risco, cidadania e estado num mundo globalizado minas de... · tem por missão desenvolver...
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Jos Manuel de Oliveira Mendes (Coordenador)
Alexandra Arago
Pedro Arajo
Mrcio Nobre
Risco, Cidadania e Estado num
Mundo Globalizado
N 03 Dezembro 2013
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As minas de urnio em Frana e Portugal
Pedro Arajo1 e Jos Manuel Mendes2
Nota prvia
As histrias do urnio integram uma histria mais vasta, mais complexa, mais distante,
tambm, ideolgica, poltica e tecnologicamente: a histria do nuclear.3 As histrias do urnio
e as histrias do nuclear entrelaam-se, a segunda, porm, ofuscando a primeira,
extravasando, como refere Gabrielle Hecht em captulo constante deste relatrio, as escalas do
tempo e do espao.4 As histrias do urnio, pelo contrrio, so inevitavelmente cativas de um
tempo e, mais ainda, de um espao.
Ser aqui questo de urnio, enquanto facto em bruto (Gunter e Kroll-Smith, 2006:
198) que existe para alm dos desideratos e valores humanos, e de nuclearidade (Hecht, 2006;
2009), enquanto categoria tecno-poltica continuamente contestada, cujos parmetros de
definio dependem da histria e da geografia, da cincia e da tecnologia, dos corpos e das
polticas, dos estados e dos mercados. Ser questo de urnio e de nuclearidade, mas num
momento particular daquelas que configuram as suas temporalidades em dois territrios: a
Urgeiria, em Portugal, e a regio do Limousin, em Frana. Comecemos, ento, por situar a
anlise no espao e no tempo.
A anlise que nos propomos desenvolver parte de dois territrios, em Portugal e em
Frana, nos quais a explorao de urnio foi irreversivelmente marcante: a Urgeiria e a
regio do Limousin. Distintos no impulso que conferiram ao desenvolvimento nacional da
indstria nuclear, estes territrios partilham duas importantes semelhanas que serviram de
ponto de partida para o exerccio comparativo que nos propomos empreender. Por um lado, a
Urgeiria e o Limousin foram, sem dvida, os territrios onde, em Portugal como em Frana,
a explorao de urnio mais se desenvolveu e adquiriu dimenso nacional e internacional. Por
outro, ambas as histrias da indstria uranfera nestes territrios culminam, no final do sculo
XX, num reconhecimento algo tardio do passivo ambiental gerado pela explorao desse
minrio. Meio sculo depois, no caso do Limousin, e quase um sculo, no caso da Urgeiria,
findos a extraco e tratamento de urnio, o momento histrico ao qual ambos os casos nos
reportam e no qual nos deteremos para abrir a cena sobre os actores que lhe do corpo
o do tempo incerto da radioactividade (Brunet, 2004). A designao de tempo incerto no
poderia ser mais acertada. Num caso como no outro, encerrada a actividade, o urnio e a sua
1 Pedro Arajo investigador do Centro de Estudos Sociais Laboratrio Associado e membro do Ncleo de Estudos sobre
Polticas Sociais, Trabalho e Desigualdades (POSTRADE). Mestre em Sociologia pela Faculdade de Economia da
Universidade de Coimbra e licenciado pela mesma Faculdade. Os seus interesses de investigao centram-se em questes
relacionadas com o desemprego e as experincias do desemprego, os Conselhos de Empresa Europeus e, mais recentemente,
o risco e a cidadania. 2 Jos Manuel Mendes doutorado em Sociologia pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, onde exerce as
funes de Professor Auxiliar. Investigador do Centro de Estudos Sociais, tem trabalhado nas reas das desigualdades,
mobilidade social, movimentos sociais e ao coletiva e, mais recentemente, nas questes relacionadas com o risco e a
vulnerabilidade social. 3 A histria do nuclear em Portugal, permanecendo ainda em grande parte por contar, encontra vlidos contributos em Sousa
et al. (1978); Oliveira (2002); Taveira (2005); Rodrigues (2006). Relativamente Frana, Cf., entre outros, Aileret (1968);
Vasse (1998); Hecht (2004); Reuss (2007); Leridon (2009). 4 A minerao de urnio constitui a primeira etapa do chamado ciclo do combustvel nuclear que descreve todas as operaes
relacionadas com a obteno e preparao do combustvel, o seu uso num reactor e o manuseamento do combustvel usado.
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explorao desprendem-se definitivamente do contexto de familiaridade no qual se
encontravam e passam a ser fonte de incerteza (Vide captulo de Olivier Borraz neste
relatrio). Incerteza relativamente ao patrimnio negativo que legaram aos territrios e s
geraes vindouras. E, mais importante, incerteza relativamente ao seu controle no passado e
sua gesto no futuro por parte dos responsveis pela actividade e pelo Estado. este o
tempo durante o qual esto presentes as condies para que, em Frana, uma associao
ambiental se oponha ao gigante francs do nuclear, a COGEMA (hoje, AREVA NC), e que,
em Portugal, o dever assumido por sucessivos governos de proceder requalificao
ambiental dos antigos stios minrios encontre resistncia local na voz dos ex-trabalhadores
da ENU.
O que procuraremos tornar saliente so as diferentes configuraes que, em Frana e em
Portugal, assume a relao entre o Estado, o territrio e a populao, quando mediadas pela
redescoberta da nuclearidade do urnio, tomando-se como pontos de entrada, no caso
francs, o processo judicial que ops a associao Sources et Rivires du Limousin (Fontes e
Rios da regio Limousin, SRL) COGEMA e, no caso portugus, nos inesperados protestos
que emergiram na sequncia da requalificao ambiental da rea mineira da Urgeiria.
1. As temporalidades do urnio na regio Limousin e na Urgeiria: dos
tempos ureos do urnio incerteza da radioactividade
1.1. As temporalidades do urnio na regio Limousin
A descoberta de minrios de urnio no departamento da Haute-Vienne, regio do Limousin,
data de Outubro de 1804. No entanto, a indstria do urnio apenas principia no final da II
Guerra Mundial, tendo sido fundamental para o seu desenvolvimento a criao do
Commissariat lEnergie Atomique (Comissariado para a Energia Atmica, CEA) pelo
General de Gaulle.5 De 1947 a 1949, o CEA realiza diversas misses de prospeco cujo
sucesso culmina na descoberta dos principais jazigos da regio (Fanay, Sagnes, Margnac,
Burgeaud, Fraisse-les-Gorces e Bellezane) que faro da Diviso Mineira da Crouzille o mais
importante distrito uranfero francs (Guiollard, s/d; Bavoux e Guiollard, 1998; Brunet,
5 O Comissariado para a Energia Atmica (CEA) um estabelecimento pblico de carcter cientfico, tcnico e industrial que
tem por misso desenvolver aplicaes da energia nuclear nos domnios cientficos, industrial e da defesa nacional. O CEA
foi criado em Outubro de 1945, pelo governo provisrio do General Charles de Gaulle, na sequncia da proposio de
Frdric Joliot-Curie (fsico francs, Alto Comissrio para a Energia Atmica) e Raul Dutry ( data, Ministro da
Reconstruo e do Urbanismo, e, posteriormente, administrador do CEA). De acordo com o despacho constitutivo do CEA,
este destinava-se, ento, prossecuo de pesquisas com vista utilizao da energia nuclear nos domnios da cincia,
indstria e defesa nacional. Na sequncia de divergncias quanto utilizao dos recursos nucleares, Frdric Joliot-Curie
substitudo, em 1950, por Francis Perrin. At ento orientado para a investigao fundamental, comummente oposta
investigao aplicada, o CEA lana-se na procura de aplicaes militares e civis para a energia atmica. Apesar do governo
francs ainda se no ter oficialmente decidido pela construo da bomba atmica, as condies so criadas para que tal
pudesse acontecer. Em 1960, a Frana realiza o seu primeiro ensaio nuclear, no deserto do Sara, dois anos aps ter anunciado
a inteno de construir uma bomba atmica. De entre os diversos acontecimentos que marcaram a vida do CEA, salienta-se a
fuso da filial CEA Indstrias com a FRAMATOME e a COGEMA para formar um novo grupo: a AREVA. A AREVA foi
criada em setembro de 2001, pela fuso, para muitos, improvvel, da CEA Indstrias, da FRAMATOME e da COGEMA,
pela mo de Anne Lauvergeon, que, em 2006, ocupava o segundo lugar do ranking da revista Fortune das businesswomen
mais poderosas do mundo. O grupo detm, hoje, integralmente, a AREVA T&D (Transmisso e Distribuio de
Electricidade, adquirida Alstom em 2004) e a AREVA NC (Nuclear Cycle), e 66% da Areva NP (Nuclear Power, ex-
FRAMATOME). A AREVA NC COGEMA at Maro de 2006 quando todas as filiais da AREVA adoptaram uma nova
identidade pertence a 100% ao grupo AREVA e especializada nas actividades ligadas ao ciclo do urnio enquanto
combustvel nuclear: explorao mineira, produo e enriquecimento do combustvel, tratamento e reciclagem dos
combustveis usados, e desmantelamento e requalificao das instalaes.
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2004). Aqui nasce a mina de Henriette, a primeira mina de urnio francesa, que ser
explorada de 1950 a 1958. Em 1956, decidida a construo de uma fbrica de tratamento em
Bessines (Haute-Vienne, Limousin), a SIMO, cuja laborao se inicia em 1958 e durar at
1993. Em 1976, o CEA cede sua filial COGEMA a explorao das minas em territrio
metropolitano, e esta assegurar a explorao do minrio at 1995, altura em que encerrada
a Diviso Mineira da Crouzille.
O acidente da central nuclear de Three-Mile Island (EUA), em Maro de 1979, provoca
uma desacelerao generalizada na construo de centrais nucleares e, consequentemente,
uma recesso nos preos do urnio.6 Os progressos tcnicos no tratamento dos minrios e nos
mtodos de explorao, por um lado, e as reestruturaes, por outro, permitiro Frana fazer
face crise at 1988, altura para a qual estava programado o encerramento das principais
exploraes. O ano de 1988 , de facto, um ano nico na explorao de urnio (5,6% da
produo mundial) e marca igualmente o incio do encerramento de minas em Frana. A
Diviso Mineira da Crouzille encerrar em 1995 (Guiollard, s/d). A explorao, por parte da
AREVA NC, ex-COGEMA, desloca-se, ento, exclusivamente, para o estrangeiro (Austrlia,
Nigria, Gabo, Canad, etc.).
Hoje, o Complexo Industrial de Bessines substituiu a Diviso Mineira da Crouzille e, sob
a responsabilidade da AREVA, emprega uma centena de pessoas repartidas em trs
organismos: o Servio de Estudos de Procedimentos e Anlises (Service dtudes de
Procds et Analyses, SEPA); o servio de armazenamento de urnio empobrecido; e o
Centro de Estudo e Acompanhamento das Antigas Actividades Mineiras (Centre dtude et
de Suivi des Anciennes Activits Minires, CEESAM) cuja funo consiste em gerir todos os
stios mineiros francs encerrados (Grenetier, 2002).
