ritualizar a morte no século xix. o funeral de d. margarida relvas na golegã
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A vivência e o ritual da morte sofreram alterações profundas no século XIX. O estabelecimento de cemitérios municipais, a partir de 1835, em substituição dos enterramentos no espaço sagrado da igreja ou no seu adro impeliram a todo um reforçar do ritual católico para que os novos locais de sepultamento garantissem o repouso ad sanctos como em épocas anteriores. O jazigo, o epitáfio e a fotografia introduziram um culto dos mortos personalizado, marcadamente familiar e hierarquizado, sendo usados como testemunho e como memória do indivíduo para além do seu desaparecimento físico.Através da análise do testamento de D. Margarida Relvas (1837-1887), das despesas com o funeral e do discurso das exéquias encomendadas pela vila da Golegã pelo trigésimo dia da sua morte, reconstituímos os últimos momentos e toda a preparação e concretização do seu ritual funerário que é um exemplo forte da vivência da morte romântica.TRANSCRIPT
Ritualizar a morte no século XIX: O funeral de D. Margarida Relvas (1837-1887) na Golegã
“Ah, nem tigres, nem águias, nem condores,
Abrem as campas, lúgubres cavernas:
O coveiro é o melhor dos construtores!
As suas covas são casas eternas.”1
Cláudia dos Santos Araújo Feio
1 Poema de António Nobre, datado de 1885. Vide NOBRE, António, Só. Alfragide: Leya, 2009, p. 181.
ÍNDICE
1. INTRODUÇÃO: A VIVÊNCIA DA MORTE NO SÉCULO XIX E A REVOLUÇÃO CEMITERIAL......................................................................................2
2. CARIDADE E FAMÍLIA: A VIDA DE MARGARIDA RELVAS........................3
3. RITUALIZAR A MORTE DE D. MARGARIDA RELVAS..................................5
4. A MEMÓRIA PRESERVADA..................................................................................9
ICONOGRAFIA............................................................................................................13
BIBLIOGRAFIA.............................................................................................................19
Resumo
A vivência e o ritual da morte sofreram alterações profundas no século XIX. O
estabelecimento de cemitérios municipais, a partir de 1835, em substituição dos
enterramentos no espaço sagrado da igreja ou no seu adro impeliram a todo um reforçar
do ritual católico para que os novos locais de sepultamento garantissem o repouso ad
sanctos como em épocas anteriores. O jazigo, o epitáfio e a fotografia introduziram um
culto dos mortos personalizado, marcadamente familiar e hierarquizado, sendo usados
como testemunho e como memória do indivíduo para além do seu desaparecimento
físico.
Através da análise do testamento de D. Margarida Relvas (1837-1887), das
despesas com o funeral e do discurso das exéquias encomendadas pela vila da Golegã
pelo trigésimo dia da sua morte, reconstituímos os últimos momentos e toda a
preparação e concretização do seu ritual funerário que é um exemplo forte da vivência
da morte romântica.
1
1. Introdução: a vivência da morte no século XIX e a revolução cemiterial
“Ó tu mortal que me vês
Repara bem como estou,
Eu já fui o que tu és
E tu serás o que eu sou”2
A partir de 1835, há todo um movimento suportado pelo liberalismo de
construção de cemitérios sob a dependência política e afastados dos vivos. Este facto
deveu-se, também, às vagas de cólera que grassaram Portugal e pela questão sanitária
consequente das inúmeras inumações dentro ou à volta das Igrejas, perto do espaço
habitacional. Fora de ser consensual e pacífica, a nova lei cemiterial fez espoletar toda
uma crescente individualidade e personalização do funeral, que se traduziu numa
vivência baseada na exacerbação e dramatização das emoções.
Uma vez que o ritual católico de se fazerem enterrar ad sanctos, ou seja, em
território sagrado pertencente à igreja, acabara, impôs-se uma renovação no rito
adaptando-o a um novo local, por natureza laico e plurireligioso. A planificação destes
cemitérios, sendo o de Pierre Lachaise em Paris um forte paradigma, supôs replicar no
espaço da morte a cidade dos vivos, com ruas, espaços verdes e zonas hierarquizadas.
