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1 UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES MESTRADO EM DIREITO AGENTE PROVOCADOR Rodrigo Falk Fragoso ORIENTADOR: Prof. Dr. JOÃO MESTIERI Rio de Janeiro 2006

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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

MESTRADO EM DIREITO

AGENTE PROVOCADOR

Rodrigo Falk Fragoso

ORIENTADOR: Prof. Dr. JOÃO MESTIERI

Rio de Janeiro

2006

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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

MESTRADO EM DIREITO

AGENTE PROVOCADOR

Rodrigo Falk Fragoso

Dissertação apresentada ao Curso de

Mestrado em Direito, área de Ciências

Penais, como requisito parcial para

obtenção do título de Mestre em Direito,

sob a orientação do Professor Doutor

João Mestieri

Rio de Janeiro

2006

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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

MESTRADO EM DIREITO

AGENTE PROVOCADOR

Rodrigo Falk Fragoso

Dissertação apresentada ao Programa de

Mestrado em Direito, submetida à

aprovação da Banca Examinadora

composta pelos seguintes membros:

BANCA EXAMINADORA

__________________________

Prof. Dr. João Mestieri

____________________________

Prof. Dr. Heitor Costa Junior

_____________________________

Prof. Dr. Humberto Dalla Bernardina de Pinho

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À memória de José Carlos Fragoso, meu

exemplo de desassombro profissional,

determinação pessoal e amor à vida.

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Agradecimentos

Em primeiro lugar, agradeço ao meu irmão, Christiano, maior incentivador deste

trabalho e meu melhor amigo.

Agradeço também ao meu pai, Fernando, não apenas pelo enorme esforço investido na

minha formação, mas, sobretudo, por todo o carinho, a amizade sincera e os exemplos

de vida que recebo a cada dia em que tenho a alegria de trabalharmos juntos. Agradeço

muito à minha mãe, Beatriz, que consegue ser, ao mesmo tempo, forte e doce,

ensinando-me que o amor verdadeiro é incondicional e inabalável.

E agradeço ao meu orientador, professor João Mestieri, pela gentileza dos pequenos

gestos e pela clarificação de muitas idéias aqui expostas, sem a qual este trabalho não se

teria realizado.

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Resumo

A ação do agente do Estado que induz o cidadão à prática de um crime constitui

procedimento imoral e violador dos direitos inerentes à personalidade, assegurados em

todos os países democráticos e por todas as Constituições já editadas no Brasil, razão

pela qual o ordenamento jurídico nacional jamais permitiu a punição dos provocados.

No entanto, o discurso punitivo dirigido ao “combate” do tráfico ilícito de entorpecentes

tem servido de pretexto para relativizar os dogmas do chamado “crime provocado”. No

Brasil, por exemplo, com a prática judicial de permitir a punição pelas figuras de delito

antecedentes à ação provocada; no exterior, com o desenvolvimento de teorias

aberrantes de justificação do comportamento do agente provocador. Pouco debatida no

Brasil, a responsabilidade do agente provocador tem sido alvo de discursos legitimantes

na doutrina fora do País, o que é, para nós, motivo de preocupação haja vista o costume

nacional de importar políticas criminais estrangeiras, independentemente de sua

adequação à nossa realidade ou às prioridades legislativas. Um claro exemplo de figura

importada é o agente infiltrado, muito comum nos sistemas jurídicos da Common Law

(como é o caso dos Estados Unidos da América), mas que tem sido muito confundido

por aqui com o agente provocador. Sua adoção pela lei brasileira decorre de exigências

da “comunidade internacional”, sempre disposta a impor suas prioridades nos tratados

que convida os países periféricos a assinar. A infiltração não se confunde com a

provocação policial, mas lança mão dos mesmos subterfúgios imorais daquela

modalidade de intervenção estatal, representando, na prática, mais uma técnica de

controle social pela via criminal. Com efeito, trata-se de instrumento de repressão e

neutralização dedicado às camadas baixas da sociedade, com impressionante

exclusividade, eis que a infiltração está permitida somente nos casos de tráfico ilícito de

drogas: o crime dos pobres. Aliás, num Estado (cada vez mais) punitivo, a neutralização

dos pobres constitui tarefa sempre atribuída pelos que editam a lei penal, sempre

interessados em manter as coisas “no seu devido lugar”. Nos bancos e nas indústrias, é

claro, não haverá infiltração.

Palavras-chave: Agente provocador. Crime provocado. Responsabilidade penal.

Agente infiltrado.

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Abstract

The act of the State Agent that induces the citizen into the practice of a crime,

creates immoral procedure and violates the inherent rights to the personality, assured in

all democratic countries and by all constitutions enacted in Brazil, where upon the

national juridical order has never permited the punishment of the provoked. However,

the punitive speech directed at the “combat” of the illicit narcotic crime has served as an

excuse to minimize the dogmas of the so called “provoked crime”. In Brazil, for

example, with the judicial practice of allowing the punishment of the character of

offence prior to the provocative action, likewise abroad, with the development of

abnormal theories of behavior explanation of the provoking agent. Little debated in

Brazil, the liability of the Provoking Agent has been the target of legitimate speeches of

the jurisprudence abroad, wich is, for us, a reason to worry, considering the national

habit of importing foreign criminal policies, notwithstanding of its conformity to reality

or to our legislative priorities. A clear example of the imported character is the

undercover agent, very common in the systems of the Common Law (The United States

of America in case), but that has been very much confused here with the Provoking

Agent. Its adoption by the brazilian law originates from the demands of the

“international community” always ready to enforce its own priorities in the treaties

when inviting the peripheral countries to sign them. The undercover does not mix up

with the police provocation but uses the same immoral subterfuges as those of the state

intervention, representing, in practice, one more technique of social control by criminal

ways. Indeed, it is an instrument of repression and neutralization dedicated to the lower

levels of society, with impressive exclusivity, here the undercover agent is allowed only

in specific illicit drug traffic: the crime of the poor. In addition, in a State (more and

more) punitive, the neutralization of the poor constitutes a task always attributed by

those that enact the penal law, always interested in “keeping things in their right

places”. In banks and in the industries, of course, there will be no undercover agent.

Key Words: Provoking agent. Provoked crime. Penal responsibility. Undercover agent.

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Sumário

1. Introdução 9

2. Teorias em torno dos conceitos de autoria e participação 13

3. Instigação, provocação e delito provocado 21

4. Responsabilidade penal do sujeito provocado 32

5. Responsabilidade penal do agente provocador 46

6. A questão do agente infiltrado e a investigação encoberta 66

7. Conclusão 82

8. Referências bibliográficas 86

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1. Introdução

A idéia da pesquisa aqui desenvolvida surgiu há alguns meses quando

analisávamos o antigo estojo de fichas de meu avô, Heleno Cláudio Fragoso. A divisão

dos temas obedecia, via de regra, os capítulos e as seções de suas Lições. Ali era onde o

autor registrava suas leituras, devidamente catalogadas por títulos não apenas de direito

penal, mas também de política criminal, criminologia e processo penal. Muita atenção

nos despertou os inúmeros itens lá destacados e ricamente guarnecidos de fontes

estrangeiras, que estavam a merecer uma pesquisa mais acurada no Brasil.

Um dos temas de pouca repercussão na doutrina nacional, mas que logo

julgamos de especial interesse, sobretudo pelas graves implicações decorrentes de sua

aplicação prática, foi o uso do agente provocador, o funcionário do Estado (ou terceiro)

encarregado de provocar o cidadão à prática de crime para, no momento do fato, realizar

prisão em flagrante. Ambiguamente apelidado por Susana Aires de Sousa de “homem

de confiança” (SOUSA, 2003, p. 1208), o agente provocador nos causava um misto de

curiosidade e aversão. Se, no caso da Polícia, ele era alguém “de confiança” para o seu

empregador (o Governo), parecia-nos que para qualquer grupo da sociedade civil não

passaria de um traidor. Seu expediente enganoso não resistiria ao juízo moral sequer do

mais desonesto dos cidadãos. Na base dos terríveis “juízos sumários” dos traficantes das

favelas cariocas, a perda da confiança constitui o fator que define a vida ou a morte do

traidor. A traição é (e sempre foi) tida como algo abjeto, imoral e indefensável. Por isso,

imaginar que o Estado pudesse prestigiar e se utilizar validamente de meios enganosos e

traiçoeiros contra o cidadão nos levava à perplexidade e aguçava nossa curiosidade.

Passamos, então, a elaborar pesquisa em torno das teorias desenvolvidas em torno da

participação dos agentes do Estado nos crimes por eles provocados.

O agente provocador, como diz o nome, é aquele que provoca a comissão de um

delito. No entanto, de acordo com as modernas teorias da “comparticipação

criminosa”, no dizer de Eduardo Correia, ele não é autor, pois não realiza conduta típica

nem tem o domínio do fato. Assim é que a doutrina costuma aproximá-lo da figura do

partícipe, mais especificamente na forma do instigador. Mas, será que ele é, a rigor, um

simples instigador? Apesar de provocar o fato, o agente não quer que o crime se

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consume. Seu objetivo é apenas prender o provocado em flagrante. Por tal razão, a

presente investigação se inicia por visitar as teorias já desenvolvidas sobre a autoria e a

participação, buscando o correto enquadramento do agente provocador. Sabíamos que

dependendo da teoria que se adotasse, dentre as várias concepções existentes, o crime

provocado teria tratamento distinto. Por exemplo, os adeptos do conceito extensivo de

autor, que muito influencia a doutrina brasileira (por causa da teoria causal da

equivalência dos antecedentes), logo enxergariam o provocador como autor, punindo-o

com o mesmo rigor do executor. Isto importaria em dar as costas para o conteúdo

subjetivo da ação, pois o provocador, ao contrário do executor, não quer o resultado

antijurídico. Assim é que, eleita a teoria mais adequada, o trabalho se debruçará sobre a

definição da figura do partícipe, notadamente do instigador (participação moral), que

com o agente provocador guarda inequívoca semelhança. Daí em diante, seguem-se

algumas questões que podem ser assim sintetizadas: é instigador o agente do Estado que

provoca a infração penal? Se não, quais os critérios para se separar uma figura (o

instigador) da outra (o agente provocador)? Mas, em qualquer caso, quais as

responsabilidades deste agente que provoca crimes?

Porém, antes de ingressarmos na responsabilidade penal do agente provocador,

passaremos por uma questão de maior relevo: a punição do sujeito provocado. Aqui nos

depararemos com a construção doutrinária em torno do chamado flagrante preparado,

edificada sobre as bases da teoria do crime impossível. Será um alívio ver cristalizada a

não-punibilidade do sujeito provocado na súmula 145 do Supremo Tribunal Federal.

Mas, logo em seguida, veremos algumas decisões que parecem contornar a súmula,

segundo as quais se admitiria, por exemplo, a punição pela antecedente posse ilegal nos

flagrantes de drogas. Tal entendimento, com efeito, não é nosso privilégio exclusivo. E

isto porque analisaremos certas decisões do Supremo Tribunal da Espanha, as quais

parecem mitigar o dogma da não-punibilidade dos sujeitos provocados, também nos

casos de drogas, distinguidos lá pelo nome de “provocaciones policiales”.

De volta à avaliação do pensamento cristalizado nos nossos Tribunais acerca do

flagrante preparado, encontraremos uma estranha justificativa para distingui-lo do

flagrante esperado. O flagrante meramente esperado seria válido e punível, ao contrário

daquele, porque não há induzimento por agente público. Ocorre que, haver ou não

induzimento, será mesmo o critério mais adequado? Será que o induzimento sobrepuja

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a idéia de proteção do bem jurídico? Neste sentido, avançaremos seguindo uma linha

de questionamento à luz da teoria do bem jurídico, sob a premissa de que o fato deverá

ser impunível sempre que afastada a possibilidade de causar lesão ou perigo de lesão ao

bem jurídico. Disto resulta se não seria o caso de considerar impunível o flagrante

também nos casos em que a Polícia apenas espera que o fato aconteça, desde que,

estando previamente informada, tenha tomado todas as medidas de cautela para evitar a

consumação? A justificativa para este estudo é a seguinte: a segurança do bem jurídico

é o fundamento básico da incriminação de certas condutas. À luz do princípio do

nullum crimen sine iniuria (ofensividade ou lesividade, este para Ferrajoli), não há

crime se não há lesão (ou risco de lesão) a bens jurídicos. Punindo o flagrante esperado,

não estaríamos a romper a lógica de incriminar apenas as condutas que ofereçam perigo

efetivo aos interesses maiores da coletividade?

Em seguida, o estudo se dedicará a pesquisar a responsabilidade penal do agente

provocador. A doutrina brasileira não parece se importar muito com este ponto do

problema, limitando-se a prever a possibilidade de punição a título de culpa, nos casos

em que o agente deixe de adotar as cautelas devidas para proteção do bem ameaçado.

Porém, é rica a discussão na doutrina estrangeira, embora venha tomando a perigosa

direção da legitimação da ação provocadora por parte de agentes públicos. O trabalho

pretenderá expor as principais construções doutrinárias e jurisprudenciais existentes no

exterior em torno da responsabilidade do agente provocador, demonstrando que, muitas

delas, escondem possíveis riscos para o nosso (já abalado) dogma de não punir os

provocados.

No capítulo final, o trabalho abordará a figura do agente infiltrado. Mesmo

rompendo os limites do tema inicial da investigação, optamos por não ficar adstritos ao

agente provocador, pois sabíamos que, com a edição da Lei n.º 10.217, de 11 de abril de

2001, ordenamento jurídico brasileiro acabara de admitir a realização de investigações

criminais com o uso de agentes infiltrados. A exemplo do agente provocador, esta

figura de policial também participa do crime, revelando uma tendência estatal de se

antecipar ao iter criminis, imiscuindo seus agentes nas quadrilhas e negociando os fatos

criminosos que irá ou não punir. O tema atingiu nos últimos tempos um especial relevo

devido à freqüência com que se usa nos meios policiais obter informações, de modo

mais ou menos sub-reptício, como expediente para conseguir suficientes provas de

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convicção contra um sujeito. O aumento contínuo do tráfico ilícito de drogas,

sobretudo, mas também das chamadas “organizações criminosas”, e as extraordinárias

dificuldades que oferecem sua repressão, põem em evidência a pouca eficácia das

tradicionais técnicas policiais contra este tipo de delinqüência. O fundo de toda a

questão é a contínua tensão existente entre as mais eficazes técnicas repressivas e os

limites impostos pelo ordenamento jurídico.

Antes, contudo, de iniciarmos a busca pelo conceito de agente provocador e

pelas características do crime provocado parece-nos necessária uma breve incursão nas

questões da autoria e participação, mesmo porque, inexistindo definição legal de crime

provocado na lei penal brasileira, a tendência (natural) é que se busque alinhá-lo às

formas tradicionais de participação criminosa. Luis Felipe Ruiz Anton, versando sobre a

falta de conceituação no código penal espanhol, frisa que “el agente provocador no es

uma categoría jurídico positiva, sino empírica, y por eso la determinación de su posible

responsabilidad criminal solo puede deducirse confrontando la acción desarrollada

com las correspondientes formas de autoría o de participación reguladas em el Código

penal”. (ANTON, 1982. p. 119) Passemos, pois, à análise das formas de autoria e

participação desenvolvidas entre nós.

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2. Teorias em torno do conceito de autoria e participação

Antes de situarmos a figura do agente provocador na teoria do delito parece

importante investigar as teorias surgidas em torno da autoria e da participação para

fixarmos, em seguida, o conceito que permeará o presente trabalho. Todos sabemos que

o nosso Código Penal parificou o tratamento das espécies de agentes do crime (autor e

partícipe), ambos respondendo indistintamente pelo fato delituoso. A lei fixou a noção

de que todos que concorrem para o resultado são autores (sistema unitário), não

distinguindo especificamente, como ressalta João Mestieri, “entre participação principal

e acessória, entre autores e cúmplices ou entre participação moral e material”.

(MESTIERI, 1990, p. 251) A lei abrangeu todo e qualquer partícipe, tornando

penalmente relevante qualquer modo de concurso.

Na visão de Nilo Batista, a idéia acolhida pelos legisladores de 1940 (inspirada

no código penal italiano) representou um empobrecimento da produção jurídica

nacional em matéria de concurso de agentes. O autor frisa que o judiciário e mesmo

parte da doutrina não buscavam apreender e adaptar uma teorização mais adequada à

realidade, optando, ao revés, “por uma indevida utilização de apetrechos teóricos

conhecidos, como a causalidade, hipertrofiados e desviados de suas reais tarefas”.

(BATISTA, 2004, prefácio). Com efeito, é de se reconhecer que, à míngua de clara

distinção legal entre os agentes, a causalidade tem servido de anteparo para muitas

questões que deveriam ser tratadas, na verdade, no âmbito da participação.

Muitos autores entendem que o tratamento parificado do concurso de agentes é

corolário da teoria da equivalência dos antecedentes (ou equivalência das condições),

segundo a qual tudo que concorre para o resultado é causa (cf. artigo 13, do Código

Penal).1 A teoria, como se sabe, não distingue entre causa e condição.2 Isto é, uma

pequena ferida no braço de um hemofílico pode ser causa da morte, uma vez que, acaso

excluída a lesão, o resultado não se teria produzido. Portanto, a ação é causa do

resultado se, suprimida mediante uma operação mental hipotética, determina a

1 “Art. 13. O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.” 2 Aliás, esta teoria (também apelidada de conditio sine qua non) também não distingue entre “causa e ocasião, causa e concausa.” (NORONHA, 1981. p. 129)

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supressão daquele. No dizer de Enrique Cury, “la acción es causa del resultado cuando

es condición de su producción.” (CURY, 1973, p. 62). A esta teoria foram dirigidas

inúmeras críticas, sobretudo em razão da extensão desmedida do vínculo causal.3

Com a reforma de 1984, que acrescentou a expressão “na medida de sua

culpabilidade” ao antigo artigo 25 (atual artigo 29), do Código Penal4, a lei mitigou o

rigor parificador, fixando a culpabilidade como critério diferenciador entre autores e

partícipes. Além disso, a participação de menor importância (cumplicidade

desnecessária) de simples atenuante foi convertida em causa especial de diminuição de

pena (art. 29, § 1º) e, ainda, a participação em crime menos grave foi prevista com mais

adequação às exigências da culpabilidade (art. 29, § 2º). Por tal razão, João Mestieri

entende que a teoria unitária foi temperada, uma vez que à teoria da culpabilidade

subordinou-se o concurso de agentes, o que, para o autor, representa uma distinção

tácita entre autoria e participação. (MESTIERI, 1999, p. 253)

Essa parificação, porém, é antiga. Na história da doutrina penal, a distinção

entre as formas de participação criminosa tardou. A conduta dos partícipes, tanto do

instigador como do cúmplice, esteve sempre equiparada à do executor em razão desta

noção unitária de co-delinqüência, que remonta ao direito romano. Nelson Hungria nos

ensina que os jurisconsultos romanos chegavam a distinguir os agentes em auctor (ou

princeps sceleris), os socii (que intervinham na consumação do crime) e os conscii (ou

adjutores ou ministri), estes sendo os colaboradores do auctor, mas sem participação na

consumação. (HUNGRIA, 1978, p. 399) Entretanto, em Roma, todos respondiam como

se fosse um único fato (unum delictum), mesmo que fossem diferentes as cotas

individuais de participação.

Na lição de Nelson Hungria, somente a partir da Idade Média é que se passou a

formular uma teoria de cunho científico, aplicando-se os princípios da causalidade ao

direito penal. (HUNGRIA, 1978, p. 401) Estabeleceu-se uma distinção entre os

partícipes e, por conseguinte, seu respectivo tratamento penal, sob o fundamento de que

“uns eram causa principalis ou immediata do crime, outros causa secundaria et minus

principalis ou causa non immediata, devendo estes, portanto, serem punidos com

3 A crítica mais irônica talvez seja a de BINDING, ao lembrar que, segundo a conditio sine qua non, o carpinteiro que construiu a cama é causa do adultério. (Apud CURY, 1973, p. 62). 4 “Art. 29 - Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade”. (obs: redação após a Lei n.º 7.209, de 11.7.1984)

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menos rigor”. (HUNGRIA, cit., idem). Os partícipes, por seu turno, eram divididos sob

as figuras de auxiliadores, conselheiros, mandantes e, inclusive, receptadores

(favorecimento post delictum).

Na Modernidade, ainda segundo Hungria, a doutrina da participação criminosa

complicou-se sobremaneira, dividindo-se entre teorias objetiva, subjetiva e mista.

(HUNGRIA, cit. p. 402). À primeira teoria (objetiva) considerava-se co-autor aquele

que coopera na execução do fato típico, o que contribui imediatamente no ataque ao

bem jurídico; enquanto que o cúmplice se limita a atos preparatórios, de auxílio

secundário, cuja contribuição é entendida como condição (e, não, causa) do resultado.

A teoria subjetiva, por sua vez, afirma que não há diferenciação objetiva entre co-autor

e cúmplice, pois a discriminação deve ser feita segundo a vontade dos partícipes. Assim

é que os entusiastas daquela teoria entendiam co-autor como aquele que quer o fato

como próprio, incondicionalmente, sem se subordinar ao interesse de outrem, ao passo

que o cúmplice quer o fato animo socii, quer dizer, como fato de outrem, ou no interesse

alheio. Por fim, a teoria mista representou uma conjugação de idéias, reunindo o

critério objetivo ao subjetivo.

Não obstante a adoção do sistema unitário por muitas legislações, a distinção

entre as diversas formas de co-delinqüência não escapou à análise da doutrina

estrangeira. Por exemplo, Francesco Carrara, citado por José Anton Oneca, distinguia as

seguintes categorias de co-delinquencia: (1) “Motores” (os que dão o impulso moral

sobre o ânimo do executor); (2) “Autores” (os que intervém pessoalmente nos

momentos de consumação do crime); (3) “Auxiliadores” (concorrem nos atos

executivos, mas sem intervir nos “consumativos”); (4) “Continuadores” (que repetem,

continuando de algum modo, a violação jurídica a pretexto do delito consumado); (5)

“Receptadores” (os que prestam serviços habitualmente aos delinqüentes para encobri-

los ou ocultar os objetos do delito); e (6) “Encobridores” (aqueles que, sem prévio

acordo, proporcionam qualquer gênero de assistência para impedir o descobrimento e

castigo do crime). (CARRARA Apud ONECA, 1930, p. 48).

Distinguir as figuras e os diferentes graus de atuação de cada pessoa que

colabora na prática do crime não é mais do que atentar para a realidade da vida. Nas

situações cotidianas há conceitos imanentes ao ser humano, que permitem apontar, por

exemplo, que fulano fez (foi autor) de algo ou que beltrano ajudou (ou participou) de

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um ato qualquer praticado por fulano. Sobre a distinção entre autoria principal e

secundária João Mestieri diz ser “imperativo lógico e natural”. (MESTIERI, 1990, p.

253) Portanto, manter-se jungido à concepção unitária da co-delinqüência seria negar o

óbvio e o natural. Entretanto, não tão óbvio assim é definir o que seja autor e o que seja

partícipe.

Por isso, comecemos pelo conceito restritivo, para o qual autor é quem realiza,

no todo ou em parte, a ação incriminada que configura o delito, em seu aspecto objetivo

e subjetivo. (FRAGOSO, 2004, 314).

Este conceito é clássico, sendo adotado, por exemplo, por Carrara (“l´autore

principale del delito é colui che esegui l´atto consumativo della infrazione”) e também

por Dohna, na Alemanha (“es autor quien personalmente concreta el tipo de um

delito”). (Apud BATISTA, 2004, p. 31) Portanto, restringe-se a autoria somente à

pessoa que pratica a conduta descrita no núcleo do tipo penal, sendo participes todos

aqueles que, de alguma forma, o auxiliem, mas que não venham a realizar a conduta

narrada pelo verbo do tipo penal. (GRECO, R., 2003, p. 477) Partindo deste conceito,

todavia, um problema se apresenta à frente. Se só a realização da ação típica configura a

autoria, excetuados ficarão os casos de autoria mediata. Isto é, não poderia ser

considerado autor aquele que se valesse de um terceiro sem dolo para a execução do

delito.

