance, mas Anabela considerou incompatíveis a res-ponsabilidade e o teor profissional próprio das direcções dos laboratóriosparticulares – ou seja, as competências de gestão financeira – com o exer-cício do ofício de patologista clínica. Quanto à relação com os seus su-

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O primado da família e a prioridade da carreira do homem

periores hierárquicos, a entrevistada é tão crítica quanto se sente injusti-çada e pouco estimulada, revelando – precisamente ao invés do perfil deliderança no qual não se revê – a necessidade de ter «chefes que puxas-sem» por si.

Eventualmente eu poderia chegar ao lugar de directora, mas não é esseo meu objectivo e isso não ia acontecer. Mas podia chegar a directora do la-boratório. Até este momento os directores de laboratório, mesmo de outrosserviços, têm tido um papel perfeitamente passivo, erradamente passivo. Se-gundo a nova lei de gestão hospitalar, e bem, os directores vão ter que passara ser responsabilizados. No fundo, se a lei for cumprida, os novos directoresterão que funcionar como se isto fosse uma espécie de laboratório privado,porque um dono de um laboratório tem que chegar ao fim do mês e ter di-nheiro para pagar os ordenados. O que eu acho é assim: comparativamentecom os outros, obviamente que sou muito melhor, mas acho que se tivesseuns chefes que puxassem por mim seria muito melhor do que sou e estou...sinto falta de estímulo.

O primeiro filho nasceu tinha Anabela vinte e cinco anos de idade,tendo a disponibilidade proporcionada pelo horário de trabalho no hos-pital público constituído também um factor determinante da sua recusaem gerir o laboratório da mãe. Contrapondo ao horário profissional quea esperava se herdasse o lugar materno, sublinha: «Não saio daqui tãotarde. Termino às três e meia. Portanto, não é nada que seja grave, porqueo facto de termos banco permite, depois, nos dias da semana trabalhar-mos menos horas. Portanto, acho que, em termos de acompanhamentodas crianças, chegar a casa às quatro é perfeitamente adequado, não é?»

De um modo semelhante, Amália, mãe de dois rapazes e de uma ra-pariga, invoca o seu «mau feitio» entre as razões para ter recusado o cargode directora de serviço hospitalar, que implicaria «um monte de preo -cupações». Para além do assumido «mau feitio», razões mais fortes dita-ram, no entanto, a escolha de Amália. Conservar intacta a disponibili-dade para a família e, em particular, para a sua filha mais nova foi ocritério decisivo, confessando o receio de, ao invés, vir a «ter conflitoscom a família». Assim, o «stress» e o «movimento» do seu quotidiano pro-fissional ultrapassam frequentemente o limite daquilo que esta familiaristaconsidera tolerável, não se estranhando por isso que, «quando tiver di-reito», Amália reclame «ser libertada» dessa «responsabilidade».

Não podia ser directora de serviço, porque ia deixar de ter tempo para afamília e, além disso, é uma responsabilidade enorme ser directora deste ser-

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viço. E eu com o mau feitio que tenho iria ter um monte de preocupaçõese iria dedicar-me muito mais ao serviço e passaria a ter conflitos a nível fa-miliar, e não estou interessada. É sobretudo tempo para a minha filha maisnova, mas também tempo para o meu marido. É uma responsabilidadeenorme que eu não quis assumir de maneira nenhuma. Mesmo assim, aminha [responsabilidade] já não é nada pequena [riso]. Sabe, a mim o queme cansa não é tanto o trabalho, é mais a responsabilidade, este stresse, saberem todos os minutos que há algum doente que está a ser transfundido, por-que isto é tanto, tanto movimento... [...] De maneira que eu saber que estásempre um doente, vários doentes a fazerem transfusões com normas quesão escritas por mim, porque está tudo escrito e decidido, a responsabilidadese alguma coisa... Eu já me habituei a viver com isto, só sofro quando algunsdestes casos são complicados, mas acho que quando tiver direito a isso éuma responsabilidade de que eu mereço libertar-me!

A renúncia destas entrevistadas às posições profissionais que impli-quem os encargos inerentes à liderança contrasta fortemente com a forteaposta dos respectivos cônjuges, também eles médicos, que desde cedooptaram por uma carreira no sector privado, hipótese impraticável, porexemplo, no caso de Amália, uma vez que «a imunoemoterapia é umaespecialidade essencialmente hospitalar». Esta entrevistada valoriza, con-tudo, esse condicionamento, decisivo na escolha da sua profissão. Afinal,a sua carga horária semanal de quarenta horas, exceptuando o dia emque faz banco, é repartida por apenas seis horas diárias e contrasta, por-tanto, com as onze horas diárias – incluindo os sábados – que o seu ma-rido dedica à profissão.

Entrámos aqui para o internato para a especialidade, e o meu maridologo desde muito cedo começou a fazer privada. Esta é uma especialidadeque não tem privada... Escolhi esta especialidade exactamente por esse mo-tivo, de eu poder dar mais apoio à família. Portanto, sempre só fiz medicinahospitalar e durante a tarde, tinha as tardes mais ou menos livres, tirando osperíodos de urgência, para estar com eles.

Também o marido de Anabela deixou o hospital público logo apóster terminado a especialidade para continuar a exercer a sua actividadeem clínicas privadas, onde entretanto já trabalhava. Tendo-se revelado«melhor aluno» que ela, reparte actualmente o seu dia de trabalho entrea clínica dentária de um amigo e as consultas no seu próprio consultório.No que toca à diferença de carga horária, o perfil do casal assemelha-seao de Amália e António.

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O primado da família e a prioridade da carreira do homem

Ele era melhor aluno, mas estudava menos que eu [riso]. Nós semprefomos médios e ele tinha melhor média que eu. Por isso é que ele ficou emLisboa e eu fui para fora. Não é assim nada que fosse muito diferente, talvezum ponto de diferença, uma coisa assim, mas regra geral tinha sempre me-lhores notas nos exames que eu. [...] A especialidade são quatro anos, por-tanto os dois fizemos os quatro anos de especialidade sempre a trabalharnos hospitais... Ele fazia estomatologia e começou a trabalhar numas clínicasprivadas e fomos fazendo a especialidade assim. [...] Ele entretanto acaboua especialidade, o internato complementar, nunca ganhou nada no hospital,portanto fez sempre sem ganhar e quando fez o exame saiu e nunca voltou...Já passou por vários lados, mas trabalha actualmente numa clínica de umamigo, tem uma clínica dentária e várias coisas, portanto ele trabalha lá demanhã e à tarde trabalha no consultório dele.

Adiando projectos

A prioridade à família e uma refreada ambição de carreira podem, poroutro lado, traduzir-se num adiamento de projectos sobretudo relacio-nados com a própria formação profissional. A primazia atribuída à vidafamiliar não implica que algumas mulheres deixem de acalentar projectose ambições profissionais, porém estes implicam ponderar a melhor solu-ção para que a sua concretização não condicione a disponibilidade con-siderada adequada às necessidades da vida familiar. Na verdade, a ambi-ção profissional pode pairar sobre as mulheres cuja estratégia de articulaçãotrabalho-família dá primazia à família, mas o valor que atribuem à dispo-nibilidade para a vida familiar traduz-se num adiamento das apostas maisousadas na carreira. A estratégia familiarista supõe assim que a mulher sóesteja, de facto, disponível para investir na actividade profissional e pro-jectos a esta associados quando, enfim, cumprir com os encargos fami-liares, nomeadamente com os encargos relativos aos cuidados e acom-panhamento dos filhos.

A situação de Ivone, geóloga e mãe de um rapaz e de uma rapariga,ilustra bem este traço da estratégia familiarista. Ivone exerce actividade nogabinete de Geologia de uma instituição pública, tendo a cargo a análisee apreciação de projectos de escavação de obras particulares, que acom-panha na fase de execução. Durante a licenciatura, foi docente do ensinosecundário após ter concluído o «número de cadeiras» exigidas pelo Mi-nistério da Educação. Com o tempo, porém, a autonomia proporcionadapor esta actividade económica deixou de justificar o exercício de umaprofissão que, afinal, não realizava Ivone.

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Eu gostei de dar aulas, mas achava que não era para mim o melhor. Nãoestava satisfeita, porque a Geologia nos currículos de liceu são cadeiras op-cionais. E já nos últimos anos e até, se calhar, por falta de conhecimentosanteriores das outras cadeiras, a Geologia não era muito procurada. [...] Eramescolas onde estiveram miúdos muito problemáticos, com uma educaçãoque deixava um bocadinho a desejar, e nós passávamos a maior parte dotempo, no fundo, a ensinar regras de boa educação, e não tanto o ensino.Portanto, se fosse só ensinar, eu até nem tinha saído. Mas não. Era de factoum desgaste imenso!

A incapacidade de se realizar profissionalmente através da docênciafoi, com efeito, o verdadeiro motivo para, já licenciada, agarrar a opor-tunidade de fazer um «estágio de aperfeiçoamento profissionalizante» nainstituição pública onde hoje trabalha. Desde então, teve início o per-curso profissional que tem vindo a trilhar: «Entro primeiro como pres-tação de serviços, geóloga, mas prestação de serviços...; depois então co-meço a fazer os contratos por concurso, portanto de Geóloga Estagiária,mas já da carreira; entro na carreira e depois, passado o trabalho de está-gio venho para Segunda Classe, passado um tempo em Primeira Classee, entretanto, estou a fazer concurso para Principal.» Ivone recorda só terabandonado definitivamente a docência quando celebrou o primeirocontracto, pois «tinha que ter uma forma de ter dinheiro: a minha ga-rantia estava ali!».

Todavia, a procura de uma via profissional mais adequada confron-tou-se com a prioridade que a família passou a representar com a chegadado primeiro filho, tinha Ivone trinta anos de idade: «chegou a determi-nada altura que era mais importante ter os miúdos e lhes dar o apoioque [...] lhes queria dar». A entrevistada sublinha que gosta de exercer asua profissão – «Nunca estive assim: ‘Não, o que eu gostava de fazer eraaquilo e tenho pena de não fazer’» – e admite não a ter seduzido a carreiraacadémica, pois «a investigação é difícil, tinha que estar ligada tambémao ensino ao nível da faculdade, e não queria nunca trabalhar em Geo-logia só em termos de gabinete, porque é um curso essencialmente prá-tico e era disso que eu gostava e aqui [neste emprego] vi essa compo-nente». Este desinteresse pela carreira académica não implicou, porém,que deixasse de apostar numa formação suplementar, mas fê-lo semprena medida do que considerou possível: «cursos mais curtos, portanto,que não me ocupam durante tanto tempo». Afinal, e à semelhança deoutras entrevistadas com estratégias familiaristas, confessa que o facto deexercer uma actividade enquadrada na função pública permite uma dis-ponibilidade para a família de outra forma pouco tangível.

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Eu mesmo que estivesse no privado, eu nunca iria optar por nunca teros miúdos, quer dizer, para mim era fundamental ter filhos... Eu iria de factopensar muito bem, porque do que eu gosto, de facto, é de estar com os miú-dos e de ter tempo para eles, e isso, se assim fosse, implicava eu não estar,mas estar alguém por mim. E isso eu não ficaria bem comigo própria.

Ainda assim, não deixa de exprimir o desejo de «voltar» à universidadepara se inscrever num mestrado cuja concretização vai sendo proteladapara «quando estiver um pouco mais liberta». Reconhecendo a prioridadeque atribui à família, não se deixa convencer totalmente por essas expec-tativas que ela própria gere e alimenta: «quando eu digo ‘liberta’, se calharnunca vou estar».

Talvez eu consiga voltar... Vou fazer novos cursos de pós-graduação...Gostava de fazer o mestrado, gostava. Vou tentando fazer e vou a vários cur-sos de formação, mas é tudo mais em termos do curso pós-graduação, cursosde especialização... São cursos mais curtos, portanto, que não me ocupamdurante tanto tempo. A ideia de facto é essa. Se eu, depois, entretanto pensarnisso, talvez um pouco mais tarde... quando ele [o marido] já possa dar umapoio diferente aos miúdos.

O adiamento dos projectos de formação não é alheio ao sentimentode se realizar menos profissionalmente que o seu marido, quatro anosmais novo. A verdade é que o forte desejo de maternidade de Ivone nãoencontrou eco no fraco entusiasmo de Henrique – que acumula a do-cência no ensino superior com a advocacia –, apesar de a entrevistadasublinhar a importância que o marido atribui aos filhos: «depois de teros filhos, eu acho que [ele] já não passava sem eles».

Profissionalmente eu penso que ele é mais realizado que eu. Talvez eume tenha realizado menos, mas por opção minha. Isso para mim é impor-tante, mas chegou a determinada altura que era mais importante ter os miú-dos... Para mim é importante ser mãe. Eu era incapaz de pensar manter ocasamento sem ter filhos, e também sempre discutimos isso, caso não pu-desse ter filhos adoptaríamos de certeza alguma criança.

Importa sobretudo sublinhar as implicações desta diferença de atitu-des face à parentalidade, como se as «opções» da articulação trabalho-fa-mília, privilegiando um domínio em detrimento do outro, apenas se co-locassem ao elemento feminino do casal – «eu tinha que optar» –,enquanto a prioridade à profissão do homem autoriza tanto a sua liber-

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tação dos encargos quotidianos com a família quanto a mobilização derecursos para os investimentos necessários à sua aposta na carreira. A di-ferença no que toca ao tempo despendido por cada um dos cônjugescom a sua actividade profissional – Ivone conta com uma carga horáriadiária de sete horas, enquanto Henrique trabalha onze horas por dia – é,assim, reveladora de uma divisão familiar do trabalho profissional pres-crita por normas de género que estão implícitas na própria prioridadeatribuída à família e à carreira do marido.

Ele foi avançando em termos de carreira, de faculdade e tudo mais. Elecomeçou a trabalhar como monitor na faculdade, de que nunca se desligou.Portanto, depois de monitor passou a assistente estagiário, depois fez o mes-trado... E portanto ele foi tirando também toda a preparação para ficar epara conseguir advogar, não é? Fez o exame da Ordem. Depois entretantoconseguiu trabalhar com uma outra pessoa conhecida um pouco num es-critório. Esteve em Bissau, na Faculdade de Direito de Bissau porque tinhaum acordo de cooperação com a faculdade. Foi para lá dois anos e depois,entretanto, nessa fase optámos «Vamos juntar algum dinheiro e vamos ad-quirir uma coisa para nós» e foi nessa altura que comprámos o escritórioque ele mantém até hoje... É muito difícil, é muito stressante, está sempreem stresse. A faculdade acho que o compensa noutra parte porque ele estásempre a estudar, está sempre a ler e gosta de ensinar também e vai escre-vendo, enfim, alguns artigos, também alguns livros que vai publicando, eeu acho que dessa maneira ele sente-se reconhecido.

Outras entrevistadas declaram abertamente ter rejeitado «fazer car-reira». Irene, psicóloga clínica num hospital público, justifica essa renúnciapelo benefício familiar que uma aposta desigual dos membros do casalna profissão acarreta – «acho que é bom um fazer carreira e o outro não»–, da mesma forma que defende a importância da família para o exercícioda sua profissão. O facto de considerar que, ao contrário do seu marido,«abdicou» de fazer carreira confere-lhe o papel de provedora de cuidadostendo em vista uma vida familiar «saudável» e «equilibrada», que, por suavez, considera fundamental ao próprio desempenho da profissão.

Acho que nesta minha profissão, se a pessoa não está bem do ponto devista pessoal e familiar, também não consegue ser capaz de estar disponívelpara ver os outros porque está preocupada ou está chateada, está péssima ounão-sei-o-quê. Portanto, não está bem para ajudar as outras pessoas, não é?E eu penso que isso na minha vida tem sido uma coisa muito importante:a minha vida lá fora ser saudável, ser equilibrada...

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Sem preencher os requisitos necessários para frequentar o curso – Bio-logia – que lhe interessava na adolescência, Irene acabaria por ingressarem Psicologia, aconselhada por terceiros: «achei que devia experimentar».Admite só se ter sentido realmente entrosada no terceiro ano desta licen-ciatura: «comecei a achar imensa graça, empenhei-me imenso e fazia-meimenso sentido o que estudava». Hoje exerce a profissão de psicólogacom gosto – «gosto imenso daquilo que faço» – e com «a maior digni-dade que posso», embora confesse que as oportunidades surgiram apóster sido convidada – quando terminou o estágio profissional – pelos mé-dicos do hospital, onde ainda hoje trabalha, a ficar. «Numa altura emque não havia psicólogos nos hospitais», aceitou o desafio. Da mesmaforma que foi incentivada pelos seus colegas a integrar a equipa da ins-tituição hospitalar onde exerce actividade, Irene tem também sido desa-fiada a investir mais ainda na sua formação académica. Estes são, con-tudo, projectos adiados em virtude de uma preocupação em salvaguardara disponibilidade para a família.

A minha profissão, faço-a com a maior dignidade que posso e gostoimenso daquilo que faço... Foi surgindo porque eu fiz estágio numa alturaem que não havia psicólogos no hospital, nos hospitais, e comecei a ver me-ninos da neurologia, que tinham doenças que na altura os obrigavam a terinternamentos muito prolongados e ficavam muito mal e ficavam muito in-chados e muito deprimidos. E aquilo era uma coisa horrível! Eu então co-mecei a seguir do ponto de vista psicológico essas crianças, e tive uma muitoboa relação com os médicos dessa equipa da neurologia, e antes de eu ter-minar o estágio convidaram-me para eu vir para cá, «Se eu não gostava deabrir uma consulta de psicologia ligada à neurologia?». E, pronto, eu acheio máximo, era uma coisa que eu gostava mesmo de fazer, era uma coisanova, foi assim um Bom enorme que me deram. Não sabia, mas eu adoravaisto, tinha muitos miúdos às minhas costas, e já viu o que era eu ir-me em-bora? [...] Agora eu há imensos anos que me picam para fazer mestrado,para fazer doutoramento na minha faculdade, e sempre fui adiando, porquesempre pus em primeiro lugar o meu filho e a minha família, porque eutinha que estar disponível. Porque entendia que não o podia ir buscar ao co-légio nem às sete, nem às oito e tinha que ir às quatro e porque... Está a ver?Isso sempre foi o meu lema.

Casada com um engenheiro civil, director de empresa, Irene corrige--se quando afirma que o seu marido fez «mais carreira»: «reconheço que,em termos de carreira, o meu marido fez carreira e que eu não fiz carreira».Quando casaram, Horácio trabalhava já como engenheiro na empresa

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de construção civil que hoje dirige. A disponibilidade que a sua profissãodesde sempre exigiu dificilmente pode ser comparada à profissão deIrene. A entrevistada recorda as ausências prolongadas do marido no iní-cio da vida conjugal, quando era solicitado a pretexto de obras de cons-trução nas mais diversas regiões do país: «quando era uma escola secun-dária ou um centro de saúde, pronto, tinha que ficar lá durante a semanae só vinha aos fins-de-semana, e estava cá para reuniões à segunda-feira».Actualmente, a posição de director de empresa implica uma carga horária– onze horas por dia, sábado incluído – fortemente contrastante com onúmero de horas que Irene despende na sua actividade profissional. Estecontraste é, desde logo, elucidativo de que só Irene abdicou de umaaposta forte na carreira: «Em termos profissionais, ele não abdicou decoisa nenhuma [...], mas isso foi uma opção minha.»

«Carreira hospitalar, para quê?»

Para além da rejeição das responsabilidades profissionais que coloca-riam em causa a articulação procurada através de uma estratégia que dáprioridade à família, do adiamento de projectos de formação tendo emvista a progressão na carreira, ou de uma recusa em «fazer carreira», fami-liaristas há que desvalorizam a própria noção de «carreira profissional» e,particularmente, o estatuto reconhecido aos lugares de chefia e direcção.É o caso de Filipa. Médica e mãe de um rapaz e de uma rapariga, estaentrevistada exerce a profissão que sempre desejou, sublinhando o apoioe o incentivo que recebeu dos pais. Filha de pequeno comerciante e do-méstica, reconhece a ausência de quaisquer constrangimentos económi-cos na escolha de uma actividade profissional muito exigente em quali-ficações académicas.

Eu sempre quis ser médica, sempre fui boa aluna e desde pequena queeu falei que queria ir para Medicina, e os meus pais sempre apostaram nisso.Sempre me incentivaram: se eu quisesse ir para a faculdade podia contarcom eles. Deram-me as condições. Também nós nunca tivemos dificuldadesfinanceiras em casa, portanto sempre foi uma coisa fácil, não é? [...] Nessaaltura eu tive que comprar muitos livros e eu nunca tive problemas em com-prar livros. Eram tudo livros ingleses, e eram muito caros.

Filipa terminou a sua formação em Medicina desenvolvendo a «es-pecialidade» no hospital público onde permaneceu até aos trinta e cincoanos de idade. Desabafa que «estava farta do Estado até à raiz dos cabelos,trabalhava que nem uma louca...». Um ano após ter casado com Filipe,

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O primado da família e a prioridade da carreira do homem

tinha então vinte e oito anos de idade, nasceu o primeiro filho do casal:«casei-me com vinte e sete anos e não queria ter os filhos muito tarde».A partir de então, as exigências da vida familiar foram progressivamentedominando a ordem de prioridades desta mulher, que «sempre» consi-derou seu dever «estar mais em casa e acompanhar os filhos». Trocouentão o lugar no hospital público pela clínica privada onde ainda hojeexerce actividade, devido precisamente às «condições de trabalho», queasseguravam a disponibilidade desejada para a família.

Eu sempre achei que deveria estar mais em casa e acompanhar os filhos.Não tenho necessidades financeiras de precisar de trabalhar mais fora dohospital para além das quarenta horas. Portanto, outra das coisas que me fi-zeram sair do Estado foi estar muito mais disponível para eles. Não é que euesteja lá em casa a apaparicá-los, mas pronto, estou presente. Se for necessárioestou ali, não é? Portanto, acho que isso é importante, os filhos não viremda escola e estarem em casa até à noite sozinhos... Se pudesse mudar para ohorário de trinta e cinco horas em que eu ficaria com mais horas livres porsemana, passaria de quarenta para trinta e cinco. Fazia isso, fazia isso. Nãoposso fazer porque eu estou inserida num grupo de médicos cujo funciona-mento desta unidade e do serviço da parte do internamento da medicina daenfermaria precisa do meu horário das quarenta horas.

A carga horária de Filipa, que por vontade sua seria menor, é contudobastante inferior à de Henrique, que exerce consultoria em Gestão porconta própria dez horas por dia, incluindo os sábados. Esta discrepânciaa nível da carga horária de trabalho dos cônjuges é elucidativa da priori-dade que a família assume junto desta mulher, prioridade essa que en-contra o seu revés na primazia que o homem confere à sua actividadeprofissional e a uma formação académica – por exemplo, um mestradoem Gestão de Unidades Hospitalares – em que, sistematicamente, vaiapostando. O exercício de uma actividade por conta própria permitiuque Henrique, hoje com a sua própria empresa de consultoria, pudessetrabalhar, logo desde o início da vida conjugal, a partir de casa.

O meu marido trabalha muito em casa, porque ao fim e ao cabo o escri-tório dele é em casa. Ele tem uma empresa. Ele também já tem quarenta etrês anos e já conhece muita gente e, portanto, as pessoas sabem. Ele durantemuito tempo trabalhou especificamente para algumas empresas de consul-toria que lhe faziam um contrato para certo tipo de trabalhos, mas ele eraindependente, não como trabalhador dessas empresas, está a perceber? [...]Só nos inícios dos trabalhos, quando ele começa um novo trabalho, é queele tem que ir para a empresa e está lá durante umas semanas a ver como é

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que aquilo funciona e para montar lá o esquema, mas ele trabalha muitoem casa. Ele tem experiências de muitas coisas porque já trabalhou em mui-tas fábricas disto ou daquilo.

Tal como nos restantes casais com trajectórias de hipergamia prioritária,é a mulher quem interioriza como um dever a articulação entre as exi-gências da profissão e os encargos familiares. Assim se explica tanto o re-ceio de que uma excessiva aposta na carreira comprometa as capacidadesde articulação – «acho que depois acabamos por não fazer bem nem umacoisa nem outra» –, quanto a denegação da carreira profissional como«projecto de vida», ou não se construísse a feminilidade sobretudo emfusão com a família.

Ou se é solteiro e quer-se fazer uma carreira e faz-se a carreira, ou se écasado e se tem filhos. Acho que pensar numa carreira... não sei, acho quedepois acabamos por não fazer nem uma coisa, nem outra. Há pessoas comcarreiras com êxito, mas depois se calhar faltava mais qualquer coisa. Por-tanto, a carreira nunca foi nenhum projecto de vida para mim. Se fosse so-zinha, era capaz até de o fazer, de ter pensado de outra maneira, mas dá--me ideia que não. Eu prezo muito a minha liberdade, gosto muito domeu tempo livre e, portanto, acho que uma carreira, às vezes, já implicapouco tempo livre.

Ora, a recusa da «ambição» ou da assunção da carreira profissionalcomo «projecto de vida» reflecte-se numa indiferença no que respeita àcarreira profissional – «a carreira hospitalar, para mim, não tem qualquersignificado» – e depreciação face aos lugares de chefia – «sempre acheique aquilo não valia nada» – que motivam muitos dos seus colegas ecujos requisitos considera pouco transparentes – «a pessoa sabe queaquela pessoa é muito mais valiosa e que trabalha muito mais do que aoutra que está a denegrir». Filipa acrescenta, em jeito de provocação edesabafo, que «essa coisa de dizer que sou chefe de serviço ou directorde serviço [...] aqui em Portugal nós não somos chefes de nada». À rea-lização com a carreira contrapõe o gosto pelo trabalho e a satisfação de«ir para casa descansada a achar que fiz as coisas como deviam ser».

Eu não sou muito ambiciosa em termos de carreira. Eu gosto de trabalhare gosto daquilo que faço, mas eu nunca fui muito ambiciosa do tipo de que-rer ser directora, chefiar isto ou aquilo... Eu gosto de trabalhar e de fazeraquilo de que gosto... Isso chega-me perfeitamente! Nunca pretendi ser muitoconhecida. Não tenho muitas ambições... Sinto-me realizada! Nunca pretendi

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O primado da família e a prioridade da carreira do homem

ser chefe de nada... Os chefes não mandam nada, portanto acho que aquilonão serve para nada [riso]. [...] Eu assisti a montes de exames para chefes deserviço, director de serviço, em que as pessoas, às vezes, à frente de toda agente são ali ridicularizadas quase e, às vezes, de uma forma indigna. [...] É como eu às vezes digo, com quarenta e tal anos, já não somos nenhunsmeninos para estarmos ali a sermos expostos em público, às vezes a ouvircertas coisas como eu já ouvi muita gente falar.

O critério da «estabilidade» e «a carreira bem feita»

A estratégia familiarista pode também significar a eleição da «estabili-dade» oferecida por determinadas posições – designadamente num qua-dro da função pública – em detrimento da realização porventura obtidaatravés de uma actividade profissional que, tão-somente, proporciona aefectiva aplicação dos saberes e competências resultantes da aposta numaformação superior. A título de exemplo, Felícia, técnica superior da fun-ção pública e licenciada em Relações Internacionais, admite a falta deincentivo no exercício de uma profissão associada a uma carreira queconsidera pouco exigente: «a minha carreira não é uma carreira que exijagrande dedicação. Aliás, gostava até que exigisse mais». Mas a verdade éque a aposta na vida profissional está longe de ter precedência sobre afamília e, particularmente, a maternidade: «Acabei o curso já casada e noano seguinte engravidei e tive os filhos, que são a minha prioridade.» JáFernando, marido de Felícia, pretendia seguir os passos do pai. Editorcom empresa própria sediada em Espanha, o sogro da entrevistada desa-fiou o filho a ir trabalhar consigo. A proposta que este aceitou implicavaapressar a decisão de casamento antes de o casal se estabelecer em Espa-nha, onde viria a permanecer cinco anos. Foi durante este período quenasceram os dois filhos a quem Felícia dedicou todo o seu tempo nosprimeiros anos da vida conjugal, precisamente em virtude da possibili-dade de suspensão do exercício da actividade profissional até retornar aPortugal.

Apesar da compatível situação financeira que os rendimentos do ma-rido desde sempre proporcionaram ao casal, a posição profissional repre-senta para Felícia a sua própria «estabilidade económica», o que explicaque a entrevistada não tenha procurado emprego em Espanha, a fim deconservar o seu lugar na função pública em Portugal. Na verdade, a preo-cupação com a estabilidade financeira e o receio de «uma coisa que nãoé certa», tal como «um ordenadão numa empresa privada», foram-lhe in-cutidos desde cedo pelos pais, ambos funcionários públicos, a quem pa-radoxalmente critica a ausência de orientação no sentido de uma forma-

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ção superior com «boa saída profissional» – ou seja, com retorno econó-mico – e exclusiva preocupação com «o lado do status» associado à for-mação universitária.

É isso que eu só talvez critique nos meus pais. Por um lado, eles queriamque eu tirasse um curso, mas deram-me liberdade total para escolher aquiloque eu quisesse. E eu, talvez, com os meus filhos vou ser mais pragmática. Euacho que os meus pais quiseram mais ver o lado do status, um filho com umcurso superior, e não tanto o lado económico. E eu claro que também nãovou negar que gostava de dizer que «o meu filho é engenheiro e está muitobem», também sei que vou gostar de dizer isso, tenho que ser franca. Mas secalhar prefiro um filho sem um curso superior, mas com um bom nível eco-nómico, como o meu marido, do que se calhar o contrário, desde que sejaboa pessoa. [...] Se pudermos conciliar as duas coisas, aquilo de que gostamose uma profissão que tenha uma boa saída profissional é óptimo, senão talvezainda privilegiar primeiro uma profissão que tenha uma boa saída...

Nem por isso deixa, enfim, de sublinhar que o exercício de uma pro-fissão é «muito importante», porquanto não apenas proporciona «auto-nomia económica no sentido de me valorizar», mas também o contactosocial quotidiano, fundamental para «abrir os horizontes».

Só não continuei a trabalhar [em Espanha] porque o meu emprego es-tava aqui, não queria deixar a função pública. [...] Eu a única coisa que sentifalta de não trabalhar foi a minha independência económica e de ter a cabeçaocupada noutros assuntos. Foi um pouco mais por isso. Eu não gostei denão trabalhar, mas não há dúvida nenhuma de que foi um período útil paraa criação dos filhos, não é? Porque eu gosto [de trabalhar]. Para já, deixei desaber conviver com as pessoas. Era terrível! [...] Ter uma profissão foi muitoimportante, pela autonomia económica no sentido de me valorizar... Aju-dou-me a abrir os horizontes, porque todos os dias são diferentes aqui, co-nheço pessoas diferentes e convivo muito, porque tenho a parte das relaçõespúblicas e gosto muito, muito, de conhecer pessoas novas, conhecer as ex-periências de vida, os seus pontos de vista. Acho que há muito a aprender,não é?

O critério da «estabilidade» também se revelou decisivo para Manuela.Licenciada em Geologia Aplicada à Construção, esta entrevistada acaboupor optar pela docência no ensino secundário. Manuela gostaria de terenveredado por Medicina, mas alega que não conseguiria enfrentar asagruras do ofício: «Também gostava de Medicina, mas depois quandovia o sangue ficava toda tonta e então...» Foi essa a razão para ter concre-

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O primado da família e a prioridade da carreira do homem

tizado o desejo do pai, alta patente no Governo do Ultramar: «O meupai queria que eu tirasse o curso de Geologia.» De resto, desabafa que avia da docência, onde foi «parar», não resultou propriamente de uma es-colha, tendo-se tratado, na verdade, do último recurso de quem, sem odesejo de prosseguir os estudos e enveredar pela carreira académica, sen-tiu não haver outra opção numa área então dominada pela Engenharia.

Quando fui para Geologia, não era muito para ir para professora. MasGeologia naquela altura... Até os engenheiros geólogos, nas construções deedifícios, não chamavam os geólogos, como devia ser. Eram os engenheiros,portanto. O geólogos, uns ficavam como assistentes na faculdade e os outrosiam para o ensino. [...] Fui parar ao ensino, e já que cá estou vou fazer o me-lhor que posso.

Este sentimento de resignação face a uma formação e a uma profissãoque, afinal, não resultaram propriamente de uma escolha não se tradu-ziu, todavia, em frustração, pois a actividade profissional representa so-bretudo a garantia de uma autonomia financeira, e a licenciatura é essen-cialmente interpretada como ferramenta decisiva para encontrartrabalho. É, com efeito, prevalecente uma instrumentalização da forma-ção superior, que assegura as «possibilidades de arranjar emprego parasustentar os filhos».

A gente pretende estudar para obter conhecimentos para mais tarde, sequiser formar família, ter possibilidades de arranjar um emprego, não é? Jánaquela altura uma pessoa que não tivesse determinados estudos era maisdifícil, agora está mais difícil ainda, mesmo com licenciaturas e tudo andam,às vezes, aí aflitos para arranjar emprego, não é? Mas já naquela altura osnossos pais diziam-nos «meninos, têm que estudar porque depois quandocrescerem e forem constituir família têm que arranjar emprego para sustentaros filhos».

Mas não seria na expectativa de um retorno financeiro que Manuelairia encontrar o pretexto para, concluída a licenciatura, apostar mais nasua formação académica. A actividade profissional que exerce tem,quando muito, uma função terapêutica, permitindo «a cabeça estar are-jada» para quem também não gosta de se descobrir circunscrita ao uni-verso doméstico.

Na altura não fiz mais nada, mestrado ou isso. E depois agora... Eu tivecolegas que fizeram e que ainda estão a fazer, mas agora já não me apetece

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fazer mais nada. Pode-me apetecer é fazer outras coisas diferentes. E atéquando me reformar tenho que arranjar alguma coisa para fazer. Ainda nãosei bem, porque ficar sozinha em casa, a pessoa já não se habitua muito eaté para contactar com outros... Eu acho que até faz bem à cabeça, porquequando uma pessoa fica em casa começa... Eu, para mim é importante,tenho que fazer qualquer coisa, só os trabalhinhos aqui de casa não dá. Eualiás quando acabo as aulas e entro em férias os primeiros quinze dias andoassim meia... acho que falta qualquer coisa e ando nervosa, fico ansiosa...

Se o critério da «estabilidade» económica determinou o rumo que acarreira profissional de Manuela tomou, não se estranha que a entrevis-tada contraponha o gosto pela profissão e a realização profissional domarido ao sentimento de adaptação associado à sua própria experiência:«sou uma pessoa que me adaptei àquilo que estava a fazer». Manuelatende pacientes no seu próprio consultório e, simultaneamente, em clí-nicas privadas. De acordo com Manuela, o prazer que o marido retirada actividade profissional evidencia-se numa elevada carga horária de tra-balho. Com efeito, ainda que o exercício da docência no ensino secun-dário não se esgote nas trinta e cinco horas de aulas por semana, o tempoque Manuela destina à sua profissão é bastante inferior às onze horasdiárias, sábados incluídos, que Manuel consagra às suas consultas.

Ele é mais realizado, nem que seja porque tem um negócio próprio. [...]Eu acho que ele está a fazer aquilo que gosta. Mais do que eu! Eu sou umapessoa que me adaptei àquilo que estava a fazer, e ele, à partida, está a fazeraquilo que gosta, depois dentro da especialidade ainda pode escolher aquiloque mais gosta. Ele dedica-se mais à parte do fígado, embora trabalhe emtudo, mas depois é mais especialidade nos problemas de fígado, etc. Por-tanto, eu acho que ele tem mais é que estar realizado.

A este respeito, Felícia é mais precisa do que Manuela quando com-para a sua realização profissional com a do marido, a quem elogia a au-dácia e o «empreendedorismo», pois já ela se considera «incapaz de ar-riscar economicamente como ele arrisca». A «pessoa muito independente,muito criativa, muito dinamizadora» que exalta em Fernando contrastacom a sua necessidade de «estabilidade económica», ou seja, de um con-texto profissional que a isente dos riscos financeiros de um emprego «in-certo».

Admiro o Fernando! [...] Eu valorizo muito a vida profissional dele, por-que acho que ele se revelou uma pessoa muito independente, muito criativa,

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muito dinamizadora, pronto. Valorizo-o por isso. [...] Eu não sou nada em-preendedora nesse sentido, prefiro o seguro... Eu sou dinâmica noutro sen-tido, desde que não envolva risco para a minha estabilidade.

Esta percepção da diferença entre ela própria e o marido remete paraa relação dicotómica entre a autonomia, associada ao estereótipo dohomem, e o «ser situacional», associado ao estereótipo da mulher (Amân-cio 1994). Com efeito, a «dinâmica» de Felícia depende da «estabilidade»que o contexto profissional proporciona. Todavia, nem por isso a entre-vistada confunde a realização pessoal através da profissão com a «estabi-lidade económica» que o seu emprego na função pública proporciona.A «sensação» de não explorar, na profissão que exerce, as competênciasadquiridas na licenciatura contribui, de forma decisiva, para o défice derealização através da profissão. Considera-se «realizada profissional-mente» simplesmente por ter alcançado o lugar pretendido e conseguidouma «carreira bem feita», mas sente faltar-lhe o gosto pela actividadeque exerce, gosto esse que reconhece em Fernando e que, portanto, jus-tifica que este dedique o dobro do tempo – dez horas diárias – à activi-dade profissional.

Eu tenho a estabilidade económica e não é tanto nesse sentido que nãosou realizada, mas é no da realização pessoal. Tenho a sensação de que o cursode Relações Internacionais que aqui mal o aplico, tenho a sensação de queaqui não me realizo profissionalmente no sentido em que tenho consciênciade que não trabalho o suficiente para aquilo que ganho. [...] Eu estou realizadaprofissionalmente no sentido em que atingi a categoria que quero, estou notopo da carreira..., agora, no sentido de fazer aquilo que eu gosto, não.

«Ser engenheira não é a minha verdadeira vocação»

Mãe de duas raparigas, Leonor é engenheira civil e exerce a sua activi-dade no departamento de fiscalização de obras de um organismo do Es-tado. Lamenta não exercer a actividade de médica, profissão para a qualsempre sentiu «vocação». Apesar de ter tido o êxito escolar necessário parao acesso ao curso de Medicina em Coimbra, a entrevistada teve de res-peitar a decisão dos pais, que não a autorizaram a sair de casa para estudarnaquela cidade. Sem conseguir, após uma derradeira tentativa, a entradaem Medicina na capital, acabou por enveredar pelo curso de EngenhariaCivil. Ainda que Leonor tente justificar a permanência em Lisboa, juntodos pais, ora com a recíproca dependência emocional – «eu era muitoagarrada aos meus pais» –, ora com as crescentes dificuldades de acesso a

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Medicina em Lisboa, a sua «escolha» não pode ser dissociada da autori-dade exercida pelo pai, que a orientou para a mesma formação que a sua.

Eu tinha média de dezoito e qualquer coisa, só que no ano em que eupretendi entrar em Lisboa só havia vaga em Coimbra, a média em Lisboaera de dezanove. [...] Por mim tinha ido, mas [os meus pais] disseram quenão, e o que eles diziam era o que se fazia, não fui. Fiz o tal ano cívico, aque-las coisas todas que existiam na altura, e aumentei a nota para dezanove. Es-tive um ano a trabalhar e depois, quando vou para entrar em Medicina emLisboa, a média passou de dezanove para dezanove e meio, e eu tinha deza-nove! Mais uma vez, tinha entrado em Coimbra. Outra vez, não fui. Nãopodia esperar mais, porque eu não podia estar anos assim nestas brincadeiras,como tinha uma média muito alta de Ciências e de Matemática, o meu paidisse «Vai para engenharia, eu ajudo-te». Portanto, foi assim o meu curso. Osmeus pais hoje reconhecem e estão arrependidos de não me terem deixadoir, porque eu acho que tenho é vocação para Medicina, aliás o meu hobby éestudar Medicina. Mas pronto, tirei Engenharia e hoje faço-o com muitogosto. Mas ser engenheira não é a minha verdadeira vocação.

No plano profissional, Leonor seguiu então as pegadas do pai, enge-nheiro civil e técnico superior na função pública. Três anos após o estágionum atelier e a docência de Matemática no ensino secundário, aceitoucontrato no departamento onde actualmente trabalha. Antes da sua con-tratação, porém, confrontou-se com a discriminação sexual num universoprofissional dominado por homens. Perante a possibilidade de um en-quadramento na função pública – à semelhança de outras entrevistadascom estratégias familiaristas –, deu por concluídos os seus esforços, decli-nando as oportunidades que entretanto surgiram no sector privado.

Eu concorri a muitas empresas, mas só pelo facto de ser mulher, a maiorparte das empresas barravam-me logo o caminho à entrada. Não queriam sabermais nada, não queriam saber se eu tinha tirado o curso com vinte ou se comdez: «É mulher, não vale a pena inscrever-se!» Era quase explícito! Eu inscrevi--me em quase todas as empresas e só fui chamada para duas, está a ver? Enessas duas, quando fui chamada, já não me interessava, porque já tinha en-trado no quadro, porque realmente estar no quadro na função pública...

Foi já no seu actual contexto profissional, a pretexto de uma acção deformação, que conheceu Eduardo. Também ele engenheiro civil, o maridode Leonor é filho de um director de departamento de um organismo es-tatal na dependência daquele onde ela trabalha. Eduardo, porém, pôdesempre optar por trabalhar «em função liberal» como consultor. Dez anos

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O primado da família e a prioridade da carreira do homem

mais velho que a entrevistada, trabalhava já no seu próprio atelier quandose conheceram, tinha então ela vinte e oito anos de idade.

Convicta de que a sua profissão não resulta de uma primeira escolha,Leonor confessa-se «estagnada» na carreira, um sentimento resultante dainexistência de oportunidades no departamento à progressão nos estatu-tos da função pública. «A minha ideia não era estar onde estou», desa-bafa. O confronto entre as aspirações e os seus esforços gorados contri-buiu assim na elaboração de uma estratégia de articulação trabalho-famíliaque remete para segundo plano a vida profissional, privilegiando paula-tinamente a entrevistada o empenho na vida familiar.

Aqui só abrem quando há vagas. E se não há vagas, não abrem, e entãopassamos a vida nisto. Há quase vinte anos que estou estagnada. A minhaideia não era estar onde estou, mas pronto! Se não chegar a minha vez, tam-bém já não me preocupa muito. É mais ou menos essa ideia. Agora, tambémjá não é essa a minha luta, não é essa a minha luta. Neste momento, estoucom quarenta e quatro anos, e acho que já não vale a pena fazer nada disso,está a ver? Profissionalmente não me vou valorizar em muito, vou perdertempo para estar com as pessoas que quero para fazer isso e não vou ter gran-des vantagens nisso, nem a nível aqui de serviço, nem a outro nível... Agorasinto que tenho que dar às minhas filhas a atenção que elas precisam. Paraestar com elas e para os estudos e isso tudo, tenho que estar livre, e se fizesseisso tudo, se calhar não estava. Há que fazer opções.

Uma sucessão de factores que se prendem com os próprios mecanis-mos da desigualdade de género condicionou as escolhas desta mulher – «há que fazer opções» –, escolhas essas com que, logicamente, Eduardonão foi confrontado, pois a carreira profissional do homem assume, nestequadro relacional, primazia sobre a da mulher. Resta referir que, à seme-lhança de outras entrevistadas com estratégias familiaristas, Leonor encon-tra sobretudo razões terapêuticas para o exercício da actividade profis-sional: «é bom ter a cabeça ocupada». Essas razões, no entanto, nãodeixam de ser questionadas à luz da visão racionalista de um homemque, reduzindo o valor do trabalho de Leonor ao salário – inferior aoseu –, recorda os custos financeiros dos substitutos funcionais da mulherno que respeita aos encargos com a família.

Porque repare, uma pessoa quando tem filhos... a escola, os infantários,tudo isso é tanto dinheiro que uma pessoa, se calhar, se pensar bem o queganha aqui praticamente não dá para pagar as despesas todas inerentes aofilho, não é? Pronto, eu pago a escola, mais o infantário, mais o comer, mais

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a empregada para os ir buscar, para os ir trazer e não sei o quê, e o que euganho aqui não dá para isto tudo. Portanto, se eu não tivesse empregadapodia tê-los, ir buscá-los, está a ver? Gerir o dinheiro de outra maneira. Por-tanto, ele se calhar até preferia que eu não trabalhasse porque o que eu ganhonão vem contribuir em nada. Pago algumas despesas, mas se não trabalhassetambém não as tinha, portanto acaba por ser... Mas acho que é essencialexercer a profissão, como qualquer pessoa, é bom ter a cabeça ocupada e avida ocupada, e não ser só com problemas de casa.

A possibilidade de «organizar» e «programar a vida»

Na lógica da estratégia familiarista, o exercício da actividade profissionalnão pode colocar entraves à organização da vida familiar, à qual a mulheratribui primazia. A este respeito, atente-se ao percurso de Joana. Mãe deuma rapariga, Joana é médica num hospital público. Sublinha que a trans-ferência da clínica, onde começou por trabalhar logo após ter feito o in-ternato na especialidade, para um hospital do Estado ficou a dever-se aocarácter menos «enriquecedor» daquele contexto profissional e, sobretudo,à natureza de uma actividade profissional demasiado intensa para quempretende assegurar, acima de tudo, uma forte disponibilidade para a família.Na clínica, as exigências de uma carga horária pesada revelaram-se incom-patíveis com os encargos de «organizar» e «programar a vida» familiar.

Fiz o internato na especialidade. Depois fui para a clínica, onde estivecerca de dois anos e meio, e depois voltei para cá, porque não gostei do tipode actividade, porque era um tipo de actividade que, para já, em termos pro-fissionais não me enriqueceu tanto, porque eram só vendedores. E depoisera uma situação que não conseguia organizar a minha vida. Eu tinha só ur-gências de doze horas, mas depois tínhamos brigadas que acabavam por serquase todos os fins-de-semana e tínhamos os fins-de-semana, quase todos,ocupados. Conclusão, não conseguíamos programar a vida, e isso acaboupor ser mau, porque eu, dentro do possível, queria ter um fim-de-semanacom a família e queria programar os meus tempos livres com a minha filhotaque precisa do nosso convívio... Portanto acabei por sair de lá.

As escolhas que estão na origem da restrição da actividade profissionalao limite tolerado para salvaguardar a disponibilidade para a vida familiarnão resultam, assim, do refreamento de uma ambição profissional, ou daabdicação de uma realização pessoal através da aposta numa carreira. Defacto, Joana assume a opção que tomou – o retorno a uma actividade hos-pitalar que exige menos de si –, reconhecendo, aliás, ter contado com oincentivo e o apoio logístico do marido, sobretudo nos cuidados à criança.

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O primado da família e a prioridade da carreira do homem

Entretanto quando estive na clínica tirei um curso também, que foi omeu marido que me incentivou, um curso de Administração Hospitalar naEscola Nacional de Saúde Pública. Foi um ano em que ele deu imenso apoioà minha filha, porque eu trabalhava de manhã e tinha aulas à tarde, chegavaa casa à noite... Foram dois anos assim.

Deste modo, o percurso profissional de João contrasta fortementecom o de Joana, para quem a ascensão social do marido é motivo de ad-miração e orgulho. Na verdade, foi a própria prioridade de Joana confe-rida à família que permitiu a concretização dos objectivos profissionaisde João, em particular o seu «objectivo» de se «licenciar em Direito»:«Quando o conheci... tinha só o antigo quinto ano da comercial.»

A morte do pai, tinha João quatro anos de idade, contribui para quecomeçasse a trabalhar logo desde criança, com onze anos de idade, tor-nando-lhe a «vida muito difícil». Filho mais novo de pais com um idadeavançada, este homem «tomou a responsabilidade da mãe», o que lhecolocou entraves à prossecução dos estudos. Joana considera que a vidado marido ainda se «complicou» mais com o fim do primeiro casamento,quando a sua ex-mulher passou a estar financeiramente a seu cargo.

Praticamente era ele que sustentava a família, o meu marido trabalhavade noite e de dia. Foi uma vida muito difícil e ele não tinha estabilidade paraseguir os estudos. Porque entretanto ele era para continuar os estudos masteve que ir para a tropa, depois da tropa foi o 25 de Abril e ficou desempre-gado e entretanto depois casou-se e continuou a ter que dar apoio à mãe eà mulher, depois nasceu a filhota... Foi uma vida muito complicada! Elenunca conseguiu ir mais além.

«Muito conflituosa», a primeira relação conjugal jamais teria permi-tido a este homem concretizar as ambições de carreira que só o casa-mento com Joana, menos ambiciosa do que o marido, viria possibilitar:«eu não pus a fasquia muito alta, porque optei por ter uma vida familiar».Oito anos mais nova, a entrevistada fazia o internato quando conheceuo marido, empregado na empresa de mediação imobiliária à qual Joanarecorreu quando decidiu investir o montante resultante da alienação dopatrimónio agrícola dos pais.

O objectivo dele, e ele tem imenso jeito, era licenciar-se em Direito. Foium conhecimento fluido, quer dizer, ele mostrou-me a casa, achei-o simpá-tico, mas nada de especial. Depois com o contacto mais continuado, o pro-cesso ainda demorou algum tempo até se fazer o contrato, aliás até se fazer

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a escritura. Entretanto como a empresa era ali próxima eu acabava por ir nvezes pedir para ir mostrar a casa a amigas, e depois ele acabava por me te-lefonar. Houve uma vez que me convidou para ir tomar um café, depois co-meçámos a ter uma certa afinidade e, pronto, acabámos por começar a na-morar. Ele estava a sair do segundo casamento, estava ainda na fase dedivórcio nessa altura.

O casamento com Joana permitiu que João concluísse a licenciaturaem Direito e se concentrasse na carreira, o que em lugar de se ter tradu-zido numa atenuação da carga horária de trabalho implicou simples-mente uma nova gestão do tempo dedicado à actividade profissional.João tem, de facto, uma carga horária de onze horas nos dias úteis, reser-vando os fins-de-semana para se preparar para o exame da Ordem dosAdvogados. A sua carga horária de trabalho é, assim, muito superior àsquarenta horas semanais que Joana dedica à profissão. A entrevistada nãodeixa, afinal, de reconhecer ter sido claramente ela quem mais abdicou.

Acho que a fasquia dele é mais alta, mas ele consegue atingi-la. Como lhedisse eu não pus a fasquia muito alta, porque optei por ter uma vida familiar...Quando começámos a ter uma vida mais estável, eu insisti com o meu maridopara se ir inscrever no ensino secundário. Depois entrou para a Faculdade Clás-sica, não foi para nenhuma privada... Estudou de noite, tirou o curso de noite,a trabalhar. Portanto, acabei por ser eu a dar mais apoio... Quando eu estavagrávida, ele estava no segundo ano de Direito. Isto foi em três anos que eleconseguiu entrar para a faculdade. [...] Ele trabalhou na função pública, pri-meiro como motorista da Câmara, depois como fiscal, e agora como jurista.[...] Ele agora está reformado, porque entretanto começou a trabalhar aos onze,começou a descontar aos catorze, depois juntou as duas coisas... Ele era paracontinuar como jurista, mas agora está a tirar o estágio de advocacia. [...] Elejá está num escritório de um amigo dele que foi professor dele na faculdade eque ficámos amigos... já está a fazer o estágio e ao mesmo tempo conseguiuum contrato de avença com ele, porque gostaram muito do trabalho dele nazona de reabilitação... A história de fazer estes treze meses para a Ordem vaiser tudo à noite, vai voltar a estudar à noite que é para ter esta disponibilidade.Mas a minha filha já está mais autónoma...

Desigualdade e diferenciação na divisão do trabalho doméstico

Nos casais com trajectórias de hipergamia prioritária, a mulher procurauma disponibilidade, tanto quanto possível, aproximada a uma total en-

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O primado da família e a prioridade da carreira do homem

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trega à vida familiar e, sobretudo, aos cuidados e acompanhamento dosfilhos. Reduz assim a sua carga horária de trabalho, mas jamais questio-nando o significado e o valor do exercício de uma actividade profissional.O seu esforço para conciliar o trabalho profissional e a vida familiar é proporcional ao desejo de uma descendência que ultrapassa quase sem-pre as possibilidades logísticas de uma situação familiar de duplo em-prego. Por outro lado, esse desejo reflecte a fusão da mulher com a ma-ternidade e a família, fusão essa consubstanciada no controlo que elaexerce sobre a gestão da vida familiar – desde os cuidados e acompanha-mento da criança à execução e organização das tarefas domésticas – e,portanto, numa divisão sexual do trabalho amplamente diferenciada eassimétrica que liberta o homem para os seus projectos e ambições pro-fissionais. Com efeito, ainda que as entrevistadas reconheçam a partici-pação do parceiro quando os filhos eram bebés, o forte empenhamentona maternidade não é alheio à progressiva libertação do homem no querespeita ao acompanhamento quotidiano dos filhos. Planeados ou não,estes são fortemente desejados, o que se traduz numa dedicação que éproporcional a esse desejo. De resto, estas entrevistadas tanto reclamampara si a tutela da logística dos cuidados com a criança e das tarefas do-mésticas como empolam a pontual participação do homem, sobrevalo-rizando qualquer atitude que demonstre a colaboração do parceiro notrabalho doméstico.

A desvinculação do homem

A carga horária de trabalho do homem é, invariavelmente, bastantesuperior à da mulher nos casais cuja trajectória se define pela hipergamiaprioritária.3 Os casos mais extremados são o de Manuela e o de Felícia,cujas profissões têm uma carga horária que perfaz cerca de metade dadas profissões dos seus cônjuges. Com uma actividade profissional quelhe exige apenas cinco horas diárias, Felícia, por exemplo, tem «temposuficiente para estar com eles [os filhos] e sobra», enquanto o marido,empresário, «trabalha imenso», ou seja, dez horas por dia. Noutras situa-ções (Amália, Ivone, Filipa e Irene), a carga horária da profissão feminina

3 Ainda que o horário de trabalho possa, na prática, extravasar o horário formal – so-bretudo nas profissões mais exigentes em recursos educacionais, onde parte do trabalhoé muitas vezes executado em casa, ou seja, fora do horário e do local de trabalho –, o nú-mero de horas em que cada um dos cônjuges está ausente de casa por razões profissionaisconsiste, em nosso entender, num indicador deveras eficaz para revelar os modos de di-visão familiar do trabalho profissional em todas estas situações de duplo emprego.

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não representa mais do que dois terços da da profissão masculina, e noscasos de maior proximidade (Joana, Anabela e Leonor), o horário pro-fissional da mulher representa quase três quartos do horário profissionaldo homem. Assim, a título de exemplo, Ivone reconhece que as profissõesdo seu marido, docente universitário e advogado, lhe ocupam «bastantemais» horas por dia do que a sua própria actividade profissional.

Ele não vai cedo a não ser algum dia que tenha que levar o miúdo ou osmiúdos à escola, mas também se levanta um pouco mais tarde, vai para oescritório – isto, agora que não está a dar aulas – ou fica em casa a trabalharna tese. Em alturas de aulas, ele também sai mais tarde. Nunca está antesdas dez e meia, onze horas, a não ser em casos excepcionais, no escritório,está no escritório e depois no final do dia vai para a faculdade dar as aulas edepois é que regressa a casa... À vontade mais de dez horas, contando comas horas que ele depois está em casa também a trabalhar.

Semelhante é também a situação das médicas Amália, Anabela – casa-das com médicos que optaram pela carreira no sector privado – e Joana –casada com um jurista que frequenta as aulas na Ordem dos Advogadoscom o propósito de vir a exercer advocacia. Estas médicas têm de reservarum dia por semana para estar de banco no hospital, mas os restantes diasda semana são preenchidos com, apenas, seis horas de carga horária. Já noque toca ao horário de trabalho dos cônjuges, a carga diária eleva-se paraonze horas, com a particularidade de o marido de Amália trabalhar seisdias por semana, e o de Joana reservar – por sua própria iniciativa – o fim--de-semana para trabalhar.

Ele despachava muita coisa ao fim-de-semana, mas por ele querer, porquenão era obrigado. Ele aproveitava o tempo livre para estudar, de maneiraque despachava trabalho ao fim-de-semana, nunca teve processos atrasados.E depois durante a semana, organizava o processo que tinha em mãos... Elevinha e à noite ia estudar para a faculdade... Sentíamos mais [pressão], e atéera mais eu, quando eu estava na clínica e deu-se aquela situação de não teros fins-de-semana, isso era mais complicado. No fundo, não era pelo traba-lho, era pela imprevisibilidade de organizar a vida [Joana].

O meu marido trabalha pelo menos dez horas por dia. Muito mais doque eu! E trabalha todos os sábados! Porque, repare, ele faz muitas cirurgias,e nos dias de cirurgias... O que dá dinheiro na Medicina é isso, não são asconsultas. E não tem comparação, ele ganha muitíssimo mais do que eu[Amália].

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O primado da família e a prioridade da carreira do homem

Com um horário de trabalho mais alargado, a disponibilidade dohomem para a vida familiar é então bastante reduzida, apesar de este nãodeixar, afinal, de estar acessível nos períodos sempre que trabalha a partirde casa. Como sublinha Irene, «o meu marido nunca achou muita piadafazer muita coisa em casa... não tem tempo, ele trabalha imenso». Asocasionais iniciativas do homem, geralmente circunscritas aos momentosem que este fica liberto dos encargos profissionais, são assim fortementevalorizadas. De sublinhar que, com óbvias repercussões no tempo dedi-cado à família, esta divisão sexualmente diferenciada da disponibilidadepara a vida profissional estabelece-se desde o início da conjugalidade. Aspalavras de Amália, médica casada com médico, ilustram bem o acordoinicialmente estabelecido no sentido desta divisão sexual do trabalhoprofissional: «Essa opção foi tomada no início. Portanto, ele ia para umaespecialidade com privada, e eu não. Portanto, eu nunca o acusei de nãoter tempo para a família.» Ainda assim, as consequências da partilha di-ferenciada do trabalho doméstico num período particular da vida fami-liar, marcado pela ausência do desafogo económico de que hoje a famíliagoza, não deixaram de afectar a entrevistada. Quando os rendimentosdo casal não permitiam o recurso ao auxílio de uma empregada, era ob-viamente Amália quem «tinha que trabalhar mais em casa», pois «elenunca assumiu». Todavia, esta desvinculação do marido, absorvido nasua actividade profissional, parece-lhe compensada por pequenos gestos– como fazer a cama de manhã ou lavar a loiça em férias – que, precisa-mente pelo seu carácter excepcional, captam a atenção da mulher e con-quistam o seu apreço.

Quando éramos mais novos e eu tinha que trabalhar mais em casa, nãotínhamos dinheiro para pagar uma empregada... Ele em casa não fazia nada.Se bem que tenha piada, quando vamos de férias, por exemplo, ele ajuda--me imenso e é uma pessoa organizada, faz muitas coisas... Por exemplo, euquando me levanto e enquanto vou tomar banho, ele faz a cama e arrumao quarto, manda os miúdos fazerem as camas deles... Eu gosto de cozinhar,e sempre que eu cozinho é ele que lava a loiça, mas em férias! Quando es-tamos cá, não. Dantes, quando havia necessidade de ele fazer isso, ele nãofazia. Portanto, por rotina, não faz.

Já noutros casais, o trabalho doméstico constitui um foco de tensão,sendo a desvinculação do homem vivida com ressentimento. Leonor,por exemplo, denuncia uma «partilha que não existe», apontando a des-vinculação de Henrique em relação às tarefas domésticas como o únicoponto de atrito entre os dois. Tem para si que, apesar da diferença de

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carga horária de trabalho entre os dois, nem por isso ela trabalha menosque ele no seu emprego, não encontrando assim qualquer justificaçãopara o marido «não ajudar nada».

Já não vale a pena. Chega a uma certa altura que não vale mais a pena,está a ver? Claro que isso acaba sempre por ter implicações, não é? Se umapessoa trabalha tanto como o outro parceiro e chega a casa e ele pode con-tribuir em alguma coisa e nada, começa aí a haver um bocadinho... Mas nãoé nada que seja insustentável. É controlável, claro.

Em determinados casos, o homem participa, chegando mesmo a subs-tituir a mulher quando as circunstâncias não deixam alternativa. É ténue,contudo, a sua intervenção, como se houvesse um acordo tácito no casalem relação à tomada de iniciativa, que se espera partir do elemento fe-minino. Assim acontece com Joana e o marido, que só «ajuda quando épreciso», como por exemplo «passar uma semana com os miúdos fora,na altura de férias, para eu poder estudar». Já se vê que, se uma estratégiafamiliarista é, de alguma forma, sempre elaborada num contexto de ne-gociação conjugal, esta última tem, todavia, subjacente uma «disposiçãopara agir» (Lahire, 2005) em regra com normas que prescrevem a inter-venção do homem no trabalho doméstico enquanto cedência pontual.Por outro lado, a legitimidade atribuída a uma forte disponibilidade dohomem para o trabalho profissional vai de par, nestes casais, com umasistemática atitude masculina de demissão no que respeita ao trabalhodoméstico, tal como ironiza Joana no final deste excerto.

O meu marido é assim: ele ajuda quando é preciso, quando não é pre-ciso, não ajuda muito! Ele é uma pessoa extremamente prática, se eu agoraestivesse uma semana fora ou isso... Por exemplo, quando eu fiz o primeiroexame e saí do internato complementar, ele por exemplo foi passar uma se-mana com os miúdos fora, na altura de férias, para eu poder estudar. Osmiúdos na altura eram pequeninos, portanto isto foi em 92, o mais novonasceu em 89, portanto, teria dois, três anos. Era um de dois, um de cincoe o outro com sete, e ele esteve uma semana com eles sozinho. Portanto, eleé muito eficiente, muito prático e consegue fazer essas coisas todas, masquando ele pode não fazer, não faz [riso].

Ainda que, não raras vezes, o modelo de divisão igualitária das tarefasdomésticas se insinue, entre estas mulheres, no plano simbólico dos va-lores, apenas Felícia, por exemplo, manifesta algum empenho em marcaruma posição na defesa desse ideal. Bastante mais jovem que as demais e

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O primado da família e a prioridade da carreira do homem

casada há nove anos, a entrevistada confessa o seu esforço em levar àprática uma partilha mais igualitária do trabalho doméstico.

Deve-se dividir completamente as tarefas de casa. Eu acho que a casa éuma coisa dos dois... Eu tenho a certeza de que se lhe disser «desculpa, mastens que começar a passar a ferro, porque eu não aguento», eu tenho a certezaque ele passava a ferro. Mas eu nunca lhe peço. Temos tarefas muito dividi-das, a não ser o passar a ferro e as refeições. Cozinhar, eu já lhe disse, «tensque cozinhar algumas vezes por semana, porque custa-me imenso cozinhar,e já me custa ter criatividade para inventar novos pratos». E então, muitasvezes, é ele que cozinha. Acho que é muito importante dividir.

Todavia, não surpreende a ambivalência das atitudes desta mulher queatribui, simultaneamente, prioridade à família e à profissão do marido, poisas dez horas que Fernando despende diariamente no trabalho impossibi-litam, já se vê, a participação por ela idealizada. Por um lado, Felícia subli-nha o seu próprio esforço para que o marido, uma vez presente, participeno trabalho doméstico. Por outro lado, de entre todas as mulheres entre-vistadas, é ela quem tem a menor carga horária – cinco horas diárias –, oque lhe proporciona uma disponibilidade para a família e as tarefas do-mésticas que inibe o recurso ao auxílio de uma empregada. Sem outrosapoios, é pois sobre ela que recai a grande fatia das tarefas domésticas.Sentindo-se sem argumentos para partilhar essas tarefas com o marido talcomo idealiza, Felícia encontra-se claramente aprisionada numa contra-dição: provar a si mesma ser capaz de levar à prática um ideal de partilhaquando só ela própria abdica da sua actividade profissional para estar maisdisponível para os filhos e para a casa. Só assim se explica a sua inibiçãona procura do apoio de uma empregada, apenas considerado justificávelse Felícia não estivesse tão disponível para a família.

Ele arruma muitas vezes o quarto deles, arruma o nosso quarto, limpa acasa de banho... Mas mesmo assim eu tenho sempre um bocadinho maisde carga, porque eu também trabalho menos horas. Tem a ver com isso,senão, se eu trabalhasse as mesmas horas que ele, eu tinha uma empregada.No fundo as refeições sou eu que faço, e como optei por não ter empregadae como trabalho menos horas em casa faço mais eu. Também não é umagrande diferença, porque passar a ferro sou eu que faço, as refeições soumuito mais eu, ele também faz algumas, mas sou muito mais eu.

Uma participação masculina mais activa representou, noutros casos,a etapa inicial de uma gradual diferenciação da divisão do trabalho, ca-

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racterizada pela progressiva desvinculação do homem face ao conjuntodos encargos domésticos. A situação de Ivone é suficientemente ilustra-tiva deste processo. Segundo a entrevistada, uma maior repartição dastarefas não justificava inicialmente o recurso a uma empregada, masIvone foi «libertando» o marido «para ele se dedicar mais» à profissão. Aatitude desta mulher não se caracterizou por uma negociação perante osdesafios de carreira com que ambos os membros do casal foram con-frontados, porque, como sublinha, «era impossível para nós estarmos osdois a dedicarmo-nos ao mestrado». Ivone não abdica de um investi-mento na sua formação e na sua carreira profissional, mas esta é umaaposta indefinidamente adiada, pois reconhece prioridade à carreira pro-fissional do marido, dispondo-se a estar mais presente que ele no acom-panhamento dos dois filhos do casal e a assumir os encargos domésticos.

Trabalho mais eu dentro de casa, sem dúvida. Isso tenho consciência...Quando nos casámos, as tarefas nesse aspecto eram mais repartidas... Entre-tanto o volume de trabalho no escritório e toda a dedicação dele depois aomestrado e etc. ... As coisas ou se fazem ou não se fazem, e não há tempopara tudo. Eu fui também deixando e sempre incentivando para ele ir avan-çando, porque os dois... Em determinada altura, também pensei em fazermestrado, mas era impossível para nós estarmos os dois a dedicarmo-nos aomestrado, e depois não tínhamos tempo para os miúdos. Quer dizer, tinhaque haver ali divisão das coisas e eu disse «Não, vai avançando, já estás nesseritmo e vai avançando». Um dia mais tarde, se eu me sentir com forças, voufazer [o mestrado], já estão os miúdos mais crescidos e depois logo se vê.

A participação do homem está obviamente circunscrita aos interstíciosde uma pesada carga horária de trabalho. Contudo, ao contrário do quesucede com as tarefas domésticas, a reduzida presença masculina nos cui-dados às crianças é compensada com a percepção de uma disponibilidadeprovisória que assume um valor especial junto destas mulheres, comoatesta o reconhecimento da dedicação do parceiro nos primeiros anos davida dos filhos. Cada gesto do homem é, assim, sobrevalorizado, porqueentendido como resultado de um esforço ímpar para assegurar a sua pre-sença na vida familiar. Manuela refere que «senti que ele ajudou, ele sem-pre ajudou, ajudou de noite e tudo, levantava-me eu, levantava-se ele...»,enquanto Ivone reconhece que «o meu marido não tem tanto tempo, mastem tentado». Por sua vez, Felícia faz questão de sublinhar que, apesar deuma carga profissional diária de dez horas, o seu marido participa nos cui-dados à criança: «o dar o banho, de manhã, é ele que trata deles, é ele quelhes dá o leite, que os veste, lava-lhes os dentes, é ele que os arranja total-

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O primado da família e a prioridade da carreira do homem

mente de manhã. Depois, à tarde, é também ele que lhes dá o banho».De resto, também Irene, cujo marido, por motivos profissionais, estavaausente de casa «durante a semana», só podendo participar nos cuidadosà criança no fim-de-semana. Com pais e sogros a residir longe, Irene ter-minava o seu horário de trabalho às dezasseis horas, só podendo entãocontar com o auxílio da empregada. «Era uma grande complicação paramim, porque estava cá sozinha!», desabafa. Esta experiência nos primeirosanos de vida da criança é elucidativa das implicações da prioridade atri-buída à profissão do homem, implicações essas que se observam nas di-ficuldades desta entrevistada em conciliar o próprio exercício da actividadeprofissional e os encargos com a criança. Ainda assim, Irene faz questãode sublinhar que «quando ele estava, tinha uma óptima relação com ofilho, e dava banho e fazia o biberon e o que fosse preciso».

Olhe, o meu marido sempre foi uma pessoa muitíssimo ocupada. Por-tanto, na altura, quando o meu filho nasceu... Ele era engenheiro civil e,pronto, quando as pessoas começam, sabe como é! De modo que foi parafora de Lisboa construir uma escola secundária e um centro de saúde e,pronto, tinha que ficar lá durante a semana e só vinha aos fins-de-semana eestava cá para reuniões à segunda-feira. De modo que – está a ver? – era umagrande complicação para mim, porque estava cá sozinha! A partir da alturaem que a empregada se ia embora e eu ficava cá sozinha com o bebé. Eutrabalhava praticamente até às quatro, mais ou menos, das nove às quatro.

À medida que os filhos crescem e os encargos profissionais dohomem aumentam, diminui a sua disponibilidade para estar presente navida familiar. A situação de Anabela e Álvaro ilustra uma galopante in-disponibilidade masculina para a vida familiar e respectivas implicaçõessobre a divisão sexual dos papéis parentais. Com efeito, esta entrevistadareconhece que o marido, por «não acompanhar [os filhos], está um bo-cado mais à margem», ao mesmo tempo revelando que essa progressiva«marginalização» no acompanhamento quotidiano dos quatro filhos docasal repõe, contudo, em Álvaro a «autoridade» de que ela se vê despo-jada por estar «mais, todos os dias, com os filhos».

De um modo geral é uma postura. Ele acabou por ficar um bocado àparte disso tudo pelo facto de não acompanhar [os filhos]... Eu às vezesnem tenho sequer paciência para lhes pedir as coisas porque tenho queandar ali «faz e faz», e ele às vezes diz que eu lhes facilito muito as coisas,que eu reconheço que é mau, não é? E quando ele manda, eles fazem e aca-bou. Por isso também há um respeito que eles têm por duas razões: para já

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porque acho que as mães é mais natural, ou quando as pessoas estão mais,todos os dias, com os filhos acaba por haver mais uma abertura que dáeventualmente menos autoridade. Também por uma questão de feitio, por-que eu sou muito menos autoritária do que ele.

Quanto a Irene e Horácio, a participação deste no acompanhamentodos filhos passa essencialmente pela orientação intelectual e pelo apoionos estudos sobre assuntos que a entrevistada não domina. É, aliás, nestadimensão dos cuidados à criança que o homem se revela cada vez maisparticipativo. Com efeito, só Horácio parece estar preparado para o acompanhamento dos filhos em determinadas áreas do conhecimento.Reconhecendo a sua «ignorância» a este respeito, sublinha que permanecepresente e «disponível» para o que puder ajudar, pois, afinal, foi ela quem– nos primeiros anos de escola – os acompanhou e ensinou a estudar.

À medida que eles foram ganhando autonomia, fui-os deixando e elestambém só falam comigo a nível de problemas escolares quando têm algumadúvida ou quando precisam que eu os ajude por causa de alguma pesquisaem alguma enciclopédia por causa daquele tema que eles têm. [...] Não estouem cima deles. Estou ali em casa, estou disponível para eles. Hoje, nos estu-dos, o pai dá mais acompanhamento do que eu, porque aquilo que é precisotirar dúvidas, físico-químicas, matemática, e o meu marido lembra-se dissotudo, dos pormenores todos da matéria, de modo que lhe dava muito apoioe pronto. Eu às vezes era com a história e com... a filosofia, porque ele odeiaaquilo, acha tudo uma estupidez, de modo que toca de estudar um bocadocom ele... O meu marido adora informática, adora tudo o que é nova tecno -logia, e eu sou muito aselha para essas coisas.

Também Ivone está mais presente no acompanhamento quotidianodos estudos dos filhos do que o seu marido, apesar de este «tentar» darum apoio escolar quando os testes se aproximam. À semelhança de Irene,a entrevistada recorda que o marido só começou a assumir um papelmais activo no acompanhamento dos filhos quando as matérias de es-tudo entraram no domínio das suas competências.

Era eu [que acompanhava] mais na primária, e agora eu mais em deter-minadas áreas, e o meu marido vai tentando dar apoio noutras áreas. O meumarido tem o domínio das línguas melhor, dá-lhe mais apoio do portuguêse do inglês, e eu dou-lhe mais apoio dentro das outras áreas. Estou com elediariamente, vimos todas as matérias. Quando ele tem testes, tentamos queele estude, e depois vamos no fundo aprofundar um pouco as coisas e estoucom ele.

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O primado da família e a prioridade da carreira do homem

Resta referir que há casais onde o homem se arroga a uma imunidadeno que toca a quaisquer encargos familiares, evitando assim preocupa-ções adicionais. A título ilustrativo, é sobre Amália que recaem as deci-sões relativas ao universo da família, não propriamente em consequênciade uma repartição sexual de domínios de poder, mas por uma desvincu-lação que, manifesta num consenso revelador do distanciamento dohomem – «ele está sempre de acordo com tudo» –, a entrevistada resume,em jeito de desabafo, numa frase que atribui ao seu marido: «Eu já tenhomuitos problemas, não me sobrecarregues!»

Há coisas que sou eu que planeio e que faço e se tenho algum problematento resolver sempre e não sobrecarregar [o meu marido]. [...] Eu tentosempre resolver as coisas, e só se há alguma dúvida ou se tem algum interessea escolha dele em determinado assunto é que eu lhe pergunto, senão resolvoe não... Com os filhos, com a casa, viagens, e eu decido e eu faço. Por exem-plo, de há uns tempos para cá, desde que temos mais disponibilidade eco-nómica, costumamos ir viajar. Eu é que trato das coisas todas com a menina,das viagens... Eu é que decido, eu é que escolho.

Dos apoios exteriores à assunção feminina do trabalho doméstico

Se, nos casais com trajectórias de hipergamia prioritária, a desvinculaçãodo homem contribui para que pese sobre a mulher a grande fatia dosencargos com a família e a casa, não deixa, enfim, de ser importante su-blinhar as ajudas e o apoio da rede familiar com que algumas entrevista-das podem contar, sobretudo nos primeiros anos de vida da criança.Ivone, por exemplo, residiu com o marido em casa dos pais até ao pri-meiro ano de vida do filho mais velho, que confiava à empregada damãe. Amália, por sua vez, tem razões ainda mais fortes para reconhecera importância da rede familiar de apoio, fundamental para atenuar o im-pacto que uma gravidez adolescente, de outra forma, poderia ter tido nasua formação superior.

Depois que nasceu o meu primeiro filho, a minha sogra disponibilizou--se para ficar com ele. Era uma pessoa que também estava em casa, tambémtinha empregada e ficava com o bebé todos os dias. Nós íamos para a facul-dade, à noite jantávamos em casa dela. Portanto – está a ver? – se não fossea minha sogra nem sei se teria conseguido fazer as coisas, pelo menos da ma-neira como fiz. Tive a vida facilitadíssima. O bebé ficava lá em casa e, à noite,jantávamos lá, ficávamos lá depois de jantar a brincar com ele até ele ador-

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mecer, vínhamos para casa e durante a semana ele dormia lá. Fazíamos istotodos os dias, e ao fim-de-semana, à sexta à noite, trazíamo-lo para passar ofim-de-semana connosco, e nas férias também. Isto durante todo o tempoda faculdade.

Por sua vez, Filipa, também ela médica, declara que pôde sempre con-tar com o auxílio da mãe e das irmãs da mãe, cuja proximidade residen-cial propiciou o mútuo apoio, sobretudo com a chegada dos seus doisfilhos – tinha então a entrevistada, respectivamente, vinte e oito e trintaanos de idade –, coincidente com o período do internato. O apoio, so-bretudo, da mãe foi decisivo para a entrevistada poder prescindir do re-curso a infantários nos primeiros três anos de vida dos seus dois filhos.

Sempre tive o apoio da minha mãe e das minhas tias, porque moramaqui perto. Portanto, sempre que eu precisava, tinha o apoio delas. O inter-nato são cinco anos, o da minha especialidade. Acabei para aí com trinta edois, ou assim. É uma altura em que nós temos muito que fazer e estudar eapresentar coisas. Portanto, é uma altura muito trabalhosa. De manhã ia-osdeixar com a minha mãe, porque eles só foram para o colégio com três anosde idade. Portanto, quando o meu filho tinha três anos, a minha filha aindatinha um, e quando ele vinha da escola, a carrinha ia levá-lo lá a casa damãe, e depois eu ia lá buscá-los – ou eu ou o meu marido.