Para a explorao do urnio na regio do Limousin, Philippe Brunet (2004) identifica trs
temporalidades: o tempo ureo do urnio (1949-1973), o tempo contestado do nuclear (1974-
1987), e o tempo incerto da radioactividade (1988-2001) (Quadro 1).7
Quadro 1. As temporalidades do urnio na regio Limousin
6 As minas de urnio conhecero uma primeira recesso durante os anos 60 devido ao excesso de produo, queda do preo
do urnio e ao atraso na instalao das centrais nucleares. Em 1973, o primeiro choque petrolfero relana a prospeco e a
produo de urnio, com os preos a dispararem novamente (Guiollard, s/d). 7 A regio do Limousin uma das 26 regies francesas. Composta por trs departamentos (diviso administrativa francesa),
Corrze, Creuse e Haute-Vienne, esta situa-se quase totalmente no Massivo central francs.
Tempo ureo do urnio
(1949-1973)
Tempo contestado do nuclear
(1974-1987)
Tempo incerto da
radioactividade
(1988-2001)
Urnio como bem comumAmeaa ao urnio como bem
comum
Contestao aberta ao urnio
como bem comum
Ausncia da questo
ambiental
Emergncia da questo
ambiental
Afirmao e legitimao da
questo ambiental
Ausncia da questo da
sade pblica
Emergncia da questo da
sade pblica
Afirmao e legitimao da
questo da sade pblica
Presena interna da questo
da sade profissional
Presena reforada da
questo da sade profissional
Ausncia pblica da questo
da sade profissional
Retornos materiais e
simblicos nacionais da
explorao mineira
Negociao local dos retornos
da explorao mineira
Redefinio local e regional
dos retornos ps-minas
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Em traos gerais, o primeiro perodo o tempo ureo do urnio (1949-1973)
corresponde quele durante o qual, sob a gide do Comissariado para a Energia Atmica, o
urnio constitui um bem comum incontestado e durante o qual a questo ambiental no se
coloca. No contexto de reconstruo material e moral do ps-guerra, a Frana faz da
independncia nacional um dos factores chave de mobilizao da Nao e do
desenvolvimento da tecnologia atmica, da afirmao de uma Frana tecnolgica, um dos
meios realizao desse objectivo (Hecht, 2004; Brunet 2004). A energia atmica implica
duas condies indissociveis: o domnio tecnolgico e o domnio do recurso energtico, ou
seja, o urnio. A contingncia de se encontrar urnio na regio do Limousin ir alterar o seu
porvir, arrancando o territrio, tal com acontece na Urgeiria, ao seu destino rural. A opo do
governo francs, em 1973, pelo desenvolvimento de um programa de energia electronuclear
ir, de facto, provocar duas consequncias na Diviso Mineira da Crouzille: primeiro, uma
evoluo drstica nas tcnicas de explorao, na produo e no nmero de efectivos; e,
segundo, a transformao da configurao agro-industrial, at ento existente, numa
configurao industrial (Brunet 2004).
O segundo tempo do urnio o tempo contestado do nuclear (1974-1987) , aquele
durante o qual as elites regionais procuram renegociar com o Estado as contrapartidas da
explorao de urnio. O objectivo o de evitar a dependncia do crescimento da regio
relativamente explorao mineira, o que induziria uma relao colonial, para, tomando
partido dessa riqueza, desse trunfo para a regio, desenvolver actividades relacionadas com
o nuclear (Brunet, 2004: 144). A diferena relativamente ao tempo anterior prende-se com o
futuro. Enquanto no tempo ureo do urnio o territrio procurava apenas uma compensao
imediata (impostos, taxas profissionais, etc.), no tempo contestado do nuclear o que as elites
regionais procuram que a explorao de urnio seja acompanhada por um desenvolvimento
industrial durvel e qualificado (Brunet, 2004: 146). neste contexto, que se exacerba o
discurso anti-colonialista nas reivindicaes da regio relativamente a um Estado surdo aos
seus apelos e vido das suas riquezas (Idem). Interessante, esse discurso continuar presente,
desta feita, para garantir que o explorador (a AREVA) assuma as suas responsabilidades
relativamente requalificao ambiental da regio. Nas palavras do Presidente do Conselho
Regional do Limousin:
H um aspeto que me perturba neste caso que o facto de, uma vez explorados os stios mineiros, estes
terem sido abandonados como um trapo velho. Quer dizer, a empresa exploradora trabalhou aqui como
exploradores em frica: pilharam os recursos e foram-se embora. Hoje, alis, estamos a tentar fazer com
que regressem e com que assumam as suas responsabilidades. [] Havia esta ideia de que uma vez que se
tinha pilhado o subsolo de um territrio era possvel partir impune. Isso que no aceitvel. (Entrevista a
Jean-Paul Denanot, Presidente do Conselho Regional do Limousin, 22.01.2009)
igualmente neste perodo que, pelo vis da contestao ao nuclear, as associaes
ambientais comeam a dar visibilidade aos efeitos da explorao mineira e do tratamento de
urnio. Todavia, no decurso do tempo contestado do nuclear, a questo industrial continuar
predominante e a sua resoluo local continuar a assentar, tal com anteriormente, numa
abordagem contratual visando interesses privados e particulares. Incapaz de descolar, a
questo ambiental continuar neste tempo ainda grandemente marginal (Brunet, 2004: 196).
Finalmente, com o encerramento das minas no final dos anos 80 e o fim do ciclo de
explorao de urnio em territrio nacional, medida que se dissolve a questo industrial
afirma-se a questo ambiental (Brunet, 2004: 18). este o perodo durante o qual, perante a
incerteza relativamente ao legado da explorao de urnio para os trabalhadores e,
principalmente, para a sade pblica e para o ambiente, a questo ambiental ganha
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legitimidade e, posteriormente, por via da emergncia de novos actores e do processo judicial
movido contra a COGEMA, uma nova dimenso.
As questes mais prementes so, agora, a da requalificao e monitorizao dos antigos
stios mineiros e a gesto dos resduos da actividade. No mais questo de urnio como
recurso cuja explorao cessou ou de nuclear como indstria rompido que foi o elo que
a ligava directamente explorao mineira , mas de radioactividade enquanto fenmeno
fsico portador de riscos sanitrios e ambientais e como smbolo de convergncia dos dois
perodos anteriores. A questo ambiental mobiliza uma configurao de actores distinta da
presente no tempo contestado do nuclear, permanecendo activos os eleitos regionais e as
associaes, apagando-se os eleitos locais e desaparecendo os mineiros do espao pblico
(Brunet, 2004: 203).
Dois acontecimentos marcam o tempo incerto da radioactividade, contribuindo
distintamente para a afirmao da questo ambiental. O primeiro, no incio dos anos 90, diz
respeito ao projeto de armazenamento de urnio empobrecido em Bessines e ao inqurito
pblico no centro do qual este se encontrou. Acontecimento que contribuir para a aquisio
de grandeza da questo ambiental ao tornar patente que esta problemtica no se limita
somente ao patrimnio negativo j existente no antigo stio mineiro, mas extravasa, por via da
incerteza do risco, as suas fronteiras espaciais (dos antigos stios mineiros para o conjunto do
territrio) e temporais (do passado s geraes futuras). As elites regionais, pela voz do
Conseil Rgional du Limousin (Conselho Regional da regio Limousin), ope-se ao projeto,
considerando que tal seria fazer da regio o caixote do lixo radioativo da Frana com
efeitos nocivos imagem do Limousin verde, ao seu turismo e sua agricultura de
qualidade, ou seja, estratgia de reconverso da regio. Os eleitos locais, apoiados pelos
habitantes de Bessines, pelos antigos trabalhadores e pelos sindicatos, revelam-se menos
ruidosos, continuando a esperar que a COGEMA assegure uma dinmica de
desenvolvimento e postos de trabalho na base dos quais sempre se encontrou, ou seja, que,
por via do armazenamento, a COGEMA d continuidade questo industrial.
A maior mobilizao [da populao] foi a propsito do armazenamento de resduos radioativos. Este aspeto
pode parecer secundrio mas importante. Quando a COGEMA decidiu fechar as minas Alis, todos os
problemas s surgem quando as minas encerram. Antes disso, a empresa representava um tal peso
econmico na regio que pouca gente quereria falar disso com medo de perder o emprego e de beliscar a
economia da regio. Quando a empresa fecha as minas, fez um acordo com a municipalidade de Bessines,
na qual estava a fbrica, os laboratrios, etc. Quando as minas fecharam, ficaram dois laboratrios. A
COGEMA convidou um dia a municipalidade de Bessines para ir a Pierrelatte, que um stio nuclear, para
lhes dizer o seguinte: ns temos aqui urnio empobrecido e o que propomos que armazenem em Bessines
parte desse urnio. Isso que fez gritar as associaes ambientais! Isto que foi o escndalo! [] Por
exemplo, o antigo presidente do Conselho Regional disse claramente que se tratava de fazer da regio um
caixote do lixo radioativo. A municipalidade de Bessines tinha medo que a COGEMA, caso no aceitasse o
armazenamento do urnio, fechasse os dois laboratrios que ainda se encontram l e que interrompesse toda
a actividade na regio. A verdade que, do ponto de vista econmico, isso teria sido catastrfico.
Acabaram por aceitar o armazenamento e foi construdo um armazm ao ar livre em Bessines. Isso s para
lhe dizer que foi mais uma acha na fogueira. (Entrevista a Christian Blangard, Jornalista, 21.01.2009)
O professor de medicina disse ao presidente da cmara de Bessines quais eram os perigos e esse presidente
da cmara, que se chamava Bernard Brouille, respondeu que no queria um deserto verde em Bessines. Que
preferia camies e indstria No percebeu nada ou no quis compreender. (Entrevista a Bernadette
Prieur, Association de Dfense de lEnvironnement des Pays Ardien et Limousin, 30.01.2009)
As associaes ambientais, por sua vez, orientam definitivamente o debate para a questo
ambiental afastando o desenvolvimento industrial ao mesmo tempo que as eventuais
contrapartidas econmicas que poderiam advir do armazenamento. O que procuram que a
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questo no fique irremediavelmente cativa de um nico espao, Bessines, mas extravase as
fronteiras controladas da antiga Diviso Mineira, para incluir outros actores que no os que
beneficiaram e beneficiam directamente da presena da AREVA. A argumentao das
associaes ambientais vai no sentido de fazer do projeto de armazenamento uma prova de
verdade relativamente s autoridades pblicas e a todos quanto tiveram responsabilidades
polticas no territrio para determinar, de uma vez por todas, se se mantm a cumplicidade
entre explorador, autoridade pblica e eleitos (Brunet, 2004: 223). Provada aos olhos das
associaes ambientais a cumplicidade entre estes agentes, facilmente se compreender que a
nica forma de retirar o territrio e o seu destino deste arranjo ser impulsionar um novo
arranjo.