Os seus ocupantes procuraram formas de perpetuação da sua memória através
de epitáfios, jazigos-capela familiares, fotografias e memoriais. Reportando-nos a
Fernando Catroga, este autor explica que o cemitério é um local monumental “na sua
expressão arquitectónica e na sua função de lugar de produção e reprodução de
memória(s).”3
O espaço da morte passou a ser visto como educativo, didáctico e, sobretudo,
como um lugar de memórias, funcionando como um panteão ao ar livre.
Os cemitérios românticos reflectem, ainda, uma atitude muito concreta perante a
morte, baseada não só na preservação da memória, como também na celebração da
morte como símbolo da perda e da melancolia.
É neste contexto que partimos para a análise e compreensão do ritual funerário
de D. Margarida Relvas na vila da Golegã e avaliamos a importância da preservação da
memória dos mortos no século XIX.
2 Epitáfio que recebe os visitantes à entrada do cemitério da Golegã.3 CATROGA, Fernando, O céu da memória. Cemitério romântico e culto cívico dos mortos (1756-1911), Lisboa, Minerva, 1999, p. 20.
2
2. Caridade e Família: a vida de Margarida Relvas
“a nobre filha dos condes de Podentes
e excelsa consorte de Carlos Relvas.”4
Margarida Amália Mendes de Azevedo Relvas e Campos nasceu no seio de uma
família nobre, em Viseu, a nove de Maio do ano de 1837. Filha de Jerónimo Dias de
Azevedo e de Maria Liberata da Silva Mendes, foram agraciados com os títulos de
viscondes e depois condes de Podentes.
Da sua infância e juventude pouco de sabe, apenas que vivia em Condeixa-a-
Nova, no Palacete dos seus pais.
Aos quinze anos casa com Carlos Augusto de Mascarenhas Relvas e Campos, de
catorze anos. Sendo ambos menores de idade, necessitaram da autorização de D. Maria
II, pelo que ainda hoje se afiguram incertas as razões que levaram os dois adolescentes a
tão apressado matrimónio. O enlace é celebrado em Condeixa-a-Nova a 26 de Agosto
de 1853 e presidido pelo pároco Joaquim Inácio Pimentel5.
A união das duas famílias, aparentadas, era, no entanto, um bom acontecimento.
As fortunas e os títulos contribuiriam para uma verdadeira união de forças. Na Golegã,
no Palácio do Outeiro, casa da família Relvas, o casal prosperaria.
Se, por um lado, o esposo, fidalgo da Casa Real, granjeava de fama nacional e
internacional, sobretudo pela sua dedicação à arte da fotografia, D. Margarida
consolidava na Golegã uma imagem de benfeitora, amiga dos pobres, dedicando-se às
obras de caridade, tentando mitigar as faltas físicas e espirituais dos goleganenses:
“[…] Carlos e Margarida de Azevedo Relvas, já se distinguiam em várias
acções de apoio aos mais necessitados. Ainda que as iniciativas de Carlos Relvas
merecessem maior atenção por parte da imprensa, a sua mulher gozava na Golegã de
uma devoção quase religiosa por parte dos mais carenciados.”6
Não admira, portanto, que a própria vila, como confluência colectiva de muitas
almas individuais, a tivesse tomado como santa, apoderando-se da sua figura como
símbolo e estandarte da caridade e da família goleganense. Como refere Alves Mendes,
cónego da Sé do Porto e amigo pessoal da família, no discurso que preparou para as
exéquias encomendadas pela vila da Golegã, um mês após o falecimento de D.
Margarida, esta era considerada “o symbolo deslumbrantíssimo da caridade e eterno
brasão da Golegã.”7
4 ALVES MENDES, D. Margarida Relvas, Porto: Typographia de A. J. da Silva Teixeira, 1888, p. 19.5 Vide OLIVEIRA, Paulo, Carlos Relvas e a sua Casa-Estúdio.6 Op. cit., p. 97.7 ALVES MENDES, Op. cit., p. 31.
3
O casamento de trinta e quatro anos foi marcado por vitórias, mas também por
muitos desgostos, sobretudo no que toca aos filhos. Tiveram cinco filhos, mas apenas
dois vingariam.
