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   RÓNAI: REVISTA DE ESTUDOS CLÁSSICOS E TRADUTÓRIOS     2013 V1.N2 pp. 79 - 93    ISSN: 2318-3446 - UFJF   JUIZ DE FORA 79 A teoria das formas de governo na Antiguidade Rodrigo Fernando Gallo 1  RESUMO: O objetivo deste artigo é traçar um breve histórico da teoria das formas de governo durante a Antiguidade, presente na obra de historiadores como Heródoto e Políbio, e filósofos como Platão, Aristóteles e Marco Túlio Cícero. A principal conclusão é que Heródoto, com o debate persa, deu início a uma importantíssima discussão pertinente à Teoria Política e à Filosofia Política    e que esses três capítulos da obra herodotiana serviram como inspiração para as tipologias clássicas das constituições. Palavras-chave: governo; constituição; Heródoto;  Histórias. Introdução Desde a Antiguidade, importantes pensadores políticos têm dedicado parte da sua obra a compreender o funcionamento das constituições, discussão que passou a ser conhecida como teoria das formas de governo. Basicamente, é uma análise do governo de um, de poucos ou da maioria. Usando termos empregados comumente na Ciência Política, seria uma questão de responder a uma pergunta: “quem governa”, ou seja, quem são os membros que formam o governo    e, consequentemente, quantos são esses membros. O cientista político italiano Norberto Bobbio defende que a teoria das formas de governo surgiu com Heródoto, na passagem do debate persa (  His., III, 80-82). Nesse trecho da obra, três nobres persas, Dario, Otanes e Megabizo, discutem qual deveria ser a forma de governo adotada pela Pérsia após a deposição de Smérdis   que seria um falsário. Otanes argumentou primeiro, defendendo a adoção de um regime popular; em seguida, Megabizo arguiu sobre os benefícios da oligarquia; por fim, Dario defendeu a manutenção da constituição monárquica. Segundo Bobbio, essa discussão apresenta dois aspectos distintos, um descritivo e outro prescritivo (1985, p. 33). O elemento descritivo seria criar as tipificações de cada uma 1  Mestrando pela Universidade de São Paulo   E-mail: [email protected]  

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  • RNAI: REVISTA DE ESTUDOS CLSSICOS E TRADUTRIOS 2013 V1.N2 pp. 79 - 93 ISSN: 2318-3446 - UFJF JUIZ DE

    FORA

    79

    A teoria das formas de governo na Antiguidade

    Rodrigo Fernando Gallo1

    RESUMO: O objetivo deste artigo traar um breve histrico da teoria das formas de

    governo durante a Antiguidade, presente na obra de historiadores como Herdoto e Polbio,

    e filsofos como Plato, Aristteles e Marco Tlio Ccero. A principal concluso que

    Herdoto, com o debate persa, deu incio a uma importantssima discusso pertinente

    Teoria Poltica e Filosofia Poltica e que esses trs captulos da obra herodotiana serviram como inspirao para as tipologias clssicas das constituies.

    Palavras-chave: governo; constituio; Herdoto; Histrias.

    Introduo

    Desde a Antiguidade, importantes pensadores polticos tm dedicado parte da sua

    obra a compreender o funcionamento das constituies, discusso que passou a ser

    conhecida como teoria das formas de governo. Basicamente, uma anlise do governo de

    um, de poucos ou da maioria. Usando termos empregados comumente na Cincia Poltica,

    seria uma questo de responder a uma pergunta: quem governa, ou seja, quem so os

    membros que formam o governo e, consequentemente, quantos so esses membros.

    O cientista poltico italiano Norberto Bobbio defende que a teoria das formas de

    governo surgiu com Herdoto, na passagem do debate persa (His., III, 80-82). Nesse trecho

    da obra, trs nobres persas, Dario, Otanes e Megabizo, discutem qual deveria ser a forma de

    governo adotada pela Prsia aps a deposio de Smrdis que seria um falsrio. Otanes

    argumentou primeiro, defendendo a adoo de um regime popular; em seguida, Megabizo

    arguiu sobre os benefcios da oligarquia; por fim, Dario defendeu a manuteno da

    constituio monrquica.

