ricardo gouveia - cupido e stanislavsky

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Cupido e Stanislavsky (Ricardo Gouveia) Personagens Márcia – garota de uns 17 anos, inteligente, mas com excesso de imaginação Dodó – seu irmão, 12 anos, esperto e bem-humorado D. Marina – mãe dos dois, senhora moderna e simpática Henrique – 19 anos, namorado de Márcia, bonitão, simpático, muito apaixonado por ela Juca – colega de Henrique, diretor do Grêmio Teatral do colégio, um tanto intelectual (Cenário: É um só, duplo. As cenas se alternam, ora num, ora noutro, acendendo e apagando as luzes no primeiro ou no segundo, conforme o desenrolar da ação. O palco é simplesmente dividido ao meio por tabique, ou mesmo um biombo. - cenário 1: sala de estar de apartamento de classe média. Pequeno sofá, uma ou duas poltronas, rádio, televisor, estante de livros, telefone. - cenário 2: sala se ensaios de Grêmio. Os únicos móveis são uma mesinha com cadeira para o ensaiador, e algumas cadeiras. Na parede, grande letreiro dizendo “Grupo Teatral do Grêmio – Não perturbe”. Alguns elementos de cenografia encostados à parede. Pilha de livros na mesinha). (Ao abrir o pano, a luz está acesa no cenário 1, o da sala de estar da casa de Márcia. Em cena, Márcia, esparramada numa poltrona em atitude pitoresca, muito “beatnik”, de calça comprida, pés descalços, cabelos soltos na testa e nos ombros, blusão imenso de mangas arregaçadas e óculos grandes, está lendo um livro em cuja capa, se possível, legível da platéia, se vê o título: “O Ulular das Entranhas”. Dodó, sentado no tapete, encostado a outra poltrona diante da irmã, desenha. Márcia vira uma página, remexe-se na cadeira e dá um suspiro profundo. Dodô levanta-se devagarinho e vai fazer cócegas nos pés descalços da suspirosa irmã) MÁRCIA – Dodó! O que é isso, menino! DODÓ – Desculpe, irmãzinha querida, mas esses seus pezinhos estavam tão tentadores, que não pude resistir! Desvendando Teatro (www.desvendandoteatro.com)

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Cupido e Stanislavsky(Ricardo Gouveia)

PersonagensMárcia – garota de uns 17 anos, inteligente, mas com excesso de imaginação

Dodó – seu irmão, 12 anos, esperto e bem-humoradoD. Marina – mãe dos dois, senhora moderna e simpática

Henrique – 19 anos, namorado de Márcia, bonitão, simpático, muito apaixonado por ela

Juca – colega de Henrique, diretor do Grêmio Teatral do colégio, um tanto intelectual

(Cenário: É um só, duplo. As cenas se alternam, ora num, ora noutro, acendendo e apagando as luzes no primeiro ou no segundo, conforme o desenrolar da ação. O palco é simplesmente dividido ao meio por tabique, ou mesmo um biombo.

- cenário 1: sala de estar de apartamento de classe média. Pequeno sofá, uma ou duas poltronas, rádio, televisor, estante de livros, telefone.

- cenário 2: sala se ensaios de Grêmio. Os únicos móveis são uma mesinha com cadeira para o ensaiador, e algumas cadeiras. Na parede, grande letreiro dizendo “Grupo Teatral do Grêmio – Não perturbe”. Alguns elementos de cenografia encostados à parede. Pilha de livros na mesinha).

(Ao abrir o pano, a luz está acesa no cenário 1, o da sala de estar da casa de Márcia. Em cena, Márcia, esparramada numa poltrona em atitude pitoresca, muito “beatnik”, de calça comprida, pés descalços, cabelos soltos na testa e nos ombros, blusão imenso de mangas arregaçadas e óculos grandes, está lendo um livro em cuja capa, se possível, legível da platéia, se vê o título: “O Ulular das Entranhas”. Dodó, sentado no tapete, encostado a outra poltrona diante da irmã, desenha. Márcia vira uma página, remexe-se na cadeira e dá um suspiro profundo. Dodô levanta-se devagarinho e vai fazer cócegas nos pés descalços da suspirosa irmã)

MÁRCIA – Dodó! O que é isso, menino!

DODÓ – Desculpe, irmãzinha querida, mas esses seus pezinhos estavam tão tentadores, que não pude resistir!

MÁRCIA – (tristeza exagerada) Oh Dodó... Você deveria ter mais respeito por mim... Pelo... Pelo estado deplorável em que se encontra o meu pobre coração angustiado...

DODÓ – (sem se impressionar) Ora vejam só. Com que então a minha querida Márcia está com o coração angustiado... (estala a língua, irônico) Ts, ts, ts... Também, não é de estranhar... Até o Totó ficaria com o coração, ou quem sabe até o fígado, angustiado, se lhe dessem para ler... (arranca o livro da mão dela) “O Ulular das Entranhas”!

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MÁRCIA – Dodó! Devolva-me este livro imediatamente! (há uma pequena correria entre os móveis, Márcia consegue arrancar o livro de Dodó, que, aliás, não resiste muito, e se esconde comicamente atrás duma poltrona, como quem tem medo de apanhar)

DODÓ – (fingindo medo) Perdão, perdão, querida irmã!