Francisco, o mais velho, faleceu aos dezoito anos, vítima do disparo de uma
caçadeira. Descoberto o corpo com a arma repousada ao seu lado, afiançou-se ter-se
tratado de um acidente, mas, no entanto, todos suspeitaram de suicídio. Tratando-se de
suicídio, o seu sepultamento segundo os ritos canónicos católicos estaria comprometido,
pois os mesmos eram negados a quem tirava a própria vida. Por tal, a hipótese de que,
em dia de caçada, o jovem tinha caído e, com o embalo da queda, a arma se disparara
acidentalmente, ferindo-o de morte, foi a contemplada. O único retrato fotográfico
existente no jazigo é, exactamente, de Francisco Relvas, composta dentro de uma
moldura oval, adornada com flores secas, em jeito de passepartout. Este tipo de
memorial aos mortos era bastante apreciado no século XIX, sobretudo nas famílias mais
abastadas, e era frequente guardar uma mecha do cabelo do ente querido e, até, usá-la,
trabalhada artisticamente, em pendentes ou outras formas de adorno pessoal. Mais
nenhum membro da família que com Francisco repousa está identificado por retrato
fotográfico.
A morte continuou a assombrar a família, desta vez colhendo uma pequena
criança de meses, Liberata, a quarta filha do casal. A mortalidade infantil,
horrendamente normal e frequente no século XIX, era sentida com mais complacência e
aceitação nesta época do que nos dias de hoje. Várias doenças vitimizavam crianças
que, em tenra idade, deixavam o mundo dos vivos sem chegar a ter a seu papel social.
No entanto, todo o desvelo e cuidado se prestava ao sepultamento, e, tal como o irmão,
repousa, devidamente identificada, no jazigo da família.
A juntar ao desgosto de enterrar dois filhos, a vergonha e escândalo que se
abateu sobre a família com o casamento falhado e aparente loucura de Clementina, a
segunda filha, teria contribuído para o debilitar físico da matriarca.
Apenas José, o terceiro filho (mas que mais tarde também viria a sua família
sucumbir pela doença e pelo suicídio), e Margarida, a última filha, viveram até à
velhice.
4
3. Ritualizar a morte de D. Margarida Relvas
“a vossa incomparável, a vossa gloriosa protectora morreu!
Morre santamente e, melhor diria, morre divinamente.”8
Ritualizar o desgosto torna-o efectivo e ajuda a ultrapassar a perda física, quando
se trata da morte do outro, e aceitar o desfecho inevitável, quando se trata da morte de si
mesmo.
O fim veio sendo anunciado a D. Margarida de forma dolorosa, arrastando-se
por onze meses de agonia9, numa mistura de doença e desgosto. Alves Mendes, com a
sua eloquência, recorda os seus últimos momentos: “Sublime e trágico, o memorando
epilogo da sua vida! Assaltada pela doença; escalavrada pelo soffrimento; varejada,
granitada, fulminada pelo desgosto; confrangida, calcinada nas fraguas do martyrio.”10
A dezasseis de Maio de 1886 manda lavrar testamento. Tendo percebido que a
doença estava a roubar-lhe vitalidade, D. Margarida precaveu-se em vida, preparando a
morte. Designa como testamenteiros o seu esposo e os seus filhos José e Margarida.
Pela família reparte três quartos da totalidade dos seus bens, tendo deixado instruções
para que o restante fosse distribuído pelos pobres dos quais cuidara durante tantos anos
da sua vida, pelos criados e por várias instituições de caridade, como a Misericórdia,
Hospital e Montepio Popular da Golegã. Deixa preceitos muito específicos em como
quer que seja feito o seu funeral, começando por afirmar que “sou christã, catholica e
apostólica Romana, n´esta fé tenho vivido e espero morrer.”11 Depois pede que o seu
enterro “seja feito com a maior simplicidade hindo quatro pobres junto do caixão, e a
cada um dos quais serão dadas duas libras.”12
Através do documento das despesas decorrentes do funeral, organizado pelo
filho José Relvas, percebe-se a magnitude do acontecimento. O único ponto onde a
vontade expressa de D. Margarida não foi cumprido foi, exactamente, na simplicidade.
Mandaram vir dezanove padres de fora e foram inúmeras as despesas gerais que
incluíam o aluguer do carro funerário, o catafalco e o pagamento ao prior da freguesia e
muitos outros envolvidos.