    Segundo Bobbio, essa discusso apresenta dois aspectos distintos, um descritivo e

    outro prescritivo (1985, p. 33). O elemento descritivo seria criar as tipificaes de cada uma

    1 Mestrando pela Universidade de So Paulo E-mail: [email protected]

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    das formas de se governar um Estado: no caso de Herdoto, o debate persa nos revela que

    as constituies seriam a monarquia, a oligarquia ou a democracia. J o aspecto prescritivo

    provm do exerccio de qualificar cada uma das formas de governo como boas ou ms,

    seguindo determinados critrios de anlise escolhidos por cada pensador, como verificar

    quais dessas constituies so inclinadas para o bem comum, quais atendem

    exclusivamente as demandas do governante, etc. O filsofo italiano ressalta que essa

    qualificao se d a partir de dados extrados da observao histrica.

    Herdoto, no fim, deu incio a essa discusso to cara Teoria Poltica e

    Filosofia Poltica, e essencial para compreender a dinmica de poder dentro de um

    determinado Estado.

    1. Plato

    Um dos principais filsofos gregos a abordar esse tema iniciado por Herdoto foi

    Plato. Ateniense nascido na segunda metade do quinto sculo antes de Cristo, viveu um

    perodo posterior ao esplendor do exerccio democrtico criado por Clstenes em 507 a.C..

    Plato nasceu aps a morte de Pricles, durante o incio da Guerra do Peloponeso, e em sua

    vida adulta viu a cidade ser governada pelos Trinta Tiranos, a junta oligrquica formada do

    colapso de Atenas aps a guerra contra Esparta. Esse regime contou, inclusive, com dois

    membros de sua famlia, o primo Crtias e o tio Crmides.

    Plato que escreveu suas obras em forma de dilogo, e no em prosa dedicou

    parte do livro VIII de A Repblica para tratar das formas de governo. Neste documento h

    um debate sobre as constituies entre filsofos como Scrates, Glauco, Polemarco e

    outros, a respeito da natureza poltica do Estado.

    De acordo com a anlise do filsofo grego, existem, a princpio, quatro formas de

    governo possveis. Ele as chama de constituies inferiores:

    De minha parte, disse ele, estou realmente ansioso para aprender quais so os quatro governos que voc falou.

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    fcil, digo, satisfaz-lo, porque os governos que menciono tm nomes bem conhecidos aqui. A primeira (forma de governo), e a mais elogiada por

    muitos, o famoso governo de Creta e da Lacedemnia2; a segunda, em

    ordem de classificao e mrito, chamada oligarquia: um governo cheio

    de incontveis defeitos; vem em seguida um governo que se ope ao

    precedente, a democracia; e, finalmente, a nobre tirania, que supera todas as

    outras. a quarta e ltima doena do Estado. (PLATO, Rep., VIII, 544 c)

    Conforme pudemos observar no trecho acima, Plato, em seu dilogo, enumera

    aquelas que seriam suas quatro formas de governo inferiores, na ordem da melhor para a

    pior: timocracia, oligarquia, democracia e tirania. Logo, o governo da honra seria o melhor

    dos quatro, e a tirania o pior embora nenhum deles seja considerado ideal pelo filsofo.

    Etimologicamente, identificamos que o primeiro dos governos mencionados por

    Plato, como sendo a constituio adotada em Creta e Esparta, baseado em um arranjo

    poltico-militar que forma o governo. Bobbio (1985, p. 47) ressalta que o filsofo via

    Esparta como a Repblica ideal, embora tivesse uma falha inerente: o fato de honrar o

    guerreiro mais do que os sbios.

    A segunda forma de governo mencionada por Plato seria a oligarquia, um governo

    formado por poucos. A democracia provm da soberania popular, portanto, seria uma

    constituio baseada na participao do cidado nas decises polticas. Por fim, Plato cita

    a tirania, governo no qual o poder est concentrado nas mos do tirano um governante

    nico que no segue necessariamente a constituio e que normalmente governa para obter

    benefcios pessoais. por essa razo que o filsofo menciona a tirania de forma to

    sarcstica, ao classific-la como nobre no dilogo acima.