MÁRCIA – (com ar de superioridade) Ah, Dodó... Você ainda é muito criança para entender essas coisas... (lânguida) Aproveite, meu irmão, a sua doce infância... Porque ainda sofrerá a angústia existencial da decadência da civilização hodierna...

(Enquanto ela fala, Dodó vai saindo lentamente de trás da poltrona olhando para ela com ar de comiseração)

DODÓ – Chiiii... Você tá ruim mesmo, hein menina. Acho melhor eu ir indo... Esse negócio é capaz de pegar... (sai rindo) (Márcia senta-se e volta a sua leitura. Telefone toca. Márcia olha aborrecida para o telefone)

VOZ DA MÃE – Márcia! Atenda o telefone!

MÁRCIA – Já vou, mamãe... (vai atender) Alô... Sim, é aqui mesmo... Oh, é você, Henrique... Eu estou lendo... E meditando... O que... Você vem aqui? Agora? Mas eu... Ora, está bem, Henrique... Até já. (desliga. Vai sentar-se novamente. Entra a mãe)

MÃE – Márcia, eu queria que você fosse até a... (percebe) Ei, o que é isso, Márcia?

MÁRCIA – Isso o que, mamãe?

MÃE – Você está parecendo um bicho do mato, menina! Olhe, antes de mais nada, vá tomar um banho e se arrumar como gente. Depois, eu quero que você vá até à venda para mim...

MÁRCIA – Oh, mamãe... Não posso!

MÃE – Não pode por quê? Está faltando água novamente?

MÁRCIA – Não... É que eu... Eu sinto uma angústia aqui por dentro. Como se um elefante estivesse sentado sobre meu coração.

MÃE – (assustada) O quê? Mas como... Desde quando você está sentindo isso, minha filha? Dói muito? (vai para o telefone) Eu vou chamar o Doutor Moacyr...

MÁRCIA – Não, mamãe... Você não me entende... Ninguém me compreende!

MÃE – Mas se você não está doente, o que é então?

MÁRCIA – Minha mãe, “Ah, que me esmaga a sensação do nada”! (cita) Schopenhauer!

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MÃE – (compreende) Ah, então é isso... Bem, minha filha, você já é uma moça. (Senta-se, muito compenetrada) Já é tempo de nós conversarmos uma vez de mulher para mulher. Eu acho que você já está na idade de encarar a vida de uma forma mais realista e...

MÁRCIA – É exatamente o que eu estou fazendo, mamãe... Eu estou descobrindo o que é a vida... Cheia de tristeza... De angústia existencial...

MÃE – Minha filha, eu acho que você... (ouve-se a campainha) Quem será?

MÁRCIA – Deve ser o Henrique, mamãe... Deixe que eu vou abrir.

MÃE – Você vai assustar o seu namorado com essa aparência...

MÁRCIA – Tenho certeza de que ele vai compreender o meu estado de espírito. Ele também é jovem, e como tal, sente como eu em sua própria pele os erros do mundo em que vivemos... (campainha) Ih, mas que impaciência! (vai abrir. Entra Henrique)

HENRIQUE – Salve, pessoal.

MÃE – Boa tarde, Henrique!

HENRIQUE – Sabe, eu tenho uma novidade bárbara!

MÃE – Sim? E o que é?

HENRIQUE – Fui escolhido para fazer o papel principal numa peça de teatro lá do grêmio. (pose) Já morou no papai aqui dando uma de Procópio Ferreira?

MÃE – (rindo) Essa sua linguagem é ótima, Henrique... Meus parabéns, então. Mas agora, vou deixar vocês a sós, vou tratar da minha cozinha. (sai)

(Márcia está olhando para Henrique com cara de angústia existencial)

HENRIQUE – E então, broto, que tal a novi... (percebe) Ei! O que é isso?

MÁRCIA – Isso o que, Henrique?

HENRIQUE – Olha só a pinta da outra... Que finura! É carnaval que está chegando, ou você está querendo dar uma de “nouvelle vague”?

MÁRCIA – Henrique, eu esperava que você compreendesse melhor os meus sentimentos...

HENRIQUE – Que sentimentos?

MÁRCIA – A angústia existencial conseqüente dos recalques espirituais da mulher “hodierna”...

HENRIQUE – Ah, é? Boiei.

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MÁRCIA – Que linguagem vulgar, Henrique... Você veio perturbar a melancolia do meu retiro...

HENRIQUE – Olha, broto, eu não estou morando. Quer trocar isso em miúdos?

MÁRCIA – Oh, Henrique... Já vi que você jamais compreenderá o que me vai pela alma... Você é vulgar demais, é... É burguês demais para compreender.

HENRIQUE – Ah, é? (coça a cabeça) Tá legal, broto, depois você me explica. Eu queria pedir pra você me ajudar a decorar o meu papel para a peça do grêmio. Você me ajuda?

MÁRCIA – Que peça, Henrique?

HENRIQUE – (mostra) Está aqui... “O Juiz de Paz na Roça”, de Martins Pena. É uma comédia bem divertida. Eu faço o juiz.