No entanto, nem todos os casais com trajectórias de hipergamia priori-tária contam com o apoio de uma rede familiar. Ainda que – convémsublinhá-lo – estejamos perante mulheres com condições materiais sufi-cientes para recorrerem a soluções de substituição nos cuidados aos filhosdurante o horário de trabalho, algumas entrevistadas optam – na impos-sibilidade de confiar a guarda dos filhos aos avós – por uma solução deguarda que se aproxima mais de um modo de cuidar «maternocêntrico»do que de uma «delegação extensa» (Wall et al. 2001). A título ilustrativo,veja-se o caso de Ivone. Após ter residido com o marido em casa dos seuspais durante o primeiro ano de vida do filho mais velho, Ivone e o ma -rido mudaram-se para casa própria. A entrevistada recorda que, perante a indisponibilidade dos pais, das suas irmãs e dos sogros, «não tinha nin-guém por perto que ficasse» com os seus filhos, se bem que sempre pôdecontar com o apoio de uma empregada na «limpeza da casa e de roupas».Em lugar de deixar os seus filhos com uma ama, optou por um infantário«ao pé de casa», pois «a probabilidade de lhes acontecer alguma coisaera menor». A opção por esta solução observa-se também no caso de Leonor: «ter uma ama estava fora de questão [...] tem-se visto tanta coisa

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O primado da família e a prioridade da carreira do homem

ultimamente que a gente às tantas desconfia um bocadinho daqueles am-bientes tão fechados». Com os pais a residirem fora de Lisboa e a sograavançada na idade, a entrevistada optou por colocar, «logo com cincomeses», os seus dois filhos no infantário próximo da sua residência. Sempais ou sogros que estivessem acessíveis, já Irene teve de deixar o seu filhocom uma empregada durante o horário de trabalho. No entanto, se osseus pais só podiam vir «uma vez por mês» a Lisboa quando o seu filhoera bebé, mais tarde a situação veio alterar-se, dispondo-se os avós a ficarcom o neto no Algarve durante longos períodos de «quinze dias», quealiviavam a sobrecarga quotidiana da entrevistada.

Os meus sogros estavam a trabalhar e não se mostraram também muitodisponíveis a ficar com a criança. Os meus pais, como estavam longe, tam-bém... As minhas irmãs estavam a trabalhar e também não ficavam... Na al-tura já tinha uma pessoa em casa, mas era para ajudar nas questões de lim-peza da casa e de roupas, não propriamente com a criança. [...] Eu jáconhecia o infantário, já lá tinha ido e etc., e tinha o exemplo de casais ami-gos que tinham lá as crianças e por isso eu fiquei completamente descansada.Eu preferia assim do que ficar numa ama [Ivone].

Não tinha ajuda, porque os meus pais continuam a viver em Setúbal e euvivo em Lisboa, portanto, não dá muito jeito ir pô-los a Setúbal e ir buscá-losao fim do dia, não é? Foi para o infantário logo com cinco meses. Eu tinha oinfantário da Câmara, é um serviço de infantário próprio e era exactamenteao pé da minha casa, quer dizer, era talvez a uns cento e cinquenta metros.Não havia outra hipótese. A minha sogra era muito velhota, os meus pais nãopodiam e ter uma ama estava fora de questão, por tudo aquilo que as amas,em geral... Pronto, é uma figura com que eu não simpatizo muito. ... Eu preferipô-los numa creche, onde há mais gente. Tenho mais confiança nisso do querealmente estar a entregar a uma pessoa que não conheço de lado nenhum[Leonor]

Eu tinha uma empregada na altura e, quando ele nasceu, ficou com eleem casa e depois aos três anos foi para o colégio. Os meus pais vinham cácom muita regularidade... Não se pode vir a Lisboa do Algarve uma vez porsemana, não é? Vinham por exemplo uma vez por mês e estavam cá umasemana, pronto, era desse género... Ah, e depois havia uma coisa muito boae vivida sem culpa nenhuma, que foi desde para aí os cinco anos dele, ouquatro anos, que era capaz de passar quinze dias com os avós no Algarve eisso para mim era excelente, porque permitia-me eu sair daqui e desanuviar,não ter que estar a fazer o jantar, porque tinha que ir a correr, porque nãosei o quê, e pronto, era muito bom [Irene].

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Contudo, importa mais uma vez recordar que, independentementedos apoios exteriores que estas entrevistadas possam, ou não, ter usu-fruído nos cuidados às crianças, é sobretudo sobre elas que os encargoscom os filhos sempre recaíram. «A criança, eu achava que quem tinhaque tratar era eu e mais ninguém», sublinha Ivone. A presença dohomem, a cuja carreira profissional se reconhece primazia, é, afinal, ténuenos primeiros anos de vida da criança, procurando sempre a mulher«compensar» a ausência do cônjuge.

O banho era eu que lhe dava quando chegava ao fim do dia. Mas aminha sogra ficou com ele todos os dias. [...] Quando o meu primeiro filhoestava doente, por exemplo, a minha sogra não ficava com ele, porque tinhamedo, e eu trazia-o e era eu que ficava em casa. Mas era a única altura! Tam-bém só era preciso ficar um, e ele trabalhava e eu não [Amália].

Tentava sair daqui o mais cedo que eu podia [...], sempre um pouco maiscedo para poder acompanhar a criança [...], para ir buscar o miúdo. E quando foi a miúda foi a mesma coisa, também saía mais cedo e chegavaum pouco mais tarde para poder amamentar... Porque eu tenho que estarcom eles, porque eu gosto de dar acompanhamento aos miúdos e, no fundo,nesta fase tento estar mais tempo com eles, porque o meu marido está menostempo com eles durante o dia, e eu tento, de facto, compensá-los, dar oapoio na escola necessário, etc. [Ivone].

Com ou sem o apoio de familiares nos cuidados à criança, estas mu-lheres acumulam um conjunto de encargos – a manutenção da casa, oscuidados e acompanhamento dos filhos na idade escolar, bem como oexercício de uma actividade profissional – de que, enfim, não estão dis-postas a abdicar. O elevado significado que o exercício da actividade pro-fissional assume contribui para explicar o frequente recurso a emprega-das, tal como ilustra o caso de Ivone. Quando a entrevistada e o maridosaíram de casa dos pais dela para irem viver com o primeiro filho, aindabebé, para casa própria, contrataram uma empregada, que viria entãosubstituir os serviços anteriormente prestados pela empregada da mãe,quer nos cuidados ao bebé, quer nas tarefas domésticas.

Enquanto estava em casa da minha mãe não precisava de empregada,porque a minha mãe já tinha empregada. A partir do momento em que pas-sei a ter a minha casa deixou de haver propriamente baby-sitter: era a empre-gada que tomava conta das crianças. [...] Eu tinha depois que arrumar a casae preparar as refeições. Muitas vezes estão semipreparadas, mas há sempreaquela última preparação que é preciso fazer, não é?

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O primado da família e a prioridade da carreira do homem

No entanto, a avaliação que estas mulheres fazem do desempenhodas empregadas que contratam é tanto mais crítica quanto maior a expe-riência de trabalho doméstico que elas próprias possuem. «A casa nemsempre está muito limpa», porque «elas já de si são moles», são expressõesutilizadas por Anabela. Mesmo quando se trata de empregadas que játrabalhavam em casa dos pais, o cunho crítico não deixa de estar presenteno seu discurso, tal como acontece com Joana, que nem por isso deixade reconhecer e valorizar as «muitas qualidades humanas» e o «grandeapoio» – em particular, nos cuidados prestados à sua mãe doente – daempregada que a viu crescer. Se os filhos são ainda mais prioritários doque a logística da casa, fica então explicado que a exigência cresça quandoa mulher opta pela empregada como substituta na sua ausência. Assimo revela a rispidez que impregna o discurso de Anabela, quando a entre-vistada lamenta não poder delegar a guarda da filha à empregada.

Temos uma empregada que a gente já considera da família, porque moraem frente à casa dos meus pais. Já me conhece desde bebé e é já uma pessoacom sessenta e oito anos e eu gostava que fosse ela... Continua a ser nossaempregada. Sempre. Tem sido um grande apoio, agora para a minha mãetambém e com a minha filha, também. Nós pensámos falar com ela para elaficar com a menina e, digo-lhe, ainda bem que não ficou, porque é uma pes-soa que tem muitas qualidades humanas, mas é analfabeta. Mas não é porfalta de oportunidade! É porque não consegue aprender a ler. Deve haver alium problema, e é uma pessoa um bocado limitada de inteligência. E então,para a minha filha, ter ficado em casa com esse apoio acho que era mau...

Quase todas as mulheres entrevistadas contam com o apoio de em-pregadas, mas nos casais com trajectórias de hipergamia prioritária, o que aempregada deixa por fazer – ou não se espera que faça – fica invariavel-mente a cargo da mulher. Manuela, por exemplo, pode contar com uma«mulher-a-dias» para realizar as tarefas mais pesadas, mas cabe-lhe a si as-segurar que o jantar seja servido a horas ou desoras.

É a minha mulher-a-dias que faz as tarefas mais pesadas, e eu faço o resto.[...] O meu filho está em Arquitectura, mas mandou uns currículos e foi cha-mado. Fez um curso e agora está a vender seguros das seis da tarde às dez danoite. Ele vai para lá todas as noites e só chega a casa às dez e meia. É outroque vem jantar, de maneira que eu às onze da noite ainda estou a arrumaras coisas na cozinha, porque cada pessoa chega à sua hora.

Ainda assim, em função das possibilidades do casal, é a empregadaquem realiza as tarefas mais pesadas ou pouco apreciadas. Nalgumas si-

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tuações, a delegação das tarefas domésticas numa empregada é bastanteabrangente, cabendo à mulher pouco mais que a orientação da logísticadoméstica. É o caso de Amália, cujas tarefas que actualmente desempe-nha se confinam ao fim-de-semana na cozinha, porque «gosta» de cozi-nhar, considerando hoje quase dispensável a orientação da logística dacasa, dada a antiguidade das duas empregadas com quem pode contar.Para além do apoio familiar, fundamental para não ter interrompido osseus estudos universitários após ter sido surpreendida por uma gravidezna adolescência, há muitos anos que Amália não prescinde do auxíliodas suas empregadas. É por entre estas que reparte as diversas tarefas,desde a limpeza ao tratamento da roupa, e é também ao seu cuidado queentrega quer a sua filha mais nova, com doze anos de idade, quer o filho– ainda bebé – do seu filho mais velho.

Tenho um grande apoio, porque tenho empregadas todos os dias. Umajá me deixa o jantar adiantado, e eu faço o jantar. E aos fins-de-semana tam-bém cozinho, que é aquilo que eu gosto de fazer, de cozinhar. As limpezase essas coisas, não faço nada. Tenho duas empregadas, só que já são tão an-tigas que eu quase já não dou ordens. Tenho uma que considero a empregadada minha filha, que agora também toma conta do bebé e que faz as limpezasda casa, e tenho outra que cozinha e que trata da roupa. A possibilidade do recurso a empregadas revela, desde logo, o desa-

fogo económico próprio dos meios sociais favorecidos, desafogo esseque permite, assim, uma preservação do desgaste físico quotidiano coma execução das tarefas domésticas, proporcionando simultaneamentemais tempo quer para o acompanhamento dos filhos, quer para a relaçãoconjugal, quer, enfim, para si própria. «Quando chegava a casa», recordaFilipa, mãe de um rapaz e de uma rapariga, «também tinha que ter algumtempo para eles, e portanto tinha as empregadas: assim libertava-me, nãoé?». Esta entrevistada sublinha ainda a possibilidade de ter «tempo parao meu tempo livre»: «Eu acho que isso é fundamental, uma pessoa tertempo para trabalhar, para os filhos, para o marido e para ela.» Contudo,nas suas palavras fica implícita a aversão pelas tarefas domésticas em geral,de cujo desempenho pode prescindir na quase totalidade – com a excep-ção das compras para a casa – com recurso a duas empregadas. Se aoapoio das empregadas acrescentarmos o auxílio da mãe e das tias, comque Filipa sempre pôde contar, compreende-se melhor as suas palavras,quando afirma: «Eu consigo ter tempo para tudo» ou «não há assim mui-tas tarefas lá em casa». Com efeito, a prioridade que a entrevistada confereà vida familiar contempla, no plano dos encargos com a casa, a tutela

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O primado da família e a prioridade da carreira do homem

das tarefas domésticas, e não propriamente a sua execução. As tarefas do-mésticas remanescentes resumem-se às compras, que a própria entrevis-tada faz com «gosto».

Eu comecei por ter uma empregada quando o meu [primeiro] filho nas-ceu, porque eu precisava. Nessa altura, estava a fazer internato da especiali-dade e tinha um filho pequenino e já estava grávida de outro. Portanto, apessoa ter que fazer as compras, fazer comidas, dar banhos, as roupas, passarroupa e não-sei-quê, é um bocado complicado, não é? Ainda tinha a minhavida, porque fazia bancos de noite, e portanto havia uma empregada quefazia a limpeza das escadas do prédio e eu falei com ela para ela ir lá duas outrês vezes por semana também para me cuidar da casa e para passar a ferro:aquelas coisas, aquelas tarefas mais chatas de casa... Depois, cada vez as coisasa complicarem-se um bocadinho mais, nasceu a minha filha. Portanto, eramdois e eu comecei a achar que se calhar se arranjasse alguém que me fosse lápara me adiantar o jantar, que era uma boa ideia. Portanto, arranjei essa em-pregada para me ir lá duas horas por dia para me fazer isso, para me deixarjá as coisas arranjadas, para me fazer a sopa.

Todavia, a maior parte das entrevistadas com este tipo de trajectóriaconjugal não só não pode usufruir das ajudas com as quais contam Amáliae Filipa, como não considera que, salvo algumas tarefas, o trabalho do-méstico represente uma «perda de tempo». É o caso de Irene. Esta entre-vistada faz «imensa coisa» que a empregada poderia realizar, insistindoem desempenhar determinadas tarefas porque se sente mais competentee, sobretudo, porque gosta. Com efeito, a entrevistada não se circuns-creve apenas à realização das tarefas mais leves. Mãe de um rapaz que,segundo ironiza, «tem a função de desarrumar», Irene gosta «imenso» de«lavar alguma roupa à mão», passar a ferro, para além de cozinhar – poisnão aprecia «comer coisas feitas por outros» – ou «arranjar peixe». Nãolhe desagradam assim essas tarefas domésticas que, afinal, só desempenhaporque tem «prazer nisso», lamentando, pelo contrário, aborrecer-se ver-dadeiramente por ter de orientar incessantemente a sua empregada.

Assim, sem nunca questionar o significado do exercício da actividadeprofissional, a maioria das mulheres que vivem em uniões conjugais comtrajectórias de hipergamia prioritária assume a propensão para a execuçãode determinadas tarefas domésticas, ainda que o manifeste reconhecendoa necessidade do apoio externo de empregadas em componentes menosaprazíveis, ou mais pesadas, do trabalho doméstico. Por outras palavras,grande parte do trabalho doméstico, o trabalho doméstico em geral, coma excepção destas tarefas, é muitas vezes objecto de um «gosto» que, efec-

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tivamente, transparece no discurso destas entrevistadas, sendo apenas su-plantado – tal como ilustram as palavras de Joana – pela atenção que oscuidados à criança requerem.

Há pessoas que detestam a vida doméstica, e eu sempre gostei. Se eu lhedisser que não me custa nada a vida doméstica, o tratar da casa... Desdemiúda que gostava, não me importava nada de limpar a casa, de arrumar ascoisas... A coisa que eu gostava menos de fazer era aspirar. O trabalho do-méstico – o cozinhar, gosto imenso de cozinhar, de tratar das coisas... – nãoé um grande sacrifício. Agora tenho menos disponibilidade porque, lá está,a minha filha precisa de mais apoio, e eu opto por ela. Mas são trabalhosem que não faço sacrifício.

Utilizada como elemento de diferenciação sexual, esta assumida incli-nação para o trabalho doméstico abarca, de resto, os encargos com os fi-lhos. Por exemplo, Ivone reconhece que, «por ser mulher», é mais «arru-mada» e também «uma mãe mais galinha», colocando-se inclusive mais àdisposição por ter «mais jeito» do que o marido, que não faz «tão bem»,porque é «mais brusco ou tem menos paciência». Numa tentativa de expli-cação espontânea da diferença sexual, Ivone acrescenta o «tipo de educa-ção» à diferença biológica entre os sexos que, em seu entender, define o«ser mulher». Assim, uma ausência de controlo parental na educação dohomem serve de argumento tanto para a maior capacidade de «autonomia»e «eficiência» de Henrique – «as pessoas que são criadas no ‘deixa andar’desenrascam-se muito mais» – como para a sua «preguiça em ajudar».

Do predomínio masculino à diluição do casal na família

Uma comunicação conjugal dominada pelos assuntos relacionadoscom a actividade profissional do homem, uma organização dos recursoseconómicos em que a tutela da fatia maior dos rendimentos e da pou-pança é nele delegada e uma fusão entre o tempo para o casal e o tempoda família constituem aspectos do funcionamento familiar que, em traçoslargos, distinguem os casais com trajectórias de hipergamia prioritária. Sendorelativamente pouco invocados os pretextos para o desacordo ou o con-fronto entre os cônjuges, a prioridade que as mulheres com este tipo detrajectória conjugal atribuem à maternidade, aos encargos familiares e àcarreira profissional do homem vai de par, ainda assim, com a emergênciade focos de tensão conjugal, com sejam o questionamento da própria auto-

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O primado da família e a prioridade da carreira do homem

nomia feminina implícito nas atitudes do cônjuge, a crítica de determi-nados comportamentos masculinos que a mulher acusa de individualistasou «egoístas», a desvinculação do homem face aos encargos familiaresou, enfim, a ausência de afinidades «culturais» no casal.

«É mais ele a falar dos problemas dele»: prioridades na comunicação conjugal

Nos casais com trajectórias de hipergamia prioritária, algumas dimensõesda dinâmica conjugal são particularmente elucidativas da importânciaatribuída à carreira profissional do homem. Este aspecto pode observar--se, em primeiro lugar, nalguns traços da comunicação conjugal subor-dinada a temáticas que se prendem com a actividade profissional dosmembros do casal. Assim, por um lado, nalguns casos predomina umaausência de diálogo em torno do quotidiano profissional, ausência essaque funciona como sintoma de uma divisão mais ou menos rígida entrepúblico e privado, ou seja, entre trabalho profissional e vida familiar, eausência de diálogo essa que ora é consensual entre os cônjuges (Ivone),ora pode frustrar a necessidade de partilha (Manuela).

Ele até, muitas das coisas do que faço, tem uma ideia, mas não sabe,como eu não saberei muitas dele, com certeza. Portanto, ele não discute nemtraz os problemas para casa, nunca foi hábito dele, nem eu quero! Nemmesmo falarmos muito a nível de casos particulares de serviço, uma situaçãoou outra... Depende de um caso ou de outro, uma situação particular, masnunca entramos muito no problema [Ivone].

Falamos muito pouco em casa. Ele diz que só as coisas boas é que de-viam ser trazidas para casa e que os problemas ficam na rua. Mas eu achoque não. Eu acho que tudo deve ser partilhado. Eu aí também não concordocom ele. É assim, isso é uma das coisas que ele tem má e que lhe estou sem-pre a dizer desde o princípio. [...] A posição dele é assim, «eu não tenho quevir para casa incomodar-te com as coisas que estão lá fora, os problemas sãomeus». E eu achava que não, achava que as coisas eram para dividir e paraconversar, e assim. Continuo a achar, acho que sim, mas ele achava que não!Então, a partir daí «não queres, tudo bem», ele fica com a dele e eu fico coma minha! Acabou-se! Ele, por exemplo, em relação a doentes, não fala, por-que ele diz que é sigilo profissional, portanto nem que seja pessoas amigas.E eu pergunto «o que é que a fulana tem?», nunca me diz nada, diz que eunão tenho nada que saber. [...] Como ele não fala do dele, eu também nãofalo do meu! [Manuela].

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Por outro lado, a actividade profissional do homem tende a impor-secomo tema de conversa, atestando a primazia da sua profissão e carreira.Assim, os cônjuges podem «falar muito sobre trabalho», mas «pouco»sobre o trabalho profissional da mulher, porque, esclarece-nos Amália,«ele não gosta», «tem pouca paciência» para uma actividade que não lhe«desperta interesse». Já a profissão de António, pelo contrário, «interessa»a Amália, ciente de que o marido «tem mais necessidade de falar sobreisso». A precedência da actividade profissional do homem enquanto temade conversa deriva, já se vê, não apenas da prioridade que a mulher reco-nhece à sua profissão, mas também do lugar central que esta ocupa naidentidade masculina. Essa precedência implica a exclusão parcial ou total,no plano da comunicação conjugal, não apenas da actividade profissionalda mulher, mas também dos assuntos relacionados com o universo dacasa, ou mesmo os cuidados com os filhos e a sua educação. Amália, porexemplo, confessa que «evita aborrecer» o marido: «Ainda agora o meufilho do meio teve um problema de saúde, assim uma coisa e eu não lhedisse para não o aborrecer.»

Falamos muito sobre trabalho, mas sobre o meu pouco, porque ele de-sinteressa-se e conta muito é coisas dele. Falamos muito mais sobre o dele doque sobre sangue. Acho que é uma coisa de que ele não gosta. Quer dizer,nesta especialidade há muito poucas pessoas a gostarem de transfusão san-guínea [riso], e ele tem pouca paciência para ouvir falar de transfusões, do as-sunto em si. O que não quer dizer que não tenha boa impressão sobre mim,porque eu acho que tem, sinceramente, mas pela forma como eu exerço aminha actividade. [...] Ele tem mais necessidade de falar sobre isso [o seu tra-balho] ou então, se calhar, eu ouço-o melhor porque também me interessa.É ao contrário, a minha profissão a ele não desperta interesse e a dele a mimdesperta-me, portanto gosto de o ouvir falar, de descrever aqueles casos. Porexemplo, quando começou a cirurgia, ele filmava as cirurgias e passava os ví-deos lá em casa e eu gostava de ver, está a perceber? [...] Eu acho que possofalar sobre tudo e de tudo com ele, não evito falar de nada. O que eu evito édizer-lhe determinadas coisas que eu sei que o podem aborrecer e que o vãoaborrecer. [...] Por exemplo, há coisas que eu acho que se vão resolver e queé melhor ele nem saber, porque lhe vão pesar, não digo [Amália].

De resto, há também que dissimular qualquer vestígio de um eventualdesinteresse no que respeita à profissão do homem, adoptando precisa-mente a mulher uma postura atenta num contexto de comunicação emque «é mais ele a falar dos problemas dele» (Anabela). Já o desinteressedo homem pela actividade profissional da parceira não só é tolerado

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O primado da família e a prioridade da carreira do homem

como, por vezes, é justificado por esta. A este respeito, Felícia confessaque «conta mais ele [o marido] do que eu, também porque aqui passa--se menos». Reconhecendo a maior exigência de uma actividade profis-sional «mais activa» como a de Fernando, a entrevistada tolera o alegadodesinteresse do marido no que respeita à sua profissão, mas não a ausên-cia de apoio quotidiano e a «atitude muito passiva» do parceiro. Esta ati-tude pode, nalguns casos, ter na sua origem um menosprezo pela activi-dade profissional da mulher – «acho que ele não dá tanta importânciaao meu trabalho» (Anabela) – ou simplesmente uma visão depreciativa– «é a tal imagem da funcionária pública que não faz nenhum» (Felícia).Porém, se Felícia absolve Fernando, cuja «atitude de respeito» – revela-dora de quem a tem em «bom conceito» – vai de par com um «apoio la-tente», já o desdém do marido de Anabela pela sua actividade profissionalé, de acordo com esta entrevistada, uma atitude conveniente à desvin -culação masculina das tarefas domésticas.

Ao longo da minha vida, e desde que ele faz parte da minha vida, eleteve uma atitude muito passiva em relação aos meus estudos e em relaçãoao meu emprego. [...] Enquanto estudávamos, eu tive que ter uma grandeforça de vontade para não deixar de estudar, porque ele faltava imenso, eleia-me pôr à escola e buscar e, muitas vezes, por ele eu faltava à escola. É assim: ele não me prejudicou, mas não me incentivou por aí além, teveuma atitude passiva. [...] A profissão dele... exige mais trabalho. Ele não meapoia muito. Ele acha que, como sou funcionária pública... O apoiar, deachar que eu sou uma boa profissional... Eu acho que ele me tem em bomconceito – porque eu às vezes tenho-o ajudado no escritório quando ele estámais aflito –, mas agora apoiar, apoiar, não noto nada assim... [Felícia].

Eu acho que ele não dá tanta importância ao meu trabalho, enquantoeu... Apesar de sermos os dois colegas, pronto, temos as especialidades...Não estou a dizer que ele veja isso, estou a dizer que acho que ele vê o tra-balho dele como mais importante que o meu. Eu não digo que ele sinta isso,mas como... Eu acho que é mais cómodo para ele pensar assim, porque assimpermite-lhe não ajudar tanto em casa [riso] [Anabela].

Importa, enfim, referir que à quase ausência de diálogo sobre o tra-balho profissional da mulher – invocando claramente, em determinadoscasos, o estatuto secundário que essa actividade assume no casal face àimportância da profissão do homem – algumas entrevistadas contrapõemo apoio do cônjuge em situações críticas. A ausência de um incentivodo homem parece ser, de certa forma, compensada com o seu apoio pon-

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tual no desabafo sobre momentos ou situações particularmente difíceisno local de trabalho. Felícia, por exemplo, sublinha o apoio «latente» domarido, apoio este que só se revela nos «maus momentos», quando sur-gem «problemas» não propriamente relacionados com a actividade pro-fissional em si, mas com as relações e as situações no local de trabalho.De resto, também pode acontecer que a ausência de troca de ideias sobreaspectos relacionados com a profissão entre os membros do casal se fiquesimplesmente a dever ao desencontro de competências que resulta daheterogamia profissional. Veja-se o caso de Ivone. Esta geóloga casadacom um advogado admite que o mútuo desconhecimento do conteúdodas actividades profissionais exercidas condiciona as possibilidades deum diálogo quotidiano acerca dos acontecimentos no local de trabalho,reduzindo a comunicação a pontuais desabafos. Ainda assim, sublinhaa importância de «ter ali alguém com quem eu chego à noite e possafalar», ou seja, de um apoio que, não podendo aplicar-se às competênciasprofissionais, nem por isso deixa de ter implicações no seu desempenhono local de trabalho. No entanto, é de ressalvar o facto de Ivone ser aúnica mulher entre as entrevistadas com este tipo de trajectória conjugal areconhecer que o marido está sempre pronto para incentivá-la a umaaposta mais empenhada na carreira profissional.

Sinto que há um apoio latente, mas talvez eu também não necessite de...Eu se tiver algum problema... Ainda no Natal passado discuti com o meuchefe. Nós somos extremamente amigos, foi daquelas discussões entre aspessoas que se querem. E ele [o meu marido] apoiou-me imenso, imenso e,talvez nesse sentido, apoia. Nos maus momentos, apoia [Felícia].

É um certo apoio que a pessoa encontra ali, discute determinados assun-tos com ele, não muito no aspecto profissional, reflecte-se é depois no as-pecto profissional. Quer dizer, porque eu não falo muito, como disse, doserviço, deste aspecto ou daquele, até porque há coisas que ele não entende,como eu não entendo algumas coisas da área dele. [...] Mas, pronto, sei queele está ali para eu poder discutir um pormenor ou outro. Pelo menos, dá--me outra visão da situação... Isso, para mim, é importante. Eu gosto de estarrodeada de pessoas e, portanto, se não sentisse esse apoio da parte dele, secalhar, não estaria casada. É importante para mim ter ali alguém com quemeu chego à noite e possa falar [Ivone].

O poder e a negociação difícil

Para além do plano comunicativo, onde se revela o desequilíbrio daimportância respectivamente atribuída à actividade profissional de cada

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O primado da família e a prioridade da carreira do homem

membro do casal, o familiarismo subjacente a este tipo de estratégia de ar-ticulação trabalho-família adoptada pelas mulheres com trajectórias conju-gais de hipergamia prioritária manifesta-se, também, a pretexto das tensõessubja centes aos diversos pontos de desacordo na relação conjugal. Asestratégias de articulação trabalho-família não só resultam de escolhas maisou menos afectadas por um conjunto de condicionalismos, como in-terferem, elas próprias, na interacção conjugal e familiar. Assim, apriorida de que estas mulheres conferem à família está, de certa forma,na origem quer da discrepância observada no plano do valor que a car-reira profissional assume para cada elemento do casal, quer de um de-sequilíbrio de poder na negociação conjugal.

Rejeitar a tese de uma associação mecânica entre a capacidade de ne-gociação conjugal e os recursos de que é detentor cada membro do casal,associação essa defendida entre os adeptos da designada teoria dos recursos(Blood e Wolfe 1960), não significa necessariamente cair no erro degrande parte das teorias que, insistindo na relação directa entre a con-quista do estatuto da mulher e a sua entrada no mercado de trabalho,esquecem, por exemplo, que, «historicamente, o salário não foi suficientepara conferir a autonomia ou um estatuto mais elevado aos trabalhado-res» (Tilly e Scott 2002 [1987], 11). De resto, presumir a existência deuma associação directa entre a autonomia individual e o exercício deuma actividade profissional tornaria difícil analisar a própria relação entreessa autonomia individual e a complexidade do «enredo conjugal» (Kauf-mann 2002 [1992]), ou seja, entre o acesso directo às condições de existênciaproporcionado por essa autonomia, por um lado, e as «condições de co-existência» (Lahire 1995) que definem particularmente as estruturasda interdependência entre cônjuges, por outro.

Este trabalho revela que, na negociação conjugal, estão precisamenteem jogo – entre outros aspectos, desigualdades a nível dos recursos, mastambém as próprias soluções encontradas para conciliar a vida profissio-nal e a vida familiar. Com efeito, algumas familiaristas confessam sujei-tar-se ora à desvinculação do homem face aos encargos domésticos e fa-miliares – desvinculação essa justificada, como já tivemos oportunidadede verificar, por uma indisponibilidade muitas vezes legitimada pela prio-ridade reconhecida à sua actividade profissional –, ora a determinadasatitudes e exigências sustentadas pelo argumento da discrepância de ren-dimentos, argumento esse utilizado para, claramente, reforçar a posiçãodo elemento masculino na negociação conjugal. Na verdade, ainda quea modalidade mais frequente de organização do dinheiro nestes casaisassente numa organização fusional do dinheiro, casos há em que os côn-

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juges conservam individualmente as suas poupanças, prevalecendo aquiuma delegação da tutela no homem sobre a maior fatia dos recursos fi-nanceiros. Aliás, algumas situações de desacordo e conflito conduzem amulher a acatar a vontade do cônjuge em virtude da forte desigualdadeeconómica no casal.

O caso de Amália é, a este respeito, exemplar. Ambos, ela e o marido,são titulares de todas as contas bancárias do casal, mas a entrevistada su-blinha que é António quem tutela «os dinheiros todos a prazo», por setratar de uma tarefa de gestão que a entrevistada prefere não ter a seucargo: «não quero saber, nem me interessa». No entanto, é também estehomem – cuja «generosidade» material para com o próximo Amáliaexalta, e que insiste em partilhar consigo a gestão do dinheiro – quemreclama a sua «atenção» para si e para a família, reclamação essa inter-pretada como «cobrança» de quem, por outro lado, «nunca se queixoupor [ela] ganhar menos». Em lugar de actuar pela simples associaçãoentre os recursos e a capacidade de negociação com o cônjuge – comolevaria a acreditar a teoria dos recursos –, a interacção conjugal trans-forma, na realidade, a simples negociação dos recursos num processo in-sidioso e multifacetado. Já a identificação da estratégia de articulação tra-balho-família contribui para revelar que a «opção» da mulher em darprioridade à família não é tão imune às condições relacionais como al-guns defendem (Hakim 2000). Com efeito, estas críticas do homem sãointerpretadas pela mulher como acusações ao exercício da sua própriaactividade profissional e respectivas implicações sobre a disponibilidadefeminina por ele idealizada. É, afinal, a própria autonomia da mulherque, quando questionada pelo homem, se traduz num foco de tensão entreos membros do casal.

O dinheiro nunca foi um ponto de conflito entre nós. Eu acho que omeu marido é uma pessoa muito generosa... é uma pessoa que se preocupacom os amigos e com as pessoas que tem à volta e que ajuda, do ponto devista monetário. [...] Ele nunca se queixou por eu ganhar menos ou porqueachava... Só que, às vezes, quando nos zangamos, o que ele cobra é o eu nãolhe dar tanta atenção em relação a ele ou em relação à família ou porque...Por isso é que eu escolhi essa especialidade. É raro acontecer, mas de vez emquando diz isso. E eu, sim, poderia dar-lhe mais tempo, mas era se não fossea nossa filha. Não por causa do serviço! E também por causa das minhas ur-gências de vinte e quatro horas, ele é muito contra e eu também... Só queisso prejudicaria tanto os colegas aqui e estamos em igualdade de circuns-tâncias, que eu acho que não tenho direito de o fazer.

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O primado da família e a prioridade da carreira do homem

O desfasamento de rendimentos no casal a favor do homem pode,contudo, traduzir-se numa assimetria de poder entre os cônjuges, assi-metria essa desde logo evidente na organização do dinheiro. A situaçãode Anabela é paradigmática do recurso, por parte do marido, à forte dis-crepância de rendimentos na justificação de despesas alheias às necessi-dades do colectivo familiar. Não se estranha que o consumo individua-lizado resulte num foco de tensão em casais caracterizados pela prioridadeque a mulher confere às necessidades da família sobre a sua própria ac-tividade profissional, como se a primazia reconhecida ao homem – de-nunciando um resquício do modelo de ganha-pão masculino (Crompton2006) – se circunscrevesse exclusivamente a uma maior disponibilidadepara a sua actividade profissional. Entre as entrevistadas com este tipo deestratégia, Anabela distingue-se pelo facto de o rendimento do marido nãoser, nem mesmo parcialmente, transferido para a conta comum do casal.Esta ausência de fusão financeira, que não deixa de colidir com o modelorepresentado pela família de origem de Anabela – «Os meus pais semprepuseram tudo em comum, todo o dinheiro que ganhavam punham tudoem comum, e não havia ‘este dinheiro é meu e este é teu’» – traduz-senuma total absorção do seu próprio salário com as despesas correntes:«O meu dinheiro está todo gasto para os colégios, para as explicações,para o supermercado...» A total aplicação do salário da entrevistada nasnecessidades do agregado – ilustrando a fusão da feminilidade com a fa-mília subjacente à própria estratégia de articulação trabalho-família – con-trasta com a atitude de Álvaro, cujos recursos só estão parcialmente aodispor dos encargos familiares quando se esgotam os rendimentos deAnabela. Ora, no plano dos recursos, as prioridades dos cônjuges são,muitas vezes, contraditórias. As implicações das normas de género ma-nifestam-se nesta diferença entre uma atitude feminina grosso modo fu-sional e os comportamentos individualistas do homem no plano da or-ganização do dinheiro. A título ilustrativo, vale a pena observar odiscurso de Anabela, que, aproveitando a oportunidade de desabafo, sealonga nas palavras, interpretando como «egoísmo» uma atitude orien-tada para um consumo individualista – «barcos» ou «antiguidades» –, emlugar de um consumo em função das necessidades e do bem-estar da fa-mília e do casal. Em particular, a aquisição de um espaço destinado aoexercício da profissão do marido – espaço esse com uma área superior àda própria habitação familiar – revoltou a entrevistada, para quem foi aprópria dimensão da habitação a ter impedido a concretização do desejode avançar para outra gravidez.

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Ele inicialmente, quando começou a ter mais dinheiro, começou a gastar,porque nós praticamente não comprávamos roupa e ele começou a comprarroupa para se vestir melhor. Blazers e essas coisas. Eu sempre fui muito maisterra-a-terra. Fazia-me confusão aquele dinheiro... Nem em carpetes, nemnada! Quer dizer, as coisas práticas da casa, ele não liga nenhuma! Só queré coisas antigas! [...] Eu acho que o dinheiro era muito mais preciso para ou-tras coisas, e às vezes penso que é um egoísmo da parte dele essas coisas,mas não sei explicar. Antiguidades, barcos sem ser barcalhões, um barco amotor, um barco à vela que é sempre uma pechincha... [riso]. Acho que éum vício que é superior a ele. Ele não faz aquilo por uma questão de mechatear. [...] Enquanto os nossos amigos vão viajar para o Brasil e para não-sei-quê... Uma viagem são quinhentos ou mil contos.. Não sei. Ele comprauma caixinha, a viagem desapareceu e a caixinha está lá! Pronto, o consul-tório [dele] reconheço que o comprou barato. Na altura, também discutimosmuito, porque o consultório era maior do que a nossa casa, e nós já vivíamosnuma casa de três divisões há anos. Mas ele quis comprar um consultórioali num prédio que era bom. Era de facto ao pé de casa e eu hoje reconheçoque foi um bom investimento e que dá muito jeito ter o consultório ao péde casa, porque se surge alguma coisa com os miúdos ele está ali ao pé, por-tanto reconheço. [...] Às vezes penso que só se me divorciasse é que ele dei-xava de ser... Não sei, porque às vezes penso assim: se eu pusesse os pésmesmo à parede e dissesse assim «Se fizeres isso, vou-me embora de casa»,será que ele voltava atrás?

A diferença de rendimentos no casal a favor do homem, que enfimnão se estranha quando a primazia atribuída à família vai de par com aprioridade à carreira do homem, dá assim lugar na trajectória de hipergamiaprioritária a uma autoridade masculina que se manifesta, por exemplo,no carácter «dócil» e «submisso» de Amália – «Eu sou uma pessoa muitomais dócil, muito mais submissa, e ele é muito mais agressivo e autori-tário» – ou no consentimento contrariado de Anabela. No caso desta en-trevistada, embora seja o desacordo face às decisões do marido – o des-tino dos recursos financeiros do cônjuge – que aviva a principaldesavença no casal, a vontade do último sai invariavelmente incólumeda negociação conjugal.

Eu, por um lado, sou uma pessoa que aceito as coisas com naturalidade.Aceito naturalmente. Não estou a dizer que deva ser assim ou não. Às vezes,discutimos coisas com que não estamos de acordo e ele acaba sempre por fazero que quer em certas coisas, sobretudo nessas partes de gestão de dinheiro.

Noutros casos, a mulher também delega no cônjuge a tutela da maiorfatia do dinheiro da família, sendo transversal o relativo desconheci-

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O primado da família e a prioridade da carreira do homem

mento quanto à gestão exercida pelo homem. Tal como confessa Ma-nuela, «quanto é que ele tem, não sei, porque nunca lá fui ver, nem vejoos extractos dele; se precisar [de dinheiro], peço, e muitas vezes ele diz‘já estás a gastar muito’». De resto, apenas Felícia manifesta algum receioem colocar todo o seu dinheiro à disposição do casal, permanecendocom uma conta bancária apenas em seu nome e no do seu pai, opçãoesta interpretada como fruto de uma necessidade de autonomia que aentrevistada confessa ter surgido após uma ruptura temporária com omarido, quando ainda namoravam: «Desde aí, pensei ‘eu vou ter o má-ximo de autonomia em tudo, em ter um grupo de amizades, autonomiafinanceira, para que se houver outra ruptura eu não ficar de mãos a aba-nar’.» Por outro lado, essa interpretação da sua atitude de salvaguarda fi-nanceira sai reforçada com a confissão do sentimento de humilhaçãoque, de certa forma, a atingiu quando, no início da conjugalidade, viveusob a total dependência económica do marido.

Eu, quando já trabalhava aqui, não ganhava muito. Ele é que já tinhaum bom ordenado e nas férias, que fazíamos juntos, o jantar fora – passáva-mos a vida a jantar fora! – esta vida que fazíamos no namoro, era ele quepagava tudo. Eu pagava aquilo que podia, não é? [...] Quando [eu] não tra-balhava, ele dizia que eu era muito gastadora. Talvez fosse [riso]. E eu com-preendo, porque há sempre a sensação de que me estás a gastar o dinheironalgumas coisas, não nos bens essenciais e nem para as crianças. Mas, porexemplo, eu gosto muito de levar os miúdos ao cinema, ao teatro, conhecertudo, museus, tudo! Ele achava que não era preciso fazer isso todos os fins-de-semana e durante a semana. Como não trabalhava, também queria fazerisso durante a semana. Ele, algumas vezes, mandou-me à cara isso! Algumasvezes! Eu agora estou mais calma, mas eu era muito intempestiva. Reagiamuito mal, ficava danada, furiosa, e dizia que o meu trabalho não era remu-nerado, mas também havia uma remuneração para o meu trabalho, porqueeu trabalhava em casa.

Assim, o significado da decisão de conservar uma conta bancária se-parada equipara-se ao do exercício de uma actividade profissional mesmoquando os rendimentos do homem são mais que suficientes para o sus-tento do agregado. Acautelada, a atitude de Felícia demonstra que a dis-ponibilidade da mulher para a família não se concretiza a qualquer preço,não podendo, afinal, essa prioridade traduzir-se num défice intolerávelde autonomia.

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A integração no exterior e a familiarização do tempo do casal

A prioridade que estas mulheres conferem à vida familiar não é alheiaà interacção da família com o exterior e ao próprio espaço do casal. Narealidade, pode dizer-se que a abertura da família ao exterior não só tendea ser pouco individualizada, como está dependente da própria lógica fa-miliar dos amigos. Ou seja, as entrevistadas com estratégias familiaristas con-fessam privar pouco com as «suas» próprias amizades – que geralmentefazem parte da rede amical de ambos os cônjuges – e depender muito dociclo de vida familiar dos amigos, geralmente casais com filhos de idadespróximas das dos seus. Por outro lado, apesar da diversidade de atitudesface ao tempo disponível para desfrutar da relação a dois sem a família, oesvaecimento dos momentos reservados ao casal paira como uma ameaça.

Ainda que algumas entrevistadas com este tipo de trajectória conjugalprocurem cultivar algumas amizades pessoais, a integração no exteriorprocessa-se, sobretudo, colectivamente, ou seja, «há mais amigos docasal» (Ivone) do que amizades individualizadas. Casada com umhomem «mais ligado à família», Felícia, por exemplo, faz questão de queas suas amizades sejam absorvidas pela família e vividas de acordo comuma lógica colectiva, ou seja, como amizades da família e com a família.Também a expressão de Anabela «juntos com amigos que tinham filhoscomo nós» é elucidativa desta lógica de integração da família no exterior,integração essa que é, todavia, «sempre» fruto de «iniciativas dele». JáIvone sublinha, de igual modo, que «temos mais amigos na mesma si-tuação que nós, porque têm miúdos...». A prioridade ao cuidado e acom-panhamento dos filhos é, enfim, evidente no «investimento para as crian-ças» que esta forma de convívio entre amigos representa.

Outra, porém, é a situação de Amália, cujo núcleo familiar se carac-teriza sobretudo por um fechamento face ao exterior. Os amigos do casalsão «muito poucos», e as relações que ambos mantêm pontuais e indivi-dualizadas. Os encontros de Amália com as suas amigas são, com efeito,muito pouco frequentes – «para festejar alguma coisa de alguma delas,ou isso» –, porquanto a entrevistada se depara, muitas vezes, com a re-sistência do marido. O facto de Amália «evitar» sair com as suas amigas,simplesmente para uma esporádica ida ao teatro, revela bem que o fami-liarismo subjacente às soluções para articular a vida profissional e a vidafamiliar sai reforçado de um quadro conjugal que ergue fronteiras à pró-pria individualização da mulher.

A dinâmica familiar associada a uma estratégia de articulação trabalho--família que confere prioridade à vida familiar pode, enfim, caracterizar-

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O primado da família e a prioridade da carreira do homem

-se por um fechamento progressivo da família face ao exterior. Menosjovem que as restantes entrevistadas com este tipo de trajectória conjugal,e há mais anos casada, Manuela reconhece que, com o tempo, ela e omarido se tornaram «mais caseiros». Inexistente durante a semana, a «vidasocial» do casal circunscrevia-se, noutros tempos, aos fins-de-semana. To-davia, adquirida com o objectivo de reunir mais frequentemente o pró-prio núcleo familiar, uma segunda habitação veio contribuir para atenuarainda mais o convívio com o «círculo de amigos». Aliás, são os próprioshábitos dos amigos – «quase todos» também proprietários de uma se-gunda habitação para onde rumam nos fins-de-semana – a ecoar o fe-chamento da família sobre si mesma. De resto, é com desalento que estafamiliarista reconhece ter sido em vão que utilizou, na aquisição de umasegunda habitação, o argumento da oportunidade para reunir um núcleofamiliar que, desde então, acabou por se fragmentar ainda mais: «agoranunca vão connosco».

No que toca à relação conjugal, é modesto o tempo que estes casaisreservam aos momentos a dois sem a família. Com efeito, não é sur-preendente que a chegada dos filhos se traduza numa menor disponibi-lidade do casal para si próprio, mas, paradoxalmente, esta mulheres pro-curam muitas vezes amalgamar os momentos com os filhos e o tempodo casal como forma de compensar o défice de tempo apenas destinadoà relação com o cônjuge. Deste modo, pode dizer-se que a estratégia fa-miliarista também se traduz numa familiarização do tempo do casal. Ocaso de Anabela é ilustrativo desta atitude, sublinhando a entrevistadaque, à excep ção das «saídas» do casal para uma ida ao cinema ou de umaviagem esporádica «os dois sozinhos sem filhos», a relação conjugal é ab-sorvida pela relação com os filhos. Esta familiarização do tempo do casalé assim justificada: «aceitámos sempre os miúdos como uma coisa muitonatural, e nunca fizemos grandes complicações».

Já Felícia reconhece abertamente não só a prioridade que ela e o ma-rido atribuem aos filhos no que toca à distribuição do tempo de lazer,mas também a ausência de uma procura por momentos apenas dedica-dos ao casal: «tentamos pouco, não fazemos por estar...». Esta precedên-cia da maternidade sobre a conjugalidade não deixa de se enquadrar nostraços marcantes da estratégia familiarista que temos vindo a identificarna primazia que estas mulheres atribuem ao papel de mãe, em particular,sobre dimensões mais individuais da realização pessoal como é o casoda actividade profissional, ela própria igualmente ensombrada pela prio-ridade reconhecida à carreira do homem. No entanto, no ressentimentode Felícia a respeito da falta de tempo destinado ao casal – «se saíssemos

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mais sozinhos, talvez a relação fosse ainda mais sólida» – entrevêem-seoutros factores que não deixam de contribuir para que o refúgio nos fi-lhos constitua o principal elo de ligação entre os dois. Com efeito, estaentrevistada reconhece que a ausência de afinidades «culturais» entre elae o marido constitui um foco de tensão conjugal. Entretanto, compara sis-tematicamente o homem com quem casou com a figura «culta» do paina qual ela própria se revê: «O meu marido é uma pessoa que não temtantos anseios culturais como o meu pai. O meu pai era uma pessoa, talcomo eu sou, que gostava muito de nos levar ao cinema, de nos falarsobre história.» O pai, com quem partilha uma conta bancária – opçãoque, importa recordar, resulta da necessidade de salvaguardar a sua auto-nomia em caso de ruptura conjugal – surge assim como representanteda família de origem e das expectativas sociais presentes na escolha docônjuge, expectativas de alguma forma goradas, como se depreende dassuas palavras: «Eu gostava que o meu marido tivesse um curso superior,no fundo acho que tem a ver com isso.» Mas esta expectativa frustrada écontrabalançada com as condições económicas que a situação profissio-nal de Fernando proporciona, condições essas, afinal, decisivas na escolhado cônjuge, como indiciam as expectativas que Felícia deposita nos seusfilhos: «prefiro um filho sem um curso superior, mas com um bom níveleconómico, como o meu marido, do que se calhar o contrário». Emsuma, a estratégia familiarista vai de par, neste caso, com um complexobalanço – positivo e negativo – que a mulher faz do casamento. Salva-guardando algum ressentimento com a ausência de uma procura detempo para a relação conjugal, ausência que porventura não é indiferenteao défice de afinidades «culturais», Felícia tem «consciência» de que «pri-vilegia» os filhos em detrimento do casal. No limite, a estratégia familiaristaconsubstancia-se aqui numa entrega à maternidade que actua ora comoa razão, ora como a compensação de uma relação conjugal cuja apregoada«solidez», obviamente, nem sempre corresponde às expectativas deposi-tadas na conjugalidade.

Felícia não é, porém, a única entrevistada a ressentir-se com a ausênciade afinidades no casal. Amália também invoca a mesma razão para jus-tificar o facto de os tempos do casal estarem quase circunscritos às refei-ções, que constituem os únicos momentos de convívio com o marido.A entrevistada sublinha que, «quando estamos muito tempo sem isso[jantar a dois] acontecer, incomoda-nos aos dois», mas lamenta que omarido não goste suficientemente de teatro ou cinema – «uma coisa queeu adoro» – para acompanhá-la. Por outro lado, o nascimento da suafilha – a última de três – originou uma crise conjugal. Tal como a pri-

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O primado da família e a prioridade da carreira do homem

meira, dezoito anos antes, esta gravidez não foi planeada, tendo sido ape-nas sua a decisão de avançar, pois ter mais um filho representava paraAntónio «uma grande prisão». Perante a confessa descrença religiosa daentrevistada, pode ser tentador especular sobre o contributo da sua for-mação – Medicina – na aversão à ideia de interromper uma gravidez,mas importa sobretudo interpretar a sua atitude à luz do familiarismo sub-jacente à estratégia de articulação trabalho-família. Com efeito, tambémAmália receou que ambos ficassem privados de «sair à noite», mas des-valorizou a resistência de António, pois sabia que o tempo por este re-clamado para o casal se traduziria não tanto num empenho recíprocona vida conjugal, mas na maior disponibilidade dela para o marido.

Nós tivemos um problema grave. Aliás, acho que foi uma das nossas pio-res fases do casamento, senão a pior! E foi quando eu fiquei grávida do ter-ceiro, porque o meu marido não queria, porque os outros já eram grandes...E quando ele soube que eu estava grávida, quis que eu fizesse um aborto! E eu não fiz e assumi a gravidez sozinha! O que foi horrível, porque ele esteveo tempo todo, enquanto possível, a tentar dissuadir-me. E eu, convicta deque não, não era capaz! Eu nem sou católica, nem religiosa, nem nada! É uma questão de princípio! Monetariamente, ter mais um filho é uma des-pesa, mas não fazia diferença, está a perceber? O meu marido achava que erauma grande prisão, que íamos voltar ao princípio. Portanto, eram motivosmais de disponibilidade de tempo, que nós estávamos já habituados a sair ànoite e tínhamos de deixar de sair. Tudo motivos que têm a ver com a como-didade da pessoa, e para mim esses motivos não eram motivos suficientes.

Convém ainda referir que o tempo do casal pode ressentir-se de umaforma mais indirecta, devido à ausência de uma rede de apoio. «Umasimples ida ao cinema», lamenta Ivone, «deixámos de fazer, porque nãotínhamos ninguém de confiança ou alguém que mostrasse disponibili-dade para ficar com os miúdos e para nós sairmos». É, porém, na situaçãode Joana que a prioridade atribuída à família têm implicações mais ex-tremadas sobre o tempo do casal. Assumindo-se «muito protectora» dospais, Joana teve de prestar apoio durante vários anos à sua mãe, após ofalecimento do pai, e à sua sogra. Ao tempo para o apoio acrescia a pro-ximidade quotidiana da mãe – «tudo era sempre com a minha mãe» –que acabaria por afectar a privacidade do casal.

A minha mãe passava os fins-de-semana todos connosco, ia connoscopara todo o lado, ia lá comer a casa. A partir da morte do meu pai, em vez deser aquela coisa que os casais têm que vão a casa da sogra, nós não: a sogra

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[referindo-se à sua própria mãe] é que vinha a nossa casa! Era tudo ao con-trário! E depois, entretanto, tinha a minha sogra. Ela faleceu há seis anos. E eu, à minha sogra, também dava apoio. Portanto, tivemos sempre ora uma,ora outra. [...] Houve uma altura que foi um bocado complicada, porqueapanhou a fase de depressão da minha mãe, a fase de grande queda da minhasogra, queda no sentido físico, de envelhecimento, a morte dela e a depressãodo meu marido e aí tínhamos que... Mas o que é facto é que estes factoresforam muito prolongados e nós, por exemplo, férias e tudo era sempre coma minha mãe, percebe? E aí havia pouco... Começámos a sentir necessidade,e aí talvez mais ele me tenha aberto os olhos a mim, porque eu sempre fuimuito protectora dos meus pais e eu não estava descansada se não estivessecom a minha mãe quase debaixo das mãozinhas, coitadinha, percebe? Issofoi um processo que nós conseguimos fazer, foi um despertar para que eunão devia dar tanto apoio assim à minha mãe, quer dizer, quando ela estavabem... Quer dizer, conseguimos depois arranjar mais espaço para nós. Por-tanto, acho que foi um crescimento que nós fizemos na nossa relação familiar.

Da resignação à subestima da carreira profissional e do tempo para si

Por fim, nas situações de hipergamia prioritária, a experiência de dese-quilíbrio de poder no casal – e, particularmente, de uma dificuldade damulher em reivindicar a tutela partilhada dos recursos financeiros – nãoé alheia a um sentimento de abdicação. A ausência de uma lógica con-jugal mais alicerçada na negociação alarga-se assim ao universo dos en-cargos com a família e com a casa, ausência essa à qual as mulheres fre-quentemente respondem com uma atitude de resignação. Leonor, porexemplo, lamenta um quotidiano em contra-relógio que lhe retira otempo para si, reconhecendo que a vida em casal «limita sempre mais amulher do que o homem».

Tenho um bocadinho de tempo e às vezes ainda vou fazer umas ginásti-cas, umas natações, umas coisas... Mas o que eu sinto é que não consigoprogramar mais o meu tempo, está a ver? Quase que durmo com o tempocontado. Isso é complicado. Sinto falta de estar sozinha, está a ver?... A nossavida limita-me muito mais a mim... Mas eu aceito, porque não vale a pena.Aceito, senão passava a vida enrugada, está a ver? Não pode ser, a pessoatem que aceitar as coisas. Se não há outra hipótese de mudá-las é aceitá-las,senão a pessoa fica sempre uma infeliz. E eu não sou infeliz! [riso].

Também Anabela, médica como o marido, sublinha que «pensar nadinâmica da casa» constituiria sempre um entrave se pretendesse realizar

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O primado da família e a prioridade da carreira do homem

alguma actividade fora do seu horário profissional, tal como, por exem-plo, participar num congresso de Medicina. A entrevistada recorda a pri-vação do tempo para si com a chegada do seu quarto filho, ao contráriode Álvaro, que não teve de reorganizar os seus hábitos e projectos emfunção da criança.

Ele ainda hoje se quer ir a um congresso vai, e eu ainda hoje se tenhoque ir a um congresso, tenho que pensar na dinâmica da casa, das refeições,deixar as refeições escritas e não-sei-quê... E agora, com a bebé, voltou tudoa complicar-se, não é? Nunca fiz ginástica, comecei a fazer ginástica há doisanos. Gostava imenso de fazer, nunca tive muito tempo para essas coisas.Quando larguei a Associação e passei a ter mais tempo resolvi ir para a gi-nástica, mas depois... entretanto, fiquei grávida e depois deixei a ginástica.

Para a maior parte destas mulheres, o tempo para si representa umaabdicação, à semelhança do investimento fundamental à aposta numacarreira profissional. Assim, Irene repara que «hoje em dia as pessoas têmimensa dificuldade de abdicar e de perder coisas que tinham», num es-forço de valorização não apenas da prioridade que reconhece à vida fa-miliar sobre a vida profissional, mas igualmente da forma como acaboupor descurar o tempo para si ou para o casal sem os filhos.

Abdiquei de ir a festas, abdiquei de ir ao cinema, abdiquei – sei lá! – den coisas em função da família. E fi-lo de uma forma consciente e por acharque era uma coisa boa para mim e para todos lá em casa. Por exemplo, ima-gine que uma pessoa não tem filhos, sexta e sábado vai sair à noite, vai paraa discoteca, vai para aqui e para ali. Eu não ia! Eu não ia, porque não podiae porque não me apetecia. Quer dizer, abdiquei disso. Havia um concerto,e eu não ia, porque tinha um bebé pequenino e entendia que não o ia levarpara lá. Hoje em dia, vêem-se imensos pais com os meninos todos, às cava-litas... Quer dizer, eu acho que hoje em dia as pessoas têm imensa dificuldadede abdicar e de perder coisas que tinham – não é? – conquistadas em prolde um interesse da família. E eu acho que não fiz isso. Isso surgiu muito na-turalmente.

A resignação ou a subestima do sentimento de abdicação são, emsuma, as atitudes mais observadas, ainda que nem todas estas entrevista-das tenham vivido da mesma forma quer a contenção das suas aspiraçõesde carreira, quer a relativa renúncia aos momentos só seus. Filipa consti -tui, de certa forma, a excepção. A prioridade que esta entrevistada confereà família teve como reverso – pese embora os inúmeros apoios de fami-

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liares e empregadas com que, desde o início, o casal pôde contar – umsentimento de abdicação do tempo só para si, ocupado com a prática dasua actividade desportiva de eleição.

Eu gostava de ter mais tempo para fazer outras coisas de que eu gosto...coisas minhas. [...] Até porque eu gosto de correr, gosto de andar de bicicletae gosto muito do ar livre... Eu gostava muito de fazer triatlo, porque real-mente é feito ao ar livre, faz-se em zonas muito bonitas, a pessoa sai de fins-de-semana, não é? Aquilo, ao fim e ao cabo, as provas são feitas normal-mente fora de Lisboa, são em serras, são em zonas de rios, porque aquilotem a componente da natação. E, portanto, eu para poder fazer uma coisadessas tinha que ter mais tempo livre para poder ir treinar a uma piscina. Eunão tenho tempo realmente, portanto, eu não tenho tempo para ir nadar.

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Capítulo 3

A dupla aposta da mulher e a intangível proximidade social no casal

Um segundo tipo de trajectória conjugal caracteriza-se igualmente poruma crescente discrepância entre os cônjuges no que respeita à aposta nacarreira profissional, discrepância esta que, também nestes casais, favoreceo homem. Este tipo de trajectória conjugal assume, contudo, a designaçãode hipergamia progressiva, pois o crescente distanciamento socioprofissionaldo homem vai de par com uma articulação trabalho-família que, em lugardo princípio da prioridade à vida familiar, tem unicamente subjacenteuma concessão ao percurso profissional do homem. Esta cedência a umamaior aposta do cônjuge na sua actividade profissional não se traduz, naverdade, num desinvestimento da mulher na sua profissão. Sem reconhe-cerem a prioridade à vida familiar, estas entrevistadas preocupam-se, pelocontrário, em maximizar a sua disponibilidade para os dois universos. De-signámos, assim, estratégia maximalista concessora ao tipo de estratégia queas mulheres com trajectórias de hipergamia progressiva elaboram para articulara vida profissional e a vida familiar.

Tendo em vista a preservação do equilíbrio entre um forte empenha-mento, simultaneamente, na profissão e na vida familiar, as mulheresque vivem em uniões conjugais com este tipo de trajectória conjugal assu-mem, contudo, atitudes diversas, algumas moderando as suas ambições,outras aderindo a um ideal de polivalência. Embora, na maioria das vezes,possam recorrer ao apoio de empregadas ou familiares nas tarefas do-mésticas e nos cuidados à criança, estas mulheres não contam frequen-temente com o apoio do homem no trabalho doméstico. A cedênciaque fazem à carreira profissional do cônjuge não é, enfim, alheia seja aesta desvinculação masculina do trabalho doméstico, seja à crescente de-sigualdade económica entre elas e os cônjuges, desigualdade essa cuja or-

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ganização familiar do dinheiro – grosso modo pouco comunitária ou re-distributiva – não contribui obviamente para atenuar. Ainda assim, estasentrevistadas reafirmam a sua posição na negociação conjugal, uma vezque a própria vida familiar não só não tem prioridade sobre a actividadeprofissional, como não deve absorver o tempo exclusivamente reservadoao casal. A abertura ao exterior e a procura por um tempo apenas desti-nado ao casal são, deste modo, aspectos da dinâmica conjugal que suge-rem uma atitude mais exigente no que toca à separação entre o laço con-jugal e o laço parental. De resto, esta exigência e respectiva procura poruma relação mais negociada não são, afinal, estranhas à proliferação defocos de tensão conjugal.

Explicar o distanciamento social do homem: os limites da escolha do cônjuge

Entre os factores que contribuem para a hipergamia progressiva que ca-racteriza a trajectória destes casais encontra-se, nalguns casos, a própriasuperioridade socioprofissional do homem no momento da formaçãodo casal. Tal sucede nos casos de Vanda e Vítor, de Júlia e José, de Teresae Tomás ou, ainda, de Laura e Luís.

Vanda tinha vinte e seis anos de idade quando conheceu o marido,um ano mais novo e com uma origem social semelhante: ela é filha dechefe de secção na função pública e de gerente bancário; ele é filho dedoméstica e de chefe de polícia. Ambos licenciados, Vanda exercia entãoa profissão de jurista num gabinete da função pública, mas Vítor ocupa -va já um cargo de direcção numa empresa privada. Por sua vez, Júliatinha vinte e dois anos de idade quando conheceu José, seis anos maisvelho. Filhos de pequenos comerciantes, ambos eram já quadros na fun-ção pública, ainda que posicionados em diferentes escalões devido àdiferen ça de idades: ela era então técnica superior, enquanto ele ocupavao cargo de chefe de divisão. Quanto a Teresa, concluía ainda a licencia-tura quando engravidou do seu primeiro filho com Tomás, três anosmais velho, já licenciado e director de serviços na Administração Pública.Contando com o apoio da família, a entrevistada acabaria por terminara licenciatura sem interrupções e enveredar pela carreira académica. Ape-sar de terem origens sociais semelhantes – Teresa é filha de monitora emocupação de tempos livres e de gerente bancário; e Tomás é filho de do-méstica e de um pequeno comerciante –, a significativa diferença das posições socioprofissionais persistiu ao longo da vida conjugal. Final-

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mente, Laura e Luís têm também origens sociais próximas, ainda quemais favorecidas que as dos casais anteriores: a mãe dela é doméstica eo pai alta patente das Forças Armadas; ele é filho de doméstica e de di-rector de empresa. Quatro anos mais nova, Laura tinha vinte e um anosde idade quando conheceu Luís. Só viria a ingressar no ensino superiorcom vinte e sete anos de idade, cinco anos após estar casada, mas aindasem filhos. Quando conheceu o marido, trabalhava para uma empresaque organizava excursões turísticas nacionais e internacionais, enquantoele, engenheiro, exercia uma actividade mais exigente em recursos esco-lares, qualificações e responsabilidade na empresa privada onde, hoje,ocupa um cargo de directoria.

Noutros casos, a origem social, os recursos educacionais e a posiçãosocioprofissional dos cônjuges não permitem, de certa forma, entreveros contornos que a trajectória conjugal viria a assumir. Por exemplo, coma mesma idade que Raquel, Rogério tem uma origem social mais favore-cida: a sua mãe era secretária e o seu pai trabalhava como caixa de banco,enquanto ela é filha de empregada doméstica e de motorista de táxi. Estadesigualdade a nível das origens sociais, que à partida favorece o homem,não impediu, porém, que fosse a mulher a apostar mais na sua formaçãoescolar. Raquel e Rogério conheceram-se com vinte e um anos de idade,numa acção de formação no âmbito da qual ele era «monitor». O tipode aposta nos estudos de cada um contrastava, todavia, com os papéisde «monitor» e de «aluna» definidos na circunstância do encontro: Ra-quel frequentava o terceiro ano da licenciatura, enquanto Rogério nãoprosseguiu os estudos após concluir o décimo segundo ano de escolari-dade. Três anos depois, quando se casaram, já a entrevistada era assistenteuniversitária, Rogério cumpria o serviço militar obrigatório. Esta homo-gamia socioprofissional, alargada em virtude da superioridade dos recur-sos escolares da mulher, não faria prever que Rogério, hoje director deuma pequena empresa, viesse a contribuir significativamente mais parao orçamento familiar.

A situação de Raquel e Rogério encontra semelhanças com a de Olíviae Tiago, conquanto este casal se defina por uma acentuada heterogamiade origens sociais. Olívia tinha dezoito anos de idade quando conheceuTiago – dois anos mais velho – no «café» onde habitualmente se reuniacom os colegas da escola: «ele era amigo das pessoas da minha escola». O pai de Olívia trabalhava na empresa do avô, enquanto a mãe, licen-ciada, dirigia a sua própria farmácia. A família de Tiago, pelo contrário,dependia do parco salário agrícola do pai até este a abandonar, forçandoa mãe a vir procurar emprego numa fábrica em Lisboa, onde passou a

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viver sozinha com o filho. Olívia tinha vinte e quatro anos de idadequando casou com Tiago, mas a vida a dois tinha sido iniciada quatroanos antes. Esta coabitação sem casamento foi possível porque Olíviatinha herdado da avó uma casa. Durante esse período, a entrevistada dis-punha da mesada da mãe para se concentrar apenas na licenciatura. JáTiago se defrontou com a ausência de condições financeiras para conti-nuar a estudar sem trabalhar após ter concluído o décimo segundo anode escolaridade, empregando-se então como técnico de vendas. As con-dições materiais de existência de ambos no momento da formação docasal eram, portanto, assaz contrastantes. Todavia, tal como no caso deRaquel e Rogério, esta discrepância não permitiria entrever que, emboraOlívia – doutoranda – exerça uma profissão muito mais exigente em re-cursos educacionais, a diferença de rendimentos no casal favoreça hoje omarido.

De resto, no caso de Elsa e Bruno, a homogamia socioprofissionalrestrita observada no momento da formação do casal contrasta hoje comuma desigualdade socioprofissional e económica em benefício dohomem. Filha de proprietários agrícolas, o percurso de Elsa, directora deserviço num hospital público, ilustra sobretudo a reconversão interge-raccional de capital económico em capital escolar, enquanto o de Bruno,médico com consultório próprio e filho de pequenos comerciantes éilustrativo de um percurso de mobilidade ascendente.

No ponto seguinte, analisamos o processo que caracterizou a enamo-ramento entre Elsa e Bruno, enamoramento esse para o qual foram de-cisivos os contextos de interacção, bem como as afinidades. Trata-se deum casal cuja proximidade socioprofissional dos cônjuges no momentoda sua formação contrasta hoje com a diferença de estatutos e rendimen-tos. De seguida, terá lugar a análise das circunstâncias do encontro entreVanda e Vítor. Ilustrando a paixão entre aluna e professor, este caso revelatanto a importância que os papéis sociais prescritos pelas normas de gé-nero assumem no enamoramento como, simultaneamente, corrobora afunção dos locais de encontro – neste caso, o contexto universitário –na escolha homogâmica junto dos meios mais escolarizados. Vanda eVítor são exemplo da progressão de uma discrepância social no casal quejá se insinuava quando se conheceram.

«Estávamos na mesma luta»

Directora de serviço num hospital público, Elsa tem uma origem so-cial modesta se levarmos em linha de conta os recursos educacionais ne-

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cessários ao exercício da sua actividade profissional. Filha e neta de pro-prietários agrícolas, a entrevistada nasceu na aldeia onde cresceu com osseus seis irmãos, pais e avós. Os pais abandonaram a escola após teremconcluído a quarta classe, mas Elsa foi concretizando o desejo da mãeque, impedida de estudar pelo avô, projectou nas filhas a sua própria rea-lização pela via dos estudos.

A minha mãe queria era que nós estudássemos para nos desenvolvermos,para sabermos falar, saber estar, saber... Ela achava que as pessoas que estu-davam tinham outra capacidade de diálogo, de conversação, de inteligência,e fez tudo por isso, porque ela própria já queria ter estudado no tempo dela,e só não estudou por causa do meu avô materno... Como o filho mais velhofoi mau aluno, o meu avô já não deixou a minha mãe estudar, e então aminha mãe ficou sempre revoltada por não ter estudado.

Com admiração, Elsa retrata a mãe como «uma pessoa muito inteli-gente» e cujas capacidades de trabalho, que permitiam orientar a casa equase todo o trabalho no campo, se contrapunham às do pai, «muitopreguiçoso, mesmo no campo e tudo». Todavia, sob a égide do regimede Salazar, o direito e o dever da última palavra na família eram de an-temão atribuídos ao homem. Esta autoridade suprema traduzia-se, nocaso do pai de Elsa, em autoritarismo, já que o poder de facto, no quo-tidiano, estava nas mãos da mãe: «o meu pai era mais autoritário, mas aminha mãe mandava muito». Foi, com efeito, esse poder que permitiurealizar o desejo de, apesar da resistência do pai, «desenvolver» as filhasatravés dos estudos.

Sei que o meu pai não queria que nós estudássemos, porque achava queo que precisava era de pessoas para ficarem nas terras, e a minha mãe disseque nós tínhamos que estudar e pôs isso quase como uma imposição. O meu pai não apoiava tanto a opção de nós estudarmos e, portanto, paraele ter terras era muito mais importante do que ter um filho formado. [...]Mas ela fez a quarta classe em três anos.... Ela dizia «A mim não me deixa-ram, mas os meus filhos vão». Portanto, eu sei que lá em casa ela mandavanesse aspecto. Nisso, tinha algum poder, mas pelo resto acho que o poderdo meu pai se sobrepunha. [...] Ele mandava, mas como era muito pregui-çoso, mesmo no campo e tudo, a minha mãe é que orientava, porque elenão ia sempre. Os trabalhadores iam e ele ficava em casa, aparecia lá a meioda manhã. Era a minha mãe e o meu avô, o pai do meu pai que tambémvivia lá em casa, e portanto eles os dois é que orientavam.

Não é, pois, desprovido de revolta o discurso despiciente de Elsa emrelação à atitude do pai, de resto, «muito mais distante com os filhos»

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comparando com a «pessoa muito meiga» que a entrevistada identificana mãe. Com uma descendência numerosa e um marido desvinculadodos encargos do quotidiano, a mãe de Elsa delegava nas filhas mais velhasgrande parte da tutela dos filhos mais novos. As palavras da entrevistadasão suficientemente elucidativas da importância das irmãs – «Tambémacho que fui filha da minha irmã» – e das «referências maiores» que elasrepresentaram na sua educação.

Sinto que fui educada pela mãe e pelas irmãs. As minhas referênciasmaiores são com as irmãs. [...] Somos sete irmãos e vivíamos todos juntos...Nós é que éramos mães e pais uns dos outros, nós apoiávamo-nos muito...Eu, por exemplo, tratava da minha irmã mais nova, foi assim quase umafilha... A minha mãe orientava a casa e nós todos tínhamos que participar,nós tínhamos que fazer tudo, desde fazer a nossa roupa, coser à máquina,fazer as nossas cuequinhas... Todas nós éramos também tuteladas, se calharpela irmã mais velha, porque a irmã mais velha depois em casa tinha maisaquele papel de uma faz isto e outra faz aquilo.

No contexto desta educação exclusivamente feminina, a delegaçãomaterna da educação da entrevistada na filha mais velha assentava numaconfiança entre mãe e filhas ao ponto de permitir que, após ter concluídoa quarta classe, Elsa partisse rumo a Tomar, a cidade mais próxima da al-deia dos pais, onde viria a residir com a sua irmã mais velha, professoraprimária, durante os anos do liceu. Apesar da forte ligação entre Elsa e amãe, esta transição não deixou de representar uma primeira etapa de li-bertação da obediência aos pais e do «opressivo» fechamento da vida naaldeia. Recorrendo à distância e a «mentiras», foi paulatinamente con-quistando a sua autonomia e, sobretudo, consolidando uma consciênciareprovadora do contexto político – marcado pela ideologia do EstadoNovo – em que vivia. Terminado o liceu, não teve dúvidas de que já nãosuportava, também, a cidade «muito opressiva, muito elitista, muito con-servadora» que a tinha acolhido. O ingresso no ensino superior, mais doque a concretização das expectativas maternas, passou assim a significaruma possibilidade de evasão como outra qualquer que – tal como desa-bafa – «me permitisse sair dali». Com forte simpatia pela progressiva opo-sição ao regime salazarista, Elsa optou então por concorrer a uma facul-dade na capital. No regime, condenava particularmente a legitimação dojugo do homem sobre a mulher, jugo esse que revia na família de origeme, em particular, na situação da mãe. A vinda sozinha para Lisboa foi,portanto, vivida como a conquista da «liberdade total».

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Eu poderia ter ido para Coimbra, porque Coimbra fica muito mais perto,mas eu quis mesmo vir para Lisboa, porque Lisboa para mim era o centro,era cá que se passava tudo na altura, eram as lutas estudantis... [...] Os meuspais não me davam liberdade e não compreendiam, porque eles viviam naaldeia, que apesar de tudo é um ambiente mais fechado do que Tomar. [...]Eu vim de Tomar para cá sozinha e tinha liberdade total! Ia para todo o lado,com mais mentiras, menos mentiras, ou mais telefonemas a dizer ou mais aocultar do que a mentir, e tinha muita, muita liberdade!

Foi precisamente o ingresso no ensino superior e a frequência do uni-verso académico que proporcionaram o encontro com Bruno, funcio-nando a adesão às ideologias políticas de oposição ao regime como afi-nidade electiva por excelência. Alunos de diferentes faculdades, foramapresentados por amigos que tinham em comum. Bruno era membrode um dos «grupos que pertenciam a determinadas facções de oposiçãoao regime», grupo esse ao qual Elsa acabaria por aderir.

O Bruno andava noutro ano e andava noutra turma e noutra faculdade.Com ele não foi nada através das aulas, porque estávamos em anos diferen-tes, foi através de amigos comuns. [...] Mais do que agora a juventude, tí-nhamos ideais, lutávamos com determinados ideais... Tínhamos grupos dediscussão: «Por que é que não há liberdade?» [...] Ele pertencia a um dessesgrupos [de oposição ao regime], onde eu depois me vim inserir porque euestava noutro grupo... Pensei que era uma pessoa que tinha as mesmas ideiasque eu tinha, estávamos na mesma luta, a mesma ideologia política, os mes-mos pontos de vista e estávamos lado a lado, não é?

Se o contexto universitário proporcionou o encontro de duas pessoascom ideologias afins e destinos profissionais igualmente exigentes emqualificações, é também notável a semelhança entre os percursos de Elsa,com uma origem camponesa, e de Bruno, filho de um pequeno comer-ciante na capital. Com efeito, ainda que a exaltação de um percurso1 demobilidade ascendente esteja ausente das suas palavras, a afinidade es-pontânea com Bruno não foi porventura alheia à identificação com umaorigem social igualmente pouco favorecida em recursos educacionais.Por outro lado, não terá sido a ausência de exemplos masculinos de afectodecisiva para ter valorizado tanto o homem «muito meigo» que encon -

1 Percurso esse, aliás, marcado pela dureza de quem necessita de se empregar parapoder sustentar os seus estudos. Durante a licenciatura, Elsa trabalhou como dactilógrafana associação de estudantes, enquanto Bruno deu explicações de Matemática a estudantesdo ensino secundário.

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trou em Bruno? Não terá também o exemplo de «inteligência» da mãefuncionado como referência na escolha de um homem «inteligente»?

«Foi assim aquela paixão de aluna-professor»

Vanda confessa abertamente a importância do estatuto e das qualifi-cações do homem na escolha do cônjuge. A entrevistada nasceu em An-gola, onde viveu parte da infância, e não deixa de recordar o desafogocom que viveu a infância em África: «tínhamos três empregados no mí-nimo!». Ainda criança, contudo, veio para Portugal acompanhada pelamãe, os avós e o irmão. O pai permaneceu em Angola – só «vinha nasférias, no Natal» –, tendo retornado «muito depois», já Vanda entrava naadolescência. A transformação do contexto opulento da infância foiigualmente marcada pela fragmentação geográfica da família: «cada umarranjou os seus próprios locais para habitar». Em Portugal, a entrevistadapassou a viver exclusivamente com a família nuclear. Esta transformaçãodo modo de vida da família em nada afectou, porém, os seus laços comos avós, e particularmente com a avó, a quem coube a tutela da família– «mandava em tudo» – após a morte do avô. Falecida a avó materna,passou a mãe a assumir o papel de «pilar congregador» de uma famíliaque assume, portanto, a forma de um matriarcado.

Vivi a minha infância em África, em Angola, no interior, na terceiramaior cidade de Angola. Vivia com os meus pais e com os meus avós e como meu irmão, que é três anos mais velho. Os meus pais trabalhavam e quemtomava conta de nós em casa era a minha avó, que foi a autoridade principalda família até morrer. Era a minha avó que geria o pessoal. Tínhamos muitosempregados. A minha avó mandava na casa, no meu pai, na minha mãe,em nós... Ela é que decidia tudo! [riso]. Houve um sucessor: foi a minhamãe... a minha mãe assumiu aquele papel de manter a família unida e à voltadela, como figura central da família.

Esta configuração familiar alargada, definida ora pela existência deuma hierarquia assente na idade e no sexo, ora pela centralização dopoder de decisão sobre a família, incorpora igualmente as normas de gé-nero que condicionam a liberdade da mulher na adolescência. A entre-vistada reconhece ter sentido a «discriminação»: «o meu irmão podia sairà noite, porque era rapaz e porque era mais velho». «Tinha muita liber-dade para ir a casa dos amigos», recorda, mas era sobretudo em sua casaque se reunia com eles, não estando, «por regra», autorizada a sair à noite.Este condicionamento da liberdade revoltava-a, embora nunca o sufi-

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ciente para transformar as suas palavras reivindicativas em actos, pois era«muito importante não desiludir» os pais, designadamente quanto ao seupróprio futuro, que só a obtenção de um diploma do ensino superiorparecia assegurar. As experiências que os contextos da sociabilidade ado-lescente poderiam proporcionar eram assim relegadas para um segundoplano na realização pessoal da entrevistada, que acatava as palavras deordem da mãe – «a tua vida é estudar» – como um gesto «incentivador».