8 IDEM, ibid., p. 34.9 Segundo Alves Mendes. Pressupõe-se que D. Margarida terá tido um cancro.10 IDEM, ibid., p. 55.11 Testamento manuscrito de D. Margarida Relvas, 16 de Maio de 1886.12 IDEM. De notar que a grande preocupação de D. Margarida seria providenciar esmolas aos pobres que no dia do seu enterro atendessem ao acontecimento. Em aditamento de inícios de 1887, aproximando-se a hora final, D. Margarida acrescenta mais quatro pobres aos já pedidos para acompanhar o caixão. Para além disso, deixa instruções para que se mandem rezar cem missas de duzentos e quarenta reis, sendo metade delas por sua alma, e as restantes pelo seu pai e filho, Francisco.
5
Expira o último suspiro aos quarenta e nove anos13. No meio da agonia dos seus
últimos instantes, sente-se resignada com o término da vida e preparada para a morte
quando recebe os últimos sacramentos: “por fim, apercebida com os sacramentos,
aquela boníssima senhora pareceu dormir nos braços do esposo.”14
D. Margarida tinha conseguido uma boa morte, consagrada a Deus.
A certeza de uma vida no além, rodeado pelos santos e pelos antepassados,
garantia ao fiel cristão uma morte serena, temperada por uma vida dedicada ao próximo
e em consonância com a Santa Igreja: “[…] não lhe restando mais que dar, da-se a si
própria em holocausto e heroísmo, e morre, resignada e jubilosa, serena e sublime.”15
Apesar da laicidade do movimento cemiterial romântico, não há dúvida que o
papel da Igreja continuou a ser preponderante na preparação da hora da morte. O fiel
assegurava a entrada no paraíso e uma passagem tranquila desde que seguisse os
preceitos da igreja e os seus rituais. Durante toda a sua vida, preparava a sua partida,
cuidando da família e dedicando-se à caridade: “Resumia-se o seu viver n´uma piedade
incessante, n´uma virtude contínua […]: vivia menos para si que para os outros.”16
Continuando atentos às palavras de Alves Mendes, conseguimos reconstituir os
momentos que se sucederam à morte de D. Margarida. O seu corpo foi velado na Igreja
Matriz da Golegã, onde toda a população goleganense seguiu em romaria, beijando-a e
manifestando o seu pesar “entrajada de luto e debulhada em lágrimas”17, proclamando-
a de santa. Durante todo o dia do enterro e seguintes, de manhã até à noite, a população
dividia-se entre o cemitério, onde chorava a sua protectora, e a Igreja, onde orava pela
sua alma.
Alves Mendes refere que foi “o espectáculo mais comovente, mais pathetico e
mais christão” a que alguma vez assistira e defende que “taes honras, assim
espontâneas que sinceras, quaes nunca logrou a mais famijerada rainha, menos
admiram que assombram e menos são funeraes que adorações!”18
As fotografias que Carlos Relvas fez da ocasião atestam o cortejo fúnebre de
centenas de pessoas, alongando-se pelas ruas principais da vila, em direcção à igreja.
Uma banda iniciava o cortejo e anunciava à sua passagem, com compassos fúnebres, a
13 No seu epitáfio lê-se que morreu aos vinte e dois dias de Março, mas, através da leitura das exéquias do trigésimo dia da morte, datadas de vinte e um de Abril, o já citado cónego refere que “ faz hoje um mez” (p. 34) desde a morte de D. Margarida, e pelo confronto das fotos do seu funeral, apresentando a data de vinte e dois de Março, concluo que, provavelmente, terá falecido a vinte e um de Março, sendo enterrada no dia seguinte, como seria costume. É muito pouco provável que a senhora tivesse falecido num dia e enterrada no mesmo, sobretudo pelo aparato que se sucedeu ao acontecimento. Ou as fotos estão mal datadas, ou o discurso de Alves Martins errou num dia.14 IDEM, ibid., p. 55.15 IDEM, ibid., p. 34.16 IDEM, ibid., p. 18.17 IDEM, ibid., p. 15.18 IDEM, ibid., p. 15.
6
procissão. A população que não seguia a pé, assistia a partir das janelas. Crianças
trajadas de branco imaculado, guiadas pelos padres, replicavam na terra a imagem dos
anjinhos que, do alto, contemplariam o cortejo. A magnificência e o aparato facilmente
confundiria qualquer forasteiro, mais habituado a assistir tamanha encenação nas
grandes cidades e em honra de reis e rainhas.