MÁRCIA – Oh... Martins Pena! Mas isso já está ultrapassado, meu caro... Hoje em dia, devemos representar peças que retratem mais a... a angústia existencial da juventude “hodierna”...

HENRIQUE – Angústia existencial? Então eu acho que estou ficando velho. Nunca me deu esse troço não.

MÁRCIA – Henrique, Henrique... Há em suas palavras uma absoluta falta de profundidade e de compreensão... Uma mulher como eu, Henrique, precisa de alguém que a compreenda, que compartilhe com ela a sua depressão e sua angústia...

HENRIQUE – E qual é a angústia?

MÁRCIA – A angústia do nada! O terror do vazio que nos rodeia! “Ah, que me esmaga a sensação do nada!” – Schopenhauer. Mas... Não. Não adianta sofrer, como eu... Creio, Henrique, que não há nada em comum entre nós...

HENRIQUE – (alarmado) O quê? Como não? Tanta coisa que nós fizemos juntos, passeios, “arrasta-pés”, cinema, teatro...

MÁRCIA – (corta) Coisas do passado, meu filho! As águas passam...

HENRIQUE – Ah, sim, as águas passam...

MÁRCIA – ... E finalmente, eu me tornei mais adulta... Pela primeira vez, hoje, tomei contato com a realidade da vida, graças a esse livro maravilhoso... (mostra) “O Ulular das Entranhas”...

HENRIQUE – “O Ulular das Entranhas”... Que legal! É sobre distúrbios gastrointestinais?

MÁRCIA – Basta, Henrique, basta! É melhor terminar. Vai, meu filho... Deixe-me a sós com minha angústia e meu profundo sofrer... É melhor que me esqueça...

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HENRIQUE – Espera aí, broto. Você não está falando sério, está?

MÁRCIA – Sério... (sorriso sofredor) Sim, meu caro, é sério e terrível...

HENRIQUE – Mas o que foi e que eu fiz, Márcia?

MÁRCIA – Você não me compreende. O mundo não me compreende...

HENRIQUE – Mas Márcia, eu gosto de você! De verdade!

MÁRCIA – Está bem, Henrique. Vou dar a você uma oportunidade. Procure compreender-me. Procure sofrer com a decadência da humanidade. Se você conseguir... Pode voltar! (dá-lhe o livro) Leia isto, talvez ajude...

HENRIQUE – (olhando para o livro aparvalhado) Essa agora!

DODÓ – (entra correndo) Márcia, mamãe está chamando (pára, vê os dois) Chii... Que caras! Brigaram de novo, não é?

HENRIQUE – É a “angústia existencial”, Dodó... Tá morando?

DODÓ – Eu não...

MÁRCIA – Com licença, Henrique. Retiro-me à tristeza da minha solidão... Pense bem em minhas palavras... (sai trágica)

HENRIQUE – Diga-me Dodó, você é capaz de entender as mulheres?

DODÓ – Ah, eu não dou bola pra elas. Nenhuma regula muito bem, sabe? Não vale a pena se aborrecer com isso...

HENRIQUE – Se vale a pena ou não, eu não sei. O fato é que eu estou aborrecido! (senta-se, chateado. Abre o livro, começa a folhear, larga-o de lado e fica de cara aborrecida, pensativo. Entra mãe)

MÃE – (entrando) Márcia, você já foi... Márcia (vê Henrique) Onde está a Márcia, Henrique?

HENRIQUE – Retirou-se à tristeza de sua solidão... Entenda-se.

MÃE – O que foi, vocês brigaram?

DODÓ – Deu uma “coisa” na Márcia, mamãe. A senhora ainda não reparou?

MÃE – Sim, ela está meio esquisita hoje, pensei até que estivesse doente...

HENRIQUE – É “angústia existencial”, e decadência da humanidade e tudo “hodierno” ainda por cima...

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DODÓ – (mostra o livro) São coisas desse livro que ela arrumou, mamãe. “O Ulular das Entranhas”...

HENRIQUE – Seja o que for, ela me deu o fora. Disse que não quer mais saber de mim enquanto eu não aprender a sofrer com ela... Quem sabe, a ulular...

MÃE – (sorrindo) Você não precisa ficar tão aborrecido Henrique... São bobagens... Você vai ver como logo isso passa e volta tudo a ser como antes.

HENRIQUE – Ela não gosta mais de mim, D. Marina. Diz que eu não a compreendo. Talvez ela tenha razão. Esse negócio de angústia existencial, não compreendo mesmo. Eu seria capaz de fazer qualquer coisa para que ela volte a gostar de mim!

MÃE – Não faça nada Henrique, e não ligue. Isso vai passar, é uma fase, nada mais...

HENRIQUE – (Pensa. Idéia) Já sei!

MÃE – O que , Henrique?

HENRIQUE – Oh... Nada, nada, sona Marina... Acabei de me lembrar de uma coisinha... Eu já vou indo... Até logo, dona Marina. Tchau, Dodó... (vai saindo, com cara de quem está tramando algo)

MÃE – Ué... Que idéia será essa? Dodó vá chamar a Márcia para mim.