    Em uma passagem posterior mencionada h pouco, Plato questiona se a

    timocracia no seria um governo intermedirio entre a aristocracia e a oligarquia:

    Eu digo, este governo (timocracia) no sugere um meio termo entre a aristocracia e a oligarquia?

    Sim, seguramente. (PLATO, Rep., VIII, 547 c)

    2 Plato considera os governos lacedemnio e cretense como sendo timocrticos, ou seja, baseados na honra.

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    Logo, alm das quatro formas consideradas inferiores (timocracia, oligarquia,

    democracia e tirania), o filsofo tambm considera a existncia de uma quinta forma de

    governo, a aristocracia, que fica de fora da anlise por ser considerado um governo superior

    aos outros, bom e justo (Rep., VIII, 544 e). Este seria, teoricamente, o governo dos

    melhores motivo pelo qual colocado na relao de Plato como uma constituio

    positiva.

    Bobbio afirma que, em Herdoto, as trs formas de governo so apresentadas como

    exerccios polticos realizveis do ponto de vista dos interlocutores. A justificativa que,

    pela forma como Dario, Megabizo e Otanes apresentam suas defesas para cada uma das trs

    alternativas, fica explcito que eles de fato acreditam na possibilidade real de criar um

    Estado estvel com uma constituio monrquica (no caso de Dario), oligrquica

    (Megabizo) ou democrtica (segundo a opinio de Otanes).

    Plato, contudo, apresenta a discusso de outra forma. Bobbio argumenta que,

    segundo o ponto de vista de Plato, as formas de governo no se ajustam de modo algum a

    seu conceito de constituio ideal. Por isso, estariam fadadas ao fracasso. Isso pode ser

    explicado por duas razes: a primeira que Plato via o passado com benevolncia e o

    futuro com espanto e desconfiana; a segunda que ele viveu no perodo de decadncia da

    democracia ateniense e no qual o projeto da plis j no correspondia mais com seu

    conceito original, logo, acreditava que apenas uma constituio de fato eficaz seria capaz

    de criar uma realidade poltica concretamente estvel.

    Portanto, Plato defendia que a aristocracia era a constituio mais prxima do

    ideal. J as outras quatro seriam as degeneraes: delas, a timocracia seria o governo de

    transio entre essa constituio ideal e as trs piores de fato (BOBBIO, 1985, p. 47).

    2. Aristteles

    O principal herdeiro intelectual de Plato, Aristteles, viveu em um perodo

    posterior, j no sculo IV a.C., quando as pleis gregas j estavam em declnio. O filsofo

    viu o crescimento da Macednia como grande potncia da regio, inclusive dominando

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    praticamente todo o continente grego (com exceo do Peloponeso). Nascido em Estagira,

    em 384 a.C., Aristteles atuou como tutor de Alexandre e teve acesso a uma nova realidade

    poltica, que via a figura do rei como o chefe do Estado.

    Na obra Poltica, Aristteles argumenta que governar um exerccio de

    magistratura, portanto, como o governo detm a autoridade suprema na cidade, esse

    governo se torna a prpria constituio (Pol., III, VI, 1). Sendo assim, o filsofo grego

    afirma que toda constituio (logo, todo governo) que visa ao bem comum correto; por

    outro lado, todas as constituies cujo objetivo seja atender aos interesses pessoais dos

    governantes so defeituosas e podem ser consideradas formas de despotismo (Pol., III, VI,

    11).

    Assim, Aristteles define que todo Estado pode ser governado por uma pessoa, por

    uma parcela selecionada de cidados, ou pela maioria das pessoas residentes naquela

    cidade, e mesmo assim ser justa ou injusta, dependendo do objetivo desse governo (Pol.,

    III, VII, 1).

    Deste modo, o filsofo tipificou em sua obra seis formas de governo, trs delas

    qualificadas como sendo justas, e outras trs como sendo injustas. Na viso de Aristteles,

    as formas de governo constitucionais seriam a monarquia (ou realeza), a aristocracia e a

    politia, que so contrapostas pela tirania (desvio da monarquia), pela oligarquia (forma

    degenerada da aristocracia) e pela democracia (a verso deformada da politia).