Era importante eu corresponder às expectativas da minha mãe e do meupai, e isso fazia-me andar. Na adolescência, isso era importante. Era incenti-vador! Para mim era muito importante, minimamente, corresponder às ex-pectativas deles! A minha mãe dizia-me uma coisa que era assim «Tu és es-tudante, não precisas de fazer mais nada e eu garanto-te tudo aqui em casa;portanto, só tens de ter boas notas, ter sucesso nos estudos». E eu não queriafalhar perante uma coisa destas, e lá fui fazendo. Ela ajudava-me, até no es-tudo ela me ajudava, portanto... O meu pai era uma vertente mais de ordemprática, vá lá. Ele fornecia o dinheiro... «O que tu quiseres eu dou-te. Queresestudar nesta faculdade ou naquela? Queres ir para o estrangeiro? Isto eu ar-ranjo.»

Foi neste regime de dedicação aos estudos que a entrevistada prolon-gou um primeiro namoro de oito anos iniciado na adolescência. Con-cluída a licenciatura, e já durante o estágio na Ordem dos Advogados, in-gressou num curso intensivo de especialização em Gestão de Empresas,onde Vítor, o seu actual marido, leccionava um módulo. Vanda tinhaentão vinte e seis anos de idade e confessa que conhecê-lo foi «uma espé-cie de amor à primeira vista», ou dramatizando ainda mais, «foi aquelapaixão de aluna-professor, em que a aluna entra na sala e o professor passaa dar as aulas para ela!». O súbito enamoramento precipitou a escolha docônjuge e a própria decisão de casar: «Nessa semana, tudo se compôs.»

A entrevistada reconhece que o marido – um ano mais novo, econo-mista e director de empresa – preenchia todos os requisitos de um can-didato a cônjuge, desde os atributos físicos e estéticos à própria eloquên-cia. Por outro lado, a entrevistada não deixa de assumir de forma explícitaoutros traços – como sejam as elevadas qualidades de afirmação enquantosujeito, qualidades essas condensadas no eufemismo «grande maturidadeintelectual» – que funcionaram como atributos masculinos. Denegadospelo ideal do amor romântico, esses traços adquirem contudo valor e sig-nificado particulares junto de quem desde sempre se habitou a delegarem terceiros – a avó e a mãe – a autoridade para tomar decisões: «ele sabia exactamente o que queria, e seguia a decisão, fazia por a atingir».

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Resta, enfim, referir que, com uma origem social – filho de chefe de po-lícia e doméstica – não distante da dela, Vítor possuía as qualidades maisvalorizadas não apenas por Vanda, mas também pela sua mãe, cuja reac-ção só poderia ter sido positiva perante alguém que à cortesia acrescen-tava uma formação superior – tão pretendida para a própria filha –, oexercício de uma profissão qualificada e o estatuto social associado a umcargo de directoria. A consonância das apreciações da mãe e da filha terãocertamente contribuído para o arrebatamento da entrevistada, que nofinal do primeiro mês de namoro já tinha «combinado casar».

Gostei da aparência dele, era um homem bonito que se vestia de umaforma alegre, muito bem parecido, com uma aparência diferente, porque eletem olhos claros... E gostei da forma como dava as aulas, a facilidade de ex-pressão, de comunicação, uma grande facilidade de comunicação e depoisapercebi-me de que tinha uma característica para mim muito importanteque era um grande poder de decisão! [...] O meus pais não acreditavam queele fosse o meu namorado e que ele fosse casar comigo, porque ao fim deum mês de eu namorar com o Vítor, de eu conhecer o Vítor, já tínhamoscombinado casar [riso]. Ao fim de um mês! A minha mãe achou que não,que aquilo era tudo uma grande brincadeira.[...] Depois, quando o conhe-ceu, gostou muito dele, achou que era uma pessoa agradável, muito interes-sante, sobretudo porque era licenciado! [riso].

Polivalência e concessão na articulação trabalho-família

Os relatos que analisámos revelam a complexidade do processo deescolha do cônjuge, bem como a diversidade de factores que condicio-nam essa escolha no sentido da homogamia. Todavia, nos casais comeste tipo de trajectória, a proximidade socioprofissional entre os cônjugesatenua-se crescentemente no decurso da vida conjugal no sentido da hi-pergamia. Para esta hipergamia progressiva contribuem as normas de gé-nero que persistem em prescrever quer o princípio da prioridade ao es-tatuto de provedor do homem – princípio esse aqui manifesto numaconcessão, e já não na assunção da prioridade masculina –, quer o papelcentral da mulher na articulação trabalho-família. Com efeito, os casaiscom trajectórias de hipergamia progressiva distinguem-se, desde logo, doscasais com trajectórias de hipergamia prioritária pela renúncia da mulherem atribuir uma primazia à vida familiar, elegendo a sua actividade pro-fissional como um domínio de realização equiparado à família.

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Tendo em linha de conta esse confronto de prioridades, as mulheresprocuram incessantemente soluções no sentido de maximizar as suas as-pirações nos dois universos. Da mesma forma que a estratégia familiarista– caracterizante da hipergamia prioritária – se assemelha às soluções do-mestic life first encontradas por algumas mulheres inquiridas por Cromp-ton e Harris, a estratégia de articulação trabalho-família prevalecente nos ca-sais com trajectórias de hipergamia progressiva encontra fortes afinidades nasatitudes das «maximizers», que, de acordo com as investigadoras britâni-cas, «procuram maximizar os seus objectivos simultaneamente no quetoca à carreira profissional e à vida familiar» (1999, 137). Por outro lado,se a estratégia de articulação trabalho-família assenta numa concessão feita àprofissão e carreira do cônjuge, não se estranha que estas trajectórias con-jugais se caracterizem por um progressivo desfasamento entre as posiçõessocioprofissionais e, deste modo, entre os capitais simbólico (o estatutoprofissional) e económico (o rendimento auferido). Em suma, cabe exclu -sivamente à mulher a maximização dos esforços para encontrar um equi-líbrio entre as suas ambições profissionais e a disponibilidade para a vidafamiliar. As palavras de Teresa retratam bem a tensão que resulta da apli-cação desta estratégia maximalista: «Dou por mim umas vezes a achar queme falta vida familiar e, por outro lado, que me falta apostar em coisasque me valorizem profissionalmente.»

Importa sublinhar que a precedência da carreira profissional dohomem não tem simplesmente na sua génese o primado da carreira mas-culina, tal como acontece junto dos casais com trajectórias de hipergamiaprioritária. Na verdade, a precedência da carreira profissional do homem– tal como, desde logo, sugere a desigual carga horária no casal 2 – resultade uma concessão, e não propriamente do reconhecimento de uma prio-ridade masculina. A reflexividade e o subsequente distanciamento em re-lação às normas de género mais cristalizadas na sociedade estão na géneseda diferença entre as atitudes destas entrevistadas maximalistas e as mu-lheres famiriaristas: ambas interiorizaram como seu o desafio da articula-ção trabalho-família, mas enquanto as primeiras se regem por um princí-pio de equilíbrio entre os dois universos, as últimas atribuem prioridadeà família. De resto, a concessão à actividade profissional do homem nãoresulta necessariamente de uma prioridade atribuída à sua carreira. Paraalgumas entrevistadas, trata-se simplesmente de dar precedência a uma

2 O horário de trabalho das entrevistadas com este tipo de trajectória conjugal oscilaentre as quarenta e as quarenta e cinco horas semanais, enquanto o do homem osci -la entre as cinquenta e as sessenta horas semanais.

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actividade profissional com perspectivas de maior rendimento econó-mico. Nestes casos, a precedência concedida à actividade profissional dohomem não pode, obviamente, ser dissociada do reconhecimento doseu estatuto de principal ganha-pão do agregado. Por outro lado, o des-fasamento no plano dos recursos escolares que se observa em alguns ca-sais, bem como a própria elevação social que a ascensão profissional damulher representa, são contrabalançados por essa desigualdade de ren-dimentos a favor do homem. Em suma, as evoluções diferenciadas dospercursos profissionais dos cônjuges vão de par com lógicas de recipro-cidade que, muitas vezes, se traduzem numa compensação do objectivodesajustamento a nível do estatuto social associado à profissão de cadaum dos cônjuges. Nas situações observadas, são essas lógicas de recipro-cidade que encontramos na origem da concessão à actividade profissionaldo homem.

Carreira profissional e as consequências da maternidade

As entrevistadas com trajectórias de hipergamia progressiva repartem-se,por um lado, entre aquelas que reconhecem nunca lhes ter faltado opor-tunidades para concretizarem os seus objectivos familiares e profissionaise, por outro, as que se manifestam abertamente insatisfeitas por nãoterem concretizado as suas aspirações profissionais, referindo as implica-ções dos encargos familiares na sua carreira. Por exemplo, para Elsa, cujoprimeiro de dois filhos chegou – tinha então vinte e quatro anos – semque ela e o marido tivessem «pens[ado] muito nas consequências», as so-licitações da maternidade implicaram desde logo esforços redobrados,não apenas por terem coincidido com os períodos em que esta médicaprestava serviço em hospitais fora e distantes de Lisboa – onde residia etinha a rede familiar de apoio –, mas também em virtude da dificuldadeem coordenar os encargos domésticos de acordo com a própria estruturado horário de trabalho, nem sempre podendo contar com o apoio deuma empregada doméstica nos dias de «banco hospitalar».

Éramos obrigados a fazer a periferia e a saúde pública. Então tínhamosque ir para fora dos centros, dos grandes centros, fazer exames. Mas eles nãonos davam condições nenhumas, não tínhamos casa, não tínhamos quemnos ficasse com os filhos, não havia creche, não havia amas e nós éramosobrigados a concorrer e chegávamos a uma cidade de província e não co-nhecíamos ninguém e tínhamos que ir trabalhar no dia seguinte. [...] Fuipara São Brás de Alportel e fiquei a viver em Faro. O meu marido estava emPortimão, na altura. Eu fui um mês à frente e ele depois foi lá ter. Eu estava

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a amamentar a minha filha mais velha, que tinha dois meses. [...] Depois láconseguimos arranjar uma empregada. Cada vez que me faltava a empregadaquase que morria, porque quando a pessoa está de banco... Nós temos ban-cos de vinte e quatro horas, agora até já se podem fazer bancos de dozehoras, mas antes não. E um médico não pode faltar a um banco, porque sefaltar vai prejudicar a equipa, e a equipa toda fica-lhe com um pó se ele falta,percebe? Não se suporta que uma pessoa falte, não tem coragem para faltarmesmo que um filho fique doente.

O peso dos encargos com os cuidados à criança surpreendeu Elsa,pois não estava nos seus «planos» a consequente «interrupção de funções»que a entrevistada considera suficiente para «atrasar» a carreira, emborase tratasse de uma carreira num contexto profissional cujas exigênciasnão comprometiam, à partida, o tempo reservado à família. Elsa ascen-deu ao lugar de directora de serviço no hospital onde actualmente traba-lha, revelando uma menor contenção das aspirações profissionais do quea observada junto das entrevistadas com estratégias familiaristas, que, re-ceando subverter o princípio da prioridade à vida familiar, evitaram ocu-par cargos de chefia.

Em Faro foi só um ano, depois estive outro ano a trabalhar no Barreiro,ia e vinha todos os dias, numas corridas loucas, com uma barriga enorme,porque entretanto estava grávida da segunda filha e andava sempre atrasada.Por acaso é terrível e tenho pena de ser assim. Eu andava sempre a correr,fazia uma ginástica enorme com os filhos todos e era novíssima, tinha vintee sete anos na altura. Portanto, podia perfeitamente correr, levava apertõesno metro para conseguir apanhar o barco. Estava a morar em Lisboa e ia evinha todos os dias, mas foi só um ano. [...] Depois estive sempre no mesmohospital em Lisboa, e depois, quando acabei a especialidade, não tinha vaganesse hospital e vim para aqui. Nunca parei, porque nem isso me passavapela cabeça. Se parasse, podia pedir interrupção de funções, mas isso nuncame passou pela cabeça, porque depois se pedisse interrupção de funções iaatrasar toda a minha carreira e isso também não estava nos meus planos.Não considerei isso prioritário, não considerei que isso prejudicasse tanto asminhas filhas.

Resultando da conjugação entre sentimentos de gratificação e umapercepção dos respectivos entraves à vida profissional, esta atitude perantea maternidade é também particularmente evidente no caso de Teresa, do-cente do ensino superior e mãe de um rapaz e de uma rapariga. À seme-lhança de Elsa, Teresa foi pela primeira vez mãe aos vinte e quatro anosde idade em virtude de uma gravidez não planeada, que a surpreendeu

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não tinha ainda concluída a licenciatura. A entrevistada voltaria a con-frontar-se com esta experiência – e, particularmente, com o sentimentode «atraso» na sua formação académica, imprescindível para progredirna carreira – quando, seis anos mais tarde, engravidou do segundo filho,logo após ter iniciado a tese de mestrado. No entanto, tratando-se deuma mulher que coloca em pé de igualdade as prioridades da carreiraprofissional e da vida familiar, Teresa reage ao impacto da maternidadecom ironia: «Eu costumo dizer que cada vez que faço uma tese aparece-me um filho. Daí talvez não fazer o doutoramento, para não aparecer oterceiro [risos].»

Atrasei um ano a tese de licenciatura. Tentei ir fazendo alguma coisa,mas obviamente... ainda cheguei a ir para a empresa onde estava a fazer es-tágio para a tese com um grande barrigão! O estágio fiz, mas a tese, em si,não! Depois, o meu filho nasceu e estive uma série de meses que não con-segui pegar naquilo, e só acabei a tese um ano depois do previsto... Se nãotivesse ficado grávida, não teria atrasado este tempo todo! Eventualmente,teria atrasado uns seis meses ou uma coisa assim, porque eu estava numafase cheia de genica... Quando eu acabei o quarto ano, eu estava naquela al-tura em que se acha capaz de tudo. Enfim, atrasou tudo. Atrasou-me a li-cenciatura e, agora, também me atrasou o mestrado indirectamente, emborao mestrado quem me atrasou agora foi a minha filha, não foi o meu filho.

Todavia, as implicações da maternidade na vida profissional destasmulheres vão obviamente muito para além do período de gravidez,sendo manifesta a consciência de que só elas tiveram de sujeitar a dispo-nibilidade profissional aos condicionamentos resultantes dos encargoscom os filhos. Por exemplo, Vanda, mãe de três rapazes, jurista na funçãopública, alega que não pode «aventurar[-se] muito», empregar-se no sec-tor privado e ter o pesado horário de trabalho do seu marido, economistacom um cargo de directoria numa grande empresa. De igual modo, Ra-quel, também ela mãe de três raparigas e docente universitária, tem a«perfeita noção» de que as suas ambições no que toca à carreira acadé-mica se coadunam com a «existência de crianças», enquanto o horáriode trabalho do seu marido – sócio da empresa de informática onde exerceactividade – não lhe proporciona a mesma disponibilidade para a vidafamiliar.

Eu sinto que não me posso aventurar muito neste momento para umaempresa privada em que eu tinha de trabalhar dez horas por dia. Não, nempensar! Quer dizer, se entretanto os meus filhos tiverem problemas na escola

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ou de saúde e que me impeçam de seguir essa estratégia definida, então vouter que dar prioridade à família em vez de dar à carreira [Vanda].

Tenho a perfeita sensação de que se quisesse investir mais na minha car-reira, ter feito um percurso diferente, aí teria sido um pouco travada, nomea-damente pela existência de crianças. Por exemplo, as reuniões que se fazemsão ao fim do dia, e eu, ao fim do dia, não posso estar presente, porque àscinco horas vou buscá-las à escola. Eu tenho essa flexibilidade de horário,mas o Rogério não tem tanto. Apesar de a empresa em parte ser dele, elenão pode sair de lá às cinco da tarde, porque há uma série de coisas queestão dependentes dele, enquanto que aqui não. Posso perfeitamente sair àscinco da tarde e ir buscar as miúdas [Raquel].

A maioria das entrevistadas com este tipo de trajectória conjugal partilhado sentimento de reajustamento da ambição profissional ao princípiode equilíbrio subjacente à articulação entre os dois universos. Todavia,algumas destas mulheres levam a cabo a estratégia maximalista apostandoincondicionalmente na vida profissional e discordando, deste modo, deque a família tenha colocado obstáculos à plena concretização das suasaspirações de carreira. A título de exemplo, Laura e Olívia consideramque a articulação entre a profissão e os encargos com a família não im-plicou qualquer contenção da sua aposta na carreira.

Laura decidiu apostar numa formação superior quatro anos depois decasada. O seu primeiro filho nasceu quando, com vinte e oito anos de idade, frequentava o terceiro ano da licenciatura em Relações Públicase, simultaneamente, trabalhava como guia-intérprete, emprego que im-plicava ausentar-se do país para fazer «circuitos de viagens no estran-geiro». Ela e Luís, engenheiro e director numa grande empresa do sectorprivado, só decidiram ser pais vários anos após terem casado, pois atéentão, confessa, «não tínhamos vida para isso». Laura é mãe de um rapaze de uma rapariga, mas só avançou, de facto, para a primeira gravidezquando considerou «que conseguia conciliar tudo», ainda que tal tenhaimplicado protelar a conclusão da licenciatura. Sublinha, contudo, quese tratou de uma «opção assumida». Tal como se depreende do quoti-diano descrito que a entrevistada descreve – «trabalhava de dia, estudavaà noite e tinha uma criança» –, a sua atitude perante a maternidade afasta-se daquela que se observa em grande parte das entrevistadas com estetipo de trajectória conjugal, pressupondo uma presença da mãe junto dacriança relativamente menos assídua e mais apoiada em substitutos fun-cionais.

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O meu filho nasceu estava eu no terceiro ano, porque eu achei que játinha vinte e oito anos e achei que não valia a pena esperar muito mais eachei também que conseguia conciliar tudo. [...] A licenciatura dura quatroanos e dura das sete às onze da noite. Portanto, eu continuei a trabalhar du-rante o dia, às vezes trabalha-se à noite, muitas vezes até faltava às aulas. E decidi licenciar-me nessa altura. Os guias-intérpretes decidem quando tra-balham, portanto, o que eu fazia era que nunca aceitava trabalho de guianos dias em que tinha mais aulas – o que ainda faço hoje [como docente] –nem nos dias em que tinha aulas. [...] Eu estava no terceiro ano e ele nasceuem Janeiro, tive que guardar cadeiras e não acabei o curso ao mesmo ritmodos meus colegas. Eu acho que, para as fazer todas – e eram oito –, eu ia teruma média baixinha e não estava lá para acabar o curso, estava lá por curio-sidade e porque me queria enriquecer e porque queria aprender. Portanto,decidi ir fazendo as cadeiras, fiquei a marcar passo. Mas foi uma opção as-sumida e estou contente por a ter feito.[...] Fiz cinco cadeiras no ano emque ele nasceu, e fiz as restantes no ano seguinte e depois fiz o quarto ano.Eu, quando acabei, tinha trinta anos e um filho de ano e meio.

Por sua vez, Olívia sublinha ter «sempre» considerado «conciliáveis»os encargos com a família e a carreira profissional e, mesmo, «desejável»essa articulação. Importa, todavia, enquadrar a sua atitude no percursode vida da entrevistada, pois, na verdade, o projecto de maternidade surgeaqui associado a uma ausência de oportunidades de trabalho. Comefeito, Olívia deu à luz três filhos no espaço de quatro anos, só tendoreencontrado muito lentamente o rumo profissional pretendido. Subli-nha, no entanto, jamais ter sentido que os encargos da maternidade fos-sem «impedimento» para agarrar oportunidades profissionais ou cumprircom as exigências da sua formação académica, contrapondo que os filhosconstituíram, pelo contrário, uma mais-valia para a sua própria formação,obri gando-a à autodisciplina necessária para cumprir os prazos relacio-nados com o seu trabalho e a sua formação.

Posso apenas batalhar, estar em todas, mexer-me e nesse aspecto eu tenhofeito. A minha vida familiar nunca foi um impedimento para isso. Eu fiz omestrado, eu escrevi a tese de mestrado com um bebé minúsculo em casa eestava grávida de outro, e isso não me impediu. Eu sempre achei que eraconciliável. Conciliável, complementar e desejável! [...] Eu não abdiquei denada. Aliás, foi uma satisfação muito grande ser mãe, porque realizava umdos meus sonhos já que não estava a conseguir realizar o outro... Foi um es-tímulo! Como eram crianças calmas, saudáveis, eu podia perfeitamente terum bebé em casa e estar a escrever ao mesmo tempo, porque os miúdos dor-miam bem, comiam bem e, portanto, era uma coisa que se conjugava per-feitamente. Eu acho que o facto de eu ter crianças em casa e, depois, na es-

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cola, obrigaram-me a trabalhar com ritmos, com rotinas. E, portanto, eu nãome perdi em divagações. Portanto, tendo bebés, eu sabia que o bebé estavaa dormir a sesta e que ia dormir durante duas horas. Eu, naquelas duas horas,trabalhava imenso, talvez mais do que uma pessoa o dia inteiro que não ti-vesse nada para fazer. Agora que as crianças estão na escola, eu sei que elesestão na escola das nove às cinco e que eu só tenho aquelas horas para tra-balhar, não tenho mais horas nenhumas. Portanto, o facto de eu ter quecumprir o horário da criança obriga-me a mim, nessas horas, talvez a traba-lhar mais...

Entre os casais com trajectórias de hipergamia progressiva, é, porém, maisfrequente observarmos o ressentimento com os efeitos negativos da ma-ternidade na carreira profissional da mulher. Esta reacção ao impacto damaternidade tende obviamente a reflectir-se na própria atitude face à ar-ticulação trabalho-família. Com efeito, a estratégia maximalista concessorapode, por um lado, elaborar-se com base numa moderação das prioridadesprofissionais e familiares. Assim, a mulher acaba por reajustar as suas am-bições de carreira e pode mesmo sentir-se forçada a renunciar a posiçõesque impliquem maior responsabilidade e empenhamento, embora se ar-rependa, por vezes, de ter tomado essa «opção». Por outro lado, apesarde estarmos perante trajectórias conjugais marcadas pela diferença, noplano da disponibilidade para a actividade profissional, entre os membrosdo casal – diferença que joga sempre, nestes casos, a favor do homem –, algumas mulheres recusam moderar as suas ambições profissionais, de-fendendo, pelo contrário, uma atitude polivalente. Deste modo investemnuma aposta simultânea na vida profissional e na vida familiar. Nos pon-tos que se seguem abordaremos estas duas variantes – moderação e poli-valência – observadas na elaboração da estratégia maximalista concessora.

A moderação da ambição profissional e a primazia do equilíbrio na articulação

A estratégia maximalista concessora pressupõe que a vida familiar e avida profissional constituem as principais dimensões da realização pes-soal, representando, portanto, domínios de gratificação equiparados. To-davia, pese embora a elevada importância de ambos os universos na iden-tidade feminina, algumas entrevistadas com trajectórias de hipergamiaprogressiva moderam as suas aspirações profissionais, que, de outra forma,poderiam questionar o equilíbrio trabalho-família. A sua atitude não seequipara, no entanto, à prioridade atribuída à família – tal como se ob-serva entre as entrevistadas com estratégias familiaristas –, uma vez que se

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trata de uma ponderação e de um reajustamento das aspirações profis-sionais a uma nova realidade familiar – a vida conjugal com filhos – ondeos papéis, no que ao trabalho doméstico diz respeito, são ainda forte-mente estruturados em função da diferença sexual. A prudente contençãodas ambições profissionais observada junto destas entrevistadas resulta,precisamente, da própria imposição, no plano dos valores, da concreti-zação de um ideal de articulação trabalho-família, concretização essa in-variavelmente a cargo da mulher, que tanto condiciona as suas ambiçõesprofissionais quanto pondera a sua disponibilidade para a vida familiar.Não se trata já, portanto, da prioridade à família (estratégia familiarista),mas da prevalência normativa de um princípio de equilíbrio na articula-ção trabalho-família e, simultaneamente, de concessão ao homem para sededicar mais à sua actividade profissional.

O caso de Elsa constitui um primeiro exemplo desta concessão à acti-vidade profissional do cônjuge. Elsa é, hoje, responsável pela direcçãodo serviço de transfusões sanguíneas de um hospital público. Ao contrá-rio de outras entrevistadas médicas, que, atribuindo prioridade à vida fa-miliar, abdicam dos lugares de direcção com receio de que uma acrescidaresponsabilidade profissional entrave a disponibilidade para a família,Elsa aceitou o cargo de «directora de serviço», sem que tal tenha, por suavez, significado uma prioridade atribuída à sua carreira. Na verdade, estaentrevistada não deixou de orientar as suas «opções» profissionais, comoela própria sublinha, «em função da família», admitindo mesmo que«chegar a directora de serviço nunca foi um objectivo». Estamos, todavia,perante uma mulher que não deixa de maximizar a sua aposta na carreiraprofissional quando considera assegurada a disponibilidade para cuidare acompanhar os dois filhos do casal. A ascensão a um cargo de direcçãonão alterou a sua atitude perante os colegas, consciente, quando recebeelogios pela «qualidade» do serviço que dirige, do trabalho de equipa en-volvido. Esta renúncia em individualizar o reconhecimento profissionalvai de par com o desgaste que, para a entrevistada, representa a proximi-dade quotidiana com pessoas doentes ou, pior, em risco de vida: «Euquase que morro quando um doente morre.» Elsa encontra assim van-tagens no cargo actual, que precisamente a resguarda mais desse contactoquotidiano: «agora não me importo muito de não ter doentes». O cargode directora consiste, afinal, num lugar de compromisso, permitindo pro-teger-se da tensão inerente à «relação afectiva muito forte» que a entre-vistada é propensa a estabelecer com os doentes, sem, no entanto, obri -gá-la a adoptar a conduta política – «não consigo simular nada, e issotem-me trazido alguns dissabores» – necessária a uma carreira hospitalar

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mais ambiciosa. De resto, cumpre sublinhar que Elsa só aceitou estecargo de direcção quando se sentiu mais liberta dos encargos familiares.Mãe de duas raparigas com vinte e um e vinte cinco anos de idade, a en-trevistada recorda o stresse envolvido na articulação entre a vida familiare a actividade profissional, admitindo que, no passado, «dedicava maisàs filhas» o tempo hoje reservado à profissão.

A contenção da ambição profissional deu então lugar à aceitação deum cargo de maior responsabilidade e estatuto, uma decisão indicativade que a atitude moderada de Elsa tinha na sua génese a necessidade dereajustar provisoriamente as aspirações de carreira a uma disponibilidadepara a vida familiar até à adolescência dos filhos. Esta necessidade nãopode, por sua vez, ser analiticamente dissociada da precedência que estamulher concedeu à carreira profissional do cônjuge, a quem, aliás, reco-nhece o estatuto familiar de principal provedor dos rendimentos econó-micos. Com efeito, se é verdade que Elsa «queria fazer só medicina hos-pitalar para ter mais tempo para a família», importa também sublinharque esta «opção em função da família» tem subjacente um modelo tra-dicional de divisão do trabalho – «um tem que ganhar dinheiro..., e ooutro tem que se dedicar à família» –, pese embora a estratégia de articula-ção trabalho-família não se oriente aqui pelo princípio da prioridade à pro-fissão do homem e à vida familiar (estratégia familiarista). Trata-se, na ver-dade, de uma concessão – à precedência da actividade profissional dohomem – que resulta de uma decisão negociada: «decidimos que eu fi-caria mais para dar apoio à família, ele foi fazendo aquilo que ele pensouque era melhor». A precedência da actividade profissional do homemnão traduz, pois, o simples accionamento das normas de género, sendomesmo justificada de acordo com uma interpretação racional do modelode divisão diferenciada do trabalho na família. De resto, Elsa acrescentao seu próprio «relacionamento com o doente» e a dificuldade em con-verter o serviço médico em mercadoria – «era muito complicado paramim receber dinheiro de uma consulta» – às repercussões do exercícioda medicina fora do hospital sobre a sua disponibilidade para a família.Ainda assim, a atitude concessora vai de par com a relativização que a en-trevistada faz quer do seu «mérito» na conquista da posição profissionalque hoje ocupa – «como há menos pessoas, tive menos concorrência efoi mais fácil, não foi por mérito» –, quer da própria «opção» pela Medi-cina, que atribui ao «aconselhamento» do irmão.

Foi o meu irmão que me aconselhou a vir para Medicina. Depois os tes-tes disseram que eu deveria ser era psicóloga [riso]. Mas depois o meu irmãofalou com o psicólogo e o psicólogo achou que não era uma má opção. [...]

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Esta foi a opção que eu fiz, porque esta especialidade [imunoemoterapeuta]não é possível fazer no privado. No privado, ninguém dá sangue. [...] Eu es-colhi esta especialidade com hipóteses de ficar em Lisboa, em termos devagas, e porque também não dava hipóteses de fazer medicina privada, por-que eu, à partida, queria fazer só medicina hospitalar, para ter mais tempopara a família. [...] Com esta especialidade podia ficar em Lisboa, é umaopção em função da família. Eu queria, o meu marido ficava por cá, as mi-nhas filhas estavam cá... O meu marido é mais velho, ele estava um ano àfrente, portanto já tinha escolhido. [...] Eu não me via muito bem a fazerprivada... É complicado fazer-se privada. É que se fizer privada a pessoa, de-pois do hospital, sai e ainda vai para o consultório e então... Inicialmentepensámos assim: um tem que ganhar dinheiro, para termos dinheiro, e ooutro tem que se dedicar à família, então eu fui para uma especialidade queà partida não há na privada e para me dedicar eu à família.

Sem os constrangimentos da articulação entre a vida profissional e avida familiar, Bruno pôde acumular as suas funções no hospital do Es-tado e a actividade médica por conta própria. Elsa e o marido iniciarama carreira médica no mesmo hospital público, mas ele fez a especialidadejá noutro hospital. Hoje, a sua carga horária de trabalho supera a de Elsaem dez a quinze horas por semana, uma diferença que persiste desdepraticamente o início da vida conjugal. O percurso profissional de Brunocaracteriza-se pela repartição entre o hospital público, onde «foi progre-dindo na carreira», e uma clínica privada que criou juntamente com co-legas de profissão, pois, tal como sublinha a entrevistada, «a ele interes-sou-lhe sempre mais a medicina privada, porque na privada ganha-se oque se quer».

A maternidade também veio condicionar a aposta de Raquel na car-reira profissional, mas esta entrevistada assume ter-se tratado de uma«opção». Docente universitária, Raquel rejeita a ideia da carreira enquantoprincipal domínio de gratificação. No entanto, reconhece que, se fosseseu desejo «investir mais na carreira» ou «ter feito um percurso diferente»,se sentiria «travada» pelos encargos com os três filhos que tem com Ro-gério, director de uma pequena empresa de formação. Comunga assimda atitude de Elsa quer em relação à sua profissão e à profissão do marido,quer em relação à disponibilidade para a família, atitude essa desde logoevidente no rumo que tomou o seu percurso profissional. Com efeito, asua actual situação resulta menos de um projecto pessoal do que da opor-tunidade – para trabalhar como assistente estagiária na faculdade – pro-porcionada por um convite proposto ainda durante a licenciatura. Em-bora a frequência do ensino superior estivesse nos seus planos quando

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concluiu o décimo segundo ano de escolaridade, perante uma primeiratentativa de ingresso gorada e os limitados recursos económicos da família– o pai, motorista de táxi, e a mãe, empregada doméstica – ditaram queRaquel procurasse a sua própria autonomia. «Não queria ficar à conta dosmeus pais», desabafa. Apostou então num «curso de Dactilografia» e em-pregou-se numa sapataria. Esta decisão, contudo, contrariava o futuro queos seus pais tinham desejado para a filha. De resto, a experiência de umano a trabalhar atrás de um balcão contribuiu para reforçar a vontade de«voltar a estudar» de quem não pretendida «fazer isto uma vida inteira».

Na altura, achei que, para fazer alguma coisa, tinha que ser ComunicaçãoSocial. Na altura era a única coisa a que eu achava piada. Não entrei por nãosei quantas décimas. Não consegui. Como não tinha escolhido mais nenhum[curso], fiquei à porta da universidade e, então, fui trabalhar. Fiz um cursode Dactilografia e depois fui à procura de emprego, de qualquer coisa, porquetinha que trabalhar, porque não queria ficar à conta dos meus pais. Então fuitrabalhar para uma loja, uma loja de malas e sapatos. Depois de lá estar a tra-balhar durante um ano decidi voltar a estudar. [...] Os meus pais acharam óp-timo eu continuar a estudar, porque eles sempre tinham feito muita forçapara que eu estudasse. Eu penso que, pelo facto de eles terem poucos estudos,davam muita importância a que eu continuasse uma carreira... uma carreiranão, que tivesse uma formação superior. Para eles, isso era importante.

De facto, a vontade de estudar singrou, e não tinha ainda concluídaa licenciatura já Raquel era convidada a dar aulas como assistente uni-versitária. O gosto que, desde logo, descobriu no ensino fez, efectiva-mente, com que enveredasse pela carreira académica, ainda que assumaa sua inclinação para a docência e remeta para um segundo plano a in-vestigação, bem como o próprio reconhecimento inerente à conquistade títulos académicos, fundamentais, contudo, na prossecução deste ti -po de carreira. A eleição da docência como actividade profissional porexcelência – «a docência é a parte mais importante, é aquilo que eu gostoefectivamente de fazer» – vai de par com uma renúncia da dispersão queobserva na «maioria» das colegas de trabalho. Tal como esclarece, «nãome meto em muitas coisas ao mesmo tempo». Deste modo, a prementenecessidade de alcançar o grau de doutor compeliu-a a requerer «dispensade serviço», para que pudesse dedicar exclusivamente as oito horas diá -rias de trabalho profissional à realização da tese de doutoramento. Se le-varmos em linha de conta a carga horária profissional de Rogério – dezhoras diárias, incluindo fins-de-semana – não é difícil imaginar os cons-trangimentos da entrevistada na articulação entre uma vida familiar com

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três filhos e a profissão. Regendo-se por um princípio de equilíbrio naarticulação trabalho-família, Raquel concentra temporariamente os seusesforços na elaboração da tese de doutoramento, título crucial à progres-são na carreira académica e à consolidação do próprio vínculo com a en-tidade empregadora.

Eu há uns anos – talvez depois do mestrado, não sei exactamentequando, mas penso que foi depois do mestrado e principalmente depois deter a segunda miúda – tomei uma decisão que foi: não levar trabalho paracasa. Eu não levo trabalho para casa... Pronto, pode haver uma situação ex-cepcional em que levo uma coisita para ler, mas por norma não levo trabalhopara casa. Eu sou diferente da maioria das minhas colegas. Não me metoem muitas coisas ao mesmo tempo. Quando decidi ir fazer o doutoramento,acabei com tudo o resto, acabei com projectos e assim. Acabei tudo! Estoucom dispensa de serviço e, então, o meu tempo é para isto, e mais nada.Como sou uma pessoa organizada, desta vez comecei pelo princípio, fiz ascoisas com princípio, meio e fim. Portanto, a coisa correu muito bem.

A entrevistada dedica-se à tese do doutoramento apenas como obri-gação, evidenciando assim a sua atitude moderada face à carreira, atitudeessa que tem subjacente uma renúncia, partilhada com o marido, em«dar prioridade ao trabalho».

Nenhum de nós dá prioridade ao trabalho, nenhum de nós consideraque o mais importante na vida é o trabalho e, portanto, se tiver que tomaruma decisão do género trabalhar menos para estar mais tempo em casa ga-nhando menos, é essa a decisão que se toma. Nem é preciso perguntar aooutro, porque se sabe que o outro está de acordo... Para nós é mais impor-tante estar bem afectivamente, com os amigos e com a família, do que estarbem profissionalmente. Portanto, a carreira não é de todo o mais importante,nem para um, nem para outro.

No entanto, a forte diferença de cargas horárias de trabalho entre osdois é, de alguma forma, contraditória com as palavras de Raquel, emboratrabalho, porventura, mais não seja aqui do que um eufemismo da priori-dade à carreira. Por outras palavras, talvez seja esta preocupação com a car-reira, e não com o trabalho, a real afinidade entre a entrevistada e o marido,implicando a carreira outro tipo de aposta, que ambos subestimam. Naverdade, se Raquel reduz a uma obrigação a obtenção de graus académicosposteriores à licenciatura, a Rogério nem sequer «lhe interessou o di-ploma», implicando a própria licenciatura um «esforço muito grande»para quem, como ele, «adquiria os conhecimentos na própria empresa».

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Ainda assim, quando se casou com Raquel, Rogério ingressou no ensinosuperior em horário nocturno. Fez, simultaneamente, o serviço militarobrigatório e criou uma empresa de formação, mas nunca chegou a con-cluir a licenciatura. A este respeito, a entrevistada demonstra compreen-são e apoio ao marido, sublinhando que «quem está a gerir uma empresaprópria tem sempre mais coisas para fazer». Por outro lado, encontra umajustificação plausível para o desinteresse do marido pelo saber teórico – «era só teoria» – especificamente transmitido na faculdade, ainda quenão seja essa, obviamente, a opinião da entrevistada: «sempre vi uma li-cenciatura como uma aprendizagem». Ainda assim, não deixa de se reverna atitude depreciativa do marido ao confessar ter terminado «o mestradocom a sensação que podia não o ter feito, não me acrescentou nada!».

De início, quando nós tínhamos casado, estávamos no início do casa-mento e ele pediu os ingressos e ficou no Técnico e tinha aulas à noite. Nós,na altura, morávamos na Ajuda e aquilo, para já, exigia um esforço muitogrande da parte dele, porque ainda estava na tropa e depois quando saía iapara a licenciatura. E depois foi quando eles começaram a empresa, aindaestava no início e era um esforço muito grande. [...] Sempre achou que o di-ploma não lhe acrescentava nada, e conhecimentos também não... Ele achouque o contacto que teve com o Técnico, que aquilo era só teoria e que nãolhe interessava rigorosamente nada, e como não lhe interessava foi-se em-bora. Eu... não encaro [a licenciatura] como um meio de arranjar empregoe, portanto, se a pessoa não está a adquirir conhecimentos, não está a sentirque aquilo lhe pode trazer uma mais-valia, de facto não vale a pena andarali. É preferível ir fazer outra coisa qualquer.

A aposta empresarial de Rogério condicionou fortemente a sua dis-ponibilidade para a família, tendo-se também traduzido numa inversãoda diferença de rendimentos no casal, diferença essa que, no início davida conjugal, favorecia Raquel. Deve sublinhar-se que a inversão pro-gressiva na diferença de rendimentos entre os dois não resulta, todavia,apenas da maior aposta de Rogério e concomitante disponibilidade parase dedicar à actividade profissional sem os dilemas da articulação traba-lho-família. Na realidade, foi a «estabilidade» financeira que o salário daentrevistada proporcionou à criação do projecto empresarial do maridoque, paradoxalmente, contribui de forma decisiva para uma tal inversãodos rendimentos.

No início, o meu marido ganhava menos, mas actualmente é ele quecontribui mais. Inicialmente era eu, porque ele estava na tropa. Depois,

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quando começou a trabalhar e quando formaram a empresa, também du-rante bastante tempo era eu. Aliás, na altura, se eu não estivesse a trabalhar,ele não tinha partido para a formação da empresa, porque havia alguma es-tabilidade do meu lado. Portanto, foi uma iniciativa de risco, mas... houveempréstimos e uma dívida muito grande a certa altura para pôr a empresa afuncionar. Mas como havia alguma segurança do meu lado é que ele se atre-veu a avançar para aquilo. Durante os primeiros anos de funcionamento daempresa, o ordenado dele nem sempre vinha, ou vinha quando havia. Pri-meiro eram os funcionários, e depois os sócios, e o dinheiro vinha à medidaque havia. Depois começou a crescer e ter mais trabalho, a tornar-se maisconhecida, e a certa altura a situação mudou. E hoje é ele que contribui mais,cerca do dobro.

À semelhança de Raquel, também Júlia assume ter moderado as suasambições de carreira em função da família. Licenciada em Economia,esta entrevistada ocupa o lugar de chefe de divisão numa Secretaria deEstado, mas confessa-se insatisfeita com o seu estatuto profissional. Júliafoi sempre recusando as sucessivas propostas para exercer cargos de di-recção, com receio de comprometer a sua disponibilidade para a família.Ao contrário de Raquel, Júlia não deve propriamente o seu percurso demobilidade social aos pais, que jamais a incentivaram nos estudos. Filhade pequenos comerciantes, nunca teve «com quem falar sobre a escola».Da infância recorda o sentimento de «vergonha» da origem social que assuas roupas denunciavam numa escola «onde era quase tudo filhos dedoutores e engenheiros». Refere, porém, as visitas a casa da madrinha dasua irmã, cujo desafogo económico sempre a deslumbrou. Esse contactopontual com um meio social que contrastava com o seu contribuiu paraacentuar o sentimento de desconforto com a sua condição económicae, assim, alimentar a ambição por uma vida abastada.

Antigamente, o liceu era a escola dos meninos de elite, sem falar nos co-légios... Então eu fui para o liceu, onde era quase tudo filhos de doutores eengenheiros e os meus pais eram pequenos comerciantes e eu lembro-meque tinha vergonha. Lembro-me também de mentir, que os meus pais eramnão-sei-quê... Tinha vergonha das roupas, o que valia é que se vestia umabata branca, e pronto. [...] Tanto quanto eu me lembro, a madrinha da minhairmã era uma senhora que estava em casa, eu penso que foi isso que despo-letou em mim qualquer coisa... Ela estava em casa e o marido era engenheirocivil. Eu às vezes ia lá a casa, porque ela dava-me uns lamirés no Francês e eu achava que ela tinha uma vida espectacular e tinha uma casa...bem elatinha uma casa brutal num arranha-céus, em que tinha três ou quatro salasde estar! Já viu o que é três ou quatro salas de estar, umas a seguir às outras?!

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Era uma casa lindíssima! Aquilo era um autêntico palácio, e eu tinha, faz deconta, uma barraca. É mais ou menos esta a dimensão.

O seu percurso de vida foi assim inicialmente marcado pelo objectivode investir nos estudos no sentido de alcançar um nível de vida que per-mitisse satisfazer os desejos «materialistas» de quem, na infância, «nuncatinha [tido] nada de que gostasse». Mas a essa ambição não era tambémalheio o desejo de se libertar do jugo paterno. O pai de Júlia pretendiaque a filha auxiliasse em casa, colmatasse a necessidade de ter empregadosnas «lojas» e, posteriormente, viesse a dar continuidade ao pequeno ne-gócio familiar, exercendo sobre ela – e sobre a própria família – uma au-toridade que não dispensava o recurso à violência física.

Havia uma grande violência em casa! O meu pai chegava a casa, por exem-plo, e não nos queria ver, a mim e à minha irmã. Queria-nos ver já deitadas,porque ele vinha muito estafado, trabalhava muito. Muitas vezes ele entravaem casa à meia-noite e dizia para a minha mãe que não nos queria ver. Tratavatambém muito mal a minha mãe, batia-lhe todos os dias: murros e gritos epratos pelo ar! E, portanto, eu via aquilo e encolhia-me muito, com muitomedo, fazia tudo o que ele me mandava, e a minha mãe também. Tinha queestar sempre a ajudar os meus pais e, como o meu pai era muito repressivo equeria muito que eu estivesse a trabalhar e pronta a ajudar, eu não tinha tempopara brincar sequer. [...] Fazia os trabalhitos [da escola] quando vinha paracasa e, pronto, tinha que ajudar, porque ele me obrigava... Quer dizer, as coisasantigamente davam muito pouco lucro, e o meu pai sempre pensou muitono dinheiro. O objectivo dele era ser rico, coisa que não conseguiu... Mas omeu pai sempre foi um homem que pensou muito, muito, muito, no di-nheiro! E então provavelmente foi isso: não queria ter encargos.

Quando ainda frequentava o ensino secundário, a entrevistada agar-rou a oportunidade de autonomia proporcionada pelo rendimento pro-veniente de «lições» a colegas de anos anteriores para prosseguir os estu-dos ao arrepio da vontade paterna. Júlia desejava então vir a ser«professora», mas esse desejo foi-se esvaindo com o crescimento.Quando, mais tarde, conseguiu empregar-se num gabinete de um minis-tério, tinha então concluído o primeiro ano da licenciatura, a «ideia» deser professora já pertencia ao passado: «Eu não sabia bem o que é quequeria fazer.» Esta incógnita permaneceu mesmo quando decidiu seguiro curso de Economia, licenciatura que elegeu por se considerar «umamulher muito materialista». Júlia recorda a dureza que implicou empre-gar-se ainda no primeiro ano da licenciatura: «Quando eu me empreguei

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era todo o dia a trabalhar, estava na escola até à meia-noite, muitas vezesestudava até às três da manhã...» Todavia, a entrada no mundo do traba-lho não só representou uma abertura ao mundo exterior – «eu não tinhanem amigos, nem amigas» – e, assim, a completa transformação da sua«maneira de ser», como também lhe proporcionou a confiança que ne-cessitava para enfrentar o pai.

Eu sempre fui extremamente madura e então, com dez anos, eu diziaque queria ser professora... Cheguei ao quinto ano e... disse ao meu pai quequeria seguir o ensino e não-sei-quê, e o meu pai... disse: «Não, não vais se-guir, vais mas é trabalhar numa das lojas.» Eu tive muita força nessa altura!Devo ter dito aquilo com muita doçura, porque senão levava logo uma sova.Mas disse: «Não, pai, eu quero ir estudar. Então eu vou dar lições». Portanto,no meu sexto ano, eu dava lições até ao quinto ano. [...] Eu fui-me inscreverno sexto ano para tirar Belas-Artes – mas não sabia o quê –, porque os pro-fessores do liceu achavam que eu tinha muito jeito para a arte. Eu de factoinscrevi-me por influência deles, mas no dia seguinte vou logo à escola muitoalarmada, porque eu também tinha aquela coisa que o meu pai também temdo dinheiro. [...] Eu nem sabia o que era isso da «Economia»... Nunca nin-guém me explicou, mas era a minha intuição... Eu sou uma mulher muitomaterialista. Já está a decrescer um pouco, mas foi doentio. Se calhar, porqueposso comprar coisas. Eu nunca tinha nada de que gostasse, tinha as coisasque a minha mãe me vestia. [...] No fim do primeiro ano, eu empreguei--me... [e] mudei completamente a minha maneira de ser... porque eu nãotinha nem amigos, nem amigas, porque o meu pai... Se algum dia eu dissesse«pai, deixe-me ir a casa desta ou daquela», ele respondia logo: «não senhora,há muito para fazer em casa». [...] Eu só aos vinte e um anos é que soube oque era um galão! Dá vontade de rir. Eu digo sempre que fui uma anormal.Durante a faculdade, eu andava já no segundo ano, e um colega, uma vez,convidou-me para ir a um comício. Eu nem sabia o que era um comício!Fui então com esse colega, que era um colega de emprego, cheguei a casaera meia-noite em ponto. Eu entrei, o meu pai chamou-me e disse: «nuncamais entras a esta hora, senão levas uma sova». Eu tinha, portanto, vinte edois anos [e] senti que ele tinha que ter uma resposta, nem que [eu] levasseuma grande sova... Mas eu disse-lhe: «Desculpe, mas eu trabalho, eu estouempregada e é assim.» E ele não me bateu a partir daí.

A ambição social de Júlia tem, assim, na sua génese uma orientaçãoestritamente racional dos seus objectivos profissionais, levando-a a es-quecer as suas vocações em virtude de uma vida simultaneamente libertado jugo paterno e dos condicionalismos económicos vividos na infância.Esta assumida racionalização das suas decisões alargou-se, aliás, à própria

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escolha do cônjuge. Júlia conheceu José, o seu marido, através de umacolega da faculdade a quem os pais da entrevistada alugavam um quartoda habitação. A colega pretendia juntar Júlia e José. Mais velho cincoanos, José tinha um «ar pesado» e, sobretudo, o «ar» do pai que, obvia-mente, não agradou a Júlia quando travaram conhecimento. No entanto,a insistência transformou-o num candidato, entre «muitos» outros. A en-trevistada sublinha que a conclusão da licenciatura era o seu «primeiroobjectivo» e que, portanto, não «queria» namorar, porque «já era muitacoisa, o curso, emprego...». Todavia, perante a insistência de diversos pre-tendentes – «eu tinha muitos homens atrás de mim» – confessa ter sidolevada a «escolher».

A «escolha» desta mulher «muito regrada, muito metódica, muito or-ganizada» foi, também nesta dimensão, assumidamente orientada pelaracionalidade: «eu sou uma mulher extremamente emotiva, mas tambémsou extremamente racional, e aqui jogou o racional, vamos lá deixar deemoções». José foi então «escolhido» porque foi «quem reuniu mais pon-tos» de acordo com o «modelo» concebido por Júlia, ainda que não es-tivesse entre os pretendentes de quem a entrevistada «gostava mais». Naverdade, José nem sequer figurava entre as «grandes paixões» de Júlia.Entre os «requisitos» estava a formação superior, o que obviamente jogoua favor deste homem, já formado em Engenharia Civil, enquanto ela fre-quentava ainda o quarto ano da faculdade. Júlia apresenta, mais umavez, uma justificação racional para esta exigência, defendendo que umcasamento heterogâmico entre uma mulher licenciada e um homem semensino superior «causava desequilíbrios a nível, por exemplo, das con-versações, e a nível, até, social». Considera também que o próprio ena-moramento não se coaduna com a heterogamia: «Eu não estava a ver euter um curso superior e o meu marido ser não-sei-o-quê.» Mas se Júlia«não conseguia apaixonar-[s]e por uma pessoa assim», já a proximidadesocial com José também não foi um ingrediente suficiente para despoletara paixão: «Eu tive duas grandes paixões na minha vida e não foi com omeu marido.» Distante das paixões de Júlia, José revelou-se-lhe, enfim,«sério», «responsável», «boa pessoa», «poupado» – «isso era importante»– e, sobretudo, «respeitador» – «muito importante» – ao «aceitar» o factode Júlia ser «muito convencional»: «casei virgem».

Somos de antemão levados a acreditar que a ambição social e a ati-tude racional de Júlia nas decisões quanto ao seu futuro profissional re-tratam uma mulher cuja prioridade seria a carreira. Contudo, a sua estra-tégia no sentido de conciliar a vida profissional e a vida familiar revelaum perfil distinto do das mulheres carreiristas. Na realidade, Júlia pro -

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curou maximizar as apostas nos dois universos e, em lugar de dar priori-dade à sua actividade profissional ou assumir a atitude polivalente de ou-tras entrevistadas com este tipo de trajectória conjugal, acabou por moderaras suas aspirações de carreira. Com efeito, a preocupação com a carreiraprofissional é desde logo evidente nos esforços que empreendeu no sen-tido de conseguir «uma certa independência» da sua superior hierárquicano início da vida profissional, tendo mais tarde «passado» do gabinetede um ministério para uma direcção-geral, precisamente «porque as pro-moções foram sempre muito difíceis». Depois de concluir a licenciaturae de dois anos de namoro, Júlia casou-se e, passado um ano, engravidoudo primeiro filho. Com o tempo, porém, foi-se desiludindo com José,alguém que a duração do namoro, confessa, não permitiu conhecer de-vidamente. Hoje considera-se infeliz no casamento.

Nós fomos sempre incompatíveis, eu não dei conta disso no namoro.Porquê? Porque namorámos pouco tempo. Foi durante dois anos, mas du-rante muito pouco tempo, porque eu estudava e trabalhava ao mesmotempo, e depois tive muito poucas oportunidades, a partir daí, de privar comele.

À falta de comunicação progressivamente instalada, ao conflito cres-cente e ao desencontro no plano das afinidades, acresce uma divisão dastarefas muito diferenciada, bem como a subordinação à autoridade dohomem, ecoando uma infância subjugada ao pai. Júlia refere que,quando os seus filhos eram crianças, uma empregada «não chegava» paraque pudesse prolongar a sua jornada de trabalho, pois «tinha que, namaioria das vezes, fazer o jantar». Sublinha que José «não gostava nadaque [ela] chegasse tarde». Perante uma logística familiar absorvente e asexigências do cônjuge, Júlia foi recusando os sucessivos convites paracargos de direcção «por causa da vida familiar», confessando hoje umtotal arrependimento.

Convidam-me para chefe de divisão, eu não aceito por causa da minhavida familiar, tinha as minhas crianças muito pequeninas. Saio desse orga-nismo, porque eventualmente era eu que seria a directora, mas eu não queriapor causa da vida familiar... Mas ainda lá, isto é muito importante, ainda láeu tive a oportunidade, porque fui convidada, para ir para o gabinete do se-cretário de Estado de então, mas não quis. Fui convidada para subdirectora--geral de vários organismos e não quis... por causa da vida familiar! Os meusfilhos eram muito pequeninos... O meu marido... queria que eu chegasse àscinco e meia. Eu própria também achava que deveria dar apoio aos meus fi-

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lhos. [...] A partir dessas premissas, eu não poderia ir para um gabinete dosecretário de Estado... Esse senhor que foi secretário de Estado convidou--me para o gabinete dele para ministro, porque passou-se para ministro, eeu, mais uma vez, digo que não. É-me dada a possibilidade para ir para di-rectora de serviços de um hospital... e eu não quis nada, e hoje estou o maisarrependida possível.

No entanto, a entrevistada não questionou que o marido aceitasse oconvite para um cargo de direcção no instituto onde exercia a sua activi-dade profissional, o que veio aumentar para dez horas diárias a carga ho-rária de trabalho de José – que anteriormente, tal como ela, trabalhavaquarenta horas por semana –, consolidando a eterna diferença de rendi-mentos no casal a favor do homem. Tal como Júlia, José fez carreira naadministração pública. Porém, em virtude da diferença de idades entreos dois, teve sempre um estatuto mais elevado, ocupando já o cargo de«chefe de divisão» quando se casaram: «tinha uma categoria sempre su-perior, porque tinha acabado o curso primeiro e depois, também, elemuito novo foi chefe». Esta desigualdade relativa entre os estatutos, desdeo início instalada no casal, foi crescendo progressivamente em virtudeda desigual disponibilidade para a vida profissional, disponibilidade essaditada por uma divisão familiar do trabalho assimétrica herdada, por estecasal de duplo emprego, de um modelo que atribui ao homem estatutode principal provedor. Estamos, então, perante um casal cuja hipergamiaprogressiva que define a sua trajectória se deve menos à diferença etária – traduzida no início da vida conjugal numa desigualdade hierárquica anível dos estatutos na carreira – do que à indisponibilidade da mulherpara aceitar cargos de direcção que hoje a colocariam em plano de igual-dade socioprofissional com o homem. «Arrependida» das decisões quetomou no plano profissional, mas já sem os encargos familiares do pas-sado, Júlia aguarda agora uma nova «oportunidade» na «carreira de diri-gentes», pois como faz questão de sublinhar, «tenho imenso jeito paracoordenar e para liderar».

O princípio da polivalência

Em lugar de moderar as suas ambições profissionais, algumas mulherescom este tipo de trajectória conjugal assumem uma atitude polivalente naarticulação trabalho-família, se bem que salvaguardando a disponibili-dade para a vida familiar sem, contudo, atenuarem a aposta na vida pro-fissional, tendo em vista a concretização das suas aspirações de carreira.

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Em lugar de constituir a razão de uma atitude moderada no que respeitaa essa aposta, o equilíbrio pretendido – subjacente ao seu ideal de arti -culação trabalho-família – na articulação dos dois universos constituiuma meta que, entre estas mulheres, pode e deve ser atingida com umaatitude polivalente.

Olívia constitui um primeiro exemplo dessa atitude polivalente tendoem vista a articulação trabalho-família. Ter muitos filhos e uma carreiraprofissional foi, desde sempre, o «sonho» desta investigadora científicapara quem o encargo com duas raparigas e um rapaz nascidos no espaçode quatro anos «era uma coisa que conjugava perfeitamente» com o in-vestimento numa formação pós-graduada. Embora ainda longe de vir aconcretizar as suas ambições de carreira, Olívia encontra em cada resul-tado do seu trabalho uma etapa ultrapassada e, assim, um motivo de rea-lização pessoal. Acredita, deste modo, ir compensando as dificuldadesdo seu percurso profissional e, sobretudo, a contradição que representaa discrepância económica no casal. Com efeito, o facto de Tiago ser bas-tante menos escolarizado que ela não é impedimento para auferir rendi-mentos superiores. A progressiva discrepância no plano dos recursos fi-nanceiros a favor do marido vai de par com a crescente aposta daentrevistada em capital escolar,3 caracterizando uma trajectória conjugalque, pese embora as suas características contraditórias (capital económicoversus capital cultural), heterogâmicas e, portanto, atípicas, consideramosmais próxima da hipergamia progressiva do que dos demais tipos identifi-cados neste estudo.

Ambos licenciados, os pais de Olívia transmitiram-lhe a obrigatorie-dade de estudar e, em particular, concluir uma licenciatura, «porque apessoa tem que se sustentar». Olívia recorda que este princípio de auto-nomia, já tinha sido inculcado na educação da sua avó materna, que con-cluiu a licenciatura por não ser «suficientemente rica para não trabalhar»,não tendo sido proporcionada à sua mãe, de igual modo, outra «escolha»que não licenciar-se.

Nos meios rurais pequenos, uma menina não precisava de estudar ou detrabalhar quando era rica. Agora a minha avó era de uma família que tinhadinheiro suficiente para a pôr a estudar, mas não tinha dinheiro suficientepara a sustentar e para ela ter uma boa vida sem trabalhar. [...] Portanto, já aminha avó tinha esse pragmatismo, e a minha mãe também. Puseram-na aestudar, escolheram-lhe o curso. Ela nem teve grande coisa a dizer: «vais tirar

3 Olívia estava prestes a concluir o doutoramento à data da entrevista, enquanto oseu marido, técnico de vendas, não estudou para além do ensino secundário.

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farmácia, porque uma farmácia é que dá dinheiro, e vai ser assim». E elatirou lindamente.... Portanto, nesta família há sempre a ideia de que é obri-gatório estudar, é obrigatório tirar uma licenciatura.

Filha de proprietários de uma farmácia, Olívia cresceu num meio so-cial que contrasta com o de Tiago, que desde criança ficou apenas aocuidado da mãe, empregada numa fábrica de conservas. Muito diferentessão também os percursos profissionais dos dois. Embora considere quea sua carreira é, sobretudo, o resultado de sucessivas oportunidades, enão tanto o produto de um planeamento estratégico, Olívia sublinha oenorme esforço e disciplina em virtude do incessante investimento emtítulos académicos que esta exige. Quando terminou a licenciatura, a en-trevistada ficou desapontada por não conseguir emprego na investigaçãoou na «via diplomática», tal como pretendia. Encontrou então uma so-lução provisória para escapar ao desemprego nos concursos para docenteno ensino secundário. Recorda, porém, a frustração por não conseguir o«emprego fixo» que tanto desejava, desejo esse, aliás, ainda por concreti-zar. Não obstante, refere que nunca se sentiu tão desorientada como nosprimeiros anos após terminar a licenciatura.

Tudo o que tem surgido na minha vida, não quer dizer que seja sorte,mas tem vindo de um dia para o outro, não é uma coisa que eu tenha pla-nificado. Eu sempre esperei muito, depois levei um balde de água fria muitogrande e, portanto, passei a não esperar nada... Quando acabei a licenciaturae aquilo começou tudo a descambar e a correr mal, porque não conseguiafazer nada, nem nada de que gostasse. O mercado de trabalho, naquela al-tura, estava completamente fechado. E, portanto, as minhas expectativas,que eram altíssimas, ficaram baixíssimas. E a partir daí comecei a aceitar oque aparecia como uma coisa bem-vinda. Isto é, eu sempre achei que haviade chegar a algum lado, só que estava tão perdida que já achava que nãochegava a lado nenhum.

A confrontação com a realidade do mercado de trabalho deitou porterra as suas expectativas, mas não foi suficiente para a demover daaposta numa carreira de investigação científica. Já o facto de não ter umemprego com vinte e quatro anos pesou na decisão de casar e engravidarde três filhos. O casamento e a maternidade surgem assim simultanea-mente como a realização de um dos seus «objectivos» e a compensaçãopara o sentimento de frustração. No entanto, se esta reacção implicouum forte empenhamento na vida familiar, a verdade é que a prioridadeassim concedida à família seria de curta duração, não demorando muito

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tempo até que Olívia voltasse a procurar concretizar as suas aspiraçõesprofissionais. Decidida então em apostar na carreira académica e, emparticular, numa formação pós-graduada, concorreu a uma bolsa de mes-trado.

Quando casei, o Tiago estava a trabalhar, mas eu ainda não tinha arran-jado um emprego fixo, aliás eu ainda não tenho um emprego fixo [riso].Andei dois anos a tentar fazer qualquer coisa, não arranjava emprego, estiveem imensos concursos e não encontrava nada. Comecei a meter-me nosminiconcursos para dar aulas, mas também achava aquilo horrível. Entãoachei: «Estou a perder tempo, não vou ficar mais tempo parada!» Então re-solvi: «Já que não consigo fazer nada, vou ter filhos.» E então pensei: «Comquem é que vou ter filhos? Com quem já tenho uma relação, com quemestá ali ao lado.» Para já, a relação com o Tiago já estava bastante sólida. Játinham passado quatro anos, não é? As pessoas a certa altura tornam-separte do dia-a-dia, como as escovas de dentes. [...] Os filhos tornaram-se aprioridade. Praticamente era: «Já que eu não consigo fazer nada, ao menosvou ser mãe», porque era um dos meus objectivos. Quando a minha filhamais velha tinha um ano e meio, eu decidi que tinha que avançar, não podiaficar só como uma mãe em casa sem fazer nada. Então decidi-me meter nomestrado.

O carácter maximalista da estratégia de articulação trabalho-família come-çou, desde logo, por se manifestar na decisão de seguir uma carreiramuito exigente, obrigando ao incessante investimento numa formaçãoacadémica pós-graduada. Uma vez que a maternidade não a preenchia – «não podia ficar só como uma mãe em casa sem fazer nada» –, a con-cretização do mestrado funcionou como rampa de lançamento parapoder integrar «projectos de investigação». Apesar de não poder contarcom o apoio do marido – dez horas por dia ausente de casa – aos cuida-dos com os três filhos, nunca abdicou de uma atitude polivalente na arti-culação trabalho-família, sobretudo no início do doutoramento, quandoas exigências da investigação, da tese e da família se intensificaram: «Eutrabalhava que nem uma louca, mas percebi que eu conseguia ter umritmo excelente.» A atitude moderada, identificada noutros casos já ana-lisados, não se aplica, sem dúvida, a Olívia, ainda que a polivalência conteaqui com a flexibilidade do horário de trabalho. Esta flexibilidade possi-bilita «compatibilizar» a vida profissional e os encargos com os filhos,sendo portanto fundamental para quem insiste tanto na importância queo exercício da profissão assume na realização pessoal: «é uma coisa queeu estou a fazer para mim, enquanto que toda a minha vida é feita para

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outros: para a minha família, para os meus filhos, para o meu marido».Aliás, a actividade profissional e a carreira constituem, de acordo comOlívia, a única oportunidade de se realizar enquanto indivíduo.

Pese embora o incessante desenquadramento profissional, a entrevis-tada não perdeu a motivação para apostar fortemente na carreira, cons-ciente dos seus recursos, das «reconhecidas» capacidades e do valor doseu percurso – «o que eu já fiz, já acho que é muito bom». No entanto,não se sente ainda «realizada», fazendo questão de sublinhar o contrasteentre, por um lado, a ausência de um estatuto enquadrado na carreiraacadémica e, por outro, os resultados do seu trabalho, que pontualmentelhe proporcionam sentimentos de realização.

Eu acho que poderia ter chegado muito mais longe! Neste momentocontinuo um bocado na mesma, tudo o que vier será bom, porque as pers-pectivas também não são assim tão brilhantes. [...] A minha geração andaaos caídos! Consegue-se uma bolsa aqui, depois tem que ir batalhar umabolsa noutro lado qualquer. Tenho boas habilitações e boas qualidades detrabalho, e essas qualidades de trabalho têm sido reconhecidas, só que nãotenho as mesmas hipóteses que a geração anterior teve. Isso fez com que metornasse uma pessoa com muito menos expectativas do que tinha antes, nãoé? Ainda não me considero uma pessoa realizada, mas por outro lado o queeu já fiz, já acho que é muito bom. Hoje deram-me outro livro onde eutenho um texto. Cada pormenor destes deixa-me muito feliz, é realmenteuma coisa que me deixa realizada. Eu tenho muita noção do currículo, en-riquecer o currículo, fazer qualquer coisa que faça o meu currículo estar maisperfeitinho.

Olívia considera a importância que, ela própria, atribui à carreira pro-fissional para a realização pessoal um dos aspectos fundamentais das dis-sonâncias presentes na sua relação com Tiago. O emprego como técnicode vendas proporcionou a este homem uma prosperidade económicaque, segundo a entrevistada, serve de argumento suficiente à desvalori-zação da aposta numa formação superior para construir uma carreira:«ele continua a achar que um licenciado não vale mais do que ele, porquetem a prova, ele ganha bem». O retorno financeiro que satisfaz Tiagoseria obviamente insuficiente para Olívia, para quem quer o valor sub-jectivo do reconhecimento intelectual, quer o significado objectivo dopróprio «currículo» e do estatuto associado à sua actividade profissionalnão se imiscuem, no plano simbólico, com a importância atribuída aorendimento auferido pelo marido.

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Eu penso que uma licenciatura é importante, porque deve dar acesso amais coisas, em termos de realização, em termos de uma carreira... O Tiagonão tem esse sentimento do que é uma carreira. Ele é realizado, porque nãotem esse sentimento. Para ele o que interessa, como interessa ao mundo in-teiro, é trazer um ordenado no fim do mês. Isso é que o realiza! E quantomaior for o ordenado que ele trouxer no fim do mês, mais feliz ele fica! Issoé que o realiza! Enquanto que eu tenho um sentimento de carreira, o queme realiza é o meu artigo que foi publicado na revista tal. Mesmo que esseartigo não me dê dinheiro nenhum, sinto-me muito feliz, porque é aquiloque é a minha carreira, é aquilo que me faz construir o meu currículo. É claro que tenho a intenção de que com isso possa concorrer a uma coisaonde possa ganhar mais, mas a realização eu já a tenho.

Olívia encontra na origem social de Tiago a explicação para este con-traste na importância atribuída ao dinheiro. Concluído o décimo se-gundo ano de escolaridade, Tiago começou por empregar-se como «aju-dante» na fábrica onde a mãe trabalhava. A sua prioridade foi sempre«ganhar dinheiro para ajudar a mãe». Ora, a entrevistada considera tersido esta a razão para o marido não ter feito «esforço nenhum para irpara a faculdade», confessando, aliás, que, nos primeiros anos de um na-moro iniciado na adolescência, «não o via como um potencial marido».A esta percepção acrescia a exclusiva atenção para com o seu próprio fu-turo: «as perspectivas de futuro para ele não me interessavam muito».Com efeito, Olívia reconhece ter sido educada para casar com umhomem que a igualasse ou superasse no plano intelectual. No entanto,as dificuldades em encontrar um emprego após terminar a licenciatura eo desafogo económico proporcionado pelos rendimentos de Tiago con-duziram-na a reavaliar o futuro da relação.

Quando nos conhecemos, o Tiago tinha acabado o décimo segundo háum ano ou dois... Ele trabalhava na fábrica onde a mãe dele também traba-lhava. [...] Ele nessa altura estava a pensar o que é que havia de fazer navida, porque ele acabou o décimo segundo e não foi estudar mais... Queriatrabalhar e ganhar dinheiro para ajudar a mãe. [...] Quando comecei a na-morar não estava nada interessada no que é que o Tiago podia fazer ou não,porque não via o futuro assim... O meu futuro estava muito bem concreti-zado, eu ia para a faculdade e etc. [...] Considerando a maneira como eu fuieducada e as expectativas que havia para mim... Para as gerações antigas, che-gar ao doutoramento parece que é assim uma coisa fora deste mundo! Por-tanto, face a essas expectativas que havia em relação a mim, eu deveria aspirara «um marido com uma craveira intelectual» – isto são palavras da minhamãe – «semelhante ou maior do que a minha»... Ele começou a trabalhar

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em empresas de computadores e especializou-se naquilo mesmo sem ter es-tudado e começou a ter um percurso profissional bastante razoável e... bem--sucedido. E aí, quando eu comecei a ver que ele poderia ser uma coisa po-tencial para o meu futuro, já ele tinha uma posição profissional que seriaequivalente a uma pessoa com um curso de Gestão. [...] Para a minha mãefoi uma decepção profunda em relação à vida, em relação às expectativas:«Como é que a minha filha tão inteligente, tão dotada, tão isto, tão aquilo,não só não arranja emprego como, com as perspectivas de emprego que elatem, há-de sempre ganhar menos que o Tiago! Que desgraça!!» Frustraçãototal! «Como é que um homem tão burro consegue ganhar tanto?» [riso].Coitada, levou uma martelada na cabeça!

Em suma, confrontada com as dificuldades iniciais do seu percursoprofissional e as condições económicas proporcionadas pela profissãode Tiago, Olívia quebrou o tabu da heterogamia escolar, contrabalan-çando o incumprimento da norma de género implícita na expectativada mãe – um homem intelectualmente superior à filha – com o desafogoeconómico que a profissão deste homem podia proporcionar. Já no qua-dro da vida conjugal, esse desafogo não pode, afinal, ser dissociado daenorme disponibilidade de Tiago para se dedicar à actividade empresarial,disponibilidade essa resultante de uma concessão que a entrevistada justi-fica com um retorno económico que é muito superior ao dela.

Igualmente ilustrativa do princípio da polivalência é a atitude de Lauraperante a articulação trabalho-família. Docente do ensino superior, estaentrevistada tem um percurso profissional muito menos linear que o deOlívia. Mãe de um rapaz e de uma rapariga, Laura teve o primeiro filhocom vinte e nove anos de idade, quando não tinha ainda terminado a li-cenciatura. Com trinta e três anos de idade, um ano após o nascimentodo segundo filho e já docente do ensino superior, inscreveu-se num mes-trado. A entrevistada ostenta um orgulho na sua polivalência: «Eu fiz omestrado com dois filhos já e a trabalhar e a dar aulas!» Com efeito, re-partida entre a docência no ensino superior e a actividade profissionalna área do turismo, Laura defende a sua aptidão para «acompanharmuito» os seus filhos, realçando uma capacidade de articulação dos di-ferentes encargos que a demarca de «outras mães, que não têm estas atri-bulações profissionais».

Tudo o que eu faço ocupa-me parcelas do tempo, não é um horário con-tínuo... permite-me gerir o tempo. Por exemplo, eu consigo preparar aulasdepois de os deitar. Consigo, por exemplo, trabalhar e fazer leituras enquantoeles estão a fazer os trabalhos de casa e a estudar para os testes. Muitas vezes

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estamos os três sentados na secretária, cada um a fazer a sua coisa, mas esta-mos os três a estudar em simultâneo. E é uma coisa que me dá muito gozo,e eu acho que se calhar há poucos miúdos que têm isso. Eles sempre perce-beram que a mãe tinha direito a ter o espaço dela e a vida dela.

Antes de frequentar o ensino superior e enveredar pela carreira aca-démica, Laura tinha já um percurso profissional na área do turismo. Estaactividade que exerce desde os dezanove anos de idade proporcionou--lhe o desafogo económico suficiente para poder deixar a casa dos pais,que foram «sempre muito distantes» e cujo casamento se havia deterio-rado ao ponto de a entrevistada desejar, há muito, partir. Com efeito,confessa que a degradação da relação dos pais foi decisiva para que pro-curasse a sua independência antes sequer de pensar em frequentar o en-sino superior. Quando conheceu o marido, Laura, então com vinte e umanos de idade, já habitava sozinha, ainda que só viesse a coabitar comLuís depois de casada, dois anos mais tarde. Se deixar a casa dos pais semcasar «foi muito complicado», já viver junto sem formalizar o vínculoconjugal implicaria «magoar» os sogros, pelo que ambos aceitaram a for-malização do laço.

Lembro-me uma vez de tratar a minha mãe por tu e levei um estalo. E ela perguntou-me se eu achava que ela era da minha idade. O meu pai eracompletamente controlador, o mais possível. [...] Quando o meu pai estavacá, era horrível. A partir de determinada altura as coisas começaram a com-plicar-se. Quando eu era miúda não me dava conta, mas a partir da minhaadolescência... Mas eu acho que eles acharam que não deveriam destruir afamília, porque tinham dois filhos e, portanto, enquanto nós estivemos emcasa, ficaram juntos. [...] Depois acabaram por se separar..., mas isto influen-ciou muito as minhas opções de vida, porque o que eu queria era sair dali omais depressa possível. [...] Querer ser guia-intérprete foi decisão cedo. Paraaí com quinze anos, percebi que era o que queria fazer na vida. Eu tirei ocurso de Turismo [que] hoje em dia é o equivalente a um bacharelato. Masera um curso intensivo na altura, com quatro semestres e com doze cadeiraspor semestre que se tirava no Instituto de Novas Profissões. E depois fiz oexame de guia-intérprete e comecei a trabalhar no dia a seguir ao exame. Por-tanto, foi um processo muito rápido. Eu comecei a trabalhar aos dezanovee ganhava muito mais dinheiro que o meu pai, porque é uma profissãomuito bem paga. Ganhava muito mais dinheiro do que ganho aqui a daraulas, e sobretudo quando ia para o estrangeiro e fazia muitas excursões quenão estavam no programa... E, portanto, decidi sair de casa dos meus paisassim que me foi possível, e fi-lo ainda eles não sabiam, tenho impressão,da existência do Luís. Ou seja, quando assumi e casei, já não estava com os

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meus pais, vivia sozinha, o que para a minha geração não era muito vulgar...Foi uma guerra, foi uma batalha muito má! [Os meus pais] levaram muitoa mal, tiveram vergonha do que é que as pessoas iam achar de eu sair de casasem me casar.

Laura tinha então vinte e três anos de idade quando casou. Tinha co-nhecido Luís através de uma «amiga» e colega de trabalho. Recorda a sú-bita atracção pelo marido na própria ocasião em que foram apresentados.Luís despertou imediatamente nela «um sentimento de firmeza, de de-terminação» por ser já «muito maduro». A entrevistada não dissocia oconjunto de atributos pessoais que a atraíram nele das qualidades profis-sionais que lhe reconhece: «muito responsável, nunca deixou ninguémficar mal, de pés assentes na terra, muito confiável». Parece claro que esta«atracção» por essa postura «firme» e «determinada» – traços claramenteaplicados ao universo profissional – se inscreve num quadro normativoem que ao homem pode ser concedida a dianteira no que à carreira dizrespeito.

O Luís era muito maduro, alguém que se dava ao respeito, quer dizer,alguém cuja presença transmite muita segurança, mas também muito res-peito. Não sei bem como explicar melhor, mas houve desde logo um senti-mento de firmeza, de determinação, que é o que ainda hoje mais me atrainele. Quando o conheci, ele já tinha acabado a licenciatura, e começou logoa trabalhar também. Era director de obra e estava a fazer as fundações deum hotel fora de Lisboa. Ele sempre teve responsabilidades deste tipo desdeque acabou o curso, desde muito novo, mas ele é muito certo... Apesar demuito novo, acho que sempre correu tudo muito bem. Se calhar por isso éque o cargo que ele tem hoje, de administrador, já o tem há vários anos.

Dessa precedência concedida à vida profissional do homem é, desdelogo, ilustrativa a atitude tolerante e, simultaneamente, reprovadora deLaura para com a indisponibilidade de Luís. «Se ele jantar connosco umavez por semana é muito.» Laura declara que o marido «não tem horáriosde todo», referindo, em tom de desabafo, a total desvinculação no quetoca à logística familiar: «É horrível! Não posso contar com ele paranada!» Mas a precedência que concede à carreira de Luís tem igualmenteconsequências nos seus próprios projectos profissionais. De facto, desdeo casamento que o percurso profissional da entrevistada se pautou pelatransição progressiva da actividade na área do turismo para actividadesque permitissem articular melhor o trabalho e a vida familiar. A entre-vistada recorda que o cansaço associado a uma actividade «sazonal» que

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envolve permanentes deslocações «pesou» na sua decisão. No entanto,não deixa também de referir o manifesto desconforto do marido porela própria nunca ter escolhido «o tal trabalho das nove às cinco queele queria». Ou seja, é o mesmo homem que «sempre chegou a casamuito tarde» a reclamar à mulher um horário de trabalho estruturado.Cansada da sua actividade profissional e procurando ir mais ao encontrodo desejo do marido – uma presença mais assídua da mulher na vidafamiliar – Laura decidiu abrandar na sua profissão, ser mãe, mas, simul-taneamente com o compromisso de voltar a estudar, frequentando umalicenciatura em regime pós-laboral. Foi, assim, mãe pela primeira vezquando frequentava o terceiro ano da licenciatura, porque «não valia apena esperar muito mais e também achei que conseguia conciliar tudo».Com esta atitude polivalente assumiu, então, o compromisso da articu-lação entre os encargos com a chegada de uma criança, o exercício –mais atenuado – da sua actividade e a necessidade de investir numa for-mação superior.