DODÓ – Não adianta, mamãe. Ela não vem, se eu chamar.

MÃE – Eu mesma vou chamá-la. Eu posso aturar tudo, angústia existencial, o peso do nada, ou o que seja. Mas não aquele jeito de bicho dentro de casa. (levanta-se e chama) Márcia! Márcia! (vai saindo) Essa menina vai tomar um bom banho, ora se vai! Márcia! Márcia! (sai seguida por Dodó)

(apaga luz no cenário 1 e acende no 2)

(Entra Henrique)

HENRIQUE – (entrando) Juca! Juca!

JUCA – Hein? (ergue os olhos) Ah, é você, Henrique. Feche a porta, por favor. Estou fazendo uma análise do texto.

HENRIQUE – (volta e fecha a porta) Juca, eu preciso de um favorzinho seu.

JUCA – Agora? Mas Henrique, logo mais à noite temos ensaio e eu preciso preparar a análise do texto e a marcação. Estou ocupado.

HENRIQUE – Eu preciso de sua ajuda! (frisa bem) Na qualidade de diretor artístico do Grupo Teatral do Grêmio!

JUCA – (importante) Bem, se é isso... Do que se trata?

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HENRIQUE – Você me deu o papel principal no “Juiz de Paz na Roça”. Acontece que eu nesse assunto de teatro estou completamente por fora da jogada, morou? E por isso eu queria que você me ajudasse a me desinibir um pouco.

JUCA – (mais importante ainda) Muito bem, o que você quer que eu faça?

HENRIQUE – Você sabe, como eu não tenho neca de experiência nesse troço, achei que seria bom se você me desse uma aulinhas de interpretação. Me ensine a interpretar alguns sentimentos como... Ahn... “Angústia existencial”...

JUCA – Ah, muito interessante... Estou contente em saber que você se esforça e se interessa. Muito bem, vamos a isso então. Só que o “juiz de paz” não precisa sentir “angústia existencial”.

HENRIQUE – Mas a interpretação de qualquer coisa diferente vai me ajudara desenvolver-me. Vamos Juca, me ensine a criar esse personagem... Um cara com pinta de “nouvelle vague”, ou coisa que o valha, e com angústia existencial.

JUCA – É um tipo interessante, sem dúvida... Bem, vamos a isso. Vamos começar com a aparência exterior. A aparência exterior ajuda muito, sabe? Vejamos... Tire o paletó, a gravata... Puxe metade da camisa para fora das calças, tire as meias isso... Tem que ser sapato sem meia (despeteia-lhe o cabelo) Está melhorzinho... Mas falta ainda alguma coisa... (lembra-se) Ah, sim, a barba!

HENRIQUE – Barba? (mete as meias no bolso)

JUCA – Claro. A barba é fundamental. Um instantinho... (pega um estojo de maquiagem tira uma barba postiça, coloca-a em Henrique) Pronto. Está ótimo. Agora a expressão. Tente fazer uma expressão trágica, de intenso sofrimento interior. (ele faz uma careta) Não, assim não serve. Você conhece Stanislavsky?

HENRIQUE – Ainda não tive o prazer... Ele mora em São Paulo?

JUCA – Ó santa ignorância! Você ainda tem muito o que aprender. Stanislavsky foi um teatrólogo russo, criador do método de representação usado em todo o mundo hodierno!

HENRIQUE – Essa não! Você também!

JUCA – Eu também o quê?

HENRIQUE – Essa história de “hodierno”... Essa comigo não pega!

JUCA – Hodierno, meu caro, é moderno. Mas vamos em frente: segundo o método de Stanislavsky, é preciso criar uma vida interior para a personagem. Descobrir “por que” o personagem age assim, o que ele pensa, etecetera e tal. “Não há ação sem motivação”.

HENRIQUE – Estou morando na jogada. Não há ação sem motivação.

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JUCA – Mas para isso é preciso fazer uma profunda análise do personagem, e aplicar a ele sentimentos que você mesmo já sentiu. Por exemplo, o personagem que você vai representar agora tem ódio à humanidade. Você já sentiu ódio à humanidade?

HENRIQUE – Eu?!

JUCA – Mas você com certeza já sentiu ódio de alguma coisa. Por exemplo, quando você está deitado, quase dormindo, e de repente... “Bzzzzzzzzzzzz!” Um pernilongo” Um pernilongo zumbindo ao seu ouvido, insistente, monótono, obsessivo. Você não sente ódio desse pernilongo?

HENRIQUE – É... Sinto... Bzzz!

JUCA – Vejamos uma frase... Uma boa frase...

HENRIQUE – “Ah, que me esmaga a sensação do nada!”

JUCA – Isso mesmo. Grande, rapaz! Agora diga isso pensando no pernilongo.

HENRIQUE – (sem convicção) “Ah, que me esmaga a sensação do nada...” Prefiro esmagar o pernilongo.

JUCA – Não, não, não! Seu canastrão! É preciso concentração! A concentração é importantíssima, tente aliar a memória emocional à concentração... Concentre-se, Henrique, concentre-se!