Assim é que, em posição diametralmente oposta, surge a concepção extensiva

de autor. Em sintonia com a teoria da equivalência das condições, concebe-se como

autor todo aquele que, de alguma forma, colabora para a prática do fato criminoso.5

Procurando relacionar a autoria com a causação do resultado, este conceito também

contou com ampla aceitação na doutrina. No Brasil, o conceito extensivo ganhou

especial destaque pela acolhida de Nelson Hungria. Também na doutrina estrangeira foi

prestigiado; e.g., por Mezger (“el punto de arranque cientifico de toda teoria

jurídicopenal de la participacion es la teoria de la causalidad”), e ainda por Maggiore e

Manzini. (Apud BATISTA, 2004, p. 33).

Partindo do conceito extensivo, o parâmetro diferenciador passa a ser o conteúdo

subjetivo, tal como frisou Jescheck: “se a autoria e a participação não podem distinguir-

se objetivamente, porque ambas são equivalentes desde um prisma causal, somente resta 5 Talvez seja a razão porque Welzel considere o conceito extensivo fruto tardio da ação causal. (Apud BATISTA, 2004, p. 32)

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a possibilidade de buscar a distinção num critério subjetivo.” (JESCHECK Apud

GRECO, R., 2003, p. 477). Sendo assim, essa extensão do conceito nos remete de volta

à citada teoria subjetiva da participação, pela qual autor será aquele que quer o fato

como próprio, sem se subordinar ao interesse de outrem; enquanto que partícipe será

quem queira o fato animo socii, apenas como fato de outrem.6 Partindo de um elemento

meramente volitivo (e de dificílima verificação prática), esta teoria subjetiva da

participação não fixava sob sólidos pilares a noção de autoria.

Não obstante, para além da extensão desmedida do conceito e das dificuldades

de se distinguir o autor do partícipe apenas pelo conteúdo subjetivo da ação, a principal

crítica à concepção extensiva parece ser a relativização da função de garantia do tipo

penal. Isto porque, ao considerar como autoria toda e qualquer causação de um

resultado proibido, esta concepção de autoria “abre” o tipo e viola o princípio da reserva

legal. (BATISTA, 2004, p. 35). Assim, à concepção extensiva de autoria seguiu-se o

desenvolvimento de diversas teorias.

As teorias surgidas em torno da autoria podem ser classificadas, consoante

expõe Nilo Batista, segundo os seguintes critérios: (a) formal-objetivo; (b) material-

objetivo; (c) subjetivo; e (d) final-objetivo.7 Para não nos desviarmos do objeto precípuo

do presente estudo, faremos apenas uma breve exposição de cada linha de pensamento.

Inspirado no conceito restritivo de autor, o critério formal-objetivo define como

autor quem realiza diretamente a conduta típica ou quem realiza através de outrem

(autoria mediata). (FRAGOSO, 2004, p. 312) De outro lado, partícipe é aquele que,

sem realizar conduta típica, contribui para a ação típica de outrem. Seja qual for a

forma de participação, esta não constitui fato punível autônomo, estando sempre

subordinada à realização de fato típico por parte de outrem. Esta concepção conta com

a filiação de boa parte da doutrina brasileira8, embora seja objeto de severas críticas,

6 Rogério Greco traz bons exemplos das possíveis falhas que esta teoria pode causar: um matador de aluguel mata a vítima não porque desejava a sua morte, mas porque fora pago para executar o serviço; o mesmo ocorreu num homicídio julgado pelo Tribunal alemão, onde o executor do recém-nascido foi condenado como cúmplice (e não autor) porque agia no interesse da mãe, que lhe solicitara a morte do bebê. (Curso de direito penal. Parte geral. RJ: Impetus, 2003. p. 480) 7 Nilo Batista faz menção ainda a teoria funcionalista de Gunther Jakobs, que se baseia na responsabilidade dos agentes segundo uma noção de organização funcional. Batista, entretanto, não se detém sobre ela, haja vista ter “praticamente nenhuma repercussão no Brasil”. Para um estudo mais aprofundado das diversas teorias da autoria, v. BATISTA, N., 2004, p. 60 e segs.; CURY, E., 1973, p. 263 e segs.; TAVAREZ, J., 2000, p. 133 e segs.. 8 Além de Heleno Fragoso, é admitida, p. exemplo, por Aníbal Bruno (Direito penal, 1967, p. 265), Júlio Mirabete (Manual de direito penal, 2003, p. 231) e René Dotti (Curso de direito penal, 2004, p. 350).

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sobretudo por causa das dificuldades de solução dos casos de autoria mediata ou do

mandante, que não realiza pessoalmente a atividade executiva, mas é responsável pela

“estruturação do transcurso do sucesso”, no dizer de Roxin. (ROXIN Apud BATISTA,

2004, p. 65)

De outro lado, segundo o critério material–objetivo, autor é não só quem realiza

a conduta típica, como também aquele que concorre com uma causa para o resultado.

(MIRABETE, 2003, p. 230). Trata-se de critério adotado em consonância com o

conceito extensivo de autor, que não faz distinção entre os agentes, já que considera

como autores todos aqueles que concorreram para o resultado. Muitas falhas podem ser

vistas neste critério, sendo talvez a principal delas o recolocar a causalidade no campo

do concurso de agentes, ignorando situações de concurso em que não há causalidade;

e.g., nos crimes de mera conduta. (BATISTA, 2004, p. 66)

Outro critério para fixar o conceito de autor é o subjetivo, que dá ensejo à citada

teoria subjetiva da participação, segundo a qual se entende por autor aquele que atua

com vontade de autor e deseja a ação como própria. Nesse sentido, o partícipe seria

aquele que atua com vontade de partícipe, desejando a ação como alheia. Como

dissemos, este critério chegou a conhecer certo prestígio no Tribunal alemão, mas suas

deficiências terminológicas (sobretudo na busca do conteúdo de um animus auctoris)

findaram por colocá-lo à margem de aceitação doutrinária.

Em vista das inequívocas dificuldades enfrentadas por essas teorias na solução

dos problemas de comparticipação criminosa (na expressão de Eduardo Correia), surgiu

na Alemanha, nos anos 40, pela cátedra de Hans Welzel, a teoria do domínio do fato,

que trouxe um critério final-objetivo. Desde então, ela tem sido a teoria de maior

prestígio entre os alemães.9 A idéia central é a de que autor é aquele que tem o domínio

final do fato, podendo decidir quanto à sua realização e consumação. Isto é, a tipicidade

da ação não é mais o cerne da questão; o importante é ter o agente o controle subjetivo

do fato e atuar no exercício desse controle (ENRIQUE CURY Apud FRAGOSO, 2004,

p. 313). O autor se diferencia do mero partícipe pelo domínio do acontecimento, que

não estará nas mãos deste, embora colabore dolosamente para a realização da ação.

9 A teoria do domínio do fato é acolhida por Roxin, Wessels, Stratenwerth e Jescheck; e ainda, fora da Alemanha, por Ordeig (Espanha), Bacigalupo (Argentina), Latagliata (Itália) e Yañez-Perez (Chile). (Apud BATISTA, 2004, p. 70).

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Ao permitir soluções a uma enorme possibilidade de problemas, a teoria do

domínio final do fato parece ser a mais adequada dentro do sistema jurídico-penal à

investigação do agente provocador, que se assemelha ao partícipe, não detendo o

domínio do fato. A participação é definida, no dizer de João Mestieri, como “a

contribuição ao fato típico dado pelo sujeito concorrente que não tenha o domínio do

fato”. (MESTIERI, 1999, p. 203).

Como o participe não realiza elemento algum de configuração do crime,

entende-se que sua punibilidade não pode deixar de ficar vinculada à punibilidade do

fato do executor, que deve chegar, no mínimo, à tentativa.10 A isso se chama de teoria

da acessoriedade que significa, em síntese, que a punibilidade do partícipe depende da

superveniência do fato do executor.

Embora Bockelman tenha enfatizado, com acerto, que a acessoriedade da

participação é “da natureza das coisas” (Apud BATISTA, 1976, p. 20), Nelson Hungria

dirigiu ácida crítica à idéia da acessoriedade, que tornava absurda a punição de quem se

vale de executor irresponsável ou imune de pena. Isto porque, consoante argumenta o

autor, é impróprio falar-se num executor como mero instrumento passivo, um autômato,

uma longa manus, absolutamente destituído de capacidade cognitiva, como se fosse um

robô. Tal impropriedade seria ainda maior nos casos em que o executor é isento de pena

por mera “conveniência política”; e.g, o filho que subtrai pequena quantia da carteira do

pai. (HUNGRIA, 1978, p. 403).

Não há concurso de agentes caso uma das pessoas aja com dolo e outra com

culpa. Tampouco há participação em crime culposo. No crime culposo a ação típica não

guarda qualquer liame subjetivo com o resultado, sendo ela caracterizada pela violação

do dever objetivo de cuidado. Portanto, será autor (e, não, partícipe) todo aquele que,

desatendendo a tal dever, causa o resultado antijurídico.

É comum dividir-se a participação em duas formas básicas: cumplicidade e

instigação. A cumplicidade constitui auxílio doloso ao autor do fato (facilitação

material). O auxilio pode ser através do fornecimento dos meios de execução; e.g.,

receber o resgate na extorsão ou emprestar o revolver ao autor de homicídio.

10 Hungria diz se tratar de punibilidade “por empréstimo” ou em ricochete. (HUNGRIA, 1978, p. 403)

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Alguns autores falam em cumplicidade psíquica ou espiritual.11 Mas, a nosso

ver, parece assistir razão a Nilo Batista, ao frisar que a cumplicidade tem “evidentes

conotações de assistência material” (BATISTA, 2004, p. 157), ressaltando que, tendo

fixado o termo “auxílio” em oposição à “instigação”, o artigo 13, do CP, pretendeu

considerar como instigação qualquer contribuição de natureza puramente psíquica. Para

reconhecer a cumplicidade, é preciso que o auxílio do partícipe tenha correspondido a

um objetivo favorecimento da ação do autor direto.12

Contudo, para o presente estudo, nossas atenções se voltam para a participação

sob a forma de instigação, que é, por sua vez, espécie de participação moral do agente,

com o objetivo de levá-lo a cometer o crime. Nela inexiste auxílio material,

distinguindo-se assim da cumplicidade. Nas lições de Heleno Fragoso instigar é

“determinar a prática do delito, atuando sobre a vontade do agente”. (FRAGOSO,

2004, p. 318).

Para melhor entendimento, porém, do agente provocador, é preciso uma

referência mais detida à instigação, suas formas de realização e a questão da

causalidade, a fim de que se explique a semelhança com a conduta daquele agente. Por

isso, analisaremos a figura do instigador no próximo capítulo, em conjunto com a do

agente provocador, ao tempo em que buscaremos também as características do crime

provocado.

11 Oriunda da doutrina alemã, essa categoria era admitida por Hungria (“Comentários ao Código Penal”,

p. 412) e Fragoso (Lições de Direito Penal, p. 280). 12 O exemplo mais comum é a entrega de “chave falsa”, que, todavia, não impede a execução porque o

autor direto já detinha a chave verdadeira.

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3. Instigação, provocação e crime provocado

Como vimos no capítulo anterior, uma das formas de participação é através da

instigação (ou indução). Passemos, pois, à análise desta categoria de partícipe,

cotejando-a com a figura do agente provocador, de modo a avaliar, logo em seguida, as

características do crime provocado, e suas respectivas conseqüências penais.

O instigador é aquele que faz nascer a decisão de praticar o crime ou emula uma

vontade já preexistente em pessoa capaz de executá-lo consciente e voluntariamente.

Rodriguez Devesa fala que é o instigador quem faz surgir “os motivos” que determinam

o induzido à comissão do delito. (RODRIGUEZ DEVESA, 1979, p. 753). Assim

também entende João Mestieri, para quem a instigação se caracteriza “por um trabalho

prévio à dinamização do delito, consistindo em levar o autor a adentrar o iter, ou

mesmo em fazer nascer o propósito criminoso naquele que ainda não houvera

manifestado clara inclinação a fazê-lo (induzimento)”. (MESTIERI, 1990, p. 257).

Distingue-se o instigador do autor mediato, que se serve de terceiro não

culpável, agindo como mero instrumento. Porém, Mestieri adverte que, através do

induzimento, pode o instigador se tornar autor intelectual. Isto é, conforme a intensidade

e o grau de influência sobre o instigado, o instigador pode acabar assumindo o domínio

do fato no lugar do executor.13 (MESTIERI, 1999, p. 203) A esse respeito, Zaffaroni

frisa que “si la determinación tiene tal intensidad que el determinado carece del

domínio del hecho (porque no realiza conduta, o porque ésta es atípica o justificada),

solo el determinador será autor.” (ZAFFARONI, 2000, p. 245)

O instigador funda suas raízes na idéia de autor “moral” ou “intelectual” do

crime, que age de três modos: o consilium (instigatio, persuasio, adhortatio), o

mandatum (determinação para o crime) e o jussus (ordem do superior ao inferior, para a

prática do crime). É possível realizar instigação por diversos meios, através de

presentes, promessas, persuasão, mandato, comando e ameaças. Até simples expressões

de desejos podem constituir instigação e não se exclui, inclusive, que se instigue mesmo

por aparente dissuasão. Mas, via de regra, depende a instigação de comportamento

13 Juarez Cirino dos Santos nos adverte que isto não se confunde com o domínio comum do fato, o qual pressupõe, além da decisão comum de realizar o fato, a realização comum da conduta típica. (“Direito Penal”, RJ, 1985, p. 122)

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ativo. Não há instigação por omissão. Nas palavras de Juarez Cirino dos Santos, “a

influência sobre o psiquismo do autor para determinar decisão de realizar fato definido

como crime parece exigir ação, excluindo a possibilidade de omissão de ação.”

(CIRINO DOS SANTOS, 2000, p. 294).

Também se admite cadeia de instigação (instigação à instigação), mas é viável

somente se o instigado, após a primeira instigação, não se haja convertido em

omnimodo facturus, i.e., que não se tenha já resolvido à realização da infração penal.

Pode haver ainda co-instigação (ou instigação conjunta), instigação mediata (pela

utilização de terceiro como instrumento) e instigação colateral independente.

A instigação deve-se dirigir a crime determinado. Não existe instigação genérica

para delinqüir. Nada impede, entretanto, que haja indução “em cadeia”. A exemplo

disto, Rodriguez Devesa cita a transmissão, por diversos escalões, de uma ordem de

execução de atentado terrorista da cúpula de uma organização criminosa até o seu braço

executor. (RODRIGUEZ DEVESA, 1979, p. 753)

O conteúdo subjetivo da instigação é representado por um duplo dolo. O duplo

dolo da indução significa que o indutor deve ter pretendido não apenas a realização da

conduta, mas a consumação do fato. Juarez Cirino dos Santos assim o define:

“imediatamente, dolo relativo à própria ação de engendrar a decisão de fato doloso no

psiquismo do autor; mediatamente, dolo relativo à realização do fato doloso pelo autor.”

(CIRINO DOS SANTOS, cit., p. 295). Como veremos adiante, a ausência do duplo

dolo da indução é com freqüência invocada para excluir a responsabilidade penal do

agente provocador. Hungria afirmava que a instigação deve ser causalmente eficaz. (HUNGRIA,

1995, p. 413). Sobre ser eficaz, entende Damásio de Jesus “ser necessário que a

determinação e a instigação sejam eficazes em relação ao nexo de causalidade”.

(JESUS, 1976, p. 67). Mas Heleno Fragoso frisava não ser indispensável essa

contribuição causal. Com efeito, a eficácia de que tratava Hungria significa que à

instigação deva se seguir a execução, que deve ser ao menos iniciada; caso contrário,

não há participação punível. É este o entendimento prevalente também no exterior.

Rodriguez Devesa afirma que “La inducción há de ser eficaz; es decir, si no va seguida

de ejecución es impune”. (RODRIGUEZ DEVESA, cit., p. 754)

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Com efeito, a causalidade da instigação é um “gênero especial”, pois atua de

modo psíquico. Rodriguez Devesa a chama de “causalidade psíquicamente actuada”.

(RODRIGUEZ DEVESA, cit., p. 753) É a determinação da vontade do instigado (e,

não, a causatividade do resultado) que confere a causalidade da instigação. Nesse

sentido, as palavras de Rodriguez Devesa: “la relación entre inductor e inducido se

verifica a través de la motivación, no mediante uma genuina relación de causalidad”.

(Idem) Com efeito, Nilo Batista diz que “o que se tem por verificar é se os meios

empregados pelo instigador representaram um eficaz processo de convencimento no

sentido de criar (determinar) ou reforçar (instigação propriamente dita) a resolução do

autor direto”. (BATISTA, 2004, p. 183). É, portanto, incorreto situar a instigação como

antecedente causal do resultado.

Em vista das características acima descritas estará excluída a instigação quando

não se estabelecer um “reconhecível canal de comunicação” (Nilo Batista) entre

instigador e instigado. Como dissemos, é imprescindível que a instigação se realize de

modo ativo. Importante é que a mensagem seja efetivamente captada pelo seu

destinatário, ainda que através de gestos, caso não falem o mesmo idioma. Eduardo

Correia, conquanto afirme ser indiferente o modo pelo qual o agente determina outrem à

pratica da infração penal, ressalta que é imprescindível que a vontade do autor decorra

diretamente da instigação do agente provocador (o qual chama de “autor mediato”). De

acordo com o ex-catedrático de Coimbra, é necessário concluir que, sem aquela

determinação, o fato ilícito não teria sido cometido, “só então se podendo afirmar que o

autor mediato causou a realização do facto”.14 (CORREIA, 1968, p. 253).

Também não haverá instigação se o instigado já estiver previamente resolvido à

realização do delito (omnimodo facturus).15 Se a instigação não logra êxito em

determinar a vontade do instigado no sentido da realização do crime (seja porque este

não aceita, seja porque já o resolvera anteriormente), não há participação. Subsistirá,

todavia, acaso o autor não estivesse anteriormente resolvido, funcionando a instigação

como um eficaz estímulo à idéia preexistente de cometer o crime.

14 No mesmo sentido, RODRIGUEZ DEVESA: “no hay inducción si el inducido estaba ya resuelto a

cometer el delito” (Derecho penal español. Parte General. 7ª. Ed. Madrid: José Bielsa, 1979, p. 754) 15 Esta última hipótese é amplamente acolhida na doutrina. Para pesquisa mais aprofundada, ide às citações de Nilo: Hungria, p. 413; Wessels, 127; Jescheck, p. 458; e Stratenwerth, p. 239..

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Instigação não-aceita não é participação. Para Nilo Batista constitui mera

tentativa impunível. (BATISTA, 2004, p. 183) Portanto, nenhuma pena será aplicável

ao instigador se o agente não chegou a iniciar, pelo menos, a execução. Esta é a regra

geral.16 Entretanto, no código penal argentino a instigação foi prevista como crime

autônomo, saindo do âmbito da participação, para configurar um tipo penal. Com

efeito, o artigo 209 do diploma penal argentino pune a tentativa de instigação. Mas, no

dizer de Zaffaroni, para ser típica esta instigação tem que afetar outro bem jurídico,

como por exemplo a tranqüilidade publica.17

Após delimitadas as características do instigador, a investigação deve se voltar à

figura do agente provocador, com a qual guarda inequívoca semelhança. O que se

segue pode ser assim sintetizado: é instigador o agente do Estado que provoca a infração

penal? Se não, quais os critérios para separar uma figura (o instigador) da outra (o

agente provocador)?

Aníbal Bruno entendia que o agente provocador era espécie do gênero

instigador18, com a diferença de que o instigador quer que o crime se cometa, enquanto

que o provocador quer apenas surpreender o instigado no ato, para puni-lo ou obter

alguma vantagem de sua prisão. (BRUNO, 1956, p. 653). Apesar disto, as figuras não

se misturam. Aliás, diríamos que as diferenças são enormes.

Em primeiro lugar, o agente provocador19, ao contrário do instigador, não tem

vontade de consumar o crime. Zaffaroni ressalta que esta é a hipótese “del sujeto que

incita a otro a cometer el hecho con la finalidad de detenerlo y darlo a la justicia,

cuando ya hubiese entrado en la zona de lo punible (tentativa).” (ZAFFARONI, 2000,

p. 764). Além disso, ao contrário do instigador, o provocador deve adotar, previamente,

os cuidados necessários para evitar a consumação. Segundo João Mestieri, ele leva o

16 Entretanto, MAGALHÃES NORONHA não nos deixa esquecer que, por vezes, o “impaciente” legislador se antecipa e não espera que a tentativa se verifique, punindo, em última análise, a intenção, o projeto delituoso, p. ex., a incitação ao crime e a quadrilha (arts. 286 e 288, respectivamente). In “Direito Penal”. Vol. 1. SP: Saraiva, 1981. p. 133. 17 “Si se toma em cuenta que este tipo encabeza el listado de delitos contra la tranquilidad publica, es

claro que la sola instigación a cometer um delito sólo es punible cuando se la realice de alguna forma

que lesione la tranquilidad publica.” (ZAFFARONI, E. Raúl., ALAGIA, Alejandro. SLOKAR, Alejandro. “Derecho penal. Parte General”. Buenos Aires: Sociedade Anônima Editora, 2000. p. 761) 18 Assim é que Schimidhäuser o chama de “instigador aparente” (Apud ZAFFARONI, E. Raúl., ALAGIA, Alejandro. SLOKAR, Alejandro. “Derecho penal. Parte General”. Buenos Aires: Sociedade Anônima Editora, 2000. p. 764) 19 Agente provocatore (Itália), Agent provocateur (França), Lockspitzel (Alemanha) e Provoking agent (EUA).

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autor à prática do delito, não sem antes tomar todas as providências para que o bem

jurídico visado não sofra de nenhum modo. (MESTIERI, 1999, p. 223). Ou seja, tanto

subjetiva como objetivamente a ação do provocador é distinta da conduta do instigador.

Outra diferença é que o provocador age com conduta independente à do sujeito

provocado, o que não ocorre no caso do instigador. Este, por ser partícipe, tem conduta

acessória, que depende objetivamente da ação do instigado. Por tal razão, os requisitos

do concurso de pessoas não se encontram preenchidos na hipótese do agente

provocador. Noutras palavras: não há concurso de agentes no crime provocado. Para

que haja concurso de agentes, João Mestieri elenca os seguintes requisitos: a pluralidade

de partícipes e condutas; a relevância causal de cada conduta; a presença de um liame

subjetivo entre os agentes (i.e., todos devem ter consciência e vontade de cooperar na

empresa comum); e a realização do mesmo tipo penal por todos os partícipes.20

No caso do agente provocador seria possível até reconhecer a pluralidade de

ações e a relevância no nexo causal. Entretanto, parece intransponível a questão do

liame subjetivo entre as condutas, eis que, por definição, o provocador não quer o

resultado, mas apenas a prisão. Logo, como afirmar a existência de acordo comum

entre a ação provocativa e a conduta dela resultante se esta, ao revés, se orienta para o

resultado? Como vimos, não há razão para confundi-lo com o mero instigador. Aliás, a

inaplicabilidade do agente provocador às hipóteses de concurso de agentes já foi

esposada pela doutrina. Veja-se que René Ariel Dotti frisa que o agente provocador não

é reconhecido como partícipe para os efeitos do art. 29, do CP. (DOTTI, 2004, p. 257)

Distinguidas as figuras do instigador e do agente provocador, passemos à busca

de um conceito de agente provocador e de crime provocado. Não é comum que os

códigos penais conceituem o crime provocado, exceção feita ao Código penal

uruguaio.21 Por ausência de previsão legal, a definição desta figura jurídico-penal (bem

como dos limites de intervenção do agente provocador) costuma ser objeto de

construção doutrinária e jurisprudencial.