Houve uma altura, quando tinha oito ou nove anos de carreira, que eupercebi que por mais que insistisse, por mais que soubesse, o espaço detempo de que eu dispunha para comunicar com os meus turistas era tão li-mitado que não valia mais fazer investimentos por ali. [...] Acho que é umaboa profissão para se ter até aos vinte e sete anos, porque é muito cansativoe exige muito de nós enquanto se trabalha, o facto de ser sazonal nunca sesabe o que é que se vai ganhar. [...] Como comecei a pensar seriamente queaquilo não era profissão para se ter até à idade da reforma, decidi estudaroutra vez. Eu tinha andado nas Novas Profissões e aí havia uma licenciaturapós-laboral chamada Relações Públicas e Publicidade... Portanto, eu conti-nuei a trabalhar durante o dia, às vezes trabalha-se à noite, muitas vezes atéfaltava às aulas e decidi licenciar-me nessa altura. [...] Quando eu decidi li-cenciar-me eu achava que ia arranjar um emprego giríssimo numa agênciade comunicação, e que ia fazer imensas coisas óptimas na área da comuni-cação, só que nunca arranjei.

A actividade de docente no ensino superior surgiu então através doconvite de um professor, convite esse que Laura aceitou pelo manifestogosto em ensinar e pela dificuldade em conseguir emprego na área emque então apostara. A docência passou a representar a sua principal fontede rendimento, e a actividade profissional anterior apenas «um comple-mento», ainda que a entrevistada confesse abdicar de bom grado dasfunções administrativas exigidas aos colegas que, ao contrário dela,fazem parte do «quadro». Assim, ao prazer de ensinar acresce uma rejei-

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ção desses encargos inerentes aos estatutos da carreira, permitindo quea entrevistada tenha conservado a actividade anterior, que tanto a rea-liza.

As compensações do mundo académico estão apenas relacionadas como reconhecimento do conselho directivo ou dos alunos. É assim, a únicacoisa de que eu gosto – e isto sendo muito sincera – no mundo académicoé dar aulas, não gosto de mais nada. O elogio dos alunos, para mim, é muitomais importante que qualquer elogio do conselho científico, que tambémnos faz, graças a Deus, mas isto para mim é muito... Dá sentido a eu vir cá!Faz sentido! É mais importante que o ordenado ao fim do mês, porque apessoa sente que está a fazer qualquer coisa que vale a pena.

Posteriormente, Laura decidiu apostar num mestrado, embora subli-nhe que tomou essa decisão para alargar o seu conhecimento, e não «apensar na carreira académica». A este respeito, é notória a forma comoa atitude polivalente da entrevistada está nos antípodas da moderação ob-servada junto de Raquel, docente universitária para quem o mestrado eo doutoramento são apenas títulos nos quais investiu por «obrigação».Na articulação trabalho-família, Laura frisa a «paixão» com que se dedi-cou ao mestrado: «nunca fiz sacrifícios». Mas as consequências da ela-boração da tese de mestrado sobre a vida familiar não deixam de revelarque a sua actividade profissional e, particularmente, a aposta numa for-mação pós-graduada não têm a precedência que a entrevistada concede àprofissão e carreira do marido. Recordando os diversos «serões e muitosfins-de-semana a trabalhar para a tese», Laura sublinha que «em casaninguém refilou, ninguém disse ‘larga isso’, mas disseram todos: ‘Maisnão!’».

Quando eu penso no que foi fazer aquela tese, foi tanto trabalho, tantotrabalho, tanto trabalho! Tive a particularidade de ter dois orientadores eque várias vezes um mandou-me fazer uma coisa, e o outro mandou-me des-fazer e começar de novo. Portanto eu tive muito trabalho e demorei muito.Mas eu empenho-me muito nas coisas. Para já, só faço aquilo para que mesinto motivada, mas depois empenho-me muito. Eu lembro-me de muitosserões e de muitos fins-de-semana a trabalhar para a tese.

Deste modo, o impacto da experiência do mestrado na vida familiarpesou na decisão de não avançar para o doutoramento, embora Lauraconsidere que a sua decisão resultou de uma «opção»: «cá está a históriade optar: prefiro a família, claramente». Por outro lado, entende ter sido

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vencida pela «preguiça», argumentando que um doutoramento não trariamais-valias para quem, como ela, não está «na carreira», nem tem «detodo essa postura». Não se trata, portanto, de conter a ambição profis-sional ou trair o princípio da polivalência na articulação trabalho-família,mas simplesmente de encontrar uma realização pessoal maior no desem-penho da actividade profissional do que nos requisitos educacionais eformais da carreira de docente. Docente contratada a prazo e, portanto,correndo o risco de o contrato não ser renovado, Laura reparte-se entreas aulas e a sua actividade profissional anterior: «tenho um pé no mundoempresarial, porque não sei qual é o meu futuro». O «desenquadra-mento» na carreira académica não é, já se vê, motivo de «angústia», umsentimento que a entrevistada considera próprio de quem não conhece«mais nada na vida».

Também docente universitária, Teresa representa outro exemplo deuma atitude polivalente no quadro de uma estratégia maximalista concessora.Mãe de um rapaz e de uma rapariga, esta entrevistada casou com um en-genheiro cuja origem social – filho de um pequeno comerciante e deuma doméstica – se assemelha à sua. O pai de Teresa foi gerente bancárioe a mãe monitora em ocupação de tempos livres. Três anos mais novado que o marido, a entrevistada foi surpreendida por uma gravidezquando não tinha ainda a licenciatura concluída. Este «imprevisto» des-pertou sentimentos contraditórios de gratificação com a maternidade,por um lado, e receio por esta condicionar o ritmo nos estudos e na car-reira profissional, por outro. Decorridos seis anos, engravidou do se-gundo filho do casal quando iniciava a tese de mestrado, voltando, destemodo, a sentir que prolongava o período da sua formação, imprescindí-vel para a progressão na carreira académica. Desta vez, contudo, Teresalidou de outra forma com o sentimento de «atraso», ou não atribuísseela uma importância à maternidade equivalente àquela que confere àvida profissional e à carreira. Na verdade, o segundo filho do casal – umarapariga – não foi, ao contrário do primeiro, fruto do «imprevisto». Teresainclui esta gravidez entre as «opções familiares que eu própria faço», re-ferindo-se ao conjunto de encargos com a família nos quais Tomás, ocu-pando um cargo de directoria numa empresa do Estado, raramente par-ticipa. A entrevistada assume que já poderia ter concluído «há imensotempo» o mestrado, porém, «optou» por ficar em casa para poder dartodo apoio que desejava à filha: «conseguia vê-la o tempo todo». Mas seo carácter maximalista da sua estratégia implica que esta mulher se repartaentre a prestação do maior apoio possível aos seus filhos e uma apostana vida profissional, já as «obrigações financeiras» do casal com a mu-

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dança para «uma casa muito maior» a obrigam a desdobrar-se noutrasactividades económicas.

Fazer isto tudo ao mesmo tempo é complicado de gerir e acaba por sersempre assim. Um dos meus dramas ultimamente era: tenho o mestrado parafazer que já poderia ter feito há imenso tempo..., se eu há muito tempo já metivesse decidido a vir para o Instituto trabalhar no mestrado, em vez de ter fi-cado lá em casa..., eu se calhar já tinha adiantado muitíssimo mais, não teriaestes problemas. Por outro lado, quis escrever artigos, porque achei que iafazer uma falta danada, uma sujeita que dá aulas, que é docente, tem o mes-trado e não tem nada publicado. Mas escrever artigos implicava tempo paraos realizar, pelo menos dentro daquilo que são os meus critérios de qualidade.Por outro lado, tinha também... os encargos económicos que temos, não é?Porque só na casa vai o meu ordenado todo e então eu tinha que, ao mesmotempo, aceitar um conjunto de coisas apenas para ganhar mais dinheiro.

Hoje os seus encargos profissionais repartem-se entre o mestrado, asaulas em duas instituições de ensino superior, os projectos de investigaçãoe as traduções científicas. Ainda que «gost[e] mais de ser investigadorado que docente», confessa sentir-se financeiramente «mais segura» comesta última actividade. Os «encargos económicos» do casal levam-na aencarar o mestrado como «ferramenta útil, material, imediata», pois es-pera que o título lhe assegure «a possibilidade de subir de escalão e deganhar mais». Menospreza assim o conjunto de conhecimentos ou com-petências que advêm da concretização de uma tese: «eu posso esclare-cer-me sozinha, não preciso de fazer mestrados para isso».

Faço o mestrado por questões muito objectivas, porque eu posso alargaros meus conhecimentos... Nesta altura tenho ferramentas suficientes paraalargar os meus conhecimentos, estou em mundos de investigação, estouem mundos de docência, eu posso esclarecer-me sozinha, não preciso defazer mestrados para isso, para aprender mais, para saber mais. Preciso domestrado... mesmo por uma questão materialista [riso].

Em jeito de balanço, dividida entre o gosto pela investigação e a ne-cessidade de cumprir com as «obrigações financeiras», Teresa assume-se,«em termos de objectivos materiais», menos realizada do que o marido,mas profissionalmente considera-se mais realizada, pois sublinha que «faz aquilo que lhe surgiu». Quando a entrevistada engravidou inespera-damente do primeiro filho do casal, já ele ocupava um cargo de directo-ria, e desde então sempre «ganhou mais» e «teve um cargo de maior res-

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ponsabilidade, de maior status» e «mais responsabilidades em termos decompetência profissional». No entanto, o «conjunto de privilégios» ine-rentes à posição de directoria não compensam a realização pessoal queo exercício desse cargo, no entender de Teresa, não proporciona ao ma-rido, que por essa razão se dedica a «tantas outras coisas». Com efeito,enquanto membro do partido político no contexto do qual, aliás, se co-nheceram, Tomás exerce – sem qualquer retorno económico, sublinhe--se – um conjunto de actividades na «área política e social».

O Tomás tem um conjunto de privilégios que eu não tenho e tem umconjunto de responsabilidades que eu não tenho, mais responsabilidades emtermos de competência profissional, etc. Ele está num sítio em que administrauma empresa que tem muitos trabalhadores e tem que tomar decisões. [...]Uma coisa é aquilo que eu faço, outra é aquilo que eu gosto de fazer. Eu achoque estou melhor, porque trabalho numa área de que gosto, trabalho compessoas de quem gosto, estudo, investigo os assuntos que me interessam,gosto mesmo da minha profissão. E acho que ele não gosta tanto da profissãodele. Por isso é que eu acho que ele trabalha depois na outra área política esocial, faz intervenção directa nas Juntas de Freguesia com as pessoas. Ele tra-balha nestas coisas todas sem ganhar dinheiro nenhum..., porque ele achaimportante fazer aquilo pelas pessoas, pelo Concelho, pela Freguesia. [...] Por-tanto, ele trabalha na área da acção social pelo gozo que isso lhe dá, mas de-pois tem que trabalhar naquela coisa de administrador, fechado num gabi-nete, a tomar decisões da área de gestão, não é? É aquilo que lhe dá o estatuto,é aquilo que lhe dá o dinheiro, mas não é aquilo que lhe dá prazer.

Todavia, as actividades políticas no horário pós-laboral constituem,na verdade, oportunidades para alargar o capital social e o capital sim-bólico em que também se alicerça o estatuto profissional deste homem.Sensível a esses requisitos profissionais, Teresa concede-lhe, portanto, a dis-ponibilidade para se envolver em actividades, na prática, dificilmentedissociáveis do cargo que ele ocupa, concessão essa resultante, enfim, deuma negociação nem sempre pacífica. Não será por acaso que o empe-nho deste homem na actividade política constitui, como veremos maisadiante, um foco de tensão no casal, uma vez que contribui para acentuara diferença entre os cônjuges no que toca à disponibilidade para a família.Com efeito, Teresa ausenta-se todos os dias de casa durante seis horas,enquanto Tomás «sai às nove da manhã e chega, quando tudo corre bem,às oito da noite». Esta discrepância entre os cônjuges é, na realidade,ainda mais acentuada, pois «duas ou três vezes por semana, ele chega àsonze, meia noite».

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Vanda representa um último exemplo da polivalência assumida na ela-boração de uma estratégia maximalista para articular a vida profissional e avida familiar. A sua atitude polivalente vai de par com uma consciência deque os encargos familiares lhe retiram a disponibilidade para a vida pro-fissional, disponibilidade essa que o marido, por sua vez, usufrui: «Parater uma carreira como a dele, tinha que ter muito mais disponibilidade.»Mãe de três rapazes, Vanda é jurista e ocupa hoje o lugar de chefe de di-visão num instituto público. Licenciada em Direito, desde cedo se aper-cebeu das dificuldades inerentes à carreira de advogada e de que a advo-cacia como profissional liberal não estava ao seu «alcance». Até chegar aocargo que hoje ocupa, Vanda trilhou um percurso profissional pouco li-near. Quando terminou a licenciatura, e enquanto estagiava na Ordemdos Advogados, decidiu apostar numa formação complementar em Ges-tão de Empresas, formação essa que lhe proporcionaria travar conheci-mento com Vítor, o seu actual marido. Com vinte e seis anos de idade eapenas oito meses de namoro, Vanda casou-se. Licenciado em Economia,Vítor é um ano mais novo que a entrevistada, mas ocupava já um cargode directoria numa empresa privada. A Vanda, por sua vez, nem a apostanuma formação suplementar em Gestão de Empresas após ter concluídoo estágio na Ordem dos Advogados impediu que se confrontasse com odesemprego: «Eu estive desempregada, já casada, durante quase um ano.»

Só mais tarde a entrevistada seria admitida como assessora jurídicanuma delegação regional. Vanda só engravidou, assim, pela primeira vezaos trinta anos de idade, quando, dirigindo já a assessoria jurídica, sentiuque «estava relativamente cómoda na profissão». Importa sublinhar queela própria reclama para si a criação da assessoria jurídica da delegaçãoregional que a contratou: «fui eu que fiz aquela assessoria, portanto quea criei e desenvolvi». Passados onze anos viria a ser demitida do cargopor incompatibilidade com «um dos novos delegados regionais» e as me-didas que este pretendia «impor». Considera esta demissão um retrocessona sua carreira profissional, já que se viu «relegada para um cargo técnico»nos «serviços centrais» do instituto. São claros os sinais, durante a entre-vista, do sofrimento que a acompanhou em todo esse processo, que nãosó implicou um recuo no seu percurso profissional, como perturbou oequilíbrio entre uma actividade profissional que já «dominava absoluta-mente» e os encargos com a família, sobretudo com os três filhos docasal. Reencaminhada para o «núcleo que tratava das relações laborais»,e constatando que «nenhum dos meus colegas era especializado em Di-reito de Trabalho», Vanda apostou numa pós-graduação com o propósitode alcançar, mais tarde, um lugar de liderança, pois não se esperava que,

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entretanto, se revelasse mais qualificada – «eu era nova naquele meio e,à partida, eu devia saber menos» – que os seus colegas, já instalados noposto. Sublinha, contudo, o difícil confronto com a falta de competên-cias daqueles que a rodeavam.

Eu, no momento em que tive filhos, estava relativamente cómoda naprofissão, no desenvolvimento profissional... e estava comodamente insta-lada ali. Eu dominava absolutamente aquilo e, portanto, os filhos vieramduma forma que também se foi compatibilizando com essa minha mais--valia naquele órgão, num órgão puramente técnico em que eu sabia quedominava tudo. [...] O meu único chefe era o chefe máximo, que era o de-legado regional, que naturalmente não acompanhava o meu trabalho, masconfiava absolutamente nos meus pareceres... Portanto, não havia ali chefiasintermédias ou dirigentes intermédios: era eu e o delegado regional. [...] De-pois tive um problema e fui demitida do cargo ao fim de onze anos a dirigira assessoria jurídica... Um dos novos delegados regionais queria impor de-terminadas formas de trabalho. Eu não aceitei e demiti-me do cargo. [...]Houve um recuar na minha situação profissional... Tinha plena autonomia,tinha poder de decisão, tinha tudo, e, de repente, fui relegada para um cargotécnico aqui dentro do Instituto. [...] Foi muito mau! Muito, muito mau!Eu fiquei instável, tive uma pequena depressão, tive que ser medicada parasuperar isso! [...] Nessa altura eu tive que decidir o que é que ia fazer, não é?Já tinha os três filhos quando isto aconteceu, e eu, aí, tive que fazer umasérie de opções. Eu fui colocada aqui no núcleo que tratava das relações la-borais e apercebi-me de que nenhum dos meus colegas era especializado emDireito de Trabalho, que tinham um nível de conhecimentos muito básico,muito rudimentar, e eu achava que aquilo era inaceitável. A nível de conhe-cimentos, eu estava muito distante deles, muito, muito distante! Eles sabiammuito pouco e eu não conseguia articular com eles, por causa dessa diferençade conhecimentos. Eu não queria demostrar isso, eu não queria dizer «eu éque sei»... Eles é que deviam saber tudo, não é? Deviam ser eles a ensinar--me, mas eu senti ao contrário. E, então, foi quando fiz a minha pós-gradua-ção em Direito do Trabalho.

Apesar das contrariedades, é notória a persistente ambição da entre-vistada tendo em vista a ascensão na carreira profissional. Se a importân-cia atribuída à maternidade e a forte aposta na família podem ser com-preendidas à luz de um contexto familiar de origem onde a mulher – particularmente a avó, na figura da matriarca – tem um papel domi-nante, já a ambição profissional revela uma transposição para o contextoprofissional do papel de liderança exercido em família, processo esteaccio nado e alimentado pela atitude incentivadora e expectante da mãe

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em relação ao êxito profissional da filha. Parece, enfim, óbvio que estaatitude de alguém que alimentou «esperanças de que [a filha] tivesse umsucesso maior», e para com quem a própria entrevistada se sente em dí-vida, não será alheia à intensidade do impacto da despromoção profis-sional de uma mulher que «tinha dirigido sempre, nunca tinha sido di-rigida».

O que eu sou hoje devo muito à minha mãe. É muito importante paraela a minha vida profissional, ainda por cima sendo ela minha colega, tam-bém. A minha mãe manifestou várias vezes o desejo de que eu tivesse umaprofissão, que estudasse, que tivesse uma profissão. Portanto, que tivesse oconhecimento de uma área e que pudesse desenvolver com isso capacidadesque me garantissem uma vida boa. Era essencialmente isto. Houve uma al-tura em que ela teve esperanças de que eu... me tornasse numa figura públicaou fosse reconhecida por uma especial capacidade... Ela sempre pensou queeu tinha grandes capacidades de escrita e que poderia ser alguém, uma jor-nalista de renome, uma escritora romancista, alguém assim que ela idealizavaque estaria num lugar especial na sociedade, está a ver? Mas depois deixoude falar nisso, e eu também nunca senti isso como um peso, como uma res-ponsabilidade, como um objectivo meu. [...] Penso que, ainda assim, ela es-pera que eu consiga mais. Quer dizer, ela acha que eu ainda posso avançarmuito. E eu também!

Entretanto, das elevadas expectativas face à carreira profissional e, si-multaneamente, à vida familiar resulta uma atitude polivalente na formacomo procura maximizar as apostas nos dois universos, atitude essa quevai de par com uma ausência de questionamento sobre a total disponibi-lidade de Vítor para a sua actividade profissional. «Profissionalmentemuito cotado», este homem exerce um cargo de directoria numa empresaprivada, auferindo um salário bastante superior – «muito mais do dobro»– ao da entrevistada. Se esta diferença a nível dos estatutos, dos rendi-mentos e, portanto, das posições socioprofissionais era já evidente quandose casaram – ainda Vanda não estava empregada –, o encargo de três filhoscom diferenças de idades não superiores a dois anos foi decisivo para aprogressão dessa hipergamia ao longo da trajectória conjugal. Com efeito, asobrecarga familiar recaiu incessantemente sobre a entrevistada, tal comoevidencia bem a diferença de cargas horárias profissionais no casal: o ho-rário de trabalho diário dela termina ao fim de oito horas; ele só regressaa casa doze horas após ter saído para trabalhar. Esta disparidade não deixade se reflectir nos percursos profissionais de cada um, que no entender deVanda não podem ser comparados, não só porque um trabalha no sector

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privado e o outro no sector público, mas também porque «ele está numacarreira internacional e eu estou numa carreira nacional». A entrevistadatestemunha a enorme realização de Vítor através da profissão, reconhe-cendo-lhe uma superioridade que a dissuade de «competir» com o marido,ainda que ocasionalmente sinta necessidade de afirmar, junto dele, as suasqualidades como profissional. Vanda, contudo, aposta na carreira profis-sional sem desrespeitar o princípio de equilíbrio entre a aposta na famíliae a aposta na profissão, ou seja, não se autorizando a si própria, pese em-bora as suas ambições profissionais, a disponibilidade para a profissão e acarreira que concede ao marido, com o qual não pode, por conseguinte, ri-valizar. Perante esta óbvia contradição entre a prioridade da articulaçãotrabalho-família, por um lado, e a procura em satisfazer a ambição profis-sional, por outro, Vanda refugia-se no «conforto» que o desafogo econó-mico proporcionado pelos rendimentos de Vítor representa, desafogo esseque considera, assim, a justa contrapartida da concessão que faz às amplasexigências da profissão e da carreira do marido.

Ele realiza-se muito no trabalho, muito mesmo! Eu não posso competircom o meu marido. É impossível! Não dá para competir com ele! De vez emquando, por graça, comentamos que... Sobretudo, ele é muito vaidoso... emrelação à sua profissão, à sua personalidade. É uma pessoa vaidosa. Acha-seo melhor do mundo! [riso]. E eu, de vez em quando, também digo que soua melhor na minha profissão, aqui no meu meio de trabalho. Quando com-paro, eu também digo que sou a melhor. Mas é só nesses termos de... sei lá,de auto-elogio, não é? Eu, para a carreira, não podia ter outros afazeres. [...]Não me sinto para trás! Sinto-me bem assim. Ainda bem que ele tem sucessoe que ganha muito dinheiro [riso], porque assim eu posso estar confortavel-mente a evoluir na minha profissão.

O sentimento de «conforto» proporcionado pelo desafogo económicoparece, precisamente, adequado à atitude polivalente de Vanda no que tocaà própria concretização dos objectivos relacionados com a sua carreira.Com efeito, a entrevistada sente-se «aliciada» com «cargos de direcção»,que estão para além de uma carreira cujo «topo» já atingiu: «Eu tenhomuita iniciativa e sou muito criativa e é um cargo destes que me convém.»No seu discurso entrevê-se um planeamento estratégico – «através da con-quista de espaço aqui» – que envolve um investimento incessante na suaformação – «através da aquisição de mais conhecimentos» – para alcançarum dos «cargos de dirigente». Considera que esses lugares são tangíveise adequados à sua situação, uma vez que não questionam – como nãoquestionou no passado o cargo de direcção de uma assessoria jurídica –

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o equilíbrio das apostas na carreira e na família. Já as mesmas característicasnão encontra numa aposta no sector privado, ou seja, em cargos de igualmodo aliciantes e «enriquecedores», mas que a sujeitariam a um horáriode trabalho mais pesado. Contraditórios com a desejada disponibilidadepara a família, esses cargos situam-se, assim, para lá dos limites da sua po-livalência. De resto, aceitar esse tipo de cargos representaria um «impedi-mento» à concretização dos seus planos de ascensão no instituto públicoonde trabalha. Ainda que recuse utilizar os encargos familiares comojustificação para não enveredar por este percurso profissional – «opção»essa que, explica-nos, «tem a ver com a estratégia aqui dentro» –, Vandaé categórica quanto à sua preocupação com as exigências da vida familiar– «se entretanto os meus filhos tiverem problemas na escola ou desaúde...» –, que não poderiam ser satisfeitas se a sua aposta na carreirafosse menos ponderada.

São cargos de carreira, mas são cargos de dirigente que são aliciantes paramim, não em termos remuneratórios, mas pela realização, por seguir umprojecto, por poder fazer coisas novas... [...] É muito difícil, mas acho queatravés da aquisição de mais conhecimentos e através da conquista de espaçoaqui... No ano passado, por exemplo, fiz uma pós-graduação em Direito doTrabalho... Agora a minha via é na Gestão. Já não quero cá mais cargos deassessorias jurídicas, cargos puramente técnicos já não aliciam. Quero con-jugar os aspectos técnicos do mundo do Direito também com os da Gestão.Eu tenho muita iniciativa e sou muito criativa e é um cargo destes que meconvém. [...] Uma das hipóteses que pus foi deixar o instituto onde trabalhoe ir trabalhar para uma empresa qualquer... Gostaria muito de fazer essa ex-periência..., acho que ia enriquecer os meus conhecimentos no âmbito daGestão dos Recursos Humanos. Mas eu sinto que não me posso aventurarmuito neste momento para, por exemplo, para uma empresa privada emque eu tinha de trabalhar dez horas por dia... Não, nem pensar! Não tem aver com os miúdos. Tem a ver com a estratégia aqui dentro. Quer dizer, seentretanto os meus filhos tiverem problemas na escola ou de saúde e queme impeçam de seguir essa estratégia definida, então vou ter que dar priori-dade à família em vez de dar à carreira aqui dentro.

A divisão diferenciada das tarefas e o sentimento de ausência do pai

Tal como acontece com a maioria das entrevistadas, também as mu-lheres com trajectórias conjugais de hipergamia progressiva delegam parte

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considerável do trabalho doméstico em empregadas, contando aindacom a rede familiar de apoio. A concessão à precedência da profissão e dacarreira do homem não pode ser dissociada da sua desvinculação do tra-balho doméstico. Estas mulheres procuram assim, tanto quanto possível,compensar o défice de partilha do trabalho doméstico com a delegaçãoparcial em terceiros. Apesar da possibilidade de contar com o apoio defamiliares ou empregadas, a desvinculação do homem face ao trabalhodoméstico constitui, nalguns casos, um foco de tensão entre os cônjuges.Em particular, são sobretudo os cuidados à criança que, muitas vezes,constituem o pretexto dos desacordos e conflitos identificados junto des-tes casais com trajectórias de hipergamia progressiva.

Trabalho doméstico: a delegação em terceiros e a (in)tolerância à desvinculação do homem

Se são os pais e, em particular, a mãe da mulher, quem por norma aauxilia nos cuidados à criança, é frequente delegar-se numa empregadaas tarefas domésticas mais pesadas. Para estas mulheres que apostam deigual modo na vida familiar e na vida profissional, são assim decisivosesses apoios. Quer as entrevistadas que respeitam um ideal de equilíbriotrabalho-família moderando a sua ambição profissional, quer aquelas queacreditam na polivalência como resposta para concretizar esse ideal, con-tam, muitas vezes, com uma sólida rede de apoios.

Comecemos por analisar a situação das entrevistadas que ostentamuma atitude polivalente. No caso de Olívia, o apoio da mãe possibilitouque a vida do casal não se alterasse no plano do lazer até chegar o se-gundo filho: «como tinha o apoio da minha mãe não parámos de fazerférias, de viajar, de fazer tudo o que fazíamos antes». A polivalência os-tentada por esta entrevistada face à articulação trabalho-família não é,deste modo, alheia às ajudas da mãe, que «sempre foi o pilar»: «eu co-mecei logo a fazer os trabalhos do mestrado, depois a investigação parao mestrado e foi tudo com o apoio da minha mãe». Também Teresa seconsidera «uma privilegiada» por ter «muita ajuda» dos pais e dos so-gros. Reconhece, aliás, ter tido «sempre uma pessoa a substituir», pois,«está lá sempre [em casa] a minha mãe». Por sua vez, Vanda, pôde igual-mente contar sempre com o apoio da mãe nos cuidados à criança: «vaidormir a minha casa para eu poder dormir a noite toda». Ainda quesubli nhe ter «a vida organizada de forma a não depender dos favoresfamiliares», não prescinde do apoio de uma «baby-sitter». Por último,Laura confessa que o apoio dos pais foi fundamental para que pudesse

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conciliar, nos primeiros anos do seu filho mais novo, a vida familiar, aactividade profissional e as aulas da licenciatura em regime pós-laboral.De resto, nunca deixou de recorrer ao apoio quer de uma «mulher-a--dias», que fazia o «serviço da casa», quer de uma ama, «o dia inteiro»à sua disposição.

No que respeita às entrevistadas que maximizam com moderação as apos-tas nos dois universos, seria pouco rigoroso dissociar essa atitude moderadanas situações em que, perante um cenário de desvinculação do homem,falta uma rede familiar de apoio. A título de exemplo, para a contençãoda ambição profissional de Júlia contribuiu a ausência de apoio da famílianos cuidados aos filhos – «eu não tinha ninguém com quem os deixar» –, que assim permaneciam «muito tempo no colégio» até serem recolhidos,às dezanove horas, por ela ou pelo marido. Já a atitude moderada de Ra-quel parece aplicar-se tanto à sua ambição profissional como à solicitaçãode apoios nos cuidados à criança – «coitada da minha mãe, então agoravou--lhe pedir também o fim-de-semana para ficar com ela?!».

Pese embora o volume dos apoios ao trabalho doméstico, a expressãode Vanda «eu organizo sempre tudo», ao referir-se à vida familiar, é bas-tante elucidativa do modo como as mulheres nos casais com trajectóriasde hipergamia progressiva assumem a própria gestão dos encargos domés-ticos, cabendo-lhes a grande fatia das tarefas não delegadas na empregada,pois, na maior parte dos casos, o cônjuge, mesmo quando presente, re-siste a colaborar. O caso de Júlia constitui o único exemplo de partilhado trabalho doméstico. «Ele vai às compras – eu tenho uma hérnia nestepulso e daí ser ele a ir mais às compras... –, depois faz as camas de manhãe trata da roupa.» No entanto, não fosse a limitação física desta mulher,seriam as tarefas tão partilhadas? Com efeito, tal como verificámos ante-riormente, a renúncia a todas as promoções que implicassem lugares dedirecção – ou seja, lugares cujos encargos e responsabilidade vinhamameaçar a sua disponibilidade para a família – não pode ser dissociadada oposição de José a uma permanência mais prolongada de Júlia nolocal de trabalho.

Quase todas as entrevistadas com este tipo de trajectória conjugal la-mentam a relutância do cônjuge em colaborar nas tarefas domésticas,bem como a indisponibilidade para estar mais presente na vida familiar.Não obstante, revelam-se divididas entre a crítica à desvinculação dohomem e a condescendência. Por exemplo, adepta de uma atitude poli-valente face à articulação trabalho-família, Olívia considera que o marido«deve participar, mas só no que gosta e no que sabe fazer»: «Ele gostamais de fazer a parte de bricolage, de pôr uma lâmpada e aspirar a casa.

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Eu gosto mais de cozinhar.» As tarefas de que nenhum dos dois «gosta»– como engomar ou limpar a casa – são delegadas numa empregada ou,simplesmente, ficam por executar: «agora já não temos outra vez empre-gada e, por isso, a casa está um nojo». No caso de Vanda, também apo-logista da polivalência, a carga horária de trabalho do marido – doze horasdiárias – é suficientemente elucidativa das suas prioridades. As «exigênciasfamiliares» que recaem sobre a entrevistada são, apesar de todos osapoios, «muito maiores». Já Raquel considera «que por muita partilhaque haja em casa, mesmo assim, há diferenças a nível das prioridades»,«diferenças» essas que se manifestam desde logo na maior carga horáriade trabalho do marido e, em particular, na atitude moderada desta mulherface à sua própria carreira profissional. A «partilha dos papéis em casa»consiste essencialmente em incumbir Rogério de cozinhar «coisas com-plicadas». Raquel não se surpreende assim por ser «mais solicitada queele», mas apercebe-se da importância da divisão do trabalho na cristali-zação das diferenças de género ao afirmar: «vamos deixando menos coi-sas para eles fazerem e eles vão ocupando o tempo de outra maneira».Enfim, ao contrário desta entrevistada, Teresa recusa moderar a sua am-bição profissional e é, possivelmente por isso, mais crítica, mas tambémmais ambivalente no que toca à participação do marido nas tarefas do-mésticas. Assim, por um lado, considera ter «menos ajuda do que devia»da parte do marido, a quem acusa de ter falta de «espírito de iniciativa».Por outro lado, justifica que os «problemas de participação dele na famílianão têm a ver com falta de vontade», mas «com o envolvimento que eletem noutras coisas, noutras actividades». Ainda que de forma alternada,confundem-se particularmente aqui a crítica à desvinculação do homeme a condescendência.

Um pai mais presente reclamado ao cônjuge

Pode então dizer-se que as mulheres cuja trajectória conjugal se definepela hipergamia progressiva se distinguem grosso modo daquelas cuja trajec-tória conjugal assume os contornos da hipergamia prioritária pela maiorambivalência da sua reacção à desvinculação do homem do trabalho do-méstico. Esta diferença não é, contudo, tão marcada como a que se ob-serva a nível dos cuidados à criança, onde a escassa presença do homemé já bastante menos tolerada pelas mulheres com trajectórias de hipergamiaprogressiva. Com efeito, os cuidados à criança surgem mais frequente-mente como um foco de tensão no casal do que as tarefas domésticas. Nãose estranha, enfim, que, face à desvinculação do parceiro, a tolerância

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destas mulheres, para quem as exigências da vida familiar e da vida pro-fissional constituem prioridades da mesma ordem, contraste com a dasentrevistadas familiaristas.

Teresa, por exemplo, é peremptória e insistente na crítica que dirige àdesvinculação do marido. A entrevistada refere os «conflitos», ainda que«pontuais», a propósito da disponibilidade do marido – «tens que virpara casa mais cedo para estares com os miúdos» – ou da falta de parti-cipação – «tens que ajudar mais» – nos cuidados às crianças. Esclareceque Tomás se limita a «ajudar os filhos a arranjarem-se e levá-los à escola».No entanto, os «conflitos» e as suas «reivindicações» têm, por outro lado,produzido resultados positivos. Teresa sublinha que o marido «tem sidomuito mais presente, consegue orientar os nossos filhos, consegue levá--los a fazer aquilo que ele quer», precisamente, «porque eu o responsabi-lizei em algumas tarefas». No âmago destes «conflitos», enfim, não estáeventualmente tanto uma sobrecarga com os encargos familiares, umavez que, tal como verificámos, a entrevistada tem «sempre uma pessoa asubstituir» em sua casa, mas a constatação de que a presença junto dosfilhos não é tão prioritária para o marido quanto é para si.

Eu acho que ele podia participar mais mesmo no pouco tempo que estáem casa. Desde que a nossa filha nasceu, ele foi obrigado, pelas circunstân-cias, a tomar para si algumas tarefas, porque anteriormente ele tinha poucasincumbências em relação ao filho... Desde que a minha filha nasceu – atéporque eu só tenho duas mãos, e temos dois filhos, e temos que sair os doisde manhã –, o que ele faz é de manhã vestir, enfim, ajudar o meu filho a ar-ranjar-se e levá-lo à escola. De resto, não faz mais nada. [...] Muitas vezesreivindiquei que ele tinha que assumir mais tarefas do filho. Por exemplo,dar--lhe banho, à noite era ele quem se levantava para fazer o biberão, masdepois era eu quem ficava a dar. Eu acho que ele participou pouco nas tarefasque exige ter um bebé, ter uma criança. [...] E eu cobro-lhe muitas vezesisso, eu digo-lhe que se eu fizesse o mesmo que ele, não eram nossos filhos,eram filhos dos avós, não é? Porque se eu de facto, por exemplo, aceitasseuma série de coisas ou participasse numa série de coisas, conferências distoou seminários daquilo, provavelmente eu quase não via os meus filhos... Euacho que ele também faz isto porque sabe que eu lá estou, sabe que eu nãosou capaz de ficar tantas horas sem os meus filhos, eu tenho que ver os meusfilhos todos os dias.

Noutros casos, pelo contrário, a tensão em torno dos cuidados e doacompanhamento aos filhos não é atenuada, pois é persistente a desvin-culação do homem. Por exemplo, o longo horário de trabalho de Luís e

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as consecutivas deslocações – por vezes, para o estrangeiro – justificamo desabafo de Laura, mãe de um rapaz e de uma rapariga: «não possocontar nunca com ele». A tensão neste casal agravou-se quando, apesarda recusa da entrevistada – ainda o primeiro filho do casal era bebé – emacompanhar o marido, Luís decidiu ausentar-se do país pelo período detrês meses. Perante a desvinculação do marido nos cuidados às crianças,o apoio de familiares – sobretudo, os pais e a irmã da mulher – e de umababy-sitter são obviamente elementos fundamentais na articulação entrea vida familiar e a vida profissional.

O bebé nasceu em Janeiro e ele foi-se embora quando o bebé tinha paraaí sete meses. Mas, mesmo quando voltou, ele teve muitas coisas para fazerfora de Lisboa que o obrigavam a estar fora. Portanto, aí entraram os meuspais. Para eu poder ir às aulas à noite, os meus pais vinham para minha casa,ficavam com o bebé... [...] O meu filho mais velho tem treze anos e o painunca o foi buscar ao colégio. Por exemplo, amanhã tenho uma reuniãoaqui na Escola até muito tarde e lá vai outra vez o avô ou a baby-sitter ou atia... porque nunca sabe se está cá.

Já no caso de Júlia, apesar de José estar mais presente em casa do queacontece junto da maioria dos casais com trajectórias de hipergamia pro-gressiva, a sua desvinculação traduz-se persistentemente numa «ausência»no acompanhamento aos filhos: «O não brincar com os filhos, não falarcom os filhos...» A entrevistada considera tratar-se de uma autodemissãoda parte de José: «é esta a posição do meu marido: se eu resolvo sempretudo, então para que é que ele se vai incomodar?» Que a relação entrepai e filhos constitui um foco de tensão no casal, evidencia-o desde logo aresponsabilidade atribuída ao marido pelos «muitos problemas» – «deintegração na escola e na faculdade, de saberem o que querem ser» – queos filhos do casal, com vinte e dezasseis anos de idade, hoje enfrentam.Em suma, Júlia lamenta a lacuna de uma «posição masculina» na socia-lização dos filhos.

Ele estava sempre presente, mas sempre ausente. [...] Eu estou farta delhe mostrar que a posição feminina é diferente da posição masculina. Querdizer, com certeza que não temos as mesmas ideias. É com as nossas expe-riências, com a transmissão das nossas experiências, com os nossos ensina-mentos, entre aspas, podem não ser ensinamentos, mas com as nossas expe-riências boas ou más, isso pode ser enriquecedor para a formação de umapersonalidade. Eles sempre ouviram a vertente da mãe, mas nunca a do pai,porque não fala nada.

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Ainda que a desvinculação do homem no que toca aos encargos comos filhos seja bastante menos tolerada, constituindo muitas vezes um focode tensão conjugal, as entrevistadas com trajectórias de hipergamia progressivasão sensíveis – precisamente em consonância com a precedência que con-cedem à carreira do cônjuge – ao argumento da indisponibilidade para afamília em virtude de uma actividade profissional muito absorvente.Assim, Olívia observa que o seu marido «não abdicou [profissional-mente] de nada», mas também considera inevitável que os cuidados e oacompanhamento dos filhos recaiam sobe si: «é uma coisa contra a qualnem eu nem ele podemos lutar, porque ele não tem alternativa». Estapartilha desigualitária não representa pois a situação idealizada – «é claroque eu gostava que ele estivesse também em casa às seis da tarde» –, masa entrevistada «aceita» uma divisão, afinal, inscrita num quadro norma-tivo que a coíbe na negociação conjugal. De igual modo, Raquel sublinhaque, em geral, só ela tem a possibilidade de «sair a meio da tarde para irtratar de qualquer coisa que tenha a ver com as miúdas», ou alterar pre-viamente o horário com os seus alunos. Quanto a Rogério, a sua profis-são não permite a mesma flexibilidade: «ele tem reuniões marcadas e des-marcá-las à última da hora é muito mais complicado». Finalmente, ésobre Vanda que recaem «o acompanhamento dos meus filhos, as idasao médico, as idas à escola, os trabalhos de casa, a administração de me-dicamentos e o acompanhamento em relação à saúde», mas o ordenadode Vítor – «cinco vezes» superior ao seu – constitui um argumento irre-cusável para a entrevistada, que «assume» esta divisão familiar do trabalhocomo «uma coisa natural». Resta sublinhar que, tal como observámosjunto das entrevistadas com trajectórias de hipergamia prioritária, tambémaqui constatamos uma sobrevalorização das atitudes do homem que re-velem o papel masculino de rectaguarda – «quando eu não posso, eleatende» –, ou apenas competências parentais consideradas excepcionaisnum homem: «O primeiro banho dos filhos, por exemplo, foi ele quedeu [...], e ele sabia fazer aquilo com uma simplicidade. [...] Ele é queme deu a segurança para eu lidar com o bebé.»

A diversificação das dinâmicas conjugais e a expectativa face à vida em casal

Uma análise de alguns aspectos da dinâmica conjugal nos casais comtrajectórias de hipergamia progressiva revela-nos acentuadas diferenças faceaos casos em que a mulher confere prioridade aos encargos familiares

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(trajectórias de hipergamia prioritária). Nestes casos, a estratégia de articulaçãotrabalho-família aponta para uma contenção da ambição da mulher emvirtude da primazia atribuída à maternidade e à carreira do homem. Al-guns aspectos da dinâmica conjugal sugerem uma subordinação ao ca-samento enquanto instituição: uma comunicação mais centrada nos as-suntos profissionais (do homem) do que nos afectos; uma diferenciaçãopouco negociada dos papéis de género; uma limitada redistribuição dosrecursos económicos; ou o escasso tempo exclusivamente reservado aocasal. Já nos casais com trajectórias de hipergamia progressiva, embora pre-valeçam as normas de género que prescrevem a precedência da actividadeprofissional do homem, a relação conjugal é mais negociada: a dianteirado homem na carreira resulta de uma concessão da mulher; a comunicaçãodeixa de ser dominada pelos assuntos relacionados com a actividade pro-fissional do homem; os modos de organização dos recursos económicosdiversificam-se; e a delegação da tutela da fatia maior dos rendimentos edas poupanças no homem não é já a situação prevalecente. De resto,uma renúncia generalizada à familiarização do tempo para o casal, ex-pressa na exigência de um tempo e de um espaço exclusivamente desti-nados à relação conjugal, evidencia bem a expectativa e a exigência deuma intimidade associada ao modelo moderno de conjugalidade.

Dessas expectativa e exigência face à relação conjugal é, enfim, sinto-mática a proliferação de desabafos no que diz respeito às tensões entreas entrevistadas e respectivos cônjuges. Ao trabalho doméstico – parti-cularmente os cuidados à criança – acrescentam-se diversos focos de tensãoconjugal, de entre os quais se destaca o questionamento da autonomia fe-minina, as atitudes individualistas apontadas ao homem ou o défice deafinidades no casal. Com efeito, observam-se mais focos de tensão nestescasais com trajectórias de hipergamia progressiva porque a própria relaçãoconjugal é considerada um domínio de gratificação à semelhança da ma-ternidade ou da vida profissional. Por outras palavras, o princípio maxi-malista subjacente à estratégia de articulação trabalho-família alarga-se, pois,à vida conjugal. Como veremos nos pontos seguintes, são diversos osmotivos de tensão conjugal, desde os desacordos relativos a uma gravidezda mulher e ao dinheiro, à falta de afinidades no plano dos gostos e es-tilos de vida, passando pela competição profissional, pela disputa da li-derança na família, pelo tempo exclusivamente destinado ao casal, pelaausência de comunicação ou, tão simplesmente, pela incompatibilidadede personalidades.

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As ausências na comunicação e a exigência emocional da mulher

Não obstante a prioridade que estas mulheres concedem à carreira pro-fissional do cônjuge, a comunicação nos casais com trajectórias de hiper-gamia progressiva não é dominada pelos assuntos relacionados com a ac-tividade profissional do homem.4 Grosso modo, podemos distinguir, emprimeiro lugar, as entrevistadas que admitem falar sobre qualquer assuntocom o cônjuge, conquanto reconhecendo que os assuntos profissionaispossam constituir um foco de tensão. Assim, Laura considera que, por sermais «extrovertida» do que o marido, toma a «iniciativa» de falar, masvai sublinhando que «se perguntar, ele não se recusa» e que conversam«sobre tudo aquilo que é preciso». Deste sentimento de resposta por partedo cônjuge também Teresa é testemunha. Para além de falarem «bastantesobre problemas que ele e eu temos no trabalho» e das próprias «aspira-ções» de cada um, a entrevistada reconhece o «apoio moral» do marido.E, enfim, Raquel, cujo diálogo sobre a vida profissional tem algumas li-mitações, pois Rogério considera que determinados assuntos dão origemao confronto emocional.

Em segundo lugar encontram-se as entrevistadas cuja comunicaçãoconjugal se restringe, sobretudo, aos assuntos considerados menos emo-cionais ou aos esclarecimentos mútuos sobre a actividade profissional decada membro do casal, sendo o ressentimento destas mulheres com odéfice de comunicação bastante elucidativo da expectativa e da exigênciaface à relação conjugal. Vanda, por exemplo, realça que, no que toca àdimensão profissional, a comunicação conjugal adquire, «por vezes», oscontornos de uma simbiose – «funcionamos quase complementarmentequando discutimos assuntos de trabalho» –, mas não deixa de criticarfortemente que a «grande maturidade intelectual» do marido não tenhaequivalente no campo das emoções. Acusa assim Vítor de uma «falta dematuridade emocional» que se reflecte numa recusa em «abordar assun-tos que o sensibilizem mais [...], assuntos que o afectem emocional-mente». De igual modo, o marido de Júlia «gosta muito de falar do em-prego», mas a entrevistada lamenta que José não fale «das outras coisas»,evitando totalmente as «conversas profundas»: «ele não consegue, cha-teia-se e continua a ler o jornal e a ver a televisão». Júlia encara o«enorme» défice de comunicação na relação com uma mágoa tanto maior

4 Elsa é a única entrevistada a referir que o marido «fala mais sobre o trabalho pro-priamente dito» e «pede ajuda para resolver assim coisas pontuais».

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quanto esse défice, que afecta profundamente a própria relação entre opai e os filhos, contrasta com o carácter sociável do marido: «se estiveraqui a falar connosco, ele monopoliza a conversa».

Por último, deparamos com a situação conjugal de Olívia, para quemo acentuado défice comunicativo na relação com Tiago, em lugar de re-presentar um manifesto foco de tensão no casal, constitui, pelo contrário,o último recurso num quadro conjugal hoje fortemente alicerçado emregras de «boa convivência». «Há coisas que nós ultrapassámos por de-sistência de ambas as partes», confessa a entrevistada, para quem as ele-vadas – conquanto goradas – expectativas de gratificação face à vida con-jugal deram lugar à indiferença, consubstanciada no mútuo desinteressepelos assuntos individuais e, designadamente, profissionais. É óbvio que,quando afirma «é uma coisa que não me interessa muito o que se passano escritório dele e ele não lhe interessa muito o que se passa na minhaprofissão», Olívia sugere a existência de diversos pontos de conflito narelação conjugal, pois, tal como ela própria reconhece, «sabemos ambosque, se voltarmos à discussão, nunca mais vamos sair dela».

Dinheiro: fusão, separação, desigualdade e conflito

A entrega da tutela da maior fatia dos rendimentos do casal aohomem não é a situação predominante nos casais com trajectórias de hi-pergamia progressiva, ao contrário do que sucede nos casais com trajectóriasde hipergamia prioritária. As soluções para organizar o dinheiro diversifi-cam-se, desde a modalidade mais fusional e redistributiva – ou seja, obolo comum sem contas individuais – à divisão total dos rendimentosdos cônjuges sem partilha – a existência de contas individuais sem umaconta colectiva.

Apenas Elsa e Bruno são excepção, colocando ambos os rendimentosnum bolo comum cuja tutela, contudo, está a cargo do último. A dele-gação da tutela no cônjuge é justificada por uma renúncia ao cálculo:«não quero estar preocupada com os dinheiros». É também o princípiodo bolo comum que preside na organização dos recursos económicosem casa de Raquel, porém, a justificação avançada é de natureza fusio-nal-comunitária: «o dinheiro é da família». Enquanto grupo, a famíliacumpre, neste caso, uma função de redistribuição dos recursos, funçãoessa tanto mais significativa quanto estamos num contexto de hipergamiaprogressiva, onde, justamente, a discrepância de rendimentos a favor dohomem tende a acentuar-se no decurso da vida conjugal. Raquel e Ro-gério constituem assim o único casal com este tipo de trajectória onde a

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lógica de organização do dinheiro contribui para atenuar uma assimetriaeconómica que, à partida, favorece o homem. Uma terceira modalidadede organização do dinheiro observa-se junto de Teresa e Tomás. Duascontas individuais e uma conta comum, onde os montantes depositadossão proporcionais aos ordenados, sugerem uma lógica de organizaçãodo dinheiro que apenas impede a ampliação da desigualdade de recursosresultante da discrepância dos rendimentos.

As restantes formas de organização do dinheiro multiplicam, na prá-tica, a desigualdade económica no casal com origem na diferença dos ren-dimentos auferidos, uma vez que se pautam pela total ausência de umaprática de fusão dos recursos financeiros. Da ampliação da desigualdadeeconómica no casal são suficientemente elucidativos o caso de Laura e ode Olívia. Casada com um director-geral de uma grande empresa, Lauranão partilha nenhuma conta com o seu marido. «Todos os meses», Luís«dá uma quantia para gerir a casa», pois o ordenado da entrevistada ficalogo reduzido a metade depois de pagar à «mulher-a-dias». A entrevistadanão contesta esta divisão do dinheiro, em que o homem apenas contribuicom o seu rendimento para «as coisas da casa», «coisas» essas «essenciaispara se viver», ao contrário de outras despesas que, pese embora «impor-tantes para o meu bem-estar e para eu estar bem comigo própria», consi-dera «supérfluas» e, portanto, não tem que «lhe pedir dinheiro». Nestequadro conjugal de duplo emprego qualificado, importa observar o modocomo a separação total do dinheiro confere ao homem o poder associadoa um estatuto de principal provedor, poder esse que, curiosamente, nãoé sequer questionado: «Ele trabalha imenso e também ganha muito bem,mas também tem o direito de fazer com o dinheiro o que bem entenderfazer.» De modo diferente, mas com semelhantes consequências no queà ampliação da assimetria económica no casal diz respeito, Olívia e Tiagotêm contas bancárias individuais, não dispondo de uma conta comum.A entrevistada esclarece que, com excepção dos contributos equitativospara as «despesas comuns» – «divididas absolutamente a meias» –, os ren-dimentos pertencem a quem os auferiu: «o resto cada um gasta da maneiraque lhe apetece sem dar explicações, nem nada».

Uma nota é, enfim, devida à situação conjugal de Olívia, pois a moda-lidade de organização do dinheiro não apenas amplia aqui a desigualdadeeconómica no casal – com rendimentos muito superiores aos da entre-vistada, Tiago limita-se a contribuir com a mesma quantia para as «des -pesas comuns» sem precisar de justificar como aplica o remanescente –,como é também um claro sintoma da tensão em que está envolta estarelação conjugal. Entre os casais com trajectórias de hipergamia progressiva,

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diversificam-se os pretextos de conflito conjugal, sugerindo, precisa-mente, mais elevadas exigências para com a vida em casal, mas Olívia eTiago constituem o único exemplo onde o dinheiro se impõe como focode tensão conjugal. Assim, tal como desabafa esta entrevistada, não é pro-priamente a modalidade de organização do dinheiro – ou seja, uma re-partição equitativa dos encargos comuns alheia aos desiguais rendimen-tos no casal – que tem motivado o conflito conjugal, mas a própriarelação que ambos os cônjuges estabelecem com o dinheiro. Com efeito,Tiago sempre exigiu que Olívia assegurasse financeiramente metade dosencargos familiares, mesmo quando ela esteve desempregada, pois tinhaconhecimento do dinheiro que a entrevistada herdara do pai. Ela, porsua vez, considerava que «não devia estar a gastar esse dinheiro», defen-dendo que o marido devia «contribuir mais para a casa, uma vez que acasa era minha e ele não estava a pagar renda». Em suma, goradas as ex-pectativas de uma intimidade conjugal idealizada, a partilha do dinheiroé aqui declaradamente mais receada do que a própria separação conjugal:«o que me faz impressão é ter alguma coisa com ele, não é isto poderacabar a qualquer minuto».

Em busca do tempo do casal e da abertura ao exterior

Sintomático da elevação das expectativas face à relação conjugal étambém o tempo que estas entrevistadas procuram reservar exclusiva-mente ao casal, predominando aqui, ao contrário do que observámosjunto dos casais com trajectórias de hipergamia prioritária, uma renúnciaem deixar que esses momentos sejam absorvidos pelo tempo dedicado àfamília no seu conjunto. Também a este respeito, apenas Elsa constituia excepção, confessando ter sempre concedido mais prioridade à relaçãocom as filhas do que à relação com o seu marido. Já Raquel lamenta ser«quase impossível ir ao cinema» sozinha com Rogério, porque «tudo éregido em função» dos filhos.

Como eu me dediquei sempre mais às filhas e, às tantas, um casamentomuito novo como o nosso, a pessoa até se esquece que estamos casados, es-tamos ali os dois e, às tantas, a vida entra numa rotina muito grande e, àsvezes, é complicado [Elsa].

Deixámos de fazer muita coisa que gostávamos de fazer, nomeadamentesair à noite, ir ao cinema... Tão simples quanto isso, é quase impensável irao cinema, a menos que arranjemos alguém que fique com três crianças.Mas é difícil. Nos dois primeiros anos da Mafalda, nós não fomos para lado

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nenhum nos fins-de-semana.[...] Depois, passados dois anos e um mês, nas-ceu a Margarida, nós não fomos para lado nenhum porque já eram duas.Não queríamos pedir a ninguém para ficar com duas crianças... Tudo é regidoem função delas. Mesmo ao nível do fim-de-semana, podemos ir a algumlado este sábado, mas há uma festa de anos, temos sempre que as ir levar aalgum lado. Portanto, elas é que regulam o funcionamento da família [Ra-quel].

No entanto, a maior parte destes casais não abdica dos momentos ex-clusivamente destinados ao casal, momentos que merecem «respeito»(Olívia), sobretudo por resultarem de um esforço para não deixar que avida conjugal se amesquinhe perante os encargos familiares quotidianos.Estas entrevistadas confessam mesmo sentir «saudades do tempo em queas crianças não existiam» (Olívia), quando «não havia a prisão da criança»para refrear «hábitos francamente egoístas» (Laura). Assim, Vanda e o ma-rido procuram aproveitar o «pouco tempo» que têm para «namorar»,conseguindo por vezes «um fim-de-semana alargado juntos fora sem osmiúdos». De igual modo, Olívia e Tiago não prescindem das «caminha-das» ou de um fim-de-semana «os dois sozinhos» fora de casa, enquantoLaura e Luís deixam frequentemente a cidade à sexta-feira, partindo «semcrianças e com amigos», ou outras vezes fazendo férias «uma semana emeia» apenas acompanhados por «um casal amigo». Quanto a Teresa eTomás, «quase sempre» as «sextas e sábados à noite» são reservados paraestarem «só nós os dois». O exemplo deste último casal é, aliás, particu-larmente interessante, pois Teresa confessa-se repartida entre, por umlado, o elevado domínio de gratificação que a vida conjugal representae, por outro, «uma cultura familiar muito grande herdada de geraçõesanteriores» que se traduz num «culto de estar com a família». Resta referirque as exigências, de certa forma, antagónicas destes dois universos ori-ginam frequentemente sentimentos contraditórios quando Teresa se des-cobre dividida ente o desejo de tempo para o casal e a «preocupação» ouo «sentimento de responsabilidade» para com a criança, mesmo estandoesta entregue ao cuidado de familiares ou de outras pessoas da sua con-fiança. Deste modo, nem sempre o tempo destinado ao casal conseguelibertar-se da lógica familiar, como ilustra o próprio aniversário de casa-mento comemorado em família, ou não fosse «difícil» para Teresa «ficardois dias sem os meus filhos».

Quando a vida conjugal se degrada, porém, o tempo que, ao invés,estaria destinado ao casal, funciona sobretudo como um foco de tensãoconjugal. É o caso de Júlia, que identifica na dissonância de hábitos e gos-tos entre ela e o marido o mais evidente sintoma do declínio da relação.

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Neste caso, não é propriamente a ausência de um tempo reservado aocasal o foco de tensão, mas o próprio desconforto com uma dinâmica con-jugal cujo défice de afinidades e de abertura ao exterior asfixia.

No fim-de-semana estamos sempre em casa! Ele passa o dia a ver televi-são ou a dormir. Agora dorme imenso! Não vamos a lado nenhum! Eu aquihá um mês é que já comecei, uma vez ou outra já fui ao cinema sozinha.Mas, depois, a pessoa fica aborrecida. Quer dizer, não aceito isto bem. Nãosaímos, não temos amigos lá em casa, não vamos a casa de ninguém. Euacho que o conceito de amizade é extremamente restrito, mas eu dou muitovalor às relações humanas e, de qualquer dos modos, nós temos muitas pes-soas conhecidas.

Júlia e José constituem, de facto, a única excepção de fechamento aoexterior. Entre os casais com trajectórias de hipergamia progressiva predo-mina uma abertura francamente maior – mesmo entre as entrevistadasque consideram haver «casais com muito mais actividade social» (Elsa).Na verdade, os depoimentos revelam que a abertura ao exterior – designa -damente no que respeita ao convívio com amigos – tende a predominarnos casais com este tipo de trajectória.

As minhas grandes amigas são grandes amigas sem passar por ele... De-pois temos amigos comuns, ex-colegas dele ou colegas dele, e agora souamiga das mulheres. Do género das festas de anos lá em casa terem trintapessoas... do género de semana sim, semana não, estarmos em casa de al-guém. Agora vamos para Madrid com mais dez, somos dez. O mais possível,mas ele é o mais sociável [Laura].

Há não sei quantos meses que a gente não vai ao cinema, mas vamossaindo. Mas temos sempre amigos em casa. Somos mais aquele tipo de irpara casa de amigos, receber os amigos em nossa casa.... Eu sei que ele sentemuita falta de sair à noite, porque era uma coisa que nós fazíamos muitoantes de ter crianças. Eu não tanto, porque nunca foi uma coisa muito im-portante para mim, gosto de sair, mas se não sair... O ir a um concerto... elesente muita falta disso. Para ele isso sempre lhe deu mais prazer do que amim. Eu, se estiver em casa com os amigos ou num bar, é-me indiferente.Gosto mais de estar com pessoas do que estar num sítio específico [Raquel].

Temos alguns amigos em comum, que tal como nós também têm crian-ças pequenas, portanto o efeito é o mesmo. [...] Há aqueles eventos neces-sários, tipo as festas de anos das criancinhas, de vez em quando vamos todosjantar fora, mas geralmente com as crianças todas atrás. O grupo realmente

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inclui as crianças de cada um, por isso também já não é a mesma relaçãoque havia dantes, mas também tem essa componente agradável [Olívia].

«Os dois com crianças e carreiras não é pacífico»

A expressão de Laura – «os dois com crianças e carreiras não é pací-fico» – resume em poucas palavras a forma como, nos casais com trajec-tórias de hipergamia progressiva, a vida conjugal, a profissão e os encargosparentais formam um triângulo propício ao conflito de interesses entreos cônjuges. A multiplicação dos focos de tensão no casal tem subjacenteum sentimento de abdicação com que estas mulheres não se confor-mam. À desvinculação do homem das tarefas domésticas ou dos cuida-dos à criança acrescem diversos focos de tensão, como é o caso, desdelogo, da importância reconhecida à profissão da mulher, podendo estaser inadvertidamente secundarizada pela própria – como é o caso de Te-resa, que considera prestar mais apoio ao marido na sua profissão doque o inverso – ou mesmo posta em causa pelo cônjuge – como é ocaso de Laura, cujo marido questiona a pertinência da sua actividadeprofissional.

Teresa é, com efeito, lapidar quanto à diferença entre o «apoio directo»que presta a Tomás – «eu estou com os meus filhos e crio as situaçõespara que ele possa ir e envolver-se num conjunto de actividades» – e oapoio «indirecto» do marido, sob a forma de incentivo, à sua aposta nacarreira. O apoio a Tomás contribui para que recaiam sobre ela os encargosda articulação trabalho-família, encargos esses que o «apoio moral» rece-bido do marido não compensa. As «actividades» a que a entrevistada serefere são de natureza política, mas constituem, de facto, encargos profis-sionais fora do horário formal de trabalho, encargos esses cujas implica-ções não aceita de modo pacífico – «às vezes é quase como uma relaçãode ódio» –, considerando-os «um espaço que ele rouba à família». Pro-porcionando ao marido a disponibilidade que os filhos retiram a si pró-pria, Teresa tanto aposta na sua profissão quanto é avessa a prestar o«apoio» próprio das mulheres que, sem uma actividade profissional, estãointeiramente disponíveis para acompanhar os filhos e participar nos even-tos sociais associados à profissão do homem, como muitas vezes sucedecom as «esposas» dos directores das empresas familiares de pequena emédia dimensão (Guerreiro 1996).

Se ele me convidar para ir com ele a uma das inaugurações não sei doquê, e convida-me várias vezes, eu raramente vou, porque não tenho paciên-

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cia para aquelas coisas, não tenho paciência para estar ali a fazer aquela figurapara pessoas que não conheço, e fazer conversa. Não gosto daquilo, e parajá porque acho que aquilo me ocupa o meu próprio espaço. Essas actividadesdele são um espaço que ele rouba à família e, às vezes, é quase como umarelação de ódio, porque eles estão-nos a tirar o espaço que ele tem na famí-lia.

Já Laura alega que o exercício da sua actividade profissional é ques-tionado pelo seu próprio marido, de quem lamenta a incompreensãopara a sua «área» profissional – «ele acha que a minha área é toda muitoabstracta» – e a quem critica ter a «mentalidade do pai dele, em que amulher tem que ir atrás do marido». Não sem amargura nas palavras, su-blinha «nunca foi ele que me mandou para a frente», recordando «as ten-tativas que ele fez de me cortar as vazas», como seja a «pressão no sentidode eu deixar de fazer viagens [de trabalho] e de abrandar um bocado oritmo». As atitudes do marido – que revelam a Laura um «lado machãode se querer impor» e de procurar nela uma mulher «mais caseira, maissedentária» e «mais parecida com a mãe dele» – deixam-na «muito infeliz,quase zangada, revoltada», pois «nunca lhe tinha dado esperanças ne-nhumas de que um dia ia ser dona de casa e mãe e não fazer mais nada».Inspirado no exemplo materno, e filho, recorde-se, de um grande em-presário, Luís vai afinal ao encontro – no seu menosprezo pela autono-mia e pela própria actividade profissional da mulher – do sentido atri-buído à vida profissional nalguns contextos empresariais onde «apossibilidade de deixar de exercer uma actividade profissional é sentidanão só como uma libertação de um esforço penoso, mas também comoum símbolo de status, um sinal de que a respectiva família atingiu, pelosucesso da acti vidade empresarial, uma posição de maior bem-estar e res-peitabilidade social» (Guerreiro 1996, 173-174).

A mãe dele, tal como a minha, esteve sempre em casa e viveu para a fa-mília, e eu acho que lá no fundo ele gostava muito de que eu fosse assim...Só que não teve sorte nenhuma, não é? Agora já está mentalizado, mashouve muita pressão no sentido de eu deixar de fazer viagens, etc., e deabrandar um bocado o ritmo. [...] Ele teve um convite para ir para Macauganhar muito dinheiro, e as crianças eram muito pequenas e eu disse-lhe:«Eu não vou para Macau sem primeiro ir a Macau ver como é que é Macau,onde eu nunca estive, e ver se é ambiente para criar filhos.» Por exemplo,isso ele nunca aceitou, levou a mal..., mas ele acabou por não aceitar a pro-posta que lhe estavam a fazer e, portanto, houve uma fase quase de conflito,porque os dois com crianças e carreiras não é pacífico: isto tem que ser ge-

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rido! Mas eu fiquei muito infeliz e zangada com essas tentativas quase de eudesviar um bocadinho aquela que era a minha trajectória.

Por fim, o relativo menosprezo pela profissão da mulher é igualmentedecisivo para as dificuldades de comunicação entre Olívia e Tiago, que«não compreende como é que alguém consegue viver» da actividade exer-cida pela entrevistada. Olívia lamenta que o marido «não considere» asua actividade profissional «um trabalho a sério», reduzindo-a a «uma di-vagação, uma tontice qualquer». Não estranha, portanto, que recuse par-tilhar com ele a gratificação retirada dos frutos do seu trabalho.

Eu sei perfeitamente que o dia do meu mestrado foi um dos dias maisfelizes da minha mãe, o dia do lançamento do meu livro, também. Portanto,esse tipo de coisas eu fazia e tinha satisfação nelas por ver também a satisfa-ção que ela retirava disso. De tal maneira que, quando a minha mãe morreu,uma das coisas que eu me questionei foi: «Para que é que eu vou continuara fazer uma coisa a que ninguém liga nenhuma e que só ela é que ligava?»Porque realmente os meus filhos são demasiado pequeninos para perceberemo conceito. Para o meu marido, ele até tem uma atitude de atirar abaixo umbocado, porque realmente não compreende como é que isto é importante.Então eu questionei-me mesmo: «Para quê continuar a trabalhar se ninguémme dá valor?» É claro que eu continuo a trabalhar para a minha satisfação.[...] Ele continua a achar que eu não trabalho. Um dia, quando eu tiver umemprego, vou saber o que é que é trabalhar e não-sei-quê... Por isso, estaminha satisfação é independente do Tiago. Aliás, nem posso partilhá-lamuito com ele, porque ele não a compreende.

Outro foco de tensão que se observa junto dos casais com trajectórias dehipergamia progressiva prende-se com determinados comportamentos dohomem, sintomáticos do individualismo que algumas entrevistadasapontam ao cônjuge. Por exemplo, Luís não só questiona a necessidadede Laura em exercer uma profissão, mas também possui o «hábito» se-manal de regressar a desoras após ter saído à noite com os «amigos desolteiro». Para a entrevistada, «não é muito fácil lidar» com este compor-tamento, que está muitas vezes na origem de «conflitos» entre os dois:«eu não acho graça ele entrar às seis da manhã cheio de álcool e o filhover». Eventualmente por pudor, a entrevistada não interpreta as incursõesdo marido com os amigos «a todos os sítios onde não vão connosco [mu-lheres]» como um problema conjugal, mas como um problema «de con-sideração e de respeito» pela família: «quando isto acontece várias vezesao longo da semana [...] pede para eu levar as crianças ao colégio, para

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ele dormir mais um bocadinho». A tensão instala-se, pois os dois têm in-terpretações diferentes dos direitos e dos deveres subjacentes ao lugar dohomem na família.

É assim, cada um de nós tem um lado da vida que é seu. Ele tem, porexemplo, um hábito com o qual às vezes não é muito fácil lidar, que é a se-gunda sexta-feira de cada mês, ele e todos os amigos dele de solteiro vão jan-tar, e vão para a paródia a noite inteira. E isso já deu azo a conflitos... porqueacho que não é exemplo que se dê a um filho de treze anos, que daqui anada quer começar a sair à noite. [...] É mais o exemplo de vida, o modo devida que me perturba. Acho que ele tem o direito de se divertir, com certeza,mas com conta, peso e medida. Pode vir às duas ou às três, não é preciso vircom o sol a nascer. Mas os outros fazem igual, portanto, aquilo é o mundodeles. [...] Mas aí, às vezes, há dificuldades de comunicação, porque não fa-lamos a mesma linguagem e porque ele se entende no direito de, e eu en-tendo que há limites. [...] É viver como se não tivesse família quase, e aímagoa-me.

Já Teresa critica Tomás pelo facto de o marido se empenhar muito na«actividade política dele» e menos na vida familiar, considerando que aprimeira «rouba muito tempo para estarmos um com o outro e para es-tarmos com os nossos filhos». Elsa, por sua vez, reconhece que o casa-mento tem «fases», não deixando também de criticar a atitude individua-lista do marido, que considera «muito egoísta».

Há aquilo que nos cria problemas que é, às vezes, as concepções de vida,porque eu tenho um sentimento familiar muito forte, gosto de estar com afamília, de estar com os meus filhos... Ele vive muito, muito a questão polí-tica, e isso ocupa-nos muito o nosso espaço à conta disso. [...] Quando setrata da actividade política dele, ele faz por chegar a horas, tem tudo organi-zado. Quando é aquela fase do entretenimento, organização de viagens, ar-rumar as malas, chegar a horas para ir ter com os amigos, enfim, ele vai fi-cando, é capaz de perder horas a ler um jornal e as pessoas à espera dele[Teresa].

Ao longo da nossa vida toda temos tido fases, e há fases que sim e háfases que não. Fases em que a pessoa está bem e procura. Quando está zan-gada, procura afastar-se. Há certas coisas, ele pensa muito nele, no sentidode que quer uma coisa e até se esquece que os outros existem. Às vezes deixo--me ir para não estar a discutir, e isso também não deve ser assim. Ele não ésó qualidades, é boa pessoa, mas também tem defeitos [Elsa].

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As grandes decisões podem também constituir um foco de tensão con-jugal, mesmo que sejam «sempre dialogadas». Teresa, por exemplo, re-corda ter discordado do marido a propósito da aquisição «absolutamentedescabida» de um automóvel todo-o-terreno, sublinhando: «se eu tivesseque tomar a decisão sozinha, não comprava». Ainda que a tutela do di-nheiro delegada no homem não seja a modalidade de organização dosrecurso financeiros preponderante entre os casais com trajectórias de hi-pergamia progressiva, no caso de Teresa, a pontual cedência neste tipo dedecisão é uma realidade obviamente vivida como libertação de um en-cargo familiar: «eu deixo um pouco isso para não me incomodar, deixoaquelas decisões de empréstimos de casas, de contratos, sei lá, aquelasdiscussões de preços, de valores, com outras pessoas; é ele normalmenteque trata disso».

Se Teresa ameniza as consequências de algumas grandes decisões queaceitou contrafeita, já Olívia recorda a «crise desgraçada» em que se trans-formou a aquisição de uma propriedade tendo em vista a construção deuma moradia de férias e fins-de-semana. A entrevistada sublinha que sócedeu à pressão do marido em nome do interesse dos filhos: «para os meusfilhos também terem um sítio onde brincar». A relação de Olívia e Tiagoé, de resto, particularmente propícia à proliferação de focos de tensão conjugal,de entre os quais a entrevistada destaca, sem esconder o ressentimento, adiscórdia do marido face ao desejo de ser novamente mãe, discórdia essaque ela interpreta como «embirração pura» face a uma terceira gravidez:«ele não queria, mas não queria mesmo!». À falta de apoio demonstradaem actos por Tiago, que durante a segunda gravidez se «foi embora, desa-pareceu», acresce uma quebra de comunicação no casal que perdurou du-rante um ano – «esteve um ano sem me falar» – à laia de retaliação. A en-trevistada recorda que, por essa razão, «a gente não se sente muito casados»,mesmo que o marido tenha, posteriormente, alterado a sua atitude: «depoispassou-lhe a neura». Sublinha então que hoje as «grandes divergências»entre os dois se evidenciam, sobretudo, a nível dos «gostos muito diferen-tes», reflectindo a grande ausência de afinidades no casal: «Nós continua-mos a ter muito pouco a ver um com o outro.» Sintomáticas dos traçoshipogâmicos – a nível das origens sociais e dos recursos educacionais – sãoassim múltiplas as dissonâncias culturais observadas entre os dois, tal comotão claramente evidenciam as palavras de Olívia.

Para o Tiago, é um sacrifício enorme ver um filme do princípio ao fim.Para ele é um sacrifício! Isto é, à caça eu não vou, não depeno as perdizes,não esfolo os coelhos. As nossas grandes discussões neste momento é a casa

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do monte, que é a casinha do Tiago, ele está a construir a casa... O idealdele para um fim-de-semana é a passar lá a partir lenha, a martelar, a des-manchar uma parede aqui e faz ali... Portanto, este não é o meu ideal de fim-de-semana. São as nossas grandes divergências de agora. [...] Neste momentoestamos numa de fins-de-semana separados, ele vai para o monte... e eu ficoem Lisboa a fazer as coisas que eu gosto de fazer. [...] Há aqui uma grandediferença de gostos e de actividades. Tentamos ambos conjugar e tentamosambos fazer o que gostamos de fazer juntos, mas também continuamos afazer separados o que cada um gosta de fazer. [...] Era fazer com alguém, eraisso mesmo, era isso que eu gostava. Ir à praia com alguém, fazer passeios...Era isso que eu esperava do casamento, era esse viver a dois, viver com umapessoa com quem eu tivesse muitos pontos em comum. [...] Isto pode pa-recer um bocado presunçoso, mas eu sou uma intelectual, eu sou uma pessoaque gosto de estar sentada a ler um livro, gosto de discutir ideias, gosto dever um filme e comentar, essas coisas que os intelectuais gostam de fazer. O Tiago é uma pessoa mecânica, é uma pessoa muito física, ele não concebea actividade intelectual como uma coisa importante.

Outras entrevistadas salientam os desacordos e os conflitos que têmorigem no confronto de personalidades. Aqui encontramos essencial-mente dois focos de tensão conjugal. O primeiro refere-se à concorrênciaentre os cônjuges pela liderança, quer no plano profissional, quer noplano familiar, concorrência essa que, precisamente, é interpretada como«choque» entre duas personalidades com qualidades similares, como é ocaso dos «dois egos grandes» de Teresa e Tomás. Esta entrevistada iden-tifica «o grande problema» na semelhança entre ela e o marido, referindo--se em particular à «competição» subjacente à própria dinâmica da rela-ção, «competição» essa que tem precisamente a «desvantagem» de setraduzir em «problemas graves» de «liderança».

O grande problema das incompatibilidades em termos de personalidadeé se calhar mais aquilo que nos faz parecidos do que aquilo que nos faz di-ferentes. Eu e o Tomás somos muito competitivos um com o outro. Estacompetição entre nós tem vantagens e tem desvantagens. A vantagem é even-tualmente nós tentarmos superarmo-nos e fazer várias coisas bem, superar anós próprios e dar o máximo de nós. [...] Ele inicialmente não viu muitobem o meu mestrado por uma questão, esta é a minha visão das coisas: euacho que ele ficou um bocado ameaçado, sentiu-se um bocado ameaçadode ficar para trás, tanto que agora, e já nessa altura, ele quis imediatamenteinscrever-se no mestrado ou numa pós-graduação. Na altura, ele tinha inú-meras coisas e não o fez, mas continua a pensar, e agora está outra vez a re-colher uma série de coisas, porque eu estou a acabar o meu. A desvantagem

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é que às vezes a competição resulta em problemas graves, por exemplo, emproblemas de liderança no seio familiar quando quero ser eu a mandar e adesmandar e a definir as regras para os meus filhos e ele também. Há umacerta disputa na orientação dos nossos filhos, de regras, de comportamentos,etc., e também entre nós próprios na liderança da casa. Eu quero impor aminha forma de vida, a minha forma de viver a casa e de viver a família, eletambém quer impor a dele. Competimos muito em relação às famílias. Nóstemos um problema de incompreensão e de incompatibilidade entre aminha família e a dele, os meus pais e os pais dele não se dão lá muito bem,até porque têm estilos de vida completamente diferentes, formas de ver avida... [...] É um problema de personalidade, são egos grandes de mais, aideia de que nós temos a razão, as coisas devem-se fazer como nós queremos,que a nossa forma de ver a vida, de ver as coisas é que é a correcta. E quere-mos impor a nossa vontade ao outro.

O segundo foco de tensão conjugal diz simplesmente respeito a uma «in-compatibilidade» geral entre os cônjuges que ultrapassa a própria ausên-cia de afinidades. O caso de Júlia e José é suficientemente ilustrativo dadegradação da relação conjugal, degradação essa para a qual foi decisivo,de acordo com a entrevistada, o choque das personalidades dos cônjuges.De facto, Júlia considera que houve «sempre» uma enorme «incompati-bilidade» entre ela e o marido.

Está mal há vinte e três anos e sobretudo agora, porque eu sempre fuimuito madura, mas agora estou mais. As pessoas vão amadurecendo com avida. Portanto, ele é muito incompatível comigo, eu não quero que ele semodifique com aquele padrão que eu tenho na cabeça como é óbvio: eunão posso ser ele nem ele pode ser eu! Nós somos sempre incompatíveis!