Eu acho que j demos muito ao Limousin e que agora acho que podamos ficar por aqui. No fomos, no
fundo, muito gratificados pela mais-valia econmica que demos ao pas. Fomos um bocado pilhados e,
hoje, as pessoas batem-se para que haja um retorno (Entrevista a Jean-Paul Denanot, Presidente do
Conselho Regional do Limousin, 22.01.2009)
Durante muito tempo a radioactividade ficou associada aos extremos Aqui estamos num domnio mais
banal, no domnio de explorao mineira. Isto no Chernobyl. No o mesmo gnero de catstrofe. No
comparvel! No a mesma escala! Mas preciso falar dos problemas quando eles se colocam e estamos
numa regio onde eles vieram superfcie e penso que tivemos razo em coloc-los. (Entrevista a
Christian Blangard, Jornalista, 21.01.2009)
No tempo incerto da radioactividade confluem, pois, duas incertezas, a incerteza
econmica resultante do fim da indstria uranfera, mais restrita, e a incerteza da
radioactividade, que vai ganhando grandeza medida que, finda a explorao, se liberta da
sua relao directa com uma zona circunscrita de explorao (a Diviso Mineira), para se
estender no espao (a regio, o territrio nacional), no tempo (as geraes futuras) e nas suas
implicaes (o ambiente e a sade pblica). A aco das associaes ambientais ir, nesta
medida, no sentido de obrigar o explorador a permanecer de outro modo ao territrio que
explorou. Como salienta Didier Gay (2006), do Instituto de Radioproteo e Segurana
Nuclear (Institut de Radioprotection et de Sret Nuclaire, IRSN) e membro do Grupo de
Peritagem Pluralista Minas do Limousin:
Em Frana, o envolvimento prtico do grupo (AREVA) nas antigas zonas mineiras
consiste na assuno do legado social e ambiental. Desta perspectiva, os antigos lugares
mineiros podem ser vistos como um fardo, sendo a questo fulcral como os mesmos podem
ser definitivamente encerrados e libertados do controlo regulatrio. Por outras palavras, a
questo de fundo como vender este legado e abandonar o jogo. De outro ponto de vista, o
legado social e ambiental tambm uma ameaa potencial imagem da AREVA como uma
empresa sustentvel. Este aspeto ainda mais relevante dado que, para alm da sua actividade
mineira, o grupo AREVA tambm uma das maiores empresas no negcio do nuclear, tanto
em Frana como a nvel mundial. Como um actor nuclear, est no centro de um escrutnio
rigoroso de vrios stakeholders, de ONGs ambientais como tambm de polticos e dos meios
de comunicao social. Este contexto obriga a AREVA a respeitar integralmente as suas
obrigaes, e at a actuar de uma forma proactiva.
Como veremos, no caso da Urgeiria, em Portugal, verifica-se um movimento oposto: o
Estado, assumindo a requalificao ambiental como uma sua responsabilidade e um seu
dever, regressa ao territrio atravs, por um lado, de um programa nacional e de uma
empresa pblica e, por outro, de um enquadramento jurdico e de um enquadramento tcnico,
que iro contribuir para confinar a controvrsia.
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1.2. As temporalidades do urnio na Urgeiria
Para a Urgeiria propomos, pela nossa parte, igualmente trs temporalidades: o tempo
tacteante do urnio (1913-1962), o tempo ureo do urnio (1962-1990), e o tempo incerto da
radioactividade (1990-2008) (Quadro 2).
Quadro 2. As temporalidades do urnio na Urgeiria
As temporalidades aqui definidas no encontram uma correspondncia directa com a
cronologia da explorao e tratamento de urnio na Urgeiria, assentando a sua formulao,
por um lado, no significado do urnio e, por outro, na ausncia, primeiro, e na emergncia,
depois, da questo ambiental.
Em Portugal, a histria do urnio ter comeado em 1907, com a descoberta dos
primeiros jazigos urano-radferos.8 Na Urgeiria, a aventura do urnio inicia-se em 1913 com
a descoberta de uma pedra pouco vulgar [] que exames revelaram possuir elevado teor de
urnio (Veiga, 2006: 257). De 1913 a 2001, a explorao e tratamento de rdio e,
posteriormente, de urnio sero da responsabilidade: da Henry Burnay & C. (1913-1931); da
Companhia Portuguesa de Radium, Lda. (1932-1962); da Junta de Energia Nuclear (1962-
1977); da Empresa Nacional de Urnio, EP. (1977-1990); e, finalmente, da Empresa Nacional
de Urnio, SA. (1990-2001).
O tempo tacteante do urnio (1913-1962) corresponde ao arranque da aventura do
urnio e estende-se at interrupo da actividade privada no sector da explorao de
minrios de urnio, com os bens, concesses e direitos da Companhia Portuguesa de Rdio a
serem transferidos para o Estado, que passar a exercer essa actividade em regime de
monoplio.
A existncia e descoberta ocasional desses jazigos na Urgeiria deram, de facto, origem a
uma indstria votada, inicialmente produo de concentrados de rdio (at ao incio da II
Guerra Mundial) e s depois de urnio. este o tempo da Companhia Portuguesa de Radium,
tempo que, apesar de tacteante em relao ao significado do urnio, corresponde a um perodo
8 Os jazigos de urnio mais importantes encontram-se localizados na regio central do Pas (Beiras), dispostos na parte
ocidental do Macio Hesprico, abrangendo a Cordilheira Central (Serra da Estrela, Lous, S. Pedro de Aor, Gardunha), e
estendendo-se para poente at s Serras do Buaco, Caramulo e Montemuro. Na regio Centro, o urnio foi explorado em
diversas minas das quais se salientam as minas da Urgeiria, Bica, Castelejo, Cunha Baixa, Quinta do Bispo e Pinhal de Soto
(Romo et al., 2000: 103).
Tempo tacteante do urnio Tempo ureo do urnio Tempo incerto da
radioactividade (1913-1962) (1962-1990) (1990-2008)
Urnio como bem comum
mitigadoUrnio como bem comum
Contestao aberta ao urnio
como bem comum
Ausncia da questo
ambiental
Ausncia da questo
ambiental
Afirmao da questo
ambiental
Ausncia da questo da
sade pblica
Ausncia da questo da
sade pblica
Afirmao da questo da
sade pblica
Presena mitigada da questo
da sade profissional
Presena interna da questo
da sade profissional
Presena pblica da questo
da sade profissional
Retornos exteriorizados da
explorao mineira
Retornos materiais e
simblicos nacionais da
explorao mineira
Redefinio central dos
retornos ps-minas
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de crescimento, a nvel local, das infraestruturas industriais e sociais.9 Nas palavras de Carlos
Veiga (2006: 265), [d]o complexo mineiro nasceu [] uma comunidade alicerada numa
rede de solidariedades, com aspiraes e necessidade comuns, com um forte enraizamento no
meio. A verdade que, do complexo mineiro nasceu, outrossim, uma comunidade dentro da
comunidade, um lugar, como muitos dos seus habitantes insistem ainda em chamar-lhe,
distinto de Canas de Senhorim. Os efeitos desta distino no se diluram completamente
depois da cessao da actividade do complexo industrial da Urgeiria e sero, como veremos,
importantes para compreender o modo como medida que a questo dos trabalhadores da
Empresa Nacional de Urnio ganha em dimenso meditica, vai perdendo em apoio local.
O urnio constitui, nesse perodo, um bem para aqueles que o exploram e para os
trabalhadores que neste aliceram as suas vidas. A nvel local, os benefcios da explorao,
excepo da Urgeiria, so quase nulos, situao que, alis, do ponto de vista de diversos
actores locais por ns entrevistados se manter independentemente da temporalidade
considerada.
A questo ambiental no se coloca durante o tempo tacteante do urnio, tal como
acontece no perodo seguinte: o tempo ureo do urnio (1962-1990). Na transio entre um
perodo e o outro encontra-se um elo fundamental: a Junta de Energia Nuclear (1954). Ser,
de facto, a partir da instalao da Junta de Energia Nuclear (JEN) que o urnio, do ponto de
vista poltico como do ponto de vista de uma elite emergente de tcnicos, engenheiros,
cientistas e acadmicos, ganhar relevo nas aspiraes do pas tanto a nvel nacional com
internacional. Frederico Gama Carvalho, Presidente do Instituto de Tecnologia Nuclear, num
discurso de 2004 proferido por ocasio da comemorao da passagem de 50 anos da criao
da JEN, salientava que: A Junta de Energia Nuclear surge como consequncia do
reconhecimento nos crculos dirigentes do Pas da importncia de desenvolver em Portugal
uma competncia mnima no domnio emergente do saber, da energia atmica, importncia
no apenas no plano das econmico, consideradas as suas aplicaes energticas e no
energticas, mas tambm na perspectiva das vantagens polticas a retirar desse
desenvolvimento em especial no quadro do relacionamento internacional do Pas (apud
Taveira, 2005).
O urnio carrega, neste perodo, um novo significado. Amlia Taveira (2005: 3) , a este
propsitio, esclarecedora: O valor potencialmente crescente que o urnio foi assumindo,
justificou, da parte do Governo portugus, a adoo, em 1950, de medidas destinadas a
reservar esta matria-prima para ser posta ao servio da Nao. Em particular, as empresas
que no detinham concesses de minrios de urnio passaram a ficar impedidas de os
exportar, excepto para o Reino Unido, nos termos do acordo Luso-Britnico de 1949.10 Essas
medidas desencadearam uma srie de negociaes entre os governos portugus e os dos pases
9 Uma placa ainda existente nos escritrios da Empresa Nacional de Urnio, atribui Companhia Portuguesa de Radium a
instalao, entre 1950 e 1951, a nvel industrial, da Oficina de Tratamento Qumico, de oficinas de serralharia mecnica e de
preparao de amostras, de um laboratrio de anlise qumica, de uma rede e central de distribuio elctrica, etc; e, a nvel
social, de 14 casas para empregados, 40 casas para operrios, redes de esgoto e fossas spticas, guas domsticas, a Casa do
Pessoal das Minas da Urgeiria (cujo grande impulsionador foi o Eng. James Ramsay), um campo de jogos, um parque
infantil, um balnerio, uma escola, um posto da GNR e um servio de incndios. 10 A importncia geoestratgica do urnio ir estar no centro de um moroso processo de negociao entre Portugal e
Inglaterra que culminou a 11 de julho de 1949 com a celebrao de um acordo para a extrao e exportao de urnio.