É comum encontrar referências à origem da figura do agente provocador na

França do Ancien Régime, onde os delatores imiscuíam-se na vida dos inimigos do

20 Para José Anton Oneca, “La codelincuencia es la unidad de delito com pluralidad de sujetos

delincuentes.” In “Derecho penal”. Madrid: Academia Editorial Réus, 1930. p. 48 21 Cf. artigo 8.º: “Não se castiga o fato juridicamente lícito, cometido com a convicção de ser delituoso, nem o fato delituoso provocado por autoridade para obter a sua repressão.” (Cód. Penal do Uruguai)

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poder político, exercendo a delatio em troca de favores do príncipe. Entretanto, seria

um erro considerar ali o surgimento desta espécie de “serviço público”, limitando-o no

tempo e no espaço. Nas palavras de Dell´Andro “é de todos os tempos e todos os

lugares a existência de indivíduos que, pelos fins mais diversos, instigam outros ao

crime para que se verifique a punição do instigado”. (DELL´ANDRO Apud SOUSA,

2003, p. 1223) Certo é, contudo, que durante os regimes autoritários a polícia secreta e

os delatores aumentam de número. Talvez por isso, José Maria Rodriguez Devesa nos

informa que, apesar de ser encontrado no Direito Romano, é de fato durante o período

absolutista de Luís XIV que o agente provocador se institucionaliza com caráter

político. (RODRIGUEZ DEVESA, 1979, p. 755). Califano frisa que se criou na França

uma “policía secreta de delatores”, organizada e disciplinada pelo Marques de

D´Angenson, cujos membros tratavam de contrair relações amistosas com políticos

suspeitos para denunciá-los ao soberano e, noutros casos, instigavam os sujeitos a

cometer atentados ou outros delitos políticos para cobrar do Estado prêmio pela

denunciação. Chamavam-se mouchards ou mouches (“mosca”) esses inspetores da

polícia francesa. (CALIFANO Apud RODRIGUEZ DEVESA, cit., p. 755) A palavra

“mosca” compreendia uma série de significados associados a esta espécie de

funcionário do rei, cujo ofício exigia doses elevadas de dissimulação e propensão à

traição. Tal como as moscas, os vassalos-delatores eram atraídos pelo mau cheiro. No

caso delas, no sentido literal; no caso deles, na direção dos possíveis insurgentes.

O tratamento do agente provocador enquanto figura enquadrada na dogmática

jurídica, afastada do caráter político que marcou o seu nascimento (embora não se possa

dizer, nos dias de hoje, que sua atuação não esteja ainda marcantemente condicionada

pelos interesses dos detentores do poder), surge na Alemanha, a partir do trabalho de

Glaser, em 1858, sobre o dolo do instigador, ao qual se seguem as primeiras

monografias dedicadas ao Lockspitzel (em português, “espia que atrai”).

Segundo Alves Meireis, a noção de agente provocador foi-se construindo ao

longo de duas fases. (MEIREIS Apud SOUSA, 2003, p. 1224) Uma fase monista ou

dogmática, que se prolonga até meados dos anos 70 do século XX, que nos apresenta

uma noção unitária de agente provocador, tanto para a doutrina como para a

jurisprudência, vista como uma figura da parte geral. Do agente provocador como

“instigador que determina outrem à prática de um crime apenas porque quer que seja

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este acusado e punido”, podendo ser qualquer pessoa, evolui-se para a figura alemã do

Lockspitzel, que qualitativamente se distingue do agent provocateur por se reconduzir

preferencialmente ao funcionário público.

Numa segunda fase, pluralista, novas figuras jurídicas emergem da prática

criminológica e jurisprudencial. É o caso das testemunhas de coroa (Kronzeugen) e,

sobretudo, do V. Mann (Vertrauen Mann, “homem de confiança”), cuja fórmula saída

da jurisprudência alemã nos anos 80 se define como “a pessoa que por diversos

motivos, seja para esclarecer o crime, ou para denunciar os agentes, seja útil ao

impedimento e esclarecimento do crime e cuja identidade seja mantida secreta à

disposição das entidades de instrução em cuja dependência tal pessoa opera”.22

O homem de confiança tornava-se presente, quer na doutrina quer na

jurisprudência, provocando uma série de problemas, seja do ponto de vista do direito

penal substantivo seja na perspectiva do direito processual penal, sobretudo nas formas

mais expostas de Lockspitzel. O que hoje se entende no Brasil por agente provocador

mais se aproxima da figura francesa do agent provocateur, que não demanda especial

qualificação pessoal, mas tem no interesse de punir e na proteção antecipada do bem

sob ameaça suas características fundamentais.

A noção de delito provocado começou a ser forjada em resposta a uma situação

concreta, no intento de dar uma solução homogênea a determinados casos. É, portanto,

na realidade criminal que o agente provocador (e a idéia de delito provocado) fundam

suas raízes. Isto talvez explique porque ainda não existe um conceito claramente

explicitado, senão, pelo contrário, uma variedade que responde tanto ao seu

enquadramento sistemático, como às diversas hipóteses em que este se apresenta na

prática.

Para Juan Muñoz Sánchez, a diversidade de exposições dá lugar a duas

tendências majoritárias. A primeira delas, orientada a estender ou, ao menos, não

limitar a noção de agente provocador, põe em voga a finalidade da conduta realizada.

(SANCHEZ, 1995, p. 35). Para esta corrente, o que caracteriza o agente provocador é

que sua conduta tenha por fim que o provocado seja castigado pelo fato. Segundo ele, é

este o conceito dominante na ciência penal italiana, cuja escola clássica define o agente

22 Bundesgerichsthof – Grosser Senat für Strafsachen: BGH, 17-10-1983, BGHSt, n.º 32, 1983, p. 121,

(Apud SOUSA, 2003. p. 26)

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provocador como o indutor que determina a outro cometer um delito sem que tenha

interesse no delito em si, pois este é apenas o meio através do qual o provocador pode

conseguir seu propósito: a punição do provocado.23

Assim é que Muñoz Sanches nos apresenta a concepção, dita clássica, de agente

provocador, que adotaremos ao longo do presente trabalho. Três são os requisitos

fundamentais: (i) a conduta provocadora tem como fim imediato que o sujeito

provocado seja castigado precisamente por causa do fato provocado; (ii) o agente

provocador não tem vontade de consumação do delito; e (iii) esta ausência de vontade

se manifesta externamente mediante a tomada das medidas necessárias para neutralizar

a ação do sujeito provocado. Ausente qualquer desses requisitos, o agente não estará

enquadrado na categoria jurídica de agente provocador.

Os dois primeiros requisitos dizem respeito aos aspectos subjetivos da ação

provocadora (um positivo e outro negativo): o agente quer que o sujeito seja castigado

pelo fato provocado; ao mesmo tempo, não quer a consumação do delito (o que, adiante,

será refinado para um não-querer a lesão do bem jurídico). O último requisito diz

respeito ao aspecto objetivo: o agente provocador deve adotar as medidas de cautela

para salvaguardar o bem jurídico de eventual lesão ou perigo de lesão. Analisemos,

pois, cada um deles.

O primeiro requisito diz respeito à vontade de punição do sujeito provocado em

razão do crime provocado. René Ariel Dotti diz que o agente provocador “induz outrem

à prática do crime, não para obter qualquer vantagem ou proveito ilícitos, mas para

responsabilizar criminalmente o seu autor”. (DOTTI, 2004, p. 357) Eduardo Correia

definia o agent provocateur como “aquele que provoca outrem a executar uma

actividade criminosa, não porque a queira, mas só porque pretende arrastar aquele que

determina para a punição”. (CORREIA, 1968, p. 253) Citado por Nilo Batista, Enrico

23 No mesmo sentido, cf. citações de Juan Muñoz Sanches: MANZINI, Trattado di Diritto penale

italiano, vol. II. 5. edicion, UTET, Torino, 1981-84, p. 568-572, n.º 453; ANTOLISEI, Manuale de diritto

penale. Parte generale. Ristampa della décima edizione aggionarta e integrata a cura di Luigi Conti,

Giuffre Editore, Milano, 1987, p. 484; MANTOVANI, Diritto penale. PG., p. 508; FIANDACA-

MUSCO, Diritto penale. Parte Generale. 1a. ed., Zanichelli, Bologna, 1990, p. 226; NEPPI MODONA, Il

reato impossibile, Giuffre Editore, Milano, 1965, p. 223; NUVOLONE. Il sistema Del diritto penale, 2ª.

Ed., CEDAM, 1982, p. 420; MALINVERNI, Agente provocatore, in novíssimo digesto italiano, vol I,

UTET, 1957, p. 397; DELL´ANDRO, Agente provocatore, in Enciclopédia di Diritto, vol. I, 1958, p. 864.

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29

Califano conceitua o agente provocador “colui che induce taluno a commettere um

reato per um fine che non comprende l´interesse in vista del quale il reato viene

commesso, fine che di regola si concretizza nel denunziare il soggeto indotto

all´autorità”. (CALIFANO Apud BATISTA, 2004, p. 185).

Para Zaffaroni, se o fim perseguido não é o de impedir um crime em iminência

ou descobrir um delito, o agente provocador incorre, inquestionavelmente, no injusto

penal. (ZAFFARONI, 2000, p. 765). A experiência demonstra que, muitas vezes, a

Polícia se vale do agente provocador para prender em flagrante pessoa suspeita de delito

anterior. Neste sentido, Magalhães Noronha adverte, com propriedade, que o crime é

provocado “geralmente quando a Autoridade, não tendo provas contra algum ladrão,

mas sabendo que ele é o autor de vários crimes, provoca-o a cometer um, com o fito de

prendê-lo”. (NORONHA, 1981, p. 121). No entanto, o uso da ação provocadora para

efetuar prisões é objeto de críticas por constituir meio antiético de exercício do ius

puniendi.

Invocando os princípios morais e éticos inerentes à Administração pública,

Carrara considerava discutível a responsabilidade do instigador do crime que age por

ordem do Governo, ou seja, sendo agente do Estado: “Unicamente considero discutible

hasta qué punto puede ser responsable el agente provocador cuando um gobierno

inicuo, desmoralizador e desmoralizado, hace de él un instrumento para sus fines

políticos”. (CARRARA, 1973, p. 385) A eticidade da conduta do agente provocador e a

validade ou não das provas por ele colhidas serão objeto de análise mais adiante. Por

ora, importa fixar o critério da prisão imediata do sujeito provocado como única e

exclusiva finalidade da ação do agente policial.

O segundo requisito trata da falta de dolo de consumação, ou melhor, da falta de

consciência e vontade livre dirigida à lesão do bem jurídico por parte do agente. Carrara

examinava a hipótese do instigador ter interesse não na consumação do crime, mas de

que dele resultasse prejuízo ao instigado. Consoante argumentava o autor, o agente era

impingido à provocação por dois impulsos: o de receber uma recompensa do Governo

ao fazer surpreender em flagrante o instigado; ou o interesse de fazer recair uma pena

sobre o instigado para administrar seus bens, para lucrar sua herança ou desfrutar de sua

mulher. (CARRARA, cit., p. 385) Para nossa linha de pesquisa, todavia, adotaremos o

critério exclusivo do não-interesse de consumação. Se a intenção é outra que não a

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30

simples prisão, o agente não é considerado provocador, podendo ser punido como

partícipe por instigação. Salama o define como “el que instiga outro al delito mediante

el despliegue de uma actividad provocadora, sea de naturaleza psíquica o material, no

por el interés representado por el delito mismo, sino por el interés constante de

conseguir el castigo del provocado”. (Apud DEVESA, 1979, p. 755)

Do conceito de Salama, extrai-se que, ao contrário dos membros da “polícia de

delatores” na França absolutista (que almejavam recompensas materiais ou favores do

rei), o fim pretendido pelo agente provocador não pode ser outro que não a punição do

provocado. O conteúdo subjetivo da conduta do provocador suscita diversas questões

quanto à sua eventual responsabilidade penal, que serão abordadas em capítulo adiante.

Por ora, registremos a noção de que o agente provocador não quer a consumação do

fato, mas apenas que se inicie a execução, de modo a possibilitar a detenção do sujeito

provocado.

O terceiro requisito essencial à classificação do agente como provocador é o de

que ele adote todas as medidas cabíveis para a salvaguarda do bem jurídico. Isto não

significa que, na prática, o bem não será afetado. Caso contrário, à luz da melhor

doutrina nacional (BATISTA, 2004, p. 71), o que importa verificar é se o agente

provocador adotou providências prévias que garantam (ou pretendam garantir) a

segurança do bem jurídico. Uma eventual lesão do bem poderia ensejar a punição do

agente que tiver obrado culposamente.

Visto o conceito de agente provocador, segue-se que o crime provocado será o

delito por este induzido ou determinado com vistas à prisão do sujeito. Esta figura de

delito não se confunde, por óbvio, com a provocação da vítima ou a hipótese do duelo

que suscita questões no âmbito da legítima defesa. Trata-se, como se disse, de crime

instigado por agente do Estado ou particular que atenda a todos os requisitos supra

descritos. A provocação pode ser realizada por (ou dirigida a) qualquer pessoa. Não é

necessário que seja policial ou, mesmo, agente do Estado.24 De igual modo, tampouco

se deve circunscrever o delito provocado a determinadas infrações penais, porquanto,

24 É o que se extrai à unanimidade da jurisprudência e da doutrina, tanto no Brasil como no exterior. Por todos, Luis Felipe Ruiz Antón: “es indiferente la condición personal que ostente tanto uno como outro.

No solamente puede asumir el papel de agente provocador el miembro de la policía que trata de

cerciorarse de las sopechadas proclividades criminales de um sujeto, sino cualquier outra persona. Y lo

mismo hay que decir com respecto al provocado: no existe limitación personal alguna”. (RUIZ ANTON, 1982, p. 123)

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em princípio, qualquer fato delitivo se presta a ser objeto de uma provocação (delitos

contra a propriedade, contra a fé pública, contra a saúde coletiva, etc).

Passemos, a seguir, a análise das conseqüências jurídicas da ação do agente

provocador, iniciando-nos pela avaliação das responsabilidades do sujeito provocado.

Em seguida, abordaremos a responsabilidade do próprio agente provocador, tema que é

objeto de tímido debate doutrinário no Brasil.

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4. A responsabilidade penal do sujeito provocado

Estabelecidos os limites do conceito de agente provocador e o que seja delito

provocado, passemos à avaliação da responsabilidade do sujeito provocado na hipótese

do fato delituoso ter sido induzido pelo agente provocador. Tradicionalmente, doutrina

e jurisprudência têm rechaçado a punibilidade da conduta do sujeito provocado, seja por

não oferecer perigo ao bem jurídico ou simplesmente por considerar inexistente

qualquer infração penal. Trata-se de posição garantista e protetora do cidadão contra o

arbítrio estatal.

Porém, temos acompanhado com preocupação o surgimento de certa construção

doutrinária, que vem relativizando, perigosamente, a garantia do cidadão contra o

induzimento em crimes considerados de especial gravidade, prevendo punição para o

sujeito que agiu mesmo sem vontade livre. Uma tal modificação presta serviços a um

Estado cada vez mais policialesco, cujo verdadeiro propósito, escamoteado sob

pretensas buscas por novos meios de repressão penal, é estabelecer meios mais eficazes

de controle social. Com efeito, nos últimos tempos, tem sido admitida em alguns países

a punição do sujeito provocado nos crimes praticados por organizações criminosas,

como será demonstrado ao final do capítulo. Por ora, vejamos o entendimento

prevalente em nosso país.

Na doutrina brasileira prevalece a idéia de que o fato provocado dá ensejo a um

delito putativo (ou crime de ensaio, como dizia Nelson Hungria), que importa na não-

punibilidade do sujeito provocado.25 Há crime putativo quando o agente supõe, por

erro, estar praticando infração penal, sendo, no entanto, sua conduta penalmente

irrelevante. Aníbal Bruno afirma que no caso do agente provocador não há crime em

perspectiva, pois o que se faz é apenas ensaiar fato pretensamente delituoso, mas que

não pode sê-lo por causa da adoção prévia das “medidas necessárias para que ela [a

consumação] não ocorresse”.26 (BRUNO, 1956, p. 653) Para João Mestieri, o delito

provocado não passa de um “lance teatral”. (MESTIERI, 1999, p. 223) Levando-se em

25 e.g., FRAGOSO, 2004, p. 308; e DOTTI, 2004, p.. 370.

26 O autor diz que o delito provocado não passa de “simulacro de fato criminoso”.

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33

conta que o bem jurídico é protegido todo o tempo, não sofrendo sequer em sua

segurança, não resta margem à consumação do delito.

Nos países da Commom Law, sobretudo nos Estados Unidos da América,

encontrou ressonância a doctrine of entrapment. O que está por trás dela é a idéia de

que o ser humano não pode sofrer violação em sua vontade e livre determinação

pessoal. Tal doutrina se ocupa de determinar em que circunstâncias e sob que aspectos

o sujeito provocado deve ficar isento de punição ao haver atuado por instância de um

membro da força pública. Não é aceita a punição do sujeito provocado por grave

ofensa à livre determinação pessoal. Sob esta ótica, a jurisprudência norte-americana

somente considera lícita a intervenção do agente provocador quando o sujeito

provocado já estava de antemão resolvido a levar a cabo o delito. Se este limite é

ultrapassado, e a provocação faz nascer a decisão criminal, sem a qual não teria surgido

o fato delituoso, cabe a possibilidade da pessoa incitada suscitar a ilegalidade da atuação

policial.27

Na doutrina italiana também encontramos este mesmo entendimento. Para

Manzini, a conduta não passaria de uma ficção, irreal, aparente ou putativa, sendo o

risco totalmente neutralizado. O célebre autor italiano considera que naqueles casos em

que há uma predisposição da força pública presente no local do crime e pronta a evitar a

sua consumação, a atividade provocadora dirige-se ao incitamento de um crime putativo

por haver absoluta impossibilidade de consumação.28

Á solução do crime de ensaio logo se opôs a questão do dolo do sujeito. Isto

porque, mesmo que tenha sido determinada pelo agente provocador, a ação, por si só,

denota uma intenção imoral e criminosa. Em busca do resultado, o sujeito pode até agir

com dolo intensíssimo, revelando sentimento de alta censurabilidade social. Tais

objeções, todavia, não alteram o caráter irrelevante de sua conduta para o direito penal,

que não está posto a tutelar a ordem moral. Interessante observação fez Luzón

Domingo sobre os aspectos morais da ação do provocado: “a efectos jurídico-penales,

la conducta del individuo, que intenta el delito provocado es absolutamente irrelevante,

27 Para uma análise mais aprofundada da doutrina do entrapment, vide Luis Felipe Ruiz Antón. “El delito

provocado, construcción conceptual de la Jurisprudencia del Tribunal Supremo”, In Anuario de Derecho Penal y Ciências Penales. Tomo XXXV. Fascículo I. enero-abril de 1982. p. 120. 28 “Tratado di Diritto penale italiano”, Vol. II, p. 323. MARSICO também afirma que os casos de agente provocador não passam de “uma aparencia de uma conduta criminal, por falta de corpus, de

substancia concreta de realidad”. (Il reato apparente e l´apparenza nella teoria del reato, en Studi Arturo Rocco, vol. I, 1952, p. 335)

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porque aunque en ella pueda descubrirse un principio de ilicitud moral, ni el orden

jurídico se puede confundir con el orden moral, ni la voluntad que exteriorizó el sujeto

era voluntad de auténtica conducta delictiva, sino de uma conducta ilusoriamente

delictiva, porque ni aun con un cambio de médios, ni sustituyendo el objeto, etc., su

conducta podia ser constitutiva de delito.” (Apud RUIZ ANTON, 1982, p. 127). No

caso, ultrapassando a questão moral, estaríamos diante de hipótese de inexistência de

crime. A ação seria simplesmente inexistente para fins de direito penal. Sendo crime

inexistente, não caberia indagar, em tese, se a ação provocada é idônea ou não a lesar o

bem jurídico.

Ocorre que a solução processual adotada no Brasil se vale de um instituto

jurídico cuja aplicação depende da constatação da inidoneidade da conduta: o crime

impossível. Com efeito, a solução adotada pela Jurisprudência nos casos de ação

provocada se baseia no artigo 17 do Código Penal29, que estabelece a não-punibilidade

da tentativa absolutamente inidônea. Naquele artigo se assentam as raízes do crime

impossível. O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, transladou a idéia do crime

impossível para os chamados flagrantes preparados, consolidando esse entendimento na

Súmula 145, aprovada em 06.12.1963, nos seguintes termos: “não há crime quando a

preparação do flagrante pela Polícia torna impossível a consumação do delito”.30 Desde

então, restou pacificada a jurisprudência nesta matéria.

Porém, os nossos tribunais têm firmado entendimento no sentido de que os fatos

anteriores (não provocados) podem ser punidos; e.g, a posse de substância entorpecente,

o que representa um desvio inaceitável da proibição estatuída na súmula.31 Nesses

casos, a venda permaneceria impunível, por constituir crime provocado, mas o fato

ainda seria punível em razão da posse ou guarda ilegal de substância entorpecente, pois

29 “Art. 17 - Não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime.” 30 Sobre a súmula 145, do STF, vide o voto magistral proferido no julgamento do HC 40.899, pelo Min. Victor Nunes Leal. 31 Por exemplo: “PENAL. PROCESSUAL. TÓXICOS. FLAGRANTE PREPARADO. SÚMULA 145/STF. INAPLICABILIDADE. 1. Inegável a presença do chamado agente provocador, vez que os policiais simularam a posição de compradores para induzir o recorrido à operação de venda de cocaína. 2. Operação de venda artificialmente preparada, incapaz, portanto, de fundamentar decreto condenatório fundado na Lei n° 6.368/76. 3. Inaplicável a Súmula 145 do STF, uma vez que, inobstante incidente sobre a venda de cocaína, não incidiu sobre anterior aquisição e posse para consumo, modalidade que precedeu a ação dos agentes provocadores. 4. Recurso não conhecido.” (STJ, 5ª. T., Min. Edson Vidigal, RESP 146.667, j. em 17.11.98, DJ 15.03.99., p. 266)

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estas condutas também estão proibidas pelo artigo 12 da Lei 6.368, de 21 de outubro de

1976. Analisaremos, a seguir, as implicações destas soluções jurisprudenciais.

De início, registre-se que o crime impossível é uma ação voltada subjetivamente

para a realização do tipo, mas que não alcança o resultado por absoluta impossibilidade

material. Essa impossibilidade material de consumar o crime importa naquilo que a

doutrina denomina tentativa absolutamente inidônea, que é divisada pelo código em

duas modalidades: a inidoneidade absoluta do meio e a impropriedade absoluta do

objeto.

E quando será absolutamente inidônea a tentativa? Segundo a doutrina mais

abalizada, é absoluta quando os meios são por sua natureza incapazes para alcançar o

resultado ou quando o objeto não existe em absoluto. (CURY, 1973, p. 243) É o caso,

por exemplo, de se pretender matar uma pessoa dando-lhe água com açúcar (meio

absolutamente inidôneo) ou praticar aborto em mulher que não está grávida (objeto

absolutamente inexistente ou impróprio). José Anton Oneca diz tratar-se de tentativa

absolutamente inidônea quando for nulo o risco ao bem jurídico em razão das cautelas

adotadas pela Polícia. (ONECA, 1930, p. 25)

O fato provocado é avaliado sob a perspectiva das medidas adotadas pelo agente

provocador para evitar a lesão ou perigo de lesão do bem jurídico, que dão ensejo a uma

tentativa absolutamente inidônea. Como a jurisprudência olha o fato provocado sob a

ótica do crime impossível, fica impunível não apenas o sujeito provocado, como

também o sujeito provocado. É o que destaca Zaffaroni: “tambien se há afirmado que

el instigador no es punible cuando la tentativa es inidônea, siempre que tampoco sea

punible el autor(...).”(ZAFFARONI, 2000, p. 765) Em suma, ninguém é punido se for

impossível a consumação em razão da predisposição da força policial.