Por último, resta referir que a multiplicação dos focos de tensão conjugalnos casais com trajectórias de hipergamia progressiva não pode ser dissociadado conjunto de abdicações destas mulheres, cujas atitudes contrastamcom a resignação – ou a subestima da carreira profissional e do tempo re-servado ao próprio indivíduo – geralmente observada junto das entrevis-tadas com trajectórias de hipergamia prioritária. Em primeiro lugar, não seestranha que a forte aposta na profissão, aliada a uma cedência à carreiraprofissional do homem, como é próprio da estratégia de articulação traba-lho-família das mulheres com trajectórias de hipergamia progressiva, se traduzanum forte sentimento de abdicação. Nas declarações de Teresa e de Júliaconstata-se com particular clareza o desconforto causado por esse senti-mento de abdicação face à carreira profissional, abdicação essa, afinal, ins-

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crita num quadro normativo que fragmenta a identidade feminina entrea fusão com a família e a realização através da profissão e da carreira.

Ainda que ostente uma atitude polivalente face à articulação trabalho--família, Teresa é peremptória no que toca à preservação da disponibili-dade para a vida familiar e, em particular, para os seus filhos: «Entre de-terminado tipo de coisas que me podem valorizar profissionalmente eos meus filhos, se isso significar roubar muito tempo do que eu tenhodisponível para os meus filhos, eu prefiro abdicar da parte profissional.»Esta atitude de preservação da disponibilidade para a família coexiste,no entanto, com um ressentimento perante aquilo que considera ser uma«desvantagem objectiva» no local de trabalho, onde convive com colegasque «não têm responsabilidades com filhos e podem-se dedicar inteira-mente à sua profissão e à sua formação académica». A atitude polivalenteface à articulação trabalho-família coloca-a, porém, nos antípodas da re-signação observada junto das entrevistadas familiaristas. A abdicação pro-fissional é, portanto, vivida como uma inevitabilidade, mas Teresa asse-gura «manter uma balança relativamente estável entre as duas situações».

Se estivesse noutra situação, poderia ter agarrado mais projectos, maisocasiões. Podia ter trabalhado com outras pessoas e não me ter fechado nesteuniverso em torno do meu coordenador, que é muito pequeno. Aí acho queforam oportunidades que me foram escapando, porque entretanto surgiramoutras pessoas associadas aos projectos que também me convidaram para irtrabalhar com eles, e se eu tivesse maior disponibilidade, se calhar fazia aque-las coisas... Mas eu achei que também não podia abandonar os meus filhosnoites inteiras ao cuidado dos avós, mesmo tendo essa possibilidade, porquehavia também um papel de mãe a cumprir. [...] Eu sinto uma desvantagemobjectiva relativamente às pessoas com quem trabalho, que continuam a tera mesma situação privilegiada que eu considero a minha situação privilegiadaanterior, ou seja, trabalham, têm os seus ordenados e não têm responsabili-dades sobre nenhuns filhos e podem-se dedicar inteiramente à sua profissãoe à sua formação académica. [...] Se o Tomás estivesse mais disponível, even-tualmente uma vez ou outra, eu se calhar aproveitava a oportunidade parair a um seminário que eu achasse interessante ou a uma reunião qualquer ànoite, mas por sistema não! Por sistema, iria continuar a abdicar de um con-junto de coisas para estar com os meus filhos. [...] É uma dualidade. O meugrande problema é mesmo: como é que se consegue ser aquilo que eu tenhocomo uma mãe ideal com aquilo que eu tenho como uma profissional ideal?Eu acho que tenho conseguido conciliar devido às ajudas que tenho daminha mãe e da minha sogra, tenho conseguido conciliar as duas coisas,tenho conseguido equilibrar, mas obviamente perco muita coisa em termosprofissionais, como perco muita coisa em termos familiares. Para manter esse

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equilíbrio vou perdendo pedaços importantes de cada um, embora ache quea profissão perde mais, acaba sempre por perder um pouco mais.

Também Júlia considera que a sua vida profissional «poderia ter sidomuito melhor por causa da vida familiar». E afirma-o desapontada, por-que apesar de ter moderado a sua ambição profissional em prol de umamaior disponibilidade para a família, não deixa de atribuir «muito valortambém à vida profissional». A discrepância entre as «disposições paraagir», moderando a disponibilidade para a actividade profissional, e as«disposições para crer» (Lahire 2005) nas suas capacidades para fazer umacarreira resulta aqui no arrependimento de quem não se sente «realizada»e lamenta, em jeito de balanço, todas as «oportunidades» profissionaisdefinitivamente perdidas. A relação infeliz com «um homem que se aco-moda» – e com quem casou, em seu entender, ainda pouco ma dura – écontudo decisiva para que o sentimento de «privação» provocado pelosencargos familiares seja hoje pouco tolerado: «Eu quero fazer imensascoisas, eu quero ver tudo e mais alguma coisa, quero ir para todo o lado,e não posso.» Júlia reage a esse sentimento com a auto-revolta de quemse culpa por ter dedicado demasiado à família. Hoje considera que o cui-dado e o acompanhamento aos filhos poderiam ter sido mais delegadosna empregada ou nos seus próprios pais. Júlia afirma não ter «nada a ver»com as funções que exerce no seu cargo profissional, considerando-se«uma mulher muito dinâmica e pragmática» que, inconformada com asua própria frustração, está porém disposta a «lutar» para, quando surgira «oportunidade», largar um emprego que não a realiza.

A minha vida profissional tem tido ascensão, mas poderia ter sido muitomelhor por causa da vida familiar, que entravou a minha vida profissional.[...] Essas oportunidades todas que eu tive, que foram muitas, já não as voltoa ter com certeza... Hoje não me sinto realizada, de longe! Eu não tenhonada a ver com isto! Se tiver oportunidade de me vir embora, é óbvio quevenho. [...] O meu marido também é brilhante, mas é um homem que seacomoda. O meu marido é de rotina. Eu não, eu sou anti-rotina. [...] Eudigo-lhe uma coisa: se soubesse bem o que era o casamento e ter filhos, euestaria hoje sozinha. Claro, nós nunca sabemos, porque é impossível termosesse conhecimento e a dureza que a vida nos proporciona, nos dá. Eu nuncateria casado, porque me cortou, digamos assim, em grande parte, a minhaliberdade.

Em segundo lugar, entre as mulheres com trajectórias de hipergamia pro-gressiva é claramente mais acentuada do que entre as entrevistadas com

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trajectórias de hipergamia prioritária a tensão entre a autonomia – em par-ticular, as possibilidades de auto-realização – e a fusão com a família,como sugere a manifesta consciência de que os constrangimentos ine-rentes à própria articulação trabalho-família obrigam a subtrair, quandonão a anular, o tempo reservado para si. Por exemplo, Vanda sublinhater para si própria «um espaço, um tempo de vida muito reduzido, por-que eu tenho que conciliar as outras coisas todas», da mesma forma queos «hobbies» de Olívia foram, desde o nascimento do seu primeiro filho,«postos na prateleira». De igual modo, Raquel confessa sentir «muita faltade tempo para mim própria... mesmo quando estou em casa aparente-mente sem nada para fazer». Os desabafos de Raquel ilustram o mal-estarcom que é vivida a tensão entre a fusão com a maternidade – «de repente,há uma [criança] que chama: ‘Mãe!’» – e a assunção da necessidade ele-mentar de um tempo só para si – «É talvez a coisa de que sinto maisfalta!».

No mesmo sentido, mas não sem renunciar a uma atitude polivalenteface à articulação trabalho-família – como faz Raquel –, Vanda demonstraum ressentimento mais acentuado nos seus desabafos: «Foi uma das coi-sas que me custaram mais em relação à maternidade, foi ver o meu es-paço pessoal reduzido a quase zero por cento.» Esta entrevistada convi-veu mal com a clara consciência de que a maternidade lhe haviaamputado a individualidade, reduzindo-a a uma identidade de papéis:«Houve uma altura em que eu só era mãe e profissional, e mais nada!Houve um ano em que eu quase desesperei, porque eu já não era aVanda, era a mãe do Rodrigo, era a mãe do Guilherme e a mãe doAfonso. E desapareceu a Vanda! Até para a minha mãe eu desapareci!»Tanto ela como Raquel atribuem a perda do seu «espaço pessoal» à ma-ternidade, sem nunca associarem essa perda à desvinculação do cônjuge,a cuja carreira profissional concedem precedência. Mas se Raquel e Vandaresponsabilizam a maternidade pela usurpação de um tempo e de umespaço só para si, já Olívia sublinha o contraste entre ela e o marido noacompanhamento dos filhos, considerando que a explicação para apenasele ter tempo só para si estará nos divergentes «interesses» de cada um:«se calhar, não tem tanto interesse em estar ao pé das crianças como eu».

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Capítulo 4

Da perpetuação da proximidade social à dupla ascensão

Um terceiro tipo de trajectória conjugal assume a designação de trajec-tória homogâmica e define-se pela persistência da proximidade social nocasal, persistência essa que resulta de um equivalente empenho dos côn-juges nas respectivas carreiras profissionais. Com efeito, em virtude deum compromisso entre as apostas profissionais de ambos, a proximidadesocioprofissional entre os cônjuges no momento da formação destes ca-sais não sofre alterações significativas no decurso da vida conjugal. Estecompromisso igualitário entre apostas profissionais não é alheio às estra-tégias de articulação trabalho-família, caracterizadas na maioria dos casosanalisados pela primazia que a mulher atribui à sua própria carreira – es-tratégia carreirista. Grosso modo, as mulheres com este tipo de trajectóriaconjugal procuram tanto quanto possível evitar que as exigências da vidafamiliar condicionem a sua disponibilidade para a vida profissional. Al-gumas, contudo, procuram maximizar as apostas na carreira e na família– estratégia maximalista –, regendo-se neste caso por um princípio de equi-líbrio que a colisão entre os dois universos ameaça. Devemos, todavia,sublinhar que, ao invés da lógica observada junto dos casais com trajec-tórias de hipergamia progressiva, este ideal de articulação maximalista surgeagora dissociado da concessão à carreira profissional do homem.

Nos casais com trajectórias homogâmicas, a elevada carga horária detrabalho das entrevistadas com estratégias carreiristas só é atenuada, tem-porariamente, com o nascimento dos filhos, podendo muitas vezes estescasais – onde o homem se revela, de resto, participativo nos cuidados àcriança – contar com a rede familiar de apoio ou recorrer a uma ama.Sem os constrangimentos financeiros das famílias em meios sociaismenos favorecidos, estes casais delegam a maior fatia das tarefas domés-

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ticas numa empregada ou noutro tipo de serviços exteriores à família,conquanto no que respeita à divisão das tarefas remanescentes, bemcomo à gestão da logística do trabalho doméstico, a maioria dos encar-gos esteja, também aqui, sob a alçada da mulher. Já a igual aposta deambos os cônjuges na carreira profissional vai frequentemente de parcom o companheirismo que estas entrevistadas reconhecem no cônjuge.Será difícil aferir se este companheirismo resulta de uma paridade a níveldos recursos assegurados por equivalentes apostas na profissão – comosublinhariam os defensores de uma teoria dos recursos (Blood e Wolfe1960) –, ou se não demonstra sobretudo uma autonomia relativa dos pró-prios ideais igualitários, predominantes nestas famílias, face aos princí-pios «meritocráticos» (Kellerhals et al. 1982) prevalecentes no mercadode trabalho. De resto, sem a diversidade de focos de tensão conjugal obser-vada nas trajectórias de hipergamia progressiva, estes casais destacam-seainda seja pela procura em conservar a abertura ao exterior, seja pelotempo que, de facto, reservam à relação conjugal.

Homogamia, herança e ascensão

Os casais com trajectórias homogâmicas distinguem-se, desde logo, pelapredominância de uma forte proximidade socioprofissional no momentoda escolha do cônjuge, que se caracteriza mais frequentemente pela ho-mogamia socioprofissional restrita. Apenas em dois casais esta proximidadenão é tão acentuada no momento da sua formação, tendo a mulher umasituação profissional mais desafogada ou mais qualificações: Mafaldaexercia advocacia num consultório próprio quando casou com Miguel,docente do ensino superior; e, ao contrário de Frederico, Filomena erajá licenciada, apesar de ambos trabalharem no atendimento ao públiconum estabelecimento bancário. Nos casais com este tipo de trajectória ca-racterizada ora pela proximidade social (percursos socioprofissionais pa-ralelos), ora pela aproximação (percursos socioprofissionais convergentes)entre os cônjuges, a mulher tanto segue o percurso traçado pelos pais,apostando em recursos escolares e numa profissão qualificada, quantotrilha um percurso de mobilidade ascendente em relação ao meio socialde origem. A lógica homogâmica aplica-se igualmente, aliás, ao tipo depercurso intergeraccional de cada um dos cônjuges.

São ilustrativos da herança dos recursos educacionais e da reproduçãosocial os percursos de Maria, Mafalda ou Adelaide, casadas com homenstambém oriundos de meios muitos escolarizados. Filha de um médico,

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Maria era já investigadora científica e docente do ensino superior quandocasou com um colega de profissão, Mário, também ele filho de um mé-dico. Por sua vez, quando casou com Miguel, docente do ensino supe-rior, Mafalda já exercia advocacia no escritório instalado num andar queo seu pai, licenciado em Economia e director de uma pequena empresa,colocou à sua disposição. De igual modo, também os pais de Miguelexerciam profissões qualificadas, sendo a mãe docente do ensino secun-dário e o pai contabilista. Já Adelaide, filha de professora do ensino se-cundário, exercia arquitectura num departamento da administração pú-blica quando casou com Alexandre, docente do ensino secundário e filhode um desenhador.

Por outro lado, deparamos com os percursos de mobilidade ascendentede Marta, Sara e Filomena. Quando casou com Bernardo, contabilista as-salariado, Marta exercia já a sua actividade actual de docente do ensinosecundário. Ambos são oriundos de meios sociais menos qualificados:Marta é filha de uma mulher doméstica e de um pequeno comerciante;Bernardo é filho de uma mulher doméstica e de um funcionário das Fi-nanças. Por sua vez, o percurso de ascensão de Sara faz-se particularmentepela via de uma reconversão de capitais, consubstanciada numa apostaem recursos escolares. Filha de proprietários agrícolas, esta licenciada éhoje responsável por um departamento de um estabelecimento bancário,mas trabalhava como assistente social quando casou com Sérgio, editorde jornal e filho de um mediador de seguros, ou seja, também ele comum percurso de mobilidade ascendente. Quanto a Filomena e Frederico,ambos começaram a sua carreira profissional num estabelecimento ban-cário. O momento da escolha do cônjuge revela a forte proximidade entreorigens, mas não deixa de ocultar uma trajectória conjugal homogâmica mar-cada pela ascensão intergeraccional, distanciando quer Filomena, hoje do-cente do ensino superior, quer Frederico, gerente de um banco, das suasorigens sociais: a mãe de Filomena era caixa de banco e o pai gerente deum estabelecimento bancário; a sogra era tradutora e o sogro topógrafo.

No ponto seguinte, analisamos os processos de escolha do cônjugeque estão na origem de dois casais com trajectórias homogâmicas. Por umlado, partilhando a origem social, a profissão e a idade, Maria e Máriopossuem fortes afinidades culturais e ideológicas, representando porven-tura o exemplo mais emblemático do peso da proximidade social na es-colha do cônjuge. Por outro lado, a análise do encontro entre Marta eBernardo será, por sua vez, reveladora da importância da proximidadesocial quando ambos, homem e mulher, traçam percursos de ascensãoface às suas origens sociais.

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«Por causa do trabalho houve logo uma aproximação»

Maria é a única rapariga, e a mais nova, de três irmãos. Nasceu numnúcleo familiar com «pouca ligação com o resto da família», onde «oshomens não faziam nada e as mulheres é que faziam tudo» e no qualsentia «grande opressão» do pai sobre a mãe. A entrevistada descreve omodo como, no próprio núcleo familiar de origem, era exercida umaviolência simbólica sobre a mulher, exercício esse que prescindia da figura«autoritária» do homem.1 O pai era «extremamente trabalhador», mas«muito conservador», uma característica decisiva para que a mãe, educadapara «obedecer ao homem», tivesse ficado circunscrita ao universo dacasa. A forma como recorda a família onde cresceu revela de imediatouma consciência da rígida diferenciação dos papéis sexuais e de uma au-sência de autonomia pela via do exercício de uma profissão, ausênciaessa que a maioria das mulheres portuguesas testemunhava ainda numpassado recente. A sua percepção da desigualdade entre homens e mu-lheres torna-se particularmente óbvia ao referir que a mãe, licenciada – tal como o pai – em Medicina, respeitou os valores incutidos, dedi-cando-se totalmente à família.

Os homens não faziam nada e as mulheres é que faziam tudo. A minhamãe sempre protegia muito os meus irmãos. [...] Não havia muita relaçãoconnosco, porque, de facto, o meu pai dedicou-se imenso ao trabalho e na-quela altura ele era tipicamente médico de família. Portanto, ele recebia cha-madas, ia a casa das pessoas... [...] A minha mãe fez os estudos todos emMedicina, mas... para ele, a mulher tem que estar em casa! Portanto, ela tirouo curso de Medicina e, de facto, tinha muito jeito, porque ainda hoje, àsvezes, tenho uma dúvida qualquer e telefono e ela... Quando eu estava afazer o doutoramento em Paris, tive uma crise de apendicite e ela, pelos meussintomas, diagnosticou-me. [...] A minha mãe não tinha autonomia. Por-tanto, o meu pai dava-lhe o dinheiro para governar a casa, mas era sempretudo muito contabilizado e, portanto, sentia-se uma grande opressão, nãoé? Mas ela teve uma educação muito... Andou numa escola de freiras, numcolégio de freiras, portanto, teve uma educação que achava que tinha queobedecer ao homem, etc. E, portanto, ela punha isso por cima e só a seguir

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1 De acordo com Bourdieu, «a violência simbólica institui-se por intermédio da ade-são que o dominado não pode deixar de conceder ao dominante (e, portanto, à domi-nação) quando não dispõe para o pensar e para se pensar ou, melhor, para pensar a suarelação com ele, senão de instrumentos de conhecimento que tem com ele em comume que, não sendo mais que a forma incorporada da relação de dominação, fazem comque a relação em causa pareça natural» (1999, 30).

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é que vinham as suas ambições. Portanto, o meu pai não era autoritário.Quer dizer, obviamente ele dizia uma coisa e a minha mãe achava que tinhaque obedecer. Não é que ele fosse autoritário.

A atitude do pai, não desenquadrada, aliás, da própria família tradu-ziu-se obviamente numa relação de controlo e autoridade durante a ado-lescência da entrevistada. Maria dependia assim da companhia do irmãopara ir às festas de amigos. Tinha vinte e dois anos, quando os pais deci-diram oferecer um apartamento a cada filho, e Maria, com o seu «espíritoindependente», agarrou a «oportunidade» para se tornar «autónoma».Sair de casa dos pais consolidava o seu projecto de independência, poisnesse mesmo ano começou a trabalhar como docente do ensino secun-dário. Curiosamente, foi a mãe, desde sempre subordinada aos encargosda vida familiar e às ambições de carreira do pai, quem demonstrou des-gosto pelos planos da filha rumo à autonomia.

Com vinte e cinco anos de idade, Maria começou a dar aulas comoassistente universitária. Com uma educação marcada por normas rígidase um controlo apertado, só viria a namorar seriamente já depois de viversozinha. Tinha vinte e sete anos de idade quando casou com Mário, ape-nas um ano e meio após terem iniciado o namoro, tal como, aliás, é fre-quente nos namoros mais tardios. Conheceram-se precisamente como«colegas» na instituição de ensino superior onde ainda hoje leccionam.Maria recorda que «por causa do trabalho houve logo uma aproximação».Mas se o local de trabalho definiu as circunstâncias do encontro, outrosfactores, segundo declara, encarregar-se-iam de aproximá-los, designada-mente: o facto de Maria ser colega de um amigo do marido; a «simpatia»e a atitude «muito cooperante» de Mário, que já era assistente na institui-ção universitária onde a entrevistada tinha começado a dar aulas; a «pro-ximidade política», que identificou este homem com a ideologia herdadados pais; e, enfim, a «franqueza» que conseguia ler nos seus olhos.

Por acaso lembro-me que tinha uns olhos muito francos, e isso atraiu--me. Do ponto de vista intelectual, foi não só muito cooperante, muito sim-pático nisso, mas também de facto ajudou ali bastante, porque tinha o seudossier todo preparado e isso tudo... Era várias coisas, porque, de facto, tam-bém em relação à política, eram anos de muita política, não é? Porque aindaera perto do 25 de Abril e ele estava ligado a uma organização política. E, portanto, também houve a proximidade política, porque eu nunca estiveactiva politicamente... Portanto, não estive verdadeiramente ligada à asso-ciação [de estudantes], mas apercebia-me disso... E isso em casa tambémhavia proximidade para a esquerda.

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À interacção no local de trabalho e às afinidades ideológico-políticasacresce uma forte proximidade das origens sociais. Com efeito, tambémMário é filho de um médico casado com uma doméstica, sendo impor-tante sublinhar, contudo, que esta homogamia não é particularmentealheia às diferenças de género. Maria procurou um compromisso entreo seu «espírito independente» e uma atitude pouco institucional face àfamília, por um lado, e a vontade dos pais no que toca à formalização dolaço conjugal e respectiva reprovação de um casamento precedido de coa-bitação, por outro. Pese embora as convicções ideológicas de Mário – «elena altura ainda estava muito ligado ao partido de extrema-esquerda, queachava mal o casamento» –, a difícil experiência familiar – «os pais sepa-raram-se quando ele tinha doze anos e foi muito litigioso» – e os própriosvalores herdados da mãe – «ela aceitava tudo, porque as outras namora-das iam lá a casa e passavam a noite lá em casa no quarto dele» –, o com-promisso da entrevistada com alguns valores associados à ideia de famíliaenquanto instituição impôs-se: «a decisão de casar foi minha».

«Foi aquela coisa de aprender a gostar»

Docente do ensino secundário, Marta só deixou a cidade onde cres-ceu quando, já licenciada, veio trabalhar para um colégio na capital. Cres-ceu num contexto familiar estruturado de acordo com o modelo de di-visão do trabalho «ganha-pão masculino»: o pai explorava um pequenonegócio e a mãe não exercia profissão. A entrevistada sublinha que o de-sejo de estudar lhe foi transmitido pelos pais. A vida não permitiu queestudassem para além do quinto ano do liceu, acabando esse desejo pro-jectado nas filhas. Sendo a mais velha de três irmãs, Marta procurou cor-responder à expectativa dos pais de vir a «ser melhor que eles» no que àformação escolar diz respeito. Ainda que a família vivesse sem constran-gimentos económicos, Marta cedo se apercebeu de que os tempos ti-nham mudado: o segredo para ter êxito no mercado de trabalho passavaentão pela aposta numa formação superior. Que não se conclua das suaspalavras, todavia, uma simples instrumentalização do diploma em funçãodas oportunidades de emprego, pois esta mulher tinha bem delineadosos seus projectos profissionais.

O que os meus pais quiseram sempre é que eu continuasse a estudar,porque eles não tiveram oportunidade de o fazer, mas dentro do continuara estudar, eu fui completamente livre para escolher o curso, aquilo que euqueria fazer. Não argumentaram, sequer! Eu também tinha ideias muito de-finidas do que queria fazer.

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Para a concretização da expectativa de aposta na escolaridade que osseus pais depositavam em si e nas suas irmãs contribuíram as condiçõesmateriais da família, como revela um desafogo económico que permitialibertar a mãe das tarefas domésticas, relegadas em duas, quando não emtrês, empregadas domésticas. Esta libertação da mãe das tarefas domésti-cas traduzia-se numa disponibilidade total para acompanhar as filhas noquotidiano.

A minha mãe geria mais a casa do que outra coisa. [...] Lembro-me, porexemplo, de que eu andava no ténis, e a minha mãe ia-me levar ao ténis e fi-cava no carro a fazer malha à espera de que acabasse. Era hora e meia, duashoras, depois trazia-me para casa e depois ia levar a minha irmã ao basquete. A minha mãe, no fundo, era um chofer nosso. A minha mãe estava dispo-nível para nós desde que se levantava até se ir deitar. Para nos dar a refeiçãoe, por exemplo, se eu ia de um sítio para outro sem ir a casa lanchar, ela le-vava-me uma sandes no carro para eu comer qualquer coisa. Portanto, estavasempre lá. A minha mãe é o que se chama «mais à terra» como se costumadizer, mas depois... quando eu queria qualquer coisa a minha mãe dizia «vaiperguntar a opinião do teu pai», e eu respondia «diz-me tu que sim porquecom o meu pai entendo-me bem» [risos]. O meu pai nunca foi capaz de nosdizer muito que não, como éramos três meninas...

Durante a infância, à permanente presença da mãe associava-se – talcomo se constata – uma permissividade paterna que, contudo, viria atransformar-se em autoridade e controlo na adolescência. Marta recordaque lutava pelas «autorizações» para sair à noite. Mais velha que as irmãs,considera, no entanto, que foi abrindo precedentes no sentido da con-quista de uma atitude parental mais permissiva que só elas, adolescentesjá depois do 25 de Abril de 1974, viriam realmente a desfrutar: «a minhairmã [mais nova] teve uma vida que eu nunca tive!». Ainda assim, con-fessa ter vivido pacificamente a adolescência, vivência essa que atribui àsua personalidade pouco conflituosa e compreensiva perante a atitudeautoritária e controladora do pai, à qual não era alheia a vigilância recí-proca entre irmãs nas saídas nocturnas. No contexto de uma destas saídasnocturnas com a mais velha das suas irmãs, Marta, que então frequentavaos últimos anos da licenciatura, conheceu Bernardo – amigo de umamigo da irmã – num baile de caloiros da faculdade. Bernardo veio subs-tituir o rapaz alcoolizado que dançava com ela. O contacto físico pro-porcionado pela dança esteve, assim, na origem da atracção, emboraMarta sublinhe que o enamoramento não nasceu de uma súbita paixão.

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Conhecemo-nos na faculdade, no baile do caloiro, mas não era o nossobaile. Quer dizer, o baile era dos caloiros, mas nós íamos na mesma. Ele co-nhecia um amigo da minha irmã. Ele estava com um amigo da minha irmãe eu estava com a minha irmã. Foi engraçado, porque eu estava a dançarcom um rapaz que já tinha bebido imenso... e a minha irmã disse para oBernardo «vai dançar com a minha irmã, para ver se a tiras daquele chato!».E foi assim. Acho que não foi nada... Quer dizer, não foi assim! Acho quefoi aquela coisa de aprender a gostar. A ideia dele era outra, mas a minha,na altura, não. Começámos a sair normalmente com um grupo de amigos,começámos a conversar, a sair juntos...

O processo de independência do país africano onde Bernardo nasceue cresceu traduziu-se na sua entrada precoce na idade adulta, tendo estehomem, então com apenas quinze anos de idade, viajado sem os paispara Portugal. Foi, assim, desde cedo forçado a adquirir um sentido deresponsabilidade para com o seu próprio futuro. Quando conheceu aentrevistada, tinha praticamente terminado o bacharelato. Os anos dainfância no país africano, por um lado, e a dupla ruptura dos contextosnacional e familiar ocorrida na adolescência, por outro, consubstancia-ram-se, no entanto, em atributos electivos na escolha do cônjuge. Martarecorda que o marido tinha «uma perspectiva de vida muito mais aberta»e «amadurecida», ainda que eleja como principal mecanismo de atracçãoa diferença entre os dois no plano das atitudes e dos comportamentos:a cortesia do homem versus a retracção da mulher. «Os pólos atraem-se»,deste modo, em virtude de códigos de decoro e cortesia (Goffman 1993[1959]) que, resultantes da intersecção entre as normas de género e aordem da interacção social, definem claramente os papéis de cada umno quadro do encontro.

O Bernardo veio de África, lá está, com uma perspectiva de vida muitomais permissiva, com muito menos preconceitos sociais e tudo mais. Depois,quando houve a independência, ele veio sozinho de lá para cá, e lá está a talmaturidade dele, porque ele aos quinze anos já estava a viver sozinho numainstituição universitária. Portanto, já tinha que saber gerir o seu dinheiro,tinha que regular tudo, porque os pais ficaram lá. E, então, ele tinha quesaber viver sozinho. A vivência dele era muito diferente da minha. No fundoele tinha mais maturidade em relação aos outros. Os homens são mais crian-çolas naquela fase, são sempre muito mais infantis que as mulheres. Eu noteique nele não. Tinha uma maturidade completamente diferente, interessava--se imenso por política... Pronto, discutia coisas que só com pessoas muitomais velhas é que se podia discutir! Não era aquelas coisas idiotas, própriasda idade, que às vezes davam secas e a pessoa ficava morta para se despachar

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deles. Não, era outro tipo de conversas muito mais como eu também era.Julgo que eu tinha uma maturidade um bocadinho também... Não sei, eusempre fui muito certinha... Depois já estávamos perto do fim dos cursos,eu acho que isso começava a preocupar, as profissões, a estabilidade, tem aver com isso... Os meus pais simpatizaram com o Bernardo, porque ele con-segue cativar as pessoas extraordinariamente. Acho que não há ninguém quenão goste dele! Ele é extremamente simpático, extremamente dado, muitosociável. Muito, muito! Em todo o lado ele consegue fazer amizades comuma facilidade. Eu já não! Sou muito mais retraída. E ele não. Nós somosmuito diferentes, aliás somos completamente diferentes, às vezes na brinca-deira até digo «como é que eu casei contigo?», porque somos completamentediferentes. Mas eu acho que é mesmo isso, os pólos atraem-se...

Filho de uma mulher doméstica e de um funcionário público, amboscom a escolaridade dos pais de Marta, não tardou que Bernardo come-çasse a aplicar profissionalmente as competências adquiridas na licencia-tura. Ter «consciência do que se quer, do que é a vida», «menos precon-ceitos» e uma cortesia generalizada foram, de acordo com Marta,atributos fundamentais na escolha do cônjuge, atributos esses que são ofruto do percurso de um homem cuja origem social e o percurso de mo-bilidade são, de resto, semelhantes aos da entrevistada.

Carreira ou polivalência? Os dilemas da articulação trabalho-família

Ao contrário das mulheres com trajectórias hipergâmicas, não observa-mos apenas um tipo de estratégia de articulação trabalho-família entre as en-trevistadas com trajectórias homogâmicas. Na maioria dos casais com estetipo de trajectória conjugal, as mulheres apostam mais nas suas profissõese carreiras – significando tal aposta um condicionamento no plano dadisponibilidade para a família – revelando, portanto, estratégias carreiristasna articulação entre a vida profissional e a vida familiar. No entanto, nemsempre é essa a solução de articulação trabalho-família adoptada. Mos-trando-se divididas entre os dois universos, algumas entrevistadas pro -curam corresponder a um equilíbrio idealizado entre o forte empenhona profissão e uma grande disponibilidade para a família. Nestes casos,trata-se, também aqui, da elaboração de estratégias maximalistas, se bemque estas mulheres não concedam a precedência à carreira do cônjuge ob-servada entre os casais com trajectórias de hipergamia progressiva. Estamosde facto perante mulheres com uma diferente estratégia de articulação tra-

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balho-família, envolvendo diferentes orientações face à maternidade, à suaprópria actividade profissional, bem como à própria carreira do homem.

Profissão, carreira e «custo» da maternidade

As estratégias de articulação trabalho-família observadas entre as entrevis-tadas com trajectórias homogâmicas revelam-se, desde logo, no significadoque a maternidade adquire na realização pessoal, significado este que pa-rece contribuir para a própria dimensão da descendência. As entrevistadascom estratégias carreiristas são mães de filho único – com a excepção de Fi-lomena, mãe de dois rapazes –, enquanto todas as maximalistas com tra-jectórias homogâmicas são mães de dois filhos. Não seria, logicamente, ri-goroso concluir qualquer tendência ou padrão a partir de um estudointensivo, mas esta observação no que respeita à dimensão da descendên-cia sugere orientações distintas perante a vida familiar e, sobretudo, dife-rentes significados atribuídos à maternidade. Com efeito, as estratégias dearticulação trabalho-família diferenciam-se sobretudo em função do lugarque a maternidade ocupa entre os domínios de gratificação pessoal.

As mulheres com estratégias carreiristas relativizam o significado da ma-ternidade perante as exigências profissionais que estão associadas às suasfortes aspirações de carreira. Em lugar de enfatizarem os dilemas da arti-culação, atitude sobretudo característica das mulheres com estratégias ma-ximalistas, estas entrevistadas identificam na maternidade – designada-mente na sobrecarga que acarreta – um obstáculo à sua própriadisponibilidade para a vida profissional. A maternidade é, assim, um de-sejo que não deixa de ser vivido com ambivalência, tendo em linha deconta os projectos relacionados com uma carreira profissional que podeexigir «total» dedicação. Por isso, a «adaptação» às exigências inerentesao papel de mãe foi, por exemplo, «muito difícil» e, mesmo, «chocante»para Maria, precisamente devido ao «custo» que essa transição represen-tou. Nas palavras desta investigadora científica e docente do ensino su-perior para quem as aspirações de carreira são indissociáveis do exercíciode uma profissão que considera a sua «paixão», é bastante evidente aforma como a maternidade, precisamente por ter sido desejada, é vividacom sentimentos contraditórios: «também senti falta de dedicação detempo para o meu filho».

Foi difícil porque, obviamente, a minha paixão era a investigação e eupassei cinco anos em que me dediquei cem por cento à investigação, em terque dividir ser professora e manter a investigação e ser mãe. Portanto, aí dos

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tais cem por cento passar a cinquenta por cento foi difícil... Foi um bocadochocante, lá está: o horário reduzido é menos tempo de trabalho disponívelpara a investigação.. Foi falta de tempo, foi falta de tempo. Portanto, daraulas implica a pessoa dedicar uma parte do tempo a estudar e a ajudar, etc.Portanto, logo aí tem que se retirar tempo... Retirar tempo à investigação ob-viamente. Portanto, repare, eu também dedico muitas horas do dia à inves-tigação. Aí retirava, depois o meu filho... Também a pessoa tinha que dedicare tinha que tentar não chegar muito tarde a casa quando, por exemplo, jáera época escolar, para o acompanhar.

Por sua vez, Sara, mãe de um rapaz e já com uma pós-graduaçãoquando engravidou, refere que a chegada do seu filho não modificou asua vida profissional, mas sublinha que «podia ter afectado a minha car-reira». Então com trinta e seis anos de idade, Sara trabalhava num «gabi-nete ministerial». Recorda que a chegada do seu filho só não «afectou» acarreira devido à compreensão do seu superior hierárquico. Mais obser-vada entre as profissões qualificadas do que entre as profissões poucoqualificadas (Crompton 2006), esta «compreensão» traduziu-se numamaior flexibilidade do horário de trabalho e na possibilidade de perma-necer no país e, portanto, de «reestruturar a vida» sem que a maternidadeentrasse em conflito com os seus projectos profissionais e de carreira.

O meu filho não veio alterar a minha vida profissional. Quando ele nas-ceu, estava e continuei a estar no gabinete ministerial de assessoria de im-prensa... [...] E, portanto, não havia nenhum constrangimento em ficar comuma pessoa que ia ficar fora de funções dentro de dias. Aliás, quando a pes-soa com quem eu trabalhava me convidou, eu disse «olhe para mim» [refe-rindo-se ao facto de estar grávida], e ele disse para não me preocupar, porquequando voltasse estava bem a tempo para fazer as coisas. [...] Naquela alturanão senti que abdicava da minha carreira, até porque eu tinha a minha vidaestruturada. Eu estruturei a minha vida, nessa altura, para me manter dispo-nível no trabalho e ao mesmo tempo conseguir acompanhar o meu filho.[...] Eu consegui amamentar o meu filho até aos oito meses. Para amamentarsignifica que não se pode ausentar. Portanto, na última fase da amamentaçãoa pessoa dá duas vezes, à noite e uma de manhã. Significa que tem que dor-mir em casa, isto quer dizer que até aos oito meses de idade, apesar de eu teruma actividade profissional extremamente exigente, dormi sempre em casa.Mesmo que chegasse muito tarde, ou mesmo que saísse cedo de manhã, foisempre possível. [...] O que é que eu deixei de fazer nesse período? Deixeide acompanhar o membro do Governo a Bruxelas e ao Luxemburgo. AosConselhos ia outra pessoa e não ia eu, porque também não era absoluta-mente necessário, porque na representação permanente em Bruxelas temos

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sempre elementos que podem fazer isso. Consegui até aos oito meses fazerisso, significa que estive presente. Por outro lado, eu não tinha de trabalharde manhã, a não ser alguns dias, ou por alguma circunstância, em que tinhade estar a correr.

Por sua vez, Filomena, docente do ensino superior, refere que o nas-cimento dos dois filhos do casal se processou em articulação com as as-pirações de carreira de ambos os pais. Quando casou, só ela era licen-ciada. Frederico ainda frequentava a licenciatura em Medicina, queacabou por não concluir, tendo-se empregado num banco – tal comoFilomena – logo após o casamento. O primeiro filho nasceu um anoapós o casamento, ou seja, num período de confessada desorientação deambos no que respeita às suas aspirações profissionais e de carreira. No en-tanto, sendo já Frederico «funcionário do banco», tal permitia o acesso aum conjunto de regalias – «assistência médica para todos e segurança» –que assim justificaram a gravidez de Filomena. Esta primeira gravidezforçou-a a interromper o mestrado em que, entretanto, se inscrevera por«curiosidade» e pela insatisfação com o seu emprego no banco. Passadosoito anos, o nascimento do segundo filho do casal seria já ajustado aoplaneamento da carreira académica de Filomena.

Entretanto, eu comecei a fazer o mestrado, que não acabei porque nasceuo miúdo mais velho. [...] Depois de o meu filho mais velho nascer, o meumarido já era funcionário do banco. Portanto, tudo o que significava crédi-tos, o que é um aspecto importante no início de vida das pessoas, assistênciamédica para todos e segurança, ele podia assegurar. [...] Depois achámos láem casa que, se queríamos ter outra criança, que devia nascer outra criançapara eu, depois, ter tempo para o doutoramento, não é? Portanto, tivemosa segunda criança para eu, a seguir, ter tempo para fazer todo o outro per-curso do doutoramento académico. [...] Portanto, digamos que todos os nos-sos percursos têm a ver entre filhos e cursos [riso], mas temos tido isto rela-tivamente bem organizado.

Já Marta, docente do ensino secundário, é mãe de dois rapazes «muitoprogramados», sublinhando que o calendário profissional foi decisivonesse planeamento: «como professora, interessava-me que eles nascessemem determinado mês». A entrevistada não apenas pretendia que os pri-meiros meses da maternidade alterassem o mínimo possível o seu ritmode trabalho, mas sobretudo procurou adiar tanto quanto possível a en-trega das crianças a um infantário.

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Os meus filhos foram muito programados, até ao milímetro... Nasceramsempre em meses normalmente que eu depois juntava – juntando os trêsmeses, ou os três meses e meio juntava às férias grandes – para eles depoisnão irem para o infantário com três meses; iam só com quatro ou cinco. [...]Quando eles são pequenos também, faz-se o mínimo que se tem que fazerpara ser competente e não prejudicar ninguém, agora não se entra em voos,isso é impossível. O que se faz, faz-se com muito sacrifício, porque, porexemplo, ir dar aulas com duas horas de sono é complicado. Numa noitedormir quatro horas, mas de um quarto em quarto de hora acordar, é com-plicado. Cheguei a ir dar aulas com uma directa! Quando isso acontece, ohumor é outro, a disposição muda, as birras, o ter que cumprir horários,aquilo que o adulto mais detesta é ter rotinas, é ter que jantar a esta hora, al-moçar a esta hora e ter horas para ir para a cama...[...] É evidente que umapessoa passa de não ter que cumprir horários a ter que ter horários paracomer, o ir dar banho, ir para a cama, deixar de sair com amigos, deixar desair à noite.

Ao mesmo tempo que recorda a contenção profissional resultantedos primeiros tempos da maternidade, a entrevistada considera o «pre-juízo», sobre os próprios filhos, de uma dedicação excessiva à vida fami-liar. Esta cautela com uma excessiva dedicação aos filhos vai de par comfortes aspirações profissionais, que no seu caso transcendem a actividadena escola, envolvendo a participação em projectos pedagógicos, nomea-damente a elaboração de manuais escolares e acções de formação. Ora,são precisamente os efeitos – «prejudiciais» à sua relação com os filhos –de uma eventual incapacidade para dar resposta a esses desafios profis-sionais que Marta tanto receia, encontrando assim na própria realizaçãopessoal uma justificação para recusar que as exigências da vida familiarse sobreponham aos seus «projectos» profissionais. Ou seja, o desempe-nho do papel de «mãe» está dependente das condições de realização pro-fissional, cujos desafios não se circunscrevem às exigências da progressãona carreira de docente do ensino secundário.

Para ser boa mãe ou boa mulher, boa esposa, eu acho que tudo tem queestar bem comigo e tudo tem que estar realizado, porque eu abdicar de mim,da minha profissão, daquilo que eu gosto de fazer... Eu abdico até certoponto, mas agora não posso abdicar de maneira que me anule, porque se eume anulo deixo de ser eu, então deixo de ser aquela mãe; eles passam a teroutra pessoa. [...] Se eu achar que eles estão a exigir de mais, imponho limi-tes... Por exemplo, se eu estiver a fazer o manual escolar... Agora, muitasvezes, estou a fazê-lo durante o fim-de-semana e, muitas vezes, eles pedem--me para sair. Eu sei que os prejudica um bocado, mas eu não posso ir, e

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tento compensá-los depois noutros fins-de-semana. Eles são prejudicados,obviamente, mas eu não vou abdicar desse projecto por causa deles, porqueeu acho que se eu não estiver contente, se eu não estiver satisfeita, tambémnão sou uma boa mãe. Se eu estiver com eles e a pensar que devia estar afazer outra coisa, não pode ser. Eu tenho é que saber jogar e gerir o meutempo de maneira a poder fazer aquilo que é importante para mim e, aomesmo tempo, ser mãe, obviamente. A minha mãe tinha esse problema, de-dicava-se cem por cento aos filhos, e há muitas vezes que eles são prejudica-dos com isso... Por exemplo, eu lembro-me que, quando estou mais satisfeita,quando faço uma acção de formação que me corre bem e eu venho satisfeita,eu chego a casa... eu venho contente, eu venho satisfeita! Até sou capaz debrincar com o mais pequeno ou... Tudo é diferente!

Outras entrevistadas confessam-se mais divididas entre as aspiraçõesde carreira e a aposta na vida familiar, revelando-se, por sua vez, maxi-malistas nas soluções que encontram para articular a vida familiar e a vidaprofissional. Para estas mulheres, a maternidade constitui igualmente umdomínio que não pode sobrepor-se à concretização das suas aspiraçõesde carreira, mas exactamente na mesma medida em que esta concretiza-ção deve coadunar-se ao exercício da maternidade. A combinação entrea aposta máxima na carreira e na família, por um lado, e a procura deum equilíbrio na entrega aos dois universos, por outro, não pode serquestionada pelos encargos de uma descendência cuja dimensão não ul-trapassa, nos casos analisados, os dois filhos. De igual modo, a tensãoassociada à profissão não deve aqui interpor-se à concretização dos de-sejos de maternidade, tal como se constata no caso de Adelaide, técnicasuperior da função pública, para quem o segundo filho – uma rapariga– nasceu somente quatro anos após o primeiro, precisamente devido à«situação de stresse» profissional em que a entrevistada se encontrava:«custou um bocadinho mais a ser feita». Quando confrontada com a hi-pótese de um terceiro filho, Adelaide contrapõe que «está tudo muitocaro para uma pessoa tomar uma opção dessas», depreendendo-se dassuas palavras a importância atribuída à segurança económica associadaao estatuto profissional enquadrado que a entrevistada tanto ambiciona.

A ideia de equilíbrio entre as exigências da vida profissional e da vidafamiliar é transversal aos discursos destas mulheres com estratégias maxi-malistas, equilíbrio esse, à partida, alcançado seja através de uma descen-dência cujos encargos não questionem a concretização das aspirações decarreira, seja através de uma «gestão» das apostas nos dois universos. A maternidade surge aqui dissociada da ideia – observada entre as entre-vistadas carreiristas – de que o exercício da actividade profissional tem

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um «custo». Para estas mulheres, trata-se de maximizar as apostas nos doisuniversos evitando que os respectivos encargos se atropelem.

No caso de Mafalda, advogada e profissional liberal, a gravidez do pri-meiro de dois filhos, adiada até «chegar a idade» dos trinta e um anos, foiuma «decisão muito complicada», não propriamente pelo eventual con-dicionamento da sua aposta na profissão, mas porque a «vida era óptimacomo casal sem filhos». Entre o desejo de uma descendência numerosa – «éramos um casal que falávamos em ter quatro filhos» – e a salvaguardada disponibilidade para o tempo do casal resulta um compromisso quenão ultrapassa os dois filhos. Mesmo assim, a entrevistada considera queos filhos representaram uma «perda da liberdade», evidenciando a ambi-valência de sentimentos – «perdi a liberdade»; «não estou arrependida,adoro os filhos» – observada entre as mulheres maximalistas, divididasentre o desejo de ser mãe e a preocupação com o equilíbrio das realizaçõesnos domínios profissional e familiar.

Nós ao princípio éramos um casal que falávamos em ter quatro filhos.Ora bem, foram quatro anos e meio que vivemos como casal sem filhos[riso]. Foi muito tempo e foi difícil a decisão de ter filhos, porque nós co-meçámos a ter uma vida... E quer ele, quer eu, éramos umas pessoas que de-testávamos regras e horários e coisas assim e, portanto, a nossa vida era óp-tima como casal sem filhos. Tanto que os filhos é que nos fazem... Eucostumo dizer uma coisa a toda a gente: quando veio um filho perdi a liber-dade. Eu não estou arrependida, adoro os filhos, mas era uma pessoa quedava muito valor à minha liberdade, porque mesmo casada não a perdi. Nósrespeitamo--nos perfeitamente e a nossa liberdade manteve-se. Veio o filhoe eu perco a minha liberdade, no sentido em que o meu tempo deixa de sero meu tempo. E, por isso, a decisão de ter filhos foi muito complicada. Nóstivemos uma vida de viagens e de poder fazer viagens. Tínhamos liberdade,pronto! [riso] Chega a idade... Portanto chego aos trinta anos e nós quería-mos ter dois filhos, no mínimo... Foi um bocadinho racionalizar a questãoe dizer «Tem que ser agora». Claro que depois de os filhos nascerem, a genteadorou... Mas foi mais pela idade.

A mulher e a articulação perante duas fortes aspirações de carreira

As soluções encontradas por Filomena para articular a vida profissio-nal e a vida familiar constituem um primeiro exemplo da elaboração deuma estratégia carreirista, sumariamente definida pela prioridade que a car-reira profissional da mulher assume entre os diversos domínios de reali-

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zação pessoal. Com quarenta e cinco anos de idade, Filomena é douto-rada e exerce actividade profissional como docente do ensino superior.A entrevistada não se debateu com a ausência de referências educacionaisque caracteriza a infância de outras entrevistadas. O pai possuía um ba-charelato e era gerente bancário, enquanto a mãe, menos escolarizada – com o quinto ano do liceu –, trabalhava no atendimento ao balcão deum banco. Apostar na escolaridade e, sobretudo, exercer uma actividadeprofissional são dimensões identitárias que Filomena considera ter her-dado da mãe, e que esta, por sua vez, já herdara da avó. Em particular, aentrada no mercado de trabalho é uma componente de tal forma estru-turante da identidade que a entrevistada nem sequer se imagina sem exer-cer uma profissão.

Isto só para ter uma ideia, na minha família da parte da minha mãe, mesmoa geração anterior à dela já exercia uma profissão. Portanto, as mulheres da fa-mília da minha mãe, da geração da minha avó foram enfermeiras, três delas,e só uma, que tinha um problema de saúde, é que não exercia uma profissão.A ideia que eu tenho daquilo que me lembro era as mulheres trabalharem.Portanto, o «ficar em casa» só se eu fosse tonta ou doente; era uma coisa queestava completamente fora do meu horizonte e do meu imaginário.

A este legado familiar – uma identidade estruturada através do exer-cício de uma actividade remunerada – acrescem fortes aspirações de car-reira que foram ganhando relevo ao longo de uma trajectória profissionalinicialmente caracterizada pelo questionamento em torno de uma voca-ção para o percurso académico. Com efeito, a carreira de Filomena noensino superior não teve início logo após concluir a licenciatura. A en-trevistada começou por leccionar numa escola secundária, mas confessater-se «fartado» dessa actividade como docente, que então trocou pelacaixa de um banco. O início da sua vida profissional coincidiu com ocasamento. Filomena casou-se com vinte e cinco anos de idade, logoapós terminar a licenciatura, e ao fim de oito anos de namoro com Fre-derico, que conheceu na viagem de finalistas do liceu. Uma origem pri-vilegiada no que respeita às qualificações dos pais – filho de uma tradu-tora e de um topógrafo – não impediu este homem, dois anos mais velhoque ela, de desistir da licenciatura em Medicina após terem casado. A entrevistada, contudo, refere-se à própria relação conjugal como ala-vanca fundamental para ambos, seja no que respeita ao encontro das vo-cações profissionais, seja no que se refere ao desenvolvimento das res-pectivas aspirações de carreira. De facto, da mesma forma que elaabandonou a docência no ensino secundário, também Frederico «desistiu

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de estudar Medicina» para começar a trabalhar em empresas como assa-lariado sem formação superior. Filomena confessa que esta desistênciado marido também explica a sua transição profissional para o sector dabanca, pois procurava então obter «mais segurança económica»: «Eu sódeixei o ensino e entrei na banca depois de ele ter desistido de Medicina.»Em suma, o questionamento da própria vocação profissional do homemcontribui para uma primeira transição profissional desta mulher, que«tinha organizado a [...] carreira [de docente do ensino secundário] nopressuposto que ele ia ser colocado [como médico] em vários sítios, nochamado serviço à periferia».

A dinâmica entre os percursos profissionais de Filomena e Fredericoé ilustrativa do peso que o presente – ou seja, o momento da decisãodeste homem em abandonar a licenciatura, bem como as mudanças navida de ambos que tal decisão acarretou – assume na activação de «dis-posições latentes» (Lahire 2003 [1998]; 2005), neste caso, na activaçãodas disposições ascéticas necessárias à construção de uma carreira profis-sional. Com efeito, reconhecendo posteriormente a ausência de vocaçãopara trabalhar num banco, Filomena decidiu inscrever-se num mestrado,confessando ter sido sobretudo movida pela curiosidade, sem portantoter no seu horizonte a construção de uma carreira académica.

O mestrado – que não acabei, porque nasceu o miúdo mais velho – sur-giu porque eu já estava farta: qualquer trabalho de funções burocráticas éuma coisa chata. Era mais para ir arejar ao fim da tarde, porque eu saía àsquatro e meia, tinha um horário que me permitia ir até lá e era uma formade manter algum contacto com a Geografia e de ir evoluindo. Não tinha ne-nhum objectivo muito particular, era mais ver o que era um mestrado... Nãomelhorava a minha carreira por causa disso, mas era interessante.

O primeiro filho do casal chegou quando Frederico já trabalhavacomo caixa num banco. Insatisfeito com a experiência anterior em em-presas, Frederico agarrou a oportunidade de um emprego que não sóveio permitir ao casal usufruir de um conjunto de regalias associadas àparentalidade, como também constituiu uma experiência decisiva na for-mação das aspirações de carreira deste homem. Frederico apercebeu-sedesde logo da necessidade de obter uma licenciatura «para subir nobanco», tendo regressado à universidade, mas desta vez para frequentaruma licenciatura em Gestão, que só terminaria após o nascimento dofilho mais novo do casal. Filomena orgulha-se de Frederico ter aceite esse«desafio», sublinhando que hoje o marido se destaca claramente dos co-legas de trabalho que não fizeram a mesma aposta.

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O meu marido era funcionário de um banco com o que era correspon-dente ao sétimo ano, e depois de estar a trabalhar no banco e de ver que,para subir no banco, precisava de ser licenciado, foi então que decidiu tirarum curso de acordo com aquilo que ele fazia no banco. Ele disponibilizou--se a ir estudar outra vez, mas só acabou o curso de Gestão, tinha já trinta eseis, trinta e sete. A iniciativa partiu só dele, porque ele é que viu que pre-cisava disso para alcançar uma melhor posição no banco. Aliás, eu pensoque foi dito a ele e aos outros com quem ele trabalha expressamente que senão se licenciassem não podiam subir a partir de determinado escalão. Por-tanto, houve uns que aceitaram, e outros não. E, neste momento, nota-se adiferença entre quem aceitou e quem não aceitou esse desafio.

Porém, ainda que ambas as carreiras profissionais se enquadrem notipo de «carreira organizacional» (Handy 1994), as expectativas de pro-moção de Frederico nascem da confrontação directa com os requisitosexigidos para ascender na hierarquia da organização onde trabalha, en-quanto as aspirações de Filomena resultam de uma autodescoberta dassuas capacidades para fazer uma carreira académica. Com efeito, a en-trevistada recorda que a frequência do mestrado despertou as suas aspi-rações de carreira, confessando que o percurso académico não era, atéentão, o seu «objectivo de vida, porque achava que havia alunos melhoresdo que eu, achava que era uma coisa escolhida». A frequência do mes-trado revelou-se então decisiva, pois permitiu-lhe questionar e ultrapassaras suas inseguranças intelectuais. Designadamente, a «comparação comas capacidades» de uma colega foi a pedra-de-toque para que adquirisseconfiança e enveredasse pela carreira académica.

Acabei por optar concorrer à carreira universitária porque tinha uma co-lega nesse primeiro mestrado que eu achava que era hiperestúpida e era as-sistente e depois eu a conversar com o meu marido dizia: «se aquela é assis-tente e é estúpida, eu que até sou menos estúpida que ela também posso ir».Portanto, foi nessa comparação com as capacidades da minha colega que euabri a perspectiva de entrar para ir dar aulas numa universidade. E depois dejá lá estar dentro, uma pessoa faz a carreira que tem que fazer: anda-se paraa frente. [...] Agora sinto-me ainda mais motivada. Em termos de trabalhohá pelo menos uma agregação a fazer, pelo menos chegar a professora asso-ciada. Pronto, isso é a carreira, não é mais nem menos, é aquilo que tem queser, temos que andar para a frente e não ficar para trás.

O desenvolvimento desta aspiração de carreira surgiu, enfim, numcontexto tão favorável à maternidade quanto a uma mudança de profis-são. Na verdade, Filomena sublinha que as condições «associadas» à pro-

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fissão do marido não só contribuíram na decisão de avançar para a pri-meira gravidez como também lhe permitiram estar novamente «dispo-nível para mudar de profissão». A entrevistada reconhece, de resto, nãoter tido grande dificuldade em ser colocada como assistente estagiária nafaculdade onde hoje é docente: «Como tinha feito uma parte do mes-trado e ainda não havia mestrados [...], quando concorri à faculdade, fi-quei à frente das outras pessoas, que eram só licenciadas.» Era já assistentena faculdade quando, em lugar de realizar as provas pedagógicas, decidiuentão frequentar outro mestrado, que desta vez terminaria. Entre a con-clusão do mestrado e o doutoramento, o casal decidiu avançar para umsegundo filho, oito anos após a primeira gravidez de Filomena. Este ca-lendário proporcionaria, mais tarde, uma maior disponibilidade para odoutoramento. Depois de se doutorar, foi «andando conforme os prazosda faculdade», faltando-lhe à data da entrevista fazer as provas de agre-gação para ascender ao estatuto de professora associada. É de sublinharque quer o seu percurso profissional, quer a consolidação das suas aspi-rações de carreira são indissociáveis não apenas da estabilidade profissio-nal de Frederico, mas, de igual modo, de uma relação que, de acordocom Filomena, assenta na compreensão mútua, e no «apoio que damosum ao outro». Ainda que o seu horário de trabalho seja mais difícil decontabilizar, sublinha que as pesadas cargas horárias de ambos – cercade dez horas diárias – não têm implicações negativas na vida familiar.

A compreensão de Frederico alarga-se, designadamente, à própria expe-riência de «discriminação» que marcou o próprio percurso académico de Fi-lomena, experiência essa que afecta a satisfação desta mulher no local de tra-balho. A «sintonia» no casal assenta, neste caso, na partilha da «compreensãode uma desigualdade» entre os sexos. Sensível à discriminação sexual de que Filomena foi alvo, Frederico reconhece o que, para ela, são «factos rela-tivamente óbvios». Não é, obviamente, sem emoção que a entrevistada relata o confronto com a discriminação sexual no próprio local de trabalho.

O meu trabalho lá na escola podia ser mais agradável se não fosse a ques-tão dessa discriminação que se faz para as mulheres que fazem doutoramen-tos. [...] Estou convencida de que ao nível da escola, os meus colegas homenssão mais apaparicados. Não lhe sei dizer exactamente de que maneira, mastenho essa sensação. No primeiro ano que pedi dispensa de serviço... pensoque todos os homens tiveram dispensa e que as mulheres não tiveram. É melhor não entrar muito por aí, porque é uma situação muito desagradávele que, a mim, me irrita particularmente. Mas é um facto que a pessoa temperfeitamente a noção de que é a própria escola que, de uma forma sub-rep-tícia, dá mais apoio ao homem do que à mulher na carreira. Não me parece

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que há um tratamento igual. [...] Em termos dos aspectos legais ligados aodoutoramento, fizeram o que puderam para me dificultar a vida, tentaramultrapassar os prazos todos. [...] Há um decreto-lei que só foi utilizado pelaprimeira vez por uma colega minha, também mulher, que diz que a escola,se durante oito anos não nos dá a dispensa, terá que nos dar a dispensa nostrês anos seguintes, e isso é invocado pela primeira vez por uma colegaminha, três anos antes de eu entrar em dispensa, e que eu tive que invocartambém. Enquanto que aos meus colegas homens foi-lhes dado sempre adispensa dentro desses oito anos. Portanto, eu manifestamente fui prejudi-cada em três anos pela escola porque só me deram a dispensa de acordo comum decreto-lei que eles procuraram. Foi necessário o sindicato intervir paraeles cumprirem! [...] O meu marido reconhece isso, diz que é verdade... Elepróprio reconhece, porque isto são factos relativamente óbvios. A nossa sin-tonia passa também pela noção de igualdade, os direitos... a compreensãode uma desigualdade... Se começarmos a olhar para um leque de histórias,a gente vê que os problemas, por acaso, são sempre com mulheres.

Já Maria, investigadora científica e, também ela, docente do ensinosuperior, em lugar de destacar propriamente a realização que retira doelevado estatuto resultante do empenho na carreira, tal como faz Filo-mena, sublinha que «a realização profissional está no prazer intelectual»,e que este «prazer intelectual está em a pessoa construir coisas». Esta exal-tação da realização que retira do «trabalho de investigação» não significaque menospreze as suas fortes aspirações de carreira – «quando uma pessoaingressa numa carreira universitária, obviamente quer repercussão» –, nemtão-pouco o reconhecimento que o estatuto entretanto adquirido repre-senta. A exaltação da realização que retira da investigação é, contudo,um sintoma da tensão que, pelo contrário, associa quer à gestão das suasfunções de direcção no laboratório onde exerce actividade como inves-tigadora – que, crescentemente, a sobrecarregam –, quer à coordenaçãodo trabalho científico. Maria confessa preferir os «anos sabáticos», poisé nesses períodos que consegue dedicar-se convenientemente à investi-gação. À difícil articulação entre a investigação científica e as funções dedirecção ou de administração acresce ainda a docência, que a entrevis-tada, não obstante, valoriza pela abertura que proporciona a alguém deoutra forma «circunscrita» ao trabalho no laboratório.

A pessoa está cada vez mais chefe e é uma chatice, porque... de facto, eugosto mesmo do trabalho de investigação e agora muito é comido por causada administração... Por exemplo, eu sinto-me muito melhor nos anos sabá-ticos, de facto, porque vejo que eu consigo dar seguimento à tarefa mesmode investigação. Agora, a minha tarefa de investigação está no prazer inte-

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lectual, como é óbvio. Portanto a realização profissional está no prazer inte-lectual. [...] Se eu tenho muita coisa ligada administrativamente não tenhotempo para o desenvolvimento das coisas. Obviamente mantenho o prazerintelectual, porque tenho que seguir o trabalho de doutoramento dos jovenstodos do grupo e, nesse sentido, a pessoa a discutir com eles faz o seu de-senvolvimento intelectual e acompanha e isso tudo. E disso gosto. Mas euacho que a minha realização máxima era eu manter o meu trabalho própriode investigação. [...] Apesar de eu ter dado o aspecto negativo administrativo,sempre a pessoa vê que é uma coisa positiva, não é? É porque a pessoa temqualidades para chegar e consegue orientar um grupo e etc. Isso a pessoasente-se satisfeita, sem dúvida.

Ao invés de Filomena, cuja aspiração surgiu tardiamente com a fre-quência de um mestrado, as fortes aspirações de carreira acompanharam«sempre» Maria, filha de uma licenciada em Medicina que não chegou aexercer profissão e de um médico para quem «a mulher tem que estar emcasa». Com efeito, Maria herdou dos pais a forte aposta nos estudos, maso seu «espírito independente» e uma consciência da condição femininasubordinada ao homem no próprio seio da família levou-a a romper comum legado familiar «muito conservador» e ter sempre presente a autonomiae a realização que o exercício de uma profissão proporciona. Esta preo -cupação e a paixão por uma actividade profissional muito exigente emqualificações convergem na forte aspiração de uma carreira que, com efeito,a entrevistada viria a concretizar, ainda que não sem percalços iniciais.Com efeito, após terminar a licenciatura, a «crise do 25 de Abril» empur-rou-a para a docência no ensino secundário: «as faculdades estavam todasfechadas, não havia vagas». O desvio não planeado do início de uma car-reira académica resumiu-se, contudo, apenas ao período de dois anos, des-vio esse que ainda assim lhe proporcionou um «estágio pedagógico». Já nainstituição de ensino superior onde ainda hoje é docente, foi o própriocontexto universitário a funcionar como incentivo à investigação científica.No entanto, sublinha a importância de ter conhecido Mário precisamenteno início da sua carreira académica. Foi, tal como já observámos, nessecontexto profissional que se conheceram, tendo namorado apenas ano emeio. Com a mesma idade e formação académica que Maria, Mário nãosó já trabalhava no instituto no qual ela acabava de ser admitida, como«estava ligado a outro instituto de investigação», tendo portanto ele sidodecisivo para a sua integração no próprio contexto social da investigação.

Eu sempre quis ligar-me ao laboratório, à investigação e isso tudo.Nunca me tinha visto como professora do ensino secundário. Com a crisedo 25 de Abril não havia outro remédio. Portanto, foi o primeiro ano e

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assim que me vi lá aproveitei para fazer o estágio pedagógico e profissiona-lizei-me no ensino secundário. Entretanto, assim que o instituto abriu vagasconcorri. Portanto, foi dois anos depois, e entrei. A pessoa, obviamente es-tando ligada à universidade tem tempo e é, digamos, incentivada a ter umtrabalho de investigação científica. Nesse sentido começámos a fazer essetipo de trabalho, também por causa do meu marido comecei a ter um tra-balho de investigação, porque ele na altura estava ligado a outro institutode investigação. [...] Portanto, ele, estando lá, apresentou-me às pessoas, aosfísicos que lá trabalhavam e, portanto, também comecei a ter iniciação dainvestigação lá.

O percurso académico de Maria não pode, portanto, ser dissociadodo de Mário, sobretudo se recordarmos que os dois «trabalham emequipa» desde que se conheceram. O único filho do casal nasceu cercade um ano após a entrevistada ter defendido a tese de doutoramento,tinha então Maria trinta e quatro anos de idade. Perante o empenho naactividade profissional até engravidar, é compreensível a «dificuldade»que sentiu por «ter que dividir ser professora e manter a investigação eser mãe». Tal como Mário, Maria entregou-se totalmente à investigaçãodurante os vários anos que ambos dedicaram à pós-graduação fora dopaís. Os dois terminaram o doutoramento quase em simultâneo. Entre-tanto, apesar das dificuldades que sentiu com a chegada do único filhodo casal, a entrevistada não deixou de progredir na carreira lado a ladocom o marido, referindo, porém, ter reduzido bastante a sua disponibi-lidade para a investigação logo após ser mãe. Maria e Mário juntaram-sea outros colegas na formação de um laboratório associado à instituiçãoonde exercem a docência. Desde então, têm horários de trabalho muitosemelhantes, partilhando inclusive o carro na deslocação para o trabalhotrês dos cinco dias da semana. Como veremos mais adiante, é Mariaquem gere a logística da casa, executando ainda antes de sair de casa parao trabalho as tarefas que não delega na empregada: «como chego tarde,as pequenas coisas que tenho que fazer em casa e como estou cansadaprefiro fazer de manhã». Apesar desta divisão do trabalho doméstico, asua carreira académica não deixou de progredir paralelamente à de Mário,que, de resto, não alcançou ainda – ao contrário de Maria –, o estatutode professor associado. A entrevistada, porém, defende que o marido«ficou fora [do primeiro concurso] porque a selecção foi péssima», daíresultando uma discrepância de estatutos na universidade que se alargaao laboratório onde trabalham em equipa, discrepância essa que, talcomo Maria insiste em esclarecer, é sobretudo formal.

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A partir de [19]80 comecei o doutoramento e estive cinco anos emFrança. O meu marido juntou-se no ano seguinte também, com bolsa, parafazer o doutoramento. [...] Eu, no Outono de [19]85 já tive que vir dar aulas,porque, como éramos assistentes, tivemos que pedir dispensa de serviço do-cente e era um período limitado. Portanto, concentrei as aulas e, depois, vol-tei para França e aí, como queria, voltei para lá. Foi nesse ano que escrevi atese. [...] Eu e o Mário concluímos o doutoramento praticamente ao mesmotempo. Portanto, eu defendi a tese em Junho e ele defendeu três meses de-pois. [...] Os nossos percursos são semelhantes, se bem que quando houveo primeiro concurso do instituto para professor associado, quem entrou fuieu. Quer dizer, ele ficou fora porque a selecção foi péssima, foi uma coisaincrível! A partir daí, eu passei a ter mais categoria do que ele, porque entre-tanto os quadros não abrem. Portanto, é uma dificuldade muito grande. Elehoje ainda é professor auxiliar. Portanto, aí eu fiquei associada e ele estácomo auxiliar. E aqui, no laboratório, também. Aqui, quem assume, nopapel, as funções de chefia dos projectos sou eu. Se bem que obviamentenós trabalhamos em equipa. Portanto, o Mário participa também nas activi-dades administrativas e em tudo. Quando nós temos reuniões de chefes deprojecto, ele está incluído. Portanto, aí é igual.

Funcionários numa repartição do Ministério das Finanças, os pais deSusana não possuíam a formação superior do de Maria. Ambos não estu-daram para além do ensino secundário, porém, enquanto a mãe de Susanasempre trabalhou no atendimento ao balcão, o pai tinha ascendido a chefede repartição. A entrevistada, por sua vez, frequentou a universidade, em-bora confesse ter «arrastado» o curso – Engenharia Civil –, que só viria aconcluir com vinte e sete anos de idade. Fazia mais de três anos que estavacasada com Paulo quando o seu único filho nasceu, tinha Susana vinte eseis anos de idade. Com apenas um ano de diferença, ela e o marido co-nheceram-se no contexto universitário de Évora. Frequentavam então amesma licenciatura e namoraram durante três anos e meio, casando-sepouco depois de conseguirem transferência para Lisboa. Entretanto, Pauloaceitou uma proposta de emprego num banco enquanto ainda frequentavaa licenciatura. Menos escolarizados que os pais de Susana, os pais de Paulonão estudaram para além da quarta classe, retirando os seus rendimentosda exploração de uma mercearia. A diferença de origens sociais no casalconsubstanciou-se desde logo na possibilidade de a entrevistada, já casadae com um filho, contar com a ajuda financeira dos pais para terminar a li-cenciatura, sem assim nunca ter tido a necessidade de «interromper» os es-tudos para exercer uma actividade económica. O apoio dos pais de Susanaalarga-se ainda, e talvez sobretudo, à «ajuda grande» que representou aoferta de uma casa quando casou.

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Eu só acabei um ano, um ano e tal depois de o meu filho nascer. Por-tanto, foi um curso arrastado. Nunca interrompi completamente, ia fazendoumas cadeiras, mas assim devagarinho, bastante devagar... No início do ca-samento, tenho que reconhecer que tive uma ajuda grande dos meus pais...Não era uma mesada, eu não tinha nenhuma mesada, mas na altura em queeu casei... houve uma ajuda grande. Para já a casa tinha sido oferecida poreles. Portanto, logo aí... era uma ajuda óptima, era um contributo bom, nãoé? Depois havia sempre o almoçar lá em casa, jantar lá em casa, quando iampara nossa casa levavam sempre qualquer coisa.

Enquanto Susana pôde dedicar-se à maternidade e aos estudos semexercer uma actividade económica, Paulo, «desmotivado», «desistiu» dalicenciatura com apenas o terceiro ano concluído, pois a disponibilidadepara estudar foi absorvida pelo seu emprego no banco. Ao contrário,porém, de casos como o de Frederico (marido de Filomena), cuja ascen-são na hierarquia organizacional exige a aposta numa formação superior,Paulo não se deparou com tais requisitos para realizar as suas aspiraçõesprofissionais, tendo sido a própria entidade empregadora a providenciara formação necessária à progressão na carreira. Susana sublinha que aoportunidade surgiu dos fortes incentivos para subir na hierarquia deuma organização ainda recente. Com efeito, Paulo conta hoje com di-versas pessoas a seu cargo, posicionando-se num patamar da carreira quea entrevistada – directora comercial numa empresa privada – considera«equivalente» ao seu.

Ele fez três anos do curso, não fez mais que isso. Surgiu uma oportuni-dade de emprego num banco e ele acabou por aceitar. O que acontecia éque, depois, ele ficava tão ocupado no banco que realmente o tempo dispo-nível era muito pouco para estudar. Portanto, foi por isso que ele desistiu.Desmotivou-se... Ele, apesar de não ter acabado o curso dele, foi trabalharpara o banco na altura em que eles estavam praticamente a começar e, por-tanto, as pessoas eram muito motivadas para subirem na carreira, e foi issoque aconteceu com ele. Ele tem vindo a subir. Ele já entrou no patamarmédio. Neste momento, o cargo que o Paulo ocupa é praticamente equiva-lente àquilo que eu recebo aqui na empresa também, falando de valores,apesar de não ter acabado o curso. Hoje tem umas doze ou catorze pessoasa cargo. É um balcão grande, portanto, tem muita gente.

Susana só começou então a trabalhar com vinte e sete anos de idade,quando concluiu a licenciatura. A entrada no mercado de trabalho nãorepresentou, contudo, o início da sua carreira como engenheira, tendo,na verdade, começado por leccionar Matemática no ensino secundário

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durante dois anos. Esclarece que «dar aulas foi para não estar parada»,sem que, no entanto, tenha propriamente «procurado» oportunidadespara exercer a profissão para a qual se formou e com a qual sempre se«identificou. Ao fim de dois anos surgiu a oportunidade de trabalhar naempresa onde hoje exerce funções como directora comercial. Congratu-lando-se por ter agarrado essa oportunidade, sente-se realizada e faz umbalanço muito positivo da sua carreira.

Na altura, tinha umas colegas que tinham acabado também e tinhamcomeçado a dar aulas. E, portanto, eu achei que podia começar também porali. E, depois, quando surgiu a hipótese de emprego, mudei imediatamente...Só depois é que surgiu, por intermédio de uma pessoa conhecida que tra -balhava para uma empresa e, então, mudei. A partir daí estive sempre a traba-lhar em Engenharia Civil. Quer dizer, a partir do momento em que a pessoatira um curso de Engenharia Civil é para trabalhar no ramo, não é? Eu sem-pre me identifiquei bastante com Engenharia Civil. Hoje, ao fim de dozeanos de carreira, acho que foi bem escolhido, acho que escolheria exacta-mente o mesmo, sinto-me bastante realizada. Acho que estou naquilo quegostava de fazer.

O seu ritmo de trabalho passou então a equiparar-se ao de Paulo. Umacarga horária de dez horas diárias e as crescentes exigências relacionadascom ambas as carreiras profissionais estão na origem do adiamento deuma segunda gravidez. No caso de Susana, o pesado horário de trabalhoresulta, por um lado, da prioridade que, perante as oportunidades de subirna hierarquia da empresa, passou a atribuir às suas aspirações de carreira,ainda que essa prioridade não tenha implicado a total relegação dos seusprojectos familiares para segundo plano. Na verdade, o bem-estar e a rea-lização com a actividade profissional não deixam de conviver com o sen-timento de que lhe escapa o tempo – durante a semana absorvido pelasua actividade profissional e, mais recentemente, pela frequência de umapós-graduação – necessário para estar com a família e consigo própria. Sea família ainda é ressarcida nos fins-de-semana, já o mesmo não pode dizerdo tempo reservado para si. Pese embora considere «mais importante estarcom eles do que ir fazer uma hora de ginástica», não deixa de ser surpreen-dida por um sentimento ambivalente de descompensação pessoal.

Aqui o ritmo de trabalho que eu tenho é terrível! A minha hora de che-gada aqui ao escritório é entre as nove e as nove e meia... e nunca saio antesdas oito horas, o que é muito! Depois tenho uma hora e tal para o almoço,depende se tenho que fazer alguma coisa ou não... Acho que nunca quis

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ficar para trás e, portanto, obriguei-me um bocadinho a este horário. Se medisser «custa-lhe ter este horário?», não me custa nada, porque eu acho quejá cheguei a uma fase em que estou tão embrenhada no trabalho que nãome custa e gosto de fazer aquilo que estou a fazer e das pessoas com quemtrabalho e, portanto, não me custa. Agora, sou capaz de ir para casa e pensar«devia ter marcado uma consulta, mas esqueci-me; devia ter ido à lavandariae, afinal, só vou amanhã». É claro que há esta parte que eu sinto que é pre-judicada, porque estou aqui a trabalhar. Mas o que é certo é que eu tenhodias em que estou aqui a trabalhar e nem me lembro, depois, do que tenhoque fazer. Só mesmo quando vou para casa vejo que me esqueci de deter-minadas situações, e aí, então, é que acho que preciso de mais tempo. [...]Eu ainda estou a fazer agora uma pós-graduação em Gestão para executivos...Funciona às sextas-feiras à tarde e aos sábados de manhã. Portanto, está aver, eu tenho que tirar meio dia da empresa e meio dia da família... Achoque me falta essencialmente tempo para mim, gostava muito de ter tempopara fazer um bocado de ginástica, para ir mais vezes ao cabeleireiro, para irmais vezes às compras, enfim, para estas coisas... É isso que me tem custado.O bocadinho que eu tenho para mim são realmente as minhas horas de al-moço. Às vezes, até almoço sozinha.

Por outro lado, o seu pesado horário laboral deve-se ao facto de estarinserida num contexto profissional com uma cultura organizacional pró-pria. Sendo reconhecido que as actividades relacionadas com a engenha-ria são ainda sobretudo exercidas por homens (Bagilhole et al. 2000), éentão indiscutível que a prevalência do princípio de entrega incondicio-nal à empresa não contempla os constrangimentos daqueles – pornorma, as mulheres – sobre quem recai a maior fatia do trabalho domés-tico. Susana não deixa, pois, de constituir um exemplo da desigualdadeentre os sexos no que toca aos efeitos deste tipo de exigência implantadaem locais de trabalho onde a presença feminina constitui, ainda, umaexcepção. A este propósito, a entrevistada recorda a mágoa que guardoudos comentários de colegas que, em jeito de «brincadeira», não deixaramde reparar que só ela saía mais cedo para ir buscar o filho ao colégio.

Eu noto que é uma empresa onde as pessoas estão, porque estão mesmoa trabalhar, não estão aqui só para passar o seu tempo. [...] É assim, isto éuma empresa onde as pessoas não têm um horário, têm mais ou menos paraentrar, mas para sair não têm. Quer dizer, desde que eu consiga fazer o meutrabalho, mas o que acontece é que eu tenho sempre muitos assuntos paratratar e, portanto, eles nunca ficam... Não há dia nenhum... porque o traba-lho vai-se sempre acumulando... nunca se chega ao fundo do cesto, comoeu costumo dizer. [...] Eu durante muito tempo fui das únicas, pelo menos

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como técnica, fui a única mulher e, portanto, isso obrigava-me um bocadi-nho... Isto para não ficar atrás, não é? Se os meus colegas tinham aquele ho-rário eu também ia tentar ter. Mas já saí daqui, não digo a chorar, mas comlágrimas nos olhos, porque havia um comentário que me ofendia imenso,que era eu sair... Portanto, o meu filho esteve durante muito tempo num co-légio e eu tinha que o ir buscar até às sete horas... e ouvia comentários decolegas tipo «Já vai sair?», «Ainda é muito cedo!»... E isso tinha dias que memagoava muito. O meu marido nunca deve ter ouvido um comentário des-ses, e isso ofendia-me muito... Até acredito que os colegas que o diziam nãoo faziam com alguma intenção: até era uma brincadeira!