Acordo que representava, de facto, a entrega do monoplio da explorao de urnio a firmas inglesas e criava um regime de
excepo para a exportao do minrio. No contexto destas negociaes, a Urgeiria adquire um particular destaque j que do
acordo constara a instalao de uma fbrica para o tratamento qumico e produo de concentrados, estimando-se, ainda, que
a Urgeiria seria responsvel por 36% do total de produo das 10 minas consideradas no acordo e implicaria um
investimento que representava cerca de 30% do investimento total. Para uma anlise minuciosa dos trmites do acordo e da
diplomacia do urnio Cf. Castao (2006).
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que dominavam a cincia e tecnologia nucleares (EUA, Reino Unido e Frana), o que
confirmava o valor dessa matria-prima. De facto, a mais-valia do urnio tornara-se patente
em trs vertentes que Portugal tambm iria contemplar: 1) como trunfo poltico nas relaes
internacionais propiciando a adeso do nosso Pas a instituies de gabarito internacional
incontestvel, como a Agncia Internacional de Energia Atmica, de que Portugal foi membro
fundador (1954), a Sociedade Europeia de Energia Atmica (1955) e a Agncia Europeia de
Energia Nuclear da OCDE (1957); 2) como moeda de troca para formao de pessoal e na
aquisio de equipamento; 3) como matria-prima para a eventual produo de electricidade e
para a introduo de novas tcnicas de melhoramento em sectores econmicos primordiais
para a economia e bem-estar dos portugueses.
A JEN era uma afirmao. As nossas reservas de urnio eram importantes a nvel mundial. E nos blocos
que a determinada altura estavam formados, ns estvamos claramente num dos blocos que achava que o
urnio era importante. O que tinha valor no exterior tambm valorizava a poltica externa portuguesa.
Havia um recurso endgeno que valorizava o pas. (Entrevista a Professor Matos Dias, Consultor da EDM)
Finalmente, o tempo incerto da radioactividade (1990-2008) corresponde, tal como
acontece no Limousin, ao ltimo flego da actividade mineira e afirmao da questo
ambiental. Neste perodo aparecem como relevantes a transio da Empresa Nacional de
Urnio, EP. para Empresa Nacional de Urnio, SA. (Decreto-Lei n. 376/90, de 30 de
Novembro de 1990), o encerramento da Oficina de Tratamento Qumico da Urgeiria, o incio
da reduo de efectivos da empresa e a inaugurao, em 2008, dos trabalhos de requalificao
da Barragem Velha de rejeitados, que assumimos, no quadro da anlise, como um momento
de tentativa de encerramento da controvrsia por parte do Estado.11
Em 1990, quando a Empresa Nacional de Urnio, SA. assume a gesto do complexo
industrial da Urgeiria, o tempo de crise e de reestruturao. Depois de ensaiadas
infrutiferamente diversas estratgias de diversificao da actividade (pedreiras, rochas
ornamentais, etc.), em Maro de 2001 decidido em Assembleia-Geral o incio do processo
de dissoluo e entrada em liquidao da empresa, processo este que coincide com a
implementao do enquadramento jurdico portugus que sustenta a recuperao ambiental de
reas sujeitas actividade mineira.12
A avaliao dos impactos ambientais da actividade mineira em Portugal encontra
antecedentes que remontam a meados da dcada de 90, com a realizao de diversos estudos
de diagnstico, que permitiram estabelecer uma hierarquizao das situaes e seleccionar os
casos mais prementes para a realizao de obras de reabilitao e/ou requalificao ambiental
(Santos Oliveira et al., 1999, 2002; Costa, 2000; Romo et al., 2000; Batista, 2004, 2005). No
caso concreto das minas de urnio, Lus Rodrigues da Costa (2000: 168ss.) informa que a
Empresa Nacional de Urnio assumia, ento, a responsabilidade de realizar o levantamento
sistemtico preliminar dos stios mineiros onde conduziu operaes industriais, estendendo-se
11 Em 1980, seriam cerca de 600 os trabalhadores do complexo industrial da Urgeiria. Em 1987, este nmero rondaria os
480 e, em 1990, quando se inicia a restruturao da ENU, EP., seria de cerca de 400. Em 1999, restavam apenas 51 e, em
2001, 44 trabalhadores (Conversa informal com actor privilegiado). 12 Num requerimento (n. 922/VIII/1) de Maro de 2000 apresentado pelo deputado do Grupo Parlamentar do CDS-PP,
Baslio Horta, ao Ministrio da Economia sobre o futuro da ENU, SA., possvel ler o seguinte: A Empresa Nacional de
Urnio, S.A., tem, h j vrios anos, uma actividade deficitria. Desde 1992, que a EDM [Empresa de Desenvolvimento
Mineiro] tem vindo a participar nesta sociedade, a fim de evitar a sua falncia. Nos cinco anos seguintes foram concedidos
pela EDM apoios financeiros ENU, que se elevam a cerca de 3 milhes de contos. O Projeto Nisa, com o qual a ENU
admitia poder vir a equilibrar a sua conta de explorao foi interrompido em 1999, por no se encontrarem reunidas, nem ser
previsvel que venha a existir, a mdio prazo, condies para o seu arranque, com viabilidade econmica assegurada [].
Assim sendo, so muito difceis as possibilidades de sobrevivncia da empresa, por meios autnomos, razo que justifica o
seu encerramento faseado (trs a seis anos) []. (DAR, II Srie B, n. 22, 2000).
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igualmente s exploraes de entidades que a antecederam (Companhia Portuguesa de
Radium e Junta de Energia Nuclear). Este levantamento, que abrangeu 59 stios mineiros,
possibilitou uma classificao por grau de relevncia dos impactes e estabeleceu, com o
recurso a experincia internacional, um programa geral de trabalho a efectuar bem como a sua
oramentao preliminar. Este plano foi j entregue s entidades e instncias competentes a
fim de se adoptarem as metodologias de definio das condies radiolgicas finais e a
seleco das solues de remediao adequadas.
Em 1999, os ministrios da Economia e do Ambiente estabelecem um protocolo de
cooperao para a recuperao ambiental e a implementao de medidas legislativas,
organizacionais e financeiras para o sector mineiro. O protocolo resultou num acordo de
cooperao entre a Direco-Geral do Ambiente, o Instituto Geolgico Mineiro e a Empresa
de Desenvolvimento Mineiro, com o objectivo de desenvolver um programa de recuperao
das minas abandonadas e de estabelecer um enquadramento normativo para a implementao
desse programa (Baptista et al., 2005).13 Desse enquadramento, destacam-se o Decreto-Lei n.
198-A/2001, de 6 de julho de 2001, que veio reconhecer, por um lado, que o exerccio da
actividade mineira em Portugal gerou um passivo ambiental muito significativo e, por outro,
que a recuperao das reas degradadas do territrio nacional constitui um dever fundamental
do Estado e uma tarefa de interesse pblico. O exclusivo do exerccio da actividade de
recuperao ambiental das reas mineiras degradadas foi, ento, adjudicado, em regime de
concesso, Companhia de Indstria e Servios Mineiros e Ambientais, SA. (EXMIN),
detida na totalidade pela Empresa de Desenvolvimento Mineiro, SGPS. (EDM).14
O Decreto-Lei representa um marco importante na medida em que fornece um slido
fundamento jurdico misso da qual a EDM foi incumbida pelo Estado: a recuperao
ambiental de antigas reas mineiras degradadas, com vista sua reabilitao e valorizao
econmica. Isto permite EDM posicionar-se numa esfera relativamente qual todo o resto,
tudo o que escapa sua misso, pode ser classificado como lhe sendo estranho, ao mesmo
tempo que, como se ver, lhe permite assumir posies de fora relativamente a determinados
aspetos que entravam o cumprimento dessa misso.
Descritas sumariamente as temporalidades do urnio no Limousin com na Urgeiria, hei-
nos chegados ao tempo incerto da radioactividade que corresponde ao tempo durante o qual
esto criadas as condies para que, em Frana, uma associao ambiental se oponha ao
gigante francs do nuclear e que, em Portugal, o dever assumido pelo Estado de proceder
requalificao ambiental dos antigos stios mineiros encontre resistncia local na voz dos ex-
trabalhadores da ENU.
Num caso como no outro por via do territrio contaminado que o Estado posto
prova ou que o risco do urnio, a nuclearidade, aparece como um repto para os Estados
franceses e portugueses. O que a anlise comparativa dos dois casos permitir salientar so os
modos distintos como os Estados portugueses e franceses so postos prova e os modos
distintos como respondem a essas provas, tornando empiricamente acessveis as diferentes
13 Em Fevereiro de 2001, por ocasio do lanamento do projeto de reabilitao da escombreira da mina de Jales (desactivadas
em 1992), os ministros da Economia e do Ambiente do XIV Governo Constitucional (Antnio Guterres, PS), Mrio Cristina
Sousa e Jos Scrates, apresentavam, ento, em Vila Pouca de Aguiar, o Programa de Reabilitao Ambiental de reas
Mineiras Abandonadas. No incio de 2005, ser a vez do Ministro das Actividades Econmicas do curtssimo XVI Governo
Constitucional (Pedro Santana Lopes, PSD), lvaro Barreto, de lanar, em S. Domingos (Mrtola), um Plano de
Recuperao e Monitorizao Ambiental de reas Mineiras Degradadas e em julho do mesmo ano, j no actual XVII
Governo Constitucional (Jos Scrates, PS), caber ao Secretrio Adjunto da Indstria e da Inovao, Antnio Castro Guerra,
a apresentao do Programa de Recuperao Ambiental das reas Mineiras Degradadas. 14 Em 2005, na sequncia da reestruturao da EDM, a EXMIN fundiu-se na EDM com o objectivo de criar condies mais
favorveis para o desenvolvimento coerente e integrado das suas actividades operacionais, muito em particular as de
recuperao ambiental de reas mineiras degradas (Comunicado de imprensa da EDM, 2005).
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formas de fazer poltica, de definir as questes da cidadania e de conter eventuais
extravasamentos e a contestao da legitimidade do prprio Estado (Linhardt, 2008).
Enquanto no Limousin a questo ambiental levantada por um conjunto de novos actores
que se afirmam em simultneo com a questo ambiental principalmente, associaes
ambientais e peritos , na Urgeiria esta levantada pelo Estado, que assume, enquanto
dever fundamental, a responsabilidade pela reposio do equilbrio ambiental das reas
sujeitas actividade mineira em territrio nacional. Ademais, enquanto no Limousin a
emergncia de novos actores implicar o desaparecimento do espao pblico dos ex-
trabalhadores da COGEMA, na Urgeiria a questo ambiental permitir igualmente a
emergncia de novos actores sem que, porm, desapaream os ex-trabalhadores. Pelo
contrrio, a requalificao ambiental da Urgeiria ir confrontar-se com a aco dos ex-
trabalhadores da Empresa Nacional de Urnio, que encontraro nesse processo um modo de
reivindicao da sua presena enquanto corpos contaminados. Ou seja, a uma imagem de si
mesmos concordante com a do territrio contaminado relativamente ao qual o Estado
assumiu medidas de reparao.