Mas, e se esta impossibilidade for apenas relativa? É freqüente a distinção entre

a tentativa absolutamente inidônea e a tentativa relativamente inidônea, mantendo-se a

punição desta. Diz-se relativamente inidônea a tentativa quando é relativamente eficaz,

por exemplo, o meio que, sendo normalmente apto para o resultado, falha no caso

concreto.32 É o que acontece com armas que negam fogo.33 Mantém-se a tentativa

32 Enrique Cury nos dá dois exemplos interessantes de tentativa relativamente inidônea: intentar envenenar um gigante com uma dose que seria letal para um homem comum (meio relativamente inidôneo); ou disparar arma de fogo sobre cama onde a vítima não repousava naquele momento, pois havia dela se levantado por alguns instantes (objeto relativamente inidôneo). (CURY, 1973, p. 243)

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36

punível também se o objeto é apenas relativamente impróprio, i.e., quando o bem

jurídico existe, mas por circunstância fortuita não é lesionado.34

Uma pequena parcela dos doutrinadores sustenta a tentativa punível ainda que a

Polícia tenha pré-estabelecido os meios para evitar lesão ao bem jurídico. É que, não

obstante a predisposição da força policial, não há como garantir, de forma inequívoca, a

salvaguarda do bem jurídico. Alberto Silva Franco filia-se entre aqueles que sustentam

que “o aprestamento da Polícia não impediria, de forma absoluta, a concretização do

delito, que poderia vir a ocorrer apesar de toda a vigilância policial”.35 (SILVA

FRANCO, 1986, p. 90). Magalhães Noronha é um dos que se opõe à idéia do crime de

ensaio, excluindo aprioristicamente qualquer responsabilidade dos partícipes do delito

provocado, mesmo em casos de lesão ao bem jurídico. Se a impropriedade do objeto

não é absoluta, o autor entende que o crime provocado dá ensejo a punição: “Hungria

acha inidôneo o conatus. Assim não pensamos. O caso comporta a mesma solução que a

do delito de flagrante predisposto, anteriormente aludido. (...) Desde que não haja

ineficácia absoluta de meio, ou impropriedade total de objeto, o crime não é impossível.

Os que sustentam opinião diversa deveriam explicar qual a solução que dariam se, não

obstante todas as providências tomadas, o executor lograsse a consumação, o que

certamente não seria sobrenatural.” (NORONHA, 1981, pp. 142-143)

Retornando à idéia da tentativa absolutamente inidônea, boa parte da doutrina (e

também o STF) entende que, para além da predisposição da força policial, deve ocorrer

também o induzimento (ou a provocação) pelo agente policial. Caso contrário, não será

considerado preparado o flagrante. Assim asseverava Heleno Cláudio Fragoso, para

quem “a preparação do flagrante, como excludente do crime não prescinde do

induzimento ou provocação pela autoridade, ou com seu concurso”. (FRAGOSO,

1968, p. 09) De igual modo, os ministros do STF entenderam estar implícita na Súmula

145 a exigência do induzimento para caracterizar flagrante preparado36.

33 Na expressão (deliciosamente sarcástica) de Magalhães Noronha. In “Direito Penal”. Vol. 1. SP: Saraiva, 1981. p. 141. 34 Os exemplos mais comuns são: alguém desfecha um tiro, mas a bala atinge o relógio de bolso da vítima; ou o pungista que mete a mão no bolso direito da vítima para roubar-lhe a carteira, que, entretanto, se encontra no esquerdo. 35 No mesmo sentido, Magalhães Noronha: “a idoneidade não se desfigura pela vigilância policial, porque esta não é elemento que torne absolutamente inidôneo o meio usado”. (Direito Penal, 2a. ed., v. 1. São Paulo: Saraiva, 1963. p. 165) 36 “A hipótese de que trata o verbete 145 da súmula pressupõe a provocação ou o induzimento de autoridade, seja esse fato concretizado por ela de maneira direta, quer se concretize mediante seu

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Mas parece importante questionar: será mesmo indispensável que o fato seja

provocado pelo agente? Miguel Reale Junior é uma voz discordante. Segundo o ex-

Ministro da Justiça, não é necessário o induzimento para que o crime seja impossível.

Basta que a predisposição da força policial tenha tornado impossível, no caso concreto,

a consumação do crime. Logo, a predisposição “ex ante” (e, não, o induzimento) é que

torna impossível o crime. Para o autor paulista, “não há tentativa quando a

impossibilidade do resultado, de acordo com a situação da ação, antecede ao início da

execução. Assim, na hipótese do flagrante preparado, isto é, da predisposição policial,

pode inocorrer a tentativa se antes do começo da execução a polícia aciona seu sistema

repressivo de modo a tornar os atos executórios apenas a prova de um delito que deveria

realizar-se”. (REALE, JR, 1979, 142). Estamos de acordo com o autor, como

desenvolveremos mais adiante.

Porém, os tribunais dizem o contrário. Se o agente se limitar a esperar a ação do

agente, sem nela intervir, entende-se que o flagrante foi apenas esperado. É o caso,

então, de indagar: e se a Polícia adotar medidas prévias que excluam, absolutamente, o

risco de agravação do bem jurídico, qual seria a solução? Os tribunais dizem que a

prisão é válida.37 João Mestieri adverte que não se pode confundir o crime de ensaio

(que enseja o flagrante preparado ou armado) com a situação em que a Polícia apenas

aproveita o conhecimento que tem de uma infração penal para comparecer ao local e

efetuar a prisão. O fato permaneceria punível, pois o flagrante foi apenas esperado, e

não forjado pela Autoridade Pública.38 (MESTIERI, 1999, p. 224) Nos dizeres da

doutrina e jurisprudência pátria, como dissemos, remanesce a tentativa idônea. Se a

prisão interrompe o iter criminis, os atos executórios já praticados permanecem

puníveis. Entendemos que esta solução está eivada de incoerências de ordem jurídica e

lógica. A questão nos remete à discussão do fundamento da não-punibilidade do crime

concurso. A provocação ou o induzimento é necessário à configuração do crime putativo no caso”. (STF, Pleno, Min. Antonio Neder, RESP 55.361, j. em 17.06.77, DJ 12.08.77). 37 “não há flagrante preparado quando a ação policial aguarda o momento da pratica delituosa, valendo-se de investigação anterior, para se efetivar, sem a utilização de agente provocador.” (STJ, 6ª. T., Min. Dias Trindade, RESP 1215, j. em 13.02.90, DJ 12.03.90, p. 1711) 38 Mestieri traz dois exemplos: o primeiro, de crime de ensaio, quando o policial se faz passar por traficante de drogas e vende entorpecentes a terceiros. Estes não cometem crime algum. O outro, de tentativa idônea, quando o policial, tendo notícia de que um traficante está vendendo drogas num determinado ponto da cidade, vai até lá e o prende em flagrante.

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impossível, que está ligada ao princípio da ofensividade (nulla lex sine iniuria).39

Primeiramente, registre-se que é da noção de proteção de bens jurídicos que se extraem

limites para o ius puniendi, isto é, para o direito de editar leis penais que a Constituição

Federal confere ao Estado.

O ordenamento jurídico quer impedir a execução de ações que impliquem num

atentado contra valores, cuja subsistência é condição indispensável à conservação da

organização social. Estes valores existem independentemente do reconhecimento que

lhes presta a norma; são anteriores a ela. (CURY, 1973, p. 49). A vida humana, a

integridade corporal do indivíduo, a fé pública a honra, etc, valem mesmo que o

ordenamento jurídico os ignore e mesmo quando este não exista; e.g., nas tribos

indígenas. Porém, ante a inequívoca importância destes valores, a lei assume a tarefa de

sua proteção, elevando-os à condição de bens jurídicos. Portanto, na precisa definição

de Enrique Cury, bem jurídico “es aquel valor intrínseco a la vida de relación, al que el

ordenamiento jurídico reconoce y otorga protección.” (CURY, 1973, idem). O

problema está em determinar quais são os bens jurídicos merecedores de tutela penal?

Com a simplicidade característica dos grandes pensadores, Enrique Cury responde

numa só palavra: prudência. Não adianta incriminar condutas que não tenham relevante

valor social, diz o autor chileno. A prodigalidade legislativa conduz à criação de tipos

grotescos, ou penas grotescas, que só desvalorizam a instituição penal, deteriorando o

instrumento mais poderoso do ordenamento jurídico:

Cuando un legislador desaprensivo tipifica conductas que atentan contra

bienes poço valiosos, y les asigna penas exageradas (por ejemplo, multas

cuantiosas o privaciones de libertad considerables para los infractores de la

señalización en el tráfico) provoca la corrupción de los órganos policiales,

la repugnância de la opinión pública y la degradación del sentir jurídico en

la magistratura, porque los juecen prefieren – a menos que sean malos

jueces – interpretar la ley torcidamente y salvar así la justicia. (CURY,

1973, ps. 49-50).

A norma ilegítima conduz a uma perda de autoridade. Tércio Sampaio Ferraz Jr.

nos adverte que o comportamento do editor normativo exige “adesão convicta, o que

39 Sobre o princípio da ofensividade como limite do ius puniendi, v. Luiz Flavio Gomes, in “O princípio da ofensividade no direito penal”. SP: RT, 2002.

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exclui meios externos de coação, bem como procedimentos persuasórios, pois, como

observa Hanna Arendt, onde se utiliza a força, a autoridade fracassou, e onde se

utilizam argumentos persuasórios, a autoridade está suspensa.” (SAMPAIO FERRAZ,

1978, p. 46) Bacigalupo, entretanto, nos recorda que as limitações do ius puniendi “não

surgem da redução do conceito de delito à proteção de bens jurídicos(...), senão dos

valores superiores do ordenamento jurídico.” (BACIGALUPO, 1999, p. 35). Por

valores superiores do ordenamento jurídico o autor entende a dignidade da pessoa, os

direitos individuais invioláveis que lhe são inerentes e o livre desenvolvimento da

personalidade.

Voltando à questão do fundamento da não-punibilidade do crime impossível,

concluímos que, se o critério para não punir é a situação de proteção absoluta do bem

jurídico (em face da ineficiência do meio ou da impropriedade do objeto), toda e

qualquer conduta inócua para o bem jurídico será sempre impunível. Inspirado no

princípio da ofensividade (nulla lex sine iniuria), Luigi Ferrajoli sustenta que a

necessidade das leis penais fica condicionada pela lesividade a terceiros dos fatos

proibidos. (FERRAJOLI, 2002, p. 373). Por assim dizer, o sujeito provocado que age

contra bem já protegido contra risco de lesão praticaria conduta inócua.40

Isto significa que caso o provocador, mesmo sem interagir com o agente, venha

a proteger eficazmente, e com antecedência, o bem jurídico, a ação será irrelevante para

o direito penal, por não oferecer perigo ao bem. Avançando um pouco mais,

chegaríamos à conclusão de que, sendo inidônea a causar sequer perigo ao bem, a ação

será impunível, mesmo que não decorra de provocação. A provocação se torna

irrelevante porque o fundamento da impunibilidade do crime impossível está na

segurança do bem e, não, no vício de vontade do sujeito provocado. Noutras palavras:

se for previamente neutralizado o risco de lesão, o fato será sempre impunível, haja ou

não intervenção de agente provocador. A partir deste raciocínio, não mais se justificaria

a punibilidade do flagrante esperado, desde que, também neste caso, a polícia tenha

40 É correto reconhecer que a mera instalação de câmeras de vigilância não impeça a consumação, pois não elimina totalmente o risco sobre o bem jurídico, cf: “Para que ocorra um flagrante preparado é indispensável que um agente provocador induza o agente à prática do delito, o que não se confunde com o fato de estar o apelante sendo vigiado por equipamentos ou seguranças. Trata-se de flagrante esperado.” (TJ-RJ, 2ª. CC., Des. Gizelda Leitão Teixeira, Proc. 2004.050.02396, j. em 09.09.04). Porém, não estamos de acordo com a exigência do induzimento no flagrante preparado, pois a razão da não-punibilidade não é o vício de vontade criado na mente do sujeito, mas, sim, a irrelevância da ação para o bem jurídico.

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40

adotado medidas de vigilância para evitar a consumação. Em conclusão: num sistema

jurídico-penal cuja base fundamental é a tutela de bens, pode-se dizer que a ação é

penalmente irrelevante sempre que não possa romper o circulo de proteção previamente

estabelecido sobre o bem visado. Partindo dessa premissa, a leitura da súmula 145, do

STF, data venia, estabeleceu uma distinção sem razão de ser. É na integridade do bem

que se assenta o fundamento lógico-jurídico da impunibilidade do crime impossível.

Portanto, será impossível o crime com ou sem provocação, desde que a precedência das

medidas de proteção crie impedimento absoluto a qualquer risco ao bem.

De grande importância, Carlo Fiore chama a atenção para o fato de que o bem

jurídico esteja protegido antes do início da execução. Só assim, segundo ele, será

absolutamente inidônea a tentativa. (FIORE Apud REALE JR., 1979, p. 141). Os que

se opõem à teoria da tentativa absolutamente inidônea consideram que a ação do sujeito

se apresenta idônea no momento do começo e somente uma comprovação ex post

excluirá a adequação da ação criminal. É o que diz Neppi Modona41, para quem a

instigação, seguida de aviso à autoridade para que o resultado seja impedido, assim

como a atuação policial que impossibilita a consumação do delito, caracterizam o delito

em sua forma tentada, porque, a seu ver, a inidoneidade para a causação de ofensa ao

bem jurídico não é inerente à própria ação delituosa, mas decorre de uma causa externa

a esta ação. Quintano Ripolles entende que ocorre aqui uma “tentativa impossível

punível”. (RIPOLLES Apud MUÑOZ SANCHEZ, 1995, p. 50)

Fiore conclui que não interessa qual seja a causa da inidoneidade, inerente ou

estranha à própria ação, contanto que a impossibilidade preceda a fase executória,

graças ao conhecimento prévio e o controle da ação por parte das autoridades. Nesta

hipótese, pondera Fiore, não se trata de uma causa estranha que interrompe o processo

causal e impede o resultado, mas é inicial “sendo desde o princípio excluído qualquer

perigo ao direito agredido”.42 (Apud REALE JR., 1979, p. 138).

De igual sorte, Miguel Reale Junior defende que a ação só será inidônea quando

a força policial estiver pré-disposta, isto é, quando o aparato policial for anterior à ação,

constituindo um conhecido obstáculo que previamente torne a consumação

41 Il reato impossibile. Milão, 1965, p. 216 Apud REALE JR., Miguel. A ação do provocado. Ciência Penal, I, ano IV, 1979, p. 138.

42 Em sentenças proferidas em 20.fev.1973 e 14.jun.1975, o Supremo Tribunal espanhol decidiu que no delito provocado “la imposibilidad de realización del daño es inicial, preconstituida, estando, desde el principio al fin, excluido el peligro para el bien jurídico protegido.” (RUIZ ANTON, 1982, p. 125)

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absolutamente impossível. Neste caso, Reale Jr. sustenta ser impossível considerar-se a

hipótese de tentativa punível porque nesta o obstáculo é posterior ao início da execução.

Na tentativa, “o meio acionado é idôneo, mas se torna, no entanto, ineficiente a ação

devido a interferência de um inesperado obstáculo”.43 (REALE JR., 1979, p. 141).

Aliás, o critério material para verificar o início dos atos de execução (e se houve ou não

tentativa) funda-se no perigo corrido pelo bem jurídico tutelado. Se o ato não gerar

perigo, não será de execução.

Também na linha de consideração de que basta a predisposição da força policial

para tornar inidônea a tentativa a opinião de Ruperto Nuñez Barbero, para quem, em

caso de preparação policial, à míngua de risco para o objeto material da ação, não se

pode falar em tentativa punível. (Apud SEMER, 2002, p. 92). Assim, para o autor, se a

simples predisposição da força policial impossibilita a colocação em perigo do bem,

deve ser impunível a tentativa.

A rigor, essa discussão não teria razão de existir no caso do agente provocador,

pois a provocação é, por definição, inerente ao delito provocado. E, como vimos acima,

esta provocação deve consistir num eficaz processo de convencimento, no sentido de

criar a resolução criminosa do autor direto. Logo, não havendo induzimento, não se

estaria jamais diante de delito provocado. Entretanto, tal discussão se justifica em razão

da incoerência decorrente dos argumentos invocados pelos nossos tribunais para

sustentar a punibilidade no caso do flagrante esperado.

A seguir, veremos que, na Espanha, também tem sido admitida a prisão por

drogas, mesmo nos flagrantes provocados.

4.1. A provocación policial no Tribunal Supremo espanhol: exemplo de

relativização do dogma de impunibilidade do delito provocado.

A exemplo do ocorrido no Brasil com a edição da súmula 145 STF, o Tribunal

Supremo espanhol consolidou entendimento no sentido da impunibilidade do delito

provocado, afirmando ser ora fato atípico, ora delito aparente ou crime impossível.

43 O autor assim complementa: “se a impossibilidade preexiste ao início da execução, a causa impeditiva não interrompe uma ação originalmente eficiente, que se torna ineficiente. Ela já o é, ao nascer, inidônea. Desse modo, no caso do agente provocador que instiga e observa a ação terminando por impedir a consumação, mesmo que não participe diretamente, seja como executor ou como vítima, o obstáculo era anterior, segundo a perspectiva integral da situação da ação: não há tentativa, mas crime impossível”.

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42

Assim é que, na Espanha, o crime provocado restou impunível seja por falta de ação

livre, voluntária e intencionada do sujeito (fato atípico), por falta de matéria delitiva

(delito aparente) ou, ainda, pela absoluta impossibilidade de realização de dano ao bem

tutelado (crime impossível). Ocorre que, nas últimas décadas, o Tribunal Supremo

espanhol tem criado distinção perigosa entre delito provocado e provocação policial.

Luis Felipe Ruiz Anton adverte que as provocaciones policiales têm merecido especial

rigor do Tribunal, acabando por admitir a punição do sujeito provocado. (RUIZ

ANTON, 1982, p. 137) Antes de traçarmos o caminho da jurisprudência espanhola até

o desenvolvimento deste “novo” crime provocado, é interessante observar a semelhança

entre as concepções espanhola e brasileira de delito provocado.

E isto porque, a exemplo do código penal brasileiro, também inexiste no

ordenamento jurídico espanhol definição legal do crime provocado. Isto fez com que a

jurisprudência acabasse por desenvolver critérios próprios para identificar o crime

provocado, distinguindo-o das hipóteses comuns de participação criminosa,

identificando características bem similares àquelas estabelecidas pelos tribunais

brasileiros: (a) o fato deve surgir do incitamento do provocador (e, não, de iniciativa

própria do sujeito); (b) o incitamento tem por finalidade obter o castigo do instigado; e

(c) não resultar em dano ou perigo ao bem jurídico em virtude das medidas de cautela e

garantia adotadas previamente pelo provocador. (RUIZ ANTON, 1982, p. 137)

A esta altura não é difícil compreender as exigências da jurisprudência

hispânica. Assim como no Brasil, por lá também é exigido que o provocador tenha

criado a determinação criminosa no espírito do sujeito, excluindo-se a provocação

inócua ou dirigida a quem já estava determinado a cometer o crime (omnimodo

facturus). Em segundo lugar, a conduta tem que estar orientada, exclusivamente, para

sua prisão. Caso subsista, na provocação, algum interesse escuso (e.g., prender

traficante por dívida de propina) ou ainda que o interesse seja legítimo (e.g., deter o

dealer para interrogá-lo sobre crime anterior ocorrido nas redondezas), o fato deixará de

configurar crime provocado. E, por fim, é preciso que a predisposição do aparato

policial resulte na efetiva proteção do bem jurídico, não permitindo que o fato alcance a

consumação. Isto é: que o iter criminis seja interrompido durante os atos executórios, e

sem que haja lesão (ou perigo) ao bem jurídico. Preenchidos os requisitos

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43

configuradores do delito provocado, o fato não enseja (ou não deveria ensejar) qualquer

reprimenda penal.

Ocorre que, por razões de índole político-criminal, o Tribunal passou a contornar

a “inconveniente” impunibilidade do crime provocado, nos casos em que a intervenção

seja feita por policial e dirigida a demonstrar uma “prévia” prática de crime: “venga a

demonstrar patentemente la previa existência de actividades delictivas del mismo tipo. ”

(RUIZ ANTON, 1982, p. 137). A finalidade da mudança era óbvia: propiciar a punição

do tráfico ilícito de entorpecentes. E as razões? As de sempre: eficácia repressiva44,

como, aliás, deixaram expresso os julgadores espanhóis: “es única forma de luchar com

alguna eficácia contra esta forma de delincuencia colectiva em nuestro tiempo.” (RUIZ

ANTON, 1982, idem).

Porém, pretendendo punir o sujeito pelo cometimento do crime de tráfico de

drogas, o Tribunal espanhol ainda esbarrava na impubilidade estabelecida para ambos

os participantes (provocador e provocado). Assim é que surgiram algumas propostas de

solução, que visando a garantir a punição apenas do sujeito provocado. A primeira

delas passava pelo reconhecimento do crime de perigo abstrato, mas foi logo rechaçada

por importar na punibilidade de ambos. (RUIZ ANTON, 1982, p. 138). Em seguida, a

segunda via de solução declarava a responsabilidade criminal do provocado, excluindo a

do agente provocador que estaria amparado por causa de justificação (e.g, cumprimento

de dever legal, exercício regular de direito). Até mesmo em estado de necessidade

imaginou-se estar o agente provocador, afirmando-se não existir outra forma de luta

contra este tipo de criminalidade. Porém, consoante argumenta Luiz Felipe Ruiz Antón,

a proposta não era convincente por razões de enquadramento sistemático, ao não levar

em conta, por exemplo, o caráter prévio da conduta provocadora. (RUIZ ANTON,

1982, p. 140)

O empenho em separar o tráfico ilícito de drogas da concepção tradicional do

delito provocado fez surgir o entendimento de que, naquele caso, o crime não surgiria

por estímulo da provocação. Precisamente o primeiro pressuposto (de que o fato deve

surgir do incitamento do provocador) não se aplicaria às provocações policiais voltadas 44 Interessante notar, como frisa Manuel Augusto Alves Meireis, que é da legislação antiterrorismo que emerge, ao nível legislativo, a figura do agente provocador, aceita pelo Tribunal Constitucional alemão, “por supor a eficácia da justiça penal, indispensável à realização da justiça material.” (Apud PRADO, 2002, p. 134)

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44

àquela espécie de delito, pois as ações criminosas anteriores teriam partido da iniciativa

própria do provocado, restando apenas que fossem “descobertas”. Com efeito, a partir

da sentença proferida em 18 de abril de 1972, o Tribunal Supremo espanhol introduziu

uma sutil diferença entre o delito provocado e a provocação policial, “la interferência

de los funcionários de la policia no fue inicial tentación criminógena, ya que la aprente

operación por ellos propuestano pasaba de intrascendente episodio sobrevenido, no

determinante de la comisión del delito, aunque si de su descobrimiento.” (RUIZ

ANTON, 1982, idem). Em suma: o delito não foi provocado pelos policiais, pois este já

vinha sendo praticado anteriormente. A provocação, na crença dos julgadores

espanhóis, teria servido apenas para descobrir seus autores. A partir daí, a Suprema

Corte da Espanha passou a considerar as “provocações policiais” como “espécie à

parte”, segundo a qual era permitido punir pessoas levadas à situação de flagrante por

agente policial, ao argumento de que, no fundo, elas já delinqüiam.

Esta idéia é típica do chamado direito penal “do autor”, doutrina há muito

preterida pelos modernos sistemas penais. Não bastasse isto, partindo da suposição de

que já existiam atividades criminosas (até então desconhecidas), é evidente que o único

fato provado será o fragmento de crime precisamente provocado pela intervenção

policial. Portanto, à míngua de prova da ilicitude de fatos anteriores, como pretender

condenação apenas pelo “pedaço” provocado? É evidente a ausência de provas.

Outra questão relevante: é legítimo que o Estado se valha deste tipo de

expediente para fazer efetivas as leis? À nossa vista, não. Incentivar o crime e

castigar, em seguida, a pessoa instigada (visando à aparente imagem de eficácia

repressiva) constitui manifesto desrespeito à dignidade do cidadão. A

instrumentalização do ser humano é de todo repreensível. Ademais, os atos dos agentes

públicos não podem ser nivelados com os dos agentes do crime. Geraldo Prado tece um

interessante comentário acerca da redução da brutalidade do aparato estatal em prol da

diminuição das desigualdades e da consolidação dos direitos e garantias individuais:

a idéia-força de consolidação da modernidade, fundada em um direito de

cunho ético e dirigida à transformação social, com redução das

desigualdades, proporcionou a edificação de uma estrutura de direitos e

garantias de natureza penal que, a par de controlar a resposta estatal aos atos

criminosos, atenuando-lhe a brutalidade , buscou definir o Estado como

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45

entidade cujos atos de seus agentes deveriam situar-se nos marcos de uma

legalidade prenhe de legitimidade e conformada eticamente. Desse modo, os

atos de repressão apuração e punição das infrações penais e de seus autores

de forma alguma equiparáveis aos atos dos próprios agentes do delito.