Técnica de relações públicas num banco, Sara, por sua vez, cresceu nocampo, numa família «verdadeiramente» católica de grandes proprietáriosagrícolas. Com quarenta e seis anos de idade, recorda a infância feliz numcontexto familiar onde a mãe «sempre achou que nós devíamos ajudar afazer as coisas», pelo que todos – «até o meu pai» – colaboravam no tra-balho doméstico. Na realidade, a progenitora não se limitava à esfera do-méstica, intervindo sempre que necessário na própria gestão da lavoura,como de resto é prática observada junto das «famílias no campo» (Wall1998). Sara tem seis irmãos, e recorda que, se «nas famílias grandes, os ir-mãos mais velhos têm uma autoridade próxima da autoridade dos pais»,também ela não escapou a essa regra. Se a mãe «não abdicava do seupapel», a verdade é que a delegação parcial do papel parental nos filhosmais velhos foi porventura um pouco mais longe do que é usual, tendoa segunda irmã mais velha assumido «formalmente» um papel central na«educação» de Sara até esta concluir a quarta classe: «No jardim de infân-cia, a minha educadora era a minha irmã; a minha professora primáriaera a minha irmã.» Uma vez que a irmã «leccionava habitualmente forado sítio onde nós morávamos», Sara acompanhava-a, tendo por isso vi-vido sob a sua tutela durante os quatro anos do ensino primário.

Nunca achei que a minha irmã fosse a minha mãe, portanto, a minhamãe foi sempre a minha mãe; a minha mãe manda sempre [risos]. Não ab-dicava do seu papel, mas nas famílias grandes os irmãos mais velhos têmuma autoridade [...] que nós não questionamos: eles tomam conta de nóscomo tomam os pais.

A delegação parental na irmã mais velha e a maioridade dos irmãoscontribuíram bastante para que a entrevistada adquirisse desde logo naadolescência um forte sentido de «responsabilidade», decisivo na autori-zação dos pais para frequentar um liceu em Lisboa: «Eu lembro-me

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quando tinha dezasseis, dezassete anos, tinha amigos rapazes que tinhamhoras para chegar a casa, era o normal, enquanto eu estipulava as minhaspróprias horas de chegar a casa, porque sabia que tinha aulas no dia se-guinte.» Os pais não lhe transmitiram apenas confiança, mas simultanea-mente um sentimento de «liberdade para sermos o que nós quisermos».Para este legado, Sara encontra explicação na projecção das próprias as-pirações dos pais nos filhos. Sublinha, enfim, que a «formação» ou o «di-nheiro» não são valores fundamentais para os seus pais, destacando, pelocontrário, orientações normativas – os «princípios» que os filhos devem«seguir» – que são, obviamente, indissociáveis da uma acentuada crençacatólica. Para enorme desalento da mãe, junto de quem o casamento as-sume «muita importância», Sara vive em união de facto com Sérgio, opai do seu filho, mas a entrevistada esclarece que são «recebidos em casa[dos seus pais] como se fôssemos casadíssimos».

Acho que os meus pais tinham a vantagem de não nos dar propriamente«tens que ser isto ou fazer isto». Quer dizer, é uma das vantagens de ser deuma família grande, em que os pais podem realizar as expectativas que te-nham através dos vários filhos e, portanto, nós não sentimos essa pressão decorresponder a expectativas. Tínhamos uma maior liberdade para sermos oque nós quisermos. Sempre senti que tinha essa liberdade. [...] Eu atribuomais às características dos pais que são mais importantes do que o resto. Elessão supercatólicos, mas verdadeiramente católicos, ou seja, não dão muitaimportância a uma pessoa que tem muito dinheiro ou pouco dinheiro, temmais formação ou menos formação. Não é exactamente por esse tipo de coi-sas que eles pautam a avaliação que fazem dos filhos. Quer dizer, estão muitomais satisfeitos com o filho que corresponda a isto e que siga estes mesmosprincípios.

Ainda nos primeiros anos do seu percurso profissional, já licenciada,Sara sentiu necessidade de apostar mais na sua formação académica, ins-crevendo-se numa pós-graduação, cujo estágio a levaria a conhecer Sér-gio, tinha então a entrevistada trinta e um anos de idade. A recuperaçãode uma longa relação de namoro, então recentemente desfeita, implicavacanalizar toda a concentração para o trabalho e, mais ainda, para a pós--graduação: «Naquele momento não estava interessada em ninguém,fosse quem fosse, estava muito mais interessada em viver a minha vida.» A «persistência», o «interesse», a «permanência», a «constância» de Sérgioforam, no entanto, qualidades que a surpreenderam. Seis anos maisvelho, casado e com um filho bebé, este homem, com uma origem socialurbana – filho de um mediador de seguros – trabalhava na empresa de

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edição onde Sara estagiava. Devido ao carácter extraconjugal da relaçãoem que se viu envolvida, a entrevistada evita falar dos primeiros anosque viveu com Sérgio. Desse período conturbado informa-nos apenasque o litígio com a ex-mulher e a idade do filho contribuíram para queSérgio só se divorciasse nove anos depois.

Quando conheceu Sara, Sérgio trabalhava como jornalista na empresaonde hoje ocupa o cargo de editor. A sua carreira contrasta com a da en-trevistada, na medida em que revela mais os traços do tipo de «carreiraorganizacional» (organizational career) que, segundo C. Handy (1994), temvindo a dar lugar, nos países ocidentais, à «carreira porta-fólio» (portfoliocareer). Já mais autónomo, o percurso profissional da entrevistada desen-volve-se mais à semelhança deste último tipo, ou seja, sem estar depen-dente da mobilidade na hierarquia de uma organização. De facto, Sarafoi mudando de emprego apenas consoante as suas aspirações, a sua for-mação e as oportunidades que lhe foram surgindo. Durante a licencia-tura, empregou-se temporariamente em diversas empresas para atenuara despesa dos pais com os seus estudos. Terminada a licenciatura, come-çou por trabalhar nos «serviços sociais» de um organismo estatal ondeacabou por ficar enquadrada. Concluída a pós-graduação, porém, optoupor «trabalhar na área da Comunicação», aceitando o convite que lhefoi dirigido, por intermédio da universidade, para ocupar o cargo de as-sessora num gabinete ministerial. Esta mudança envolveu um ritmo detrabalho muito mais acelerado. Tal como esclarece, «é estarmos num sítioonde as coisas acontecem, o que se faz pode mexer com o que vai acon-tecer». Ao fim de seis anos, porém, deixou o emprego para ter maior dis-ponibilidade para o seu filho, ainda bebé. Pretendia então atenuar o seu«ritmo de gabinete», mas não regressou, apesar de poder («eu era do qua-dro da Administração Pública»), ao seu anterior emprego em que tantose «realizava». Optou antes por «experimentar uma empresa» e o «ritmoempresarial». Uma vez que pretendia «continuar na área da Comunica-ção», aceitou o convite para trabalhar num banco, ocupando um cargoonde podia aplicar as competências adquiridas na pós-graduação.

Quando fiz a pós-graduação, já trabalhava. Aliás, já no meu curso de Ser-viço Social estava a trabalhar. Fiz assim. [...] Depois comecei por trabalharnos serviços sociais, onde era responsável por uma área que era o apoio so-cial, tinha pessoas a trabalhar comigo. E depois fiz o curso de pós-graduaçãode Ciências da Comunicação e houve um ministro que pediu uma pessoa àuniversidade e a universidade perguntou-me se eu queria, e eu disse que sim.Portanto, tive aquela experiência, trabalhei com o Governo. Depois o Go-verno seguinte convidou-me e o outro também me convidou e fiz esse per-

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curso. Portanto passei a trabalhar na área da Comunicação. Mas a formaçãono Serviço Social foi muito útil para a formação seguinte, porque a formacomo me relacionava com os jornalistas, a forma como me relacionava comos membros do gabinete, seguramente era muito diferente, atendendo à for-mação anterior que tinha. Foi uma vantagem! Digamos que é um caminho.[...] Também me realizava antes, durante o tempo do Serviço Social. Depoisquando terminou, eu voltei... mas depois de ter estado seis anos de fora tudoé diferente e eu não queria voltar ao Serviço Social, mas continuar na áreada Comunicação. Vim para o banco, porque queria continuar na Comuni-cação. Agora, para quem vem de um ritmo de um gabinete e entra numritmo empresarial a diferença é... Não tem qualquer comparação! Na activi-dade e de tudo! A vida institucional não é nada assim com grandes ritmos,as coisas passam-se doutra maneira.

O desejo de um abrandamento do ritmo de trabalho nos primeirosanos de vida do seu filho é, assim, justificado ora pela curiosidade de«experimentar novos ritmos», ora pelo desejo de evitar a indisponibili-dade de tempo para a vida familiar que o cargo no gabinete ministerialimplicava. Ainda assim, a sua actividade no banco não lhe trouxe apenasbenefícios. Por um lado, no plano da vida familiar, reconhece as «vanta-gens» de um horário de função pública. Por outro lado, confessa-se abor-recida com um emprego «muito mais monótono, menos preenchido» e,sobretudo, pouco enriquecedor a nível das competências e dos conheci-mentos. Por se sentir «um pouco a não aprender nada», Sara procurououtras fontes de estímulo intelectual, que acabou por encontrar na fre-quência de um mestrado em Psicologia, que lhe veio retirar, novamente,a «disponibilidade» para estar com o filho. Porém, a entrevistada confessaa necessidade dessa «realização» e desse stresse. A sua atitude demonstraclaramente o carácter unicamente provisório da prioridade então atri-buída aos cuidados com a criança. Com efeito, não demorou muito paraque procurasse satisfazer a sua «necessidade de estar mais activa». Subli-nha, contudo, que a inscrição num mestrado não tem como propósito«a expectativa de melhorar a minha posição», esclarecendo que «já estounuma fase em que sou convidada para uma coisa, já não estou em idadepara me candidatar».

Fiz os meus cursos a trabalhar, habituei-me sempre a fazer muita coisa,a ter desafios intelectuais, a ter desafios académicos. Em relação ao mestradoem Psicologia, eu quero é ir aprender! Não é só fazer coisas, é aprender, éestar dentro das matérias! [...] Durante o tempo em que fiz assessoria de im-prensa, não tinha tempo para pensar neste tipo de coisas, não é? Porque

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tinha uma actividade muito preenchida e que não termina no momento emque se vai para casa. Pode-se chegar a casa e ter que gerir uma coisa qualquer,ou ter que voltar ao gabinete de assessoria de imprensa. Aprendi muito emexercício e, quando vim para aqui... digamos que só isto para mim seriamuito pouco, mas isto permite-me ter outras coisas. [...] Eu reconheço mui-tas vantagens, até do ponto de vista do meu filho, eu saber que posso sair àhora x, que o posso acompanhar, posso marcar a consulta e não me acontececomo acontecia quando estava no gabinete, eu sentava-me na cadeira dodentista e ligavam-me a dizer «precisamos de si para decidir isto ainda demanhã, vamos aí buscá-la». Mas este trabalho é muito mais monótono,menos preenchido. Obriga a uma grande permanência e, portanto, começoa ter necessidade de mais coisas, não é? Daí o mestrado. Não tenho de todoa expectativa de melhorar a minha posição cá dentro, porque quando se temum determinado currículo e uma determinada idade e experiência, digamosque isso é mais determinante do que ter mais a habilitação x ou y... Tem aver com esta necessidade de estar mais activa. Eu preciso dessa realização...prefiro o stresse, prefiro fazer coisas e estar a aprender do que assim, não é?

Apesar desse curto interregno dedicado ao filho bebé, a estratégia car-reirista torna-se evidente no modo como Sara articula a vida profissionale a vida familiar que, obviamente, não se traduz num menosprezo dosignificado do desempenho da maternidade para a sua realização pessoal.Em jeito de balanço, observa que se «a realização [pessoal] é uma coisade conjunto [...], há fases em que obviamente a nossa realização tem quese transferir para outras áreas».

Eu acho que a realização não é só a profissão. Quer dizer, a realização éuma coisa de conjunto, e por isso é que numas fases da vida se investe maisnumas coisas do que noutras. Porque eu também me realizo muito com ou-tras coisas que faço. Realizo-me muito em ir buscar o meu filho ao futebol,sei lá... Porque os ritmos de crescimento das crianças também determinamuma data de coisas a esse nível, não é? Há fases em que eles precisam de nóse há fases em que eles não precisam de nós.

Marta representa um último exemplo da elaboração de uma estratégiacarreirista num contexto conjugal com trajectória homogâmica. Docente doensino secundário, esta entrevistada protagoniza, tal como o seu marido,contabilista, um percurso de ascensão social em relação aos pais, cuja es-colaridade não foi além do quinto ano do liceu. Marta sublinha que nãoestudou por «pressão» dos seus pais, mas porque «era extremamente exi-gente» consigo própria. Confidencia-nos que o seu desejo inicial era seguirMedicina, mas a supressão – após o 25 de Abril de 1974 – da «experiência»

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pedagógica realizada a nível nacional onde estava integrada, deixou-amuito menos preparada que os seus colegas para as disciplinas necessáriasao ingresso nessa licenciatura. Habituada a excelentes classificações, tro-cou o desejo de seguir Medicina pela já comprovada prestação em Letras.Recorda esta decisão com um sentimento ambivalente de auto-expiação– «foi uma estupidez, na altura» – e satisfação: «Hoje não me queixo,porque gosto do que estou a fazer.»

O curso que eu queria tirar era Medicina, estupidamente não fui... Nuncafoi por pressão dos meus pais, porque eles nunca fizeram qualquer pressão.Eu sempre tive, eu sempre busquei o perfeito e, para mim, uma nota quefosse abaixo de um catorze ou de um quinze era uma miséria. Portanto, euera extremamente exigente comigo própria. Só que, até se dar o 25 de Abril,eu estava integrada numa experiência a nível nacional que se chama mesmo«Experimental», em que eles escolhiam setenta e cinco alunos em cada ca-pital de distrito para a experiência e tinham que ser voluntários. [...] Quandose dá o 25 de Abril, tudo o que estava para trás foi considerado errado! Então,agarraram em nós, que não tínhamos livros, que não dávamos as mesmasdisciplinas – nada! – e deixaram-nos no sistema normal. [...] Resultado, eutinha que estudar quatro vezes mais que os outros, porque tudo era diferente.A única coisa que, de facto, não era diferente era, por exemplo, Português,Inglês, Francês... Resultado: as minhas notas altas vieram por aí abaixo... Eraimpossível! Então eu pura e simplesmente disse: «eu estas notas não quero,então eu desisto e vou para Letras», porque eu, aí, tinha grandes facilidadesnas Letras e as minhas notas já podiam subir um bocadinho... Aí os meuspais não me deviam ter deixado desistir, mas eles não me quiseram pressio-nar... Eu agora gosto, mas de facto não era para aqui que eu queria ir, nãoera professora que eu queria ser, mas acabei por ser, e hoje estou satisfeita.

Marta só veio viver para Lisboa já casada, depois de ter nascido o pri-meiro filho do casal. Após três anos de namoro, casou-se assim que, con-cluída a licenciatura, conseguiu colocação como docente do ensino se-cundário. Tinha então vinte e três anos de idade. Três anos após ocasamento, nasceu o primeiro filho do casal e, simultaneamente, a opor-tunidade de Bernardo vir trabalhar para Lisboa, tendo sido essa a razãoda mudança do casal para a capital. Se a alteração de residência não foiproblemática no que toca à actividade profissional de Sara, já a sua dis-ponibilidade se ressentiu devido à ausência da rede familiar de apoiocom que se habituara a contar na cidade natal. Não se estranha, pois, a«depressão» como forma de reagir a essa «mudança radical» para quem afamília, uma vez próxima, constitui uma verdadeira rede de entreajudalogística, material e emocional.

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Fiz a licenciatura em Évora. Eu casei em Évora, eu vivi em Évora, eu tiveo meu primeiro filho em Évora... Mudámos para Lisboa por questões de tra-balho, do trabalho dele. Eu, como professora, é fácil concorrer. A minhavida a partir do momento em que vim viver para cá foi uma mudança tre-menda na minha vida, porque eu estava habituada a viver numa cidade ondetinha os meus pais, as minhas irmãs, tinha toda a família, tinha tudo... E, derepente, vim viver para aqui completamente sozinha, sem ninguém, foi umamudança radical que eu digo que, se aguentei isso, aguento tudo.

Todavia, a reacção negativa à mudança para Lisboa não é explicadasimplesmente pela ausência súbita da rede familiar de apoio, mas tam-bém, e talvez sobretudo, pelos efeitos dessa ausência sobre a própria dis-ponibilidade profissional desta mulher, que se projecta muito para alémdas exigências relacionadas com a docência no ensino secundário. Dasfortes aspirações profissionais de Marta é desde logo sintomática a ex-pressão «eu sempre busquei o perfeito», que convoca para se referir aomodo como se empenha nos seus projectos profissionais que extravasamo exercício da docência. Definindo-se como alguém que está «sempre atrabalhar», ocupa sobretudo os fins-de-semana com os projectos peda-gógicos, sublinhando que são estes os seus momentos de trabalho maisintensos. O ritmo da sua actividade profissional explica, de certa forma,que o segundo filho tenha sido adiado, nascendo oito anos depois doprimeiro, quando Marta tinha trinta e cinco anos de idade. Confessa quea decisão foi sobretudo o resultado do incentivo das suas irmãs, que ti-nham acabado de engravidar. A sua actividade profissional era já muitointensa – «dentro de ser professora tento enveredar por vários projectos,por várias coisas que me agradem» –, uma vez que, para além das aulas,se dedicava todos os anos a vários projectos e, designadamente, à elabo-ração de um manual escolar. É nesta lógica que começa por participar,um ano após ter nascido o segundo filho do casal, num projecto peda-gógico que acabaria por ser galardoado por um organismo da Comuni-dade Europeia. Em suma, todas estas actividades em que sempre se temenvolvido são, no seu conjunto, elucidativas das suas elevadas aspiraçõesprofissionais, sendo óbvio que, nas suas diferentes vertentes, a profissãoassume um papel fundamental na realização pessoal. De tal forma que aprópria disponibilidade para a vida profissional não pode encontrar obs-táculos na vida familiar, com o risco de, paradoxalmente, comprometero desempenho do papel de mãe.

Eu comecei por enveredar por projectos em [19]95. Eu meti-me numnovo projecto a nível de desenvolvimento curricular, que até depois foi ga-

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lardoado pelo Conselho Europeu de Qualidade. Eram coisas completamentediferentes. Eu estava a trabalhar até às três da manhã, a fazer coisas para en-tregar às oito, e às oito e meia tinha que estar na sala de aula, a dar aulas.Mas, pronto, lá está, valeu a pena! Foi um desgaste físico tremendo, masvaleu a pena, porque fiz uma coisa de que gostava! [...] Faço também outrascoisas, estive num projecto europeu, agora estou de novo com o manual...Vou diversificando o mais que posso para não entrar na rotina. [...] Eu tentotirar partido, de maneira que dentro de ser professora tento enveredar porvários projectos, por várias coisas que me agradem... Eu acho que estou sem-pre a trabalhar, nunca estou aqui nos meus sofás sentada. Nos fins-de-se-mana, por exemplo, é quando eu trabalho mais, porque trabalho com aminha colega.

Neste sentido, o balanço que faz da sua carreira é muito positivo, peseembora os projectos adiados, como seja o mestrado, que ainda pensa vira frequentar. Em suma, a sua estratégia carreirista face à articulação entrea vida profissional e a vida familiar revela-nos uma mulher cuja «carreiraburocrática» de docente do ensino secundário está longe de preencheras ambições profissionais de alguém que, afinal, procura concretizá-lasapostando, paralelamente, numa «carreira porta-fólio» (Handy 1994).

Há situações em que tenho ido mais além do que estava a pensar. Mas háoutras coisas que ficaram para trás, por exemplo, o mestrado... tinha cá ospapéis, estava a preenchê-los, quando surgiu outra coisa e como era impossívelfazer as duas coisas tive que optar... Digamos que o mestrado, a única coisaque me pode vir a trazer é satisfação a nível pessoal, porque a nível profissio-nal apenas subo dois anos a nível da carreira. Quer dizer, subir dois anos nacarreira é muito bom, mas também não é nada, e eu não vou fazer um mes-trado apenas para subir dois anos na carreira. Quer dizer, não me passou issopela cabeça. O mestrado está protelado, porque estes projectos, neste mo-mento, estão em primeiro lugar. Mas acho que o vou fazer, não sei é quando...

A entrevistada confessa a dificuldade em contabilizar as horas de tra-balho semanais, mas alvitra que a carga horária se situe nas dez horas diá-rias, um horário pesado e, de resto, semelhante ao do marido. Tendo en-trado no mercado de trabalho ainda na adolescência, Bernardo deixou deestudar quando concluiu o bacharelato. Marta recorda que o marido«podia ter transitado para [a licenciatura em] Economia e só tinha quefazer o quarto e o quinto ano», e que chegou mesmo a «inscrever-se», masentretanto arranjou um emprego e acabou por desistir». Nos últimos anos,de resto, o ritmo de trabalho de Bernardo intensificou-se, tornando-se-lhe desde então «absolutamente impossível» apostar numa licenciatura.

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Ele foi para Évora, porque quando ele veio de África foi para uma resi-dência universitária em Évora e porque tinha uns amigos em Évora. Depoisquando os pais vieram, vieram para Setúbal, mas ele estava em Évora... Eledepois acabou por entrar para Contabilidade e depois deve ter gostado tam-bém, suponho eu, e ficou. Depois chegou a inscrever-se para uma transfe-rência para Economia, mas entretanto arranjou um emprego e acabou pordesistir. [...] Quando nos casámos, o Bernardo já estava neste ramo, traba-lhava numa empresa ligada a Contabilidade e Finanças, as áreas já eram estas,nunca mudou de área... O Bernardo não tem tempo para continuar a estu-dar, é absolutamente impossível, porque ele agora também faz consultoriae formação. Nem lhe traria alguma vantagem. Também não o estou a verassim interessado.

A maximização das apostas e a procura do «equilíbrio»

Um segundo tipo de estratégia de articulação trabalho-família que obser-vamos entre as entrevistadas com trajectórias homogâmicas assenta numprincípio de maximização dos seus esforços no sentido de encontrar umequilíbrio entre a ambição profissional e a disponibilidade para a vidafamiliar. Este tipo de estratégia tem na sua génese o mesmo princípio demaximização das apostas nos dois universos em que assenta a estratégiamaximalista concessora, observada nos casais com trajectórias de hipergamiaprogressiva, contudo, as mulheres com trajectórias homogâmicas não conce-dem precedência à carreira do marido.

Mãe de um rapaz e de uma rapariga, Mafalda constitui o primeiroexemplo de uma mulher que elabora uma estratégia maximalista num con-texto conjugal com este tipo de trajectória. Com quarenta anos de idade,esta entrevistada exerce advocacia no seu próprio consultório. Filha de umempresário licenciado em Economia e de uma dona de casa, é obviamenteproveniente de um meio social favorecido. Frequentou um colégio católicoe guarda memória de uma infância feliz. Tinha vinte e sete anos de idadequando casou com Miguel. Conheceu-o, tinha então vinte e dois anos deidade, numa discoteca que frequentava habitualmente com os amigos. Su-blinha que foi amor à primeira vista o sentimento súbito por Miguel. Afi-nal, foi o seu primeiro amor.

Eu era um bocado namoradeira, mas nunca tinha estado apaixonada e,de facto, a primeira paixão que eu tive na vida foi pelo meu marido e co-nheci-o na discoteca, tipo cupido. Ele entra na discoteca – é um homem bo-nito, fisicamente – eu olho para ele e viro-me para a minha melhor amigaque está ao meu lado e digo assim: «Inês, foi desta!» Nós não nos conhecía-mos, nem tínhamos amigos em comum!

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Três anos mais velho, Miguel era já assistente na faculdade, enquantoela ainda frequentava a licenciatura. Namoraram durante quatro anos emeio e durante cinco viveram casados sem filhos. O projecto de paren-talidade foi, simplesmente, sendo adiado pelo receio de que viesse per-turbar a felicidade encontrada numa vida conjugal sem filhos. No quetoca à vida profissional, Mafalda nunca se viu forçada a procurar trabalhoem escritórios de advogados, reconhecendo que desde sempre a anga-riação de «clientes», feita por via dos contactos do seu pai, nunca cons-tituiu um problema. Orgulha-se de poder prescindir de um «letreiro» naporta, pois esclarece que «os clientes gostam e trazem outros». De resto,não se trata de alguém que assuma ter uma forte aspiração de carreira,como acontece com as entrevistadas anteriores, reconhecendo mesmoalguma falta de «ambição».

O meu percurso profissional foi facilitado por ter um pai que me arran-jou logo clientes. Eu, durante o estágio já trabalhava, portanto já tinha osmeus clientes, mais na área de Solicitadoria. Portanto, fazia escrituras, regis-tos, essa área assim, e portanto facilitou-me o caminho o facto de estar ligadaao meu pai. Depois é um crescer... é uma bola de neve, não é? [...] Eu souuma pessoa relativamente... não sou muito ambiciosa. Acho que sou q. b.Sou uma pessoa que não me comparo com ninguém, nem estabilizo metasem termos profissionais. Vou vivendo o meu dia-a-dia, e faço o meu melhorno dia-a-dia. Se depois eu passasse – o que não me aconteceu – por uma si-tuação de impasse ou em que eu me questionasse, aí teria que estabelecermetas, mas como a minha evolução na minha carreira foi sempre positiva esempre a melhorar, eu nunca me questionei. Do seu auto-exame resulta uma avaliação positiva, em particular de-

vido às suas «características humanas», que constituem vantagens, «no-meadamente [em] questões familiares, de partilhas, de acordos». De resto,a expressão que utiliza – «acho que sou q. b.» – para se definir a propósitodo empenho na vida profissional e das aspirações de carreira convoca,obviamente, o princípio de equilíbrio na articulação trabalho-família tãoexaltado pelas mulheres com estratégias maximalistas. A preocupação coma disponibilidade para a família revela-se, desde logo, quando refere ofacto de acumular com a actividade profissional o apoio jurídico em re-gime de voluntariado e o cargo de deputada na assembleia do municípioonde reside.

Eu sou uma pessoa cujas características humanas, pessoais, não se en-quadram muito no papel de advogada, mas estas qualidades, depois, acabam

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por se repercutir em bons resultados em determinadas áreas profissionais,porque, repare, eu sou uma pessoa muito sensível, muito emotiva, muitopela conciliação. Muitas vezes o advogado tem um papel mais duro, maisfrontal, mais frio, distante, e eu com estas minhas características, emboranalgumas situações não sejam as melhores, noutros casos, acabam por darfruto... Sou uma pessoa que, muitas vezes, consigo a conciliação, o que ébom! [...] Eu agora sou deputada, também. Sou deputada na AssembleiaMunicipal e estou a dar apoio jurídico de uma forma voluntária, que meestá a saber muito bem, à Comissão de Protecção de Menores. Ofereci-me eestou lá um dia a fazer esse apoio. O trabalho como deputada na AssembleiaMunicipal é feito à noite. Esta actividade de facto está a mexer com a minhafamília, mas pouco, e ainda bem, porque senão eu tinha que ponderar e sair.

A assumida contenção da «ambição» profissional aplica-se assim igual-mente às suas actividades extraprofissionais. O receio de que a actividadeprofissional possa interferir com a vida familiar e conjugal está, efectiva-mente, muito presente no discurso da entrevistada, desde logo quandoafirma: «não quero muito mais, eu quero acima de tudo ter o tempo paraa família e não crescer de mais em termos profissionais e depois começara descuidar a parte familiar». Sem as vicissitudes inerentes às situaçõesdos seus colegas de profissão, nem tão-pouco as exigências de um cobi-çado cargo, que recusou, num escritório de renome, Mafalda admite quea sua situação profissional vai precisamente ao encontro de uma ambiçãomoderada no que respeita à carreira, bem como do desejo de conservar adisponibilidade para a vida familiar.

Tenho vindo sempre a melhorar na minha vida profissional, mas no seuritmo. [...] Eu estou no escritório do meu pai e, portanto, tenho todo oapoio de secretariado, de logística, tudo ligado e dado pelo meu pai, tenhoessa ajuda. É uma vantagem minha de eu estar aqui por minha conta, por-que eu é que faço o meu horário, estabeleço as minhas regras. Uma coisaera se eu estivesse ligada a uma sociedade de advogados ou uma firma, ondehá metas a atingir. Eu tenho essa liberdade que me permite fazer essa talfronteira: «A partir daqui, mais trabalho não, porque eu não quero estar atirar o tempo da família.» [...] Eu já não me adaptava. Olhe, eu fui convi-dada por duas colegas de curso, com quem eu me dou muito bem, parafazer uma sociedade com elas. Ainda vacilei, mas depois não fui... Masainda a semana passada tive uma reunião com uma familiar minha. Todasas pessoas da família vão para o escritório dela. Está a ver eu poder trabalharnum escritório que é assim quase o número um da advocacia aqui?! Eu tiveuma reunião com ela por questões familiares e onde ela me pergunta:«Então Mafalda e a tua advocacia», e não sei quê, «Não te estavas a ver assim

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num escritório destes?». E eu disse que não. Na altura, quando lhe disse atépensei: «esta gente deve pensar que sou louca». E ela diz-me «Mafalda, eucompreendo-a perfeitamente. Eu cheguei onde cheguei e fiz o que fiz àconta de não ser mãe, mulher, avó, tudo!». Eu até achei graça, porque elaentendeu-me perfeitamente.

Ao contrário das mulheres com estratégias maximalistas concessoras, quecedem precedência à carreira profissional do cônjuge, a disponibilidadepara a vida familiar que esta entrevistada impõe a si própria não deixatambém de ser reclamada ao marido. Mafalda considera que Miguel é,tal como ela, «profissionalmente realizadíssimo». Sem uma origem socialtão desafogada como a dela, Miguel, investigador científico e docenteuniversitário, também cresceu num contexto qualificado: a mãe era pro-fessora do ensino secundário e o pai contabilista assalariado. A entrevis-tada não poupa elogios ao marido no que respeita à sua competênciaprofissional.

Ele é um óptimo professor! Muito, muito metódico, muito cuidadoso,ele faz sebentas para os alunos! Bem, ele no trabalho é uma coisa especta -cular, é muito exigente com ele. Defeitos como profissional, não encontro.Ele é tão exigente!

Mafalda sublinha, sobretudo, o reconhecimento de que Miguel des-fruta no meio académico. No entanto, acusa-lhe a rigidez na aplicaçãoda sua «coerência» ao campo das relações, criticando-o por «leva[r] as re-gras até ao extremo». Exalta, então, o «papel do companheirismo ma-rido-mulher» para se referir ao facto de ela – «uma pessoa muito maiscondescendente, muito mais da paz, de fazer as pazes e de reconcilia -ção» – o ter «ajudado imenso». Ora, este «companheirismo» pressupõeuma disponibilidade para a família que esta mulher exige de si e do côn-juge. Esta exigência alicerça-se na ideia de que a própria coesão familiarestá dependente de regras para a preservação de determinados momentos,regras essas cujo incumprimento é dificilmente tolerado por Mafalda.Tendo ambos cargas horárias aproximadas – Miguel trabalha oito horaspor dia, mais uma hora do que Mafalda –, o sentimento de incumpri-mento de tais regras surge, concretamente, quando o marido leva traba-lho para casa para além de «situações esporádicas». Miguel aceita traba-lhar mais sem que haja, no entender de Mafalda, uma justificaçãoeconómica para tal. A entrevistada não esconde, a este respeito, o seudesapontamento.

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O meu marido está a entrar no esquema de fazer serões e eu estou pas-sada, porque se houve regra que eu estabeleci com ele, e ele agora está a vio-lar, era não haver trabalho em casa. Nós temos o nosso trabalho no escritórioque nos ocupa a maior parte da nossa vida e, portanto, o fim-de-semana ésagrado e a noite é sagrada para estar com a família. Eu não faço, não levo.[...] Ele está na faculdade até às seis, entra às nove e meia, dez, é oito horasno total. Às vezes ele leva para casa... Vamos lá a ver, ele também só faz issoquando tem relatórios para ler, testes a mais para ver... Mas ele agora abraçouuma outra actividade que é fazer traduções. Ele dava aulas noutro institutoe fazia-o num dia de semana, no horário de semana, e habituou-se a teraquele extra de dinheiro. Acabaram as aulas nesse instituto e ele tinha queter aquele extra de dinheiro. Nós criticámos amigos que, pelo dinheiro, perderam a qualidade de vida em termos de tempo, e ele por um pouco maisde dinheiro – um extra para mais viagens, sem impacto no nosso orçamen -to do dia-a-dia – acaba por estar a fazer um trabalho que acorda às seis damanhã!

Em suma, ao invés do que observámos nos casais com trajectórias dehipergamia progressiva, esta mulher elabora uma estratégia maximalista semconceder qualquer precedência à actividade profissional do homem, pro-curando, aliás, que o cônjuge partilhe e leve a cabo, tal como ela, o prin-cípio de equilíbrio entre a disponibilidade para a profissão e para a família.Desta orientação face à articulação trabalho-família são, enfim, suficien-temente elucidativas as palavras de Mafalda: «Eu não queria ter um ma-rido que fosse advogado, nem ele diz que gostaria de ter uma mulhercomo ele. É que há o risco de se trazer para casa muito mais os problemasdo trabalho.»

Adelaide e Alexandre constituem um segundo exemplo de casais comtrajectórias homogâmicas em que a mulher elabora uma estratégia maxima-lista na articulação trabalho-família. Com trinta e sete anos de idade, Ade-laide é mãe de um rapaz e de uma rapariga. Esta arquitecta trabalha hojenum organismo do Estado, mas o seu percurso profissional só recente-mente está ligado à arquitectura. Proveniente de uma família em que amãe – licenciada em Línguas Românicas e professora do ensino secun-dário – era muito mais escolarizada que o pai – pequeno comerciantecom o quinto ano do liceu – esta entrevistada começou por fazer umbacharelato em Enfermagem, com vinte e dois anos de idade. Não eraesta a área profissional que mais desejava, mas pretendia «ter poder eco-nómico e ser independente o mais rapidamente possível», não pelo de-sejo de sair de casa dos pais, mas por «uma questão de princípio». Apósa conclusão do bacharelato, começou por se empregar como enfermeira

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num hospital. O início da vida profissional foi assim marcado pela au-sência de um sentimento de vocação e, neste sentido, de quaisquer aspi-rações de carreira. Depressa, contudo, se apercebeu da necessidade deprocurar outro tipo de formação, numa área profissional onde pudesserealizar-se.

Mal terminei o curso, decidi logo que tinha que tirar outra coisa... Nãoera uma questão de estar desiludida, mas não era bem isso que eu queriafazer de facto. Eu queria Medicina, mas não entrei, entrei em Biologia navia de ensino, o que não me interessava. Portanto, depois optei por Enfer-magem para poder ter poder económico e ser independente o mais rapida-mente possível. Eram três anos e era uma coisa relativamente fácil de acabare de arranjar emprego...

Desiludida com a profissão de enfermeira – «era um trabalho muitodesgastante e frustrante, porque lida quase que diariamente com a mor -te» –, decidiu, então, frequentar em regime pós-laboral o curso de Arqui-tectura, depois de ter afastado as hipóteses de estudar Pintura ou Escul-tura, por considerar que «isso não dá dinheiro nenhum». Adelaideesclarece que a ideia de ingressar em Arquitectura prende-se como o seueterno fascínio por «coisas manuais». Esta opção implicou regressar aoensino secundário «para poder ter as cadeiras exigidas para ingressar naArquitectura». Para frequentar a licenciatura numa universidade privada,Adelaide não prescindiu assim da ajuda da sua tia materna, que «em ter-mos económicos sempre teve poder e sempre ajudou», sublinhando quefoi também ela quem a «ajudou» na aquisição da sua «primeira casa».

O primeiro sítio onde trabalhei apanha a época em que eu tenho quevoltar a trás para fazer o décimo, décimo primeiro e o décimo segundo, parapoder ter as cadeiras exigidas para ingressar na Arquitectura, em que façotudo num ano, não é? Portanto, nesse período trabalho no hospital e entropara Arquitectura passados uns meses e mudo de hospital para ter um horá-rio melhor. Estudava à noite. Fiz o curso numa privada, porque a oficial nãotinha ensino nocturno, e estudava à noite e trabalhava de dia... Depois,quando acabei o curso de Arquitectura, aí saí mesmo para longe de casa dosmeus pais e também foi a minha tia que me ajudou a comprar o andar.

Adelaide e Alexandre conheceram-se num jantar de amigos do curso,por ocasião do aniversário de uma colega, já a entrevistada frequentavao último ano da licenciatura. Com vinte e nove anos de idade então, foiparticularmente atraída pela «serenidade» deste licenciado em Geografia

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cinco anos mais novo que ela. Para além da proximidade com as origensde Adelaide, Alexandre, filho de um desenhador assalariado casado comum mulher doméstica, era docente do ensino secundário, tal como amãe da entrevistada. Estava, no entanto, colocado longe da capitalquando se conheceram. Namoraram pouco menos de um ano, tendodecidido casar logo que ele conseguiu colocação numa escola próximade Lisboa. Um ano após o casamento nasceu o primeiro filho, precisa-mente no mesmo ano em que Adelaide estagiou e começou a trabalharpara o seu actual empregador. Quando terminou a licenciatura, não es-tava entre os seus «objectivos» exercer Arquitectura na função pública.Com efeito, a sua situação profissional actual resulta do constrangimentode quem, por um lado, deseja ser mãe e, por outro, evitando «ser explo-rada», se depara com a dificuldade de encontrar uma fonte de rendimen-tos estável enquanto profissional liberal. «Não tinha isto em mente», de-sabafa. «O objectivo era fazer projectos», mas, ao contrário das mulherescarreiristas, as suas aspirações são directamente proporcionais à realizaçãoque retira da maternidade. Adelaide abandonou assim o próprio investi-mento numa «carreira porta-fólio» em prol de uma «carreira burocrática»(Handy 1994). Se essa mudança não alterou o seu sentimento de reali-zação através da actividade profissional, o mesmo não pode dizer-se dassuas aspirações de carreira. Com efeito, a entrevistada não se coíbe demanifestar a sua frustração com a situação profissional precária – ou seja,sem enquadramento – em que se encontra.

Quando acabei Arquitectura, não tinha isto em mente, o que faço hoje.O objectivo era fazer projectos, de facto. Tinha um espaço com uns colegasde curso e trabalhei lá por conta própria. Mas pessoas com pouca experiênciaé complicado. Eventualmente, está-se a perder dinheiro. Mas nunca quis tra-balhar para ninguém, porque eu mantive a enfermagem quando fiz o curso.Mas tinha colegas que trabalhavam em ateliers. Eu sempre achei que os pa-trões eram exploradores, portanto nunca quis ser explorada por ninguém,não estava para aí virada. E o emprego na função pública foi uma hipóteseque surgiu. Mas, curiosamente, não me sinto menos realizada por não estarmetida nesse tipo de projectos. Ainda trabalhei como enfermeira uns mesesquando já tinha acabado o curso de Arquitectura. Depois vim para aqui efiz o estágio não remunerado... Enquanto estive a trabalhar aqui sem ser re-munerada exerci enfermagem. Agora estou aqui naquele sistema que é o re-cibo verde, desde [19]96... [...] Eu gosto daquilo que faço. Em termos detrabalho lá fora, quer dizer, projectos de arquitectura já fiz, perdi muito di-nheiro e não estou para perder mais, opto também por não fazer.

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Quatro anos depois do primeiro nasce o segundo filho do casal –uma rapariga – sem que Adelaide assista a qualquer progressão na car-reira. Ao recordar a «situação de stresse» em que se encontra, sublinhaque a necessidade de atenuar o ritmo de trabalho, com a chegada do se-gundo filho, se traduziu no abandono definitivo das suas actividadescomo arquitecta em regime liberal. Por outro lado, surgiu a possibilidadede um enquadramento na carreira: «abriram outro concurso quando eutive a minha criança e eu, entretanto, passei agora às listas definitivas».Com efeito, até então Adelaide repartia-se entre o emprego como fun-cionária pública, por um lado, e os projectos encomendados ao seu ate-lier, por outro. Hoje, sem ter ainda conseguido o enquadramento numemprego ao qual circunscreveu toda a sua actividade profissional, la-menta a «exploração» de que afirma ser alvo, bem como a ausência dereconhecimento do seu trabalho, ausência essa manifesta na remunera-ção e na «forma como são feitos os concursos», que afastam sistematica-mente a hipótese de uma contratação efectiva.

Ganho pouco, ganho mal e sou explorada aqui em vários aspectos. É claro que sinto que o meu trabalho não é reconhecido. Com os superiorestenho uma boa relação. E sou reconhecida em termos de superiores directos,eles reconhecem o meu trabalho e o meu esforço, mas estas questões... Nãome sinto reconhecida é pela forma como sou paga, pela forma como sãofeitos os concursos, as pessoas que eu vejo que entram, não sei se é por co-nhecimentos... Houve aqui um concurso há relativamente pouco tempo emque eu não entrei, e há colegas que entraram.

O sentimento de injustiça resulta da ambivalência entre a falta de re-conhecimento, por um lado, e a forma como se dedica ao trabalho, poroutro. Uma pesada carga horária de trabalho entre as nove e as dez horasdiárias – «já tenho saído daqui às oito da noite, depende da quantidadede trabalho que se tem para fazer» – não deixa de ameaçar o equilíbrioentre vida profissional e vida familiar subjacente à estratégia maximalistaque Adelaide procura aplicar na articulação trabalho-família. Sentido-se«sobrecarregado», é o próprio marido a não poupar críticas, «porque achaque eu estou pouco tempo com ele e com as crianças». No cômputototal, Alexandre trabalha afinal o mesmo número de horas que Adelaide,porém, o seu horário de trabalho reparte-se entre as aulas na escola, «fazere ver os testes» em casa e, ainda, a frequência de um mestrado tendo emvista «uma progressão mais rápida» na carreira. Em suma, a maior pre-sença do marido em casa e as suas observações – «o meu marido acha queeu dou tempo de mais aqui [no local de trabalho] e que não devia» –

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contribuem para que se sinta injustiçada no local de trabalho e, simulta-neamente, desconfortável por comprometer a disponibilidade para a vidafamiliar.

A partilha e a desvinculação do homem no trabalho doméstico

Os casais com trajectórias homogâmicas distinguem-se grosso modo dosdemais pela diversidade de lógicas de divisão familiar do trabalho do-méstico. Nalguns destes casais já se observa uma participação mais activado homem, não apenas nos cuidados e no acompanhamento dos filhos,mas também nas tarefas domésticas.

Os apoios e a orientação para uma partilha igualitária nos cuidados à criança

À semelhança da maioria das entrevistadas, as mulheres com trajectó-rias homogâmicas contam com um conjunto de apoios nos cuidados àcriança, apoios esses fundamentais em situações de dupla carreira, quefrequentemente caracterizam este tipo de trajectória conjugal. Assim, porum lado, a divisão do trabalho doméstico, no que se refere aos cuidadosdurante os primeiros anos de vida da criança, alarga-se a familiares docasal, sobretudo aos pais da mulher, podendo por vezes o casal contarcom o apoio de uma ama: «tenho perfeitamente a noção, fiz o doutora-mento nesta fase porque tive sempre o apoio dos meus pais, os meuspais tomaram conta dos miúdos quando eram pequeninos» (Filomena);«tive a sorte de os meus filhos ficarem com a avó e, portanto, acabavapor ter muito apoio e só estive parada um mês» (Mafalda); «eu tive muitaajuda, mas também falta aí um outro factor que ainda não abordei,quando disse que recorri à baby-sitter, é claro que na altura baby-sitter paramim dizia-me actividade cultural, sair à noite, qualquer coisa» (Maria);«eu tinha a minha sobrinha, filha da minha irmã, que esteve desde o pri-meiro mês até agora» (Sara); «eu tive uma ajuda imensa da minha mãe,muito grande, o bebé ia para casa deles» (Susana); «a minha mãe deixoude ter as filhas, mas passou a ter os netos, e há dias que ela tem lá setenetos em casa para dar de comer, para tratar, para lavar» (Marta).

Por outro lado, é de sublinhar que, nos casais com trajectórias homogâ-micas, o homem é grosso modo bastante mais presente e participativo noscuidados e no acompanhamento dos filhos do que nos casais com trajec-tórias hipergâmicas, participação essa, aliás, frequentemente exaltada pelas

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entrevistadas: «ele é um pai como uma mãe no verdadeiro sentido... O Miguel faz imenso. Ele é pai galinha, pai galo, pai tudo» (Mafalda);«o Bernardo não é machista, vê sempre tudo em termos de igualdadenunca vê as coisas tipo ‘mas tu é que és a mãe’, nunca aconteceu isso, elenão vê as coisas nessa perspectiva. Os deveres são iguais, é sempre poraí. [...] É evidente que me apoia, até com os miúdos» (Marta). De resto,ainda que o homem seja mais participativo no acompanhamento dos fi-lhos, algumas entrevistadas referem que, a este respeito, surgem focos detensão conjugal, ora porque consideram que o cônjuge poderia ter uma«parte mais activa» (Maria), ora porque se discorda da sua atitude «per-missiva» na relação com os filhos (Marta).

Há determinados aspectos que eu acho que são importantes e portanto...Ele nunca tomou parte activa para se tentar fazer ou aliviar, melhorar a in-serção social, nunca toma parte activa. [...] Uma vez numa aula do meu filhohouve qualquer coisa que eu acho que o professor não reagiu bem... e oMário deixa protelar e não liga e acha que não é preciso falar. É nesse sentido.Também pode haver divergências, também em atitudes dele para outras coi-sas que possam não ter a ver com o meu filho. Aí há um bocadinho de pro-blema, porque se são determinadas atitudes que eu acho que ele não perce-beu bem, ele não aceita críticas e reage muito mal [Maria].

É mais coisas tipo ligadas à escola, porque o pai tem menos paciência ecomo eu sou professora deixa tudo para mim, também porque eu estoumuito mais dentro do assunto. O pai é muito permissivo, eles sabem que opai é muito permissivo. Eu acho que ele dá-se ao luxo de ser permissivo, por-que sabe que eu sou menos [Marta].

Da participação do homem à delegação das tarefas domésticasem terceiros

Nos casais com trajectórias homogâmicas, não é frequente observar-se atotal desvinculação do homem no que respeita à execução das tarefasdomésticas, se bem que o apoio de terceiros esteja, também aqui, bastantepresente. Por exemplo, Marta refere que «os meus pais, quando vêm cápassar o fim-de-semana, ajudam-me em tudo o que é possível fazer cáem casa», enquanto Adelaide e Alexandre contam com uma «empresapara apanhar a roupa e passar a ferro». Nos casais com trajectórias homo-gâmicas, não se constata a prevalência de um modelo normativo no querespeita à divisão conjugal do trabalho doméstico. Na verdade, verifica--se uma diversidade de modos de divisão do trabalho doméstico desdeos casos em que a participação do homem é bastante activa (Marta) ou

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mesmo mais activa do que a da mulher (Adelaide), às situações de divisãomais diferenciada (Mafalda, Sara) ou muito diferenciada (Susana).

Assim, a forte consciência das desigualdades entre homens e mulheresmanifestada por Filomena – «estou convencida quando um homem estáa fazer o doutoramento diz à família ‘estou a fazer o doutoramento, nãome chateiem que não faço mais nada’» – não deixa de se repercutir nanegociação da divisão das tarefas domésticas: «trabalhamos tanto umcomo o outro. Ambos não gostamos de tarefas domésticas, o que ficapor fazer acaba por se dividir o mal pelas aldeias». Também Marta refereque «nós temos as coisas muito divididas cá em casa [...] nunca me pas-saria pela cabeça fazer coisas ao meu marido que a minha mãe faz, querdizer, não lhe arrumo a roupa, não lhe faço nada disso [...] o meu traba-lho cá em casa termina no momento em que ponho o jantar na mesa, apartir daí eu levanto-me da mesa e não quero saber de mais nada. Ele ar-ruma a cozinha, lava, arranja e tudo mais». Por sua vez, Adelaide, reco-nhece que «é mais ele que faz» com a excepção de «um dia ou outro»:«O meu marido é muito colaborante, ele ajuda muito. Aliás, tem mesmoque ajudar, porque eu estou muitas horas fora de casa e há tarefas quesão quase só feitas por ele.»

Já noutros casais com este tipo de trajectória conjugal, a divisão das ta-refas revela uma participação mais atenuada, quando não uma atitudede desvinculação, por parte do homem. Por exemplo, Sara esclarece queSérgio «foi educado por uma mãe que estava sempre em casa e para oseu casamento transferiu a mesma maneira de estar», tendo o casal seacomodado a um «sistema de compensações» orientado por uma lógicatradicional de divisão de competências entre o homem e a mulher na fa-mília: «Se uma pessoa não tem muito jeito para fazer uma coisa ou outra,não vale a pena estar a insistir.» Esta acomodação aplica-se igualmentetanto a Maria e Mário como a Mafalda e Miguel: «Ele deixa-se ir um bo-cadinho no ram-ram das coisas em certa medida. Iniciativas, por exem-plo, para se fazer férias, isso tem que partir de mim» (Maria); «Sou euque faço mais, sem qualquer problema em assumir isso. [...] Eu não digoque o meu marido não me ajude, porque ele era mesmo companheirode divisão. Agora há uma certa ideia, e isso é culpa minha, eu açambarcoas coisas, portanto, eu chego primeiro, eu preparo o jantar, eu ponho amesa, eu avanço com os banhos dos miúdos, porque eu sou uma pessoaactiva, eu não estou à espera dele para fazer e não lhe vou pedir, há coisaspara fazer e eu faço. É lógico que há tarefas, ele faz a sopa, ele gosta defazer a sopa, ele arruma a loiça na máquina, porque se eu arrumo ele dizque dá mais trabalho, porque ele diz que eu arrumo mal e depois ele tem

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que tirar para arrumar ele, portanto, tem a tarefa de arrumar a loiça. Maslá está, o lavatório fica com gordura, a mesa fica com a gordura, isso de-pois as limpezas são comigo» (Mafalda).

A divisão das tarefas domésticas pode ainda assumir os contornosmais frequentemente observados nas trajectórias hipergâmicas. Susana, porexemplo, reconhece que «procur[a] sempre não entrar em conflitos nemarranjar problemas» com Paulo, cuja alegada atitude de desvinculaçãoface à vida familiar se alarga às tarefas domésticas. Apesar da sua estratégiacarreirista e de um pesado horário de trabalho, é à entrevistada que cabe«fazer o jantar e ter a casa, enfim, arrumada como eu gosto».

Companheirismo, redistribuição dos recursos e abertura ao exterior

Os casais com trajectórias homogâmicas diferenciam-se também consi-deravelmente dos casais com trajectórias hipergâmicas no incentivo dohomem à actividade profissional e à carreira da mulher, incentivo esseque, muitas vezes, se evidencia numa comunicação intensa em torno davida profissional de ambos os elementos do casal. Por outro lado, não seatribui ao homem a tutela da maior fatia dos rendimentos. As diversasmodalidades de organização do dinheiro não têm efeitos, porém, na re-distribuição dos rendimentos auferidos pelos cônjuges, pois a diferençaa nível dos recursos económicos no casal não é significativa. De resto, épraticamente transversal a estes casais o princípio de que os rendimentosauferidos pelos cônjuges são para usufruto do núcleo familiar.

Dupla carreira e mútuo apoio no casal

Os casais com trajectórias homogâmicas distinguem-se sobretudo pelopapel que a mulher reconhece ao cônjuge no incentivo à sua actividadeprofissional e aspirações de carreira, alicerçando-se a dinâmica conjugalnuma comunicação intensa onde a vida profissional de ambos os côn-juges ocupa um lugar privilegiado. Sara, por exemplo, sublinha que «seeu estou frustrada no meu trabalho, ele sabe, ele sabe perfeitamente quesão essas as razões que me levam a fazer o mestrado, e percebe». Mariaconsidera que «a pessoa estar na mesma profissão [que o cônjuge] tem avantagem de um perceber exactamente as necessidades do outro», se bemque «estar a viver coisas conjuntamente pode cansar, pode às vezes levarum bocadinho à saturação». Já Mafalda refere o valor que, por exercer asua actividade profissional, ela adquire junto de Miguel: «É importantís-

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sima a minha actividade, ser advogada, para ele me valorizar como mu-lher no todo». Marta, por sua vez, reconhece o incentivo de Bernardo,referindo que «ele sempre me apoiou em tudo, qualquer passo que euqueira dar, eu digo que sim e ele diz duas vezes que sim». E, enfim, Fi-lomena refere o «grande apoio» de Frederico, que sempre a acompanhouora nos desafios relacionados com a progressão na carreira universitária,ora quando se confrontou com a «discriminação em relação à mulheresno local de trabalho», e que «talvez por isso ainda valorize mais a minhaprofissão, porque sou eu, que sou mulher, a exercê-la».

Apenas Susana refere a natureza pouco comunicativa da relação como marido, sobretudo no que toca ao trabalho – «Não falamos muito, ede trabalho não falamos nada» – uma característica da dinâmica conjugalque a entrevistada prefere atribuir ao seu próprio cansaço – «saio daquitão cansada de tudo o que trato que não tenho necessidade nenhumade levar isto para casa» – do que propriamente a um alheamento do ma-rido face à sua actividade profissional em relação à qual este não colocaquaisquer obstáculos: «ele por vezes queixa-se de que eu falo muitopouco do meu trabalho. [...] Há um empenhamento meu [na profissão],e há também um não levantar problemas da parte dele».

A ausência de uma tutela individualizada do dinheiro e o princípio da redistribuição

Nos casais com trajectórias homogâmicas não se observam situações emque caiba ao homem a tutela da maior fatia dos rendimentos do casal,mas as modalidades de organização do dinheiro são diversas, desde amais fusional e redistributiva – ou seja, o bolo comum com ou sem con-tas individuais (Marta) – à divisão total dos rendimentos dos cônjugessem partilha dos rendimentos (Adelaide). De entre essa diversidade des-tacam-se dois traços fundamentais. Em primeiro lugar, os rendimentosauferidos pelos cônjuges através da actividade profissional são, nos casaiscom este tipo de trajectória conjugal, muito aproximados, não se verifi-cando propriamente uma desigualdade de recursos económicos no casalque pudesse ser ampliada ou atenuada através da organização familiardo dinheiro. Em segundo lugar, entre as diversas modalidades de orga-nização do dinheiro ressalta o princípio praticamente transversal de queos rendimentos auferidos ora pelo homem, ora pela mulher, são redistri-buídos para usufruto colectivo. Filomena sublinha que tanto ela comoo cônjuge sempre se distanciaram de uma lógica calculista: «nunca houvea questão ‘se eu ganho mais...’. Se um ganha mais significa que podemos

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os dois gastar mais dinheiro, quer um quer outro!». Marta, por sua vez,esclarece com ironia – e precisamente ao invés da maioria de muitas si-tuações observadas entre os casais com trajectórias hipergâmicas – que odinheiro do marido é o único a estar sujeito ao usufruto da família: «A conta dele tem o meu nome e a minha só tem o meu; não há digamosassim uma conta comum, ou por outra, a [conta] comum é a dele, omeu dinheiro é meu e o do Bernardo é nosso! [risos]». De resto, Adelaidee Alexandre constituem o único casal cuja organização dos rendimentosauferidos é individualizada: «temos uma conta os dois e é a conta dacasa, portanto cada um mete a mesma quantidade de dinheiro para essaconta e depois cada um tem a sua conta à parte».

A abertura procurada

Finalmente, no que toca à integração no exterior, a dinâmica de fun-cionamento dos casais com trajectórias homogâmicas não se diferencia dados casais com trajectórias definidas pela hipergamia progressiva, como re-vela a propensão generalizada para a abertura: «saímos bastante ou ten-tamos sair, passar fins-de-semana fora com casais de amigos meus (Su-sana); «tentamos conviver e manter o convívio» (Maria); «não tenhopropriamente amigos novos, são os da faculdade e continuam, sempreficámos amigos, eles vãos lá a casa nos fins-de-semana em que há menostrabalho, ou somos nós que vamos a casa deles, ou então combinamosum jantar, um cinema, um programa (Marta). Essa propensão para a aber-tura pode, nalguns casos, atenuar-se provisoriamente ao longo da vidaconjugal: «Nesta fase do campeonato não. Eu já fui muito assim de con-vidar pessoas para ir lá a casa e jantaradas [...] Eu acho que vai voltar, ne-cessariamente» (Adelaide).

Por outro lado, ao invés do que observámos junto dos casais com tra-jectórias de hipergamia prioritária, constatamos aqui a procura de um tempoexclusivamente dedicado ao casal, sinónimo de expectativas mais elevadasface à vida conjugal enquanto dimensão que não se pode confundir coma vida familiar. A título de exemplo, Sara e Sérgio constituem um casoelucidativo do frequente confronto entre a procura de um tempo reser-vado ao casal – neste caso, as férias – e as solicitações do núcleo familiar:«Nós tentávamos sair sempre, continuámos a jantar, a ter o namoro, qui-semos continuar a fazer isso e é muito mais fácil quando as crianças sãopequenas do que quando eles crescem mais... Até porque depois há omomento em que eles passam a acompanhar-nos, não é? E a ficaremmuito aborrecidos, porque nós vamos de férias e não os levamos.»

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Capítulo 5

A aposta na carreira como exclusividade da mulher

Um último tipo de trajectória conjugal, a trajectória hipogâmica, distin-gue-se fundamentalmente pela maior aposta da mulher na profissão e nacarreira relativamente ao homem. Nalguns casos, a superioridade socialda mulher no momento da formação do casal 1 traduziu-se num empe-nhamento mais acentuado na actividade profissional e, deste modo,numa discrepância socioprofissional entre os cônjuges que favorece cres-centemente a mulher. Já noutros casais, essa discrepância reflecte essen-cialmente uma hipogamia socioprofissional que, já presente na escolhado cônjuge, não sofre alterações no decurso da vida conjugal. Em qual-quer dos casos, a trajectória conjugal não pode ser dissociada das estratégiasque estas mulheres elaboram para articular a vida profissional e a vida fa-miliar, algumas atribuindo prioridade à sua carreira profissional, enquantooutras procuram apenas projectar-se com equivalente empenho nos di-ferentes domínios de realização. Importa sublinhar que ser mãe jamaisimplica, entre estas entrevistadas, abdicar de uma aposta forte na carreiraprofissional, sendo transversal a predisposição para negociar a divisão dotrabalho em virtude de uma crítica da sobrecarga que advém de uma di-visão pouco «igualitária». Ainda assim, grande parte das tarefas é delegadaem terceiros, oscilando a divisão do restante trabalho doméstico entre apartilha igualitária e a desvinculação do homem. Por outro lado, mesmoquando a divisão do trabalho se afasta da partilha igualitária, o apoio e oincentivo do homem aos projectos profissionais e de carreira da mulhersão exaltados, à laia de uma compensação pela sua desvinculação no que

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1 Apesar de se tratar de uma superioridade relativa, tendo em linha de conta que nãose verifica, em qualquer dos casos analisados, uma distância acentuada entre as posiçõessocioprofissionais dos cônjuges no momento da formação do casal.

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respeita à execução das tarefas domésticas. A maior aposta da mulher nacarreira consubstancia-se, nestes casos, num reforço da sua posição na ne-gociação conjugal, ainda que, porventura em virtude do próprio apoio,estímulo e incentivo que reconhece ao cônjuge, esse reforço não se tra-duza num desequilíbrio de poderes, tal como se observa nos casais ondea carreira do homem é prioridade (trajectórias de hipergamia prioritária). Noscasais com trajectórias hipogâmicas prevalecem dinâmicas fusionais asso-ciadas a um relativo fechamento face ao exterior, privilegiando-se maisos momentos com os filhos do que o tempo exclusivamente destinado àrelação a dois. De resto, é nestes casais que, de acordo com os relatos dasentrevistadas, se observam menos focos de tensão conjugal.

Da proximidade à distância a favor da mulher

Nos casais com trajectórias hipogâmicas, é a mulher quem mais apostana carreira, resultando este maior envolvimento da mulher na actividadeprofissional – em virtude das suas maiores aspirações de carreira – numadiscrepância de estatutos e recursos que, progressivamente, a favorece.Não obstante, mesmo nos casos em que os cônjuges ocupavam posiçõessocioprofissionais próximas no momento da formação do casal, uma su-perioridade social relativa da mulher era já observável, superioridade essamanifesta sob formas diversas.

Por um lado, deparamos com os casos de Helena e de Ana, ambascom origens sociais claramente mais favorecidas que os respectivos côn-juges. Ainda que por razões diferentes, tanto Helena como o marido,Herculano, não puderam contar com o acompanhamento do pai na in-fância. Divorciado da mãe, o pai de Helena raramente esteve presentena sua vida, enquanto o pai de Herculano morreu era ele ainda criança.As qualificações das suas mães revelam, contudo, origens sociais contras-tantes: se a mãe de Helena, secretária, quase completou uma licenciatura,já a mãe de Herculano, modista, deixou a escola quando completaram aquarta classe. Por sua vez, Ana e Alfredo são ambos filhos de mulheresque não exerciam uma actividade remunerada, mas enquanto o pai delaé professor catedrático, o pai dele, com apenas a quarta classe, geria umpequeno estabelecimento comercial.

Por outro lado, deparamos com um caso – Lurdes e Sebastião – emque, pese embora a proximidade social das origens sociais dos cônjuges,a superioridade feminina resultante da diferença etária a favor da mulheré determinante do percurso profissional do homem. Enquanto licencia-

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dos provenientes de meios sociais pouco qualificados – Lurdes é filha deuma modista casada com um motorista; Sebastião é filho de uma costu-reira casada com um operário industrial –, ambos protagonizam percur-sos de mobilidade social. Há, no entanto, entre eles uma diferença deidades a que não são alheias as diferentes situações socioprofissionais.Oito anos mais velha que o marido, Lurdes concluía a licenciaturaquando se conheceram, mas Sebastião não tinha ainda ingressado noensino superior. Quando decidiriam casar-se, só ela exercia actividadeprofissional. Tal como verificaremos, em virtude de uma aposta desigualnas respectivas carreiras profissionais, esta discrepância socioprofissionala favor da mulher viria a consolidar-se ao longo da vida conjugal.

De resto, o caso de Genoveva e Nuno – que se caracteriza por umdesfasamento de recursos educacionais a favor da mulher, desfasamentoesse presente desde a formação do casal – constitui o único exemplo decristalização da hipogamia socioprofissional no decurso da vida conjugal.Se esta união evidencia uma forte proximidade entre as origens sociais –ambos os cônjuges são filhos de mulheres domésticas respectivamentecasadas com um operário industrial e um electricista –, a verdade é queGenoveva apostou muito mais nos estudos do que Nuno, concluindoela a licenciatura, enquanto ele, trabalhador-estudante desde o segundoano do ciclo preparatório, não chegou a ingressar no ensino superior.Hoje a entrevistada é docente do ensino secundário, enquanto o maridotrabalha «a contrato» numa empresa do Estado.

Nos pontos que se seguem, analisamos o processo de formação doscasais com trajectórias hipogâmicas, elegendo para o efeito a relação de Anacom Alfredo e a relação de Lurdes com Sebastião. O primeiro caso repre-senta o exemplo de uma escolha que, pese embora a proximidade socio-profissional assegurada pelo encontro no local de trabalho, recai sobreum homem estranho à rede de sociabilidades e com uma origem socialclaramente menos favorecida. O segundo representa o exemplo de umaescolha cujo carácter excepcional da diferença de idades – hipergamia etá-ria – é contrabalançado ora pela proximidade das origens sociais, ora pelavalorização de um conjunto de atributos – comunicação, compromissoe apoio – especificamente associados às qualidades relacionais do eleito.

«Não era alguém com quem estivesse habituada a andar»

Os locais de trabalho colocam evidentemente em interacção indiví-duos com actividades profissionais próximas ou idênticas, mas, com asdevidas excepções – sobretudo quando se dilui a fronteira entre o uni-

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verso familiar e o local de trabalho – também se definem pela ausênciade uma intervenção mais directa da rede familiar ou amical. Provenientesde meios sociais contrastantes, Ana e Alfredo constituem um exemplodas qualidades da interacção entre colegas de trabalho enquanto circuns-tância propícia à descoberta de afinidades electivas e a uma aproximaçãodificilmente expectáveis noutros contextos.2 Ana é doutorada e tem umaorigem social claramente privilegiada. Tendo estudado num colégio par-ticular desde a primeira classe, só ingressou numa escola pública nos úl-timos anos do liceu. Filha de um professor catedrático, desde cedo soube,que, tanto ela como a sua única irmã, teriam de prosseguir os estudospara além do liceu.

Nunca se pôs a hipótese de que uma de nós não tirasse um curso supe-rior. Eu venho de uma família – sei lá? – desde há não sei quantas gerações,as pessoas ou não tinham escolaridade porque nunca trabalharam – porqueeram proprietárias e eram ricas e não precisavam de trabalhar – ou entãoporque, de facto, sempre houve tradição desde juízes, licenciados em Di-reito... Portanto, sempre houve uma tradição a este nível.

Filha de um homem extremamente ocupado com a profissão, Anafoi viver com os avós maternos quando – tinha a entrevistada oito anosde idade – os progenitores decidiram mudar de habitação. Passou entãoa estar com os pais apenas durante os fins-de-semana, se bem que o seucontacto tenha permanecido «quase diário». Ana não deixou, efectiva-mente, de estar dependente do «consentimento» dos pais, mas a partilhada educação entre estes e os avós ganhou espessura com o tempo, talcomo o enraizamento da entrevistada à casa dos últimos: «Ainda hojevivo na casa que era dos meus avós!» Ana considera que os progenitorescontribuíram de forma decisiva para a sua formação, e não deixa de la-mentar que o pai, «uma pessoa muito virada para a carreira», não tenhaestado mais «presente», ressentindo-se, por outro lado, da sua relação«distante» com a mãe. No que toca ao avô materno, sublinha o seu apoio– «mesmo doente» antes de morrer – nos estudos, não hesitando em

2 Tal como observaram Bozon e Héran, locais de trabalho muitos «feminizados» emenos hierarquizados como as escolas revelam ser mais propícios à escolha homogâmica:«Les rencontres sur le lieu de travail [...] prennent une signification particulière dans descas des professeurs ou des instituteurs, dont l’univers de travail, peu différencié (puisqueles distinctions entre catégories ne définissent pas des subordinations hiérarchiques), réa-lise mieux qu’ailleurs les conditions de l’homogénéité sociale et, par là, de l’homogamie»(1988, 124).

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compará-lo com o pai, devido à «figura de referência» que também re-presentou. Contudo, frisa que este último, sempre «extremamente exi-gente», permaneceu o «encarregado de educação».

Se o pai e o avô são «figuras de referência» na vida de Ana, a mãe e aavó definem-se, ao abrigo de um modelo convencional de divisão dospapéis de género, como as figuras «presentes» que prestam os cuidados,o apoio e o acompanhamento no quotidiano, ainda que a «presença» damãe, «talvez por ser mais frágil emocionalmente», «com um feitio muitoespecial» e «um bocado egoísta e distante» se circunscrevesse à integraçãodas filhas no exterior: «saía sempre connosco, íamos lanchar...». Comefeito, desde a infância, a mãe procurou inculcar em Ana as práticas cul-turais mais legítimas – «Sempre gostei muito de ópera, de bailado e deteatro, e a minha mãe levava-nos» –, enquanto foi a avó – «mais mãe» –quem assumiu a «figura materna».

Ao contrário da maioria das mulheres entrevistadas, Ana viveu a ado-lescência com muita autonomia. Pouco vulgar, este aspecto da sua ado-lescência deve-se essencialmente a três razões. Por um lado, apesar daidade, a figura mais presente no seu quotidiano – a avó – revelou-se «sen-sacional» na cumplicidade que estabelecia com a neta, possuindo «umajuventude de espírito» e «uma abertura» que a entrevistada não identificaem mais ninguém da família. Por outro lado, salvaguardando a aversãodo pai aos «namoros» da filha, Ana contava com a «imensa confiança»que ambos os pais nela depositavam. Por último, o contexto histórico – a revolução de 25 de Abril de 1974 – e as concomitantes transformaçõesno plano dos valores e dos comportamentos propiciaram, tendo em contaa relação de «confiança» entre Ana e os pais, por um lado, e a cumplici-dade com a avó, por outro, a sua autonomia e liberdade na adolescência.

Eu lembro-me de que comecei a sair à noite com catorze, quinze anos. É evidente que com catorze, quinze anos não ia para as discotecas... Os meuspais sempre tiveram imensa confiança em mim: aos onze, doze anos tive achave de casa dos meus avós. Comecei a sair quando queria sair «Oh pai, vousair», e ele dizia-me «vai, tudo bem, mas se fores para fora de Lisboa, quandoacabar a festa diz-me que eu vou-te buscar», e lá ia o desgraçado do meu paiàs seis da manhã buscar-me. Quando não era o meu pai, era o pai das amigas.

Com a liberdade da primeira adolescência surgiu a necessidade de selibertar da dependência financeira dos pais e dos avós. Ana começouassim a trabalhar enquanto estudava com dezanove anos de idade. Ter-minada a licenciatura, inscreveu-se num mestrado e desdobrou-se em tra-balho, tendo sido nesse intervalo da sua formação académica, após ter

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concorrido a docente do ensino secundário, que conheceu Alfredo, numareunião de professores. A origem social de Alfredo dificilmente contras-taria mais com a de Ana: a mãe, doméstica, e o pai, pequeno comerciante,abandonaram a escola logo que concluíram a quarta classe. Esta discre-pância no que às origens diz respeito não deixa de se traduzir em modosde vida contrastantes. Com efeito, dificilmente teriam oportunidade dese conhecer para além da escola onde leccionavam. Não será, pois, poracaso que às origens e aos modos de vida contrastantes Ana contraponhainsistentemente um conjunto de traços electivos que encontrou, de forma«fluida», num homem que não circulava no seu meio social. Não incluídona «fina-flor», entre «meninos-bem», os «meninos da linha» com quem aentrevistada se «dava», Alfredo despertou, porém, a sua atenção numareunião de professores convocada para a organização de eventos culturais.A entrevistada recorda a «pessoa extremamente sensível, culta, muito ob-servadora» que a surpreendeu neste homem.

Poderia especular-se sobre a atracção desta mulher por um homemdesenquadrado do seu contexto social, sugerindo que o enamoramentoterá precisamente resultado da ambivalente conjugação entre a afinidadedas atitudes e dos comportamentos, por um lado, e a dissemelhança dosmodos de vida, por outro. É, porém, mais rigoroso determo-nos no factode a «sensibilidade», a «cultura» e a capacidade de «observação» tão va-lorizadas por Ana a terem surpreendido num homem «diferente» dos seusamigos – «mais engravatadinhos, menos descontraídos, mais à direita» –e que, sobretudo, «apanhou todas as [suas] seguranças e inseguranças».Parece, afinal, estarmos perante um processo de enamoramento alimen-tado pelo embate entre a sociologia espontânea da entrevistada – nestecaso, associando ideologia, gosto, atitude, comportamentos e estilos devida – e a dissonância à escala individual objectivamente observada peloinvestigador (Lahire 2003 [1998]).

Perante alguém com a origem e o estatuto social deste homem, a reac-ção do pai de Ana – já de antemão avesso aos «namoros» da filha, masque hoje «gosta imenso do Alfredo» – não foi previsivelmente positiva.Porém, só a Ana, então com vinte e quatro anos de idade, cabia fazer aescolha, e o seu pai, tal como ironiza a entrevistada, «não teve outro re-médio».

Penso que é um bocado normal os pais terem ciúmes das filhas, e os paisquerem sempre os príncipes encantados para as filhas. E, de todos os meusamigos, namorados, pessoas com quem eu saí, o meu pai só gostou de um,que mais tarde vim a saber que era gay. [risos] Na altura, eu já tinha outraidade, e fui sempre muito independente. Lembro-me da festa dos meus vinte

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e quatro anos e eu tinha começado a namorar com o Alfredo em Fevereiro.Fiz anos em Maio e juntei alguns dos meus amigos. O meu pai é conservador– embora seja e não seja – e viu aquele homem barbudo, e talvez não fosseaquele o príncipe encantado que ele queria para a filha dele [risos]. Talvezum advogado, um médico, engenheiro, talvez um dos meus amigos, queeram quase todos advogados, mais engravatados. Ele aceitava muito bemconhecer as pessoas como amigos, só não aceitava conhecer as pessoas en-quanto namorados.

De resto, a escolha de Ana também a surpreendeu pelo casal que elae Alfredo faziam, contrariando a representação simbólica socialmenteexpectável do homem superior em idade e estatura. A estatura de Alfredonão faz, efectivamente, muita diferença da de Ana, tal como lamenta,com humor, a entrevistada. Quanto à idade, se o marido lhe «pareceumuito mais velho» quando se conheceram, já depois de namorarem veioa «descobrir» que era dois anos mais novo que ela. A perplexidade pe-rante a real idade do marido ilustra bem a importância que assume a su-perioridade etária do homem enquanto indicador de «maturidade», jáque a idade o envelhece positivamente.

Eu gostava de dançar descontraída, de ir para as discotecas e abanar ocapacete! E o Alfredo não é nada disso! É muito mais sério que eu, apesarde ser mais novo. O mais responsável possível! Uma pessoa muito mais séria!Aliás, pareceu-me muito mais velho! No dia em que descobri a idade queele tinha, ia-me passando! A minha mãe sempre disse «Que horror, homensmais novos, não!». E eu sempre gostei de homens altos, no mínimo com 1 metro e 85, e o meu marido tem 1 metro e 73! [riso]. Quer dizer, não temnada a ver! Tem barbas, e eu nunca tinha andando com ninguém com bar-bas. Mas, principalmente a altura. Eu dizia à minha mãe «Nunca hei-de ar-ranjar um homem com menos de 1 metro e 85», e a minha dizia «Tens queandar de fita métrica!» [riso]. Quer dizer, abaixo disso, não!

Em suma, se é certo que uma circunstância como o local de trabalhonão assegura a aproximação entre indivíduos com origens sociais seme-lhantes e a afinidade das disposições, também é verdade que o escrutínionão se dilui totalmente. Com efeito, Ana frisa a excepção que Alfredopersonifica: um professor de Desporto no ensino secundário, «mas umapessoa extremamente sensível, culta, muito observadora», e filho de «pes-soas que não têm curso superior, mas pessoas cultas». Ou seja, a excepçãoestatística que a escolha do cônjuge fora dos padrões da homogamia re-presenta (Rosa 2005) é aqui, precisamente, significativa por ser vividacomo excepção.

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«Para estar ao meu lado, tinha que ter um curso superior»

Não constitui excepção o enamoramento ter origem no convívioentre amigos, em virtude da dinâmica – menos rígida e formal – da in-teracção que este contexto proporciona. Quando a própria amizade ava-liza a credibilidade de um desconhecido, o convívio entre amigos podetambém propiciar o encontro entre estranhos. Assim aconteceu com Lur-des, quando Sebastião, primo da sua amiga mais chegada, começou afrequentar o seu círculo de amigos.

Lurdes era ainda muito criança quando se mudou com os pais da al-deia onde nasceu para os arredores de Lisboa. A mãe, costureira, e o pai,padeiro, decidiram procurar uma «melhor situação financeira» na capital,tinha a entrevistada apenas três anos de idade. «A vida na aldeia», recorda,«era muito difícil em sessenta, antes dos anos setenta, as oportunidadesde trabalho são as mesmas que há agora: não havia oportunidades detrabalho!». Com apenas a quarta classe, a mãe conservou a sua actividadede costureira, mas já o pai, com o quinto ano do liceu, empregou-secomo motorista. A curta infância vivida na aldeia natal marcou suficien-temente a memória de Lurdes, de certo modo reprovadora da mudançapara cidade.

As memórias que eu tenho dessa altura foram muito marcantes. Às vezes,tenho mais memórias dos três anos, porque foi uma altura de que eu gosteiparticularmente. Primeiro, porque estava perto dos meus avós. Depois, por-que era uma moradia, tinha um quintal, tinha bichinhos [risos]. E, portanto,são coisas que marcam uma infância, porque eu mudei de uma situação des-sas para um prédio. [...] A vida mudou, mas não para melhor, porque nósficámos mais isolados, os meus pais tinham lá na aldeia os amigos de infân-cia. A vida deles estava lá! As pessoas conhecidas... Conheciam-se todas aspessoas da rua. Aqui não tínhamos amigos, não é? Em termos de criançasda minha idade, havia dois no prédio! O meu pai tinha os amigos do traba-lho, não é? Os amigos do trabalho que eram algumas pessoas que moravamna nossa rua ou moravam perto. E, portanto, era com essas pessoas que elepodia juntar-se no café depois do trabalho. Mas mudou no sentido de termossido afastados da família, não é? Porque eu lembro-me perfeitamente de con-viver muito com os meus avós, e de o meu avô me ir buscar lá a casa, ir-mepassear na rua e de eu estar na rua a brincar. Era completamente diferente.