Ao trigésimo dia da sua morte, a “orphanada e tristissima”19 vila da Golegã quis
prestar a sua homenagem pública, para além das manifestações espontâneas de pesar
dos populares. Mandar celebrar missa no trigésimo dia da morte fazia parte do ritual
funerário católico e, para além da significação ontológica e religiosa do mesmo, seria
mais um passo no rito de separação do mundo dos vivos e de agregação ao mundo dos
mortos, como percebemos pelas palavras de Nicole Belmont: “Assim, os rituais
fúnebres são indubitavelmente rituais de separação do mundo dos vivos, mas também
rituais de agregação ao mundo do além, seja qual for o sistema religioso no seio do
qual são celebrados.”20
Este mesmo autor demonstra que “as populações católicas mandam celebrar um
ofício cerca de trinta dias após a morte, e muitas vezes passado um ano: são as missas
ditas da trigésima e do aniversário; comemorações colectivas têm lugar nos dias de
Todos os Santos e dos Mortos (1 e 2 de Novembro), de certo modo assimilados na
mentalidade comum, e no Domingo de Ramos.”21
É neste contexto que o cónego da Sé do Porto, António Alves Mendes da Silva
Ribeiro, é contactado para fazer o discurso fúnebre. O jazigo da família é, de novo,
aberto, e renovam-se as flores e orações, umas oferecendo um aroma inconfundível ao
local, as outras alento e consolo espiritual. Este tipo de ritual baseado na melancolia, no
culto dos mortos e no dom do silêncio e meditação acompanha o espírito oitocentista e
contribui para a monumentalização, no seu sentido lato, tanto do indivíduo, como, por
extensão, da sua família e da sua última morada. No seu epitáfio22 lê-se: “D. Margarida
Mendes de Azevedo Relvas e Campos, nascida a 9 de Maio de 1837 em Vizeu, falecida
a 22 de Março de 1887. AQUI JAZ.” A fórmula “aqui jaz” remete-nos para a ideia da
morte como o sono profundo no lugar onde o corpo descansa até à hora do juízo final.
Toda a encenação ritualista da deposição do corpo na última morada, relembra que “o
exasperamento da morte do ente querido e o desejo de individualizar a sua evocação,
19 IDEM, ibid., p. 14.20 BELMONT, Nicole, “Vida/Morte” in Enciclopédia Enaudi, vol. 36, p. 16.21 IDEM, ibid., p. 29.22 No aditamento ao testamento de D. Margarida, lavrado pela mão do seu esposo, lê-se que “em lugar d´inscripções deseja que lhe sejam entregues dois contos de reis para compensar com lembranças”.
7
representificando-o, deram um novo alento ao recurso aos epitáfios, ao mesmo tempo
que uma decoração floral intimista criou o cenário adequado à recordação saudosa.”23
No fundo, é o criar de uma imagem em que o corpo apenas dorme, serenamente,
em detrimento da morte feia, da decomposição física.
Com a intenção de perpetuar o momento e deixar um testemunho que
atravessasse gerações, são contratados dois estenógrafos, pai e filho24, para registar todo
o discurso das exéquias do trigésimo dia que, segundo o cónego, é dito de improviso e,
por tal, não fora colocado em papel. Como explica Fernando Catroga, “a escrita (a
leitura) é elevada a garante material da memória […].”25
O objectivo de Carlos Relvas, assim como do seu filho José, da sua sogra, mãe
de D. Margarida, a idosa condensa de Podentes, e do seu genro, Alberto de Campos
Navarro26, seria a publicação em forma de livro-homenagem, como, de facto, acontece
no ano seguinte. Juntamente com o texto de Alves Mendes, o esposo enlutado faz
questão de incluir algumas das fotografias do dia do funeral, assim como do dia das
exéquias do trigésimo dia.
Os rituais de dor e separação cristãos oitocentistas colocam a tónica no
exacerbamento da vivência da morte enquanto “espectáculo” e manifestações de
adoração. A individualização da morte faz transbordar de predicados e de acções,
enformando toda uma memorialização que se pretende duradoura, perdurante para lá do
desaparecimento físico e da passagem do tempo. Alves Mendes, no citado discurso das
exéquias, não se poupa nas palavras, repetindo vezes e vezes todas as qualidades da
senhora, colocando a tónica na importância da família cristã e do papel da mulher
enquanto mãe, educadora e protectora do reduto familiar. D. Margarida é apresentada
como a “senhora da Golegã”27, remetendo-a para o nível colectivo, como se, para além
da sua função de mãe e esposa, fora pertença da vila ou como se a vila lhe pertencesse, e
ambas fossem impossíveis de dissociar. Assim, D. Margarida foi homenageada pública
e privadamente, numa dimensão colectiva e individual.
