robert jackson: realismo clássico em relações internacionais; in introdução às relações...

11

Click here to load reader

Upload: will-gomes

Post on 21-Dec-2015

49 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Trata-se de uma análise da vertente teórica do Realismo, aplicada as Relações Internacionais, desde os escritos do general ateniense Tucídides passando por Hobes e Maquiável; chegando até o teórico contemporâneo Hans Morgenthau dessa linha de pensamento.

TRANSCRIPT

Page 1: Robert JACKSON: Realismo Clássico em Relações Internacionais; In Introdução às Relações Internacionais: Teorias e Abordagens, trad. Bárbara Duarte, Rio de Janeiro, Zahar,

Realismo Clássico em Relações Internacionais*

* In: Robert JACKSON / Georg SØRENSEN: Introdução às Relações Internacionais: Teorias e Abordagens,

trad. Bárbara Duarte, Rio de Janeiro, Zahar, 2007. Folha 3 Realismo Clássico em RI (Robert Jackson e Georg Sorensen)

1 02 Introdução às relações internacionais

•••• • •••• o •••••••••• ••• ••• o •• •• ••••• • •• •• • • •• • •••• • •••• o •••• • •• o •••• • o • ••••

Introdução: elementos do realismo

As idéias e premissas realistas básicas são: (1) uma visão pessimista da natureza

humana; (2) u ma convicção de que as relações internacionais são necessa­

riamente conflituosas e os conflitos internacionais são, em ú ltima análise,

resolvidos por meio da guerra; (3) apreciação pelos valores da segurança nacio­nal e da sobrevivência estatal; (4) um ceticismo básico com relação à existência

de um progresso comparável ao da vida política nacional no contexto inter­nacional. Essas idéias e premissas orientam o pensamento da maior p arte dos

teóricos de RI, tai1to no passado q uanto no p resente.

O pensamento realista caracteriza os seres humanos como preocupa­dos com seu próprio bem-estar nas relações competitivas uns com os outros.

Sendo assim, os homens buscam estar no comando e não serem explorados, conseqüentemente se esforçam para assumir a liderança nas interações com os

ourros - inclusive nas relações internacionais com outros países. Nesse aspecto,

pelo menos, os seres humanos são semelhan tes em todos os lugares; portanto, o desejo de tirar vJ.nLagcm sobre os outros e de evitar ser dominado é universal.

Esse ponto de vista pessimista da natureza humana está bastante evidenciado na teoria de RI de Hans Morgenthau (1965; 1985), provavelmente, o principal

pensador realista do século XX. Para ele, homens e mulheres possuem um "desejo pelo poder", e isso, em particular, é claramente demonstrado na política

e, em especial, na política internacional: "A política é uma luta pelo poder sobre os homens e quaisquer que sejam seus objetivos finais, o poder é seu objetivo imediato e as formas de adquiri-lo, mantê-lo e demonstrá-lo determinam a técnica da ação política" (Morgenthau 1965: 195).

Tucídides, Maquiavel, Hobbes e praticamente todos os realistas clássicos

também pensam assim. Eles acreditam que a finalidade, os meios e os usos do poder são uma p reocu pação central da atividade política. Nesse sentido, a política in ternacional é retratada como - acima de tudo - uma "política de

poder": uma arena de rivalidade, conflito e guerra entre Estados nos quais os

mesmos problemas básicos de defender seu interesse nacional e garantir sua

sobrevivência contínua se repetem várias vezes.

Os realistas operam, portanto, a partir da suposição central de que a política mundial se desenvolve em uma anarquia internacional: um sistema sem u ma

autoridade dominante ou um governo m undial. O Estado é o ator proeminente

Page 2: Robert JACKSON: Realismo Clássico em Relações Internacionais; In Introdução às Relações Internacionais: Teorias e Abordagens, trad. Bárbara Duarte, Rio de Janeiro, Zahar,

Realismo 1 O 3

na po lítica mundial e as relações internacionais são principalmente interações entre Estados. Os outros atores na política mundial- indivíduos, organizações

internacionais, ONGs etc. - são tampouco menos importantes ou sem

relevância. O principal objetivo da política externa é projetar e defender os interesses do Estado na política mundial. No entan to, os Estados não são

iguais: pelo contrário, há uma hierarquia internacional de poder entre os países, sendo que os Estados mais importantes da política mundial são as grandes

potências. De acordo com os realistas, as relações internacionais constituem

uma luta entre grandes potências pelo do mínio e pela segurança.