Nos aspectos negativos que salienta quando faz o balanço desta mu-dança de vida pode facilmente vislumbrar-se a importância da rua na al-deia, que propicia a proximidade entre as pessoas – «lembro-me parti -cularmente, quando chegámos [a Lisboa], de chegar à janela e não

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conseguir ver a rua» – mas, sobretudo, da família de origem e, assim, doimpacto, vivido como ruptura, que o êxodo para Lisboa provocou novínculo afectivo de Lurdes com os avós, sobretudo com a avó paterna.Apesar de mais próxima dos avós maternos, é com a avó paterna e a suaatitude insubmissa – «não lhe pisavam os calos!» – com quem se «iden-tifica» e de quem mais sente «orgulho», depreendendo-se nas suas pala-vras o peso da referência da anciã na construção da identidade. Na rea-lidade, só no final da adolescência é que a entrevistada pôde estreitar oslaços com a avó paterna – «começou a contar-me a sua vida» – aquandodo agravamento da doença que a levaria à morte, mas a «identificação»surgiu desde cedo por iniciativa da família.

A minha avó materna ajudava o meu avô na loja e tinha quatro filhas e,portanto, tinha a lida da casa. Embora a presença da minha avó maternasempre fosse muito forte, o meu avô materno era um homem de pulso, erao homem da casa, era o homem que ditava as ordens, que mandava marchar,enquanto nos meus avós paternos não era assim: era a minha avó que man-dava, embora o meu avô espalhafatasse. A última palavra era da minha avó!E a minha avó dizia: «Faz-se assim!» E fazia-se assim. Era assim com o maridoe era assim com os filhos. [...] Era um bocado assim: não lhe pisavam oscalos! Ah, eu tenho muito orgulho na minha avó que Deus tem! [...] Nãosou uma pessoa reservada, sou tal e qual como me apresento, mas no sentidode ser muito frontal, de dizer as coisas que penso. A minha avó não se im-portava se magoava as pessoas ou não. Eu já sou um bocado mais polida,tenho um bocado cuidado nessas coisas. Também, é diferente, mas semprehouve essa identificação com a minha avó paterna nesse sentido, de as pes-soas me chamarem pelo nome da minha avó. Falando assim alto, em termosde modelo, se eu tenho que escolher entre a minha mãe, a minha avó ma-terna e a paterna: a minha avó paterna, sem dúvida! A atitude dela perantea vida é mais próxima da minha: ela não achava que a vida lhe devesse al-guma coisa! A vida era aquilo que a vida era!

À «atitude [da avó] perante a vida», Lurdes contrapõe a «atitude» damãe, «uma pessoa muito ressentida com a vida», porque «dá, mas tam-bém espera receber». A entrevistada compara também as atitudes dospais, não apenas no que toca à forma como cada um deles a sancionava,mas também no próprio «controlo» que a mãe exercia sobre a filha, aindaque coubesse ao pai, mais «respeitador» do «espaço» de Lurdes, a «últimapalavra».

«Muito low-profile», como gosta de se definir, a entrevistada recordater tido uma adolescência «pacífica». Se a mãe era «controladora», tam-bém é verdade que Lurdes não questionava a ordem com, por exemplo,

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os artifícios a que muitos adolescentes recorrem para sair à noite. Istoantes do seu ingresso no ensino superior, que representou uma transiçãode estatuto na sua relação com os pais, tal como recorda com algumaironia: «Com a entrada na faculdade, ganhei um estatuto diferente.» O ingresso no ensino superior traduziu-se no esvaecimento dos laçosde amizade do liceu. Surgiu então todo um novo círculo de amigosonde se incluía uma «grande amiga», prima direita de Sebastião e atravésda qual se conheceram. A nova amiga de Lurdes começou por trazer oprimo para o círculo de amigos da faculdade, um universo novo paraSebastião, que, com apenas dezasseis anos de idade, frequentava aindao liceu. Foi, porém, no dia em que os três combinaram um passeio napraia que Sebastião cativou Lurdes pela «simpatia», atracção que se ma-nifestou já de uma forma mais assumida quando, novamente, os três seencontraram na Queima das Fitas: com vinte e três anos de idade, a en-trevistada era já finalista do curso de Psicologia. O namoro, contudo,só viria a ter início um ano mais tarde, quando passaram férias juntoscom outros amigos.

Durante os anos em que durou a amizade, eu nunca o conheci. Conhe-cia-o por fotografia. Ela mostrava-me as fotografias da família, a propósitode uma festa ou outra. E houve uma altura, nós fomos para a praia juntos,ela apresentou-me. Simpatizámos logo muito um com o outro. Ele, entre-tanto, fazia já parte do grupo de amigos quando foi a minha Queima. O Sebastião entrou na minha vida eu tinha vinte e quatro anos e ele tinhadezassete. Eu estava na faculdade, mas estava no último ano. Portanto, es-tava na altura do estágio e da monografia. Ele foi à minha Queima das Fitas,ele foi à bênção... A prima dele acompanhava-me na Queima das Fitas, ape-sar de na faculdade não ser finalista. E, portanto, ele foi por arrasto, tambémfoi convidado e também foi. Eu, já nessa altura, achava-lhe muita piada.[...] Depois continuámos a encontrar-nos esporadicamente. Depois, no anoa seguir, fomos todos passar dois, três dias de férias juntos com outros ami-gos. E nessa altura começámos a aproximar-nos mais, a falar mais, aquelesolhares, aquelas coisas assim «‘tás a olhar para aonde’, a olhar para o infi-nito» [risos]. As coisas são tão transparentes! Começámos a achar muitapiada um ao outro e a ficar muito juntos.

Bastante mais novo e ainda a viver a plena adolescência, Sebastiãonão despertou o interesse da entrevistada apenas porque a «divertia». O seu «sentido de humor» – um dos traços que o diferenciavam dosoutros pretendentes da entrevistada – revelava um homem com quemela podia comunicar. Com a idade de Lurdes, um desses pretendentes

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não agradava propriamente à entrevistada por não estar interessado emcomprometer-se («gostava de pular»). Quanto ao outro pretendente,mais velho, viúvo e pai de dois filhos, apesar da «empatia» e da «atrac-ção», a entrevistada sentia «qualquer coisa que também não tinha pernaspara andar». Já em Sebastião, encontrou um conjunto de qualidadesafectivas que o distinguia dos demais.

Eu na altura que conheci o Sebastião tinha duas pessoas que estavam naminha vida por razões diferentes, embora os homens que eu conheci na al-tura não eram propriamente da faculdade, eram amigos de fora, porque aminha faculdade é uma casa de mulheres. Tinha um homem da minha idade, em que nós nos conhecemos através de amigos e éramos amigos e saíamosjuntos, mas a atitude dele perante a vida – era um género mais fadista – nãoera bem a minha praia, porque eu já sabia a história dele, e eu não gostavade pessoas que pulavam. Não era o meu género e, portanto, a relação nãopodia ter pernas para andar por aí. A outra pessoa que também estava naminha vida na altura, e que também tínhamos uma boa empatia, mas tam-bém não era por aí. Tinha assim uns interesses, mas nada com substância.Nós tínhamos uma relação profissional, mas depois tínhamos uma grandeempatia e uma atracção. Eu sentia essa atracção, mas também havia ali qual-quer coisa que também não tinha pernas para andar. O Sebastião divertia--me, tinha sentido de humor. Eu aprecio homens com sentido de humor,não consigo ‘tar ao pé de uma pessoa com uma cara sempre igual. É umacoisa que me faz impressão! Se é para falar para a parede, não vale a pena. E era meigo, era muito meigo, e isso eu lembro-me que isso foi uma das coi-sas que me atraíram nele em comparação com homens que faziam parte domeu círculo de amigos, com a minha idade, já com também o meu estatutoacadémico. Ele era diferente. E eu achava que devia ir de encontro com asminhas necessidades, provavelmente.

O processo de atracção não pode, todavia, ser dissociado de factoresmais estruturais que o enquadram. Por um lado, estamos perante umamulher e um homem com origens sociais muitos próximas. Por outrolado, o exemplo feminino indomável e dominante da avó paterna – «aúltima palavra era da minha avó!» – não foi alheio à inclinação de Lurdespor um homem que, ainda adolescente quando começaram a namorar,lhe deve, segundo ela, o incentivo para prosseguir e concluir uma for-mação universitária. A superioridade etária desta mulher foi, assim, de-terminante da aproximação quer da formação de ambos, quer dos seuspercursos ascendentes em relação às famílias de origem. Por outro lado,esta intervenção de Lurdes no percurso de Sebastião tem na sua raiz aimportância – herdada dos pais – que, ela própria, atribui a uma forma-

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ção superior, conquanto a entrevistada denegue abertamente a proximi-dade social – «não pelo facto de eu ter um curso superior» – como motivopara ter influenciado o marido nas suas opções.

A minha mãe falava-me nisso muita vez: «Mas tu estás a ver uma dou-tora, tu andas com um puto, tu não te importas com aquilo que as pessoasdizem!?» Quer dizer, ela nunca me devia fazer estas perguntas assim, porqueela sabia a resposta. Eu estava no último ano e ele estava a fazer o 10.º ou o 11.º. Não tinha nada a ver, não tinha nada a ver! E o Sebastião dizia sempreque acabava de estudar, de fazer o secundário e que ia trabalhar. O Sebastiãodizia, ele verbalizava isso, que ele não gostava de estudar! Um completo cá-bula! E eu achava que o Sebastião para estar ao meu lado tinha que ter umcurso superior, não pelo facto de eu ter um curso superior, mas porqueachava, e acho sinceramente, que ele é uma pessoa extremamente inteligentee acho que era uma pena ele não aproveitar e ter outras oportunidades detrabalho e outras oportunidades que se abrem pelo facto de ter outro estatutoacadémico.

Foi, aliás, o papel de orientadora e incentivadora, assumido pela en-trevistada na formação superior de Sebastião, que explica o agrado comque esta mulher, excepcionalmente mais velha, foi acolhida pelos futurossogros. Uma vez que ambos os pais de Sebastião puderam apenas con-cluir a quarta classe, o ingresso do filho no ensino superior representouefectivamente uma conquista familiar. Perante a ausência de estímulodeste homem para continuar os estudos, compreende-se bem a recepti-vidade dos seus pais ao namoro com Lurdes.

A reacção dos meus sogros não foi muito negativa, porque não tinhammuito argumento. Até porque lhes estava a sair a sorte grande! Eu estava aacabar o meu curso, quer dizer, nessa altura já tinha terminado, portantotinha uma licenciatura, tinha carro à porta, tinha uma vida completamenteindependente, tinha trabalho. O que é que eles queriam melhor para o filho,não é? [...] Até porque eu era uma pessoa excelente, eles adoraram-me. E porque eu fiz muito pelo filho deles, no sentido em que o Sebastião sem-pre foi um grande cábula, não queria estudar. Eu é que o amarrei duranteaquele tempo todo, e se ele tem uma licenciatura, vale aquilo que vale, foiporque eu o obriguei a estudar!

Todavia, apesar da proximidade social assegurada pelas suas origens,quer os pais da entrevistada, quer a amiga que lhe apresentou Sebastiãotiveram reacções reprovadoras da relação. Se a última foi sentindo esvair--se – à medida que se consolidava a relação entre Lurdes e o primo – o

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lugar afectivo central por ela ocupado, já os pais da entrevistada não es-conderam a sua reprovação pela diferença de idades no casal, não tantopor se tratar de um homem mais novo, mas por considerarem Sebastiãoainda demasiado jovem. Porém, ao contrário da reacção da mãe, à qualjá Lurdes estava habituada, a reacção do pai foi «enfrentada» como umdesafio, pois Lurdes sentia que, pela primeira vez, não havia correspon-dido às suas expectativas. Abalado e apreensivo com a notícia, o pai nãoretirou, ainda assim, a confiança que sempre depositou nas decisões dafilha. De resto, enquanto a reacção negativa da prima de Sebastião, comquem Lurdes «tinha uma amizade muito sólida», teve consequências ir-reversíveis, provocando um afastamento definitivo entre as duas, o tempoe a consolidação da relação do casal dissiparam a reacção avessa dos pais.

Com os meus pais as coisas foram complicadas nessa altura. Eu lembro--me de tentar com pezinhos de lã chegar à minha mãe e lembro-me de aminha mãe dizer «Tu não me vais dizer que estás a namorar com ummiúdo?». Foi a frase da minha mãe. Que era um miúdo! [...] Com o meupai custou-me mais. E o embate com o meu pai! Mas também só foi umavez. O meu pai chamou-me com um ar muito solene. E o meu pai só meperguntou assim: «Tu sabes o que é que estás a fazer?» O meu pai, como éuma pessoa de poucas palavras e nunca foi uma pessoa de me perguntarqualquer coisa sobre... Sempre confiou nas minhas decisões. Sempre! Nuncame pediu satisfações. Eu sempre fui uma menina muito responsável. E elesempre foi consentâneo com essa responsabilidade. E, portanto, o embatecom o meu pai para mim foi mais frio no estômago, porque foi mais sério.Enquanto a minha mãe grita e não-sei-quê, aquilo depois não se leva muitoa sério. O meu pai, ter que olhá-lo nos olhos e dizer: «Sim, eu tenho a cer-teza.» Aquela frase, para mim, foi mais complicada de ouvir e de dizer!

A prioridade da carreira

Nos casais com trajectórias hipogâmicas, a aposta na carreira profissionalé manifestamente mais acentuada junto da mulher, para quem os encar-gos com a maternidade e a família não assumem primazia sobre os de-mais domínios de gratificação. Deparamos aqui com situações em que amulher confere sobretudo elevada importância à sua carreira profissionale, quando muito, atribui à família ou à maternidade uma prioridade es-porádica e temporária. Se as diferentes estratégias de articulação trabalho-fa-mília – carreirista e maximalista – têm subjacentes orientações distintasface à maternidade enquanto domínio de gratificação, ambas são, no en-

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tanto, elaboradas por mulheres que recusam abdicar de uma forte apostana carreira profissional. Em particular, se para algumas entrevistadas comestratégias maximalistas a carreira não se sobrepõe a outros domínios degratificação, nem por isso deixa de ser uma dimensão por excelência darealização individual, revelando ainda assim atitudes diversificadas: orase desdobram nos dois universos (atitude polivalente), transferindo para avida profissional o seu empenho na maternidade e lidando com a suaprofissão e carreira «como se fosse um filho» (Helena); ora atenuam asexpectativas de articulação (atitude moderada); ora, enfim, adiam simples-mente a maternidade (atitude alternada), reconhecendo as suas limitaçõesno que toca ao ideal da polivalência.

Entre o significado contido da maternidade e a prioridade dos primeiros anos da criança

As mulheres com trajectórias hipogâmicas distinguem-se pelo valor rela-tivo que a maternidade assume entre os domínios de gratificação pessoal.Esse valor relativo é obviamente manifesto na estratégia de articulação tra-balho-família entre a vida familiar e a vida profissional. Há entrevistadasque elaboram estratégias carreiristas, assumindo mais abertamente a priori-dade da carreira profissional, enquanto outras delineiam estratégias maxi-malistas, procurando a máxima realização em ambos os domínios, profis-sional e familiar, sem, contudo, deixarem de reconhecer a prevalência quea carreira assume no universo de realização pessoal.

Ana constitui o exemplo de quem confere prioridade à carreira, nãoatribuindo, por outro lado, o mesmo valor à própria experiência da ma-ternidade que as demais entrevistadas. Mãe pela primeira vez aos vinte enove anos de idade, Ana não tinha qualquer experiência com criançaspequenas, confessando nunca se ter sentido vocacionada para cuidar debebés. Compara, aliás, esta prestação de cuidados à única tarefa domés-tica que gosta de realizar, comparação essa suficientemente elucidativado significado contido que a experiência da maternidade, sobretudo nosprimeiros anos da criança, assume junto da entrevistada. O facto de terficado «muito doente com o nascimento» do primeiro filho não terá,certamente, contribuído para contrariar as suas expectativas, mas tambémnão funcionou como impedimento para que o casal planeasse um se-gundo filho, nascido dois anos depois.

O primeiro bebé que eu tive nas mãos foi o meu filho. Eu nunca gosteimuito de bebés. Gosto muito de cozinhar. Foi com as empregadas dos meus

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avós que aprendi o gosto pela cozinha. Portanto, talvez os tachos e as panelassejam mais importantes para mim do que os bebés.

A confessa falta de simpatia de Ana pelos cuidados ao bebé não deve,pois, ser confundida com um sentimento de resignação, porque, subli-nhe-se, os seus filhos foram desejados. Todavia, ao contrário da maioriadas entrevistadas, os encargos com a criança são interpretados como umasobrecarga penosa que é apenas atenuada pela forte participação do ma-rido. A entrevistada recorda que foi Alfredo quem mais esteve presentejunto dos filhos desde o seu nascimento e que, «ainda hoje, quando estãomuito aflitos com qualquer coisa, chamam o pai, em vez de chamar amãe». Esta inversão dos papéis parentais respectivamente associados aofeminino e ao masculino não deixa de ser vivida com algum desconforto,pois Ana não esquece que a «primeira palavra» do seu filho – «mãe» –foi dirigida ao marido.

Já a prioridade da carreira profissional não é particularmente manifestaem Genoveva. Esta entrevistada iniciou uma vida conjugal com filhosbastante mais tarde que as demais entrevistadas e, desde então, tem pro-curado maximizar as apostas nos dois universos. Fá-lo, todavia, com mo-deração (estratégia maximalista moderada), atendendo ao equilíbrio que de-seja na articulação entre a vida familiar e um percurso profissional quese define pela mobilidade social ascendente em relação à família de ori-gem. Genoveva sublinha, assim, não tanto o valor da maternidade paraa realização pessoal, mas, pelo contrário, a «intrusão» que os filhos re-presentam, ainda que não se «culpe» por ser mãe, recordando ter sidoesse o seu desejo.

Eu acho que um filho é sempre um intruso, claramente um filho é umintruso. São intrusos que nós quisemos. Portanto, imediatamente a vida deduas pessoas, de um casal, se altera. Eles são intrusos, mas foram muito de-sejados. Portanto não posso culpar-me, não posso começar a pensar... Claro,os filhos vieram porque... nós não casámos com a tal ânsia de ter filhos, pen-sámos «se vierem, nós queremos muito, mas não se vai fazer disso um ca-valo-de-batalha».

As estratégias maximalistas de outras entrevistadas não são, por sua vez,levadas a cabo com a mesma moderação. Com efeito, estas mulheres oraacreditam na possibilidade de articulação sejam quais forem as exigênciasde ambos os universos (atitude polivalente), ora preferem apostar mais numou noutro universo consoante a etapa do ciclo familiar ou do percursoprofissional (atitude alternada). Se a maternidade ocupa um lugar cimeiro

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entre os domínios de gratificação, o papel de mãe adquire aqui um sig-nificado particular, tratando-se sobretudo de um projecto cuja concreti-zação tem implicações particularmente acentuadas na realização pessoal.Uma primeira manifestação deste valor da maternidade traduz-se no de-sejo de uma descendência numerosa e, por vezes, superior ao númerode filhos que as «condições» permitem. É o caso de Helena, mãe de umrapaz e de duas raparigas «não planeados». Tinha vinte e seis anos deidade quando foi mãe pela primeira vez, e trinta e três quando deu à luzo terceiro filho. Confessa que, «se tivesse tido oportunidade, teria tidomais», considerando que, com quarenta anos de idade, já não vai a tempode engravidar pela quarta vez. O seu desejo contrastou fortemente como do marido, renitente quanto à ideia de ser pai. Embora Helena con -sidere que a experiência da paternidade «mudou» Herculano, é o desejode maternidade que tem prevalecido, como sugere o facto de o casal nãoter planeado nenhum dos filhos.

Nenhum dos meus filhos foi planeado. Não foram programados, masforam sempre desejados. O Herculano achava que ter filhos... Achava queeste mundo não era um mundo bom para se viver, e que ter filhos era umaresponsabilidade grande de mais. Mas, depois, a partir do momento em queteve o primeiro, ou em que soube que ia ter, acho que isso mudou. Eu nãome importava de ter mais! Se tivesse tido oportunidade, teria tido mais.

Não planeado foi também o único filho de Lurdes. Apesar de o filhoter também sido «desejado» pelo marido, um distúrbio hormonal nãofazia supor que ela pudesse engravidar sem recorrer a tratamentos. No en-tanto, o forte significado da experiência maternal revela uma outra mani-festação da maternidade como projecto, manifestação essa que assenta naprioridade atribuída à proximidade da mãe nos primeiros anos de vida dacriança. Neste caso, a chegada de um filho implicou que a entrevistada,até então totalmente entregue à sua carreira profissional, conferisse prio-ridade à criança durante os primeiros anos de vida. Com efeito, equipa-radas à importância central que a profissão ocupa na esfera de realizaçãopessoal, a família e a maternidade não têm, no âmbito de uma estratégiamaximalista, primazia sobre a vida profissional, mas Lurdes estabeleceuprovisoriamente uma ordem de prioridades, renunciando a uma entregasimultânea à família e à profissão nos primeiros anos da criança.

Lurdes não deixa de justificar o carácter alternado da sua quase totaldedicação ora à vida familiar, ora à vida profissional: «há muitas coisasque me movem, e eu não me posso entregar a muitas coisas ao mesmo

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tempo». Daí que a chegada de um filho tenha implicado «ser mãe atempo inteiro até ele ir para a escola», uma atitude alternada no quadrode uma estratégia maximalista que contrasta fortemente com a estratégiacarreirista de Ana, cujo acompanhamento nos primeiros anos da criançaesteve sobretudo a cargo do marido. Refira-se, por outro lado, que a ati-tude de Lurdes não se confunde com a das entrevistadas com estratégiasfamiliaristas. Simplesmente, e à semelhança das atitudes e comportamen-tos observados noutros países europeus (Wall 2007a), Lurdes faz questãode ser ela própria a cuidar do filho nos primeiros anos de vida. Com aexcepção da mãe, sublinha: «nunca o deixei com outra pessoa». Para esteacompanhamento sistemático foi decisiva a flexibilidade do seu horáriode trabalho. Seis meses após o nascimento do seu filho, regressou ao em-prego, trabalhando, no entanto, a tempo parcial. De resto, esclarece que«também não trabalhava todos os dias, tentava juntar as consultas parater tempo disponível para voltar para casa e estar com ele». O estatutode prioridade que o acompanhamento da criança adquire, nos primeirosanos de vida, vai de par com o valor de que se reveste a chegada dacriança, valor esse que não é surpreendente, se atendermos à importânciaatribuída ao nascimento dos filhos junto da maioria das mulheres-mãesem Portugal (Aboim et al. 2005).

O nascimento do filho é qualquer coisa de miraculoso! O casamento foiespecial, foi um dia especial, mas foi suplantado pelo nascimento do meufilho, porque eu acho que o nascimento de um filho é uma coisa... Começa--se a pensar que não há-de ser só um espermatozóide e um óvulo que fazemaquilo! Não pode nascer só da matéria! Tem que haver qualquer coisa, equando vemos o filho a sair de nós, nada pode suplantar isso.

No entanto, a gratificação que retira do nascimento do filho concorrefortemente com a importância atribuída à carreira profissional, o que ex-plica a sua dedicação alternada aos dois universos. Com efeito, da mesmaforma que esta gravidez não estava nos planos de Lurdes, a hipótese deum segundo filho parece afastada, pois a entrevistada considera que, en-tretanto, outros «interesses» prevalecem, referindo-se obviamente aos «in-teresses» pessoais relacionados com a profissão e a carreira. Todavia, de-preende-se das suas palavras um sentimento de culpa, originado pelapressão das expectativas sociais face à maternidade. Com efeito, a prio-ridade atribuída aos seus próprios «interesses» questiona o ideal de fusãoda mulher com a maternidade e a família, ideal esse prescrito por um le-gado normativo que – mesmo apesar da observada disposição para agir

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enquanto sujeito social susceptível de compromissos exteriores à família– estrutura a identidade feminina.

Acho que eu estou numa fase da minha vida em que há muitos interessesque falam um bocadinho mais alto. Também acho que a paciência... Eu vejoaquelas revistas que as mães dos quarenta anos, não-sei-quê, que é muitomelhor altura, têm muito mais paciência, porque estão muito mais no augefinanceiro e profissional... Isso é uma bela treta! Eu não acho nada disso, euacho que tenho outros interesses, neste momento. Não vejo o interesse ma-ternal aumentar com a idade! Pelo contrário! Eu acho que me apetece fazeroutras coisas. São interesses que talvez possam ser considerados um poucoegoístas. Eu acho que não. Mas ouve-se muito isso, sabe? Ouve-se muitoisso! Até as pessoas à minha volta.

A carreira como domínio máximo de gratificação da mulher

Uma primeira estratégia de articulação trabalho-família que observamosentre os casais com trajectórias hipogâmicas define-se pela prioridade quea mulher atribui à sua carreira profissional. Com quarenta e três anos deidade e recentemente doutorada, Ana é docente no ensino superior. É casada com Alfredo, docente do ensino secundário, com quem temdois filhos. Ana é proveniente de um meio social claramente mais favo-recido do que o do seu marido. Alfredo «gostava», segundo Ana, «de tertirado o curso de Direito», mas os constrangimentos financeiros contri-buíram para que «ficasse» pela licenciatura em Desporto. Não obstante,a entrevistada faz questão de sublinhar que o marido «gosta daquilo quefaz e é um excelente profissional». Já ela podia ter enveredado pela licen-ciatura em Medicina, tal era o desejo do seu pai, mas optou por se formarem diferentes áreas das Ciências Sociais. Terminada a licenciatura emHistória, Ana inscreveu-se no mestrado em Ciência Política. Tinha entãovinte e dois anos e uma segunda licenciatura ainda por terminar. «Nomeio disto tudo, divertia-me, saía à noite», recorda ao mesmo tempo quelamenta as consequências negativas – «podia ter tido médias mais eleva-das» – de ter frequentado duas licenciaturas em simultâneo.

Fui eu que decidi para onde é que devia ir. Eu pensei duas vezes em irpara Medicina porque tinha de fazer exame a Físico-Química e eu a Físico--Química era uma desgraça, de maneira que aí pensei duas vezes e decidi irpara as Ciências Sociais... O meu pai ficou passado, achou um escândalo edizia «andas a estudar para quê? Para seres professora toda a vida?» Mas fizaquilo que queria. [...] Acabei o curso tinha vinte e dois anos e ao mesmo

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tempo estava a fazer um curso... estava a fazer dois cursos ao mesmo tempo.Depois de ter a licenciatura acabada fui fazer o quarto ano [do outro curso]e inscrevi-me também num mestrado. Portanto, estive um ano assim em quefiz tudo, fiz sondagens, fiz montes de coisas.

Tal como poucas mulheres entrevistadas, Ana dá prioridade à vidaprofissional, assim o demonstra o seu percurso, marcado por uma intensaactividade e iniciado muito antes de concluída a primeira licenciatura.Ainda estudava quando começou a trabalhar, tinha então dezanove anosde idade, numa empresa de sondagens criada pelo pai. O exercício deuma actividade profissional veio proporcionar-lhe a «independência» quedesejava, e, desde então, «nunca parou de trabalhar». Enquanto frequen-tava o mestrado, leccionou no ensino secundário, mas, insatisfeita coma profissão, aceitou a oportunidade de exercer docência e fazer carreirano ensino superior.

Como eu já não gostava de estar dependente quer dos meus pais, querdos meus avós, comecei a trabalhar... Aí eu trabalhei em sondagem política,fiz de tudo, os trabalhos de gabinete, apliquei os questionários... A partirdaí, nunca parei de trabalhar. [...] O que eu gosto de fazer é aquilo que faço,embora às vezes me apeteça bater com a cabeça nas paredes. Mas, não eracapaz de não trabalhar. Quando fiz a opção de ir dar aulas [no secundário]e vi as secretárias todas à minha frente e mais os livros de ponto eu disse:«Não, não, não, não! Não é isto que eu quero. O que quero é isto, é daraulas na faculdade.» [...] O que eu queria mesmo era seguir a carreira acadé-mica. Eu comecei o mestrado antes de dar aulas, naquele ano em que eu es-tive parada e resolvi continuar e fazer a segunda licenciatura e o mestrado.Depois, no ano seguinte, em que fui colocada para dar aulas ao secundário,começam a surgir hipóteses de trabalho na universidade. E eu tive que fazera opção, e fiz a opção de seguir a carreira académica.

Em jeito de balanço, Ana lamenta não ter terminado a segunda licen-ciatura, o que não a impede de ostentar a sua «polivalência» no que tocaaos conhecimentos adquiridos ao longo dos anos. A dedicação à sua for-mação, à actividade profissional e à carreira foi, na verdade, menos con-dicionada pelos encargos com a família – ainda que a entrevistada vá re-cordando «tenho também que tomar conta dos meus filhos» – do quepelo cansaço acumulado ao longo dos anos. A um horário de trabalhosuperior em cinco horas semanais às trinta e cinco de Alfredo, acresceainda o tempo que despende em casa com a preparação das aulas decinco licenciaturas diferentes, a correcção de trabalhos encomendados

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aos alunos, testes e exames, etc. Mas recorda que o seu horário de traba-lho já foi superior, quando terminava a tese de doutoramento. Tal comoverificaremos mais adiante, a disponibilidade desta mulher para a suaformação e carreira vai de par com uma divisão do trabalho domésticoque se demarca da norma.

A segunda licenciatura, não acabei por terminar... Na altura, eu queriafazer a segunda licenciatura e o mestrado, e não tenho a segunda licenciatura,mas tenho o equivalente a um bacharelato. Tirei o três primeiros anos, eainda fiz o quarto. Portanto, daí a minha polivalência, que vai desde a his-tória, à psicologia, passando pela sociologia do trabalho, sociologia... Estascoisas todas sempre estiveram cá dentro. Agora passo aqui cerca de oito horaspor dia com as aulas, enquanto quando estava a fazer a tese era tipo dozehoras por dia. Já não aguento fazer o que fazia há vinte e cinco anos, queera estudar pela noite dentro.

A carreira e a família como domínios máximos de gratificaçãoda mulher

A prioridade à carreira profissional é, todavia, a estratégia de articulaçãotrabalho-família menos observada no conjunto das mulheres entrevistadas,justamente ao invés da estratégia maximalista. Caracterizada pela apologiade uma aposta máxima nos dois universos de realização pessoal, a ela-boração desta estratégia envolve, nos casais com trajectórias hipogâmicas,atitudes diversificadas. Por um lado, reconhecendo a vida profissional ea vida familiar enquanto prioridades de ordem equivalente entre os do-mínios de gratificação pessoal, estas mulheres apostam o máximo possívelnos dois universos procurando aplicar o princípio da polivalência (atitudepolivalente), ou simplesmente alternando as apostas prioritárias no decursoda vida conjugal (atitude alternada). Por outro lado, a adesão a princípiosmaximalistas na articulação trabalho-família pode implicar uma atitudemoderada face à exigências de cada universo de realização pessoal. É desublihar que, tal como verificaremos neste ponto, as diferenças a níveldas atitudes face à articulação trabalho-família não são alheias ao signifi-cado que estas mulheres atribuem quer à sua carreira, quer à actividadeprofissional do cônjuge.

Helena tem quarenta anos de idade e é casada com um advogado doisanos mais velho que ela. Recusando a prioridade da carreira profissionalsobre a família, e vice-versa, Helena insiste na ideia de polivalência paralevar a cabo a sua estratégia maximalista na articulação entre a vida familiare a vida profissional. A sua atitude polivalente é, desde logo, manifesta na

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gestão da disponibilidade para uma descendência numerosa de três filhose, simultaneamente, uma carreira de investigadora científica e docenteuniversitária. Filha de pais divorciados, Helena cresceu afastada do pai,editor, com quem apenas estava durante os fins-de-semana. A relação coma mãe, secretária com uma licenciatura incompleta, sofreu um rupturaapós a entrevistada ter saído de casa com apenas dezassete anos de idade.«Rígida» e, simultaneamente, «liberal», a mãe de Helena é apresentadacomo uma pessoa «muito conflituosa» que «geria com pouco equilíbrioo autoritarismo e a liberdade». A «exigência» materna nas regras de decoro– «Era rígida nas regras à mesa, era rígida nas horas de entrar e sair de casa.[...] Era rígida nos rituais familiares» – e, «principalmente», nas regras decortesia – «no relacionamento com os outros» – alargava-se às «questõesde cidadania», ao «interesse que nós devemos ter pelas coisas», às «notas»e ao «estudo», mas não se coadunava com a autonomia que sempre per-mitiu à filha: «as decisões eram minhas [...], a vida era minha e [...] elanão mandava em mim». A tensão entre ambas acentuou-se quando a mãeda entrevistada, então adolescente, tomou conhecimento da sua relaçãocom um homem de quarenta anos de idade, tensão essa que levaria a He-lena a sair de casa e a iniciar uma vida conjugal: «era tão complicado con-jugar os dois mundos que tive que optar por um dos lados, e na alturaoptei por uma paixão!». A sua primeira relação conjugal durou apenascinco anos, mas tensão entre ela e a mãe esteve na origem de uma rupturaque ainda hoje perdura.

Terminada esta primeira relação conjugal, Helena foi viver com a ex--mulher do seu pai, tendo sido nesse contexto familiar que conheceuHerculano, afilhado da anfitriã. Da proximidade proporcionada pela co-residência foi nascendo a atracção e o enamoramento entre os dois. He-lena tinha vinte e quatro anos de idade quando começaram a namorar,e vinte e seis quando se casaram. Ficou grávida do primeiro filho – umarapariga – dois anos depois, trabalhava já como investigadora científica,tendo iniciado a actividade profissional três anos antes, por convite deum professor na universidade, quando ainda frequentava o segundo anoda licenciatura. Os convites para colaborar em projectos de investigaçãosucederam-se desde então na instituição onde ainda hoje trabalha. Apóso nascimento da primeira filha do casal, «decidiu» inscrever-se num mes-trado, mas, concluída a parte lectiva, teve que adiar a conclusão da tesepor alguns anos. A ausência de um enquadramento institucional não seadequava, efectivamente, «a quem tinha uma família para sustentar». In-centivada pelo orientador, sensível às suas condições familiares, Helenaassinou um contrato de trabalho fora do universo académico, apesar de

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quase ter sido demovida pelo marido, crítico do que considerava umdesvio do seu percurso académico. Logo após um ano regressaria ao uni-verso académico, integrando projectos e retomando a tese de mestrado.

Entretanto decido fazer o mestrado, e começo a trabalhar num projectodo meu orientador [...]. Entretanto não consigo, porque aí estou a recibosverdes e a situação aqui no instituto era que a gente só podia passar três re-cibos verdes por ano, portanto não era uma situação nada adequada a quemtinha uma família para sustentar. Precisava de receber todos os meses e entãofaço a parte lectiva do mestrado e entretanto não consigo entregar a tese.[...] Entre várias coisas porque arranjo um trabalho também no gabinete dacâmara municipal, é a gestão dos Bairros de Lisboa, onde estive também seismeses... Tinha esse problema e foi o meu próprio orientador o primeiro adizer-me «Se tens a possibilidade de ter um contrato não tens que pensarnem duas vezes, portanto vais». A única pessoa que no meio disto tudo medesaconselhou, mesmo precariamente, a sair do instituto e a ir fazer aquilofoi o Herculano! [...] Entretanto o mestrado fica por fazer. O contrato en-tretanto acabou e eles não renovaram o contrato. [...] Entretanto, integreium novo projecto de investigação neste instituto e consegui reinscrever-meno mestrado e acabei agora, foram dois anos. [...] Consegui conciliar, porquetambém tive todas as condições, quer da parte do meu orientador, quer daparte do coordenador do projecto para fazer a tese.

O percurso profissional de Helena ilustra a tensão que afecta parti -cularmente as maximalistas desprovidas dos apoios e condições necessá-rios à concretização das suas elevadas expectativas familiares e profissio-nais. Se Helena nunca considerou a família como a prioridade, já ainstabilidade financeira inerente ao desenquadramento institucional aobrigou a suspender temporariamente a sua carreira de investigadora,privilegiando um emprego com contrato de trabalho fora do universoacadémico. Posteriormente, agarrou a oportunidade de leccionar numauniversidade privada que lhe proporcionava um ordenado estável.Apoiada e incentivada por Herculano, regressou ao seu percurso original.É, no entanto, com algum sacrifício que ainda hoje se reparte entre a do-cência e a investigação, mais uma vez porque a família exige que tenhauma fonte de rendimento mais estável do que a actividade de investiga-ção proporciona. O volume de trabalho inerente à sua actividade profis-sional obriga a prolongar as horas no local de trabalho em virtude deuma ausência de condições para trabalhar em casa, onde à progressivafalta de espaço em casa acrescem as «solicitações» de um rapaz e duas ra-parigas em idade escolar. E a essas solicitações tem Helena dificuldade

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em furtar-se, esclarecendo: «também não vou abdicar desses momentoscom eles para estar a trabalhar».

Gosto muito da minha actividade profissional, desta, da investigação.Não gosto, não morro de amores por dar aulas. Dou porque a situação queeu tenho aqui não é uma situação estável. Portanto, a qualquer momentoposso deixar de trabalhar neste instituto. Portanto, há que manter sempreuma outra hipótese, e dou aulas porque, apesar de tudo, são muitos filhos,é muita gente. Tanta gente, aliás, que é impensável trabalhar em casa! Nãoé possível, pelo menos quando eles estão. Às vezes, é mau para o meu tra-balho, principalmente quando se está a conciliar, ter que prestar trabalhonum projecto aqui, e depois ter que fazer o mestrado ou ter que dar aulas,ter que preparar aulas... Precisava de um espaço em casa para trabalhar! Nãotenho o espaço fisicamente, quer dizer, não há condições logísticas para euentrar e fechar a porta e dizer «Agora estou a trabalhar!». Por outro lado,também quando estou com eles há solicitações que eu não vou recusar.Desde as ajudas para os trabalhos de casa, desde eles quererem brincar umbocadinho, quererem estar com a mãe...

O carácter maximalista da estratégia de articulação trabalho-família é,enfim, particularmente evidente quando Helena compara o seu empe-nho na profissão com a gratificação que a maternidade representa: «oque eu invisto nesta profissão é quase como se fosse um filho!». Este em-penho na actividade profissional é assim levado às últimas consequências– «dou tudo por tudo para que as coisas corram o melhor possível» – eHelena reconhece que reage frequentemente mal à adversidade – «deixo-me vir abaixo com muita facilidade» –, reacção essa que é alvo da críticado cônjuge. Comparado com o dela, é modesto o ritmo de trabalho deHer culano, o que contribui para explicar a trajectória hipogâmica de umaunião conjugal inicialmente homogâmica. Na verdade, a entrevistada re-conhece, em jeito de balanço, que sobre o marido foram pesando deter-minadas responsabilidades para com pessoas da sua própria família. Umamãe idosa e um primo (João) de quem Herculano assumiu a tutoria,foram decisivas para que este homem se sentisse «obrigado a dar maisapoio» à sua família do que a mulher. Por outro lado, Helena permaneceufirme na negociação conjugal destes encargos, não abrindo mão da suadisponibilidade para a profissão.

Quando as nossas vidas foram mais complicadas em casa era quando aminha sogra estava lá em casa, e ainda quando o João estava lá em casa. Querdizer, quem se sentiu mais obrigado a dar mais apoio era ele. Portanto, até,se calhar, quem abdicou mais foi ele. Por exemplo, a nível profissional, numa

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altura em que era importante para ele trabalhar mais e que não o pôde fazer,porque era a mãe dele e era o primo dele, eu aí senti que eu não ia abdicarda minha profissão para dar apoio em casa.

No entanto, às obrigações familiares acatadas por Herculano acresceuma actividade profissional exercida sem a gratificação pessoal que He-lena retira da sua, o que não deixa de se reflectir num rendimento eco-nómico inferior ao da entrevistada e, portanto, na preocupação desta emassegurar uma fonte estável de rendimento para a família. Helena só en-contra justificação para a ausência de realização profissional do maridona sua própria «inércia», uma atitude que a entrevistada resume recor-rendo à expressão de Herculano: «vamos trabalhar com aquilo que setem». Desabafa que esta ausência de realização através da profissão trans-formou-o numa «pessoa que está constantemente constrangida, ansiosae de mau humor quando está em períodos de tensão».

Realizada profissionalmente, a entrevistada não só aufere rendimentossuperiores como também se alarga mais no horário de trabalho. En-quanto Herculano termina a sua jornada ao fim de oito horas de traba-lho, Helena permanece no local de trabalho durante nove a dez horaspor dia. As «exigências» do trabalho, mas também o «gosto» pela profis-são que exerce impedem-na de abandonar o local de trabalho quando«está na hora», continuando, muitas vezes, «até às oito da noite a traba-lhar, porque as coisas têm que ser feitas». Em determinados dias da se-mana, a docência exige que se apresente às oito da manhã na faculdade,e os fins-de-semana podem ser sobrecarregados com trabalho, parti -cularmente nos períodos dedicados à sua formação – tal como a redacçãoda tese de mestrado –, ou seja, nos períodos em que considera estar a«trabalhar para mim». O pesado horário de trabalho não é, contudo, en-carado como obstáculo ao tempo destinado à família ou a si própria, ounão fizesse Helena questão de sublinhar que «nem é de mais nem é demenos, é o que eu quero!».

Nos últimos sete anos, trabalho muito mais do que dantes, por exigênciase porque, como gosto, também não digo «Está na hora de me ir embora,vou-me embora». Dantes tinha mais tempo assim entre as seis e as oito. Erammais aquelas duas horas por dia. Não que isso implicasse estar mais tempocom eles. Tinha era mais tempo para mim, mas também não lhe sinto muitafalta, porque gosto do que faço, trabalho naquilo de que gosto.

Pese embora a estratégia maximalista pressuponha uma equiparaçãoentre a vida profissional e a vida familiar enquanto domínios de gratifi-

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cação pessoal, a importância que estes assumem pode ser suficientementeelevada para obrigar a mulher a separar os tempos das apostas em cadauniverso. Esta atitude vislumbra-se no relato de Lurdes, para quem o tra-balho e a família vão adquirindo alternadamente o estatuto de prioridadeem etapas diferenciadas do seu percurso. Com efeito, Lurdes revela umaatitude perante a articulação trabalho-família que a diferencia das restan-tes entrevistadas com trajectórias hipogâmicas, que apostam na vida familiare na vida profissional sem que nalgum momento um dos universos tenhaassumido prioridade sobre o outro.

Com quarenta e um anos de idade e casada com um geógrafo, estapsicóloga tem apenas um filho. Conjuga actualmente as suas competên-cias académicas com a actividade de empresária em nome individual, re-partindo-se entre consultas, acções de formação e a concepção de «pro-dutos» de vertente pedagógica, que coloca à venda na internet ou noscongressos a que se desloca. Estes «produtos», explica-nos, consistem em«software educativo para crianças com necessidades educativas especiaise programas estruturados para ajudar os professores a fazer os programaseducativos individuais no domínio das competências numéricas, naaprendizagem da leitura, fichas de actividades». Lurdes orgulha-se do seupercurso profissional e da sua própria formação, uma vez que resultamde um continuado esforço de concretização das suas aspirações. Admi-tindo «alguma incompatibilidade em ter patrões», afirma que «semprefui eu, um bocado, que quis fazer o meu caminho em termos profissio-nais, o que é que eu queria fazer, para onde é que eu queria ir».

Esta apresentação abreviada da sua actividade profissional oculta,porém, especificidades reveladoras quer de um percurso profissional in-terrompido e alterado por uma adversidade, quer de uma adaptação àmudança que – em virtude dessa adversidade – muito deve à dinâmicaconjugal e familiar. Com efeito, Lurdes não dispõe actualmente de umespaço próprio para fazer consultas, explicando que «vai onde as pessoasestão, a casa das pessoas, ou então pelo telefone». Actualmente, trabalhasobretudo a partir de casa, mas a colocação dos «produtos» que ela própriaelabora na internet está dependente da intervenção do marido: «eu façoos conteúdos teóricos, os objectivos, depois o Sebastião, que é o homemda informática, põe aquilo em termos de programa de software, e depoisnós vendemos on-line». Esta situação profissional é, contudo, recente,tendo resultado de um ponto de inflexão no seu percurso profissional.

Provenientes de uma aldeia, os pais de Lurdes vieram para Lisboaexercer profissões pouco qualificadas com «o sonho de a filha ter uma for-mação superior», «sonho» esse que viram concretizado quando a entre-

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vistada concluiu a licenciatura. Os objectivos profissionais da entrevistadacomeçaram, por sua vez, a delinear-se ainda quando estudava. Tendo co-meçado por trabalhar com uma associação de portadores de uma pato-logia crónica logo após concluída a licenciatura, Lurdes viria a especiali-zar-se no acompanhamento de crianças afectadas por essa patologia. A opção pelo estágio num hospital público foi tão invulgar – num con-texto em que «as colegas estagiavam em escolas e faziam teses de licen-ciatura ligadas a competências académicas» – como reveladora do seuobjectivo em dar acompanhamento a «crianças com perturbações no de-senvolvimento», objectivo esse que viria a estruturar a sua carreira pro-fissional. A opção pelo estágio no hospital teve efeitos negativos nas suasrelações no meio universitário, mas à experiência aí adquirida acresceu odesafio de estagiar fora do país.

Concluídos os dois estágios, Lurdes, então com vinte e cinco anos deidade, decidiu alugar um consultório com uma amiga da faculdade comquem viria a fazer uma parceria profissional que ainda hoje perdura. Nosprimeiros anos da sua carreira, esteve, pois, totalmente entregue à activi-dade e à formação profissional, tendo apenas casado com trinta e umanos de idade, tinha então Sebastião vinte e quatro anos e a licenciaturaainda por concluir. Um ano após o casamento, Lurdes seria surpreendidacom o que considera ser o turning point de todo o seu percurso: o diag-nóstico de uma doença debilitante cujos sintomas não tinha, até então,devidamente «valorizado». A partir do momento da entrevista em querevela a adversidade, o seu discurso passa a sublinhar sistematicamentea mudança radical que os efeitos da doença lhe impuseram. Na verdade,atendendo às consequências na vida quotidiana, a doença representou,literalmente, um ponto de inflexão, em particular, no seu percurso pro-fissional. O modo como é recordada e descrita a adversidade é tanto elu-cidativo da necessidade de alterar todos os projectos pessoais quanto daimportância que a própria actividade e a carreira profissional assumemjunto desta mulher. Num primeiro momento, as dores físicas foramacompanhas de uma «depressão» e da incapacidade para, tal como su-blinha Lurdes, «fazer a minha vida autónoma», incapacidade essa que seprolongaria por um ano. Todavia, à confrontação inicial com um quadroclínico revelador de uma doença com períodos críticos sucedeu-se umlento percurso de recuperação.

O que me fez mudar de ideias foi um bocado aquilo que foi o turningpoint da minha vida, quando eu tinha trinta e dois anos. É assim: eu nessaaltura comecei a ter muitas dores e, portanto, tinha uma doença – que é a

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espondilite anquilosante – que já se devia estar a desenvolver há muitotempo, porque tinha tido sintomas que não tinham sido valorizados. Che-gou uma altura em que o meu corpo disse «agora tens mesmo que olharpara mim, não há maneira, olha mesmo!». Eu entrei em depressão, porquedeixei de fazer a minha vida como fazia. É uma doença extremamente de-bilitante em termos de cansaço físico, em termos de dores! Dores vinte equatro horas por dia! E como eu me recuso a estar medicada, aguento asdores. [...] Fui confrontada com uma doença crónica, extremamente inca-pacitante que pode ter melhoras e pode não ter melhoras, e tem crises! Pareidurante um ano. Recuperei aos poucos, muito aos poucos. Isto tem sido umprocesso lento!

Lurdes insiste na exposição das consequências da doença na vida pro-fissional e na descrição dos seus sintomas, pois, tal como sublinha: «euestava no topo da carreira e não me podia dar ao luxo de ter este tipo decomportamento». A sua actividade profissional e, mesmo, a vida quoti-diana sofreram uma transformação drástica, pois a capacidade de dar res-posta à diversidade de solicitações tinha ficado à mercê da imprevisibili-dade do mal-estar provocado pela doença. Do sofrimento físico decorreua impossibilidade de dar continuidade ao acompanhamento daquelesque dependiam da sua intervenção profissional. Lurdes afirma ter, enfim,«aprendido a conviver com a doença». O longo processo de recuperaçãofoi acompanhado do esforço para retomar o percurso profissional mesmocom os condicionamentos da doença. No entanto, em lugar de enfrentá--la como um obstáculo no caminho, interpreta hoje a doença como um«sinal» de que a sua vida profissional tinha, «inconscientemente», ficadopresa nas malhas da «rotina».

Mudei de vida por constrangimento da doença, porque eu estava bemna vida, não é? Aparentemente, eu estava bem na vida, fazia aquilo de queeu gostava, embora ’tivesse a ficar rotineiro e eu não percebi o sinal. Na al-tura, era isso que eu queria fazer. Eu não estava obrigada a fazer nada. Porque é que eu ia fazer outra coisa diferente? Eu até gostava daquilo que estavaa fazer, ganhava um bom dinheiro, tinha uma casa, tinha um carro, tinhaum homem que eu amava... Estava tudo bem! Mas não. Havia... eu achoque na altura que o meu corpo me foi dizer isso, foi-me lembrar. Era o meuhorário de trabalho. Era a coisa de ver crianças, de fazer sempre a mesmacoisa, fazer sempre a mesma coisa! Aquilo começou ali nhã, nhã, nhã, nhã.Acho que houve uma parte de mim que eu tentei esquecer, de coisas que euqueria fazer e que eu gostava de fazer, e tinha esse sonho na adolescência, eaquela coisa das oito às oito começou a deixar de fazer sentido! Aquela cor-rida! Só depois desse constrangimento é que eu comecei a perceber que, afi-

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nal, não era bem assim, porque aquilo tinha-se tornado uma rotina e eu nãoconvivo bem com a rotina. Eu acho que foi isso que a doença me trouxe,porque eu tive tempo para pensar, para parar, porque eu não estava a parar.Eu fazia aquela vida, que era uma vida de corrida.

Com efeito, o repúdio do rumo que a sua vida profissional havia to-mado antes de lhe ser diagnosticada a doença traduziu-se na elaboraçãode um projecto empresarial. Este projecto permitiu-lhe simultaneamentetrabalhar a partir de casa e encontrar «soluções dentro da mesma área»que substituíam a «rotina» pela «criatividade». Entre o ano destinado àconvalescença – durante o qual esteve sem exercer qualquer actividadeprofissional – e a criação do seu projecto empresarial, Lurdes regressouà associação para a qual desde sempre tinha trabalhado, passando, desdeentão, a «gerir» o seu próprio horário e a dar «poucas consultas».

Entretanto, nasceu o único filho do casal de uma gravidez não pla-neada, mas claramente desejada. Ora, a gravidez adequava-se a um ritmode trabalho necessariamente menos intenso. A notícia da gravidez surgiuquando Lurdes, até então exclusivamente dedicada à carreira, planeavaa nova vida profissional. E porque, segundo ela, «um filho é uma coisaque necessita de muita atenção», conferiu então prioridade quase total àmaternidade durante os primeiros anos de vida desta criança. As suas pa-lavras são suficientemente elucidativas da transformação da carreira pro-fissional numa prioridade adiada. Lurdes só cessou o contrato de trabalhoquando sentiu que o seu filho reclamava menos de si, tinha ele quatroanos de idade, libertando-se assim para uma dedicação a tempo inteiroà actividade de empresária. No entanto, para a concretização deste pro-jecto empresarial foram, sublinhe-se, determinantes o apoio e a partici-pação de Sebastião.

Um filho é uma coisa que necessita de muita atenção, que solicita muito.Eu não consigo fazer as duas coisas ao mesmo tempo, porque tambémaquilo que eu faço é um acto de criação, percebe? Então parece que tenhomuitos filhos ao mesmo tempo, tenho que cuidar, tenho que estar disponí-vel, porque se fosse um trabalho tipo das oito às nove em que tu fazes o tra-balho, deixa-lo lá e voltas e não-sei-quê… Mas não, aquilo que eu faço, euquando eu estudo eu preciso de estar enfronhada naquilo. Ou bem que estoua criar essa criança, ou bem que estou a cuidar da outra criança.

Sebastião começou por trabalhar numa empresa privada sensivel-mente um ano após o casamento e o término da licenciatura. No mesmoano em que nasceu o filho do casal – já Lurdes tinha adaptado a sua vida

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profissional às limitações da doença –, Sebastião mudou de emprego,passou a trabalhar para o Estado, trocando a estabilidade de um lugar de«quadro superior na empresa» por uma situação «sempre a contratos»que perduraria apenas três anos, mas, de acordo com a entrevistada,«muito mais consentânea com a [sua] criatividade». Ainda que tenha re-cebido sempre «o ordenado por completo do subsídio de desemprego»,foram necessários dezoito meses para que então surgisse nova oportuni-dade de trabalho, desta vez numa câmara municipal, situação profissionalessa que Sebastião hoje complementa com a participação no projectoempresarial de Lurdes.

Em suma, já sem as «solicitações» da maternidade que marcaram osprimeiros anos de vida do seu filho e adaptada às limitações da doença,Lurdes aposta intensamente numa actividade profissional em regime li-beral. Regozijando-se com a libertação dessas «solicitações» – «Benditaescola!» – recusa planear outra gravidez, receando os efeitos negativos damaternidade na concretização dos seus projectos profissionais, precisa-mente porque a sua estratégia de articulação trabalho-família não pode – so-bretudo em virtude das limitações impostas pela doença – ser levada àprática com a atitude polivalente observada junto de outras entrevistadas.

Ou bem que se é mãe ou bem que se está a trabalhar, a fazer as coisas.Torna-se difícil para mim gerir. Embora as necessidades do meu filho já nãosejam tantas, porque ele tem seis anos e agora a maior parte do tempo estána escola. Bendita escola! Portanto esse tempo em que ele está na escola, eujá tenho aquele tempo para mim, que eu necessito, percebe? [...] Se agoravier outro filho, eu tenho que parar outra vez aquilo que eu estou a fazerpara me envolver com esse filho. Não quer dizer que, se ele aparecer damesma maneira que apareceu o meu filho, isso não aconteça, mas, delibe-radamente, não estou à procura disso. Se viesse mais outro filho era compli-cado nesse sentido. Um dá para gerir bem.

De resto, se a discrepância socioprofissional a favor da mulher nestescasais é fruto da sua maior aposta na profissão ou na carreira, também éverdade que este perfil da trajectória conjugal pode simplesmente resultarda cristalização dos contornos hipergâmicos já definidos no momen to daescolha do cônjuge. O caso de Genoveva é ilustrativo dessas situações emque a exclusiva aposta numa formação superior só à mulher proporcionao acesso a uma carreira profissional socialmente mais valorizada.

Com quarenta e nove anos de idade e docente do ensino secundário,Genoveva é casada com um homem que exerce uma profissão menosqualificada. Nuno tem a mesma idade que a entrevistada, mas começou

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a trabalhar quando ainda frequentava o ciclo preparatório, tendo aban-donado os estudos quando concluiu o décimo segundo ano de escolari-dade. Hoje é classificador arquivista numa empresa do Estado. Com po-sições socioprofissionais contrastantes – ela incluindo-se no grupo dasProfissões Intelectuais e Científicas (PIC) e ele no grupo dos EmpregadosExecutantes Qualificados (EEQ) (Rosa 2005) –, Genoveva e Nuno são oexemplo de uma união conjugal hipogâmica. Esta discrepância socio-profissional entre os dois não se desfez efectivamente no decurso da vidaconjugal. Filha de uma doméstica e de um serralheiro mecânico, Geno-veva foi desde cedo incitada pela mãe a apostar nos estudos – «uma pes-soa que me disse: ‘tens que estudar’!» –, tendo concluído a licenciaturaem Biologia, que lhe permitiu o acesso à profissão qualificada de docentedo ensino secundário com enquadramento na função pública. Após oingresso na carreira de docente do ensino secundário, profissão para aqual se sente «vocacionada», a sua progressão nos escalões foi sendo su-jeita aos critérios de antiguidade. É de referir que Genoveva não apostana profissão com a intensidade de outras entrevistadas maximalistas, quese desdobram em actividades complementares e investem numa forma-ção pós-graduada para concretizar as suas aspirações de carreira. Por outrolado, também é verdade que não concede prioridade à vida familiar,como fazem as mulheres familiaristas.

Genoveva confessa que «encontr[a] tranquilidade» no local de traba-lho, pois sempre que regressa a casa tem de, simultaneamente, dar atençãoos seus dois filhos em idade escolar e atender às solicitações de uma mãedoente. Em virtude da evolução nos escalões da carreira de docente, a suacarga horária tem vindo a diminuir – com a excepção de pontuais sobre-cargas de trabalho quando é nomeada para coordenar provas globais –,permitindo-lhe efectivamente responder a solicitações da maternidade deoutro modo excessivas, em seu entender, para uma mulher da sua idade:«a exigência é muito grande, porque eu tenho quarenta e nove anos etenho um filho com onze anos e uma filha com oito». A sua reacção, de-fensiva face às exigências profissionais, tem subjacente uma dificuldadeem ultrapassar um quotidiano familiar que considera «violen to de obri-gações, de deveres». De resto, esta dificuldade explica a contenção no quetoca à descendência, considerando a entrevistada que a chegada de umterceiro filho constituiria «um embate muito pesado» ao recordar umaterceira gravidez, interrompida por um aborto espontâneo.

No caso de Genoveva, a estratégia de articulação trabalho-família assentaassim no princípio de maximização moderada das apostas nos dois domí-nios de realização pessoal. Genoveva sente ter encontrado na actividade

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profissional não apenas a realização pessoal, mas, sobretudo, uma com-pensação para a azáfama do quotidiano criada pelos encargos com os fi-lhos, a casa e, em certa medida, a família de origem. A actividade profis-sional é, desta forma, tanto compensadora quanto terapêutica: «Dá-meequilíbrio, a profissão.» Genoveva receia, deste modo, o agravamentodos seus problemas de saúde e respectivas implicações no exercício daprofissão que abraçou.

Eu experimentei o ensino quando ainda não tinha feito as [disciplinas]pedagógicas, nem o estágio, e achei que gostava: A investigação não me se-duziu nem pouco mais ou menos. Eu fiz depois em forma de tese, numambiente completamente diferente, um tema diferente em Agronomia. En-trei na parte científica, mas não sou uma pessoa demasiado paciente para otrabalho científico. Eu tenho de comunicar e ver reacções rápidas, não gostode trabalhos que demorem muito tempo. Perco o entusiasmo! Eu tenhoque começar e acabar alguma coisa rapidamente, porque senão, pelo meio,perco--me. [...] Eu julgo que, se sair da minha profissão, também vou sofrermuito. Se eu neste momento tiver que me afastar, porque ando com muitosproblemas de coluna. [...] Se, por um lado, fisicamente eu ficaria mais des-cansada, e até mentalmente, porque deixava de ter a preocupação disto eaquilo. Eu também venho aqui colher muito, porque eu encontro a tran-quilidade na aula. A manhã, a vinda é tão intensa: levantar os miúdos, fazeruma viagem na cidade toda, perguntar todo o caminho, fazer perguntassobre o teste que o meu filho vai ter... Acaba por ser violento de obrigações,de deveres! Eu não sei se é mais exigente que as aulas, mas a exigência émuito grande.

Entre os factores que contribuem para explicar esta atitude moderadaface à articulação entre a vida familiar e a vida profissional destacam-se,sobretudo, os constrangimentos associados ao núcleo familiar de ori-gem. Particularmente, o respeito devido à mãe – cada vez mais doentee necessitada de cuidados – traduziu-se no dever de prestar os cuidadosquotidianos e condicionou-lhe, assim, a liberdade e a disponibilidadepara conhecer pessoas, amarrando-a de certa forma ao núcleo familiarde origem até ao casamento, tinha então Genoveva trinta e oito anosde idade. Genoveva e Nuno conheceram-se apenas onze meses antes dese terem casado, numa viagem de autocarro que os trazia de regresso deférias.

Aqui na escola tinha um colega que eu sei que gostava imenso de mim,um colega de História. Mas eu não gostava! Acho que, concretamente, comeste colega não houve o eco, porque, pronto, é preciso gostar! [...] Eu e o

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Nuno, nós conhecemo-nos numa viagem, ele nem sequer vinha ao meulado e quando regressámos... Foi um acaso, mas foi numa viagem em queele vinha de férias, e eu por acaso também vinha de férias. Mas nem sequernos sentámos um ao lado do outro. Havia bichas enormes quase a chegar aLisboa. Eu tive que dizer ao motorista que me deixasse em Alcântara. Masé claro que me disse que não, que só podia sair no Campo Pequeno. E eraquase meia-noite! Portanto, aí o Nuno realmente aproximou-se. Eu até co-mentei para mim: «Mas tantas perguntas!» Quer dizer, ele estava-me a ques-tionar de onde é que eu vinha, onde é que eu tinha passado férias e não-sei--quê, e depois pediu-me o número de telefone. Quando ele me pediu onúmero de telefone, eu ainda disse: «não sei se devo». Mas depois dei-lho e,mais ou menos quinze dias depois, ele telefonou-me e começou realmenteaí o nosso conhecimento.

Genoveva sublinha que não lhe faltaram oportunidades no seu cír-culo de amizades ou no próprio local de trabalho para iniciar um na-moro, mas nenhum dos seus pretendentes exerceu nela uma atracção su-ficientemente forte para iniciar uma relação amorosa. O facto de terconhecido Nuno numa circunstância pouco frequente entre as mulheresmais escolarizadas demonstra a inexistência de uma associação mecânicaentre local de encontro e qualificações (Rosa 2005). Mas o exemplo deGenoveva é também ilustrativo de que a probabilidade da heterogamiase acentua, justamente, nos locais mais improváveis para conhecer o côn-juge. De resto, sublinhe-se que a atracção de Genoveva foi inicialmentereprimida («não sei se devo») em virtude das características do próprioquadro de interacção – o contacto com um desconhecido num trans-porte público.

Nuno foi, afinal, o primeiro namorado de Genoveva, cuja sobrecargaemocional com o agravamento do estado de saúde da mãe veio substituiro apertado controlo que esta sempre exerceu sobre a filha, controlo essedecisivo para a ausência de uma relação amorosa até então. Por outrolado, no que respeita à articulação entre a vida profissional e a vida fami-liar, a atitude moderada desta mulher deve ser observada à luz da sua su-jeição à vontade da mãe em tê-la junto si. A atitude dominante da ma-triarca é particularmente evidente nas críticas que faz à profissão da filha,sobretudo à disponibilidade que a actividade profissional exige. A sus-ceptibilidade desta à crítica materna é, de resto, notória na procura derazões menos incómodas para o controlo, o autoritarismo, a desconfiançae a atitude possessiva e dominante de quem assume uma posição de au-toridade moral na família: «ela tinha confiança em mim, mas ela queriaapurar os factos todos»; «a minha mãe não batia por bater, sofria mais

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do que o outro que tinha levado»; «a mãe sente sempre pela ligação quetem à filha neste caso, que a filha está muito cansada, que é uma profissãomuito pesada»; «não era porque era a minha mãe e porque tinha quemandar, era porque era o mais correcto». Entre o final da adolescência eo namoro com Nuno, Genoveva só esteve distante dos pais pontual-mente, a pretexto de um estágio profissional. Quando começou a namo-rar com Nuno, divorciado e sem uma formação superior, Genoveva tevede enfrentar a resistência da mãe, mas desta vez conseguiu, progressiva-mente, impor a sua «escolha».

Sou filha única. Sempre vivi com os meus pais até casar. Nessa altura,éramos nós os três, éramos muito unidos, não sei se de mais, a viver os pro-blemas dos três. Com uma mãe que, apesar de ter a quarta classe, era muitopreocupada, com uma perspectiva de vida e de educação de que eu agorarealmente me orgulho e aprecio, mas na altura não gostava muito. A mi -nha mãe via o [meu] caderno, a minha mãe sabia os dias dos testes, a minhamãe sabia quando é que eu ia receber as notas, o que é que eu tinha tido!Eu tive uma educação em que havia regras, principalmente pela minhamãe. Eu fui à minha primeira festa de colegas de escola, no sexto ano, comquinze anos, [...] eu vim um bocadinho mais tarde [...], lembro-me perfei-tamente, era meia-noite e eu apanhei uma sova, porque eu tinha ultrapas-sado todas as regras... A vontade dela prevalecia, porque era a mais inteli-gente, também. Era a decisão mais inteligente e, por vezes, as tensões são...O meu pai é muito mais... eu não posso dizer limitado, mas, como não étão preocupado, parece que não vê tão longe. O meu pai não era tão activo,nem pouco mais ou menos, porque a minha mãe é muito mais preocupadaem termos de vida.

Genoveva engravidou seis meses após casar. Nuno trabalhava entãocomo verificador de qualidade de automóveis. Quando o primeiro filhodo casal tinha apenas três meses de idade, Nuno foi dispensado das suasfunções na empresa que o empregava, mas conseguiu «imediatamente»o emprego de arquivista que ainda hoje mantém, pois tinha o lugar «guar-dado» para si. O casal, porém, confrontou-se com o atraso no pagamentoda indemnização de Nuno, que, a partir de então, passou a trabalhar «acontrato». Hoje, é encorajado por Genoveva a permanecer no local detrabalho para além das oito horas diárias previstas no seu contrato sempreque «é preciso em termos de serviço», de tal modo paira sobre os dois oreceio de um novo despedimento. De resto, a entrevistada sublinha quea carga horária do marido é, na prática, semelhante à sua: «as aulas, maisas reuniões e o trabalho que eu trago para casa dá o mesmo número dehoras por dia que ele trabalha».

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A trajectória hipogâmica define-se, neste caso, por uma discrepância so-cioprofissional entre os cônjuges, discrepância essa que se consolida como despedimento e a transição do homem para um emprego «a contrato».Socialmente mais valorizada, a profissão de Genoveva proporciona umrendimento mais elevado, um horário de trabalho mais flexível e, enfim,uma estabilidade financeira que é característica dos lugares devidamenteenquadrados na função pública. Por outro lado, o exercício desta profis-são contribui de forma decisiva para a realização da entrevistada. Comuma origem social igualmente pouco qualificada, filho de um electricistae de uma doméstica, Nuno foi, por sua vez, forçado pelo pai a trabalharmal terminou a infância, tendo passado a estudar apenas à noite a partirdo segundo ano do ciclo preparatório. Genoveva considera que o marido«podia ter agarrado mais facilmente que os irmãos um curso superior»na área de que realmente gosta – a Arqueologia – se não tivesse sido in-fluenciado pelo «mau» exemplo dos adultos que o rodeavam nas aulasem horário escolar pós-laboral. No entanto, quando reflecte sobre o de-salento de Nuno com um trabalho que considera pouco qualificado, nãodeixa de sublinhar, contudo, que este défice de realização não interferena relação do casal. Trata-se, portanto, de um caso que contrasta com aexperiência – anteriormente exposta – de Helena, em que a insatisfaçãoprofissional do cônjuge tem implicações na relação.

Ele era um garoto à noite no meio de adultos! Foi mau! O mau foi nosentido de ele perder possibilidades. O pai já reconheceu que, em relação aeste filho, errou. Às vezes as pessoas pensam mais no que é necessário emtermos de dinheiro e não tanto em termos de formação, e eu julgo que issolhe deixou as marcas, porque ele gostava de ter continuado. Ele gosta imensode arqueologia, tem um gosto de encontrar coisas, tem uma paciência ma-luca! E eu não tenho dúvidas de que sou realizada profissionalmente, e elenão. Não falo desse modo com ele «Eu sou realizada, e tu não és»! Antespelo contrário! Também não é propriamente atitude de pena. Tem que seruma atitude realista. Eu julgo que isso não tem implicações na nossa relação,mas nele próprio: não é nada que lhe levante o ânimo. É uma coisa que omachuca um bocado a pessoa não ser exactamente aquilo que quer. É umbocado o pássaro querer voar e ter as asas cortadas.

Da participação do homem à delegação das tarefas em terceiros

Nos casais com trajectórias hipogâmicas, a divisão do trabalho domés-tico oscila entre uma partilha mais igualitária do trabalho doméstico, a

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delegação da maioria das tarefas em familiares e a desvinculação dohomem. Essa diversidade de modalidades de divisão do trabalho domés-tico tem, contudo, por denominador comum a forte predisposição damulher para a negociação conjugal, uma atitude sobretudo contrastantecom a das entrevistadas familiaristas que conferem prioridade à família eà carreira profissional do homem.

A ausência de apoios e a participação do homem

Mais empenhadas na sua carreira profissional que o cônjuge, as en-trevistadas com trajectórias hipogâmicas evitam tanto quanto possível a so-brecarga do trabalho doméstico. Tendo em vista salvaguardar a disponi-bilidade para a actividade profissional, tomam precauções – seja atravésda negociação de uma divisão mais igualitária dos encargos domésticos,seja simplesmente através da delegação das tarefas domésticas em tercei-ros – para evitar uma divisão do trabalho que possa penalizá-las. No pri-meiro caso, a ausência de uma delegação das tarefas em empregadas edos cuidados com o bebé a uma ama, bem como o ténue apoio da redefamiliar, resultam na negociação com o cônjuge – quando não é este atomar a iniciativa – no sentido de uma partilha mais igualitária dos en-cargos domésticos. Esta partilha pode, aliás, subverter as normas de gé-nero ao ponto de inverter os papéis que o género associa ao homem e àmulher na família. Tal sucede com Ana e Alfredo, um casal em que cabe,excepcionalmente, ao homem a maior fatia dos encargos domésticos.

Ana orgulha-se da lógica igualitária que prevalece na sua vida conjugal,sublinhando: «fomos sempre os dois». Mas, na realidade, Alfredo tomoulogo a dianteira nos encargos com a chegada do primeiro filho, cujo partoteve implicações na saúde da entrevistada – «Estive muito mal!». Ana des-creve o marido como «uma pessoa muito afectiva», qualidade essa manifestana relação de forte proximidade com os dois filhos do casal. Por outro lado,foi também ele quem sempre assegurou a logística familiar quando Anateve de se ausentar do país para fazer pesquisa no âmbito da sua tese dedoutoramento.

Foi o Alfredo que me ensinou a pôr as fraldas. Como eu estive doente como nascimento do meu primeiro filho, o Alfredo passou mais um bocadinho,porque eu levantava-me e caía logo. Estive muito mal! Mas, de resto, sempredividimos tudo muito bem. Fomos sempre os dois. Inclusive, passei algumastemporadas sozinha no estrangeiro, para fazer investigação para a tese, e o Al-fredo ficou com os miúdos durante três semanas. A primeira vez que fiz isto, omais pequenino tinha dois ou três anos. Foi muito duro para o Alfredo, coitado!

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Com uma carreira profissional bastante menos exigente e uma origemsocial claramente menos favorecida, Alfredo conta com a admiração deAna, que não se coíbe de exaltar as suas qualidades no contexto da vidafamiliar, qualidades essas que utiliza como termo de comparação com oseu próprio pai. Com efeito, se este último incutiu nela a exigência e origor para com a sua formação, o trabalho profissional e a carreira, tam-bém é verdade que, precisamente ao contrário do marido, «nem sempre[ela] estava presente» no acompanhamento quotidiano aos filhos. Ana eAlfredo nunca recorreram a uma ama ou a uma empregada, nem tão--pouco puderam contar com a rede familiar nos primeiros anos de vidados seus filhos. A distância do casal em relação à sogra e ao sogro da en-trevistada não proporcionou a criação de laços de solidariedade consis-tentes. No que respeita à mãe, a entrevistada recorda a condição privile-giada de «dona-de-casa» quando sublinha a sua ausência de competênciastanto na execução de qualquer tarefa doméstica quanto nos cuidados àcriança.

Quanto eu tive o meu primeiro filho, às vezes, para nós podermos ir aocinema ou ir às compras, o Alfredo ia buscar a minha mãe ao Restelo paraela ficar com ele em nossa casa. Mas ela limitava-se a ficar com eles, porque,normalmente, quando chegávamos, ela dizia «Ainda bem que chegaram,porque está aqui um que precisa mudar de fralda!». Era dona de casa, nãodoméstica! Eu nunca vi a minha mãe a estrelar um ovo!

Com uma profissão bastante mais exigente em requisitos académicos,Ana sempre teve menos tempo e predisposição que Alfredo para daratenção, no dia-a-dia, aos pequenos gestos com os filhos: «eu sou maispragmática, não estou para me chatear, não me ralo, porque não vale apena, enquanto ele vai ver se eles apertam bem os sapatos, se vão comos sapatos bem apertados, ou é porque vão despenteados para a rua...».Por outro lado, a entrevistada faz questão de sublinhar o acompanha-mento que proporciona aos filhos nos estudos, procurando assumir a re-ferência «cultural» que os seus pais e avós representaram para si. O sen-timento de complementaridade de papéis não deixa, pois, de estar muitopresente numa constelação familiar que subverte claramente os papéisprescritos pelas normas de género.

Os meus pais e avós sempre me deram responsabilidade e liberdade.Assim como eu dou responsabilidade e liberdade aos meus filhos: eu nãoestou a estudar com os meus filhos, estou a estudar ao lado dos meus filhos,e se eles precisam da minha ajuda, eu estou e dou-lhes a ajuda, dou-lhes os

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instrumentos para poderem trabalhar. [...] Mas a profissão do Alfredo per-mite-lhe um horário melhor, e ele acaba por estar mais tempo com os nos-sos filhos. Ele entende perfeitamente, sempre entendeu, e acha bem que euprecise de fazer as teses e estudar para progredir nesta carreira. Ele semprefoi assim, ajudou-me muito, compreendeu sempre que eu tinha feito estaopção.

Também Helena recorda a divisão «igualitária» dos cuidados nos pri-meiros anos de vida dos seus três filhos. Para além de partilharem os cui-dados, ela e o marido puderam ainda contar com o apoio pontual dasua sogra e da madrinha do casal. Porém, com a entrada dos filhos naidade escolar, tem sido a entrevistada quem mais acompanha os filhos.Com a mãe idosa acamada e um familiar deficiente ao seu cuidado, Her-culano tem menos «paciência» para os filhos do casal. Esta diferença naproximidade quotidiana com os filhos não implica, todavia, que os doisnão se repartam no acompanhamento escolar: «eu vou mais para a Ma-temática, para as Ciências, para a Geografia, sou eu que dou apoio, depoiso Herculano dá mais para a História, para o Português...».

No que toca à divisão das tarefas domésticas, Helena reconhece que«hoje todos trabalham o mesmo», mas sublinha só ter conseguido esta«igualdade» quando reclamou a repartição das tarefas domésticas mais pe-sadas, até então a seu cargo. Hoje, enfim, conquistou uma divisão maispartilhada das tarefas que a empregada não faz: Herculano cozinha e vaiàs compras; Helena trata da roupa e dá mais acompanhamento aos filhos.Enfim, o casal está mais distante de uma divisão desigualitária do trabalhodoméstico, mas foi também a delegação das tarefas mais pesadas numaempregada que permitiu ultrapassar as dificuldades na negociação conjugalno sentido de uma maior participação do homem, dificuldades essas fla-grantes quando não havia possibilidades de recorrer a serviços exteriores.

A delegação em familiares e a desvinculação masculina

No que toca à negociação no sentido da partilha do trabalho domés-tico, Helena não se confrontou, contudo, com uma resistência tão acen-tuada como a que verificamos nos casos de Lurdes ou Genoveva. Emambos os casos, só o apoio dos pais – particularmente da mãe – reduz asobrecarga do trabalho doméstico e atenua, assim, as implicações da re-sistência do homem.

Com a excepção dos assuntos administrativos, Lurdes encontra noseu marido uma resistência quase total à participação nas tarefas domés-

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ticas, refugiando-se no humor quando confessa ter «desistido» de pro -curar partilhar com Sebastião – a quem acusa a «preguiça» – as tarefasdomésticas: «Não tem partilha: o rapaz não faz nada!» Perante um par-ceiro cuja participação no trabalho doméstico é, afinal, tão incerta – «fazum fim-de-semana e no outro já não faz» – quanto desatenta, esquecendoa doença fisicamente incapacitante da entrevistada – «Quando ele chega,eu já fiz e estou no sofá com dores nas costas» –, só o cansaço poupa ocasal do «conflito»: «Não é um ponto de conflito, porque eu já desisti.»Deve referir-se que Lurdes pode contar com o apoio dos seus pais, so-bretudo com o enorme apoio da sua mãe, sempre disponível para tratarde toda a roupa e fazer as duas refeições principais. De resto, o apoio lo-gístico da mãe não se limita à execução de tarefas domésticas, mas tam-bém aos cuidados com o filho do casal. Era, de facto, a mãe da entrevis-tada quem ficava com o bebé quando as «reuniões» ou as «formações»obrigavam Lurdes a ausentar-se de casa, e são hoje os seus pais que pos-sibilitam ao casal sair esporadicamente com amigos.