    Ns chamamos comumente de realeza aquelas monarquias que objetivam o interesse geral, e aristocracia o governo de um pequeno grupo, e no de

    apenas uma pessoa, seja porque so os melhores no poder, seja porque

    governam com o objetivo de fazer o melhor pela cidade e seus membros;

    quando a massa governa a cidade tendo em vista o interesse geral, ns

    damos a esse governo o nome de politia, que comum a todas as

    constituies; (...) As derivaes que correspondem s constituies

    enumeradas so a tirania, desvio da realeza, a oligarquia, da aristocracia, e a

    democracia, da politia. A tirania uma monarquia que tem por finalidade

    atender os objetivos do monarca; a oligarquia os interesses dos ricos; a

    democracia, a demanda dos pobres; mas nenhum desses governos visa a

    servir o bem comum. (ARISTTELES, Pol., III, VII, 3-5)

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    Aps essa breve descrio das formas de governo, Aristteles passa a discutir mais

    profundamente os desvios constitucionais, analisando a natureza da degenerao:

    Uma tirania , conforme j dito, uma monarquia desptica governando a comunidade poltica; h oligarquia quando os detentores da fortuna tm a

    autoridade suprema do Estado; e democracia, ao contrrio, quando esta

    autoridade pertence queles que, longe das grandes propriedades, so

    desprovidos de recursos. (ARISTTELES, Pol., III, VIII, 2)

    Podemos notar que, basicamente, Aristteles trabalha com as mesmas tipologias

    utilizadas por Plato e, anteriormente, por Herdoto. Porm, a inovao aristotlica o

    ordenamento das formas de governo em dois blocos: as formas justas e as desviadas.

    Segundo Bobbio (1985, p. 55), Aristteles formulou sua teoria usando dois critrios:

    quem governa e como governa. Sendo assim, o filsofo considerou que as formas

    justas eram aquelas destinadas a sempre objetivar o bem comum da sociedade, enquanto as

    derivaes tinham como nico e exclusivo objetivo atender as demandas dos prprios

    governantes: da tirania, os interesses do tirano; da oligarquia, os interesses do pequeno

    grupo que compe o quadro de governo; e da democracia, atender os desejos do povo

    normalmente, de acordo com Aristteles, a vontade de expropriar os bens dos homens de

    posse.

    importante ressaltar que o uso do termo genrico politia para se referir ao

    governo justo da maioria causa uma nova confuso ao leitor em tica a Nicmaco, na

    passagem na qual Aristteles volta a falar das formas de governo. Na obra, o filsofo cita

    que h trs constituies justas, a realeza, a aristocracia e a timocracia, chamada pela

    maioria apenas de politia. E os desvios seriam a tirania, a oligarquia e a democracia,

    respectivamente.

    Aristteles, portanto, utiliza para designar o governo da maioria o mesmo termo

    empregado por Plato em outro contexto. Segundo Bobbio (1985, p. 57), isso indica que

    apenas a monarquia e a aristocracia, e seus desvios correspondentes (tirania e oligarquia),

    tinham uma tipologia realmente definida na Antiguidade. A sugesto de Bobbio que os

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    autores ainda no tinham encontrado um termo apropriado para se referir ao governo da

    maioria.

    Alm disso, Bobbio ressalta que, na tica, Aristteles tambm cria uma

    qualificao mais direta das formas de governo, mostrando que o pior dos desvios a

    tirania, e o menos nocivo a democracia.

    3. Polbio

    Polbio, considerado o pai da teoria do governo misto (LEVORIN, 2001),

    analisou as constituies em um perodo posterior, no sculo II a.C.. Era a poca da gradual

    dominao romana na Grcia. Bobbio lembra que, para Polbio, a constituio adotada era

    o motivo de xito ou fracasso de uma sociedade. Sendo assim, seria importante escolher

    corretamente a forma de governo a ser usada naquele Estado. Polbio, em sua obra, explica

    que seu objetivo era estudar as causas e consequncias de se escolher determinada forma de

    governo para reger uma cidade (Hist., VI, I, 2).

    importante lembrarmos que, ao contrrio de Plato e Aristteles, Polbio no era

    filsofo, mas sim historiador. Alm disso, ele era grego de nascimento, mas viveu

    praticamente toda a vida em Roma, onde escreveu em grego a primeira grande histria

    romana antes mesmo de Tito Lvio.