Quad ro 3 .1 O presidente Nixon e a balança de poder (1970)

Devemos nos lembrar que a única época na história mund ial em q ue observamos um período padfico mais longo foi a da balança de poder. Quando uma nação se torna infinitamente mais poderosa em comparação ao seu oponente em potencial, o perigo da guerra emerge. Por isso, acredi to em um mundo no qua l os Estados Unidos são poderosos. Acho que o mundo será melhor e mais seguro se tivermos os Estados Unidos forte e saudável, enquanto que a Europa, a União Soviética, a Chin a e o Japão contraba lançam uns aos outros não por meio da competição, mas de um equ ilíbrio igual.

Citado em Kissinger ( 1994: 705)

O núcleo normativo do realismo é a segurança nacional e a sobrevivência estatal: estes são valores que impulsionam a doutrina e a política externa realistas.

O Estado é considerado essencial para a vida de seus cidadãos, para garantir os meios e condições da segurança e do bem-estar, uma vez que, na sua ausência, a

vida humana está limitada a ser, como na famosa frase de Thomas Hobbes (1946:

82), "solitária, pobre, desagradável, bruta e curta". O Estado é, portanto, visto como protetor de seu tenitório, de sua população e do seu modo de vida distinto e valioso.

O interesse nacional é o árbitro final para julgar a política externa. A sociedade humana e a moralidade estão confinadas ao Estado e não se estendem ao cenário

das relações internacionais, uma arena política de considerável tumulto, discórdia

e conflito entre Estados, onde as grandes potências são os dominadores. I

I

Page 3: Robert JACKSON: Realismo Clássico em Relações Internacionais; In Introdução às Relações Internacionais: Teorias e Abordagens, trad. Bárbara Duarte, Rio de Janeiro, Zahar,

1 04 Introdução às relações internacionais

O fato de que todos os Estados devem seguir o próprio interesse nacional

significa que não é possível confiar completamente em outros países e gover­

nos. Sendo assim, os acordos internacionais são provisórios e condicionais e

os Estados os cumprem de acordo com sua vontade e disposição. No caso de

um conflito, por exemplo, todos os Estados devem estar preparados para sacri­ficar suas obrigações internacionais em função do interesse nacional. Ou seja,

tratados e outros acordos, convenções, hábitos, regras, leis entre os países são simplesmente contratos convenientes que podem e serão ignorados se preju­

dicarem os interesses vitais dos Estados. Não há obrigações internacionais no sentido moral- vínculos de obrigação moral- entre Estados independentes.

Como demonstrado anteriormente, a única responsabilidade fundamental dos

estadistas é promover e defender o interesse nacional. Isso é declarado de modo brutal no famoso livro O príncipe de Maquiavel (ver Quadro 3.2).

Dessa forma, não há como haver uma mudança progressiva na política

mundial como ocorre na vida política nacional. Conseqüentemente, a teoria

realista de RI é válida não apenas em épocas específicas, mas em todos os

momentos, uma vez que os fatos básicos da política mundial nunca se modificam. Pelo menos, isso é o que a maiOria dos realistas argumenta e acredita.

Quadro 3.2 Maquiavel sobre as obrigações do príncipe

Um príncipe ... não pode cumprir tudo que é considerado bom para os homens, pois para manter o Estado ele é muitas vezes obrigado a agir contra sua promes­sa, a caridade, a humanidade e a rel igião. Portanto, ele precisa estar pronto para seguir a direção exigida pelos ventos da fo rtuna e da mutab il idade das questões [políticas] ... Na medida do possível, não deve se desgarrar do bem, mas deve saber como usar o mal quando for necessário.