(PRADO, 2002, p. 127)

O Estado tem que se pautar por condutas éticas, não transigindo de qualquer

forma com a moral, tampouco com o crime. E isto só será possível assegurando sempre

a conformidade ética e legitimidade da ação de seus prepostos, incluindo, como cediço,

os meios por estes utilizados. Por isso, não se compreende, como adverte Germano

Marques da Silva, “que aqueles que se dedicam a servir a Justiça possam usar na luta

contra os malfeitores meios análogos àqueles que reprovam. A eficácia da Justiça é

também um valor que deve ser perseguido, mas, porque numa sociedade os fins nunca

justificam os meios, só será louvável quando alcançada com engenho e arte, nunca pela

força bruta, pelo artifício ou pela mentira, que degrada quem as sofre, mas não menos

quem as usa.” (MARQUES DA SILVA, 1996, p. 63) Portanto, se os meios eleitos pelo

Estado são imorais, torna-se absurda a punição do instigado. E não importa a que título

seja ou o nome que se dê. Ontologicamente, a “provocação policial” do Supremo

Tribunal da Espanha nada difere do crime provocado. Esta separação é meramente

fictícia, não tem lógica jurídica e, na verdade, encobre o fenômeno da “demonização”

do tráfico ilícito de drogas e a ordem imanente de puni-lo a qualquer custo.

Analisaremos a seguir a responsabilidade penal sob o enfoque da ação do agente

provocador. Este tema tem sido apenas timidamente explorado pela doutrina nacional,

que tende a puni-lo apenas a título de culpa, embora sejam raros os casos de intervenção

de provocador que admita a modalidade culposa. A seguir, faremos um escorço sobre

as teorias que se debatem sobre a matéria.

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46

5. Responsabilidade penal do agente provocador

Embora o assunto desperte pouca atenção no Brasil, a doutrina estrangeira vem

se debruçando, há muito, sobre a responsabilidade penal do agente provocador. É bem

verdade que Magalhães Noronha chegou a citar entendimento de Maggiore, no sentido

da responsabilização do provocador em função do perigo gerado para o bem: “quando

os meios são relativamente inidôneos, o provocador responderá por tentativa juntamente

com o executor, por haver exposto a perigo o bem agredido. Tal é o caso do delito

começado e sucessivamente interrompido pela intervenção predisposta da polícia”.

(MAGGIORE Apud MAGALHÃES NORONHA, 1981, pp. 142-143) Mas o autor

brasileiro não chegava a admitir a hipótese de punição do agente provocador, pois

entendia que a impunidade era corolário da ausência de dolo. De fato, um dos principais

desafios em torno do agente provocador constitui determinar se (e em que casos) é

punível a sua conduta. Com efeito, existe forte embate doutrinário sobre a seguinte

questão: a provocação dá lugar a uma “indução” (forma de participação) típica,

antijurídica e culpável?

Parte importante da doutrina penal estrangeira se orienta por uma postura

rigorosa de absoluta e plena responsabilidade penal do agente provocador. Para este

setor da doutrina é irrelevante o fim almejado pelo agente provocador, sendo ele punível

mesmo que o crime não se consume em razão das cautelas por ele adotadas. A

tentativa, por si só, já importaria na punição do agente provocador. Não existe dúvida

de sua punibilidade quando o agente provocador quer que o delito se consume. Mas

esta corrente de pensamento considera que este é também punível quando não quer a

consumação, i.e., quando pretenda apenas que a execução se inicie de modo a

possibilitar a prisão do autor. Justifica tal entendimento com base na idéia de que a

tentativa, por si só, já implica num risco para o bem jurídico atacado e, portanto, não

seria justo quedar-se impune o criador da situação. Na lição de Bettiol reza que “el fin

que se propone el agente provocador no puede justificar um comportamiento que

objetiva y subjetivamente ha contribuido a poner em peligro o lesionar um bien

jurídico”. (BETTIOL Apud MUÑOZ SANCHEZ, 1995, p. 48) No mesmo sentido,

Rodriguez Devesa ressalta que “las reservas mentales del provocador no alteran en

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absoluto el hecho de que ha realizado concreta y deliberadamente los actos necesarios

para que surja la determinación criminal en el provocado.” (RODRIGUEZ DEVESA

Apud MUÑOZ SANCHEZ, 1995, p. 48) É esta também a posição de Bacigalupo, para

quem o começo da execução por parte do sujeito provocado é fato antijurídico que

determina, desde logo, que se dêem os pressupostos da indução punível.

(BACIGALUPO Apud MUÑOZ SANCHEZ, 1995, p. 48)

Entretanto, prevalece o entendimento de que ele é impunível. Quatro são as

orientações doutrinárias que sustentam a impunibilidade do agente provocador, as quais

podem ser distinguidas por critérios objetivos e subjetivos. O grupo das que adotam

critérios objetivos subdivide-se em: teoria da tentativa absolutamente inidônea, que

lança os olhos sobre as garantias adotadas pelo agente para proteção do bem jurídico; e

teoria da exclusão da ilicitude, através da qual a ação do provocador é tida como

justificada por uma causa excludente de antijuridicidade. Já as pertencentes ao segundo

grupo (que excluem a responsabilidade penal do agente provocador segundo critérios

subjetivos) são as seguintes: teoria da ausência de dolo de indução ou de consumação (o

chamado “dolo de tentativa”); e teoria do dolo de consumação formal, que pressupõe a

ausência de vontade de causar lesão ao bem jurídico.

Comecemos, pois, pela análise do primeiro grupo de teorias que se vale de

critérios objetivos para afastar a punição do agente provocador.

5.1. Teoria da tentativa absolutamente inidônea ou do crime impossível

Como vimos no capítulo anterior, há entendimentos no sentido de que a ação do

provocado não é perigosa para o bem jurídico porque este foi previamente protegido

pelas medidas de salvaguarda adotadas pelo agente provocador; e.g., a predisposição da

força policial. No caso, a ação do provocado não seria punível porque não passaria de

tentativa absolutamente inidônea em vista da absoluta impropriedade do objeto (crime

impossível).

Isto é, não havendo lesão (pois o crime não se consumou), discute-se se o agente

provocador seria ou não punível por instigar a tentativa. Aqui é o caso de indagar se é

punível o agente que provoca uma tentativa inidônea? A resposta parece simples, já que

a participação é sempre acessória, exigindo que seja punível o fato principal. Portanto,

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se não há crime, não haveria participação.45 Logo, na tentativa absolutamente inidônea

(impunível), não há mínima possibilidade de punir sequer o autor, quanto mais o

instigador ou cúmplice.

Mas a questão não é tão simples assim. Em primeiro lugar, recordemos que na

hipótese em que a inidoneidade for apenas relativa, a tentativa permanece punível.

Como vimos a ação será relativamente inidônea se os meios, que geralmente seriam

hábeis para causar o resultado, não o forem numa situação concreta, ou, existindo o

objeto, este é colocado acidentalmente fora do alcance do ataque no momento da

execução. A ação provocada é, prima facie, meio eficaz para produzir o resultado,

porém, em razão das medidas de proteção previamente adotadas pelo agente, o objeto é

posto a salvo de perigo de lesão. Mas, nesse caso, a inidoneidade do objeto é absoluta

ou relativa?

Parece-nos que, via de regra, a inidoneidade será apenas relativa. Não há como

garantir, de forma inexorável, que o bem não sofrerá lesão (quiçá, perigo de lesão) pela

prévia adoção de medidas de proteção. Além disso, a teoria da tentativa absolutamente

inidônea nos parece imprópria para avaliar a conduta do agente provocado, pois parte de

uma premissa falsa: a de que o agente provocador é mero partícipe.

Com efeito, a teoria da tentativa absolutamente inidônea é criticada por lançar os

olhos sobre a ação do sujeito provocado, ignorando a intenção do agente provocador

que, por definição, quer apenas prender. Ruiz Anton nos alerta que, sob o enfoque da

tentativa absolutamente inidônea, avalia-se a questão como se o agente provocador

fosse um partícipe normal, submetido aos princípios gerais em matéria de

acessoriedade. (RUIZ ANTON, 1982, pp. 330-333).

Com efeito, submetendo a punição do agente provocador à existência (ou não)

de conduta penalmente relevante do sujeito provocado, esta teoria não leva em

consideração uma das características fundamentais do conceito de agente provocador,

que é a de atuar sem vontade de consumação. Sendo o terceiro pressuposto conceitual

da figura do agente provocador, a não-voluntariedade da consumação o distingue do

sujeito provocado, que atua, ao revés, com vontade de lesar o bem jurídico. Cristina de

Maglie e Juan Muñoz Sanches, autores de duas excelentes monografias sobre o tema,

são unânimes em rechaçar a teoria da tentativa absolutamente inidônea, afirmando-a 45 “Art. 31. O ajuste, a determinação ou instigação e o auxílio, salvo disposição expressa em contrário, não são puníveis, se o crime não chega, pelo menos, a ser tentado.” (Cód. Penal brasileiro)

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desaconselhável também por razões de política criminal. E isto também porque,

segundo MUÑOZ SANCHEZ, “esta tesis tiene como consecuencia que homogeneíza el

tratamiento del provocador y del provocado, con lo que se llegaría a la punicíon o

impunidad tanto del agente provocador como del provocado y, por consiguiente, sería

absurdo utilizar esta técnica policial”. (MUÑOZ SANCHEZ, 1995, p. 52)

Portanto, parece-nos inexata esta proposta metodológica de fazer depender a

responsabilidade do agente provocador da existência ou não de fato punível praticado

pelo sujeito provocado. Isto quer dizer que o uso da tese do crime de ensaio ou do

crime impossível (pela tentativa absolutamente inidônea) não serve para avaliar a

responsabilidade penal do agente provocador (que não quer a consumação),

equiparando sua atuação (e condicionando sua punição) com a do sujeito provocado.

Ou seja, partindo-se da concepção do crime de ensaio ou do crime impossível, é idêntica

a reprimenda penal dirigida ao agente provocador e ao sujeito provocado, ignorando-se

os aspectos subjetivos de cada conduta. É criticável dar-se o mesmo tratamento penal a

condutas com finalidades absolutamente distintas: a do funcionário público, cujo

propósito (legítimo) era prender o criminoso; e a do sujeito provocado, que agiu voltado

para a lesão do bem jurídico.

5.2. Teoria da exclusão da ilicitude (incidência de causa de justificação)

Esta teoria se baseia na idéia de que a ação do agente provocador está justificada

por uma causa de exclusão da antijuridicidade, considerando-se como bem jurídico a

defesa da coletividade. As formas de excluir a antijuridicidade seriam através do

reconhecimento do estado de necessidade ou do estrito cumprimento do dever legal,

estando ambas previstas em nosso Código Penal.46 A respeito dessa teoria, eis o que

afirma Zaffaroni:

si se trata de interrumpir una serie de delitos o la continuación de um

mismo delito, estando afectados o en peligro bienes jurídicos tales como la

vida o la libertad sexual, sin que reste otra solución que acudir a la

provocación de una nueva tentativa – idónea ou inidónea -, se trata de una

situación análoga a las que habilita la coerción directa, y quien lo realiza

estará cumpliendo un deber jurídico o cooperando con quienes lo cumplen,

46 “art. 23. Não há crime quando o agente pratica o fato: I– em estado de necessidade; (...) III- em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.”

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de modo que la conducta no estará justificada por el estado de necesidad,

sino que será atípica por cumplimiento de un deber jurídico. No obstante, si

el agente provocador en este último supuesto no fuese un funcionario,

debiera contemplarse elo estado de necesidad. (ZAFFARONI, 2000, p. 765)

De qualquer maneira, a atipicidade ou a justificação será viável somente quando

a lesão evitada for de tal importância ou o perigo neutralizado de tal magnitude que não

afete a “imagem ética” do Estado, e.g., no uso do agente provocador para evitar o

cometimento de um gravíssimo delito contra uma ou mais vidas, especialmente em

casos de delinqüência em série (serial killer) ou massiva (terrorismo). Ainda de acordo

com Zaffaroni, se os bens jurídicos em risco são de menor importância ou a lesão não

for iminente, o uso desse meio investigatório lesionará gravemente esta “imagem ética”

do Estado, devendo-se realizar investigações pelos meios ordinários.

Ao contrário das duas teorias anteriores, que se baseiam na proteção do bem

jurídico, as duas próximas teorias analisam a conduta do provocador sob o prisma

subjetivo, i.e, segundo o conteúdo de vontade da ação provocadora. Ambas afirmam a

impunidade do agente provocador. A primeira teoria se baseia na ausência do dolo “de

indução” ou “de consumação” (ou, segundo alguns, na suposta existência de um dolo

meramente de “tentativa”); a teoria seguinte vai mais além, ao admitir a existência de

dolo de consumação apenas formal (e, não, consumação material), i.e., que não vise à

terminação ou exaurimento do crime, ante a ausência de vontade de lesão do bem

jurídico.

5.3. Teoria do dolo “de tentativa” (ausência de dolo de consumação)

Esta concepção surge na ciência penal alemã e constitui opinião dominante hoje

nas doutrinas alemã, italiana e espanhola. Sua característica fundamental é fundar a

impunidade do agente provocador na ausência do elemento subjetivo da indução. Por

tal razão, é também conhecida como “teoria do dolo de indutor”, o qual estaria ausente

nas hipóteses de agente provocador. A discussão se baseia na seguinte interrogação: é

típica a indução quando o agente provocador pretende apenas a tentativa? Conclui-se

que ele não seria punido devido à falta do duplo dolo exigido na indução, uma vez que o

agente, embora tendo dolo de determinar, de convencer, de criar a intenção criminal,

não tem dolo de consumar o crime.

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51

No Brasil, ao concorrer para a infração penal, o indutor é punido por expressa

determinação legal (cf. art. 29, do CP). De igual sorte, o Código Penal alemão castiga

como indutor (§ 26 StGB) a quem determina dolosamente a outro a comissão dolosa de

um fato antijurídico. O mesmo cabe dizer do Código Penal espanhol que pune, no

artigo 14.2, os que “inducen directamente a otros a ejecutarlo”. Segundo Muñoz

Sanches induzir é determinar em outro uma resolução, ou uma decisão, de cometer um

fato típico e antijurídico.47 (MUÑOZ SANCHEZ, 1995, p. 53) Atualmente o

fundamento da participação decorre da “teoria da causação”. Segundo ela, o indutor

deve ser castigado pela realização do injusto através do autor principal, na medida em

que a ação deste deu lugar a uma lesão (ou perigo de lesão) ao bem jurídico. Constitui,

assim, fundamento da participação a lesão típica do bem jurídico por meio do fato

principal alheio. Desta teoria se depreende que a vontade do partícipe deve se orientar

para a completa execução do fato principal.

Se o indutor não quer a completa execução do fato, como é o caso do agente

provocador, não haveria imputação subjetiva do resultado. Assim a lição de Bacigalupo,

para quem o agente provocador é “aquele que induz com o objetivo de fazer com que

alguém incorra não na consumação, mas somente na tentativa, é considerado como não

punível, pois a indução – diz-se – exige uma vontade dirigida à lesão do bem jurídico”.

(BACIGALUPO, 1999, p. 480) Assim também diz Zaffaroni: os que aderem à teoria

entendem que para haver participação punível é necessário que haja dolo de

consumação. Caso contrário, é atípica a conduta do partícipe. “Si suele argumentar

que la participación requiere um dolo dirigido a la consumación del tipo y que no es

suficiente la voluntad de realización de la tentativa, afirmado así la atipicidad de la

conducta del agente provocador.” (ZAFFARONI, 2000, p. 764) Sobre esta teoria se

assenta o entendimento prevalente para deixar impune o agente provocador que só quer

a tentativa, e não a consumação do delito. Entende-se, enfim, que o dolo de indutor deve

abranger tanto a provocação da decisão de fato, como a realização completa do fato por

parte do autor. Assim sendo, não há indução se o agente provocador não quer a

consumação, senão também se representa que o resultado típico não será alcançado pelo

autor.

47 Sobre o conceito de indução, veja-se também MIR PUIG, Derecho penal. Parte General (Fundamento y

Teoria Del Delito), 3a. ed., PPU, Barcelona, 1990, p. 429-430.

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52

É esta, portanto, a construção doutrinária majoritária na solução sistemática dos

problemas que envolvem a figura do agente provocador. Exigindo-se o dolo de

consumação para o indutor, o agente provocador ficará impune, por ausência de tipo

subjetivo, quando determinar ao sujeito provocado a realização de um delito de

resultado material em grau de tentativa. Somente quando o provocador tenha dolo de

consumação do fato principal se superam os limites da impunidade. Ocorre que, apesar

de contar com ampla aceitação na doutrina, esta teoria enfrenta também algumas

críticas.

A principal crítica alerta que, ao excluir o duplo dolo da indução (pela ausência

de vontade de lesar o bem jurídico), os entusiastas da teoria estariam a criar uma

modalidade inexistente de dolo: o dolo de tentativa. Ainda que se possa reconhecer que

o agente provocador queira apenas a tentativa, é impróprio falar-se em ausência de dolo

de consumação ou, mesmo, na existência de dolo “de tentativa”. E isto por um simples

e bom motivo: não existe dolo de tentativa. No Brasil, é por todos rejeitada a idéia de

uma vontade de “apenas tentar” cometer delito. Magalhães Noronha, por exemplo,

leciona que o dolo do agente é o mesmo independentemente do grau de execução: “por

isso já dissemos que o crime tentado se distingue daquele só no plano físico.(...) Quem

mata age com o mesmo dolo daquele que tentou matar, simplesmente porque a tentativa

de homicídio é apenas o homicídio mutilado, sem a consumação. Conseqüentemente,

vão seria buscar um elemento subjetivo diverso no crime tentado. Não existe dolo de

tentativa.” (MAGALHÃES NORONHA, 1981, p. 135) No mesmo sentido, José

Henrique Pierangelli enfatiza que “inexiste dolo de tentativa, pois nesta o dolo não é

outro senão o do delito objetivado bastando, pois, que o instigador determine a outro o

cometimento do delito”. (PIERANGELLI, 1999, p. 75).

Em Portugal, a doutrina se enfrenta em fortes discussões acerca do tema.

Assim se manifesta Fernando Gonçalves: “na medida em que o agente provocador

pretende submeter outrem a um processo penal e, em última instância, a uma pena,

atuando conseqüentemente com vontade e intenção de, através do seu comportamento,

determinar outra pessoa à prática de um crime, agindo deste modo, com dolo ao

determinar outrem à prática de um crime, ele age, também, com o dolo relativamente à

realização do crime. Por outras palavras: o agente provocador não pode deixar de

querer, também, a própria consumação do crime, levado a efeito, embora por outra

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pessoa”. (GONÇALVES, 2001, p. 256) Portanto, falar em dolo de tentativa não passaria

de uma invencionice descolada da realidade.

Porém, na visão de Muñoz Sanchez, esta posição leva em consideração somente

o primeiro pressuposto fundamental do agente provocador, que é obter o castigo do

sujeito provocado, olvidando-se os demais requisitos de não-querer a consumação e

adotar as medidas necessárias a evitar a consumação. Porém, como veremos a seguir, há

autores que admitem até que o provocador pretenda a consumação, desde que não

queira a lesão do bem.

5.4. Teoria do dolo de consumação “formal” (ausência de dolo de lesão ao bem

jurídico)

Vimos que boa parte da doutrina se orienta pela punição do agente provocador

segundo o dolo de consumação ou de tentativa, de modo que se existe o dolo de

consumação o agente é punido como indutor, em vista do elemento subjetivo típico da

participação criminosa. Para alguns autores, todavia, não é suficiente o dolo de

consumação para afirmar a punição do agente provocador. Ultrapassando-se o debate

anterior sobre a existência ou não (no plano ontológico) de um dolo “de tentativa”, já se

discute a punição do agente provocador que queira a consumação do crime. Isto é,

alguns autores admitem a hipótese do provocador querer a consumação, mas não a lesão

do bem jurídico. Segundo os adeptos desta teoria, só se deve punir o agente que quiser

a lesão do bem jurídico. Portanto, se ele induzir à consumação formal do delito, mas se

assegura de que não alcance a terminação ou a lesão ao bem jurídico, pode-se dizer que

o agente provocador não teria realizado também o tipo subjetivo de indução. O

elemento subjetivo da indução incluiria junto ao dolo de consumação a intenção de

lesão ao bem jurídico.

Como se sabe a consumação é conceito de natureza formal, pois ocorre com a

realização de todas as circunstâncias objetivas e subjetivas do tipo penal. Já a

terminação (conceito de natureza material) se dá quando, para além do cumprimento

dos elementos do tipo legal, tem lugar um evento que realiza eventuais intenções do

autor. Destaca-se, aqui, a “consumação formal” da “terminação material”, estágio em

que o bem jurídico seria efetivamente lesionado (isto aplicável, é claro, somente aos

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crimes materiais), afirmando-se a irresponsabilidade do provocador que queira alcançar

apenas a consumação formal. Muñoz Sanches anota que Franzheim defendia ser

político-criminalmente desejável e dogmaticamente fundado não castigar o agente

provocador se tem em consideração que o fato não alcançará a terminação material. O

que importa, segundo Franzheim, é verificar se o agente provocador queria ou não a

lesão do bem jurídico.

No mesmo sentido, eis o que afirmam Schonke e Schroeder: “lo decisivo debe

ser que la voluntad del inductor se dirija o no a que no se produzca uma lesión del bien

jurídico protegido”. (Apud MUÑOZ SANCHEZ, 1995, p. 60). No mesmo sentido,

Jakobs defende que “la impunidad por falta de dolo de consumación se extiende

parcialmente también a los casos de dolo de lesión del bien jurídico.. en la medida en

que el autor deba tener un dolo trascendente (uberschienssenden) de lesión del bien

jurídico..el que participe responde sólo en caso de dolo de lesión del bien jurídico,

como en la participación en la tentativa”. (JAKOBS Apud MUNÕZ SANCHEZ, cit.,

p. 64).

No Brasil, essa teoria parece ser admitida somente por Juarez Cirino dos Santos,

que afirma ser impunível a instigação se o agente provocador quer a consumação, mas

exclui a lesão do bem jurídico. Segundo o autor, “se a instigação é realizada por agente

provocador, que quer a tentativa, mas exclui a consumação do fato principal, ou quer a

própria consumação formal, mas exclui a lesão material do bem jurídico (por exemplo,

no flagrante preparado, a hipótese da permanência da droga fornecida pelo traficante em

poder do consumidor, está excluída), então a instigação é impunível – assim como o

fato principal – por absoluta impossibilidade de lesão do bem jurídico.” (CIRINO DOS

SANTOS, 2000, p. 295)

Apesar da abalizadíssima opinião de Juarez Cirino dos Santos, não concordamos

com a exclusão da responsabilidade do agente provocador com base numa suposta

ausência de “dolo de lesão do bem jurídico”. Assim como não há, empiricamente, dolo

de tentativa, o que é reconhecido por Cirino dos Santos, também inexiste distinção

ontológica, no campo do dolo, entre consumação formal e terminação. Não é possível

distinguir, na prática, quando o agente tem dolo de consumação ou de terminação

material. Com efeito, muitas críticas são dirigidas à teoria do dolo de consumação

formal. Muñoz Sanches afirma que não há justificativa para distinguir os casos de

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punição segundo o dolo de consumação ou terminação, não se podendo adaptá-la aos

graus de realização do delito. (MUNÕZ SANCHEZ, cit., p. 60). Isto porque há delitos

em que se pode dar a consumação sem que isto suponha qualquer lesão ao bem jurídico

ou, pelo contrário, a lesão ao bem jurídico venha com a consumação sem a necessidade

de terminação.

Chegamos a ponto de considerar a hipótese de consumação material do delito.

Avaliemos, pois, quais as implicações para o agente provocador quando o bem jurídico

é afetado mesmo contra a sua vontade.