A luta assume, nesta medida, contornos distintos. No Limousin, desenvolve-se numa
lgica ascendente do territrio, por via das associaes ambientais, para o Estado e
mobiliza associaes ambientais, a cincia e os tribunais, no sentido de provocar uma
reestruturao sociotcnica e de romper o contrato de vinculao e subordinao do territrio
COGEMA. Na Urgeiria, esta desenvolve-se no contexto apertado de um programa de
requalificao ambiental j definido, e procura expandir o mbito da responsabilidade e de
responsabilizao do e pelo Estado atravs da mobilizao da condio de vtima.
2. As controvrsias
2.1. O caso COGEMA
A explorao do urnio na regio do Limousin no foi sem consequncias: poluio das
guas, ar e solos; aumento dos casos de cancro, dos problemas imunitrios e dermatolgicos;
abandono de locais de explorao. Cinquenta milhes de toneladas de resduos, 200
quilmetros de galerias, milhes de toneladas de estreis (econmicos mas no sanitrios) no
podiam, de facto, ser isentos para o ambiente e para a populao (Brunet, 2004).
Antes, porm, que cessasse a explorao diversas associaes locais comearam a
exprimir um sentimento de desconfiana em relao COGEMA e aos poderes pblicos. Nos
anos 70 e 80, surgem as primeiras polmicas mediticas com a denncia pelas associaes
ambientais do depsito no Limousin de resduos radioativos provenientes de instalaes
exteriores. No entanto, ser necessrio esperar pelo incio dos anos 90 para ver as
controvrsias ganharem dimenso medida que se sucedem os relatrios de avaliao dos
impactes da actividade mineira no territrio e, nomeadamente, no meio aqutico da regio. A
gua constituir, alis, o elemento central da controvrsia.
Em 1993, a controvrsia reacende-se na sequncia do relatrio Barthelemy, encomendado
pelo Ministrio do Ambiente e assim apelidado em virtude do seu responsvel, Franois
Barthelemy, que chama a ateno para os perigos associados ao armazenamento de resduos
radioativos na regio e, nomeadamente, para o carcter aleatrio das medidas de precauo.
Em Fevereiro de 1994, a Comisso de Pesquisa e Informao Independentes sobre a
Radioactividade (Commission de Recherche et d'Information Indpendantes sur la
Radioactivit, CRII-RAD) entrega uma avaliao do impacte das actividades mineiras no
meio aqutico, encomendada, desta feita, pelos Conselho Geral do Departamento da Haute-
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Vienne (Conseil Gnral de la Haute-Vienne, assembleia deliberativa do departamento) e
Conselho Regional do Limousin (Conseil Rgional du Limousin, assembleia deliberativa da
regio). Apesar do relatrio chamar a ateno para a ocorrncia de mltiplos delitos de
poluio e da complacncia das autoridades responsveis, no ter qualquer seguimento nem
por parte das administraes competentes nem por parte das entidades adjudicantes.
No Outono de 1998, quando do esvaziamento decenal do lago artificial de Saint-Pardoux,
a anlise das lamas e dos peixes evidencia nveis importantes de radioactividade, que so
confirmados por outras anlises realizadas pelo laboratrio independente da CRII-RAD.15
Em Janeiro de 1999, por ocasio do inqurito pblico relativo adequao do permetro de
proteo de uma das reservas de gua de Limoges, o Marzeaud, o responsvel pelo inqurito
solicita uma anlise pericial ao Marzet, um rio no qual desaguam as guas provenientes do
antigo stio mineiro Les Gorces-Saignedresse (Diviso Mineira da Crouzille). O relatrio do
Professor Mazet, da Universidade de Limoges, reala, entre outras coisas, que as instalaes
que serviam depurao das guas da diviso mineira esto fora de servio. O prefeito e a
COGEMA negam a existncia de qualquer risco. Todavia, o primeiro emite um regulamento
prefeitoral que impe COGEMA o desvio das guas de decantao das minas para contornar
a reserva de gua potvel de Limoges e desaguar a jusante no rio La Couze. Solicita
igualmente um controlo mais apertado nesse sector.
Finalmente, em Maro de 1999, a associao Sources et Rivires de Limousin (Fontes e
Rios do Limousin, SRL) apresenta uma queixa perante o juiz de instruo do Tribunal de
Grande Instncia de Limoges contra a COGEMA por poluio (artigos L432.2 e s. e L232.2 e
s., do Cdigo do Ambiente), abandono de resduos (artigos 24.1 e 24-3, agora L541.46 e
L541.47, do Cdigo do Ambiente) e colocao em perigo de outrem (L 223.1 e 2, do Cdigo
Penal). Ser sobre essas trs acusaes que o Tribunal de Limoges se ocupar.
2.1.1. Breve descrio do processo judicial contra a COGEMA
Em 1999, a associao SRL, qual se juntaram posteriormente a Association Nationale pour
la Protection des Eaux et Rivires (Associao Nacional para a Proteco das guas e Rios,
ANPER-TOS) e a Fderation Franaise Nature Environment (Federao Francesa Natureza e
Ambeinte, FFNE), apresentou uma queixa contra a COGEMA junto do juiz de instruo de
Limoges por poluio da gua, colocao em perigo de outrem, e abandono de resduos
contendo substncias radioactivas.
15 O lago de Saint-Pardoux, propriedade do Conselho Geral do Departamento da Haute-Vienne, situa-se a 20 km a Norte de
Limoges. Criado artificialmente em 1978, o seu abastecimento assegurado por dois cursos de gua, a Couze e o Ritord, que
atravessam a concesso mineira uranfera de Saint-Sylvestre cuja explorao comeou 30 anos antes da criao do lago. A
Couze e o Ritord so ladeados por vrios antigos stios mineiros da Diviso Miniera da Crouzille. A maior parte destes stios
foram objecto de uma declarao de paragem definitiva dos trabalhos acompanhada por regulamentos da prefeitura que fixam
a sua vigilncia. Em Outubro de 1998, na sequncia da drenagem decenal do lago, foram encontrados sedimentos com uma
forte actividade mssica em urnio (10 000 a 20 000 Bq/kg -1) na embocadura do Ritord. Os sedimentos na embocadura da
Couze tinham nveis normais de radioactividade. Foi criado um Comit de Acompanhamento Tcnico do Lago de Saint-
Pardoux composto por representantes da administrao, do Gabinete para a Proteco contra as Radiaes Ionizantes (Office
pour la Protection contre les Rayonnements Ionisants, OPRI), das associaes ambientais, das universidades e da COGEMA.
Este Comit tinha como objectivo estabelecer o diagnstico do estado do lago, de compreender os fenmenos observados e
de propor solues. Os primeiros estudos, realizados pelo Centro de Estudo e de Metrologia das Radiaes Nucleares e de
Dosimetria (Centre d'tude et de Mtrologie des Rayonnements Nuclaires et de Dosimtrie, CEMRAD, Universidade de
Limoges) mostraram a boa qualidade radiolgica das guas do lago, dos peixes e das praias, e estabelecem a ausncia de
impacte radiolgico significativo e a inexistncia de impacte dos sedimentos na qualidade das guas. Estes estudos revelaram
todavia o problema potencial ligado ao risco da recolocao dos sedimentos em suspenso. Em Novembro de 1998, aps a
confirmao da ausncia de risco sanitrio pelo OPRI, foi decidido o reenchimento do lago, com o bloqueamento dos
sedimentos atravs da colocao de uma manta geotxtil para impermeabilizao.
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A queixa por poluio da gua assentava num duplo fundamento. O primeiro fundamento
era o artigo L.432-2 do Code de lEnvironnement (Cdigo do Ambiente) que sanciona o
derrame de substncias que destruam o peixe ou prejudiquem a sua nutrio, reproduo ou
valor alimentar. O segundo fundamento era o do artigo L.216 do Cdigo do Ambiente que
sanciona o derrame nas guas de substncias que provoquem efeitos nocivos para a sade, ou
danos para a fauna e a flora. A queixa por colocao em perigo da vida de outrem, por sua
vez, assentava no artigo L.223-1 do Code Penal (Cdigo Penal), que pune a exposio de
outrem a riscos para a vida ou para a integridade fsica por violao manifestamente
deliberada de uma obrigao de segurana ou de prudncia imposta por lei ou regulamento.
Finalmente, a queixa por abandono de resduos contendo substncias radioactivas repousava
no artigo L541-46, 4. do Cdigo do Ambiente que sanciona o abandono de resduos
susceptveis de provocar danos (artigo L.541-7) no solo, na flora e na fauna, no ar, na gua,
isto , no ambiente em geral, ou ainda na sade do ser humano (artigo L.541-2).
Delito de abandono de resduos
Relativamente ao abandono de resduos, as associaes protectoras do ambiente consideraram
haver violao dos regulamentos prefeitorais. O Professor Mazet, da Universidade de
Limoges, mandatado em 1998 pelo comissrio de inqurito para a elaborao de um projeto
de fornecimento de gua potvel cidade de Limoges, relatou que a estao de tratamento de
guas de extraco do stio mineiro de Gorces-Saignedresse estava desactivada, quando um
regulamento de 1996 exigia a manuteno da sua operacionalidade.
Em segundo lugar, as associaes salientaram a presena anormal de substncias
radioactivas nas guas a jusante das minas, sustentadas nos resultados recolhidos por diversos
organismos cientficos que atestaram nveis de radioactividade que ultrapassavam os limites
impostos pelos decretos de 1980 e 1990 (limite de 3700 Bq/Kg).
Quanto existncia de nexo de causalidade entre a actividade da COGEMA e a
radioactividade anormal nas guas analisadas, ficou provado que o urnio se encontrava
essencialmente sob a forma de partculas nos cursos de gua, o que caracterstico da
actividade industrial, e no sob a forma diluda, o que sinal de decomposio natural.
Finalmente, relativamente ao carcter intencional do delito, as associaes referiram que
a COGEMA no podia ignorar as suas obrigaes, e, portanto, viola as normas com a
conscincia de que o est a fazer.
Delito de poluio da gua
No que diz respeito ao elemento material do delito de poluio da gua, as associaes
indicam que ele no se limita afectao da qualidade do peixe para consumo humano. Este
delito remete ainda para outros efeitos da emisso de substncias poluentes:
1. Ofensa integridade biolgica do peixe, que se considera verificada em virtude dos
elevados nveis de fluoretos que traduzem uma contaminao qumica.
2. A ofensa aos recursos nutricionais do prprio peixe, em virtude da cobertura do fundo
dos cursos de gua por efeito dos sedimentos formados pelo material que contm substncias
radioactivas.
3. Ofensa reproduo dos peixes que procede da elevada radioactividade verificada em
vrias espcies e no apenas nos ruivos, e que gera uma instabilidade gentica transmitida s
geraes sucessivas.
4. A ofensa ao valor alimentar do peixe no somente para o ser humano mas entre os
prprios peixes.