Maquiavel (1984: 59-60)

O realismo apresenta uma distinção importante entre a linha clássica e a

contemporânea. O realismo clássico é uma das abordagens "tradicionais" de RI

proeminentes antes da revolução behaviorista dos anos 1950 e 60 descritas no

Page 4: Robert JACKSON: Realismo Clássico em Relações Internacionais; In Introdução às Relações Internacionais: Teorias e Abordagens, trad. Bárbara Duarte, Rio de Janeiro, Zahar,

Realismo 1 O 5

Capítulo 2. É uma abordagem basicamente normativa e se concentra em valores políticos centrais de segurança nacional e de sobrevivência estatal. Os realistas

clássicos estiveram presentes em muitos períodos históricos; da Grécia antiga até os tempos atuais. Por outro lado, o realismo contemporâneo, como o nome

implica, é uma doutrina recente de Rl: tem uma abordagem especialmente

científica e enfoca a estrutura ou o sistema internacional. É uma teoria, em

grande medida (embora não exclusivamente), norte-americana em sua origem.

De fato, tem sido e ainda hoje é a principal teoria da área nos Estados Unidos, de onde vêm a maioria dos acadêmicos de RI no mundo. Esse ponto em si torna o realismo contemporâneo uma teoria particularmente importante da

disciplina.

Realismo clássico

O que é o realismo clássico? Quem são os principais realistas clássicos? Quais suas principais idéias e argumentos? Nesta seção, vamos analisar, de forma resumida, o pensamento internacional de três importantes realistas clássicos do passado: (1)

o antigo historiador grego Tucídides; (2) o teórico político renascentista italiano

Nicolau Maquiavel; e (3) o filósofo político e jurídico do século XVII Thomas Hobbes. Na próxima seção, vamos aprofundar o pensamento realista neoclássico

do teórico germano-norte-americano Hans]. Morgenthau.

Tucíd ides

O que hoje chamamos de relações internacionais, Tucídides considerava as ine­vitáveis competições e conflitos entre as antigas cidades-Estado gregas (que em

conjunto formaram a civilização cultural-lingüística conhecida como Grécia) e entre a Grécia e os impérios vizinhos não-gregos, como a Macedônia ou a

Pérsia. Nem os Estados da Grécia nem seus vizinhos não-gregos eram equiva­

lentes. Pelo contrário, poucos eram "grandes potências" - Atenas, Esparta, o

Império Persa- e muitos eram potências menores - as pequenas ilhas do mar

l I

Page 5: Robert JACKSON: Realismo Clássico em Relações Internacionais; In Introdução às Relações Internacionais: Teorias e Abordagens, trad. Bárbara Duarte, Rio de Janeiro, Zahar,

1 O 6 Introdução às relações internacionais

Egeu. Para o teórico, essa desigualdade era inevitável e natural. Nesse sentido,

uma característica distinta do tipo de realismo de Tucídides é o seu caráter naturalista. Aristóteles disse que "o homem é um animal político" e Tucídides acrescentou que os animais políticos, de fato, são altamente desiguais em poder e na capacidade de dominar os outros e de se defender. Todos os Estados, gran­

des e pequenos, devem se adaptar a essa realidade específica de poder desigual

e agir de forma condizente: se cumprirem esta tarefa, sobreviverão e talvez até

prosperem. Caso contrário, os países que falharem se arriscarão e podem até ser destruídos. A história antiga está cheia de exemplos de Estados e impérios,

pequenos e grandes, destruídos.

Quadro 3.3 Relações internacionais na Grécia antiga

Os gregos fundaram a Liga Helênica .. . e colocaram Esparta e Atenas na sua liderança. Apesar da aparência de unidade na Grécia dura nte as Guerras Persas (492-477 a.C.) , havia sérios confl itos entre os membros da Liga , motivados prin­cipalmente pelo medo que as menores cidades-Estado tinha m do imperia lismo ou da expansão aten iense. Por isso, após as vitórias dos gregos sobre os persas, os competidores de Atenas, liderados por Esparta, formaram uma organização rival, a Liga Peloponesa, um intricado sistema de seg urança coletivo em forma de aliança desti nado a impedir a expansão ateniense ... Uma competição mais cruel sobre o comércio e a supremacia naval entre Corinto e Atenas levou por fim às guerras peloponesas envo lvendo as duas congregações militares.