5.5. A responsabilidade do agente provocador quando ocorre lesão ao bem jurídico

mesmo contra a sua vontade

Não existe acordo na doutrina quanto à responsabilidade penal do agente

provocador quando, contra a sua vontade, sobrevém a consumação (e a lesão do bem

jurídico), apesar das medidas adotadas para impedi-la. Como vimos, a maioria dos

autores considera que o agente provocador jamais poderia ser considerado partícipe do

crime do sujeito provocado porque não tem com este unidade de desígnios, por clara

ausência de dolo, seja de consumação ou de lesão ao bem jurídico.

Todavia, sustenta-se com freqüência que, se o resultado era previsível, o agente

provocador poderá responder como autor direto de crime culposo ou, mesmo, por dolo

eventual, caso tenha assumido o risco de produzir o resultado. É a lição, por exemplo,

do mestre Nelson Hungria, que levantava duas hipóteses: “ou o agente provocador

assumiu o risco do evento de dano ou de perigo (dolo eventual) e terá de responder

como partícipe do crime, ou, não tendo assumido êsse risco, agiu inconsideravelmente,

e, ao invés da participação, o que ocorre são dois crimes distintos: um doloso, a cargo

do induzido, e outro culposo, a cargo do agente provocador (se o crime é punível a título

de culpa)”48 (HUNGRIA, 1995, p. 426). No mesmo caminho, Eduardo Correia leciona

que o agente provocador deve ser punido desde que “tendo previsto o crime como

resultado possível da sua determinação actuou não confiando em que ele se

48 E assim sentenciava mestre Hungria: “Pouco importa a moralidade do motivo determinante (salvo

quanto à medida da pena) do agente provocador, pois o fim não santifica os meios”.

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produziria”. (CORREIA, 1968, p. 253). Ou seja, se o resultado fosse previsível49 ao

agente provocador, o fato seria punível a título de culpa. A violação do dever de

cuidado objetivo se daria por meio de um atuar imprudente, negligente ou imperito por

parte do agente provocador.

Não é freqüente na doutrina a responsabilidade por dolo eventual. A bem da

verdade, por falta de dolo de consumação, é comum desde logo que os autores afastem a

responsabilidade dolosa do agente provocador. Assim o faz Nilo Batista, para quem “é

indiscutível que o agente provocador não participa do delito do instigado”. Porém, é de

todo indispensável – ainda segundo Nilo -- que o agente se cerque de todas as cautelas

exigíveis para que o resultado não se produza, caso contrário “poderá ele ser

responsabilizado a título de culpa, se o delito permitir, e desde evidentemente que se

apresente a violação do dever objetivo de cuidado e a culpabilidade”. (BATISTA, 2004,

p. 185) Muñoz Sanches também admite que o agente provocador seja responsabilizado

por imprudência “cuando negligentemente omite poner las precauciones o medios

necesarios para impedir la comisión del delito que él mismo há provocado”. (MUÑOZ

SANCHEZ, 1995, pp. 67-68) O autor nos dá o exemplo do agente que esquece de

comunicar à Polícia o roubo praticado por alguém que tenha sido por ele instigado.

Embora seja este o entendimento majoritário da doutrina, Muñoz Sanches adverte que

esta solução se aplica apenas aos sistemas jurídico-penais que admitem a participação

culposa em delito doloso, que não é o caso do Brasil. (Idem) Neste sentido, adverte

Ruiz Anton que é inviável a indução culposa a um delito doloso porque “la inducción

requiere necesariamente uma voluntad referida al resultado del hecho principal, y

precisamente la ausência de esa voluntad es lo que caracteriza el actuar imprudente”.

(RUIZ ANTON, 1982, p. 279)

Outra idéia surgida na doutrina é a de que o agente provocador deva ser

castigado como autor de crime culposo comissivo por omissão. Argumenta-se que o

agente provocador que induz outrem à prática de crime deve garantir a vítima que a

ação não passará do grau de tentativa. Cabe indagar, aqui, se o agente provocador tem a

posição de garantidor frente ao perigo de lesão do bem jurídico, cabendo perquirir-se

pelo surgimento ou não de um dever de garantia decorrente do seu atuar precedente, ou

seja, a partir do induzimento do sujeito provocado. Muñoz Sanches se opõe à idéia de

49 Adotando-se o parâmetro do “homem médio”.

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classificar o provocador como garantidor porque considera que a conduta dele carece de

domínio efetivo sobre a causa do resultado, isto é, o agente provocador não tem o

domínio sobre a pessoa da qual deriva o resultado, mesmo que possa evitar a

consumação do delito com a sua ação. (MUÑOZ SANCHEZ, 1995, pp. 67-68)

Portanto, descartando-se a hipótese de puni-lo como autor de crime comissivo

por omissão, haja vista a inexistência da posição de garantidor ante o resultado, surge o

entendimento no sentido de que, em caso de consumação, o agente provocador atua

como autor colateral de um delito culposo.50 Trata-se de autor colateral51 e, não,

partícipe porque não há participação culposa em crime doloso. Isto faz com que a

vislumbrada participação constitua autoria de crime culposo, autônoma e independente

do crime doloso realizado pelo sujeito provocado. Para Nilo Batista, o agente

provocador é autor direto de crime culposo, em autoria colateral heteróloga com o

instigado, quando aquele age com culpa stricto sensu. Nem se alegue que o agente

provocador não pode ser autor por não ter o domínio do fato. Nos crimes culposos, não

se há de falar em domínio (ou não) do fato, pois a autoria se determina pela violação

individual do dever de cuidado de que resulta causalmente a lesão involuntária do bem

jurídico. Versando sobre isto, Welzel afirma ser “autor de um delito culposo quem

através de uma ação que lesiona o grau de cuidado necessário no trânsito,

involuntariamente produz um resultado típico. Qualquer grau de concausalidade para a

involuntária produção do resultado típico através de uma ação que não atenda ao

cuidado necessário no trânsito fundamenta a autoria do correspondente delito culposo.

Por isso, na esfera dos delitos culposos não existe diferença entre autoria e

participação.” (Apud BATISTA, 2004, p. 71)

A crítica à solução pela punição a título de culpa pode se extrair não apenas da

lei, mas também do dia-a-dia forense. A experiência demonstra que a prática da

provocação por agentes (policiais ou não) é habitual apenas num determinado rol de

crimes; e.g., tráfico de entorpecentes, furto doméstico, apropriação indébita de produtos

em supermercados, e etc. Deste pequeno rol de delitos, poucos são aqueles em que a lei

prevê a modalidade de comissão culposa. Assim sendo, é fácil concluir pela

50 Na Espanha, chama-se “autor accesorio” aquele que age em autoria colateral. 51 A autoria colateral consiste na execução, por mais de uma pessoa, da ação ou omissão que configura o

delito, porém sem a consciência de cooperar na ação comum. (FRAGOSO, 2004, p. 315)

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pouquíssima incidência de casos de responsabilização dos agentes provocadores por

conduta culposa.

5.6. Uma solução à luz da teoria da imputação objetiva

As controvérsias em torno da responsabilidade penal do agente provocador na

hipótese de lesão do bem jurídico tutelado, mesmo com a tomada das cautelas

disponíveis para a sua salvaguarda nos remete a uma tentativa de solução por via da

teoria da imputação objetiva, nos termos que se seguem:

A teoria da imputação objetiva agrega novas características ao tipo penal. Para

Luís Greco, a imputação objetiva “enuncia o conjunto de pressupostos genéricos que

fazem de causação uma causação objetivamente típica.” (GRECO, 2005, p. 5) Partindo

da teoria finalista da ação, a imputação objetiva insere, como requisitos fundamentais,

dois novos elementos: de um lado, no tipo subjetivo (ou, numa distinção normativa, no

desvalor da ação), a teoria traz, para além do dolo ou da culpa stricto sensu, a criação

do risco juridicamente desaprovado; de outro lado, no campo do tipo objetivo (ou

desvalor do resultado), que consiste, para o finalismo, apenas na causação de lesão ao

bem jurídico, a teoria da imputação objetiva agrega ainda a realização do risco criado

pelo autor.

Com efeito, a teoria da imputação objetiva acrescenta ao injusto um desvalor

objetivo da ação (a criação de um risco juridicamente desaprovado), e dá ao desvalor do

resultado uma nova dimensão (realização do risco juridicamente desaprovado). Numa

apertada exposição, podemos dizer que não há imputação (ou “atribuição”) objetiva do

resultado nas seguintes hipóteses: (1) se o risco não é criado (ou, sendo preexistente, é

diminuído); (2) se o risco é criado, mas não é juridicamente desprovado (risco

permitido); ou (3) se o risco é criado, é juridicamente desaprovado, mas não se realiza

no resultado.

O risco é criado quando a ação for considerada perigosa. Este é o aspecto

positivo.52 Se o risco for criado, deve-se avaliar se ele é juridicamente desaprovado.

Para Luís Greco, “para avaliar se um risco é ou não juridicamente desaprovado, o

52 Sobre o aspecto negativo, que trata da exclusão do risco, consultar: JUAREZ TAVARES. “Teoria do Injusto Penal”. 2ª. Ed. BH: Del. Rey, 2002. p. 281; ROGÉRIO GRECO. “Curso de Direito Penal”. Parte Geral. 2ª. Ed. RJ: Impetus, 2003. p. 269.

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instrumento mais importante é a existência de normas de segurança que regulam a

prática de determinadas atividades perigosas.” (GRECO, 2005, p. 47). Assim, pode-se

afirmar o risco se torna juridicamente desaprovado com a infringência de normas de

segurança ou demais ações intoleravelmente perigosas para o direito. Uma vez criado o

risco juridicamente desaprovado, e presente o elemento subjetivo, satisfeita estará a

tipificação subjetiva, ou melhor, o desvalor da ação.

No entanto, para haver imputação objetiva será necessário perquirir ainda o tipo

objetivo, i.e., o desvalor do resultado. Como dissemos, o tipo objetivo não se esgota na

mera causação de um resultado, ao contrário do ocorre no causalismo e, até, na teoria

finalista. É necessário algo mais para fazer desta causação uma causação objetivamente

típica. Entramos aqui na realização do risco criado pelo autor. Isto significa, em suma,

que só haverá atribuição do tipo objetivo ao agente se a causação do resultado resultar

da realização do risco por ele criado.

Mas, para a questão do agente provocador, não precisamos ir tão distante.

Parece-me que para os que pretendem sustentar a licitude da ação do agente provocador

(não é o nosso caso), a hipótese poderia ser subsumida a uma falta de risco

juridicamente desaprovado. Isto porque, embora seja certo que, ao provocar o crime, o

agente crie um risco, não se pode dizer que este seja antijurídico, salvo inobservância de

regras de atuação. Portanto, excluídas as hipóteses de culpa stricto sensu, o agente

provocador que age dentro dos limites do seu ofício cria risco permitido, como aquele,

por exemplo, que resulta da circulação de veículos. Noutras palavras, não haveria o

juízo de desvalor sobre a ação do agente provocador, não podendo imputar-se a ele

objetivamente o resultado.

A esta solução, todavia, poderia se opor a seguinte pergunta: e se o risco

permitido criado por ele se realizasse no resultado? Parece-nos que ainda assim o

provocador restaria impunível. Isto porque, à luz da teoria da imputação objetiva, não

haveria desvalor do resultado. É que, mesmo havendo lesão, exige-se que esta decorra

da realização de um risco proibido. Caso contrário, não há imputação. Nem toda

causação de lesão a bem jurídico referida a uma finalidade é desvalorada. Apenas o

será, nas palavras de Luís Greco “a causação em que se realize o risco juridicamente

proibido criado pelo autor.” (GRECO, 2005, p. 12) Ou seja, não haveria crime porque a

ação, apesar de arriscada, não teria ultrapassado os limites do direito positivado.

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Com efeito, para que haja crime os dois aspectos de valoração devem ser

observados: tanto a licitude da conduta, como a proteção jurídica dos bens. Antes

mesmo de circularem as idéias da imputação objetiva, Enrique Cury já ensinava que

“cuando la acción es adecuada al Derecho, la lesión o puesta en peligro del bien

jurídico es justa; el daño injusto de un bien jurídico sólo puede provenir de uma acción

antijurídica.” (CURY, 1973, p. 151) Portanto, sendo justa a ação do provocador, não

pode haver crime mesmo que haja lesão.

No entanto, havendo ou não risco juridicamente desaprovado, como foi dito,

entendemos que o Estado não pode permitir sob qualquer pretexto que seus prepostos

provoquem o crime. A questão do dolo de consumação meramente formal (esta

“novidade”), a suposta incidência de causa de justificação ou mesmo a teoria da

tentativa absolutamente inidônea são construções teóricas meramente legitimantes de

um Estado punitivo. Por mais que se esforcem, os juristas estrangeiros não conseguem

afastar o conteúdo imoral da provocação ao crime por agentes públicos. Não é à toa que

inúmeras críticas são dirigidas à ação do agente provocador. Como veremos adiante, as

conclusões variam entre a inconstitucionalidade do uso do agente provocador, a

invalidade da prisão ou da prova por ele realizada.

5.7. Críticas ao uso do agente provocador. Atuação estatal imoral e contrária à

Constituição Federal.

Não é difícil notar que a atuação do agente provocador represente violação a

direitos da personalidade, como o direito à vida privada. Numa democracia é desejável

que as técnicas de repressão aos ilícitos penais sempre se pautem pelo respeito aos

direitos fundamentais dos cidadãos, que estão assegurados pela Constituição Federal. Se

há casos em que os bens individuais devem ser até um certo ponto sacrificados, cedendo

lugar à tutela dos direitos da coletividade, desçamos ao fundo de toda a questão, que é a

contínua tensão existente entre as mais eficazes técnicas repressivas e os limites

impostos pelo ordenamento jurídico.

Uma das vozes mais autorizadas sobre a matéria, Cristina de Maglie sustenta que

as exigências de garantia não podem aniquilar exigências de efetividade tão

permanentes, como as expostas pelas novas fronteiras do crime organizado. Porém,

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alerta a autora que “é mister encontrar um ponto de equilíbrio entre garantia e eficácia

que a mais recente tendência legislativa não parece ter ainda encontrado”. Ainda

segundo De Maglie, “a hipereficácia perseguida com métodos pouco transparentes

cobra um preço sempre muito alto para ornar o sistema penal com o título da

modernidade; nessas condições, parece antes a máscara atrás da qual se oculta a

nostalgia pelo terrorismo repressivo, o álibi que cobre a inclinação para a fúria

inquisitorial”. (DE MAGLIE, 1993, p. 1072) Miguel Reale Junior entende que, no

confronto entre os valores da liberdade individual e defesa da sociedade, mediante a

coerção penal concreta, deve-se dar prevalência ao primeiro. “E isto porque, do

contrário, desvirtuada estaria a função de defesa da sociedade, para prevalecer, sob o

seu nome, o objetivo de punir, como um fim em si mesmo, justificando-se, até mesmo a

criação de circunstâncias legitimadoras da coação estatal, por parte do próprio Estado”.

(REALE JR, 1979, p. 143)

De igual modo, Marcelo Semer frisa que “do ponto de vista político a atuação do

agente policial provocador é incompatível com um ordenamento democrático. Não cabe

ao Estado induzir à prática do crime – ou mesmo aguardá-la propositadamente – com a

exclusiva finalidade de efetuar uma prisão em flagrante”. (SEMER, 2002, p. 92) E isto

porque um tal comportamento estatal estaria não apenas a extrapolar os limites do poder

de reprimir, mas também a incentivar a preparação dos atos delituosos. Para o autor, o

caso mais freqüente de preparação de flagrantes revela o grande paradoxo da ação

policial: “a pretexto de reprimir a criminalidade do tráfico de entorpecentes, a atividade

policial estimula a circulação da droga - o porte e o transporte, por si sós componentes

do crime de perigo -, vulnerando o próprio bem jurídico que se colima proteger, a saúde

pública.” (Idem)

Também criticando a postura do Estado, José Henrique Pierangelli endossa o

coro de que a ética deste “impede que se-lhe degrade a sua imagem até o limite sobre

ser o próprio Estado que se vale do crime para assegurar sua justiça e sustentar uma

imagem irreal de segurança jurídica.”. (PIERANGELLI, 1999, pp. 74-75). Por tal

motivo, Pierangelli chega a censurar a concessão da impunidade ao agente provocador,

uma vez que deixa em aberto uma forma de investigação de delitos bastante discutível,

“pois, ao invés de a polícia investigar delitos efetivamente cometidos, trataria de instigar

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o cometimento de crimes, para depois puni-los. Semelhantes métodos não encontram

supedâneo num Estado de Direito”. (Idem)

De fato, os métodos de que se vale o Estado nos casos de provocação policial

são absolutamente contrários às premissas éticas e morais que estão na base do Estado

de Direito. A este respeito, Miguel Reale Jr. diz ser “inadmissível, por ser torpe, que o

Estado, através de seus agentes policiais, insufle à prática de um delito com vistas a

adquirir legítimo interesse à persecução penal”. (REALE JR, 1979, p. 143) Do mesmo

modo, segundo o autor, é inaceitável permitir que a polícia observe o surgimento de

uma ação delituosa e não intervenha imediatamente, dando oportunidade para que

alguém inicie a execução com o único fito de prendê-lo em flagrante. Reale Jr. chega a

falar na existência de uma “cumplicidade omissiva” do Estado com o delito. Isto é,

transigindo com o crime, os agentes do Estado não apenas ferem os preceitos éticos do

Estado, como também descumprem seus deveres para com a coletividade.

Zaffaroni, por seu turno, alerta para a “imagem ética do Estado”, que seria

afetada com o uso do agente provocador em determinados casos. Zaffaroni nos recorda

da lição de Bettiol: “los agentes de la policía tienen la obrigación de perseguir delitos

perpetrados, y no la de suscitar, más o menos malignamente, acciones delictuosas com

fines pretendidamente lícitos.” (Apud ZAFFARONI, 2000, p. 765)

Para Cristina de Maglie, um sistema penal com o objetivo de formalizar os

conflitos sociais “não pode aspirar o máximo dos resultados, objetivando a uma eficácia

a todo custo, mas deve redimensionar as suas ambições de eficiência se quiser

permanecer ancorado em princípios constitucionais.” (MAGLIE, 1993, p. 1.072)

Maglie reconhece que a criminalidade organizada é combatida em seu próprio terreno e

não pode ser derrotada, salvo sejam utilizadas as suas próprias modalidades de agressão,

mas salienta que “em nome um Estado sério e forte não pode aceitar-se que pessoas

institucionalmente destinadas a impedir os crimes cheguem a provocá-los ou de

qualquer forma favorecer sua realização por amplos lapsos temporais”. (MAGLIE, cit.,

p. 1.072)

Ao apresentar os fundamentos da doctrine of entrapment, já exposta

anteriormente, a qual considera a ação do agente provocador atentória à livre

determinação pessoal, Luis Felipe Ruiz Antón frisa ser inconstitucional que o Estado se

valha de procedimentos ilegítimos para dar efetividade às leis. Eis o que afirma o autor

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espanhol: “ciertamente que desde el punto de vista penal el provocado actúa como

consecuencia de la previa intervencion del agente provocador, y en este sentido se

considera que la resolución de su voluntad no es por completo espontânea. Pero no es

este el punto esencial: la atención se pone además en que constitucionalmente no esta

permitido valerse de procedimientos ilegítimos para hacer efectivas las leyes.” (RUIZ

ANTON, 1982, p. 120). De igual modo, Eduardo Correia tecia severas críticas à figura

do agente provocador, informando-nos de que Hafter nele via crassa imoralidade,

enquanto que Singewald o considerava mero legado do Estado Absolutista policial.

(CORREIA, 1953, 132)

Além de violar os direitos da personalidade, a provocação ao delito também

afronta as garantias asseguradas pela Constituição. As garantias constitucionais são os

preceitos colocados na Lei Maior para assegurar as partes e o devido processo legal.

(GRINOVER, 2001, p. 24). A Constituição Federativa do Brasil impõe limites à dita

“eficácia” da Justiça Penal. O legislador constitucional entendeu que certos direitos,

designadamente o direito à vida, o direito à integridade física e moral das pessoas eram

absolutamente irrestritíveis em sede de processo penal. Assim, na lição de JJ. Gomes

Canotilho, estão proibidos, desde logo, os meios de prova “que representem grave

limitação da liberdade de formação e manifestação da vontade do arguido,

transformando-o em meio de prova contra si próprio”. (CANOTILHO, 1993, P. 207).

Embora o agente provocador não seja um meio de prova, ao contrário do agente

infiltrado, Susana Aires de Souza sustenta a invalidade daquilo que for produzido pelo

agente provocador, pois impede a livre formação e manifestação da vontade do

instigado. (SOUSA, 2003, p. 1212) Inerente ao regime das proibições da prova está a

crença na existência de limites intransponíveis à descoberta da verdade material e à

perseguição penal em homenagem aos valores jurídicos conquistados com o Estado de

Direito, designadamente os direitos do indivíduo. Contudo, ainda de acordo com

Susana Aires de Sousa, esta conquista tem sido questionada por aqueles que, “com base

no reconhecimento da eficácia funcional da justiça penal enquanto bem jurídico de

dignidade constitucional, têm advogado o sacrifício dos direitos fundamentais, maxime

da intimidade privada, em sede de produção e valoração da prova, na luta contra a

criminalidade mais grave e em nome da justiça penal, segundo um princípio de

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ponderação de interesses”.53 (SOUSA, 2003, p. 1212) Em conclusão: embora não haja

um critério universal acerca dos meios enganosos de prova, que varia segundo hábitos e

costumes de cada sociedade, influenciando diferentemente cada ordenamento jurídico, é

lícito afirmar-se (e sem medo de esbarrar em visão etnocêntrica) que está proibida a

obtenção de provas através da “perturbação da vontade e da liberdade das pessoas

levada a cabo por constrangimento físico (tortura) ou por ofensa à integridade moral,

enquanto influência, manipulação ou mesmo pré-determinação do processo interior de

livre decisão sobre a informação probatória a prestar (meios enganosos)”. (SOUSA,

2003, p. 1216)

Portanto, o uso do agente provocador resulta não apenas no ferimento de

princípios caros à sociedade (como a moral, a ética, a verdade, etc..), que estão na base

de edificação de um Estado democrático de direito, como também tem reflexos no

âmbito constitucional. É injustificável a violação de direitos individuais através deste

tipo de expediente persecutório. Não há “razões de Estado” que permitam concluir pela

imprescindibilidade do uso da provocação, mesmo porque há alternativas para conduzir

investigações penais, não cabendo ao Estado romper a barreira da legitimidade, quiçá da

legalidade.

Com base nesta mesma linha de consideração tem sido questionada não apenas

as prisões perpetradas contra os provocados, mas também as provas porventura obtidas

durante a ação do agente provocador. É que o ordenamento jurídico proíbe a adoção de

métodos enganosos de produção de prova. Ao contrário das escutas telefônicas e da

infiltração de agentes, o uso de agentes provocadores não é objeto de regulamentação

legal e nem obedece a qualquer critério de segurança jurídica. Sendo assim, é de se

concluir que, acaso o agente provocador venha a colher informações ou dados

importantes no exercício da sua atividade, terá este que retransmiti-los às Autoridades

Públicas antes da ação provocada porque, após o fato, nada que dele resulte poderá ser

aproveitado.

Muitas dúvidas têm surgido em torno da figura do agente infiltrado. Sabe-se que,

durante uma infiltração, é possível que o policial venha a cometer ou provocar crimes. E

53 A idéia da eficácia da justiça criminal como um elemento do próprio Estado de Direito tem

intensificado a “dramatização da violência”, nas palavras de Hassemer, “convertendo tendencialmente o

delinquente em inimigo e o direito penal em direito penal de inimigos”. (Apud SOUSA, 2003, p. 1212)

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isto tem servido de base para uma certa associação com a figura do agente provocador.

Ocorre que, como veremos a seguir, as figuras guardam diferenças marcantes, que

geram reflexos de relevo na apreciação das provas obtidas por cada um desses

personagens. Passemos, pois, à análise do agente infiltrado e da questão da investigação

“encoberta”, categoria jurídica a qual o agente provocador é, com freqüência, associado.

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6. O agente infiltrado e a questão da investigação encoberta

Tem sido comum na doutrina equiparar o agente provocador ao chamado

“agente infiltrado”, a ponto de inscrevê-los numa mesma categoria jurídico-penal, num

conceito genérico de “atividades encobertas”, incumbidos da realização de

investigações policiais. Mas, diga-se desde o início, as figuras são ontologicamente

distintas.