    Nesta obra, o historiador dedica o livro VI anlise da constituio de Roma. Nesse

    processo, ele acaba desenvolvendo a sua prpria teoria das formas de governo, que tambm

    utiliza uma tipologia bem semelhante de seus predecessores.

    Polbio adotou uma metodologia similar de Aristteles para tipificar as

    constituies e identificou inicialmente a existncia de seis formas de governo. As formas

    simples seriam a realeza, a aristocracia e a democracia; enquanto os modos degenerados

    correspondentes seriam, respectivamente, a tirania, a oligarquia e a oclocracia. Elas

    formariam um ciclo, conforme veremos a seguir.

    Contudo, o historiador tambm reconheceu a existncia de outra forma de governo,

    menos comum do que as tradicionais e exterior ao ciclo. Esse modelo foi extrado da

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    constituio romana, melhor que as trs formas de governo justas. Seria uma mistura da

    realeza, da aristocracia e da democracia, ou seja, uma mescla das formas simples de

    governo. Essa seria a constituio mista, a mais adequada para levar o Estado ao xito.

    A maioria daqueles cujo objetivo foi instruir-nos metodicamente sobre tais assuntos distinguir trs tipos de constituies , falam de realeza, aristocracia e democracia. Agora, ns devemos, penso eu, analisar se estes

    trs tipos de governo so os nicos e melhores, mas na minha opinio eles

    esto errados. Pois evidente que devemos considerar como a melhor

    constituio uma combinao de todas estas trs variedades, uma vez que

    tivemos a prova (de que o melhor) no apenas teoricamente, mas pela

    experincia real. Licurgo foi o primeiro a elaborar uma Constituio a de Esparta seguindo este princpio (POLBIO, Hist., VI, II, 3.

    Em seguida, Polbio descreve quais so os desvios constitucionais:

    Portanto, ns podemos afirmar que h seis formas de governo, as trs mencionadas acima que esto na boca de todos e as trs que so associadas a

    elas, quero dizer a tirania, a oligarquia e o governo da multido

    (oclocracia). (POLBIO, Hist., VI, II, 4)

    Quanto s tipologias, podemos dizer que Polbio emprega o termo democracia

    para se referir a uma forma justa de governo, ao contrrio do que fizeram Plato e

    Aristteles para quem a democracia seria um governo inferior (segundo Plato) e um

    desvio constitucional (de acordo com a teoria aristotlica).

    Alm de ser considerado o pai do governo misto, Polbio tambm trouxe outra

    inovao em sua teoria poltica: a teoria da anaciclose, ou seja, de que uma constituio

    inevitavelmente vai suceder a outra, at retornar forma de governo inicial: neste caso,

    podemos dizer que a constituio num Estado parte da realeza, sofre sucessivas

    transformaes e adaptaes, at voltar a ser um reino.

    O reino muda primeiro para seu vcio associado, a tirania; depois, a supresso dos dois d luz aristocracia. A aristocracia por sua vez degenera

    para uma oligarquia; e quando o povo, inflamado pela ira, busca vingana

    sobre o governo por suas regras injustas, a democracia surge; e no devido

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    tempo a liberalidade e a ilegalidade desta forma de governo produzem o

    governo da multido (oclocracia) para completar a srie. (POLBIO, Hist., VI, II, 4)

    Bobbio resume o funcionamento da anaciclose para Polbio:

    (...) o processo histrico desenvolve, ciclo por ciclo, uma tendncia que , em ltima anlise, degenerativa, como a descrita por Plato; contudo,

    diferentemente do ciclo platnico, em que cada forma uma degenerao da

    precedente, num processo contnuo, o ciclo polibiano se desenvolve atravs

    da alternncia de constituies boas e ms (...). Em outras palavras, a linha

    decrescente do ciclo platnico contnua, a do ciclo polibiano fragmentada

    por uma alternncia de momentos bons e maus, embora tenda para baixo (BOBBIO, 1985, p. 67).