Holsti (1988: 38-9)

Por isso, Tucídides enfatizao limite das escolhas e as restrições no campo de manobra disponíveis para os estadistas na conduta da política externa. Ademais, o teórico ressalta as conseqüências das decisões: antes de qualquer

palavra final, um tomador de decisões deve refletir com cuidado sobre os

impactos prováveis, bons ou ruins. Ao chamar a atenção para tal situação,

Tucídides também ressalta a ética da cautela e da prudência na conduta da

política externa em um mundo internacional de grande desigualdade, de es­colhas restritas de política externa e de constante perigo e oportunidade. A

1

Page 6: Robert JACKSON: Realismo Clássico em Relações Internacionais; In Introdução às Relações Internacionais: Teorias e Abordagens, trad. Bárbara Duarte, Rio de Janeiro, Zahar,

Realismo 1 O 7

previsão, a prudência, a cautela, o julgamento formam a ética política carac­

terística do realismo clássico que Tucídides e a maioria dos acadêmicos desta

linha de pensamento se esforçam para distinguir da moralidade privada e

do princípio da justiça. Se um país e seu governo desejam sobreviver e pros­

perar, é essencial focar estas máximas políticas fundamentais das relações

internaoonais.

Em seu famoso estudo sobre a Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.),

Tucídides (1972: 407) popularizou sua filosofia realista entre os líderes de

Arenas - uma grande potência - em seu diálogo com os líderes de Meios -

uma potência menor - durante o conflito entre as duas cidades-Estado em

416 a.C. Os m elianos apelaram ao princípio da justiça, isto é, a sua honra

e dignidade como um Estado independente, que deveriam ser respeitadas

pelos poderosos atenienses. Mas, segundo Tucídides, a justiça é um bem

especial nas relações internacionais: em vez de significar um tratamento

igual para todos, justiça se refere ao conhecimento de seu próprio lugar

e à adaptação à realidade natural do poder desigual. Tucídides, portanto,

deixou os atenienses responderem à exigência meliana como demonstrado

no Quadro 3.4.

Quadro 3.4 Tucídides sobre os fortes e os fracos

O padrão de justiça depende da igualdade de poder para coagir e, de fato, os fortes fazem o que têm o poder de fazer e os fracos aceitam o que têm de aceitar ... Essa é a regra certa -enfrentar seus iguais, se comportar em consideração aos seus superiores e tratar seus inferiores com moderação. Reflita sobre o assunto e depois que formos embora deixe esse ponto ser recorrente em suas mentes -discutam acerca do destino de seu país, vocês só têm um Estado e seu futuro depende, mal ou bem, dessa única decisão que vocês tomarão.

Tucfdides (1972: 406)

Esse é, provavelmente, o exemplo mais famoso da interpretação realista

clássica acerca das relações internacionais, vista basicamente como uma

anarquia de Estados distintos, que não detêm uma escolha real a não ser agir de

Page 7: Robert JACKSON: Realismo Clássico em Relações Internacionais; In Introdução às Relações Internacionais: Teorias e Abordagens, trad. Bárbara Duarte, Rio de Janeiro, Zahar,

108 Introdução às relações internacionais

acordo com os princípios e as práticas da política de poder, na qual a segurança e a sobrevivência são os principais valores e a guerra é o árbitro final.