Um dos motivos da confusão talvez seja a recentíssima previsão da infiltração

policial no ordenamento jurídico brasileiro. O termo “infiltração” na legislação penal

brasileira só surgiu com a edição da Lei 10.217, de 2001, que inseriu os dois últimos

incisos do artigo 2.º da a Lei 9.034/1995 (apelidada de “lei das organizações

criminosas”54). O inciso V prevê a possibilidade do uso de agentes infiltrados. A nova

lei de entorpecentes promulgada sob o n.º Lei 10.409, de 2002, também manteve a

figura do agente infiltrado, inscrevendo, no seu artigo 33, que a infiltração terá por

objetivo a obtenção de informações sobre associações criminosas. (ROCHA, 2002, p.

50) As figuras do agente infiltrado e do agente provocador apresentam distinções não

apenas em sua finalidade, mas também pelo seu modo de atuação e até a relevância

causal da ação.

A primeira importante distinção é a finalidade (aspecto subjetivo) da atuação de

cada um dos agentes. Segundo a concepção clássica, o provocador tem a finalidade de

punir, prendendo, o sujeito provocado; ao passo que a ação de infiltração visa à

obtenção de provas de uma determinada infração penal.

54 Lei 9.034/95: “Art. 2º: Em qualquer fase de persecução criminal que verse sobre ação praticada por organizações criminosas são permitidos, além dos já previstos na lei, os seguintes procedimentos de investigação e formação de provas: I - (Vetado). II - a ação controlada, que consiste em retardar a interdição policial do que se supõe ação praticada por organizações criminosas ou a ela vinculado, desde que mantida sob observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz do ponto de vista da formação de provas e fornecimento de informações; III - o acesso a dados, documentos e informações fiscais, bancárias, financeiras e eleitorais. IV - a captação e a interceptação ambiental de sinais eletromagnéticos, óticos ou acústicos, e o seu registro e análise, mediante circunstanciada autorização judicial; V - infiltração por agentes de polícia ou de inteligência, em tarefas de investigação, constituída pelos órgãos especializados pertinentes, mediante circunstanciada autorização judicial. Parágrafo único. A autorização judicial será estritamente sigilosa e permanecerá nesta condição enquanto perdurar a infiltração".

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É possível que o infiltrado tenha o fim de prender o chefe da quadrilha, por

exemplo. Mas a sua postura é eminentemente investigativa, e não provocativa. Mesmo

que queira a prisão do autor mediato (mandante), caberá apenas ao infiltrado a reunião

de informações e dados que permitam o (futuro) desmantelamento da organização

criminosa pela Autoridade Policial. O fim de punir se revela assim remotamente, ao

contrário do que sucede com o provocador. Este, como vimos, quer a imediata prisão do

autor. Esta separação já foi bem delineada na doutrina. Salama anota que o provocador

trata de provocar a comissão do delito, ao passo que o infiltrado tem por objetivo

precípuo reunir provas e descobrir o autor de um delito já cometido, razão pela qual

“quedan descartados los casos en los que no se trata de provocar la comisión de un

delito, sino de descubrir el ya cometido”. (Apud DEVESA, 1979, p. 755) Isto é, se não

se trata de provocar a comissão de um crime, não há que se falar em agente provocador,

pois este por definição não visa investigar uma infração já cometida.

A segunda importante distinção está no modo de atuação (aspecto objetivo). O

provocador tem atuação positiva, uma ação (mesmo porque não se admite instigação

por omissão); enquanto que o infiltrado deve atuar de modo reservado, mais ou menos

passivo, de forma a que possa prosseguir no meio criminoso a sua atividade de

“espionagem”. Isto é, a infiltração deve se limitar a colher dados, descobrir

informações sigilosas, e observar atentamente o funcionamento da estrutura criminosa,

sem incentivar a prática de delitos. Este aspecto é bem salientado por Luiz Otávio de

Oliveira Rocha, ipsis literis:

difere o agente infiltrado do agente provocador na medida em que este age

de forma positiva, gerando o delito mediante a provocação de vontade

delitiva antes inexistente, enquanto que o infiltrado atua de modo passivo

(ainda que, naturalmente, possa atuar como provocador), presenciando o

desenrolar das atividades criminosas de um grupo organizado com o fim de

obter informações, coletar provas e, de forma mediata, prevenir a prática de

delitos. (ROCHA, 2002, p. 55).

A terceira diferença está relevância causal da ação dos agentes na produção do

resultado. Atuando ativamente na determinação da vontade do sujeito provocado, a

conduta do agente provocador se insere na causalidade do crime (teoria da equivalência

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das condições). No entanto, o agente infiltrado deve, por definição, manter-se como

observador privilegiado, não cabendo a ele tomar parte de qualquer ação delituosa.

Não se ignora que, por vezes, durante a infiltração, o agente possa vir a participar ou até

mesmo provocar a comissão de um delito. Mas, nesse caso, ele estaria extrapolando o

objetivo da sua atividade. Ademais, os limites de atuação do agente infiltrado deverão

estar bem definidos na autorização judicial.

Por ora, basta-nos concluir que o provocador age de forma ativa, instigando o

provocado para dar início à execução com o objetivo de prendê-lo no momento do fato;

ao passo que o infiltrado realiza investigação velada, de forma passiva e encoberta, com

o fim de colher dados e informações sobre um fato pretérito ou sobre o funcionamento

de uma quadrilha. Assim é que podemos chegar ao conceito de agente infiltrado como

membro da polícia ou agente de inteligência que se insinua nos meios em que se

praticam os crimes, com ocultação de sua qualidade, de modo a ganhar a confiança dos

criminosos, com vista a obter informações e provas contra eles, mas sem os determinar

à prática de infrações. Segundo Alberto Silva Franco o agente infiltrado é um

“funcionário da polícia que, falseando sua identidade, penetra no âmago da organização

criminosa para obter informações e, desta forma, desmantela-la”. (SILVA FRANCO,

2001, p. 56) Para Luiz Otávio de Oliveira Rocha, a infiltração de agentes consiste em

“atribuir a agentes policiais a tarefa de inserir-se no seio de organizações criminosas,

fazendo-se passar por membros da organização, com o propósito de facilitar a

responsabilização criminal dos respectivos componentes”.(ROCHA, 2002, p. 55)

Historicamente, o agente infiltrado finca suas raízes na figura do V. Mann, termo

cunhado pela doutrina alemã nos anos 80 para designar o conjunto de atividades

encobertas.55 Muñoz Sanches entende o V. Mann não como uma figura jurídica, mas

como um modelo de ação policial contra o crime organizado. (MUÑOZ SANCHEZ,

1995, p. 43). Passemos, pois, sem maiores delongas, à análise do agente infiltrado tal

como inserido na lei brasileira.

55 Não há acordo sobre a leitura da expressão “V. Mann”. A abreviatura conduz a diferenciações. Geralmente se lê Vertrauen Mann (homem de confiança), mas pode-se entender também como Verbindung (conexão) ou Verrat (traição). Para alguns o termo designa pessoa que traz informações confidenciais; outros entendem que o V. Mann é apenas aquele que ajuda os órgãos de segurança por algum tempo, mantendo em segredo sua identidade e a de seus mandatários.

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6.1. A figura do agente infiltrado na lei penal brasileira

Antes de iniciarmos o estudo das características do agente infiltrado, vejamos as

razões de sua inserção na lei brasileira. Luiz Otávio de Oliveira Rocha assevera que a

introdução da figura do agente infiltrado na nossa legislação penal decorre de exigência

da comunidade internacional, em razão do incremento da criminalidade organizada de

âmbito transnacional. Trata-se, a rigor, da admissão de modernas técnicas de

investigação com vistas a “aumentar o grau de eficiência da repressão” às atividades

desses agrupamentos. (ROCHA, 2002, p. 50). Com efeito, o Brasil admitiu o uso da

infiltração em cumprimento a compromisso internacional assumido por ocasião da

assinatura da Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada

Transnacional.56

O tema tem ocupado os debates internacionais. Na medição deste “grau de

eficiência”, é impositivo o fator “conhecimento”. O fluxo de informações inimagináveis

há 50 anos, as novas tecnologias de comunicação e transmissão de dados (e.g, a rede

mundial de computadores (a Internet) e a telefonia celular via satélite) resultaram não

apenas no aumento da quantidade de informações recebidas diariamente pelas pessoas,

mas também, na área criminal, na sofisticação das atividades da criminalidade

econômica. Assim é que o paradigma da busca do conhecimento se impôs também

sobre os membros dos órgãos de persecução penal. A cada reunião de cúpula, os líderes

dos países “centrais” exigem a criação de novas técnicas de prevenção e repressão aos

ilícitos penais cometidos pelas “organizações criminosas”. Não podemos avançar sem

antes lançarmos os olhos sobre esta categoria jurídica (ainda mal definida) da

organização criminosa.

A “organização criminosa” assumiu o centro dos debates políticos-criminais não

apenas no Brasil, mas também em diversos países democráticos. Por aqui, proibiu-se

sua atividade em lei editada em 1995, ensejando ainda uma série de reflexões em torno

da repressão aos ilícitos penais por elas perpetrados. É curioso observar, todavia, que,

embora faça parte, há mais de dez anos, do nosso ordenamento jurídico a organização

criminosa ainda não está adequadamente definida no Brasil. À míngua de conceito

56 Convenção de Palermo, ratificada por meio do Decreto n.º 5015/2004.

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legal, alguns doutrinadores se esmeram para adaptá-la a categorias oriundos de outras

disciplinas sociais. Veja-se, por exemplo, a definição do sociólogo Guaracy Mingardi:

“grupo de pessoas voltadas para atividades ilícitas e clandestinas que possuem uma

hierarquia própria e capaz de planejamento empresarial, que compreende a divisão do

trabalho e o planejamento de lucros. Suas atividades se baseiam no uso da violência e da

intimidação, tendo como fonte de lucro a venda de mercadorias ou serviços ilícitos, no

que é protegido por setores do Estado.” (MINGARDI Apud ROCHA, 2002, p. 52)

Embora muito aceita, esta definição é igualmente fluida, não abrangendo as atividades

econômicas praticadas sem violência ou intimidação, embora de altíssima danosidade

social.

Porém, tratando-se ou não de organizações criminosas, há sempre demanda por

técnicas mais eficazes de combate ao crime na pauta dos “políticos-criminais”. Pelas

mesmas razões de ordem internacional a lei brasileira prevê também o arrependimento

de criminosos (“delação premiada” – Leis 9.080/95, 9.613/98 e 9.807/99). Antes da

infiltração policial, a lei das organizações criminosas admitia a chamada ação

controlada ou entrega vigiada (inciso II, art. 2.º, da Lei 9.034/95), consistente no

retardamento da ação policial para o momento mais adequado à colheita de provas e

informações.57

Tratando-se de atividade eminentemente investigatória de colheita de provas, a

infiltração de agentes do Estado (undercover agent, agent infiltré) constitui uma das

“novas” técnicas policiais, cujo objetivo é precisamente a obtenção de informações.

Logo inserida nas legislações de diversos países58, a infiltração policial passou a fazer

parte do arsenal repressivo destinado aos grupos suspeitos de crimes de especial

gravidade, sobretudo no âmbito do terrorismo e do controle sobre o tráfico de drogas.

Na lei brasileira, a infiltração de agentes somente é possível em investigações de crime

de tráfico de entorpecentes. Tratando-se de regra restritiva de direitos, não comporta 57 Nilo Batista frisa ser criticável o retardamento da iniciativa policial – a omissão de um garantidor, na visão do professor catedrático do Rio de Janeiro – permitindo a consumação de um crime. (BATISTA, 2004, p. 185) 58 Vários países regulamentaram a infiltração de agentes públicos: Alemanha: Verdeckter Ermittler – lei de 15.07.1992, que cuidou do combate ao tráfico de drogas; Argentina: Ley 24.424, de 07.12.1994, que alterou a Ley 23.737 (ley de Estupefacientes); França: Enquêteur clandestin – Code de Procédure Pénale, art. 706-32, al. 2.; México: Agente encubierto – art. 11, da Ley Federal contra la Delincuencia Organizada (LFDO), de 07.11.1996; Chile: Ley 19.366, de 30.01.1995, que regula o tráfico de estupefacientes; Espanha: Ley Orgánica n.º 5, de 03.11.1999, que alterou o artigo 282 da Ley de Enjuiciamiento Criminal; Itália: na legislação “de emergência”, editada a partir de meados da década de 1970 para o combate ao terrorismo e ao crime organizado; Panamá – Lei n.º 13, de 27.07.94.

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interpretação extensiva, nem analógica. (RANGEL, 2002, p. 124). Este meio de

investigação e de coleta de provas tem caráter excepcional, não se justificando nenhum

alargamento, caso contrário, como frisa Alberto Silva Franco, “se corre o risco, o

perigo, de exceção em exceção, colocar o processo penal do Estado Democrático de

Direito na rota do desvio de toda e qualquer regra, o que afinal significa um desvio sem

volta, um irrefreável retrocesso”. (SILVA FRANCO, 2001, p. 584)

Além de limitar aos crimes de drogas, a lei brasileira estabeleceu que a

infiltração só pode ser autorizada pelo juiz em decisão circunstanciada, ou seja, que

deverá fixar o objeto e o conteúdo da atividade do agente infiltrado.59 Mas, quando é

possível ao juiz concedê-la? Para Luiz Otávio de Oliveira Rocha, é consectário lógico

dos pactos internacionais de proteção aos direitos civis firmados pelo Brasil que a

infiltração (medida violadora de tais direitos) só possa ser permitida quando estiverem

presentes os seguintes requisitos: (i) haja fundada suspeita de prática de infração penal;

e (ii) que haja previamente instaurado procedimento investigatório formal. (ROCHA,

2002, p. 54). Porém, entendemos que somente a fundada suspeita e a prévia instauração

de inquérito não são suficientes para permitir a infiltração. De acordo com o Tribunal

Europeu de Direitos Humanos (TEDH), ao interpretar o artigo 8.º do Convênio Europeu

de Direitos Humanos de 195060, a ingerência do Estado na vida privada dos cidadãos só

pode se justificar quando concorram três requisitos: (a) que tal ingerência esteja prevista

em lei (legalidade); (b) que a finalidade da intervenção seja legítima (como, por

exemplo, o combate à criminalidade grave); e (c) que em uma sociedade democrática

seja considerada como a alternativa necessária para o atingimento de tal finalidade,

segundo uma relação entre os custos (jurídicos) e os benefícios (para os direitos e

liberdades das pessoas afetadas pelo crime) postos em conflito.

Disto resulta que não basta a previsão legal e a fundada suspeita, ou sequer a

gravidade do crime, é imprescindível que a infiltração seja a última alternativa (ou a

59 Também na Argentina e na Espanha somente o juiz pode autorizar. Mas na Espanha, em caso de urgência, o MP tem o poder de conceder a infiltração, o que nos parece absolutamente inapropriado em face da inequívoca restrição de direitos individuais, como a vida privada e a intimidade. 60 Art. 8.º. “1. Toda pessoa tem direito a que seja respeitada sua vida privada em familiar, seu domicílio e sua correspondência. 2. Não poderá haver ingerência da autoridade pública no exercício desses direitos, senão no caso em que esta ingerência seja prevista em lei e, em uma sociedade democrática, seja considerada necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, o bem-estar econômico do país, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a proteção da saúde ou da moral ou a proteção dos direitos e liberdades dos demais”.

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única forma possível) de produzir a prova. Isto é, o juiz só estará autorizado a conceder

a infiltração se ficar claro que não há outro meio de provar o fato.61

E ainda, por infringir direitos individuais, a decisão deve atentar para o

estabelecimento de limites estreitos à ação do infilitrado. Luiz Otávio de Oliveira

Rocha ressalta que a resolução do juiz “deverá fazer referência aos instrumentos de

proteção cabíveis (identidade e domicílio falsos, indicação da(s) pessoa(s) que servirá

como intermediário para a manutenção de contatos – normalmente o superior

hierárquico do policial infiltrado -, descrição dos meios a serem empregados – veículos,

armas, etc.- e, principalmente, dos direitos fundamentais que poderão ser violados no

curso das investigações, com a gravação de imagens ou conversações, “grampos”

telefônicos, violação de correspondência etc, bem como fixar prazo inicial de duração

da medida”. (ROCHA, 2002, p. 57) Com efeito, a justa apreciação jurídica do

resultado da infiltração dependerá muito do grau de precisão dos dados registrados no

despacho do juiz.

Em alguns países, a lei concedeu ao Ministério Público o poder de autorizar a

infiltração de agentes.62 Alguns autores brasileiros sustentam que esta solução também

deveria ser adotada pelo Brasil, a fim de assegurar o sistema acusatório. A infiltração

não deve passar pelo crivo do juiz, segundo sustentam, para não comprometer seu dever

de imparcialidade. Paulo Rangel chega a sustentar a inconstitucionalidade da

intervenção judicial: “a figura do agente infiltrado da lei dos crimes organizados (Lei n.º

9.034/95) é, como a própria lei, inconstitucional, pois criada em um contexto em que o

juiz sai de sua posição de sujeito processual imparcial garantidor para se tornar o

famigerado inquisidor, o colhedor de provas, o parcial”. (RANGEL, 2002, p. 124)

Porém, se é correto afirmar a inconstitucionalidade da Lei dos Crimes Organizados63,

não podemos, de outro lado, endossar a crítica do autor à prévia autorização judicial

para realizar a infiltração de agentes.

61 Infelizmente tem sido comum encontrar decisões judiciais concessivas de medidas investigatórias igualmente violadoras dos direitos individuais (e.g, interceptação telefônica), sem a necessária demonstração da sua indispensabilidade. 62 P. exemplo: Itália, Alemanha, França e Panamá (Lei n.º 13, de 27.07.94). Em Portugal, a infiltração policial foi prevista no DL n.º 15/93, depois aditado pela Lei n.º 45, de 03.09.96. 63 Para uma análise mais aprofundada das razões da inconstitucionalidade da Lei n.º 9.034/95, v. Luiz Flavio Gomes. In: Crime organizado – enfoque criminológico e jurídico – lei 9.034/95 – e político-

criminal. 2a. ed. SP: RT, 1997.

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O controle judicial se impõe para evitar o arbítrio policial e, sobretudo, assegurar

o respeito aos direitos das pessoas objeto da operação. Isaac Sabbá Guimarães chama

atenção para o risco do arbítrio da Autoridade Policial: “em primeiro lugar, o controle

judicial da providência investigatória retira à autoridade policial o pleno poder

discricionário de investigar e, por via de conseqüência, minimiza as hipóteses de

arbitrariedade. Em segundo lugar, se a infiltração de agente da polícia depende de

autorização do juiz, isto implica que preexista um pedido formulado pela autoridade

policial que, logicamente, deverá fundamentar as suspeitas.” (GUIMARÃES, 2002, p.

31). De outro lado, entendemos inadequada a pretendida outorga ao Ministério Público

do poder de autorizar a infiltração policial porque: (i) para além dos indícios de autoria

e materialidade delituosas (não pode ter como suporte meras suspeitas íntimas da

autoridade policial), o pedido deverá se pautar na absoluta indispensabilidade deste tipo

de investigação; e (ii) porque o MP atuará como parte na futura persecução penal em

Juízo, sendo dever de ofício do magistrado garantir o respeito aos direitos fundamentais

da intimidade e vida privada (art. 5º, X, CR). Ademais, a lei prevê outras medidas

cautelares de investigação penal que dependem de autorização da Justiça (e.g, quebra de

sigilo bancário), não vislumbrando qualquer desarmonia no sistema acusatório em razão

da exigência de intervenção judicial

Mesmo com a exigência de autorização judicial surgem questões de difícil

solução. Por exemplo, após o deferimento da infiltração, como será exercido eficaze

controle sobre as informações coletadas e, até mesmo, sobre as ações levadas a efeito

pelos agentes infiltrados? Geraldo Prado adverte que é indiscutível que a infiltração

poderá representar, na prática, uma verdadeira autorização em branco, outorgada pela

Justiça, “para que o agente infiltrado ingresse nos mais variados domicílios, suspeitos

ou não de abrigar provas de infrações penais, independentemente do exame judicial

prévio de estrita necessidade, adequação e proporcionalidade em cada oportunidade”.

(PRADO, 2002, p. 136). O agente infiltrado não está autorizado a cometer delitos e não

pode extrapolar a finalidade investigativa de coleta de elementos de uma certa

quadrilha. Porém, resta saber como serão estabelecidos esses mecanismos de controle.

Outra crítica feita à lei brasileira é a possibilidade jurídica de infiltração de

agentes “de inteligência”. No Brasil, o exemplo mais comum é o de funcionários da

Agência Brasileira de Inteligência (ABIN). À primeira vista, não haveria justificativa

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para a infiltração de agentes de inteligência simplesmente porque estes não são

incumbidos da apuração de crimes. A teor da Constituição Federal, é exclusiva das

Polícias (civil e federal) a atribuição para realizar investigações penais.64 Por isto, Luiz

Otavio de Oliveira Rocha questiona a sua constitucionalidade: “é de duvidosa

constitucionalidade a permissão contida na Lei 10.217/01 de atuação de ´agentes de

inteligência´ (aludindo a agentes de serviço de informação) como ´infiltrados´, na

medida em que a tais agentes não são em regra cometidas funções de polícia judiciária

e, desse modo, não estão legitimados a coletar provas voltadas a futura utilização em

processo penal, única causa legítima capaz de fundamentar as violações à intimidade e

outros direitos fundamentais que implica a atividade de infiltração”. (ROCHA, 2002, p.

54).

A nosso ver, a previsão legal de infiltração de representantes do Estado sem

qualquer atribuição legal para investigar delitos bem denota o espírito invasivo dos

Governos atuais. Esta é a brecha por onde operam os “controladores sociais” que (cada

vez mais) se valem do aparato criminal. Loïc Wacquant chama atenção para a

criminalização da marginalidade. (WACQUANT, 2001, p. 30) A política social do

Estado para a massa crescente de pobres (excluídos da economia de mercado) se

transformou em política penal. Não é à toa o sucesso das políticas totalitárias “tolerância

zero” e “vidraças quebradas”. Por isso, é compreensível que o movimento de expansão

do Estado penal seja feito às custas das garantias fundamentais. A permitida infiltração

de agentes de governo, em cujo ofício, repita-se, não está incluída a investigação de

crimes, serve aos interesses deste Estado penal que aos pobres nada oferece, a não ser o

rigor da lei. Como mais um instrumento de controle social-penal, a infiltração se

dedicará (como é habitual) às camadas mais baixas. Aliás, a infiltração é um bom

exemplo desta dedicação exclusiva aos pobres. Este mecanismo de investigação foi

previsto aqui, como dissemos, apenas para o tráfico de drogas, que se desenvolve

diariamente entre os pobres dos morros cariocas ou das periferias de São Paulo.65 A

limitação do uso desta técnica policial ao delito de drogas pode nos transmitir duas

64 Até a apresentação deste trabalho, o Plenário do Supremo Tribunal Federal ainda não havia se posicionado definitivamente quanto à questão da investigação direta do Ministério Público, que é objeto de questionamento no HC 85.011, atualmente com pedido de vista do Min. Cezar Peluso. 65 Para uma investigação detalhada sobre o processo de criminalização sofrido por adolescentes moradores dos bairros pobres das periferias, v. Vera Malaguti Batista, Difíceis ganhos fáceis – drogas e

juventude pobre no Rio de Janeiro. RJ: ed. Freitas Bastos, 1998.

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mensagens: somente o tráfico constitui crime de especial gravidade ou somente o tráfico

deve ser reprimido com especial gravidade. Ninguém duvida de que a alta

criminalidade econômica esteja inserida num (amplo) conceito de organização

criminosa e cause elevadíssimos prejuízos financeiros ao Estado, bem como danos

irreparáveis a diversos bens jurídicos coletivos, como o Meio Ambiente. Entretanto, a

julgar pela lei de infiltração, esta modalidade de ilícito penal não merece o mesmo

“rigor investigatório” que o tráfico ilícito de entorpecentes. Isto é, independentemente

da lesividade de sua conduta, as grandes indústrias poluentes jamais poderão ser

“freqüentadas” por agentes infiltrados, pois a lei não previu tal modalidade

investigatória aos crimes ambientais. Quer dizer: se de um lado o Estado penal exige (e

impõe) mecanismos punitivos mais eficientes, de outro estabelece vedações

injustificáveis e incoerentes com os seus próprios fundamentos iniciais.