HENRIQUE – (careta) Estou me concentrando... (aperta a cabeça)

JUCA – Pense no mosquito... Um mosquito zumbindo no seu ouvido... Você sente ódio, um ódio cada vez maior. Um ódio indomável... Incontrolável... Você sente viram á tona em você todos os instintos primitivos guardados nas recônditas profundezas do seu subconsciente. E o mosquito zumbe... Zumbe... Bzzzzzzzzz... (Henrique vai fazendo caretas) Diga agora!

HENRIQUE – (dramático) “Ah, que me esmaga a sensação do nada!”

JUCA – Grande, rapaz! Formidável! Agora, vamos aprofundar-nos um pouco mais. Vamos fazer uma análise profunda da sua personagem... Descobrir todos os seus complexos e recalques... E lembre-se, os princípios básicos são: observação, memória emocional, concentração! Não há ação sem motivação.

HENRIQUE – Não há ação sem motivação. Tá.

JUCA – Analise a personagem desde o início. A julgar pela sua personalidade psicopática, ele deve ter sofrido ainda antes de nascer um profundo traumatismo emocional, no período intra-uterino... (continua a falar sem som, a luz vai se apagando. Apaga o cenário 2. Acende no 1)

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(Sala vazia. Ouve-se a campainha. Entra Dodó, dirige-se para a porta, abre-a e recua um passo, assustado. Entra Henrique, completamente tranformado, com cara de “angústia existencial”)

HENRIQUE – (soturno) Boa tarde, jovem. A senhorita Márcia está?

DODÓ – (assustado) Quem é o senhor?

HENRIQUE – Oh, Humanidade... Como “sois” cruel e ingrata! Com que então, ó jovem, já não mais me reconheces?DODÓ – Espere... Não me diga que você é o Henrique!

HENRIQUE – Sim, Dodó... Sou eu.

DODÓ – Essa não! Tá todo mundo louco! Que é que te deu, Henrique?

HENRIQUE – Eu sofro, meu filho... Sofro os erros da sociedade... Ahn... “Hodierna”... Oh, como eu odeio a humanidade... (tom normal) Por favor, Dodó... Chama a Márcia.

DODÓ – Chêêêêêê... Tá bem, eu chamo! (sai correndo) Márcia! Márcia! (Henrique senta-se na poltrona com um ar dramático. Logo entra Márcia, mas também totalmente transformada. Toda romântica, com uma estola feita de um mosquiteiro, esvoaçante. Traz na mão o livro “Eurico, o Presbítero”)

MÁRCIA – (Pára a uma certa distância, faz pose) Oh, Henrique!

HENRIQUE – (levanta-se) Márcia... Ah, que me esmaga a sensação do nada!

MÁRCIA – (suave) Henrique, meu amado... Eis que te vejo transformado e irreconhecível...

HENRIQUE – (trágico) Oh, como eu odeio a humanidade!

MÁRCIA – Meu Henrique... Vejo em tua triste figura as privações e atrozes sofrimentos que passaste para encontra-se comigo...

HENRIQUE – Malditos sejam os homens que me fazem sofrer... Oh, essa angústia existencial! Eu odeio a humanidade...

MÁRCIA – meu pobre Henrique... Eis que cheha a primavera... “As falenas têm asas de opala...” – Castro Alves. “ao longe os montes têm neve ao sol...” – Fernando Pessoa. “As noites calmas abrem n’álma a flor das almas...” – Catulo da Paixão Cearense. “Que amor, que sonhos, que flores... Que doce a vida não é!” – Casimiro de Abreu. E apesar de ser tão bela a vida ó Henrique de minh’alma, tu me dizes que odeias a humanidade.

HENRIQUE – (já meio confuso) Mas Márcia... Eu pensei que você também odiava a humanidade!

MÁRCIA – Oh! Não digas semelhante heresia! Como poderia eu odiar a humanidade? Vê, Henrique... Olha ao teu redor... Sente o maravilhoso perfume das flores que

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desabrocham nos prados... Respira o hálito doce da vida que impregna os ares primaveris... A vida é bela! Os homens são bons! Tudo é maravilhoso e tudo convida ao sonho, ao devaneio... E ao amor...

HENRIQUE – Ué, broto você sarou?

MÁRCIA – Henrique, meu coração palpita sedento de amos... E de romance...

HENRIQUE – (alegre) Legal! (arranca a barba postiça) Que alívio, ainda bem que você já está boa (oferece o rosto) Dá um beijinho.

MÁRCIA – Oh, mas que vulgaridade! Não, não é isso que meu jovem coração anseia! O que eu procuro é um amor que seja ao mesmo tempo espiritual e impulsivo e indomável... Ao mesmo tempo romântico e desenfreado! (mostra o livro) Como nesse maravilhoso romance: Eurico o Presbítero... Eurico e Hermengarda...

HENRIQUE – Chiiii... Deu outro “troço”.

MÁRCIA – Ó... Como eram belos os tempos d’outrora... Seria tão maravilhoso se, como num conto de fadas, me aparecesse montado num cavalo branco um gentil e formoso mancebo... E depois me levasse em doida cavalgada pelos prados verdejantes...