Maquiavel

De acordo com os ensinamentos políticos de Maquiavel (1984: 66), o poder (o leão) e a decepção (a raposa) são os dois meios essenciais para a conduta da política externa. O valor político supremo é a liberdade nacional, a independência e a principal responsabilidade dos governantes é buscar sempre as vantagens e defender os interesses de seus Estados, garantindo sua sobrevivência. Isso requer força: se um Estado não é force, será uma presa permanente para os outros países; o governante deve ser en tão um leão. Isso também requer astúcia e - se necessário - brutalidade na busca do auto-interesse: o governante também deve ser uma raposa. Caso os governan tes não sejam astutos, ardilosos e espertos, perdem uma oportunidade vantajosa ou benéfica para eles e para o Estado. Além disso, e ainda mai s importan te, arriscam não perceber um perigo ou uma ameaça que, se não for defendida, pode causar danos a eles, aos seus regimes ou aos seus Estados. Sendo assim, no centro da teoria realista de Maquiavel (1984: 66), os estadistas devem ser tanto leões quanto raposas. A teoria realista clássica de RI é

principalmente uma teoria de sobrevivência (Wight 1966). A premissa mais essencial de Maquiavel é a de que o mundo é um local peri­

goso, mas, ao mesmo tempo, gera oportunidades. Se alguém espera sobreviver em tal mundo, é preciso estar sempre consciente dos perigos, deve se antecipar e tomar as precauções necessárias contra eles. E, caso desejem prosperar, enri­quecer a si mesmos e se deleitar na glória de seu poder e riqueza acumulados, é necessário reconhecer e explorar as oportunidades apresentadas aos Estados de forma rápida, hábil e- se preciso - com mais crueldade do que seus rivais ou inimigos. A conduta da política externa é por isso uma atividade instrumental ou "maquiavélica", com base no cálculo inteligente do poder e do interesse de alguém contra o poder e o interesse de seus rivais e competidores.

Essa perspectiva arguta é refletida em algumas máximas maquiavélicas da política realista, como: fique ciente do que acontece; não espere que aconteça; antecipe as razões e ações dos outros; não espere os o utros agirem; aja antes deles; um prudente líder de Estado age a fim de evitar qualquer ameaça imposta pelos vizinhos; ele ou ela deve estar preparado(a) para se engajar em uma guerra

Page 8: Robert JACKSON: Realismo Clássico em Relações Internacionais; In Introdução às Relações Internacionais: Teorias e Abordagens, trad. Bárbara Duarte, Rio de Janeiro, Zahar,

Realismo 1 O 9

preventiva e em iniciativas similares; em suma, o líder realista de Estado está alerta para oportunidades em qualquer situação política, além de preparado e equipado para explorá-las.

Acima de tudo, segundo Maquiavel, o líder de Estado responsável não deve

agir de acordo com os princípios da ética cristã: ame teu vizinho, seja pacífico e evite a guerra, a não ser em autodefesa ou por uma causa justa; seja benevolente,

compartilhe sua riqueza com os outros, aja sempre de boa-fé etc. Maquiavel

considera essas máximas morais o ápice da irresponsabilidade política, uma vez

que, para ele, os líderes políticos que agem de acordo com virtudes cristãs estão fadados a fracassar e tudo perderão. Ademais, esses governantes sacrificarão as posses, a liberdade e até mesmo a vida de seus cidadãos, que dependem da política.

A conexão é clara: se um governante não conhece ou não respeita as máximas da política de poder, sua política fracassará, prejudicando também a segurança

e o bem-estar de seus cidadãos que são totalmente dependentes dela. Portanto,

a responsabilidade política flui em uma direção muito diferente da moralidade particular e comum. Os valores prioritários e fundamentais são a segurança e a

sobrevivência do Estado, que definirão o rumo da política externa. Os textos realistas de Maquiavel são algumas vezes retratados (Forde 1992: 64)

como "manuais de como prosperar em um mundo imoral e caótico". Porém, esse

ponto de vista é enganoso. Negligencia a responsabilidade dos governances não apenas diante deles mesmos e de seus regimes pessoais, mas também em relação aos seus próprios países e cidadãos - o que Maquiavel, ao pensar sobre Florença, se refere como "a república". Dessa forma, fica claro o aspecto cívico-virtuoso do

realismo de Maquiavel, que argumenta que os governantes precisam ser tanto leões quanto raposas porque a sobrevivência e a prosperidade de seus povos

dependem deles. Essa dependência das pessoas com relação ao seu governante e,

em especial, da sabedoria de sua política externa, deve-se ao fato de que o destino

de ambos está associado a um mesmo Estado: este é o núcleo normativo não somente do realismo maquiavélico, mas do realismo clássico em geral.