Um aspecto importante é a perspectiva de cooperação internacional. Na Europa,

os membros da União Européia estão ajustando suas legislações para possibilitar a

interação com agentes de outros países. Logo após a Ley Orgânica n.º 05/99, os

policiais espanhóis passaram a clamar por alterações para que fosse permitida a atuação

de agentes infiltrados oriundos de forças policiais estrangeiras, sob o argumento de que

sua utilidade se faz patente justamente nas investigações afetas às ações criminais de

caráter transnacional.66 (ROCHA, 2002, p. 58) A lei brasileira, todavia, tornou ilegal a

infiltração de agentes estrangeiros.

Outro ponto polêmico é a licitude das provas obtidas pelo agente infiltrado.

Parte da doutrina considera lícita a prova, salvo se o agente provocar a comissão do

delito. Nesse sentido, alinham-se Damásio de Jesus e Fábio Ramazzini Bechara,

reiterando que a prova somente será ilícita “nos casos nos quais o agente induz o sujeito

provocado a praticar a infração penal, ou seja, quando o seduz enganosamente para o

cometimento do delito.” (JESUS, 2005, p. 10) Considerando a variedade de condutas e

atividades que o agente infiltrado poderá adotar uma vez inserido numa organização

criminosa, cremos que a provocação de um delito não poderá ser o único critério para

66 Em 05.12.1999, o diário “EL PAÍS” noticiou, na página 23, que o então Presidente do Governo Espanhol, José Maria Aznar e o ex primeiro-ministro alemão, Gerhard Schoröder, após reunião mantida no dia 4 de dezembro de 1999, declararam formalmente que “Espanha e Alemanha empreenderão máximo esforço no sentido de permitir que os agentes infiltrados possam operar por toda União Européia”. (ROCHA, cit., p. 58)

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anular a prova por ele colhida. Como vimos, a decisão judicial que autorizará a

infiltração deve fixar os limites de atuação de cada agente. Caso não o faça, a decisão

será nula e não produzirá qualquer efeito jurídico, por clara violação ao artigo 93, inciso

IX, da Constituição Federal do Brasil. De outro lado, uma vez fixados os limites de

cada agente infiltrado, bem como (e principalmente) os limites de violação dos direitos

individuais das pessoas investigadas, toda e qualquer ação que extrapole esses limites

acarretará a invalidação da prova. Por exemplo, se numa dada operação de infiltração o

agente violou correspondência sem autorização legal, a informação nela contida não

poderá servir de base a uma futura imputação penal, sem embargo da responsabilidade

penal do agente infiltrado decorrente da prática do crime do artigo 151 do Código Penal

brasileiro (violação de correspondência). Portanto, a validade da prova está ligada ao

estrito cumprimento das tarefas delegadas pelo juiz e das possibilidades por ele

expressamente previstas. Caso contrário, a violação de direitos fundamentais não

constituirá restrição legítima, como antes afirmado, mas implicará, sim, num total

esvaziamento do conteúdo essencial da infiltração, mostrando-se absolutamente

desproporcional e igualmente intolerável qualquer aceitação.

6.2. A responsabilidade penal do agente infiltrado.

Questão de altíssima complexidade é a da responsabilidade do agente infiltrado.

Embora tenha finalidade exclusivamente investigatória, a infiltração pode dar lugar à

prática de crimes; e.g, quando o agente, presenciando o cometimento de um crime,

deixa de prender em flagrante o seu autor ou quando o agente infiltrado praticar crime

que seja relacionado com o objeto da investigação; praticar crime como condição para

ser aceito no grupo (os chamados “rituais de iniciação”), se exceder na prática desses

crimes; ou até o agente praticar crime em seu próprio proveito.

Nos Estados Unidos da América, onde a infiltração é praticada há muitos anos e

em larga escala, o undercover agent conta com uma ampla liberdade de atuação,

inclusive no que diz respeito a cometer crimes. Com efeito, raros são os casos em que a

lei não excluirá a responsabilidade penal do agente norte-americano. Segundo Carlos

Henrique Edwards, a responsabilidade não será excluída apenas nos delitos contra a

vida e os praticados pelo agente em seu próprio benefício. (EDWARDS, 1996, p. 85)

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No caso do Brasil, o projeto que deu origem à Lei n.º 10.217/2001 chegava a

prever, como anota Alberto Silva Franco, a exclusão da antijuridicidade da conduta do

agente policial, em relação às ações por ele empreendidas no exercício de suas

atividades. (SILVA FRANCO, 2001, p. 586) Mas, com o veto deste trecho,

estabeleceu-se uma miríade de soluções para o problema. Um único acordo entre os

autores talvez seja no caso em que o infiltrado provoca a ação delituosa. Sendo assim,

por atuar como agente provocador, que dá ensejo a um delito putativo (ou a um crime

impossível, na lição dos tribunais), nenhuma punição (de natureza penal) adviria para o

agente infiltrado. Por todos, valemo-nos das palavras de Damásio de Jesus: “caso o

agente infiltrado provoque a ação ou omissão de uma ou mais pessoas que integram a

organização criminosa, induzindo e interferindo diretamente no ânimo decisivo delas, a

hipótese, nesse caso, seria de flagrante preparado ou delito provocado, e o agente

infiltrado seria responsabilizado penalmente pelo abuso cometido, mas ninguém

responderia pela infração penal pretendida. Aqui é manifesta a conduta determinante do

agente para a prática do crime”. (JESUS, 2005)

Porém, fora da hipótese de provocação, não há consenso na doutrina quanto à

natureza jurídica da exclusão da responsabilidade penal do agente infiltrado, o que

acarretou cisão em duas correntes de pensamento. Um primeiro grupo de comentadores

considera que o agente infiltrado é punível em qualquer caso. Luiz Flávio Gomes, por

exemplo, posiciona-se radicalmente contra a exclusão da responsabilidade penal do

infilitrado. (GOMES, 1997, p. 114) Assim também se posiciona Isaac Sabbá Guimarães,

para quem “a infiltração de agentes não os autoriza à prática delituosa, neste particular

distinguindo-se perfeitamente da figura do agente provocador.”. (GUIMARÃES, 2002,

p. 15). Sustenta-se aqui que o infiltrado, antes de induzir outrem à ação delituosa, ou

tomar parte dela na condição de co-autor ou partícipe, ou mesmo praticar delito

autônomo (v.g., comprar entorpecente para fins de uso), limitar-se-á ao objetivo de

colher informações sobre operações ilícitas, as quais serão repassadas à autoridade que

preside às investigações com o fim de traçar a tática de persecução e elucidação do

crime.

Já no lado daqueles que se dedicam a isentar de responsabilidade penal o agente

infiltrado, é possível identificar as seguintes soluções: (a) trata-se de uma causa de

exclusão de culpabilidade, por inexigibilidade de conduta diversa. Isso porque, se o

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agente infiltrado tivesse decidido não participar da empreitada criminosa, poderia ter

comprometido a finalidade perseguida com a infiltração, ou seja, não havia alternativa

senão a prática do crime. Levanta-se, também, a idéia da exclusão da culpabilidade por

obediência hierárquica a ordem não manifestamente ilegal; (b) escusa absolutória: o

agente infiltrado age acobertado por uma escusa absolutória, na medida em que, por

razões de política criminal, não é razoável nem lógico admitir a sua responsabilidade

penal. A importância da sua atuação estaria diretamente associada à impunidade do

delito perseguido; (c) trata-se de causa excludente da ilicitude, uma vez que o agente

infiltrado atua no estrito cumprimento do dever legal; e, por fim, (d) a atipicidade penal

da conduta do agente infiltrado. Esta última solução, a da atipicidade, nos possibilita

ingressar por duas linhas de raciocínio distintas.

De um lado, a atipicidade poderia derivar da ausência de dolo por parte do

agente infiltrado, uma vez que ele não age com a intenção de praticar o crime, mas

visando auxiliar a investigação e a punição do integrante ou dos integrantes da

organização criminosa. Faltaria, assim, imputação subjetiva, mas esta linha nos parece a

princípio insustentável, salvo em caso de vício de vontade por coação ou ameaça grave.

De outro lado, a atipicidade poderia derivar da ausência de imputação objetiva, porque a

conduta do agente infiltrado consistiu numa atividade de risco juridicamente permitida,

portanto sem relevância penal. Esta solução se aproxima à apresentada neste trabalho

para a responsabilidade penal do agente provocador.

No entanto, assim como questionamos a legitimidade do Estado permitir que

seus prepostos provoquem o crime, sob qualquer pretexto, a lei também não permite que

o agente infiltrado cometa crimes. Sua finalidade é exclusivamente investigatória. Não

havendo permissão legal, cujo contrário seria absurdo, tampouco o juiz pode autoriza-lo

a violar a lei penal. Caso o faça, o infiltrado estaria criando um risco juridicamente

desaprovado e infringindo a lei.

6.3. Críticas ao uso do agente infiltrado

Assim como o agente provocador, o uso do agente infiltrado recebe muitas

críticas da doutrina. Isaac Sabbá Guimarães, todavia, saca um inusitado argumento a

favor da infiltração: diminuirá o uso dos agentes provocadores. Ipsis literis: “a

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regulamentação da figura do agente infiltrado tem alcance muito maior do que a

disponibilização de um novo e eficaz meio investigatório: é, também, a condição de

eliminarmos a antiga praxe policial do agente provocador – a todas as luzes,

inconcebível para o modelo de Justiça penal de um Estado democrático de direito – sem

que renunciemos à constante necessidade de debelar a criminalidade de alto potencial

ofensivo, pelo menos por agora restrita aos crimes da Lei Antitóxico”. (GUIMARÃES,

2002, p. 15). Contudo, apesar de concordarmos com a estimada eliminação da “antiga

praxe policial”, não cremos sinceramente na possibilidade da infiltração ter qualquer

reflexo sobre a freqüência com que policiais provocarão suspeitos à prática de delitos.67

Uma ácida crítica sobre o uso do agente infiltrado teceu Geraldo Prado. Para o

autor, a adoção da técnica de infiltração de agentes é inconstitucional por clara violação

ao direito à autodeterminação informativa. Versando sobre o direito à autodeterminação

informativa, o autor diz se tratar do “direito de o sujeito sobre o qual são armazenadas

informações conhecer previamente os limites de emprego futuro dessas mesmas

informações”. (PRADO, 2002, p. 135) Consoante adverte Prado, a tendência ao

acúmulo de dados e informações de pessoas, dando origem a verdadeiros dossiês de

personalidades individuais, é altamente preocupante por permitir uma permanente

devassa da vida privada das pessoas.

Para além da violação do citado direito à autodeterminação informativa, a lei

brasileira de infiltração policial é severamente criticada pela ausência de menção à

exclusão da responsabilidade penal (o único dispositivo estabelecendo a exclusão da

ilicitude, como se disse, foi vetado), bem como por não ter definido critérios objetivos

de regulamentação do emprego desta modalidade investigatória. Esta crítica é bem

sintetizada por Luiz Otávio de Oliveira Rocha:

o legislador brasileiro, contrariando a tendência que vem se firmando nas

legislações da maioria dos países democráticos, não fixou critérios básicos

para o emprego do recurso à infiltração, quer no sentido de limitar sua

utilização (via de enumeração taxativa das hipóteses em que é permitida,

fixação do tempo de duração da ação dos infiltrados e, ainda, a expressa

menção aos critérios da proporcionalidade/necessidade que devem norteá-la),

quer no sentido de viabilizá-la na prática (com a criação de mecanismos de

67 Seria ótimo acreditar que a infiltração eliminaria por completa a sórdida prática das provocações policiais, mas supomos que, na prática, isto não passará do campo imaginativo do autor entusiasmado.

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proteção aos agentes – como o direito de uso prolongado ou permanente da

identidade falsa atribuída durante a operação de infiltração, o de retirar-se para

ocupar funções diversas, temporária ou permanentemente, em caso de risco

pessoal ou aos familiares, o de engajamento exclusivamente por

voluntariedade, o de obtenção de outras vantagens funcionais etc.- e,

especialmente, da introdução de causa de justificação especial ou escusa

absolutória, para os casos em que se vislumbrar com anterioridade a hipótese

de que o agente se veja obrigado ao cometimento de determinadas infrações.

(ROCHA, 2002, p. 50)

Na ausência de dispositivos que regulamentem o recurso à infiltração, Geraldo

Prado chega a vislumbrar violações ao princípio da reserva legal (nullum crimen nulla

poena sine legem, art. 5.º, XXXIX, CF), bem como da função de garantia do tipo penal.

E vai além: segundo o autor, tais violações são de tal magnitude que a forma de

preservar a integridade da Constituição é, simplesmente, não aplicar a lei de infiltração.

(PRADO, 2002, p. 130) Máxime se a lei em comento tem o poder de autorizar

providências de intensa restrição de direitos individuais.

Afora as imprecisões da lei brasileira, o uso do agente infiltrado é criticável

também no âmbito internacional da macro-política criminal. A exemplo de várias

democracias latino-americanas, o Brasil segue a cartilha da “guerra contra o

narcotráfico”, cujo discurso, conquanto lido nas convenções internacionais, é preparado

em gabinete por tecnocratas dos “países centrais”. Essa tendência mundial muitas vezes

obedece apenas às conveniências dos Estados Unidos da América, sempre dispostos a

estender suas redes de influencia sobre os países assim chamados “periféricos”, a

pretexto de garantir as liberdades civis.68 O recurso à infiltração não foi previsto pela

lei brasileira de forma absolutamente soberana, em vista das nossas prioridades

legislativas estabelecidas. Não. A medida foi simplesmente importada, de um país cuja

família jurídica é diferente da nossa.

Como se não bastasse, tal como foi prevista na lei brasileira, pode-se afirmar

sem medo de errar que a infiltração servirá apenas para ampliar os mecanismos de

controle penal sobre os pobres. Apesar da propalada necessidade de instrumentalizar o

68 No magistral livro “De pernas por ar. A história do mundo ao avesso”. (Trad. Sérgio Faraco. Porto Alegre: L&PM, 1999), Eduardo Galeano nos mostra a falácia desse discurso de garantia de liberdades civis. A única liberdade a ser garantida, segundo satiriza o autor, é a de mercado. Para o desfrute, é claro, das poderosas empresas norte-americanas.

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Estado de aparelhos repressivos condizentes com o combate à nova criminalidade,

globalizada e bem estruturada, é evidente que, no campo da política criminal, a

infiltração de agentes revelar-se-á eficaz somente para fins de controle social, sobretudo

das camadas inferiores da sociedade, que compõem as quadrilhas comuns, da

criminalidade de rua.69 A lei não previu a possibilidade de infiltrar agentes noutras

organizações ditas criminosas, que não as que se dedicam ao tráfico ilícito de drogas.

Ou seja, estão excluídos, a priori, os grupos econômicos, financeiros e industriais que

cometerem qualquer ilícito penal, independentemente da sua gravidade.

69 Do contrário, por que impedir que agentes se infiltrem nas altas organizações de cunho empresarial, com vistas à colheita de evidências de crimes ambientais ou financeiros?

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7. Conclusão

O presente estudo partiu, ao mesmo tempo, de um sentimento de aversão e uma

curiosidade. A aversão se dirigia ao agente público que provocasse o crime, pessoa cujo

ofício compreendia a traição da confiança de outrem. E o curioso era a aparente

indiferença da doutrina sobre esta espécie de “participante” do delito, sobretudo no que

respeita às suas responsabilidades. Ao final do trabalho, permitimos alcançar uma

conclusão que, no fundo, já era intuída desde o início: o agente provocador é figura

incompatível com o sistema constitucional brasileiro, que garante o respeito a todos os

direitos da personalidade. Ao menos quando é provocado por agente público, o fato não

se coaduna com a proteção dos direitos à intimidade e à livre determinação pessoal,

ambos afetados pela ação do provocador.

Após discorrermos pelas diversas teorias da autoria, chegamos à conclusão de

que a figura do agente provocador não encerra uma nova modalidade de participação.

Não estão presentes, no caso, os elementos necessários à configuração do concurso de

agentes. Em suma: o provocador não é autor porque não tem o domínio final do fato;

tampouco é partícipe, porque lhe falta o desígnio comum de participar de crime alheio.

Isto porque, ao contrário do executor, o agente provocador só quer a prisão.

A questão da responsabilidade penal do sujeito provocado foi apresentada nos

moldes do que hoje se entende no Brasil. A Súmula 145 do Supremo Tribunal Federal

nos aliviou do temor de ver punido o sujeito provocado, que age sem a livre

determinação da vontade e por instâncias de outrem. Mas, lançando os olhos sobre

algumas construções doutrinárias, verificamos que é possível, sim, a punição dos

provocados. Só depende do crime. Ao antecipar a tutela penal, a lei criou figuras de

delito que correspondem, na prática, a meros atos preparatórios ou, no máximo, crimes

de perigo abstrato. Assim é que a própria lei sinalizou o caminho pelo qual se contorna

hoje a súmula do Supremo Tribunal Federal, quando se admite, nos flagrantes de

drogas, punição pela antecedente posse ilegal. Por isso, enganam-se os que pensam que

a Polícia não pode forjar flagrantes. Na “guerra contra as drogas”, não convém mais

facilitar: se a lição dos antigos fecha as portas, impedindo que a Polícia provoque o

crime, a lei e a Justiça dos novos tempos abre uma janela para que isto não fique assim

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tão proibido. Afinal, se o sujeito foi provocado a entregar droga, é óbvio que, para o

fazer, ele teve de segurar a droga, ainda que por apenas alguns segundos. E é

precisamente nesta “posse anterior” por onde a Polícia e os juízes driblam a lei e

rompem o dogma do crime provocado.

Verificamos que esta não é uma construção exclusiva da nossa jurisprudência.

Vimos que o Supremo Tribunal da Espanha já está também de armas em punho contra

esse “inconveniente” de não punir os crimes provocados. Por lá têm ganhado força os

movimentos jurisprudenciais que admitem punir os provocados nas denominadas

provocaciones policiales, que, aliás, nada diferem da categoria do crime provocado.

Outro ponto abordado no presente estudo foi a distinção entre os flagrantes

preparado e esperado estabelecida pela Jurisprudência. Encontramos uma estranha

justificativa para a punibilidade dos flagrantes esperados: a de que, nesses casos, não há

induzimento por agente público. Nesta matéria, o presente trabalho permite chegar a

algumas conclusões, oferecidas à reflexões dos juristas e dos juízes acerca da questão

dos flagrantes preparado e esperado. Em primeiro lugar, vimos que o flagrante

preparado é impunível por configurar um crime impossível. Porém, à luz da doutrina do

crime impossível constatamos que a punibilidade do fato é afastada em razão da

impossibilidade de atingimento do bem jurídico. Com efeito, o crime impossível é

impunível em razão da inidoneidade absoluta (do meio ou do objeto) de causar qualquer

lesão antijurídica. Portanto, é a ausência absoluta de risco para o bem (e, não, o

induzimento) que fundamenta a impunibilidade desta categoria jurídico-penal. Disto

resultou que não há motivos para a exigência do induzimento nos casos em que a

Polícia, previamente informada, toma todas as medidas de cautela para evitar a

consumação e apenas espera de que o fato aconteça.

Em seguida, o estudo se dedicou à análise da responsabilidade penal do agente

provocador, que tem pouca repercussão na doutrina nacional. Por aqui o problema é

visto de uma forma ainda incipiente, fixando-se a noção de que a responsabilidade se

limita a título de culpa stricto sensu. Todavia, na prática, vimos que são poucos os

crimes (entre os normalmente provocados) que prevêem a modalidade culposa. Assim,

via de regra, o agente provocador ficará impunível, ainda que tenha deixado de adotar as

cautelas devidas para evitar a consumação do fato. Porém, é rica a discussão acerca do

tema na doutrina estrangeira, apesar de direcionada, na maioria dos casos, para a

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legitimação do comportamento do agente provocador. Para isto não faltam argumentos

de política criminal e “ordem emergencial”.

Em linhas gerais, o trabalho deu um panorama das principais construções

doutrinárias existentes em torno da responsabilidade do agente provocador,

demonstrando os perigos que muitas delas representam em razão da tendência de

permitir a provocação e, o que é pior, a punição dos provocados.

Por fim, restaram demonstradas as diferenças existentes entre o agente

provocador e o agente infiltrado, figura recentemente acolhida pela lei brasileira, com a

edição da Lei n.º 10.217, de 2001. O aumento contínuo do tráfico ilícito de drogas,

sobretudo através das chamadas “organizações criminosas”, e as extraordinárias

dificuldades que oferecem sua repressão, pôs em evidência a pouca eficácia das

modernas técnicas criminalísticas contra este tipo de delinqüência. O fundo de toda a

questão é a contínua tensão existente entre as mais eficazes técnicas repressivas e os

limites impostos pelo ordenamento jurídico.

Sobre a infiltração policial vimos que não basta a mera previsão legal, a fundada

suspeita e a gravidade abstrata do crime. É absolutamente fundamental que a infiltração

seja a única forma de produzir a prova. Só assim estará o juiz legitimado a concedê-la.

Entretanto, a lei brasileira permitiu a infiltração de “agentes de inteligência”,

representantes do Estado sem qualquer atribuição legal para investigar delitos. A

permissão da infiltração desta espécie de agentes denota o caráter repressivo e

fiscalizatório dos Estados. É por aí que os Governos, através dos gabinetes “de

segurança” e das agências de informação exercem a vigilância sobre os descontentes e

os excluídos da economia de mercado. Aos pobres, a única política pública que

oferecem é a da cadeia. O controle social é feito hoje com o aparato criminal, pois é

esta a função dos Estados no mundo “do mercado livre”. É o que diz, com precisão,

Eduardo Galeano:

Na era das privatizações e do mercado livre, o dinheiro governa sem

intermediários. Qual a função que se atribui ao estado? O estado deve

ocupar-se da disciplina da mão de obra barata, condenada a um salário-anão,

e da repressão das perigosas legiões de braços que não encontram trabalho:

um estado juiz e policial, e pouco mais do que isso. Em muitos países do

mundo, a justiça social foi reduzida á justiça penal. O estado vela pela

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segurança pública: de outros serviços já se encarrega o mercado, e da

pobreza, gente pobre, regiões pobres, cuidará Deus, se a polícia não puder.70

O estabelecimento de agentes provocadores e infiltrados obedecem aos mesmos

desígnios estatais. O estado tem uma missão muito clara: conter os indesejáveis. E isto

está sendo feito, e muito bem. Surgem, diariamente, “novos bens” dignos de proteção

penal, quando não se “reforça” a tutela dos antigos, sem critério, necessidade ou

qualquer perspectiva de redução de criminalidade.71 O estabelecimento de forças

policiais infiltradas e a relativização da proibição de punição dos sujeitos provocados

por ação policial constituem mais uma das novas (e eficazes) formas de atuação do

estado policialesco. Junto ao aspecto de estrita dogmática jurídico-penal coloca-se um

importante questionário político criminal.

O principal objetivo deste estudo foi o de demonstrar que as técnicas de

persecução penal, sejam por emprego do agente provocador, sejam através de agentes

infiltrados revelam um atuar autoritário e extremamente persecutório do Estado. O

limite da eficácia é o respeito aos direitos fundamentais. Com eles não se pode

transigir.

70 GALEANO, Eduardo. De pernas por ar. A história do mundo ao avesso. Trad. Sérgio Faraco. Porto Alegre: L&PM, 1999. p. 31. 71 O jornal “O Globo” publicou notícia sob o título “Aumenta punição para quem dirigir embriagado”, exaltando a remessa à sanção presidencial de projeto de lei aprovado no Congresso, que pretende aumentar a pena máxima do homicídio culposo causado por embriaguez para seis anos de detenção. (edição de 20.01.2006, p. 13) Agora, sim, ninguém mais se atreverá a dirigir bêbado. Ao menos na crença dos nossos legisladores...

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