    4. Ccero

    Outro pensador que trabalhou a teoria das formas de governo foi o filsofo e orador

    romano Marco Tlio Ccero que viveu os turbulentos anos de guerra civil entre Pompeu e

    Jlio Cesar, no primeiro sculo antes de Cristo. Ele se encarregou de dar continuidade

    anlise do melhor sistema constitucional defendendo a existncia de trs regimes polticos,

    a monarquia, a aristocracia e a democracia, e, alm disso, seus desvios respectivos. Logo,

    podemos observar que ele utiliza uma metodologia bastante semelhante dos outros

    pensadores da Antiguidade.

    A obra de Ccero, a exemplo do trabalho de Plato, tambm foi escrita em forma de

    dilogo no caso da passagem sobre as formas de governo, um dilogo entre os romanos

    Cipio e Llio.

    A primeira considerao importante a ser feita que, para Ccero, toda comunidade

    propriedade de um povo. Contudo, povo no se trata de um aglomerado qualquer de

    pessoas, mas sim um grupo numeroso de cidados em comum acordo de respeito s leis e

    orientado ao bem comum (De Re Publica I, XXV, 39). Como essa comunidade

    propriedade do povo, ela precisa, na anlise do pensador, ser governada por um corpo

    deliberativo permanente, seja ele formado por um homem, por um nmero seleto de

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    cidados, ou por todo o corpo de cidados da cidade (I, XXV, 41). Essa anlise corrobora a

    afirmao de que a teoria das formas de governo gira em torno de responder a pergunta de

    quantos indivduos compem o governo.

    No trecho a seguir, ele nos fala sobre as trs formas justas de governo:

    (...) esta funo (de governar o Estado) deve ser concedida para um homem, ou a determinados cidados selecionados, ou deve ser assumida pela

    totalidade dos cidados. E ento, quando a autoridade suprema est nas mos

    de um homem, ns o chamamos de rei, e a forma de Estado monarquia.

    Quando cidados selecionados detm este poder, ns dizemos que o Estado

    governado por uma aristocracia. Mas o governo popular existe quando todo

    o poder est nas mos do povo. (CCERO, De Re Publica I, XXVI, 42)

    Podemos notar, portanto, que a tipologia empregada por Ccero a mesma usada

    pelos filsofos gregos. Assim, as formas simples de governo seriam a monarquia (regnum),

    a aristocracia (optimatium) e o governo popular (civitas popularis).

    Pouco adiante, Ccero deixa claro, por meio de uma frase de Cipio, que a melhor

    das constituies seria uma quarta forma, que combina elementos das trs anteriores (De Re

    Publica De Legibus, I, XXIX, 45). , portanto, uma teoria que vai na mesma direo do

    que j havia sido dito por Polbio. Isso ocorre porque Polbio tambm analisou a

    constituio romana em sua obra, onde era possvel verificar na prtica a existncia desse

    regime misto.

    Em seguida, Llio afirma j saber que esta a opinio de Cipio, mas o questiona

    qual das trs formas de governo simples seria a melhor. Embora parte do documento

    cerca de 15 linhas esteja perdida, sabemos que Cipio comea a discorrer sobre cada uma

    das trs constituies simples. Depois de discorrer sobre o funcionamento de cada uma, ele

    por fim responde a Llio que a melhor das trs constituies simples seria a monrquica,

    embora no seja a mais adequada3.

    3

    A nica de fato adequada seria a mista.

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    No entanto, Cipio continua o dilogo discorrendo sobre as vantagens do governo

    misto, e conclui que o problema que as formas simples se degeneram com o tempo:

    As formas primrias j mencionadas degeneram facilmente em formas correspondentes pervertidas, e o rei acaba sendo substitudo por um dspota,

    a aristocracia se transforma em uma faco oligrquica, e o povo em uma

    turba anrquica. (CCERO, De Re Publica I, XLV, 69).