HENRIQUE – Olhe aqui, nenê, essa bossa de “gentil mancebo” é dos tempos do meu bisavô. Está passando um “bang-bang” aí que é o fino”

MÁRCIA – (com desprezo) “Bang-bang”... Que horror! Não, Henrique, sinto muito... Infelizmente você não serve mesmo pra mim... Seria atroz meu sofrimento se eu tivesse que ficar para sempre ligada a um homem vulgar... Incapaz de compreender a beleza da vida, e a pureza de verdadeiro amor...

HENRIQUE – Márcia, pelo amor de Deus!

MÁRCIA – Não, Henrique... Não insista... Será melhor assim, separemo-nos para sempre. Nós não fomos feitos um para outro. Enclausar-me-ei em minha alcova, à espera do cavalheiro romântico que virá um dia buscar-me... (vai saindo) Adeus, henrique!

HENRIQUE – Márcia, espere, eu... (ela já saiu) Ora bolas! (vai sentar-se amuado) (entra mãe)

MÃE – Márcia!márcia! (vê Henrique) Ah, Henrique, é você!

HENRIQUE – (desconsolado) boa tarde, dona Marina!

MÃE – Boa tarde... Mas o que aconteceu com você, Henrique? Foi atropelado?

HENRIQUE – Não, não... Era a angústia existencial...

MÃE – Você também?

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HENRIQUE – Não, eu fiz isso só para ver se a Márcia voltava a gostar de mim. Mas nãonão adiantou nada. Quando eu cheguei aqui, ela já tinha mudado de canal. Agora é “gentil mancebo montado em cavalo branco”. Ora bolas!

MÃE – (sacode a cabeça) Essa minha filha... Mas olhe, Henrique, você quer um conselho? Vá para casa, tome um bom banho, troque de roupa, e não pense mais nisso. Quando a Márcia perceber que você não aparece, vai deixar de lado essas bobagens e vai correndo atrás de você. Você vai ver...

HENRIQUE – E se ela não aparecer, dona Marina? Eu gosto muito da Márcia, não quero que ela pense que eu estou querendo me afastar dela...

MÃE – Ela também gosta de você, Henrique... São tudo bobagens... Muito romance que ela anda lendo. Não se preocupe tanto...

HENRIQUE – Está bem, dona Marina... Vou tentar... Até logo. (levanta-se)

MÃE – Até logo, Henrique... E desmanche essa cara infeliz. Ânimo, rapaz...

HENRIQUE – Muito obrigado... (sai)

MÃE – (sacode a cabeça) Essa Márcia... (chama) Márcia! Márcia! (entra Dodó)

DODÓ – Mamãe!

MÃE – Onde está a Márcia, Dodó?

DODÓ – Está trancada no quarto dela. Disse que está em... Enclau... Qualquer coisa.

MÃE – Enclausurada, por acaso?

DODÓ – Isso mesmo. Disse que está enclau... Isso que a senhora disse, e que não quer ser perturbada.

MÃE – (chama) Márcia! Márcia, venha já pra cá! Deixe de bobagens, eu preciso falar com você!

MÁRCIA – (entrando lânguida) O que você deseja, mamãe? Você perturbou os meus maravilhosos devaneios...

MÃE – (percebe) Márcia! O mosquiteiro do nenê! Bem que eu andei procurando! Dê-me isso, já!

MÁRCIA – É o meu véu, mamãe...

MÃE – Márcia, por mim você pode ter angústia existencial, devaneios românticos, o que quiser. Mas faça-me o favor de não depredar a casa! Vá imediatamente por o mosquiteiro do nenê no lugar!

MÁRCIA – (acabrunhada) Está bem, mamãe... Ninguém me compreende... (sai)

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DODÓ – Essa foi grande! O mosquiteiro do nenê virou véu! (riem os dois) (apaga a luz do cenário 1. Acende o 2)

(Juca está andando de um lado para outro com o texto na mão) (Entra Henrique, já mais arrumado, com a barba na mão)

HENRIQUE – Juca, eu...

JUCA – Psiu! (conta os passos) Um, dois, três,... (escreve no texto) Três passos para o fundo... Juiz senta-se. Escrivão caminha para a direita baixa...

HENRIQUE – Juca, eu queria...

JUCA – Já vai, já vai... (continua a marcar) Aninha aproxima-se da mesa... Vira a três quartos para o público... Certo. (para Henrique) Fale, Henrique.

HENRIQUE – Olha, velhão. Gostei muito da angústia existencial. Aprendi bastante. Mas eu queria aprender mais, sinto sede de saber...

JUCA – Ótimo, Henrique... Se continuar assim, você ainda vai ser um grande nome do teatro nacional. O teatro é uma arte que exige muito esforço e muito trabalho do artista... O que você quer aprender agora?

HENRIQUE – Eu queria que você me ajudasse a criar um outro tipo, diferente daquele...

JUCA – Muito bem. E que tipo você escolheu?

HENRIQUE – (finge pensar) Hum... Um pinta assim como... “Gentil mancebo dos tempos d’outrora”. Seria uma boa pedida, hein?

JUCA – Bonita idéia, rapaz. Ah, o romantismo... Algumas das maiores obras-primas do teatro foram escritas nessa época...