Hobbes e o dilema de segurança

Thomas Hobbes pensou ser possível alcançar uma percepção fundamental da vida política, se pudermos imaginar homens e mulheres vivendo em uma condi­

ção "natural", anterior à invenção e à instituição do Estado soberano. Ele chamou

Page 9: Robert JACKSON: Realismo Clássico em Relações Internacionais; In Introdução às Relações Internacionais: Teorias e Abordagens, trad. Bárbara Duarte, Rio de Janeiro, Zahar,

11 O Introdução às relações internacionais

essa condição pré-civil de o "estado de natureza". Para Hobbes (1946: 82), essa

condição pré-civil é urna circunstância humana extremamente adversa, na qual

há um "estado de guerra" permanente de cada homem contra cada homem; isto

é, no "estado de natureza'', todos são ameaçados por todos, a vida está em risco constante e ninguém pode ter garantia, durante um período razoável de tempo,

de segurança e sobrevivência. As pessoas assim estariam vivendo em constante medo umas das outras. Hobbes caracteriza essa condição pré-civil como mostra o

Quadro 3.5. Certamente, não é somente desejável, mas bastante urgente, escapar

dessas circunstâncias intoleráveis o mais rápido possível.

Quadro 3.5 Hobbes sobre o estado de natureza

Em tal condição, não há lugar para a indústria; porque o fruto disso é incerto: e conseqüentemente nenhuma cultura do mun do, nenhuma marinha, nenhum uso de mercadori as que possam ser importadas pelo mar; nenhuma edificação con­fortável ... Nenhuma arte; nenhuma carta ; nen huma sociedade e, pior de tudo, o medo contínuo e o perigo de morte violenta; e a vida do homem, solitária, pobre, detestável, bruta e curta.

Hobbes (1946: 82)

Para Hobbes, é possível escapar do estado de natureza para uma condição humana civilizada por meio da criação e da manutenção de um Estado so­

berano. Isso se daria pela transformação do medo de homens e mulheres de si

mesmos em uma colaboração conjunta para se formar um pacto de segurança que possa garantir a sobrevivência de todos. De forma paradoxal, as pessoas cooperam no meio político por temerem ser feridas o u mortas por seu s vizi­nhos: são "civilizados pelo medo da morte" (Oakesh ott 1975: 36). O m edo e

a insegurança afastam as pessoas de suas condições naturais, isto é, a guerra

de todos contra todos. A instituição do Estado soberano não é impulsionada

pela razão (inteligência), mas pela paixão (emoção), um a vez que os homens, conscientes do valor da paz e da ordem, se unem e colaboram de bom grado

para criar um Estado com um governo soberano, detentor da autoridade absoluta e de poder confiável para protegê-los tanto das desordens internas

Page 10: Robert JACKSON: Realismo Clássico em Relações Internacionais; In Introdução às Relações Internacionais: Teorias e Abordagens, trad. Bárbara Duarte, Rio de Janeiro, Zahar,

Realismo 111

quanto dos inimigos e das ameaças externas. Na condição civil - isto é, de

paz e ordem- sob a proteção do Estado, todos têm a oportunidade de crescer em segurança relativa, já que não vivem mais o risco constante da ofensa e da

morte. Seguros e em paz, estão livres para prosperar e, como o próprio Hobbes

afirmou, podem buscar e aproveitar a "felicidade" e o bem-estar.

No entanto, a solução estadista para o problema da condição natural da

humanidade implica automaticamente um sério problema político. O próprio ato de instituição de um Estado soberano para escapar do temível estado de

natureza cria, ao mesmo tempo, outro estado de natureza entre os países, ge­

rando o conhecido "dilema de segurança" na política mundial- a realização da segurança pessoal e nacional por meio da criação de um Estado é necessa­riamente acompanhada pela condição de insegurança nacional e internacional

enraizada na anarquia do sistema estatal.