    Logo, vemos que mesmo as formas desviadas empregadas por Ccero tambm j

    eram utilizadas pelos pensadores gregos. No entanto, ao invs de classificar o desvio da

    monarquia como uma tirania ele a tipifica como um despotismo (o governo do dominus); a

    optimatibus se degenera e se transforma em uma optimatibus factio; j o governo do povo

    se torna uma turba et confusio. O termo turba j tinha sido usado por Polbio

    anteriormente, tambm para se referir forma desviada da democracia.

    Bobbio pontua que h, de fato, uma preocupao polibiana em Ccero: encontrar

    uma constituio que resulte no equilbrio poltico no Estado (1985, p. 75). O regime misto

    conseguiu atingir esse objetivo em Roma porque coloca no governo elementos das trs

    formas simples de governo: segundo essa anlise, os dois cnsules guardam em si certas

    caractersticas da monarquia; o Senado responde pela tradio aristocrtica; e os tribunos

    representam o povo, a democracia.

    Desta forma, Ccero celebra a constituio mista romana por ser, segundo ele, a

    mais adequada para dar estabilidade e equilbrio ao Estado.

    importante observarmos que todos esses autores citados acima Plato,

    Aristteles, Ccero e Polbio, para mencionar apenas os que escreveram suas obras na

    Antiguidade podem ter se inspirado na discusso sobre as formas de governo inaugurada

    por Herdoto nas Histrias. Bobbio afirma que o mais interessante que cada um dos trs

    persas citados nessa passagem da obra defendem uma das formas de governo consideradas

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    clssicas justamente aquelas que se tornaram categorias de reflexo poltica

    consagradas ao longo dos sculos4.

    Abaixo, podemos observar um quadro que resume as formas de governo trabalhadas

    pelos filsofos clssicos.

    Quadro 1. As formas clssicas de governo

    Herdoto

    Formas de governo Comentrios

    Monarquia Constituio ideal para Dario

    Oligarquia Constituio ideal para Megabizo

    Governo popular Constituio ideal para Otanes

    Plato

    Formas de governo Comentrios

    Aristocracia Governo bom e justo, nico no considerado inferior

    Timocracia Constituio adotada por Creta e Esparta, baseada na

    honra guerreira

    Oligarquia Governo com incontveis vcios

    4

    Outros filsofos polticos tambm discorreram sobre as formas de governo ao longo dos sculos, reforando

    a importncia da questo levantada por Herdoto. Podemos citar alguns dos mais influentes. Na Idade Mdia,

    Marclio de Pdua, em 1324, debateu o tema usando basicamente os mesmos termos de Aristteles, definindo

    as constituies entre equilibradas e viciadas. Coluccio Salutati, Toms de Aquino, Egdio Romano e

    Ptolomeu de Luca tambm estudaram as formas de governo no Medievo. Na Renascena, Nicolau Maquiavel

    voltou a essa questo na obra Discorsi (1531), falando da existncia de trs formas puras (monarquia,

    aristocracia e regime popular, e seus desvios, despotismo, oligarquia e permissividade), e, em O Prncipe,

    simplificou que na Idade Moderna os pases eram ou repblicas ou monarquias. Posteriormente, Jean Bodin,

    em De la Rpublique (1576), dedicou a segunda parte da obra discusso das formas de governo, do ponto de

    vista da lei. O ingls Thomas Hobbes rejeitou duas teorias ligadas s formas de governo, na obra De Cive

    (1642): a distino entre formas boas e ms, e o conceito de governo misto. Em 1725, na obra La scienza

    nuova, Giambattista Vico retomou o debate sobre a teoria cclica de Polbio. Poucos anos depois, em 1748,

    Montesquieu publicou LEsprit des lois, na qual analisou o impacto das leis (ou da ausncia ou deficincia

    delas) nos governos e nos Estados. Esses, e tantos outros autores menos influentes, discorreram sobre as

    formas de governo.