Declarou-se três dias de luto pela D. Margarida e Alves Mendes atesta que toda
a população, “sem a mínima excepção, fecha as suas portas, paralysa os seus
trabalhos”28.
4. A memória preservada23 CATROGA, Fernando, “Morte romântica e religiosidade cívica” in MATTOSO, José (coord.), História de Portugal, vol. 5, p. 599.24 Tratam-se de José Joaquim Lagrange e Silva e o filho António José Lagrange e Silva, vindos de Lisboa de propósito para o evento.25 CATROGA, Fernando, O céu da memória. Cemitério romântico e culto cívico dos mortos (1756-1911), 1999, p. 26.26 Estes assinam os agradecimentos aos vários envolvidos nas exéquias de D. Margarida, que também são publicados na obra citada de Alves Mendes.27 ALVES MENDES, D. Margarida Relvas, 1888, p. 40.28 IDEM, ibid., p. 15.
8
“Santa memória! Não te profanarei, não te mancharei com as minhas
expressões!”29
A invocação da memória ajuda a conquistar o medo da morte. Enquanto se
recordassem da pessoa, ela não morria. O valor da memória reveste-se, assim, de uma
importância fulcral pois permite manter viva a pessoa nas consciências de cada um.
O jazigo da família Relvas foi mandado erguer pelo pai de Carlos Relvas, José
Farinha de Relvas e Campos, entre os anos 1856, quando o cemitério municipal da
Golegã é fundado, e 1859, quando falece a sua esposa, D. Maria Clementina.30
Como família de grandes posses e de importância notória, o Jazigo foi mais uma
das formas de afirmação dessa posição social. Espelho dos vivos, José Farinha Relvas
encomenda à oficina de canteiro de A. F. Ramil, na Rua Nova da Trindade, nº 81, em
Lisboa, o monumento que albergará, em repouso eterno, a família Relvas. De linhas
elegantes, espelhando o gosto revivalista da época, com pináculos góticos, colunas
neoclássicas e anjos classizantes a velar pelos seus ocupantes. O brasão está colocado
estrategicamente por cima do nome da família que lhe pertence. Em toda a volta, uma
cerca de ferro atesta a propriedade privada e afirma e replica na morte a hierarquia dos
vivos. É o único jazigo do cemitério da Golegã assim delimitado. Fernando Catroga
explica a importância do jazigo-capela no contexto oitocentista: “[…] o jazigo
constituía um bem imóvel, privado e transmissível por herança, funcionando, assim,
como uma espécie de garantia simbólica de que a eternização da memória do seu
proprietário só dependeria da capacidade de os seus descendentes perpetuarem toda a
propriedade familiar.”31
O jazigo-capela é um monumento, no sentido que Jacques Le Goff32 imbuiu o
conceito, como sinal do passado. A raiz monere de monumento significa “fazer
recordar”, logo um monumento funerário apresenta uma dupla função: atesta a morte do
seu ocupante e funciona como uma reivindicação à sua memória.
O seu primeiro ocupante foi D. Maria Clementina Amália Mascarenhas Relvas
de Campos que detém o maior epitáfio, onde se exaltam as qualidades de mãe. Seguiu-
se José Farinha Relvas e depois o seu filho mais velho, José de Mascarenhas Relvas de
Campos.
Francisco e Liberata Relvas, filhos de D. Margarida e Carlos Relvas, aqui
repousam juntamente com a sua mãe e pai. Todos os ocupantes, à excepção de Carlos
29 IDEM, ibid., p. 53.30 Não foi possível aferir a data certa da construção do jazigo, uma vez que os registos que conteriam essa informação desapareceram no seguimento de um grande incêndio que consumiu o antigo edifício da Câmara Municipal (o antigo Palácio da família Relvas) na década de 1950.31 CATROGA, Fernando, “Morte romântica e religiosidade cívica” in História de Portugal, vol. 5, p. 601.32 Vide LE GOFF, Jacques, “Documento/Monumento », in Enciclopédia Enaudi, vol. 1.