Poderíamos, enfim, questionar-nos se, na ausência do enorme apoiologístico da mãe, a desvinculação de Sebastião não levaria efectivamenteLurdes a procurar negociar uma divisão partilhada das tarefas domésticas,mesmo correndo o risco de a resistência oferecida pelo cônjuge poderconstituir um foco de tensão conjugal. A verdade é que ela também encontraa mesma atitude desvinculativa da parte do marido no que aos cuidadosdo filho diz respeito, ainda que, neste aspecto da divisão do trabalho do-méstico, faça questão de reconhecer que a «prioridade» da maternidadeimplica uma predisposição da sua parte – Lurdes foi forçada pela doençaa trabalhar a partir de casa – que reverte, inadvertidamente, a favor dadesvinculação de Sebastião. Neste sentido, reconhece ter «abdicado» maise sente que a paternidade «nem sempre» é a «prioridade» de Sebastião.Em suma, com a excepção das pontuais visitas ao médico e dos banhosao filho quando este era bebé – «A figura de pai é dar banho!» –, é elaquem presta os cuidados à criança.

Acho verdadeiramente que o meu filho é a minha maior prioridade! É aminha prioridade, o bem-estar dele, as necessidades dele... É a minha prio-ridade! Do Sebastião, eu acho que nem sempre. Mas não sei se é por eu serpicuinhas, se calhar exagero, se calhar sou eu que exagero em pequenas coi-sas. Eu abdiquei mais do que o Sebastião, mas foi consciente. Sem dúvida![...] Eu nunca mais tive uma noite descansada, desde que ele nasceu. Já nãohá aquele sono profundo, parece que está sempre um ouvido alerta. Eletosse, mexe-se na cama e há sempre um ouvido alerta. É terrível! A primeiravez que eu me separei dele, que eu tive que ir fazer uma formação, foi um

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fim-de-semana, ele devia ter para aí uns dois anos. Eu não dormi, estava sem-pre a ouvi-lo durante a noite. Estava sempre a achar que ele estava ali ao meulado.

Liberta de algumas das tarefas domésticas mais rotineiras e traba-lhando a partir de casa, Lurdes é incessantemente «solicitada» pelo filhono quotidiano. Na verdade, perante a desvinculação do marido, acaboupor ser a própria reconversão da sua actividade profissional, aliada a umaforte rede familiar de apoio, a possibilitar a articulação entre a primaziaprovisoriamente atribuída ao filho e a importância dos seus projectosprofissionais, que foram entretanto readquirindo o seu estatuto de prio-ridade à medida que se atenuaram as «solicitações» da maternidade. Parauma observação mais detalhada do modo como Lurdes gere o seu dia-a--dia com o filho e o trabalho, vale a pena determo-nos nas suas própriaspalavras.

Quando estou a trabalhar, ele solicita ou para irmos fazer um jogo juntosou está a fazer um desenho para a mãe e a mãe tem que ir ver o desenho. E eu interrompo. Mas ele também respeita bastante esse espaço, porque eletambém foi criado assim. De manhã, ele vai para a sala, liga a televisão por-que está a dar os desenhos animados de que ele gosta. Depois, vai tomar opequeno-almoço. Eu tomo o pequeno-almoço e vou ligar o computador. É o dia normal. Às vezes, não me apetece, não tenho ideias para ligar o com-putador. Então vou brincar com ele, vamos fazer desenhos, vamos fazer ac-tividades – como ele chama – ou vamos ver qualquer coisa na televisão.Pomos um dvd e vimos juntos, vamos à rua, vamos comprar qualquer por-caria que não tem interesse, mas só para sairmos... É um ritual, é mais oumenos um ritual. Às vezes, ele quer fazer qualquer coisa sozinho ou ver odvd, que não precisa da mãe, e então eu volto para computador. Às vezes,ele «ó mãe, anda cá ver não-sei-o-quê». Eu desligo o computador e vou outravez. Ou então, eu estou a trabalhar no quarto dele, o quarto dele é quarto eescritório! À noite, não trabalho. À noite, estou com o meu filho, depois dejantar estou com ele. Ou vamos ver um dvd os dois ou então vamos os doispara a cama fazer ronha. O Sebastião está a fazer a minha parte do trabalhono computador ou está a procurar coisas para ele, para o trabalho dele, eentão nós vamos os dois para a minha cama, para a cama grande como elelhe chama, e ele leva livros de histórias e começamos a ler livros de históriase a fazer cócegas um ao outro. Parvoíces!

As palavras de Lurdes não são apenas elucidativas do modo comogere o dia de trabalho e acompanha o seu filho, mas também ilustram ainteracção diferenciada que os pais estabelecem com a criança. Perante a

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escassez do tempo reservado à relação entre pai e filho no quotidiano,Lurdes sublinha: «gosto que eles estejam o mais tempo possível juntos».Deste modo, quando vão para «fora», para locais que propiciam as acti-vidades ao ar livre, a entrevistada aproveita esse tempo para si. Nessesmomentos que reserva à leitura, são as próprias limitações da doença quea impedem de acompanhar um filho «muito enérgico». Também aqui,enfim, se impõe a tradicional divisão dos papéis parentais, cabendo aohomem proporcionar uma interacção mais física do que emocional.

De igual modo, Genoveva acusa a «preguiça» do marido no que tocaao trabalho doméstico. Quando se ausentava para trabalhar, esta entre-vistada deixava o primeiro filho com os pais, que habitavam próximodo seu local de trabalho. Já no caso da sua filha, o segundo filho do casal,era a mãe de Genoveva quem quotidianamente se deslocava – duranteo primeiro mês da bebé – a casa da entrevistada para prestar apoio. To-davia, em virtude da distância entre os locais de residência, este apoio«normal» não se alargou às tarefas domésticas. Perante a atitude desvin-culativa do marido, Genoveva foi forçada a recorrer ao serviço de umaempregada duas vezes por semana. A atitude desvinculativa de Nunonão se circunscreve às tarefas domésticas, pois – à excepção do banho –os cuidados às crianças sempre estiveram a cargo da entrevistada, que en-contra no teor da sua profissão e no horário de trabalho do seu marido– mais tempo ausente de casa – a explicação para a diferença entre osdois no acompanhamento aos filhos. Genoveva não deixa de sublinharque o marido tem o papel de «brincar», papel esse que considera «fun-damental» para contrabalançar o papel austero que cabe a ela desempe-nhar no acompanhamento quotidiano dos filhos.

Eu trago-os à escola, levo-os da escola e quando chego a casa vamos co-meçar a trabalhar. O pai vem mais tarde... é natural que eu os acompanhemais, até porque tem a ver com a profissão e por tudo isso. [...] O pai brincacom eles. Ele brinca mais, muito mais, e isso é fundamental para eles brin-carem. Eu tenho isso muito claro na minha cabeça. Ainda bem e, muito sin-ceramente, isso descansa-me um bocado, porque se não tivessem ninguém,se o pai fosse da qualidade da mãe, era mau, porque só trabalhavam!

A esta repartição de papéis parentais claramente inscrita numa matriznormativa de divisão do trabalho estruturada em função da diferença se-xual, acresce uma repartição das tarefas domésticas de igual modo dife-renciada e penalizadora para a mulher. No entanto, ao contrário das en-trevistadas que atribuem prioridade à vida familiar (estratégia familiarista),Genoveva não se poupa nas acusações que dirige ao marido e à sua des-

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vinculação do trabalho doméstico, «porque», sublinha, «sou verdadeirana relação». O trabalho doméstico constitui, aliás, um dos focos de tensãoneste casal. Genoveva culpa-se a si própria por tomar sempre a iniciativa,da mesma forma que responsabiliza a mãe de Nuno pela «preguiça» queincutiu no filho. Mas também considera que a «dose de egoísmo» e o«comodismo» são próprios da «personalidade» de Nuno.

Eu faço mais! É indiscutível que eu faço mais! Mas também protesto,passo a vida a falar: «Parece que tenho três filhos! Tenho que acordar trêsem vez de acordar dois!» Mas isso eu tenho a culpa, porque às vezes nóstemos a mania que fazemos as coisas melhor e depois apanhamos mesmo.Quer dizer, é culpa minha e é culpa dele! Quando chega a casa, vai ver o te-lejornal, porque dá muita importância... Eu também dou! Mas eu tenhoprioridades, e portanto o telejornal... As prioridades de cada um... Não sig-nifica que a pessoa é egoísta, mas eu acho que há uma dose de egoísmo... apessoa a pensar nos seus gostos primeiro do que nos gostos do outros...Vamos lá a ver, eu quando chego a casa apetecia-me sentar no sofá, se calharcom os miúdos, a ver qualquer coisa de que gostasse! Eu sei que há aqueleritmo e que é preciso tê-lo, senão fica tudo... Se vamos nas calmas fazer ascoisas e fazer tudo em tempos que não são continuados, depois às tantasnão sai nada e à meia--noite ainda estão as coisas a meias. Os jantares, ostrabalhos de casa deles, a preparação dos testes... É essa coisa toda. [...] Nor-malmente, eu, quando tenho reunião venho mais tarde e dava-me um certojeito... Mas ele faz isto um bocado por comodismo, mas dava-me um certojeito que ele pensasse.... Aí, aí está o motivo de eu barafustar..., mas o que éque ele faz? Às vezes, eu chego e, em vez de ele estar à volta dos tachos, ounão-sei-quê, não está porque foi correr, porque precisa daquela escapadela,foi fazer qualquer coisa relacionada com alguma coisa que precisava defazer... Ele é um bocado preguiçoso, porque quando vivia sozinho, ele faziaos cozidos e as sopas, ele comia em casa. Às vezes, ia comer à mãe. Mascomia em casa, até o fazia, não é? Ele lavava a casa dele e encerava e não-sei-quê... Eu acho que é assim também um bocado pelo passado, e aqui amãe deve ter tido culpa. Mas, se calhar, ele também tem, porque ele temmais dois irmãos e um até passa a ferro, até vinca as calças melhor que certasmulheres, não é? Portanto, tem a ver com a pessoa.

O trabalho doméstico não constitui, todavia, o único foco de tensão con-jugal. Por um lado, uma divisão fortemente diferenciada a nível dos papéisparentais, que reparte o casal entre uma relação, respectivamente, lúdicae austera do pai e da mãe com os filhos autoriza Genoveva a antever oconflito com o marido quando estes entrarem na adolescência: «vai sermuito mais liberal que eu». Por outro lado, a relação pais-filhos constitui

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já um foco de tensão conjugal não apenas pela relação diferenciada do paicom os filhos – «ele é mais carinhoso com a filha do que com o filho» –,mas também, e talvez sobretudo, por pairar a possibilidade de este homemrecorrer à violência física. É, provavelmente, o espectro do recurso à vio-lência que mais contribui para a tensão na relação entre os dois.

O meu marido é assim: ele é capaz de passar a vida a chamar a filha deprincesa, o que me irrita! Está tudo muito bem, muito bem, mas quandolhe chega a mostarda ao nariz, ele é capaz de tomar atitudes de... Ele nãobate, mas se lhe «apetecer», entre aspas, ou se se descontrolar, no sentido deque atingiu o limite dele, que nós não sabemos, às vezes, onde é que é! E éraríssimo acontecer! Raríssimo, felizmente! Ele fica sem controlo! É capazde bater sem pensar no que está a fazer, porque já atingiu o limite! Em rela-ção à filha, e nós às vezes brincamos e às vezes é um bocadinho a sério, por-que eu acho que ele é mais carinhoso com a filha do que com o filho. É porser rapariga...

O apoio do homem, o poder da mulher e a fusão conjugal

As entrevistadas com trajectórias hipogâmicas destacam-se pela exaltaçãoque fazem do apoio do cônjuge à concretização das suas aspirações decarreira. A maior aposta da mulher na carreira vai de par quer com umacomunicação entre os cônjuges dominada pelos assuntos relacionadoscom a profissão da mulher, quer com um reforço da sua posição na ne-gociação conjugal. Nos casos observados, este reforço não resulta, toda-via, num desequilíbrio de poder no casal, traduzindo-se antes num em-penho da mulher – e nalguns casos do homem – na concretização deuma dinâmica fusional que sai reforçada da reduzida abertura do núcleoao exterior. Ao contrário do que observámos junto dos casais com trajec-tórias de hipergamia progressiva, os casais com trajectórias hipogâmicas nãose destacam por uma proliferação de focos de tensão. No entanto, o apoiomais activo do homem no que toca à autonomia e à realização da mulheratravés da profissão e da carreira, uma comunicação mais centrada naacti vidade profissional desta e a sua maior capacidade de negociação con-jugal são factores que convivem com alguns conflitos conjugais, origi-nados pela recorrente desvinculação masculina do trabalho doméstico,pelo desacordo no plano parental e, muito particularmente, pelo even-tual défice de realização do homem – aqui muito menos decidido emapostar na vida profissional do que a mulher – através da profissão.

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O apoio necessário

As entrevistadas com trajectórias hipogâmicas distinguem-se pelo valorque atribuem ao apoio do cônjuge na concretização das suas aspiraçõesde carreira. Estas mulheres contam efectivamente com uma dinâmicaconjugal definida pelo mútuo apoio e por uma comunicação mais cen-trada na sua actividade profissional, mas sublinham também a dedicaçãoe o incentivo aos projectos profissionais do cônjuge. Helena, por exem-plo, é peremptória ao sublinhar a importância decisiva do «apoio de es-tímulo, de motivação» de Sebastião – que «valoriza muito» a sua profis-são – e reconhece que os dois falam, muitas vezes, mais sobre a suaactividade profissional do que sobre a actividade dele.

Falamos mais sobre o meu trabalho, porque se calhar eu falo com maisentusiasmo do meu trabalho. Portanto, eu domino mais, puxo mais o as-sunto – eu falo bastante sobre o meu trabalho – e porque ele também se in-teressa pelo meu trabalho. Eu vou para casa contar sempre coisas que acon-teceram. Desde as relações com os colegas, à mudança de instalações doinstituto, ao projecto que tem que se fazer, à comunicação, aos relatórios,quer dizer, fala-se de tudo sobre o meu trabalho. [...] Eu sem o apoio delenão tinha conseguido! Completamente! [...] Para ter uma ideia da preo -cupação dele, o Herculano alertou-me para não sair do local onde estou[como investigadora] para ir trabalhar para um bairro social. As coisas cor-reram mal lá, e foi quase ele dizer-me «Eu bem te avisei!», e que esperavaque me tivesse servido de emenda. Em causa era eu estar a desperdiçar umaoportunidade de poder ter um percurso profissional neste instituto, apesarde não ser um percurso seguro, financeiramente seguro, mas de eu estar adesperdiçar uma oportunidade de fazer aquilo de que eu gostava. Ele valorizamuito o meu trabalho. Tanto que este apoio também é o apoio de estímulo,de motivação, exactamente porque acredita em mim e acredita no meu tra-balho e está sempre a picar-me no bom sentido, para eu andar para a frente.

A entrevistada recorda que não deixa de retribuir o apoio do marido,ainda que, segundo ela, Herculano exerça contrafeito advocacia, simples-mente porque se trata de uma actividade profissional que «não gosta» deexercer. Helena considera que esta atitude do marido tem implicaçõesnefastas nas suas relações em geral, e manifesta-se aberta a qualquer trans-formação profissional radical que produza efeitos positivos, distinguindoo elevado «valor» de Herculano enquanto profissional da «crítica» quedirige à sua «opção».

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Claro que valorizo a actividade profissional dele. Uma coisa é a activi-dade profissional dele, outra coisa é a opção dele. Valorizo a actividade pro-fissional dele, porque acho que ele se esforça por fazer o melhor que pode,mas não valorizo a opção dele. Ou seja, não valorizo no sentido em queacho que teria feito melhor se tivesse mudado. Quer dizer, ele nunca estásatisfeito com ele próprio, não se sente realizado, o que tem efeitos pon-tuais... Está difícil, e o meu apoio é... Sinto-me um bocado incapaz, impo-tente. [...] Tenho vindo a aprender a lidar com ele, mas continua a ser umproblema, porque o facto de ele fazer uma coisa de que ele não gosta minao relacionamento com os outros à volta, porque é natural que isso transpa-reça, porque está irritado, porque quando está a trabalhar não se pode fazerbarulho... Mas eu continuo a ser crítica e continuo a achar que em qualqueridade se pode mudar de vida desde que se tenha vontade.

Já Ana, docente universitária, recorda o desejo do marido de «seguirDireito» sem que, no entanto, as suas palavras contenham qualquer juízocrítico do percurso profissional de Alfredo, porventura porque ele se rea-liza através da profissão de docente de Desporto no ensino secundário.Pelo «suporte familiar» e «emocional» que este homem representa, Anaé talvez a entrevistada que menos elogios poupa ao cônjuge – «sempreme ajudou em tudo» –, exaltando a sua presença e intervenção nas «fasescomplicadas» que, «em vez de afastar», como reconhece orgulhosa, «sóserviram para nos aproximar». Quando, por exemplo, a sua avó – quetambém assumiu o papel de mãe – se tornou dependente em virtude doavançado estado da doença de Alzheimer, Ana recorda que a presençade Alfredo compensou a ausência da mãe.

O Alfredo tem sido o meu suporte emocional, e é isso que me tem aju-dado imenso! Eu só tive vantagens, porque o Alfredo é uma pessoa excep-cional, é uma companhia... É fantástico! Ele sempre me ajudou, sempre meajudou na minha carreira, sempre me ajudou em tudo! [...] O Alfredo aju-dou-me imenso com a minha avó doente, com Alzheimer, não podia sair àrua… A minha avó tinha uma filha, e a minha mãe não fez nada pela minhaavó! Isso coincide com os primeiros anos de casamento, quando ela come-çou a entrar na fase terminal e teve de ser internada. Eu, entretanto, já estavagrávida quando deixei de tomar conta da minha avó, só ao fim de três anos.As fases complicadas da nossa vida só serviram para nos aproximar, em vezde afastar.

Nos casais com trajectórias hipogâmicas, o apoio do homem à carreirada mulher traduz-se num incentivo ou mesmo numa intervenção maisdirecta nos seus projectos profissionais. Lurdes, por exemplo, reconhece

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abertamente que o marido «participa muito» e «sempre se envolveu» nasua actividade profissional. A entrevistada recorda o importante auxíliode Sebastião, desde o namoro, em todas as componentes que envolviamcompetências informáticas. Hoje, com uma empresa em nome indivi-dual, Lurdes sublinha que não se trata apenas de uma questão de «res-peito» pelo seu trabalho, mas de um apoio «fundamental» e confiançanas suas decisões: «Nós sabíamos que era um risco.» A «participação» ac-tiva de Sebastião – «ele próprio procura coisas!» – permite assegurar umconjunto de componentes decisivas no funcionamento da empresa queultrapassam as competências da entrevistada. Mas, no que respeita às ló-gicas de apoio, a dinâmica conjugal revela particularmente aqui a suaprópria complexidade. Com efeito, a ausência de participação de Sebas-tião no que toca aos encargos com a casa e a família vai de par com umaincessante dedicação aos projectos profissionais de Lurdes, dedicaçãoessa que contribui para evitar a transformação da sua desvinculação dotrabalho doméstico num «ponto de conflito» entre os dois e, simulta-neamente, sedimentar o sentimento de fusão conjugal.

Ele sempre se envolveu na minha parte profissional. Quando nós nosconhecemos e eu tive que fazer a tese, tinha que fazer gráficos e porcarias.Foi ele que fez, foi ele que fez tudo no computador. Portanto desde muitocedo. Depois, eu fui para a associação onde trabalho e é ele que gere a páginada internet da associação ainda hoje! Foi ele que a colocou no ar! Percebe?Há uma coisa tão intrincada entre nós os dois que, por exemplo, se por obrado sino nós tivéssemos de nos divorciar, era um Deus nos acuda, porque hácoisas que eu preciso que ele faça que eu não sei fazer! Eu respeito o caminhodele, e o caminho de desenvolvimento pessoal dele não é o mesmo que omeu. Ele costuma dizer que nós não estamos na mesma vibração. Mas elerespeita a minha vibração e eu respeito a vibração dele. Ele além de respeitaraquilo que eu gosto de fazer, ele próprio procura coisas! «Olha, já viste isto?Isto interessa-te?» É muito esse género, muito esse género! Ai, ele participamuito! Completamente! E mesmo nos materiais, é ele que faz a parte infor-mática toda, é ele que trata da contabilidade porque eu, números, eu odeioe, portanto, não tenho aptidão nenhuma para fazer essas vendas pela inter-net. [...] A ideia parte de mim. Agora, as coisas que eu ‘tive a idealizar co-meço logo a partilhar. Ou então ele também me pode lançar um repto e euvejo se pego ou não pego.

De resto, o apoio do homem à profissão da mulher pode simples-mente reduzir-se a colaborações esporádicas, tal como ilustra a trajectóriahipogâmica de Genoveva e Nuno, definida por um desfasamento dos per-

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cursos profissionais no decurso da vida conjugal que não contraria a di-ferença socioprofissional no casal desde logo evidente na escolha do côn-juge. Neste caso, a colaboração não só é pontual, como resulta menosda boa vontade do homem do que das obrigações profissionais da mu-lher.

Ele é colaborante se eu precisar. Por exemplo agora sou coordenadoradas provas globais, não é? Se houver telefonemas mais longos por essa razão,pode-se mostrar às vezes um bocadinho incomodado, mas ele sabe muitobem que eu fiquei muito aborrecida de ser [coordenadora], mas tinha queser e que isto, em termos de família, vai tirar um bocado de tempo com asreuniões, telefonemas e tudo. Eu digo-lhe «Vou ter a prova global de não--sei-de-quê e sou sozinha», e se é preciso alguma fotocópia ou alguma coisaele faz-me, ele colabora. Não está a ver se... como quem diz «Tu és e eu nãosou». Portanto, roer as unhas de inveja, entre aspas, isso não.

Da consciência da desigualdade ao poder da mulher no casal

A maior aposta da mulher na profissão vai de par com um reforço dasua posição na negociação conjugal. Esse reforço é manifesto ora numaatitude de resistência, mais ou menos concretizada, face ao modelo tra-dicional de divisão do trabalho doméstico – tal como ilustra a recusa daprestação de cuidados a familiares para além dos filhos (Helena), a pró-pria renitência à execução das tarefas domésticas (Ana) ou, enfim, a ma-nifesta culpabilização do homem pela sobrecarga da mulher com o tra-balho doméstico (Genoveva) –, ora numa atitude de orientação dopróprio percurso profissional do cônjuge (Lurdes).

Pese embora seja Helena a auferir maiores rendimentos e a dedicarmais tempo à actividade profissional, a maior aposta desta mulher nacarreira não se traduz numa inversão do modelo tradicional, que atribuíaa autoridade ao homem. Ou seja, se a posição firme desta mulher na ne-gociação conjugal – designadamente, a desvinculação de qualquer en-cargo extraparental – não pode ser dissociada das suas aspirações de car-reira, também é verdade que essa firmeza anula, em lugar de inverter, alógica de autoridade no casal, aqui substituída pela lógica de comunica-ção: «não há nunca uma decisão sem discussão, discussão no sentido deconversa».

Também Ana defende que as decisões mais importantes em casa re-sultam sempre de um acordo entre os dois, sendo aqui decisiva uma forteconsciência das desigualdades de género. Por um lado, lamenta que a suamãe – «uma pessoa cultíssima» que «não seguiu carreira profissional» –

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não tenha «ido mais longe», em parte devido à sua educação, mas sobre-tudo em virtude da posição conservadora e autoritária do pai da entre-vistada. Por outro lado, recorda a avó – um modelo decisivo na sua edu-cação – ensombrada pela «personalidade» do avô e o seu «renascimento»– quando «tomou as rédeas, o poder nas mãos» – após a morte do ma-rido. Enfim, é manifesta nas suas palavras a consciência de que a socie-dade é atravessada por amplas desigualdades entre os sexos, consciênciaessa particularmente resultante do percurso profissional que trilhou atéenveredar pela docência no ensino superior.

A minha mãe, como lhe digo, poderia ter ido mais longe, mas não quis.Não quis, porque foi sempre uma menina mimada e o meu avô era umhomem muito rico! Depois não seguiu carreira profissional, porque o meupai achava que era impensável a mulher do catedrático, a mulher do profes-sor, trabalhar na altura. E, portanto, a minha mãe acabou por ficar um bo-cado... Na minha profissão actual, nunca senti discriminação. Quando quisentrar para a profissão e, sobretudo, quando tentei entrar para outras áreas,aí... Se não fosse esta carreira, se fosse outra, eu teria problemas. Até porquequando eu comecei a concorrer para uma série de áreas, via os meus colegascom habilitações inferiores às minhas ou com as médias inferior à minha aentrarem, porque eram homens... E também fiz a selecção de pessoal, tam-bém assisti à cena do outro lado: tudo quanto é mulheres vai para o caixotedo lixo! Ou então faziam aquela coisa horrorosa que se fazia que era: se erasolteira, era porque ia casar; se era casada, era porque ia ter filhos... Comoeu estive no outro lado, fiz provas de selecção de pessoal, via que, de facto,havia discriminação. Pessoalmente, nunca a senti. A não ser naqueles mo-mentos, quando se acaba o curso e se concorre aos primeiros locais de tra-balho e ver que os colegas, que tinham médias mais baixas, e entravam por-que eram homens. Portanto, tinha que haver algum critério que levasse a que eles fossem admitidos e que eu não fosse.

Já Lurdes, também ela apologista de uma partilha das decisões impor-tantes, revela ter assumido um papel decisivo na formação escolar e nopróprio percurso profissional do marido. A entrevistada alega ter herdadoa atitude autónoma, insubmissa e liderante da avó paterna, orgulhando--se de ter orientado Sebastião na sua formação – bem como no seu per-curso profissional – e de nunca ter tido patrões ou ter recebido «ordens»de quem quer que seja. Apesar de marcado pela adversidade, o seu per-curso profissional tem, enfim, sido o incessante resultado da sua vontade.

Eu nunca tive patrões! Não é que me dê mal com a autoridade, mas coma autoridade dos outros para os outros! Nunca tive patrões! Mesmo quando

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comecei a trabalhar nesta associação, nós tínhamos um director clínico, masele não dava ordens! A mim não me dava ordens! Não sei lidar bem comisso. E portanto sempre fui eu, um bocado, que quis fazer o meu caminhoem termos profissionais, o que é que eu queria fazer, para onde é que euqueria ir.

A dinâmica conjugal é hoje fortemente marcada pela própria relaçãoprofissional entre os cônjuges, onde, mais do que nunca, se evidenciamas diferentes personalidades e competências. Lurdes sublinha a incessanteinquietude, o comportamento dinâmico, empenhado e persistente comocaracterísticas que a definem por excelência.

Eu não consigo estar parada. Estou sempre a ruminar, é a palavra paraisso. Eu tenho uma mente ruminante! Eu continuo sempre a estudar, eu pre-ciso sempre de estudar, eu preciso sempre de criar. Estudar e criar. Tenhoque fazer obra. Recolho muita informação mas depois tenho que fazer qual-quer coisa. Eu sou muito chata. Quando eu encontro qualquer coisa novaque me satisfaz, eu tenho que a estudar até à exaustão e tenho que a estudarem todas as perspectivas. Tenho de perceber se ela, de facto, faz sentido paramim e para as outras pessoas a quem eu vou recomendar. Envolvo-me muitonaquilo que estou a estudar e, depois, tenho que ter uma aplicação daquilo.

A entrevistada convoca estas características pessoais para justificar a in-fluência que exerceu sobre as escolhas decisivas do marido. Foi ela quemimpediu Sebastião – que os próprios pais «davam como perdido» –de desistir dos estudos e de uma formação superior, tendo esta atitudede orientação da formação do homem sido, posteriormente, transpostapara o percurso profissional do marido. Após se ter confrontado com adoença e consciencializado da necessidade de uma actividade profissio-nal «criativa» e pouco rotineira, Lurdes procurou aplicar as suas novasconvicções às opções profissionais do marido, influenciando-o no sen-tido de evitar empregos que não lhe permitissem explorar a «criatividade».Geógrafo de formação e profissão, oito anos mais novo, Sebastião sempreauferiu um salário inferior ao de Lurdes, tendo o desfasamento de ren-dimentos entre os dois alcançado o seu pico justamente quando se casa-ram, pois ele concluía ainda a licenciatura, enquanto ela já trabalhavahavia sete anos. Sebastião começou por trabalhar numa empresa privadaaté ser desafiado pela entrevistada a mudar de emprego quando o filhodo casal nasceu, já Lurdes tinha adaptado a sua vida profissional às limi-tações da doença. Não sem resistência, aceitou o desafio lançado pelaentrevistada e aceitou um emprego numa câmara municipal, trocando a

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estabilidade de um lugar de «quadro superior na empresa» por uma si-tuação «sempre a contratos» mas, de acordo com a entrevistada, «muitomais» adaptada à criatividade do marido.

Eu fiz força para ele ir para a câmara municipal, porque eu vi que a cria-tividade dele, olhar para a cartografia todos os dias, não sei quantas horaspor dia...! Eu já estava cheia de pena dele! Está a ver o que é que é aquelalinha de montagem, em vez de ser sapatos é de computadores e todos viradosna mesma direcção a olhar para os mapas?! Eu acho que endoidecia, eu achoque ensandecia, se tivesse de fazer aquele trabalho! Coitado do meu marido!E depois surgiu a possibilidade, porque um amigo dele estava lá num gabi-nete na câmara, e ele convidou-o. E o Sebastião já estava no quadro da em-presa e quando surgiu aquela possibilidade ele estava com um bocado dereceio: «Então eu vou sair do quadro da empresa?» Ele já era quadro superiorna empresa, e ele foi para lá para a câmara como geógrafo estagiário, porqueeles não tinham lugar no quadro. Havia a possibilidade depois de abrir con-curso... Mas eu achei que ele ia estar muito mais livre, tinha que fazer coisasdiferentes, não é sempre a mesma coisa! Tinha solicitações diferentes, pro-jectos diferentes!

Mais recentemente, quando se tornou empresária em nome indivi-dual, Lurdes propôs ao marido que trabalhasse «para ela». Apesar deentão desempregado, Sebastião declinou a proposta, não apenas paraevitar que a família ficasse exclusivamente dependente da empresa criadapela entrevistada, mas também devido ao «temperamento» de Lurdes en-quanto «patroa», à necessidade de preservar o «seu espaço» profissionale, enfim, à realização que retira da sua profissão.

Eu já tentei depois de criar a empresa, chamá-lo para ao pé de mim. Elediz que não, porque eu sou má patroa, sou muito temperamental [risos].Não quer vir trabalhar para mim [risos]. Eu acho sinceramente que ele gostadaquilo que está a fazer. Ele gosta da participação que ele tem nos meus tra-balhos, mas ele gosta daquilo que está a fazer. É o seu espaço também, sabe?Eu acho que são várias circunstâncias, também. Eu acho que, monetaria-mente, não deve ser tudo a depender da mesma coisa... Ah, mas também sejunta o facto de ele gostar daquilo que está a fazer, de ter o seu espaço, deter que sair de casa de manhã, o seu ritual, de almoçar lá com os amigos, oseu cafezinho.

A diferença de idades entre os dois sobressai da atitude de Lurdesquando a entrevistada recorda o alegado amadurecimento do maridocom a gravidez e subsequente tutela da administração das «contas» da

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família: «Quando descobri que estava grávida, entreguei-lhe o dossier dascontas e assim se conserva até hoje... Tem-se feito um homenzinho![risos]. Dá responsabilidade!»

Resta sublinhar que, nos casos analisados com este tipo de trajectóriaconjugal, a organização do dinheiro permite uma redistribuição dos ren-dimentos auferidos pelos dois parceiros, redistribuição essa que resultanuma forma de compensação da discrepância socioprofissional no casal.Helena e Herculano tiveram «sempre uma conta onde se vai metendoo dinheiro e de onde se vai tirando à medida que se precisa». TambémLurdes e Sebastião depositam os seus ordenados numa conta comum,fazendo por levar à prática a sua opção pela figura jurídica do «casa-mento com comunhão de bens». A crença no princípio comunitário deorganização do dinheiro (Kellerhals et al. 1982) vai mesmo ao ponto deesta entrevistada duvidar da possibilidade de uma vida conjugal alicer-çada noutra lógica de gestão dos recursos financeiros. Mas é porventuraGenoveva quem – de entre as entrevistadas com trajectórias hipogâmicas –mais defende a colocação dos rendimentos de ambos os cônjuges numbolo comum enquanto princípio inerente à própria vida conjugal e fa-miliar: «o dinheiro é único em casa para duas pessoas, não há cá divisãode dinheiros, não há divisão de nada». A entrevistada justifica esta gestãocomunitária com a educação que recebeu dos pais, mas é também a per-cepção da discrepância de recursos educacionais e da própria desigual-dade económica entre ela e Nuno – Genoveva aufere um salário que re-presenta mais do dobro dos rendimentos do marido – a reforçar anecessidade de uma organização financeira capaz de esbater tal discre-pância. Por outro lado, importa sublinhar que essa necessidade tem sub-jacente a activação da norma de género, designadamente a desvaloriza-ção social da hipogamia, precisamente porque esta configuraçãoconjugal contraria «aquela imagem de o homem ser o líder em termoseconómicos na família».

Foi ponto assente, desde sempre, que nunca haveria comparações. Masassumido, dito pelos dois e vivido inteiramente por mim. Eu nunca fiz com-parações! Eu digo-lhe: «Tu ganhas o que podes, o que te dão, aquilo que épossível, e eu ganho aquilo que posso.» Portanto, o que interessa é que so-mado dá x. Não há um inferno em casa porque ele ganha menos e eu ganhomais. Não acontece nada disso... Como fui habituada, o dinheiro é únicoem casa para duas pessoas. É evidente que um ponto assente entre nós é quea diferença de curso não ia pesar nunca. Ele conheceu-me e não tinha ne-nhum curso. Eu tinha o meu curso, mas não foi isso que nos aproximou.Portanto, se isso não nos aproximou, também não era isso que nos ia afastar.

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O facto de haver aí diferenças em termos monetários... É evidente que háuma diferença grande nos salários: eu ganho mais do dobro que o meu ma-rido ganha. Mas isto, em termos da nossa sociedade, o homem e a mulher,todos em geral, ou alguns em especial, ainda têm muito aquela imagem deo homem ser o líder em termos económicos na família.

Já Ana e Alfredo colocam respectivamente os seus ordenados em con-tas individuais, mas, tal como frisa esta entrevistada, «quando os doistêm, pagam os dois, quando um não tem, paga o outro». Na verdade, seos rendimentos auferidos fossem suficientes para um consumo mais su-pérfluo, a separação dos ordenados em contas bancárias individuais po-deria eventualmente dar azo a consumos separados, tais são as «discre-pâncias» de gosto entre os dois confessadas por Ana no ponto seguinte.

O casal com os filhos e o exterior

Os casais com trajectórias hipogâmicas não se distinguem pela procurade um tempo exclusivamente destinado à relação a dois. Helena, porexemplo, sublinha a raridade dos momentos apenas reservados à sua re-lação com Herculano, essencialmente porque nenhum dos dois os «pro-curam». A entrevistada ironiza: «somos daquela raça que gosta de andarsempre com os filhos atrás». É óbvio que o facto de terem três filhos nãoé alheio a esta fusão entre o tempo destinado ao casal e o tempo da fa-mília, mas Helena faz um balanço positivo do próprio sentimento am-bivalente em relação à chegada dos filhos. A progressiva «perda de espa-ços, de intimidade, de estarmos sozinhos um com o outro» vai de parcom «uma maior cumplicidade, uma maior proximidade», porque «osfilhos criam, geram laços novos entre as pessoas».

Acho que os nossos filhos alteraram os modos de vida. Tivemos muitomenos tempo um para o outro, porque, pronto, temos três para tomarconta... Mas, por outro lado, o facto de termos ali três seres que foram feitosde nós os dois, e que já estamos juntos há dezasseis, dezassete anos, cria umaunião ou um carinho, um sentimento de ninho muito forte. Portanto, alterapositivamente! As alterações também podem ser positivas nesse sentido! Poroutro lado, altera de uma forma negativa, que é uma perda de espaços, deintimidade, de estarmos sozinhos um com o outro... Raramente estamos so-zinhos um com o outro, também porque... não procuramos estar sozinhos,porque gostamos de estar com eles. E não vamos sair os dois sem levar os fi-lhos! Não nos passa pela cabeça ir de férias sem os filhos! Connosco, os fi-lhos vão sempre atrás!

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Entre Helena e Herculano «não há assim grandes divergências» noplano dos gostos individuais. Ana e Alfredo, por sua vez, «tentam con-ciliar», procurando nas escassas afinidades de gosto pretextos de fusão:«Ouvimos em conjunto a música de que gostamos em conjunto.» Estadocente universitária confessa as múltiplas divergências de gosto entreela e o marido, docente de Desporto no ensino secundário, mas os «in-teresses comuns» e «o facto de ambos trabalharmos em educação» sãofactores de «conciliação» do casal. De resto, à semelhança de Helena eHerculano, o tempo do casal acaba por não se diferenciar do tempo dafamília: «os tempos que temos passamos em conjunto».

O facto de sermos ambos professores e lidarmos com os filhos dos ou-tros... isso acho que nos aproxima. Mas eu adoro música clássica, adoroópera. Ele detesta ópera. Eu gosto de alguma música brasileira, algum jazz,mais dos standards, jazz mais clássico. Agora, a música clássica não é comele. Eu sou melómana, passo-me da cabeça com os discos, chego a comprá--los às escondidas. Os discos estão a ficar um bocado encavalitados e a ocu-par muito espaço. Mas tentamos conciliar. Somos muito pais-galinhas e,portanto, os tempos que temos passamos em conjunto. Ouvimos em con-junto a música de que gostamos em conjunto. Nem ele me impõe as coisasde que ele gosta, nem eu lhe imponho as de que gosto. E cinema, gostamosmuito de cinema. Vamos, às vezes, ao teatro. Na leitura temos gostos muitoparecidos, embora eu goste muito de policiais e ele não goste tanto, mas par-tilhamos o gosto pela leitura, pela poesia…

Em ambos os casos, de Helena e de Ana, a falta de tempo exclusiva-mente dedicado ao casal é fruto de uma opção pelo tempo em casal comos filhos. Já Genoveva, porém, refere que a falta de tempo não permiteconcretizar o seu desejo de prolongar o tempo exclusivamente destinadoao casal.

Na verdade, eu não vejo grande viabilidade em ter tempo livre sem os fi-lhos. Quando eu estava grávida da minha filha, fomos à Grécia os dois. Foia última vez que estivemos assim verdadeiramente sozinhos. Não é fácil!Quando nós estamos um pouco os dois é à noite, depois de os miúdos sedeitarem, porque, de contrário, não há hipótese. Ao fim-de-semana, elesestão presentes sempre. Eu não vou despejar os filhos em casa dos avós, nemnada disso. Nem sou do género de ir despejar a casa dos amigos. Eu não ali-mento as coisas nem penso nelas quando não as posso ter.

De resto, Lurdes considera que «há sempre a possibilidade» de passartempo sozinha com o marido. Para além da sua profissão de geógrafo,

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Sebastião trabalha com a entrevistada na empresa dela, o que possibilitaprolongar o tempo exclusivamente destinado ao casal, sobretudo quandoambos têm de se ausentar para promover os produtos da empresa. Curiosamente, o contexto de colaboração profissional entre cônjugespropicia aqui a própria fusão conjugal.

Sempre que procuramos temos o nosso tempo. Há sempre essa possibi-lidade. Mas nós também procuramos... Ele vai sempre acompanhar-me nasformações e, então, aproveitamos esse tempo para estar juntos. Ele vai sem-pre comigo!

Finalmente, é transversal a estes casais com trajectórias hipogâmicas afraca abertura da família ao exterior. Aliás, alguns casais são particular-mente fechados, como sucede no caso de Genoveva e Nuno. O forte fe-chamento deste casal em relação ao exterior é, sobretudo, fruto de cons-trangimentos com os encargos familiares. Ambos os cônjuges convivemesporadicamente com «poucos» amigos, mas, quanto ao lazer, existe umadiferença entre os dois que resulta de uma rígida divisão sexual do traba-lho doméstico. Por exemplo, aos fins-de-semana, Nuno sai para passearcom os filhos, enquanto Genoveva tem que fica em casa. «O dia-a-dia émuito intenso», explica, «e ao fim-de-semana eu tenho que organizar aminha vida». Já Helena e Herculano estão quase sempre com os filhosem lugar de saírem para conviver ou de receberem amigos em casa. Trata--se de uma alegada opção – «preferimos estar em casa com os filhos» –que, no entanto, não pode ser dissociada quer do constrangimento deuma ausência de «condições logísticas» adaptadas aos encargos com fa-miliares dependentes e co-residentes, quer da própria «vida complicada»dos seus amigos com filhos. Quanto a Lurdes e Sebastião, o fechamentoda família ao exterior é menos acentuado, mas a abertura circunscreve--se apenas à recepção de familiares ou amigos da entrevistada – «lanchesao fins-de-semana em que podem vir os meus sogros ou os meus pais, amadrinha do meu filho e a mãe e os meus amigos». No que respeita àssaídas para conviver com amigos, trata-se de uma prática quase exclusivado homem. Por fim, Lurdes e Sebastião trabalham juntos fora do horáriode trabalho deste, sendo a própria entrevistada a promover a sociabili-dade masculina como «uma coisa que faz imenso bem» ao marido: «eunão tenho que andar sempre a tiracolo dele!». Este incentivo demonstraclaramente a iniciativa da mulher no sentido da masculinização de umhomem que ainda é «muito familiar».

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ConclusãoElegendo fundamentalmente como objecto de estudo a relação entre

conjugalidade e desigualdade, o trabalho de investigação sociológicacujos resultados são expostos neste livro procurou averiguar, através daobservação da articulação entre a vida familiar e a vida profissional, osefeitos do género na diferenciação social entre os homens e as mulheresque partilham uma vida conjugal e parental. Este desafio partiu de umainterpelação à usual circunscrição da análise do papel do casamento nareprodução social ao momento da escolha do cônjuge, propondo em al-ternativa uma abordagem dinâmica capaz de conceber a possibilidadede uma desigual elevação dos cônjuges como resultado de processos en-trecruzados no decurso da vida conjugal, por um lado, e auscultar as im-plicações do conjunto de factores que co-determinam esses processos,por outro. Perante os limites heurísticos do conceito de homogamia, so-bretudo quando se trata de averiguar o contributo do casamento na di-ferenciação social entre os sexos por via do funcionamento da vida con-jugal, revelou-se necessário um outro conceito, adequado à abordagemda homogamia enquanto processo de cristalização, amplificação ou ate-nuação da desigualdade no casal. O conceito de trajectória conjugal foientão formulado no sentido de identificar eventuais alterações da proxi-midade socioprofissional entre cônjuges, e dar conta dos factores queestão na origem de tais transformações. Por trajectória conjugal entendemosa configuração assumida pelo conjunto dos processos que actuam na ar-ticulação entre a vida profissional e a vida familiar. Entre esses processosdestacam-se, particularmente, as estratégias de articulação trabalho-família.Com efeito, as soluções que as mulheres encontram para articular a vidaprofissional e a vida familiar não podem ser dissociadas das normas degénero, que prescrevem as atitudes e os comportamentos ajustados à dis-ponibilidade para a família e, simultaneamente, definem quer o lugar damaternidade e do exercício de uma actividade remunerada enquanto do-

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mínios de gratificação, quer o valor da elevação do estatuto profissionalno universo da realização pessoal.

Ora, este estudo exploratório revelou, por um lado, uma diversida -de de estratégias de articulação trabalho-família observada entre um conjun -to de mulheres que procuram compatibilizar as exigências de um em-prego muito qualificado a tempo inteiro com os encargos da vida familiare, por outro, a persistência de um contexto normativo fortemente radi-cado numa «ideologia da domesticidade» (Williams 2000). Esta «ideolo-gia» colectiva, muitas vezes determinante das atitudes face aos papéis eidentidades de género, traduz-se numa omnipresente eleição da mulherenquanto elemento central na articulação trabalho-família, eleição essaque lhe dificulta a renúncia ao lugar de principal provedora de cuidadosà criança e responsável pela gestão e execução das tarefas domésticas.Com base na análise de conteúdo das entrevistas a vinte e sete mulherescasadas, com filhos em idade escolar, detentoras de um grau de ensinosuperior, com profissões qualificadas e residentes na Área Metropolitanade Lisboa, a identificação de diversas modalidades típicas de trajectóriaconjugal permitiu demonstrar que a diferenciação social entre os homense as mulheres se reporta aos efeitos impactantes da negociação conjugalno que à divisão do trabalho diz respeito. Que as estratégias de articulaçãotrabalho-família e a negociação conjugal subjacente à divisão familiar dotrabalho se tenham revelado co-determinantes da trajectória conjugal nãoconstituiu um dado surpreendente, atendendo que, num país onde agrande maioria das mulheres com filhos dependentes trabalha a tempointeiro (Wall 2007a), um dos aspectos mais desafiantes da vida familiar econjugal reside justamente nas implicações individuais do próprio exer-cício de uma actividade profissional quando protagonizado no feminino.O exercício de uma actividade remunerada, bem como o projecto de ele-vação do estatuto profissional inerente à progressão na carreira envolvem,efectivamente, aspirações de realização para além do desempenho de pa-péis familiares, conduzindo assim as mulheres a uma reformulação dasua relação com a família.

A conclusão acerca dos resultados apresentados neste livro desen-volve-se então em torno de três momentos que procuram reflectir sobreas hipóteses formuladas na introdução. Um primeiro momento refere--se aos efeitos da vida conjugal na proximidade socioprofissional entreos cônjuges, proximidade essa que frequentemente caracteriza o casal nomomento da sua formação. Um segundo momento reporta-se às impli-cações das estratégias elaboradas pelas mulheres no sentido da articulaçãoentre a vida profissional e a vida familiar, recordando os constrangimen-

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tos estruturais e as vicissitudes envolvidos na forma como procuram res-ponder aos desafios resultantes dos efeitos conjugados das solicitaçõesdo trabalho e da família. Por último, sintetizamos as explicações que estetrabalho de investigação permitiu avançar, designadamente quanto aosfactores que, à microescala da interacção familiar, definem o quadro decondicionalismos na elaboração das estratégias de articulação trabalho-famí-lia e contribuem, assim, para esculpir a configuração que a trajectória con-jugal apresenta.

Vida conjugal e declínio da proximidade socioprofissional

A demonstração da propensão homogâmica no momento da forma-ção do casal comprova que a escolha do cônjuge não é alheia aos con-dicionalismos de natureza social. Esses condicionalismos, porém, actuamcom particular vigor junto dos meios mais qualificados, onde precisa-mente se encontram inseridas as mulheres entrevistadas. É, com efeito,junto destes meios que, em virtude de um prolongamento dos estudos,o início da vida conjugal tende a ser adiado e a diferença de idade entreos cônjuges se atenua (Rosa 2005; 2008). Este padrão sugere uma corre-lação entre os recursos educacionais da mulher e a relativa desvalorizaçãoda superioridade etária a favor do homem enquanto sinónimo de esta-bilidade profissional e estatuto social. Por outras palavras, da aproximaçãodas idades dos cônjuges nos meios mais escolarizados depreende-se o de-clínio da hipergamia etária em virtude da aposta em diplomas escolaresque, devidamente aplicados no mercado de trabalho, asseguram e am-pliam a autonomia das mulheres. Curiosamente, foi da observação destaaproximação entre as características sociais dos cônjuges nos meios maisescolarizados que se levantou a questão fundamental deste trabalho deinvestigação.

Com efeito, nestes meios particularmente homogâmicos no mo-mento da escolha do cônjuge e inclinados para atitudes mais igualitáriasno que à divisão sexual do trabalho diz respeito, seriam as uniões conju-gais particularmente propensas a uma perpetuação da proximidade so-cioprofissional entre os cônjuges? Ou, pelo contrário, não revelaria umaanálise das modalidades de articulação trabalho-família e dos processosde negociação dos papéis sexuais na divisão familiar do trabalho o con-tributo da vida conjugal na desigualdade entre os homens e as mulheres?Por outras palavras, não demonstraria um tal escrutínio as insuficiências

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do conceito de homogamia quando unicamente circunscrito ao mo-mento da escolha do cônjuge? Não se concluiria, afinal, dessa análise,que a homogamia, para além do produto da escolha de um cônjuge so-cialmente semelhante, deve também, e talvez sobretudo, ser perspecti-vada enquanto efeito dos processos de negociação e dinâmicas inerentesà vida conjugal e, portanto, sintoma das desigualdades de género subja-centes ao próprio funcionamento da vida familiar?

A primeira conclusão a retirar dos resultados deste trabalho de inves-tigação prende-se com o esvaecimento da proximidade socioprofissionalentre os cônjuges no decursos da vida conjugal com filhos. Esta consta-tação não poderia reforçar mais a perspectiva crítica das análises que ten-dem a circunscrever o papel do casamento na diferenciação social ao mo-mento da escolha do cônjuge. Com efeito, os nossos resultados sugeremque, num dos contextos mais propensos à homogamia – ou seja, os gru-pos socioprofissionais qualificados –, a vida conjugal proporciona muitasvezes uma desfiguração da homogamia inicial em virtude de uma elevaçãodo estatuto profissional do homem, elevação essa que não encontra equi-valente junto da mulher. A análise do conteúdo das entrevistas revela-nos,na verdade, uma diversidade de modalidades típicas de trajectória conjugal,algumas efectivamente caracterizadas pela consolidação da proximidadesocioprofissional no casal e pela atenuação das assimetrias de género.Porém, para a maioria das mulheres entrevistadas – que, refira-se, prota-gonizou um casamento homogâmico, tendo por cônjuge um homemcom idêntico ou semelhante grau de escolaridade e uma posição socio-profissional equivalente à sua –, o «tempo» da vida conjugal traduziu-seem apostas diferenciadas na carreira profissional, abrindo caminho a umadiferenciação social no casal que favorece claramente o homem.

Entre as diversas modalidades típicas identificadas neste trabalho deinvestigação, apenas entre os casais com trajectórias homogâmicas observa-mos a estrita conservação da proximidade socioprofissional entre os côn-juges, precisamente em virtude de uma equivalência a nível das apostasnas respectivas carreiras profissionais. Três em cada quatro entrevistadas,porém, assistem a uma relativa diluição da proximidade socioprofissionalinicial resultante da evolução diferenciada dos percursos profissionais.Ora, estas situações – preponderantes no conjunto das entrevistadas –referem-se sobretudo a um declínio da proximidade socioprofissional afavor do homem. A investigação dos processos que configuram estas mo-dalidades típicas – caracterizadas pela gradual diferenciação a nível doscapitais ora resultante da maior elevação do estatuto social associado àprofissão exercida pelo homem, ora tão-somente fruto da sua prosperi-

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dade económica – permitiu observar duas trajectórias hipergâmicas: a hi-pergamia prioritária e a hipergamia progressiva. Esta configurações típicasdiferenciam-se, fundamentalmente, pelo lugar que a mulher atribui àvida familiar e à vida profissional no universo de realização pessoal. Umaúltima configuração – a trajectória hipogâmica – refere-se às situações emque a mulher aposta claramente mais na sua carreira profissional do queo cônjuge.

Prioridades e constrangimentos na articulação trabalho-família

A identificação e análise dos factores co-determinantes da diferencia-ção social no casal permitiu corroborar as nossas suspeitas quanto às so-luções que as mulheres com profissões muito qualificadas encontrampara conciliar a vida familiar e a vida profissional. Com efeito, as suasatitudes face aos desafios da articulação entroncam-se, muitas vezes, noconjunto de expectativas prescritas pelas normas de género, expectativasessas que se consubstanciam na ideia, mais ou menos explícita, de umequilíbrio entre a aposta na vida profissional, a disponibilidade para a fa-mília e a eventual prioridade à carreira profissional do homem. Os resul-tados deste trabalho de investigação revelam claramente que as soluçõesencontradas pelas mulheres tendo em vista a articulação entre a vida fa-miliar e a vida profissional – soluções essas que designámos estratégias dearticulação trabalho-família – contribuem na construção da (des)igualdadeno casal.

Uma primeira estratégia de articulação trabalho-família identificada – aestratégia familiarista – não deixa de encontrar afinidades com os modosde «gestão emprego/família» (employment/family management) observadospor Crompton e Harris (1999). O seu estudo revelava que a prioridadeatribuída aos encargos domésticos sobre a vida profissional (domestic lifefirst) caracterizava um dos modos de gestão emprego/família entre as mu-lheres com profissões qualificadas. Ora, regressando ao nosso trabalho,as entrevistadas que elaboram estratégias familiaristas não atribuem apenasprioridade à família e, em particular, à maternidade, mas igualmente àcarreira profissional do homem. Ainda que não protagonizando situaçõesde «hiperconjugalidade» (Nicole-Drancourt 1989), onde a família é to-talmente mobilizada em função da carreira masculina, as mulheres fami-liaristas distinguem-se, com efeito, por valorizarem o exercício da sua ac-tividade profissional, valorização essa traduzida numa lapidar renúncia

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em abdicar da profissão. As suas aspirações de carreira são, contudo, cla-ramente modestas não apenas face às dos homens com quem partilhamuma vida familiar, mas também em relação às das entrevistadas comoutro tipo de trajectória conjugal. Ora, a contenção da própria ambiçãoprofissional e a atribuição de um estatuto de prioridade à vida familiar eà carreira do homem traduzem-se, a longo prazo, numa atenuação daproximidade socioprofissional entre os cônjuges. Se a escolha do cônjugetende a recair sobre um homem socialmente próximo, a lógica conjugale familiar em que se inscreve esta estratégia de articulação trabalho-famíliacontribui claramente para desfazer a proximidade dos cônjuges no quetoca ao posicionamento na estrutura socioprofissional. A todas essas si-tuações de crescente discrepância socioprofissional no casal protagoni-zadas por mulheres que conferem prioridade aos encargos familiares e àcarreira do homem designámos hipergamia prioritária.

Uma segunda estratégia de articulação trabalho-família identificada – aestratégia maximalista – define-se essencialmente pela recusa em atribuirprioridade à vida familiar sobre a vida profissional, exaltando-se, por suavez, uma aposta equivalente e, portanto, equilibrada – mas tanto maiorquanto possível – nos dois universos. Esta posição da mulher face aosdilemas da articulação trabalho-família é sobretudo observada junto doscasais com trajectórias hipogâmicas – ou seja, nos casais em que a discre-pância socioprofissional entre os cônjuges favorece a mulher –, con-quanto se verifique também quando a proximidade socioprofissionalentre os cônjuges persiste ao longo da vida conjugal (trajectórias homogâ-micas). À semelhança do que observaram Crompton e Harris (1999), asambições de carreira das mulheres maximalistas são manifestamente maiselevadas que as das familiaristas.

No entanto, são diversas as entrevistadas que, empenhadas na cons-trução ou progressão na carreira, procuram igualmente a maior disponi-bilidade possível para a família e se distinguem, assim, das mulheres queelaboram estratégias puramente maximalistas pela concessão que fazem àprecedência da carreira profissional do homem. A este terceiro tipo deatitude no sentido da articulação trabalho-família designámos estratégiamaximalista concessora. Aceitando a precedência dos projectos profissio-nais do homem e procurando um equilíbrio entre a resposta às solicita-ções da vida familiar e a aposta na profissão e na carreira, estas mulheresassistem ora à elevação do capital simbólico do homem associado ao seuestatuto e progressão na carreira, ora simplesmente à sua prosperidadeeconómica. Reunindo esforços para que os encargos com a vida familiarnão gorem as suas expectativas de carreira, as mulheres maximalistas con-

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cessoras apostam mais na sua própria actividade profissional do que as fa-miliaristas, mas a cedência que fazem às solicitações relacionadas com osprojectos profissionais do homem não é, com efeito, alheia à desigualprogressão nas respectivas carreiras – e, obviamente, ao maior empenhodo parceiro na profissão –, desigualdade essa que, deste modo, se traduznuma disparidade crescente a nível dos capitais económico, simbólicoe/ou social. Estamos, portanto, perante uma trajectória de hipergamia pro-gressiva sempre que a configuração – hipergâmica – da trajectória conjugalvai de par com esta estratégia, que é maximalista no sentido da aposta navida profissional e na vida familiar e, simultaneamente, concessora no quetoca à carreira do homem.

A uma última atitude perante as exigências da articulação trabalho-fa-mília, designámo-la estratégia carreirista. As mulheres que elaboram estraté-gias carreiristas caracterizam-se, desde logo, pelas elevadas aspirações de car-reira, aspirações essas que não acarretam, sublinhe-se, a renúncia aosencargos da vida familiar. Na realidade, estas mulheres questionam apenasa disponibilidade para a família quando os respectivos encargos se inter-põem à prossecução de projectos profissionais e à concretização das aspi-rações de carreira. Sem reconhecerem qualquer prioridade à carreira pro-fissional do homem, nem tão-pouco aceitarem atenuar as suas própriasaspirações em função de uma maior disponibilidade para a vida familiar,as entrevistadas com estratégias carreiristas partilham a vida conjugal comum homem que ora aposta de igual modo na sua profissão, ora possuimenos ambições profissionais. As situações de dupla carreira que obser-vámos – em que ambos os cônjuges demonstram estar igualmente empe-nhados nas respectivas profissões, procurando corresponder a elevadas as-pirações profissionais – resultam numa consolidação da proximidadesocial já presente na formação do casal, configurando portanto trajectóriasconjugais homogâmicas. Já quando a estratégia carreirista da mulher contrastacom a atitude mais modesta do homem no que à sua actividade profissio-nal diz respeito, os casais aproximam-se da modalidade típica hipogâmica.

A complexidade inerente à elaboração das estratégias de articulação tra-balho-família não fica esclarecida, num plano estrutural, simplesmente àluz dos quadros normativos que, sob a forma de disposições incorpora-das, orientam as escolhas individuais. Na verdade, a análise das entrevistasdemonstra que as estratégias de articulação trabalho-família também são,muitas vezes, elaboradas de acordo com os constrangimentos que se co-locam à concretização das apostas na vida profissional ou na vida fami-liar, contrariando assim teses alicerçadas na ideia de que as escolhas re-sultam de «preferências» subjectivas, ou seja, dissociadas dos factores que

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objectivamente condicionam a sua formação (Hakim 2000). Por outrolado, da adversidade que o presente reserva pode resultar a activação de«disposições latentes» (Lahire 2003 [1998]) para reavaliar as prioridadese agir num sentido inverso àquele até então delineado. A título ilustra-tivo, uma gravidez não planeada pode representar um condicionamentoà concretização dos planos profissionais (Ana, capítulo 5), ou pelo con-trário activar disposições latentes no sentido de uma reavaliação das prio-ridades na realização pessoal, constituindo uma oportunidade temporária(Olívia, capítulo 3), ou mesmo o pretexto para conferir definitiva prima-zia (Amália, capítulo 2), à maternidade. Resta-nos realçar que as estratégiasde articulação trabalho-família resultam igualmente de um compromissoentre «disposições para crer» e «disposições para agir» (Lahire 2005), en-volvendo muitas vezes, na sua própria elaboração, sentimentos contro-versos de culpabilidade a respeito do desempenho do papel de mãe (Ana,capítulo 5), de desapontamento face às aspirações de uma carreira buro-crática comprometida pela dificuldade de um enquadramento profissio-nal (Adelaide, capítulo 4) ou de frustração generalizada face às expecta-tivas depositadas em ambos os universos (Júlia, capítulo 3).

Explicando a diferenciação social no casal

Da associação observada entre as modalidades típicas de trajectória con-jugal, por um lado, e as diversas estratégias que as mulheres elaboram paraarticular os encargos com a família e a actividade profissional, por outro,não pode rigorosamente presumir-se uma causalidade directa. Tal comorevela este estudo qualitativo, mesmo com profissões qualificadas e muitoexigentes em tempo e disponibilidade, as mulheres permanecem no cen-tro da vida familiar, correspondendo à expectativa social – reconhecida evivida por qualquer entrevistada – de que cabe sobretudo a elas elabora-rem estratégias que permitam dar resposta aos desafios que a articulaçãotrabalho-família incessantemente apresenta. Ora, para além de sujeitasquer a constrangimentos exteriores ao universo da família, quer à própriaadversidade, não são também essas estratégias forjadas na intersubjectivi-dade subjacente à dinâmica familiar e à negociação conjugal?

Neste trabalho de investigação, distanciámo-nos de qualquer explica-ção cuja natureza redutora e simplista dissociasse as opções individuaisquer da adversidade e dos constrangimentos estruturais inerentes aos diversos sistemas sociais, quer dos quadros normativos que orientam as escolhas e as relações sociais entre os agentes e que, deste modo, in-

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terferem na interacção familiar e conjugal. Era nosso pressuposto que opapel do casamento na diferenciação social não se esgota no momentoda escolha do cônjuge, e foi efectivamente a interpelação às perspectivasteóricas indiferentes aos múltiplos factores co-determinantes da diferen-ciação social entre cônjuges que esteve na origem de uma última hipótesede pesquisa, a saber, que a diferenciação social no casal é, em particular,o produto da intersecção entre as estratégias de articulação trabalho-famíliae a dinâmica de funcionamento familiar, designadamente a negociaçãoconjugal subjacente à divisão familiar do trabalho.

De acordo com este pressuposto, não é possível dar conta do papel davida conjugal na diferenciação social entre os homens e as mulheres par-tindo, simplesmente, da constatação da emergência de uma discrepânciasocioprofissional, depreendendo nexos de causalidade da identificação denormas de género activadas ou contestadas nas diversas estratégias que asmulheres esboçam tendo em vista a articulação trabalho-família. Na ver-dade, se a elaboração das estratégias de articulação trabalho-família está sujeitaa condicionalismos estruturais normativos que actuam sob a forma de ex-pectativas sociais e disposições incorporadas, nem por isso é alheia ao fun-cionamento da vida familiar e à negociação conjugal, podendo recordar-se, a título ilustrativo, que uma mulher pode lamentar a sobrecarga dotrabalho doméstico em virtude da desvinculação do cônjuge e, simulta-neamente, reconhecer o real contributo de uma forte comunicação con-jugal – radicada numa lógica de companheirismo e mútuo apoio (Keller-hals et al. 1982) – na atenuação do impacto de uma experiência dediscriminação sexual de que ela própria foi alvo no local de trabalho (Fi-lomena, capítulo 4). Trata-se de um exemplo elucidativo de que a conju-galidade e a sua trajectória não se reduzem ao produto estrutural das nor-mas internalizadas e da pressão exercida pelas expectativas de desempenhode papéis conjugais e parentais. Neste caso, se a afinidade entre os cônju-ges a nível das disposições para acreditar nos valores da igualdade de gé-nero encontra repercussão no apoio do homem à vida profissional damulher – designadamente à experiência de discriminação sexual no localde trabalho –, já a atitude dele no que se refere à partilha dos encargosdomésticos constitui um obstáculo à disposição dela para agir à reveliadas normas de género.

Devemos, enfim, sublinhar que as estratégias de articulação trabalho-fa-mília observadas estão, objectivamente, inscritas na dinâmica conjugal enas diferentes modalidades de divisão familiar do trabalho. Neste sentido,elas contribuem, sem dúvida, para moldar a trajectória conjugal. Recor-dando que quase todas as entrevistadas contam com o desafogo econó-

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mico suficiente para recorrer a empregadas, amas ou outro tipo de servi-ços especializados na prestação de cuidados à criança e execução de ta-refas domésticas, era expectável que a grande maioria dos casais contasseefectivamente com o apoio desses serviços. Na realidade, muitos destescasais contam ainda com o auxílio de familiares – grosso modo, os avós –nos cuidados à criança, situação esta, de certa forma, favorecida numpaís onde não abundam os apoios em geral prestados pelas redes sociaisde entreajuda (Vasconcelos 2005). Ainda assim, se a maioria das mulheresentrevistadas conta com diversos apoios, também é verdade que se de-fronta com a persistente atitude de desvinculação do homem no que àstarefas domésticas diz respeito.

Com efeito, as tarefas domésticas remanescentes – ou seja, todo o tra-balho não delegado em terceiros – são, com as devidas excepções, exe-cutadas pela mulher, independentemente das soluções que ela encontrapara articular a vida profissional e a vida familiar. O homem só é, defacto, o elemento mais sobrecarregado em apenas dois dos casos obser-vados: ora numa situação em que o horário de trabalho da mulher a ob-riga a estar ausente de casa mais horas do que o companheiro (Adelaide,capítulo 4); ora, curiosamente, numa configuração conjugal em que, es-capando à regra, surge, de certo modo, invertido o modelo tradicionalde divisão do trabalho, sendo sem dúvida a mulher quem mais investena carreira profissional e o homem quem maior protagonismo assumena vida familiar (Ana, capítulo 5). No entanto, deve referir-se que a re-duzida divisão do trabalho doméstico não executado por elementos ex-teriores ao núcleo familiar se acentua mais entre as mulheres com estra-tégias familiaristas. Sem jamais questionarem o significado e o valor doseu trabalho, nem mesmo interromperem o exercício da sua actividadeprofissional, estas mulheres reduzem, contudo, o horário de trabalho eescolhem um cargo que, precisamente, lhes permita articular as solicita-ções profissionais e uma disponibilidade tanto mais próxima quanto pos-sível de uma entrega incondicional à família e, sobretudo, ao cuidado eacompanhamento dos filhos. Se recordarmos que a este esforço acrescea prioridade reconhecida à carreira do cônjuge, não se estranha termosobservado entre essas mulheres uma tutela do trabalho doméstico queliberta a todo o momento o homem para a sua vida profissional.

Por oposição, entre os casais com trajectórias homogâmicas e hipogâmi-cas, a elevada carga horária de trabalho da mulher só é atenuada, na maio-ria dos casos, temporariamente logo após o nascimento dos filhos. Nestescasais, o homem revela-se efectivamente mais participativo. Em parti -cular, no caso dos casais com trajectórias homogâmicas – sem os constran-

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gimentos financeiros das famílias em meios sociais menos favorecidos –,a grande fatia das tarefas domésticas é delegada numa empregada ou nou-tro tipo de serviços exteriores à família, conquanto nalguns casos as ta-refas remanescentes, bem como a gestão da logística do trabalho domés-tico, permaneçam sobretudo a cargo da mulher, mesmo quando estaostenta uma atitude carreirista que compromete, de uma forma assumida,a sua disponibilidade para a vida familiar.

Tal como demonstram a generalizada desvinculação do homem dastarefas domésticas e as diversas formas da sua participação nos cuidadosà criança, as lógicas de divisão do trabalho doméstico não podem ser dis-sociadas das estratégias de articulação trabalho-família no escrutínio das tra-jectórias conjugais. Neste sentido, por exemplo, para as trajectórias homogâ-micas ou hipogâmicas contribui a forma como as estratégias carreiristas oumaximalistas são forjadas num quadro de divisão do trabalho domésticomais igualitário – ainda que tal partilha se aplique sobretudo, na maiorparte dos casos, aos cuidados à criança – do que aquele que se observanos casais com trajectórias de hipergamia prioritária ou hipergamia progressiva.Aqui, a primazia atribuída à carreira do homem envolve, quando não le-gitima, uma divisão familiar do trabalho mais diferenciada e assimétrica.

Finalmente, deve referir-se que a própria divisão do trabalho é um as-pecto da vida familiar cuja sujeição à negociação conjugal representa umdesafio empírico. A análise da diferenciação social entre os sexos queemerge no decurso da conjugalidade sairia empobrecida sem se observa-rem algumas dimensões da relação conjugal. Nas sociedades contempo-râneas, as relações conjugais não se pautam necessariamente pela lógicado «companheirismo» apregoada por Burgess et al. (1960 [1945]). Crentenuma libertação da escolha do cônjuge face a condicionalismos de natu-reza social, Burgess antevia em tal libertação o esvaecimento do papel docasamento nos processos de diferenciação social. A verdade é que os con-dicionalismos sociais, culturais, religiosos e geográficos prevalecem na for-mação do casal (Rosa 2005; 2008) sem que deixemos de constatar, emgrande parte dos relatos das mulheres entrevistadas, uma ausência da ló-gica de companheirismo, sobretudo no que se refere ao apoio psicológicoe logístico do homem à actividade profissional da mulher, ou mesmo àestima pelas suas aspirações de carreira. Este companheirismo ausente im-pregna, afinal, algumas das configurações conjugais possíveis no contextode transformações diversas no plano das orientações normativas e das prá-ticas familiares em que se inscreve a pluralidade observada a nível da in-teracção conjugal e familiar (Wall 2005; Aboim 2006). Se alguns aspectosda dinâmica conjugal podem ter auxiliado numa caracterização mais afi-

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nada das lógicas em que se inscreve a própria relação entre os cônjuges –como seja a integração da família no exterior ou o facto de alguns casaisse caracterizarem mais pela procura de um tem po exclusivamente des-tinado ao casal do que outros, para os quais esse tempo se dilui nos mo-mentos passados em família –, foi sobretudo o plano da comunicação eda negociação que se revelou mais esclarecedor do papel dessa dinâmicana configuração da trajectória conjugal.

Assim, nos casais com trajectórias de hipergamia prioritária, onde a mu-lher tende a adoptar estratégias familiaristas, a comunicação é dominadapela vida profissional do homem, de quem ela apenas espera um apoiolatente e pontual no que respeita ao exercício da sua profissão. Cabendoao homem a tutela da maior fatia dos recursos económicos, a organizaçãodo dinheiro reflecte e amplia, nestes casais, a desigualdade que prevaleceno plano dos rendimentos auferidos. Os focos de tensão conjugal não abun-dam, mas concentram-se em torno da dicotomia individual/colectivo,ora podendo a mulher ser acusada de não estar tão presente na vida fa-miliar quanto seria desejável ao homem, ora criticando ela própria as ati-tudes individualistas do cônjuge no plano do consumo ou o seu alhea-mento face às responsabilidades familiares, ora ainda demonstrandoressentimento para com a desvinculação do cônjuge no que se refere aotrabalho doméstico. Contudo, deve referir-se que uma atitude de resig-nação da parte da mulher parece decisiva, nos casos analisados, para queestas tensões não evoluam para o conflito.

Nos casais com trajectórias de hipergamia progressiva, as mulheres con-ferem igual importância à vida familiar e à vida profissional, mas acabampor conceder precedência à carreira profissional do cônjuge – estratégia ma-ximalista concessora. Ora, se a crescente desigualdade económica entre oscônjuges não é, nestes casais, atenuada pelas modalidades de organizaçãodo dinheiro, grosso modo pouco fusional ou redistributiva, também é ver-dade que as mulheres reclamam claramente mais a negociação na relação,pois a vida familiar concorre agora, não apenas com a igual prioridadeque a vida profissional assume junto delas, mas também com o espaçoe o tempo que pretendem exclusivamente reservados ao casal. A aberturaao exterior e a procura de um tempo apenas destinado ao casal são, assim,aspectos da dinâmica conjugal que sugerem um perfil mais moderno e,precisamente, mais exigente no que toca à vida a dois. Dessa exigênciaé, aliás, sintomática a proliferação dos focos de tensão conjugal, particular-mente abundantes nestes casais com trajectórias de hipergamia progressiva.

Já nos casais com trajectórias homogâmicas, a equivalente aposta doscônjuges na carreira profissional vai frequentemente de par com um ma-

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nifesto sentimento de companheirismo da parte do homem. É, contudo,difícil afirmar se este sentimento confessado pelas entrevistadas tem origemnum reforço da sua posição na negociação conjugal – reforço esse precisa-mente resultante de uma paridade, a nível dos recursos, que as equivalentesapostas profissionais proporcionam (Blood e Wolfe 1960) –, ou, pelo con-trário, não será esta uma demonstração clara da autonomia relativa dadinâmica conjugal face aos condicionalismos exteriores. Se a dinâmicaconjugal tem implicações decisivas nas apostas profissionais de cada ele-mento do casal, encontramos aqui mais um argumento empiricamentesustentado que contradiz a perspectiva economicista subjacente à teoriados recursos. De resto, sem a frequência de focos de tensão conjugal obser-vada nos casais com trajectórias de hipergamia progressiva, os casais com tra-jectórias homogâmicas destacam-se, grosso modo, pela procura em conservara abertura ao exterior e os momentos exclusivamente reservados à relaçãoa dois, na medida em que, tal como reconhecem as entrevistadas, otempo tende a ser monopolizado pela vida familiar.

De resto, para as entrevistadas mais apostadas na carreira que o côn-juge – trajectórias hipogâmicas –, ser mãe não significa abdicar das suas as-pirações e projectos profissionais. É, pois, recorrente entre estas mulheresuma maior predisposição para a negociação conjugal, sobretudo quandoconfrontadas com a sobrecarga de uma divisão do trabalho domésticopouco igualitária – se bem que, mesmo nestes casos, sejam exaltados oapoio e o incentivo do homem aos seus projectos profissionais. Se amaior aposta na carreira se consubstancia, enfim, num reforço da posiçãoda mulher na negociação conjugal, é assinalável que esse reforço não setraduza – porventura devido à valorização do apoio, estímulo e incentivodo cônjuge à sua profissão – num desequilíbrio de poderes nestes casais,onde se observam, claramente, menos focos de tensão do que nas uniõesconjugais com outro tipo de trajectória.

***Na expectativa de que o conjunto de resultados deste trabalho de in-

vestigação proporcione pistas de reflexão para o debate e aprofunda-mento da problemática da relação entre vida conjugal e desigualdade,não poderíamos encerrar o presente livro sem deixar de sublinhar a per-sistência de uma matriz normativa radicada na diferença sexual que – embora sem esgotar a diversidade e a complexidade das soluções que asmulheres encontram para articular a vida profissional e a vida familiar –o confronto com a realidade empírica desvelou. Confirmados os pressu-postos de que essas soluções não podem, nos seus efeitos impactantes

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sobre a diferenciação social entre cônjuges, ser dissociadas das modali-dades de divisão familiar do trabalho e da própria negociação conjugal,resta-nos sublinhar a crítica – manifesta nas atitudes da maioria das pro-fissionais qualificadas que entrevistámos – do papel assumido pelas mu-lheres totalmente dedicadas à vida familiar, crítica essa desde logo ale-gando uma forte consciência do valor do exercício de uma profissão narealização pessoal. Todavia, se tal manifestação demonstra a demarcaçãoface à situação de todas aquelas que estão circunscritas aos papéis exer-cidos no âmbito da família, as soluções encontradas para articular a vidaprofissional e a vida familiar só excepcionalmente questionam as normasque prescrevem a fusão da mulher com a família e a maternidade en-quanto elemento fundamental na construção da identidade feminina.Trata-se, portanto, de uma ideologia da domesticidade que – mesmo nes-tes casais de duplo emprego qualificado, onde a ordem da interacçãoconjugal é mais propensa a reconfigurar, por via da negociação, os efeitosestruturais das normas emergentes sob a forma de papéis de género e cor-respondentes expectativas de desempenho – se perpetua a cada momentonas escolhas e decisões a respeito da divisão do trabalho doméstico e dotrabalho profissional. Uma ideologia que, elegendo a articulação traba-lho-família como desafio eminentemente feminino, se consubstancia,afinal, na prevalência de uma matriz normativa que ora inibe a mulherde renunciar à sobrecarga com o trabalho doméstico, ora coíbe o homemde reconhecer a possibilidade de as solicitações familiares assumirem pri-mazia face à sua actividade profissional.

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Rodrigo R

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Preocupada em demonstrar as implicações da vida conjugal nacristalização das desigualdades sociais, a investigação sociológicatem privilegiado o momento da escolha do cônjuge. Este estudoprocura trazer à luz do dia o papel da própria intersubjectividadeconjugal, que a perspectiva da escolha do cônjuge deixa,forçosamente, na penumbra. Os intrincados mecanismos dogénero, que perpassam a vida conjugal, reforçam frequentementeas condições desigualitárias entre homens e mulheres na suaprojecção enquanto sujeitos sociais para além do universo dafamília. Através da análise de entrevistas em profundidade amulheres que vivem em casal com filhos e cujas elevadasqualificações ampliam, à partida, as possibilidades de carreira ecorrespondente elevação social, o autor observa as condiçõesrelacionais que contribuem para definir o campo de possibilidadesno que às soluções encontradas para articular a vida profissionale a vida familiar diz respeito, analisando particularmente os seusefeitos na desigualdade entre os cônjuges.

Capa: Paula Rego, The Family, 1988

Rodrigo Rosa, sociólogo einvestigador do ICS-UL, temrealizado e publicado trabalho deinvestigação no âmbito da sociologiada família e do género. Desenvolveactualmente investigação no domínioda articulação trabalho-família numaperspectiva comparativainternacional, procurando averiguaras implicações das políticas públicasde família e igualdade de género – implementadas em diferentespaíses europeus – nas modalidadesde articulação entre a vidaprofissional e a vida familiar.

Outros títulos de interesse:

Famílias em PortugalPercursos, Interacções,

Redes Sociais

Karin Wall(organizadora)

Família e Género em Portugal e na EuropaPedro LainsKarin WallLígia Amâncio(organizadora)

Conjugalidades em MudançaPercursos e Dinâmicas

da Vida a Dois

Sofia Aboim

Apoio:

ICSwww.ics.ul.pt/imprensa

ICS

Rodrigo Rosa

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