HENRIQUE – Tá topado, então? Vamos largar brasa?!

JUCA – Vamos. Mas antes de mais nada repita o princípio básico de Stanislavsky, que eu ensinei a você.

HENRIQUE – (recita) “Não há ação sem motivação.”

JUCA – Muito bem. Isso mesmo. E lembre-se: observação, memória emocional, concentração. É fundamental.

HENRIQUE – Tá na base;

JUCA – Bem. Tomemos um exemplo de personagem romântico... (pensa) Ah, sim, claro. Nada melhor do que o clássico “o” personagem romântico por excelência: Romeu! Aliás, isso é muito bom. Eu estava mesmo querendo montar “Romeu e Julieta”

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aqui no grêmio. Se der certo, você já fica com o papel. (procura num canto) Ah, aqui está... Vamos achar uma boa fala. Ah, esta aqui... (mostra) Leia, Henrique.

HENRIQUE – (lendo mecanicamente) “A noite para mim sem tua luz é má! O amor vai para o amor alegremente...”

JUCA – Não, não! Assim não vai. Usemos o método de Stanislavsky. Tente lembrar-se, Henrique, de uma vez em que você tenha estado em situação semelhante.

HENRIQUE – Que situação?

JUCA – Você não conhece o “Romeu e Julieta”?

HENRIQUE – Já vi nos cinemas. Um filme chatinho por sinal.

JUCA – Como você pode dizer uma coisa dessas! Umas das maiores obras-primas do teatro! (Henrique dá de ombros) Bem, não vamos discutir agora. Então, você conhece a história. Tente lembrar-se. Alguma vez em que você tenha estado loucamente apaixonado... Como o Romeu... E sem poder encontrar-se com a sua amada por causa de uma rivalidade existente entre as famílias...

HENRIQUE – (sacode a cabeça) Nada feito.

JUCA – Bem, vamos tentar de outro jeito. Sente-se aí. Vamos fazer uma análise psicológica da personagem. A julgar pela sua personalidade psicopática, ele deve ter sofrido, ainda antes de nascer, um profundo traumatismo emocional, no período intra-uterino... (continua a falar sem som. Apaga o cenário 2. Acende o 1)

(Dodó sentado no meio da sala, virando lentamente a cabeça de um lado para o outro, cara perplexa, seguindo Márcia, que, com uns óculos enormes e um grosso volume nas mãos “Energia atômica”, anda de um lado para outro. Dodó acompanha-a com a cabeça, como num jogo de tênis)

MÁRCIA – (lendo) “Se A-8 é igual a PI dividido pela milionésima potência de XY85, é evidente que o resultado da alteração sofrida no núcleo atômico será diretamente proporcional à raiz quadrada do fator 8-b-6-d-5. Ora, uma vez que o infinito dimensional tende a zero na razão direta das massas e na razão inversa do quadrado das distâncias, estabelece-se assim a relação geométrica entre a conformação neutro-eletrônica e o disco estroboscópico. Isto demonstra a relatividade da matéria e o contínuo espaço-temporal...

DODÓ – (interrompe) Maninha querida, será que você não pode parar de andar de um lado para outro?

MÁRCIA – Cale-se! (Dodó assusta-se) Você está perturbando o fio dos meus pensamentos...

DODÓ – Que pensamentos?

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MÁRCIA – Fique quieto. (continua) “... A relatividade da matéria e do contínuo espaço-temporal. Forma-se então o paradoxo hidrostático, provocando um movimento oscilatóri de paramagnetismo com expansão livre, facilmente verificável pela Espetrofotometria... Assim sendo... (campainha) Ora bolas, será que não se pode nem estudar em paz! Vá abrir a porta, Dodó.

DODÓ – Tá... (vai abrir, toma um bruta susto. Entra Henrique, todo de capa e chapéu de plumas, avança dois passos para Márcia, cumprimenta-a em grande estilo com o chapéu, arrastando a pluma no chão)

HENRIQUE – Ó gentil donzela! (Márcia olha para ele espantada) (Henrique declama canastríssimo) “A noite para mim sem tua luz é má! O amor vai para o amor alegremente. Como volta da escola a criança contente. A ida para a escola é trista, e a volta alegra. Mas para o amor a ida é alegre e a volta é triste!” (cita) – Shakespeare – Romeu e Julieta - Ato II, cena II.

MÁRCIA – Henrique, você ficou maluco?

HENRIQUE – (aproxima-se) permiti que vos beije a mão, ó gentil donzela!

MÁRCIA – Sai pra lá, Henrique! Você e as suas loucuras! Não está vendo que estou ocupada?

HENRIQUE – (confuso) Ocupada? Mas você não ia se enclausurar na...

MÁRCIA – Ora, Henrique, não seja ridículo. (importante) Hoje eu descobri o que é realmente importante na vida. É a ciência! Estou estudando energia atômica, não perturbe.

HENRIQUE – (aparvalhado) Ciência... Energia atômica...