9
Relvas (o último a ocupar o seu lugar na casa do eterno repouso), encontram-se vedados
nas gavetas33 por uma tampa de mármore onde se atesta a sua identidade e, à excepção
de D. Clementina Amália que detém o maior epitáfio, são rematados apenas pela
expressão “Aqui Jaz”. Carlos Relvas é o único cujo caixão se encontra a descoberto e
sem qualquer identificação.
Várias coroas de flores ainda revelam o cuidado que outrora fora prestado a esta
casa de eternidade. No entanto, as mesmas estão secas e de algumas apenas sobra a
estrutura que as suportava. O estado de abandono do exterior e interior do jazigo revela
que, há muito tempo, ninguém se dedica a mantê-lo. Familiares directos já não existem,
logo o vínculo familiar perdeu-se e a consequente necessidade de identificação com os
antepassados, e até o seu culto. A chave do monumento ficou entregue à Câmara
Municipal da Golegã que, para já, não tem visto como prioridade a sua manutenção. O
jazigo da família Relvas não deveria circunscrever-se apenas aos limites familiares e há
muito que poderia ser assumido como património da vila e do país pela importância que
esta família preconizou no seu tempo.
A utilização da fotografia como testemunho do ritual da morte é, neste caso
particular, um dado muito importante. Reportando-nos às palavras de Fernando Catroga,
a “fotografia (relembre-se que a descoberta da fotografia – essa nova ilusão da
paragem oval e sépia do tempo é contemporânea da revolução cemiterial romântica)
deve ser vista como uma consequência iconográfica dos novos imaginários, quer estes
apontem para fins escatológicos, quer se cinjam à memória dos vivos.”34
A utilização da fotografia como perpetuação da vida dos defuntos no plano da
rememoração foi rapidamente absorvida por este imaginário romântico do culto dos
mortos. Um jornal londrino, em 1864, anunciava a seguinte curiosidade: “A custom now
prevails in Austria of fixing in tombstones, in a glazed frame, a photographic likeness of
the person lying beneath.”35 Embora em Portugal este hábito de colocar um retrato no
túmulo do defunto em vida não tenha sido imediatamente aplicado, já a fotografia de
todo o ritual funerário foi algo frequente, embora num plano social elevado, uma vez
que a fotografia era uma arte/técnica dispendiosa. Dada a importância que D. Margarida
granjeava localmente, e até a nível nacional, uma vez que era a filha dos condes de
Podentes, a sua morte seria um acontecimento que não poderia deixar de ser fixado em
imagens, ainda mais sendo o seu esposo um reputado fotógrafo amador. O importante
papel da fotografia no trabalho de luto encontra-se na sua capacidade de reaproximar e
33 No testamento de D. Margarida há a referência da prateleira que a mesma gostaria de ocupar, sendo que o mesmo se cumpriu.34 CATROGA, Fernando, O céu da memória. Cemitério romântico e culto cívico dos mortos (1756-1911), p. 17.35 The Penny Illustrated Paper, Londres, 3 de Setembro de 1864.
10
rememorar. O esposo enlutado, ao fotografar a morte da esposa, distancia-se do
processo de dor. Controlando as imagens, controla a sua própria dor. A prova viva,
eternizada e personalizada, do amor que dedicavam a D. Margarida, é a imagem
fotográfica. As referências pessoais de Carlos Relvas que levaram a tirar as fotografias
do momento de despedida passaram a ser de nível colectivo. Susan Sontag analisa esta
dicotomia entre fotografia e morte, explicando que “todas as fotografias são memento
mori. Fotografar é participar na mortalidade, vulnerabilidade e mutabilidade de uma
pessoa ou objecto. Cada fotografia testemunha a inexorável dissolução do tempo,
precisamente por seleccionar e fixar um determinado momento. […] A fotografia é o
inventário da mortalidade.”36 Houve, até, quem fosse mais longe nesta relação
fotografia/morte e incluísse uma imagem da pessoa já depois de morta. Em Portugal a
fotografia post-mortem teve poucos adeptos, mas em países anglo-saxónicos, por
exemplo, a fotografia da pessoa morta chegou a ser de tal forma encenada que se
pretendia fazer passar o morto por vivo, ora descansando, ora colocando-o, a custas de
suportes metálicos, em vigília, posando junto dos seus familiares mais próximos.