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Quanto ao elemento moral do delito, as associaes recordaram que bastaria a existncia
de simples imprudncia ou negligncia. A COGEMA, como profissional avisada, no podia
ignorar as incidncias da sua actividade no meio natural.
Por fim, o nexo de causalidade resulta da comparao entre os nveis de radioactividade a
montante e a jusante do stio mineiro. Na verdade, os nveis de radioactividade so bem
superiores a jusante do stio mineiro, o que s por si revelador do nexo da actividade da
COGEMA com os nveis de radioactividade.
Alegaes da COGEMA
A COGEMA comea por circunscrever a competncia do tribunal ao conhecimento dos factos
ocorridos entre 18 de Maro de 1996 e 18 de Maro de 1999. Em seguida, considera que o
delito de abandono de resduos no se encontra verificado no seu elemento material. De facto,
a infraco implica que os resduos tenham tido efeitos nocivos sobre o ambiente ou a sade,
o que no foi provado.
Para alm disto, o delito s se poderia verificar se os resduos em causa forem
considerados substncias radioactivas, o que no o caso. Para a COGEMA, o Rglement
Gnral de lIndustrie Extractive (Regulamento Geral da Indstria Extractiva, RGIE)
constituiria uma legislao especial que excluiria a aplicao da lei geral editada pelo artigo
L.541-1 e seguintes do Cdigo do Ambiente. A COGEMA sustenta, ainda, que o contrrio
no seria conforme ao direito comunitrio, e em particular directiva n. 75/442/CEE relativa
eliminao de resduos, na medida em que a legislao nacional em que se fundamenta a
acusao resulta da transposio desta directiva. Ora, esta directiva exclui do seu campo de
aplicao os resduos radioativos (artigo 2.). Por consequncia, a aplicao do decreto de
1977 deveria ser afastada por contrariar o direito comunitrio.
Quanto ao elemento moral, o seu preenchimento exige a verificao da inteno de agir
em condies contrrias proteo do ambiente ou sade humana. A COGEMA relembra
neste ponto que a sua actividade respeitou sempre todas as prescries legais e
regulamentares.
A ttulo subsidirio, a COGEMA sustenta que mesmo no caso de existir delito, ela
deveria ser absolvida em consequncia da verificao da causa de excluso da ilicitude
prevista no artigo 122-4 do Cdigo Penal: a actividade estava autorizada por disposies
legais e regulamentares.
Passando para a segunda infraco que lhe apontada delito de poluio de guas
pisccolas (artigo L.432-2) a COGEMA observa que o debate se circunscreve aos danos
causados aos ruivos no lago de Saint Pardoux.
A COGEMA contesta que as substncias provenientes dos stios de explorao tenham
efectivamente destrudo o peixe ou prejudicado a sua nutrio, reproduo ou valor alimentar.
Fundamenta-se no balano da recuperao pisccola estabelecida aps a drenagem do lago em
Outubro de 1998. Este balano exclui qualquer efeito prejudicial sobre os ruivos. Alis, a
percentagem de ruivos no lago Saint Pardoux superior mdia nacional.
Existe ainda um estudo de 2005 efectuado pelo laboratrio SUBATECH da Universidade
de Nantes que menciona uma presena mnima de elementos radioativos nos ruivos e seus
predadores, o que exclui, portanto, qualquer risco de efeitos nocivos. O estudo elaborado em
1998 pelo CEMRAD tinha apresentado valores apenas ligeiramente superiores.
A COGEMA deduz destes estudos que no produzida a prova dos efeitos nocivos
exigida pelo artigo L.432-2 do Cdigo do Ambiente.
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No mesmo sentido, a COGEMA invoca ainda estudos que determinaram o contributo da
sua actividade mineira para a sedimentao do fundo do lago de Saint Pardoux, o qual
representa apenas 6 a 7% do conjunto total, de maneira que no se pode imputar a esta
actividade a cobertura dos fundos que prejudica a nutrio do peixe.
A COGEMA afirma que a radioactividade tambm est presente nas guas naturais. As
anlises aos vegetais localizados junto dos cursos de gua que recebem guas de extraco
demonstram que os valores se situam dentro da mdia dos valores obtidos nas regies
uranferas francesas.
Para confirmar a falta do elemento moral, a COGEMA chama ainda a ateno para o
facto de s em 2000 se terem realizado estudos que pem em evidncia o fenmeno da
absoro, ou seja, a concentrao de elementos radioativos nos sedimentos dos cursos de
gua.
Instruo do Tribunal Correccional de Limoges
A Lei n. 75-633 de 15 de julho de 1975 (art. L541-1 do Cdigo do Ambiente) prev uma
definio de resduo: Est un dchet au sens du prsent chapitre tout rsidu d'un processus
de production, de transformation ou d'utilisation, toute substance, matriau, produit ou plus
gnralement tout bien abandonn ou que son dtenteur destine l'abandon.16
O artigo 8. da referida lei (art. L541-7 do Cdigo do Ambiente) prev ainda o dever de
fornecer Administrao todas as informaes relativas origem, natureza, caractersticas,
quantidades, destino e modalidades de eliminao dos resduos que produzem.
O Decreto n. 77-974 de 19 de agosto de 1977 enumera os resduos, mas no d qualquer
definio quantitativa ou qualitativa de resduos que contm substncias radioactivas. Por
isso, convm atentar para textos que disciplinam as actividades nucleares para encontrar uma
definio funcional de resduo nuclear.
A Agncia Internacional da Energia Atmica define como resduo nuclear toda a
matria contendo radionuclidos em concentrao superior aos valores que as autoridades
competentes consideram como admissveis nos materiais prprios a uma utilizao sem
controlo e para a qual nenhum uso se encontra previsto.
S num parecer de 6 de junho de 1970 se prope uma definio qualitativa e quantitativa
da noo de resduo so reputados de radioativos e no podem ser despejados directamente
no meio ambiente, os resduos cuja actividade mssica superior a 74 Kbq/Kg e cuja
actividade total superior a: 3,7 Kbq grupo 1; 37 Kbq grupo 2; 370 kbq grupo III (Decreto
n. 67-228 de 15 de Maro de 1967, art.1. e anexo II).
Nos termos do decreto n. 80-331, modificado pelo Decreto n. 90-222, os resduos
slidos que contenham mais de 0,03% de urnio, ou seja, 3,7 Kbp (3700 Bq/Kg) devem ser
objecto de um depsito especial.
O relatrio de inspeco s minas das Gorges Saignedresse, datado de 28 de Janeiro de
1999, revelou que as instalaes de tratamento das guas de extraco se encontravam
desactivadas, no se cumprindo o disposto no art. 5 do regulamento prefeitoral n. 96-47 de 8
de Fevereiro de 1996, que exige a operacionalidade destas instalaes.
O Professor Mazet assinala no seu relatrio o estado desastroso das instalaes de
depurao das guas poludas. A reabilitao das instalaes s foi operada aps este
relatrio.
16 Tendo em conta as implicaes da letra da lei no desenrolar do processo, optamos, ao longo deste relatrio, por no
traduzir as citaes de preceitos jurdicos.
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No surpreendem por isso os resultados dos levantamentos efectuados pelo Office de
Protection contre les Rayonnements Ionisants (Gabinete de Proteco contra as Radiaes
Ionisantes, OPRI), nas guas do Marzet, em Dezembro de 1998: 130Bq/g (130 Kb/Kg).
As guas de extraco, no podem ser consideradas como resduos porque no so o
resultado sem finalidade econmica de uma actividade industrial. No entanto, tambm no
podem ser consideradas matrias naturais. J as rochas submetidas a tratamentos qumicos,
por seu turno, devem ser consideradas resduos, visto que constituem o resultado sem
finalidade econmica de uma actividade industrial.
O Tribunal de Justia das Comunidades Europeias (TJCE) considerou que os detritos
resultantes da actividade mineira devem ser considerados resduos (Acrdo Palin Granit de
18 de Abril de 2002).
O juiz de instruo assinalou no seu despacho as contradies entre a defesa inicial da
COGEMA, que consistia em sustentar que a presena de urnio nos sedimentos no resultava
da sua aco mas da dissoluo natural dos granitos uranferos, e os resultados das anlises
efectuadas, nomeadamente pelo comit tcnico do lago de Saint Pardoux (Caixa 1), que
concluam que o urnio veiculado nas guas do Ritord o era sob a forma de partculas.
Caixa 1
O Lago de Saint Pardoux
O lago de Saint Pardoux est situado a 20 km a Norte de Limoges. Este lago de 330 hectares, criado artificialmente em 1978,
propriedade do Conseil Gnral de Haute Vienne e tem vocao turstica, nomeadamente para actividades nuticas. O seu
abastecimento assegurado por dois cursos de gua, a Couze e o Ritord, que atravessam a concesso mineira urnfera de
Saint-Sylvestre cuja explorao mineira comeou 30 anos antes da criao do lago.
A Couze e o Ritord so ladeados por vrios antigos stios mineiros cujas guas de extraco foram e so vertidas com e sem
tratamento. Os principais stios so: o conjunto Fanay/Augres, Silord, Venachat, as Gorces e a Fraisse. A maior parte destes
stios foram objecto de uma declarao de paragem definitiva dos trabalhos acompanhada por regulamentos prefeitorais que
fixam a sua vigilncia.
Em Outubro de 1998, na sequncia da drenagem decenal do lago, foram encontrados sedimentos com uma forte actividade
mssica em urnio (10 000 a 20 000 Bq/kg -1) na embocadura do Ritord. Os sedimentos na embocadura da Couze tinham
nveis normais de radioactividade. Foi criado um Comit de Acompanhamento, presidido pelo Prfet e pelo Prsident du
Conseil Gnral, e composto por representantes da administrao, do OPRI, das associaes ambientais, das universidades e
da COGEMA. Este comit tinha como objectivo fazer o diagnstico do estado do lago, de compreender os fenmenos
observados e de propor solues.
O CRII-RAD e a Limousin Nature Environnement, contactados para participar nos trabalhos do Comit, acabaram por
declinar o convite. O comit reuniu-se em vrias ocasies entre Outubro de 1998 e junho de 2003. Os primeiros estudos,
realizados pelo CEMRAD (Universidade de Limoges) mostraram a boa qualidade radiolgica das guas do Lago, dos peixes
e das praias, e estabelecem a ausncia de impacto radiolgico significativo e a inexistncia de impacto dos sedimentos na
qualidade das guas. Estes estudos revelaram todavia o problema potencial ligado ao risco da recolocao dos sedimentos em
suspenso.
A concentrao mdia das guas do Ritord em urnio ligada influncia das actividades mineiras hoje de 18 mg/l -1
entrada do lago. A comparao com os resultados anteriores, efectuada pela COGEMA, mostra uma diminuio regular dos
nveis de urnio e da actividade dos sedimentos do lago.
Em Novembro de 1998, aps a confirmao da ausncia de risco sanitrio pelo OPRI, foi decidido o reenchimento do lago,
com o bloqueamento dos sedimentos atravs da colocao de um gotextil coberto de uma camada de areia.