MÁRCIA – Silêncio! (lê) “A aceleração instável dos isótopos é dispersiva por atrito teroidal, que se induz em cristais dicróticos pela ação eletrolítica de dupla refração. Segundo a fórmula 84 1 – p x – k, a milésima parte de zero elevado à potência infinita...

HENRIQUE – (furioso, atira o chapéu e a capa ao chão) Basta! Basta! Basta! Com todos os diabos, com um milhão de bombas de hidrogênio e angústias existenciais... Basta!!!

MÁRCIA – (espantadíssima) Henrique! Controle seus impulsos!

HENRIQUE – “Controle seus impulsos”, você me diz. Eu já estou cheio, sabe? CHEIO! E não fique aí me olhando com essa cara! Márcia, quando eu conheci você, você era muito diferente. Você era uma garota legal, alegre... Gostava de passeios, bailes, de filmes de “bang-bang”... E também das coisas sérias, ciência, poesia, teatro... Mas tudo nas suas devidas medidas! Por isso é que eu gostava de você! Mas agora, não sei que bicho te mordeu, te deu a louca! É “angústia existencial!” é “gentil mancebo montado em cavalo branco”, e ainda por cima, energia atômica! Logo você que ainda nem completou o curso científico! Aposto que você não entende uma palavra disso que você está lendo aí! Márcia, eu já disse por que eu gostava de você. Aliás, por que eu

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gostava da outra Márcia, da Márcia que eu conheci tempos atrás num baile do colégio... Era dessa Márcia que eu gostava. Porque você agora é uma estranha para mim. Eu sinto muito que seja assim, mas se você não voltar a ser a Márcia que era, sou eu quem digo agora CHEGA! Entre nós não há nada em comum!

MÁRCIA – Mas Henrique, eu...

HENRIQUE – (controlando-se) Márcia... Eu gosto de você... Eu adoro você... Por favor, volte a ser a garota alegre e equilibrada que você era!

MÁRCIA – (tira os óculos. Larga o livro) Eu... Eu não sei o que pensar... EU também gosto de você Henrique... Mas eu não sei... Não sei o que deu em mim, por que eu estou diferente... Talvez você tenha razão...

HENRIQUE – Pois então volte a ser a Márcia que eu conheci.

MÁRCIA – Eu não sei... Eu não posso... Não consigo...

HENRIQUE – (idéia. Bate com a mão na testa) Já sei!

MÁRCIA – O que, Henrique?

HENRIQUE – Márcia, você já ouviu falar em Stanislavsky?

MÁRCIA – Sim... Foi um grande teatrólogo russo...

HENRIQUE – Sim! Criador do método de interpretação teatral usado em todo o mundo... Ahn... “hodierno”.

MÁRCIA – Sim, mas o que tem isso a ver comigo?

HENRIQUE – (importante) Márcia... Stanislavsky vai ajudar você a voltar a ser o que era antigamente.

MÁRCIA – Mas como...

HENRIQUE – Márcia, o importante é: observação, memória emocional, concentração! (todo atrapalhado) Imagine-se quase dormindo, e chega um pernilongo. Bzzzzzzzzz! Você sente despertarem em você os seus instintos primitivos, guardados nas recônditas profundezas do seu subconsciente! Concentre-se, Márcia, concentre-se! E o mosquito zumbe, bzzzzzzz... Bzzzzzzzzzzzzz... Você sente ódio! (Márcia o começo fica espantada, depois vai começando a sorrir, depois faz força para conter as gargalhadas, enquanto Henrique continua fazendo confusão) Não há ação sem motivação... É preciso fazer uma análise profunda... Vai para direita faixa e três-quartos para o público... O personagem, a julgar pela sua personalidade psicopática, sofreu um grave traumatismo emocional no período intra-uterino... Bzzzzz...

MÁRCIA – (não se contém e desanda a rir, fala entre gargalhadas) Chega, Henrique, chega! Ai, que eu não agüento mais! Você é o máximo! Traumatismo emocional no período... (ri) Essa não!

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HENRIQUE – (Pára, olha para ela, espantado) Márcia, você está rindo! (contentíssimo) Você está curada, Márcia!

MÁRCIA – Você é o fino, Henrique! Merece um beijo! (dá-lhe uma beijoca estalada na face)

HENRIQUE – Oba! (dá um pulo de alegria) Oba, oba!

MÁRCIA – Escute aqui, benzão... A hora é propícia... Que tal se fossemos agora até a cidade, ver aquele “bang-bang” de que você falou?

HENRIQUE – Só se você prometer que depois vem comigo assistir o meu ensaio do “juiz de Paz na Roça”, lá no grêmio.

MÁRCIA – Que dúvida! (chega pertinho de Henrique, olha bem nos olhos dele, e diz com voz de “eu te amo”) Eu adoro o teatro, Henrique!

HENRIQUE – (mesmo tom) E o espetáculo não pode parar, Márcia!

MÃE – (que entrou neste momento, olha sorrindo) Ora alvíssaras! Parece que fizeram as pazes!

DODÓ – (que observara a cena com ar superior caçoísta de molequinho) São artes do senhor cupido!

MÁRCIA – (rindo) Cupido só, não!

MÁRCIA E HENRIQUE – (juntos) Cupido e Stanislavsky!

FIM

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