As acções em vida de D. Margarida, como vimos, granjearam-lhe um lugar na
memória dos goleganenses, pelo bem que dedicou à vila. Com a sua típica eloquência, o
cónego Alves Mendes defendeu que D. Margarida se monumentalizou a si própria,
referindo o culto que a vila lhe prestava, imortalizando-a: “[…] tem um culto no vosso
espírito e um throno no vosso peito; perfeição eternamente memorável, gloriosamente
imortal diante de Deus e diante dos homens.”37
Em Julho de 1888, pouco mais de um ano após a morte da “santa” da Golegã,
Carlos Relvas decide casar-se novamente, o que chocou a família e a população
goleganense.
A partir do momento em que desposa novamente, a memória de D. Margarida
revela-se mais forte, no sentido em que nem a população goleganense nem a sua família
aceitam de bom grado esta união. Uma união desrespeitosa para com a memória de D.
Margarida, cujo desaparecimento ainda ecoava em choque no povo que tanto a amava.
À falta de familiares que cuidassem do monumento fúnebre, lentamente foi-se
esquecendo de cultuar os seus ocupantes. Como refere Fernando Catroga, “[…] a
memória, vinda do passado, poderá perdurar num futuro aberto -, e implica que se
esqueça que, tarde ou cedo (duas, três gerações?), os mortos também acabarão por
ficar órfãos dos seus próprios filhos”38. A vila, que se sentiu órfã quando D. Margarida
36 SONTAG, Susan, Sobre Fotografia, Companhia das Letras, 2004, pp. 24-70.37 ALVES MENDES, D. Margarida Relvas, p. 52.38 CATROGA, Fernando, O céu da memória. Cemitério romântico e culto cívico dos mortos (1756-1911), p. 26.
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se separou do mundo dos vivos, perpetuou o seu nome, dedicando-o a uma das suas
ruas.
ICONOGRAFIA
12
Fig. 1. D. Margarida Relvas.
Fig. 2. D. Margarida Relvas em família.
13
Fig. 3. Imagem de D. Margarida
incluída no livro editado em 1888,
contendo as exéquias proferidas pelo
cónego Alves Mendes.
Fig. 4. Obituário, em forma de
fotografia, elaborado pelo
esposo, Carlos Relvas e
publicado na obra acima
descrita.
14
Fig. 5. A Igreja Matriz da Golegã, onde se celebraram as exéquias.
Fig. 6. A entrada da Igreja no dia do funeral, atestando a presença em massa da
população goleganense.
15
Fig. 7. A procissão fúnebre.
Fig. 8. A coroa de flores oferecida pela vila da
Golegã, no trigésimo dia da morte.
16
Fig. 9. O féretro elevado no cadafalso, rodeado de velas, e a nave da igreja toda
decorada para a ocasião.
Fig. 10. O Jazigo da Família Relvas, enfeitado de flores e coroas, como
testemunho do apreço e homenagem da população.
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Fig. 11. A entrada do cemitério nos dias
de hoje.
Fig. 12. O jazigo nos dias de
hoje.
BIBLIOGRAFIA18
FONTES
Manuscritas
Testamento de D. Margarida Relvas, datado de 16 de Maio de 1886. Arquivo
Histórico da Casa dos Patudos, Alpiarça.
Aditamentos ao testamento, em folhas soltas, de inícios de 1887. Arquivo
Histórico da Casa dos Patudos, Alpiarça.
Despesas decorrentes do funeral de D. Margarida Relvas (1887), em folhas
soltas. Arquivo Histórico da Casa dos Patudos, Alpiarça.
Impressas
ALVES MENDES – D. Margarida Relvas. Porto: Typographia de A. J. da Silva
Teixeira, 1888.
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Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984
Periódicos
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ICONOGRAFIA
Fig. 1: in VICENTE, António Pedro – Carlos Relvas Fotógrafo (1838-1894).
Contribuição para a história da fotografia em Portugal no século XIX. Lisboa:
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Fig. 2: in AAVV – Carlos Relvas e a Casa da Fotografia. Lisboa: Museu
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Fig. 3, 4, 5, 7, 8, 9, 10: in ALVES MENDES – D. Margarida Relvas. Porto:
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Fig. 6: in OLIVEIRA, Paulo – Carlos Relvas e a sua Casa-Estúdio. Golegã:
Câmara Municipal, 2006, p. 137.
Fig. 11 e 12: Fotografias da autora do texto.
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