Paralelamente, a aco dos poderes pblicos concretizou-se por: i) um regulamento prefeitoral de 12 de Dezembro de 2000
pedindo COGEMA que mande realizar a um organismo terceiro um estudo que permita aprofundar os conhecimentos
relativos aos radionuclidos e ao seu modo de transporte no Ritord e as condies de precipitao e/ou sedimentao no lago.
O relatrio deste estudo, levado a cabo em 2001 pelo CEMRAD (Centre dtudes et de Mesures des Rayonnements
nuclaires et de Dosimtrie de luniversit de Limoges), pelo CREGU (Centre de Recherches sur la Gologie des Matires
Premires Minrales et Energtiques Nancy) e pela COGEMA, foi publicado em 2002 e apresentado ao comit em junho de
2003; ii) um regulamento prefeitoral de 13 de junho de 2001 prescrevendo diferentes controlos sobre o Ritord, a Couze e o
lago, e impondo o respeito de certos valores de radioactividade das guas (
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lago). E fixa que a COGEMA dever fornecer aquando da drenagem do lago, uma assistncia tcnica e financeira aos
gestores do lago se a actividade dos sedimentos ultrapassar os 3700 Bq/kg -1 em urnio; iii) um regulamento prefeitoral de 31
de Dezembro de 2003 veio reforar a vigilncia prevista no regulamento de 13 de junho de 2001, e exigiu que a COGEMA
estudasse solues que permitissem diminuir os nveis de radioactividade no lago.
Na sequncia deste regulamento, a COGEMA apontou para uma soluo de tratamento passivo por decantao a montante do
lago, sob reserva de se verificar que este dispositivo no perturba o funcionamento do lago.
Constata, ainda, que a tese avanada pela COGEMA contradiz tambm os resultados das
anlises da Couze, outro afluente do lago de Saint Pardoux, que no recebe directamente as
guas de extraco: os sedimentos tm um nvel normal de radioactividade e a cadeia do
urnio 238 est em equilbrio.
Um relatrio complementar CREGU/CEMRAD de junho de 2002 confirmou que as
guas do Gouillet e da Couze tm nveis de radioactividade muito inferiores aos do Ritord.
Quanto ao delito de poluio de guas pisccolas, ressalta do processo que no existe
nenhum facto que exclua a negligncia e a imprudncia. Nem o erro de direito, nem o caso de
fora maior, nem o respeito de autorizaes administrativas de emisso pode ser invocado
utilmente.
No acrdo da Instruo, refere-se ainda a aplicao do princpio do poluidor-pagador.17
Destaca-se tambm que a inrcia da Direction Rgionale de l'Industrie, de la Recherche et de
l'Environnement (Direco Regional da Indstria, Investigao e Ambiente da Regio
Limousin, DRIRE) constituiu, segundo a Chambre dInstruction, um mau exerccio dos
poderes de controlo das boas condies de explorao. Por isso no se pode exonerar a
COGEMA da sua responsabilidade penal.
Tribunal Correccional de Limoges e Tribunal de Recurso de Limoges
Quanto questo de fundo, e no que ao delito de abandono diz respeito, o tribunal constatou a
impreciso da lei no que concerne noo de radioactividade susceptvel de desencadear a
aplicao de sanes penais.
O tribunal de primeira instncia considerou que o artigo L.541-46 do Cdigo do
Ambiente no fornecia uma definio de resduos, nem uma definio de substncias
radioactivas. E entendeu ainda que existindo dois diplomas (RGIE e dcret sobre a proteo
contra as radiaes ionizantes), nada permitia privilegiar um dos textos em relao ao outro.
A aplicao do princpio do nvel elevado de proteo ecolgica sugeriria que se
aplicasse a norma que confere o nvel de proteo ecolgica mais elevado, ou seja, aquela que
estabelece limites de concentrao de radioactividade mais reduzidos.18
Primeiro, o balano ambiental decenal produzido pela COGEMA relativamente ao
perodo 1994-2003 revela que as concentraes mdias anuais em rdio e urnio respeitaram
sempre os valores limites prefeitorais, e que no resulta destes elementos e dos apresentados
pela DRIRE que a COGEMA tenha transgredido os regulamentos prefeitorais.
Parece no mnimo curiosa a preocupao em apresentar valores inferiores aos limites
estabelecidos nos regulamentos prefeitorais, visto que a COGEMA defendeu, desde o incio
do processo, que os nveis de radioactividade no resultavam da sua actividade, mas antes da
diluio natural dos granitos uranferos.
17 Para Alexandra Arago (2003: 13) a aplicao do princpio do poluidor pagador, no mbito dos resduos, significa que o
responsvel pelos resduos que deve suportar economicamente os custos sociais e ambientais dos resduos . 18 Cf. Alexandra Arago, 2006.
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Em relao radioactividade anormal constatada em certos stios, o nexo de causalidade
entre as guas de extraco cujas anlises durante dez anos no revelaram a violao dos
limites prefeitorais e a presena de matrias radioactivas julgadas anormais pelo juiz de
instruo e pelas partes civis, no estabelecido de forma cientificamente irrefutvel. Ou seja,
o tribunal considera no ser cientificamente incontroverso que as substncias radioactivas sob
a forma de partculas resultem obrigatoriamente da actividade humana. Existe, portanto, uma
divergncia na apreciao dos dados cientficos. Enquanto no momento da acusao se
considerou que a presena de substncias radioactivas sob a forma de partculas era uma
prova de que a sua provenincia no era natural, no momento do julgamento considerou-se
que a forma sob a qual se apresentam as substncias radioactivas no permite tirar concluses
sobre se a sua origem ou no natural.
Ainda relativamente ao nexo de causalidade, o tribunal entendeu que, de qualquer modo,
o nexo de causalidade entre a actividade da COGEMA e os nveis de radioactividade no se
encontrava estabelecido, porque os nveis de radioactividade junto das sadas das guas de
extraco eram inferiores aos das guas naturais. Ora, conclui o tribunal, isto remete-nos para
uma diferente origem da radioactividade.
Determinante foi ainda o parecer do Professor Lacronique, presidente do OPRI, que no
mbito das concluses tiradas em 1998 pelo comit tcnico do lago de Saint Pardoux, afirmou
o seguinte: as guas do lago no revelaram valores anomrais de radioactividade, sendo este
sensivelmente o meso que o da gua do mar. O tribunal pronunciou-se ento pela absolvio
do delito de abandono de resduos radioativos.
Quanto ao delito de poluio de guas pisccolas, o tribunal entendeu que no se
verificando o delito de abandono de resduos radioativos, a emisso de substncias
radioactivas prejudiciais ao peixe tambm no o poderia ser.
Acrescenta-se ainda que nenhuma informao foi fornecida sobre o estado sanitrio dos
peixes ou a diminuio do seu nmero. Alis, um estudo realizado em 2005 pelo Laboratrio
de fsica subatmica e das tecnologias associadas concluiu que em 4 kg de ruivos pescados no
lago de Saint-Pardoux existe um teor de urnio de 1,7 Bq/kg contra os 40 Bq apresentados
pelo estudo do CEMRAD em 1998. Perante esta discrepncia de resultados, o tribunal apenas
referiu que mesmo os resultados obtidos pelo CEMRAD se encontram abaixo dos limites
fixados pelo decreto n. 88-521.
Apesar de ter absolvido a COGEMA, o tribunal rejeitou o argumento segundo o qual o
Decreto n. 77-974 violava o artigo 2. da directiva n.75/442/EURATOM. Destaca-se ainda o
facto de esta instncia ter afirmado que os produtos da explorao da diviso mineira da
Crouzille constiturem resduos no sentido do artigo L.541-1 do Cdigo do Ambiente, na
medida em que se trata do resultado de um processo de transformao no destinado a ser
reutilizado.
Outro aspeto que deve ser assinalado o facto de o tribunal, para efeitos da verificao
do respeito pelos limites regulamentares que servem de critrio para desencadear sanes
penais, apenas ter em conta os dados resultantes dos levantamentos efectuados pela
COGEMA. Isto significa que foram desprezados os dados contidos nos relatrios elaborados
por organismos tcnicos como o CRII-RAD.
interessante salientar que as associaes se ativeram aos argumentos em torno da
contaminao radioactiva, no incorporando os aspetos relacionados com a contaminao
qumica.19
19 Ver neste sentido Dominique Guihal (2004).
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Apesar da absolvio da COGEMA, os esforos realizados pelas associaes protectoras
do ambiente no foram em vo. Com efeito, o posterior encerramento de outros stios
mineiros foi acompanhado por uma entidade denominada de Commission Local d'Information
et de Surveillance (Comisso Local de Informao e Vigilncia, CLIS) que verifica a eficcia
das medidas de requalificao.
Para alm disso, esta matria agora objecto de uma regulamentao mais clara,
nomeadamente quanto aos limites de concentrao radioactiva nas guas emitidas pelas
instalaes de tratamento.
O Arrt da Direction des Relations avec les Collectivits Locales et de LEnvironnement
(Direco das Relaes com as Colectividades Locais e o Ambiente) n. 2008-088 de 17 de
Janeiro de 2008 um exemplo: no artigo 3. deste diploma fixam-se os limites de
concentrao radioactiva de urnio 238 (0,8 mg/l) e de rdio 226 solvel (0,25 Bq/l) e
insolvel (2,5 Bq/l) nas emisses lquidas das instalaes de tratamento. Estes valores
reportam-se mdia anual de concentrao.
A entidade exploradora tem de proceder a anlises que dever comunicar
trimestralmente. Contudo, estabelece-se a possibilidade de lanar as guas sem qualquer
tratamento quando se preencherem trs condies: se cumpram os limites estabelecidos no
dcret n. 90-222 de 9 de Maro de 1990 (urnio solvel 238 1,8 mg/l; rdio solvel 226
0,74 Bq/l); exista um aval do inspector das instalaes; e a AREVA NC prove que o impacto
sanitrio e ambiental das emisses, sem tratamento, aceitvel.
Do artigo 6. resulta expressamente que a violao das disposies do regulamento
desencadeia a aplicao das sanes administrativas e penais previstas respectivamente no
Code Minier (Cdigo Mineiro) e no Cdigo do Ambiente
No mesmo sentido, o arrt da Direction de la Reglementation et des Liberts Publiques
(Direco da Regulamentao das Liberdades Pblicas) n. 2008-0081 de 21 de Janeiro de
2008. Este regulamento prev no seu artigo 4. um limite de 1 mSv por ano. E o artigo 7.
estabelece que o desrespeito das disposies do regulamento acarreta para o titular da
autorizao as sanes administrativas e penais previstas respectivamente no Cdigo Mineiro
e no Cdigo do Ambiente.