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    Democracia Forma precedente oligarquia

    Tirania Pior das formas de governo

    Aristteles

    Formas de governo Comentrios

    Realeza Governo de um homem, orientado para o bem comum

    Aristocracia Governo formado por poucos homens, orientado para o

    bem comum

    Politia Governo da maioria, orientado para o bem comum

    Tirania Governo de um homem, cujo objetivo beneficiar o

    prprio governante

    Oligarquia Governo formado por poucos homens, cujo objetivo

    beneficiar o grupo no poder

    Democracia Governo da maioria, cujo objetivo beneficiar as massas

    em detrimento das outras classes

    Polbio

    Formas de governo Comentrios

    Realeza Primeira forma de governo, que surge naturalmente

    Tirania Forma degenerada associada realeza

    Aristocracia Surge aps a queda da tirania, distribuindo o poder para

    um grupo de pessoas

    Oligarquia Degenerao da aristocracia, cujo grupo busca o benefcio

    prprio

    Democracia Resultado da evoluo da oligarquia, deixando o poder

    nas mos da maioria

    Oclocracia Degenerao da democracia, quando a turba passa a

    cuidar da vida poltica com ilegalidade

    Governo misto Forma de governo que uma juno da realeza,

    aristocracia e democracia

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    Ccero

    Formas de governo Comentrios

    Monarquia Autoridade suprema nas mos de um governante

    Aristocracia Autoridade suprema imbuda a um grupo selecionado

    Governo popular Governo no qual as decises dependem do povo

    Despotismo Degenerao da monarquia

    Oligarquia Degenerao da aristocracia

    Turba Degenerao do governo popular

    Governo misto Forma de governo que uma juno da monarquia,

    aristocracia e governo popular

    Consideraes finais

    Herdoto pode ou no ter feito uma anlise realmente precisa sobre a discusso

    constitucional entre os persas, porm, de qualquer forma foi o responsvel por criar uma

    linha de pensamento poltico das mais importantes para a anlise constitucional dos

    Estados.

    Depois de Herdoto e os captulos 80-82 do livro III das Histrias, qualquer anlise

    de regime poltico passou pela questo do governo de um, de poucos ou da maioria, e

    resultou na mais variada gama de resultados possveis. Logo, podemos considerar que o

    historiador tambm foi, de certo modo, um pensador poltico.

    , portanto, uma passagem polmica das Histrias, contudo responsvel pela

    criao de toda uma tradio da Filosofia e Teoria Poltica, que continua a influenciar

    pesquisadores at os dias atuais. Foi a primeira meno das formas de governo na literatura

    grega, e, possivelmente, tambm mundial. Logo, os filsofos inspiraram-se nesse debate

    para criar suas teorias sobre as formas de governo.

    Referncias

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    FORA

    ARISTOTLE. Politique: livres III-IV. Paris: Les Belles-Lettres, 1989.

    ARISTTELES. Poltica, in Os Pensadores: Aristteles, So Paulo, Nova Cultura, 2004, p.

    141-251.

    BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. Braslia: editora UnB, 1985, 4

    edio.

    CICERO. The Republic and The Laws. Oxford: Oxford Universit Press, 1998.

    CICERO. The re publica, de legibus. Cambridge: Harvard University Press, 1988.

    HERODOTE. Histoires (vol 3). Paris: Les Belles Lettres, 1949.

    HERODOTUS. Histories volume 2 (books III IV). Oxford: Loeb Classic Library, 1921.

    LEVORIN, Paulo. A repblica dos antigos e a repblica dos modernos. Tese de doutorado defendida no Departamento de Cincia Poltica da USP, So Paulo, 2001.

    MOSS, Claude. Histoire dune dmocratie: Athnes Des origines la conqute macdonienne. Paris: ditions du Seuil, 1971.

    PLATON. Oeuvres compltes: la Rpublique (tome VIII). Paris: Les Belles Lettres, 1934.

    POLYBIUS. The Histories: book III. Cambridge: Harvard University Press, 1954.

    SOUSA, Paulo ngelo de Meneses. O debate persa em Herdoto. Teresina: EdUFPI, 2010.

    Data de envio: 22 de outubro de 2013.

    Data de aprovao: 15 de fevereiro de 2014.

    Data de publicao: 2 de abril de 2014.