Não se pode escapar do dilema internacional de segurança da mesma forma que há solução para o dilema pessoal de segurança, porque não há possibilidade de se estabelecer um Estado global ou um governo mundial. Ao contrário dos

indivíduos no estado primário de natureza, os Estados soberanos não estão

propensos a abrir mão de sua independência em prol de qualquer garamia de

segurança global, uma vez que o estado de natureza internacional não é tão ameaçador e perigoso quanto o estado de natureza original. É mais fácil para os

Estados ter uma garantia de segurança do que indivíduos se sentirem protegidos por conta própria; os Estados podem mobilizar o poder coletivo de um grande

número de pessoas; podem se armar e se defender contra ameaças de segurança

externa de modo contínuo e confiável. Já as pessoas estão vulneráveis porque,

em alguns momentos, precisam baixar sua guarda: precisam dormir, por exem­plo. Estados nunca adormecem- enquanto alguns cidadãos dormem, outros

estão despertos e em posição de guarda. Se os Estados cumprem o trabalho de proteger seu próprio povo, o estado de natureza internacional então pode até

ser visto como algo positivo porque oferece a grupos particulares liberdade em

relação a outras congregações. Em outras palavras, a anarquia internacional com base nos Estados soberanos é um sistema de liberdade para certos agrupa­

mentos. Mas o ponto principal sobre o estado de natureza internacional é que este é uma condição de guerra real ou potencial; não é possível haver uma paz

permanente ou garantida entre Estados soberanos. A guerra é necessária, como

último recurso, para resolver disputas entre Estados que não conseguem firmar

um acordo e também não vão ceder.

Page 11: Robert JACKSON: Realismo Clássico em Relações Internacionais; In Introdução às Relações Internacionais: Teorias e Abordagens, trad. Bárbara Duarte, Rio de Janeiro, Zahar,

11 2 Introdução às relações internacionais

De acordo com Hobbes, os Estados até são capazes de estabelecer acordos uns com os outros, a fim de elaborar uma base legal para suas relações. O direito internacional pode moderar o estado de natureza internacional ao garantir uma estrut ura de acordos e regras vantajosa para todos os Estados.

Nesse sentido, o realismo clássico de Hobbes enfatiza tanto o poder militar

quanto o direito internacional. No entanto, vale ressaltar que, segundo Hobbes, o direito internacional é criado pelos Estados e só será cumprido se favo recer o

interesse da segurança e da sobrevivência dos Estados; caso contrário, a lei será ignorada. Para Hobbes, como para Maquiavel e T ucídides, a segurança e a

sobrevivência são valores de importância fundamental, mas o aspecto principal do realismo hobbesiano é a paz nacional-· a paz interna à estrutura do Estado soberano - e a oportunidade de homens e mulheres serem felizes, que somente

a paz civil é capaz de proporcionar. Em suma, o Estado é organizado e equipado

para a guerra de m odo a prover a paz nacional para seus súditos e cidadãos.

Para resumir a d iscussão até aqui, podemos explicitar o que os realistas clássicos mencionados anteriormente têm basicamente em comum. Primeira­mente, eles concordam que a condição humana de insegurança e de conflito

deve ser abordada. Em scguid:t, acreditam que hi um act:: rvo de conhecimen­

to político, ou sabedoria, para lidar com o problema da segurança e cada um deles tenta identificar as suas próprias soluções. Finalmente, eles defendem que não há uma escapatória definitiva de tal condição humana, é uma característica permanente da vida. Embora haja um amplo conhecimento político - identi­

ficado e declarado na forma de máximas políticas-, n ão há soluções finais ou definitivas para os problemas políticos - incluindo a política internacional.

Essa visão simples e de certo modo pessimista está no centro da teoria de RI do

principal realista neoclássico do século XX, Hans J. Morgenthau.

m::

Q uadro 3.6 Valores básicos de três realistas clássicos

T UCÍDIDES M AQUIAVEl HOBBES

• Destino político • Agilidade política • Disposição política

• Necessidade e segurança • Oportunidade e segurança • Dilema de segurança

• Sobrevivência política • Sobrevivência política • Sobrevivência política

• Segurança • Virtude cívica • Paz e fel icidade