2.1.2. As implicaes do processo judicial contra a COGEMA: desterritorializao da
nuclearidade
No Limousin, como de resto acontece na Urgeiria, a redescoberta da nuclearidade dos
antigos stios mineiros coincide com o fim da actividade. Antes que cessasse a explorao
diversas associaes locais comearam a exprimir um sentimento de desconfiana
relativamente COGEMA e aos poderes pblicos responsveis pela monitorizao da sua
aco. Nos anos 70 e 80, surgem as primeiras polmicas mediticas com a denncia pelas
associaes ambientais do depsito no Limousin de resduos radioativos provenientes de
instalaes exteriores. No entanto, ser necessrio esperar pelo incio dos anos 90 para ver as
controvrsias ganharem dimenso medida que se sucedem os relatrios de avaliao dos
impactes da actividade mineira no territrio e, nomeadamente, no meio aqutico da regio.
Analisado anteriormente este processo, procuraremos agora salientar alguns aspetos que,
na aco da SRL e na resposta do Estado, nos aprecem particularmente relevantes. Por um
lado, o modo como ao longo de todo o processo se vai tornando patente o interesse do Estado
em no deixar o caso ganhar dimenso e o excepcionalismo do nuclear em Frana. Por outro,
o modo como a argumentao cientfica num caso em que notria a desigualdade de
armas obstaculiza uma eventual condenao, abrindo, no entanto, espao incerteza e,
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consequentemente, a uma abertura do domnio da controvrsia a um leque mais amplo de
actores.
A aco da Associao Soureces et Rivires du Limousin, o excepcionalismo do nuclear e
a a ampliao da incerteza
Composta quase exclusivamente por professores de Direito Ambiental e de Economia do
Ambiente da Universidade de Limoges, a SRL procura o advogado Alexandre Faro,
especializado em Direito Ambiental, e com este define a melhor estratgia do processo.
Duas possibilidades se perfilam: o cvel ou o penal. Reconhecendo, hoje, que este poder
ter sido um erro, Alexandre Faro e a SRL optam pelo penal. Subjacente a esta opo encontra-
se, por um lado, uma particularidade do sistema jurdico francs e, por outro, a ausncia de
recursos materiais da associao. Iniciando um procedimento cvel contra a COGEMA por
poluio das guas, o encargo com a necessria e onerosa peritagem tcnica ficaria a cargo da
associao, enquanto, no caso de se tratar de um procedimento penal, estes encargos seriam
assumidos pelo Estado. Embora a associao dispusesse de diversas avaliaes, a queixa
apresentada tendo por base, no essencial, as peritagens prvias realizadas pela CRII-RAD a
pedido do Conselho Geral do Departamento da Haute-Vienne. Depois de apresentada a
queixa, durante cerca de um ano, o juiz de instruo revela-se pouco sensvel questo.
preciso ter em conta que este era um caso muito tcnico e as coisas no avanavam,
ou seja, a COGEMA no era chamada a intervir no processo que era o que ns queramos.
Ento, de repente, as coisas desbloquearam-se. Comeamos a aumentar a presso e, por volta
de julho ou agosto, o juiz, finalmente, debrua-se sobre o caso e deve ter visto que o caso era
srio e que merecia que se lhe prestasse ateno. (Alexandre Faro, Advogado da SRL,
07.01.2009)
Em Maro de 2002, a SRL recebe o apoio da Frana Natureza e Ambiente (France
Nature Environement) e, em setembro de 2002, depois de mais de trs anos, o juiz de
instruo de Limoges, Grard Biardeaud, decide chamar a COGEMA ao processo. Comeam,
ento, a surgir os primeiros entraves. Primeiro, com a anlise pericial e aqui
o sistema um bocado perverso, j que o juiz nos disse, oficiosamente, foi que caso acedesse ao nosso
pedido de peritagem todo o seu oramento, todo o oramento do tribunal para peritagens seria gasto nisso
(Alexandre Faro, Advogado da SRL, 07.01.2009).
Na altura, a estratgia passa por no afrontar directamente um juiz que, finalmente,
mostrava alguma receptividade relativamente ao caso e
essa ter sido, talvez, a nossa principal fraqueza. Acabei por aceitar que no houvesse uma peritagem. No
final, pagamos caro essa fraqueza (Alexandre Faro, Advogado da SRL, 07.01.2009).
Depois, por aco directa do Procurador da Repblica junto do Tribunal de Grande
Instncia de Limoges que requer a no pronncia da COGEMA relativamente aos crimes
acusados com base num relatrio da DRIRE que desresponsabiliza a COGEMA.20 Porqu?
20 Segundo Cdric Trassard (2007), em Frana, o corpo dos magistrados do Ministrio Pblico frequentemente
diabolizado. De facto, no esprito do grande pblico, a viso da justia extremamente maniquesta, em que de um lado esto
os juzes, independentes e garantes das liberdades individuais, e do outro est o Ministrio Pblico, submetido ao poder
poltico e animado de uma vontade constante de acusar. No entanto, a complexidade do estatuto do Ministrio Pblico leva
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o nuclear! O nuclear, em Frana, o nuclear. o Estado no Estado. [] A estratgia do nuclear em
Frana simples: escondem-se por detrs de um regime de autorizao, escondem-se por detrs da
autoridade do Estado. Mesmo sendo, supostamente, a AREVA uma sociedade de direito privado, na
realidade quando existe um contencioso contra a AREVA, quando a AREVA comea a enfrentar
dificuldades, solicita e obtm a interveno do Estado. [] Habitualmente, nos casos de procedimentos
cveis no se v o Ministrio Pblico ou o Procurador intervir, mas neste caso o Procurador da Repblica
esteve presente em todas as audincias e sempre para sustentar a posio que as nossas exigncias no
tinham cabimento, que no tnhamos razo, etc. [] Isto s para lhe dizer o quanto o Estado se interessa
por todas as questes que envolvam o nuclear. (Alexandre Faro, Advogado SRL, 07.01.2009)
O excepcionalssimo do nuclear francs aparece igualmente nas entrevistas com um
representante da SRL envolvido no processo para justificar a dificuldade em obter a
condenao da COGEMA, na medida em que essa significaria condenar o Estado:
Neste caso, o Estado defendeu verdadeiramente a sua empresa. Os juzes de instruo, relativamente mais
independentes, pediram para que houvesse uma condenao. O Procurador da Repblica, o representante
do Estado, defendeu claramente a COGEMA no tribunal. Porqu? Simplesmente porque se a COGEMA
fosse condenada, a consequncia representaria, necessariamente, um questionamento da responsabilidade
do Estado. A COGEMA refugiou-se por detrs do escudo do Estado, dizendo que no havia problemas, na
medida em que o Estado que nos controla no levantou qualquer problema. Se a COGEMA tivesse sido
condenada por poluio isso quereria dizer que o Estado no tinha feito o seu trabalho para evitar a
poluio. (Antoine Gatet, Sources et Rivires du Limousin, 19.01.2009)
Jacques Blanquet, da Associao Nacional para a Proteco das guas e Rios
(Association Nationale pour la Protection des Eaux et Rivires, ANPER-TOS)21, revela-se
mais crtico, apontando como principal entrave a uma eventual condenao da COGEMA a
estratgia adoptada pela acusao que envereda pela prova da radioactividade e perde o
processo devido a um preciosismo jurdico.
Para se atacar este problema, no se deveria ter visado a radioactividade. Havia infraces penais
suficientes com os resduos e os impactos sobre a gua para no nos termos de chatear com a
radioactividade. Nestas coisas, perito contra perito. Nestes stios [Limousin], acresce que existe uma
radioactividade natural, pelo que [] No caso COGEMA, se nos tivssemos centrado em coisas simples,
a condenao da COGEMA teria sido inevitvel. Se houvesse problemas de radioactividade, esses
poderiam ter sido tratados depois da condenao! [] Havia bons elementos para condenar a COGEMA,
s no se retiveram foi os melhores. Pode-se ser um bom advogado, mas ser um mau estratega. [] Eu
penso que se deveria ter deixado de lado a radioactividade, porque isso implicou trazer para o processo a
a distinguir a subordinao hierrquica em matria de ao da subordinao em termos disciplinares e de carreira. A primeira
legtima na medida em que o Ministrio Pblico um rgo estatutariamente destinado a servir de transmissor da poltica
penal levada a cabo pelo Ministro da Justia. Na prtica, esta subordinao deve no entanto ser relativizada tanto mais que
determinadas reformas vieram contribuir para dar mais independncia aos magistrados do Ministrio Pblico. Pelo contrrio,
a subordinao hierrquica em termos disciplinares e de carreira bem real e mais contestvel. Constitui uma verdadeira
espada de Dmocles pendente sobre a cabea dos chefes de jurisdio, amovveis, e tende a aumentar a dependncia dos
magistrados do Ministrio Pblico em termos de ao. De acordo com uma opinio partilhada por vrios autores e
magistrados, a nomeao dos magistrados do Ministrio Pblico e, por maioria de razo, dos chefes das delegaes do
Ministrio Pblico deveria competir a uma autoridade independente. De entre as vrias solues apontadas, a mais
frequentemente citada atribui essa competncia ao Procurador-Geral do Tribunal de Cassao, uma vez que este no recebe
ordens do Ministro da Justia. Relativamente competncia em matria disciplinar, os defensores da independncia do
Ministrio Pblico gostariam que ela pudesse depender completamente do Conselho Superior da Magistratura. Para uma
anlise dos poderes do Ministrio Pblico em Frana, Cf. Trassard, 2007. 21 A ANPER-TOS, tal como a France Nature Environement, associa-se SRL numa fase posterior do processo. Segundo
Antoine Gatet, da SRL, a integrao da ANPER-TOS com parte civil do processo deveu-se inteno de conferir uma
dimenso nacional questo no domnio da gua: Ns iniciamos o processo em 1999 e, progressivamente, apercebemo-nos
que, para que o dossier tivesse uma importncia nacional, tinha de haver o concurso de associaes nacionais. A France
Nature Environnement juntou-se a ns como parte civil e, no domnio das guas, fomos ter com a ANPER-TOS que nos disse
que sim desde que no houvesse custos implicados. (Antoine Gatet, Sources et Rivires du Limousin, 19.01.2009)
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CRII-RAD, o nuclear e uma contestao de difcil prova cientfica. (Jacques Blanquet, Association
Nationale pour la Protection des Eaux et Rivires, 08.01.2009, itlico nosso)
A ideia sustentada pelo ambientalista a de que a intromisso de peritos acabou por se
revelar nefasta para o processo. O problema de estratgia: condenar primeiro, resolver
depois, era a estratgia a seguir. Enquadrada a questo por parmetros tcnico-cientficos e
legais (normas, regulamentos, limites, etc.), o processo entra num domnio no qual a
COGEMA est melhor equipada para rebater, para fazer prova, para, retomando Gabrielle
Hecht, manusear a nuclearidade.
O que preciso evitar num processo so os argumentos cientficos. A partir do momento em que se entra
por esta via, nunca mais se consegue sair de